Rosane Monteiro RamalhoE continua:si das águas – lhe davam vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> sair correndo daquela ameaça<strong>de</strong> aniquilamento para a casinha <strong>de</strong> praia acolhedora, iluminadae quase sem móveis (Roth, 2007, p.28).Não conseguia enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vinha aquele medo, e precisava<strong>de</strong> todas as suas forças para ocultá-lo <strong>de</strong> Phoebe 4 . Por que estariainseguro sobre sua vida, justamente agora que a dominavamais que em qualquer outro momento dos últimos anos? Por quese imaginava próximo da extinção quando um raciocínio tranquiloe objetivo lhe dizia que ainda tinha muita vida sólida pela frente?(Roth, 2007, p. 28).A angústia diante da morte tingia seu cotidiano e se manifestava <strong>de</strong> variadasmaneiras. Uma <strong>de</strong>las era a excessiva preocupação com o corpo, que seintensificou quando começou a envelhecer e as doenças passaram a se tornarmais presentes. O sucesso profissional alcançado fôra com certeza importantepara ele, por outorgar-lhe valor, não só aos seus olhos, mas também aos olhosdos outros. Apesar disso, o sentimento mais forte era <strong>de</strong> que sua potência paraa vida tinha relação muito mais direta com a vitalida<strong>de</strong> do corpo, com a tonicida<strong>de</strong>dos músculos. A imagem que tinha <strong>de</strong> si consistia na imagem que tinha <strong>de</strong> seucorpo. Desse modo, quando passou a ver o corpo em <strong>de</strong>cadência, também aimagem <strong>de</strong> si tornou-se a <strong>de</strong> um ser <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte.O homem comum sentia não ter com o que contar, algo que lhe <strong>de</strong>ssesustentação, para além da precária ancoragem na imagem <strong>de</strong> um corpo saudávele forte. Não é <strong>de</strong> espantar, uma vez que a falta ou precarieda<strong>de</strong> dos referenciaissimbólicos, da função paterna em nossa cultura – no caso a oci<strong>de</strong>ntal – faz comque os sujeitos tomem as imagens oferecidas pelo social como balizas paradizer <strong>de</strong> si, utilizando a imagem do corpo como um referente privilegiado parasua construção i<strong>de</strong>ntitária. Percebemos, ainda, que o que acaba fazendo limiteao sujeito, na falta <strong>de</strong> uma interdição simbólica, é justamente o real do corpo, ouseja, a doença, o envelhecimento e a morte.Po<strong>de</strong>mos dizer que a angústia e suas expressões: a sensação <strong>de</strong> <strong>de</strong>samparo,<strong>de</strong> vazio, a constante suposição <strong>de</strong> uma ameaça velada <strong>de</strong> aniquila-4Sua mulher na época.32
Angústias contemporâneasmento, o vago sentimento <strong>de</strong> se achar próximo da extinção, que encontramosno homem comum <strong>de</strong> Roth, fazem parte do leque <strong>de</strong> afetos que rondam a experiênciados humanos. A inevitável dor <strong>de</strong> existir faz parte da condição humana eé também o que move o sujeito. A angústia, porém, se apresenta em modalida<strong>de</strong>se intensida<strong>de</strong>s diversas, variando não só na singularida<strong>de</strong> da existência <strong>de</strong>cada sujeito, como também nos contextos sócio-históricos nos quais as coletivida<strong>de</strong>s<strong>de</strong> sujeitos constroem suas formas <strong>de</strong> vida. Nos dias atuais, a angústiaemerge em variadas formas, seguindo roteiros <strong>de</strong> configuração e expressão dosofrimento predominantes em nossa cultura. Transtorno do pânico, <strong>de</strong>pressão,adições em geral (<strong>de</strong> álcool, <strong>de</strong> drogas, <strong>de</strong> objetos <strong>de</strong> consumo, obesida<strong>de</strong> ououtros transtornos alimentares, tais como, anorexia, bulimia), são algumas dasformas com que a angústia se apresenta hoje.Além disso, há, como já é conhecido, o significativo aumento dos casoslimítrofes, também chamados estados-limite (segundo a nomenclatura francesa)ou bor<strong>de</strong>rline (conforme a nosografia americana) – casos que não consistemem quadros <strong>de</strong> neurose propriamente dita, tampouco <strong>de</strong> psicose, mas que apresentamem comum a problemática acerca dos limites, das bordas, enfim, dadiferença entre o eu e o outro.Freud já dizia que, em matéria <strong>de</strong> experiência humana, os escritores epoetas dizem melhor e mais cedo o que os psicanalistas se esforçam por tentarenten<strong>de</strong>r a seu modo. A <strong>de</strong>scrição que Roth faz das vicissitu<strong>de</strong>s da vida dohomem comum vale como uma chave para compreen<strong>de</strong>r algumas das característicasessenciais do modo <strong>de</strong> sofrer a que estão expostos os sujeitos atuais,membros <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> que, em nome da liberda<strong>de</strong>, livrou-se das amarrassimbólicas e que, em nome da autonomia e da autocriação, <strong>de</strong>sfez os laços,referências e horizontes que balizavam sentidos transcen<strong>de</strong>ntes em relação àsexistências.Num curioso efeito colateral, a socieda<strong>de</strong> que mais liberou os indivíduosdas proscrições do passado acabou por esvaziar também as prescrições emrelação ao futuro, tornando a experiência <strong>de</strong> existir um penoso <strong>de</strong>safio paramuitos. Donos do seu <strong>de</strong>stino ou entregues à própria sorte? Livres para escolherou sem bússola com que se orientar? Autônomos em relação aos outros ou<strong>de</strong>sgarrados? Nem sempre é fácil se situar nessa gangorra, e o preço a serpago pela oscilação é, frequentemente, o da angústia, seja na sua forma aguda,seja na sua forma mais difusa. É nessa inconsistência, nesse vazio <strong>de</strong> referenciais,que resi<strong>de</strong> a fonte <strong>de</strong> boa parte da angústia inominada, insistente e difusa queacometia o homem comum. É ela também que se revela por trás da dinâmicapsíquica <strong>de</strong> muitos que compõem o panorama – recorrente na clínica atual – dossujeitos à <strong>de</strong>riva, em busca <strong>de</strong> si mesmos e <strong>de</strong> um lugar para si no mundo.33