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REFLEXOS NO ESPELHO PARTIDO<br />

GALENO PROCÓPIO M. ALVARENGA<br />

www.galenoalvarenga.com.br/contatos<br />

Esse livro faz parte do acervo de publicações do Psiquiatra e Psicólogo<br />

<strong>Galeno</strong> <strong>Alvarenga</strong>. Disponibilizamos também a versão impressa, que<br />

pode ser adquirida através do <strong>site</strong> do autor.<br />

<strong>Vi<strong>site</strong></strong> www.galenoalvarenga.com.br e saiba mais sobre:<br />

Publicações do Autor<br />

Transtornos Mentais<br />

Testes Psicológicos<br />

Medicamentos<br />

Galeria de Pinturas de Pacientes<br />

Vídeos / Programas de TV com participação de <strong>Galeno</strong> <strong>Alvarenga</strong><br />

Tags: Livros Online Grátis, Livros Psicologia, Livros Psiquiatria<br />

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Índice<br />

5 INTRODUÇÃO<br />

15 UNIDOS PARA SEMPRE<br />

30 O INCESTO; CEGA OBSESSÃO<br />

39 NA SERENA MANHÃ DE DOMINGO<br />

48 UM DIA DE CÃO<br />

61 DEPOIS DO CHOQUE, A CONSULTA<br />

75 PAIXÕES E DESENCANTOS<br />

84 NA ESQUINA DA CIDADE BAIXA<br />

104 ENCONTRANDO SEFIRA<br />

116 MANICÔMIO: LOUCURAS DE UMA PAIXÃO<br />

135 ADEUS ÀS ILUSÕES<br />

146 A COMÉDIA HUMANA<br />

160 JOGO DE PALAVRAS<br />

173 ROMPENDO O SILÊNCIO<br />

190 IRMÃOS ENTRE QUATRO PAREDES<br />

212 CTI – A UM PASSO DO FIM<br />

226 CONSULTA LIBERTADORA<br />

244 DORES DO ENVELHECIMENTO<br />

255 DIAS AMARGOS<br />

266 DEIXEM-ME VIVER<br />

271 O DESESPERO<br />

287 O RETORNO: SOMBRAS DO PASSADO<br />

306 EPÍLOGO<br />

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AGRADECIMENTOS<br />

Agradeço aos meus pais, Trajano e Dulce, produtores do meu genoma;<br />

às minhas filhas, Jussara e Juliana, produtos desse genoma; aos irmãos,<br />

que compartilham de genoma semelhantes; aos amigos, parentes e<br />

clientes; aos inimigos que desafiaram-me e agrediram-me. Em resumo,<br />

a todos aqueles que, de um modo ou de outro, excitaram-me, provocaram-me,<br />

promovendo assim a expressão dos genes recebidos durante a<br />

concepção. Através desses encontros e desencon-tros, das relações dos<br />

milhares de genes com os trilhões de estímulos externos, nasceu essa<br />

construção milagrosa e esquisita que sou eu; a única pessoa que conheço<br />

mais ou menos por dentro.<br />

Sem a ajuda de cada um desses diferentes agentes, que ativaram o<br />

necessário no momento certo, eu seria outro homem, um desconhecido<br />

para meu eu atual e para vocês. Como seria caso fosse construído de<br />

outro modo? A resposta final eu deixo para vocês, pois sem vocês eu<br />

seria ninguém.<br />

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Introdução<br />

A notícia funesta, lida no jornal da manhã, me transportou ao passado.<br />

Maquinalmente, pensativo e triste, dirigi-me ao arquivo de fichas médicas.<br />

Abri a gaveta e comecei a examinar cada ficha, uma a uma, à procura<br />

da de Lúcio. Passei os olhos num e noutro nome. Fatos da vida dos<br />

pacientes nasciam, despertando dramas adormecidos pelo tempo.<br />

Começavam a desfilar em minha mente cansada e envelhecida, seres angustiados<br />

e sem esperança. Todos perdidos, sem rumo, barcos em noite<br />

de tempestade, sem comando, procurando um porto para atracar.<br />

Parei numa ficha. Depois, noutra: “esse aqui só veio uma vez; um caso<br />

diferente; queria, a todo custo, transformar-se em mulher. Onde estará?<br />

Essa separou-se do marido, poucos dias após ter-se casado: ele quase a<br />

matou de tanto a agredir. Terá casado de novo? Como era bonita essa<br />

moça! Tentou o suicídio várias vezes. E agora? Conseguiu o que queria?<br />

Esse, canceroso, não quis tratar-se; morreu como desejava. Como<br />

bebia o Alberto! Sofreu muito com a cirrose. Gostava das idéias do Dr.<br />

Bernardo; era um homem inteligente; sempre tinha algo diferente para<br />

dizer”.<br />

Distraía-me sem querer...Diante de cada nome, histórias eram reconstruídas...<br />

sucediam-se fisionomias tensas, lembranças quase perdidas de<br />

vidas carregadas de paixões, algumas alegres, a maioria cheia de amargas<br />

emoções. Todos tentavam ser alguém, alcançar o imaginado, cumprir o<br />

seu papel, custe o que custar. Uns buscavam resgatar a felicidade passada,<br />

sem saber bem como tinha sido; outros procuravam a estabilidade<br />

e a segurança; alguns, o amor-próprio perdido. A maioria não mais<br />

suportava os desencontros freqüentes; entretanto, quase todos acreditavam<br />

que, um dia, alcançariam suas utopias. Todos vieram em busca de<br />

transformações...na maneira de pensar, de agir, de viver...sonhavam com<br />

uma liberdade inexistente.<br />

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Ali sepultadas, descansavam muitas vidas...agora transformadas em<br />

anotações e jargões médicos, codificados em símbolos neutros, muitos,<br />

ilegíveis. Quantas lutas insanas jazem, aqui aprisionadas e imóveis, em<br />

fichas empoeiradas; quantos dramas, esforços sobre-humanos, na luta<br />

para atingir o imaginado.<br />

Relia aquelas histórias contadas com extrema dificuldade, retiradas dos<br />

porões de almas carregadas de medo.<br />

Com o passar dos anos, percebia que, também, me transformava,<br />

fundindo-me com seus sofrimentos. Tornara-me, pouco a pouco, um<br />

homem mais amadurecido; às vezes, amargo e desiludido, deixando,<br />

para trás, o simples, alegre e curioso recém-formado de antes.<br />

À minha frente, surgiam mais nomes; esses tiveram sucesso, aqueles,<br />

fracassaram. Homens, mulheres, muitos já mortos, alguns decidiram,<br />

antes da hora, não mais viver.<br />

Finalmente, alcancei, aflito, as anotações; a razão da minha procura.<br />

Detenho-me. Tenso, no silêncio da manhã, solitário. Retiro a ficha<br />

amarelada pelo tempo. A letra usada, tombada para a esquerda, com um<br />

traço grosso e forte, não mais me pertence; não sou mais aquele.<br />

Naquela época, ainda jovem, confiante, cheio de ilusões, a maioria delas<br />

desaparecidas, via em tudo um desafio a vencer.<br />

Evito ler todas as anotações de uma só vez; torno a olhar seu nome no<br />

alto da ficha; precisava me certificar: Lúcio M. L.; data da consulta: 23<br />

de abril de 1970. Minha mente penetra, lentamente, com saudade, na<br />

penumbra da primeira consulta, <strong>nosso</strong> encontro inicial. Gostei do seu<br />

jeito. Era um caso difícil; o que sempre me excitou.<br />

Vejo-o, entrando apressado, pela pequena porta do consultório, mal me<br />

cumprimentando. Sempre olhando para o chão, como alguém que ima-<br />

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gina estar sendo repreendido. Deixou o corpo comprido, leve e flexível,<br />

cair sobre a grande poltrona; afundando-se nela, como se desejasse<br />

desaparecer.<br />

Era simpático, apesar da cara fechada e séria. Vestia uma camisa verdeamarela<br />

da seleção brasileira, bastante justa, que permitia ver os ossos<br />

das costelas estufados; dando a impressão de ser mais magro do que<br />

realmente era. Em contraste, vestia uma calça branca, que parecia escorregar<br />

para baixo do abdome, presa à cintura por um cinto roto, amarrotada,<br />

mole, larga demais para cobrir suas pernas finas. O vinco desaparecera<br />

completamente e, em seu lugar, na altura dos joelhos, formava<br />

um ovo saliente.<br />

Tinha a pele clara, de um branco leitoso, a face, alargada na parte superior,<br />

exibia uma testa grande, enrugada horizontal e verticalmente e<br />

afilava-se no queixo, coberto de pêlos ralos, de uma barba por fazer. Os<br />

cabelos pretos, partidos irregularmente do lado esquerdo, cortados muito<br />

curtos, deixavam ver, dos dois lados, o couro cabeludo esbranquiçado.<br />

Usava óculos de aros escuros e grossos, manchados de pintas brancas;<br />

um modelo antigo, que cavalgava o nariz bem feito e cobria quase todo o<br />

rosto ossudo. Lentes cinzas escondiam os olhos claros e brilhantes, sempre<br />

atentos. A boca rasgada, de lábios finos, levemente arroxeados. Os<br />

maxilares contraídos, indicavam determinação ou teimosia. Escondida<br />

por trás de seus gestos controlados, na maioria da vezes lentos, existia<br />

uma mente agitada, crítica e inquiridora, a beira do desespero.<br />

Ele chegou desengonçado; caminhava como se estivesse bêbado. Atrasou-se<br />

um pouco. Culpou o trânsito difícil. Estas explicações foram<br />

repetidas, posteriormente. Era seu temperamento; culpar sempre alguém<br />

ou alguma coisa.<br />

Ao entrar no consultório e assentar-se, sem ser convidado, começou a<br />

falar. Não fez rodeios. Comentou os problemas, com voz rouca, pulando<br />

de um assunto a outro, o que tornava difícil entendê-lo. Interrompia<br />

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uma frase antes de terminá-la; esperava um pouco e recomeçava a falar.<br />

Suas queixas eram feitas, às vezes, num tom áspero; outras, num murmurar<br />

lamentoso.<br />

Veio pedir uma ajuda para se encontrar, descobrir-se, conhecer a si<br />

mesmo... esse era o sonho de todos.<br />

Era mais uma tentativa para solucionar o problema de sempre: alcançar<br />

o auto-conhecimento. Esperava por esse milagre: transformar-se numa<br />

pessoa consciente, saber o que o levava a se comportar de um modo ou<br />

de outro; conhecer as causas dos seus sofrimentos.<br />

Sua história, apesar de complexa, e, embora fosse preciso, algumas vezes,<br />

adivinhá-la, foi contada através de rico vocabulário, de palavras bem<br />

colocadas, indicando que ele tinha boa informação geral. Entretanto, já<br />

na primeira consulta, percebi que não tinha consciência clara dos princípios<br />

que usava para erguer e sustentar seu raciocínio. Muitas vezes, associava<br />

fatos não interligados, tirando conclusões, inadequadas. Sua lógica<br />

era defeituosa; além disso, ele ignorava sua ignorância.<br />

Pelas anotações contidas na ficha, mas, principalmente, das lembranças<br />

despertadas ao lê-las, ia reconstruindo a vida tumultuada de : Lúcio M.<br />

L., ou melhor, de Lucinho, como ele era carinhosamente chamado.<br />

Do meu ponto de vista, ele não era possuidor de nenhum transtorno<br />

psiquiátrico grave. Era, podemos dizer, um paciente parecido com vários<br />

outros seres humanos que encontramos andando pelas ruas da cidade,<br />

que estudam, trabalham, namoram, casam, têm filhos e os criam. Fazia<br />

parte dos que reagem ao meio, mostrando as pequenas alegrias e tristezas<br />

da vida, comuns ao homem.<br />

Indivíduos, como Lucinho, vêm ao psiquiatra, inicialmente, para receberem<br />

uma pequena ajuda: é um namoro desfeito que os faz sofrer, uma<br />

rusga com a esposa ou uma desarmonia no emprego. Entretanto, com o<br />

passar dos dias, eles querem ir mais longe; mostram-se curiosos acerca<br />

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do autor dos seus atos.<br />

Lucinho, nas suas constantes idas aos terapeutas, aos poucos, se perturbou,<br />

enterrou-se nas crateras cavadas por ele com a ajuda dos psicólogos.<br />

Aprisionado nos dogmas das terapias, Lúcio não mais conseguiu<br />

se encontrar; perdeu seu referencial, distanciou-se, cada vez mais, das<br />

soluções que imaginava para si. Acreditando piamente nas interpretações<br />

fornecidas pelos terapeutas, ele passou a buscar as supostas metas<br />

ditadas pelos credos; ao dedicar-se às elucubrações fantasiosas dos que<br />

imaginavam ajudá-lo, ele jogou fora sua individualidade, abandonou seu<br />

próprio caminho. Assim, passou a canalizar energias, exclusivamente,<br />

para se desvencilhar ou compreender, como ele imaginava, essa rede de<br />

conceitos abstratos, que foram usados para salvá-lo.<br />

As diversas teorias psicológicas o imobilizaram e o ofuscaram, pouco a<br />

pouco, impedindo-o de enxergar a sua própria realidade. É provável que<br />

seu sofrimento tenha ocorrido, muito mais, em virtude da busca incessante<br />

das “causas” dos seus sofrimentos, da tentativa para compreender<br />

as interpretações fictícias usadas pelos profissionais para explicar os<br />

acontecimentos de sua vida e não do confronto com os próprios acontecimentos.<br />

Nos momentos de maior desespero e de irracionalidade, foi em busca<br />

da ajuda, mais mágica ainda, de profissionais não ortodoxos: curandeiros,<br />

cartomantes, sensitivos e pais-de-santo. Implorou a todos a mesma<br />

ajuda. Sonhou conseguir, através de outras pessoas, o pleno conhecimento<br />

de si através de uma teoria milagrosa, mágica. Não sabia que isso<br />

é impossível.<br />

Lucinho lia com obstinação. Fez diversos cursos. Releu, continuadamente,<br />

os clássicos. Estudava e aprendia o que desejava. Fez vestibular<br />

para Medicina. Ficou na escola por dois anos. Largou a Faculdade por<br />

ter detestado as cadeiras básicas. Decidiu fazer Arquitetura. Não foi<br />

difícil entrar nos primeiros lugares. Não tolerou o primeiro ano. Fez<br />

vestibular para Direito. O resultado foi o mesmo: passou e desistiu três<br />

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anos depois.<br />

De Agostinho, seu irmão mais velho e professor de Filosofia, incorporou<br />

noções filosóficas importantes, que lhe permitiram, ás vezes, perceber e<br />

criticar a sociedade, a cultura, as instituições e a família desestruturada<br />

na qual viveu. Seu conhecimento lhe permitia, nos momentos de lucidez,<br />

avaliar, com precisão, sua vida confusa, as contradições humanas e,<br />

mesmo, a ingenuidade de alguns dos profissionais consultados.<br />

Quando o encontrei pela primeira vez, não mais cursava a Universidade.<br />

Trabalhava, desordenadamente, na firma de construção do pai, sem<br />

jamais ter gostado do que fazia. Continuava sendo um devorador de<br />

livros, principalmente, os de psicologia, sociologia e filosofia.<br />

Lúcio terminou seus dias preso em um manicômio judiciário de Barbacena.<br />

Lá, abandonado, como muitos pacientes mentais, teve um fim<br />

trágico.<br />

Sua história teria sido perdida e não poderia ser contada, caso não<br />

tivesse sido anotada, em grande parte, por ele próprio. Ele não fez um<br />

diário clássico, como muitos jovens o fazem; escrevia suas observações e<br />

pensamentos acerca do que lia, ouvia ou vivenciava.<br />

Outros dados acerca de Lucinho foram obtidos de registros de psicólogos<br />

e psiquiatras que o examinaram. Recolhi outras informações de<br />

familiares, de amigos, de ex-namoradas, de colegas e vizinhos. Fatos<br />

importantes foram-me passados através de um inteligente e curioso “farmacêutico”,<br />

seu amigo na juventude. Não tive meios de visitar todos os<br />

profissionais da mente que o assistiram. Não procurei, apesar de ter sido<br />

meu desejo, as cartomantes, os pais-de-santo e outros do mesmo gênero.<br />

Quase todos os entrevistados, gentilmente, cederam-me anotações e,<br />

principalmente, o armazenado na memória. Assim, consegui reconstruir<br />

esse relato. Durante as entrevistas, detectei um aspecto que me chamou<br />

a atenção: cada um dos seus amigos e profissionais perceberam-no<br />

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como possuidor de uma personalidade e caráter diferente. Seriam vários<br />

Lucinhos? Cada narrador me contou uma história ao perceber certos<br />

aspectos, e não outros, de sua personalidade. Foi elogiado por muitos;<br />

criticado por outros. Para uns, era inteligente; para outros, um homem<br />

comum, sensível, obtuso, diligente ou preguiçoso. Foi tachado de esquisito,<br />

até de louco, por uma minoria.<br />

Tive algumas dificuldades em conseguir os dados. Alguns relutaram<br />

em cedê-los, temerosos de possíveis processos movidos pela família ou<br />

imaginando proibições dos órgãos superiores, como do Conselho de<br />

Medicina. Outros imaginaram poder, um dia, escrever sua vida e, assim,<br />

esconderam o que sabiam.<br />

Mas, alguns profissionais ficaram entusiasmados com meu projeto e,<br />

constantemente, perguntavam-me acerca dele. Muitos, após me passarem<br />

suas recordações e anotações, procuraram-me novamente, fornecendo<br />

novas informações, só posteriormente descobertas ou lembradas e<br />

que julgaram importantes para uma melhor compreensão de sua vida.<br />

Percebi, também, que uns poucos, ao me transmitirem as informações,<br />

tentaram deturpar os fatos para que eu tivesse uma idéia errônea dele.<br />

Não descobri os motivos dessa conduta. A coleta de dados foi trabalhosa;<br />

mas tive um enorme prazer em desvendar uma parte da “verdade”<br />

desse indivíduo comum, ao mesmo tempo, singular, apesar dele, jamais,<br />

ter-se esforçado para parecer diferente dos outros.<br />

Lucinho iniciou sua vida, como todos nós, tentando preservar suas<br />

crenças mais profundas, evitando se perder no meio de tantas opiniões<br />

diferentes. Foi um qualquer, gente como a gente. Seu nome não era conhecido,<br />

as roupas que usava jamais foram copiadas como modelos, nem<br />

seu modo de andar, falar, pentear-se ou pensar; foi um anti-herói. Lutou<br />

contra caminhos conflitantes. Tentou, obstinadamente, encontrar uma<br />

saída digna no labirinto onde foi encarcerado. Seu sonho era converterse<br />

nele próprio, não desaparecer na mesmice, não se dissolver em certos<br />

padrões sociais impostos, que impedem o crescimento individual; lutava<br />

para construir seu próprio caminho. Infelizmente, apesar dessa luta em<br />

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usca do encontro consigo mesmo, Lucinho não alcançou a meta pretendida.<br />

Ao tentar escapar da prisão social e religiosa, encarcerou-se no<br />

pseudo-cientificismo; ao fugir de um grupo, derreteu-se no outro, como<br />

gelo no fogo. Tentou seguir o princípio básico da ética humanista: buscar<br />

ser ele próprio, mas falhou: mais uma vez desapareceu, como o sal na<br />

água, dissolveu-se nas idéias dos técnicos que, hipocritamente, diziam<br />

ampará-lo.<br />

Lucinho não fugiu à regra da maioria dos pacientes psiquiátricos. Recebeu<br />

diversos diagnósticos: Esquizofrenia paranóide; Esquizofrenia<br />

Aguda Indiferenciada; Transtorno da Personalidade: “Borderline”, Narcisista,<br />

Dependente, Histérica, Passivo-Agressivo, e mesmo, Personalidade<br />

Normal. Mais tarde, foi categorizado pelo professor, como possuidor de<br />

“Delirius Mater”.<br />

A ética profissional proíbe ao médico fornecer ao público leigo fatos observados,<br />

descritos ou inferidos de seus pacientes. No caso do paciente<br />

psiquiátrico, devido à sua estigmatização por quase todos, essa proibição<br />

é ainda mais rígida. Há razões para isso. De fato, os dados colhidos<br />

desses pacientes angustiados, durante suas crises agudas, são confissões<br />

extremamente íntimas, guardadas a sete chaves, nas profundezas de sua<br />

alma. Esses segredos, geralmente, não são revelados nem mesmo para os<br />

amigos mais chegados e familiares.<br />

Como os fatos recolhidos e resumidos me atraíram e me excitaram grandemente,<br />

decidi romper com essas proibições estabelecidas pela minha<br />

classe profissional.<br />

Nasceu um impulso mais forte dentro de mim, visando a revelar uma<br />

vida carregada de dúvidas. Sei que há, entre os médicos, um acordo para<br />

manter os segredos do cliente a qualquer preço. Esse é um dos princípios<br />

de nossa profissão. Mas existem outros objetivos tão altos como esse e<br />

que não são explicitados. Há o dever de esclarecer e, se possível, educar<br />

a população através da divulgação de acontecimentos das ciências.<br />

Pergunto-me: a quais normas ou éticas devo servir?<br />

São esses “pacientes” - alguns deles mais sadios do que muitos de nós -<br />

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os transitoriamente denominados “não-pacientes”, que nos ensinaram<br />

a estreiteza ou a leveza entre o “normal” e o “anormal”, entre o “doente”<br />

e o “são”. Creio que é <strong>nosso</strong> dever transmitir essas descobertas. O que é<br />

ser “doente”? Seria estar mais adaptado à sociedade e à família e desadaptado<br />

com respeito a si mesmo? Ou devemos denominar “doente” a<br />

pessoa bem adaptada à sua personalidade - valores, desejos, modo de se<br />

comportar - e em luta com a sociedade e família? Eu ainda não sei!<br />

Decidi, comovido, escrever esse relato, após a notícia do último acontecimento<br />

trágico de sua vida. Precisava desabafar, de alguma forma, o que<br />

já sabia dele. Não estava apenas interessado em prestar uma homenagem<br />

a esse paciente que se tornou, como outros, parte de minha vida. No<br />

relato, como não podia ser diferente, mantive o respeito que sempre tive<br />

por ele e por todos pacientes; era um amigo que me confiou, durante um<br />

certo período, problemas íntimos. Juntos, sofremos e tentamos soluções.<br />

Recordações secretas, arrancadas do fundo do poço, transformaram-se<br />

em sons, choros, soluços, gestos e agressões. Após penetrar em minha<br />

mente, essas condutas se tornaram conceitos frios e marcas aprisionadas<br />

para sempre. Tentei transformar esses sinais neutros em ações dinâmicas.<br />

Ao descrever sua personalidade, não mencionarei as anomalias, mas<br />

sua história, seus problemas e tentativas para resolvê-los. Não escrevi<br />

um manual de Psiquiatria. Também, não contei a vida de um homem<br />

excepcional.<br />

Os fatos recolhidos são, às vezes, trágicos, mas, paradoxalmente, universais.<br />

Possivelmente, a maioria dos leitores identificar-se-á com certos<br />

eventos vividos por ele. Alguns sentir-se-ão estupefatos com certas<br />

cenas, imaginando como pode um ser humano chegar a tanto. O leigo<br />

desconhece muitos fatos secretos ocorridos nas profundezas da mente.<br />

Talvez a vida de todos nós, como a de Lucinho, pudesse dar origem a<br />

belas, tristes e trágicas histórias, caso tivessem sido anotadas ou memo-<br />

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izadas e, posteriormente, escritas, como esta.<br />

Quando me procurou pela primeira vez, ele era jovem. Contou-me que<br />

começou a freqüentar o pré-escolar muito cedo. Seus pais, Dr. Adamastor<br />

e Rosária, desejosos de melhorar seu relacionaento com outras<br />

crianças - ele era muito arredio e calado, pediram conselhos ao pediatra,<br />

Dr. Lunardi, homem de princípios conservadores, que os aconselhou<br />

a colocá-lo numa escola religiosa, onde havia, além do ensino de boa<br />

qualidade, uma disciplina tradicional e rígida.<br />

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Unidos para Sempre<br />

Naquela manhã, após se levantar cansado e quase sem ter dormido, Dr.<br />

Adamastor caminhou, passo a passo, à procura da velha cadeira austríaca,<br />

colocada bem em frente à janela da sala. A casa estava silenciosa;<br />

todos dormiam ou fingiam dormir. Recostou-se na cadeira com dificuldade,<br />

com um resto de dignidade ainda existente, e começou a recordar.<br />

A ausência de sons, comuns às manhãs de domingo, propiciava lembranças,<br />

todas contaminadas pela incômoda e perversa realidade atual.<br />

Nostalgicamente, pensava..., ”nunca tive medo de obstáculos. Eles chegavam<br />

a me excitar... Não fui o melhor aluno porque o tempo era pouco;<br />

quando decidia estudar, tirava as melhores notas e era elogiado pelos<br />

professores. Hoje, nada leio; não estudo... folheio o jornal para ver os<br />

necrológios, saber a idade do morto, compará-la com a minha, saber se<br />

é conhecido e onde nasceu. Não sou percebido como possuidor de valor<br />

algum...sou um espectador, não mais um ator.”<br />

Durante a juventude - ainda não tinha completado 19 anos - Dr. Adamastor<br />

foi chamado, às pressas, à cidade de Capão do Pinhal, onde morava<br />

sua família, para assistir ao funeral do pai, morto por um infarto.<br />

Era quem administrava os bens e o dinheiro da família.<br />

A partir da morte do pai, o dinheiro faltou e Adamastor, estudante de<br />

engenharia, passou a ter que trabalhar duramente para se sustentar,<br />

pagar a faculdade e a péssima república onde morava. Ali dormia e, às<br />

vezes, fazia suas refeições noturnas, sempre as mesmas: café com leite e<br />

pão com margarina. Ocasionalmente, nos dias de festas, ele comprava<br />

mussarela, mortadela e ovos. Esses ingredientes, reunidos, formavam o<br />

delicioso e cheiroso omelete. Enquanto preparava sua refeição, distraia-<br />

-se ouvindo músicas sertanejas na Inconfidência, num rádio desossado,<br />

pois a madeira externa tinha sido comida pelos cupins. Pronto o omelete,<br />

com a casca bem tostada, se assentava na única mesa da república e<br />

o comia, com todo o requinte. Cheirava-o, deglutia-o, imaginando estar<br />

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no melhor restaurante da cidade.<br />

Dr. Adamastor, hoje, com sua mulher, Rosária, e seus três filhos: Agostinho,<br />

Roberta e Lucinho, tem iguarias melhores do que o omelete. Pode<br />

comer camarões ou lombo, mas não tem mais apetite, papilas gustativas<br />

aguçadas e nem sensação para perceber odores - tudo aquilo que é<br />

necessário para diferenciar a boa da má comida. Não mais sente o gosto<br />

nem o delicioso cheiro de antes; não mais se alegra ao ver a clara mole e<br />

feia se transformando na névoa bela, fofa e branca, e uma vez misturada<br />

com a gema amarela, originando a casca cocrante do omelete.<br />

Apesar das dificuldades, ele se formou em Engenharia. Após terminar<br />

o curso, conseguiu emprego numa empresa de construção de estradas.<br />

Não ganhava muito, apenas o suficiente para lhe permitir condição de<br />

vida melhor do que a antiga. Mais animado com o emprego e as economias,<br />

começou a pensar em buscar uma companhia permanente;<br />

afastar-se das prostitutas, que lhe tinham causado doenças e aborrecimentos.<br />

Não foi fácil arrumar a mulher dos seus sonhos. Vivia isolado no canteiro<br />

de obras da companhia, o que dificultava a aproximação com as<br />

possíveis candidatas a um casamento. Aconselhado pela família, procurou<br />

a pretendente ideal entre as conhecidas e parentes de sua terra.<br />

Mas a maioria das boas moças de Capão do Pinhal estava casada. Lá,<br />

elas se casavam cedo. As que escaparam do primeiro cerco estavam<br />

comprometidas com os conhecidos da cidade; todos, geralmente, primos<br />

das namoradas. Poucas haviam sobrado dessa peneirada; algumas<br />

solteironas empedernidas e eternas, mais velhas do que ele, freqüentadoras<br />

diárias das igrejas e as outras, não classificadas nessas categorias,<br />

eram jovens mal vistas, rebeldes, independentes demais, com as quais os<br />

rapazes evitavam um namoro para casar. Mas Dr. Adamastor sabia que,<br />

apesar dos falatórios difamadores, eram elas as mais cobiçadas. Diante<br />

das dificuldades em encontrar, em sua cidade natal, a “moça dos seus<br />

sonhos”, decidiu procurá-la em Belo Horizonte. Estava ciente dos riscos<br />

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que corria: amar uma desconhecida, cheia de vícios, perigosa, algumas<br />

nem mesmo acreditavam em Deus...<br />

Foi nessa época que Dr. Adamastor conheceu Rosária, durante as folias<br />

de Momo. Ele freqüentava os bailes de carnaval do Diretório Central dos<br />

Estudantes - DCE - mas evitava dançar, pois sua timidez não permitia<br />

tal excesso. Ia aos bailes para paquerar uma ou outra moça, escolhendo<br />

geralmente as mais tristes e desamparadas. Bêbado tornava-se corajoso,<br />

sendo capaz até de tirar uma jovem para dançar. Na verdade, não dançava:<br />

marchava pelo salão, com seu corpo duro, dando a impressão de ter<br />

engolido uma alavanca.<br />

Impreterivelmente, nos bailes carnavalescos, ele se fazia acompanhar<br />

de um inebriante. Carregava dentro de um vidro achatado, cuidadosamente<br />

colocado no bolso de trás da calça, uma cachaça de péssima<br />

qualidade. No bar, ele comprava uma garrafa de Coca-cola para misturar<br />

com a pinga. Entretanto, se o dinheiro estivesse faltando mais ainda,<br />

Dr. Adamastor usava os restos de refrigerante e gelo deixados nos copos<br />

abandonados em cima do balcão ou das mesas. Quando nada encontrava,<br />

ele implorava gelo ao “barman”, com uma voz chorosa, em falsete,<br />

sempre olhando para o chão.<br />

Conseguido o desejado, já mostrando a outra face, tirava do bolso a garrafinha<br />

com a cachaça e despejava-a no copo, com parcimônia, para que<br />

ela pudesse durar. Após tampar o vidro guardava-o no bolso da calça<br />

larga e cinza, apropriada para suportar os embates do carnaval.<br />

Terminando esse ritual, começava a saborear seu rabo de galo, com<br />

calma. Antes de engolir a droga quase insípida, ele, primeiramente,<br />

a cheirava; depois, bebia, espalhando-a, várias vezes, pela boca, para<br />

melhor sentir seu sabor. O prazer da bebida não derivava do seu gosto<br />

quase insuportável, mas muito mais, do ambiente cheio de luzes, barulhento,<br />

do feriado prolongado e do esmero com que ela havia sido feita.<br />

O rabo de galo tinha o poder de fazê-lo imaginar estar vivendo num<br />

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mundo maravilhoso, cheio de esperança, principalmente, de mulheres à<br />

sua volta.<br />

Após esgotar o conteúdo da bebida mágica, Dr. Adamastor guardava o<br />

vidro com cuidado, levava-o para casa, para, no dia seguinte, enchê-lo e<br />

poder embriagar-se mais uma vez. Tinha um carinho especial pela garrafinha<br />

simpática: esverdeada e fina, que cabia harmoniosamente no<br />

bolso da calça; guardava a quantidade certa de bebida para uma noite e,<br />

sobretudo, jamais se quebrara, após anos de uso nos carnavais passados,<br />

todos no DCE. Não havia outra igual. Para se embriagar, não precisava<br />

de muita bebida: uma garrafa de cachaça era o bastante para embebedá-<br />

-lo durante as quatro noites.<br />

Nessa manhã de domingo, silenciosa, enquanto pensava no baile do<br />

Diretório, Dr. Adamastor lembrou, com nostalgia e lágrimas nos olhos,<br />

que ele não mais sabia onde estava guardada a garrafa achatada. “Rosária<br />

tê-la-ia jogado fora?”...Perguntava-se apreensivo, sentindo-se culpado<br />

por tê-la abandonado e esquecido. Mas continuava suas recordações...<br />

Na segunda-feira de carnaval, ele havia completado vinte e cinco anos.<br />

Nessa noite, sem querer, bebeu, junto com a pinga, o restante da bebida<br />

encontrada em cima do balcão. Acontece que, na pressa de tirar o gelo,<br />

despejou-a no copo. Quando ele estava mais tonto do que de costume,<br />

incapaz de refletir e discernir sobre o que deveria ou não ser feito, conheceu<br />

Rosária, por ela se apaixonou e com ela acabou se casando.<br />

Tudo ocorreu num lance de acaso. Em parte, devido à embriaguez; possivelmente,<br />

dos dois. Ainda estava prostrado diante do balcão, de onde<br />

surripiou a bebida, quando avistou Rosária. Ela gingava e cantarolava<br />

uma marchinha. Ao se aproximar, deu-lhe um sorriso, revelando grandes<br />

e belos dentes.<br />

Sentiu-se diminuído diante de tanta beleza. Sempre se julgava inferior<br />

diante de mulheres esbeltas. Ela o olhou nos olhos, de cima para baixo...<br />

Era um pouco mais alta do que ele.<br />

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Dr. Adamastor voltou os olhos para o chão, envergonhado, tentando se<br />

esconder. A presença de Rosária, dançando à sua frente e, principalmente,<br />

seu sorriso continuado, deixaram-no perturbado. Acontece que ela,<br />

ao olhar as pessoas, mantinha os olhos semicerrados, contraía a testa e<br />

a face, acima do nariz. Desse modo, os cantos da boca eram puxados,<br />

dando a impressão, à primeira vista, que ela estava, constantemente,<br />

sorrindo.<br />

Diante desse falso sorriso, ele suspeitou, como era seu hábito, que ela estivesse<br />

debochando dele. “Será que ela notou que eu estava filando o gelo<br />

e o resto da bebida? Ou será porque sou baixinho? Além disso, não sou<br />

uma pessoa bonita como ela; só meu nariz agrada às mulheres...Acho<br />

que não vai dar prá mim”.<br />

Dr. Adamastor se sentia derrotado antes de começar o jogo do amor.<br />

Nessa noite, inexplicavelmente, agiu diferente; decidiu tentar conquistar<br />

Rosária, certo de que não iria dar certo. Levantou os olhos e a fitou, com<br />

cara de bêbado apaixonado.<br />

A iluminação feérica do salão acentuava mais ainda a pele clara de Rosária.<br />

Não havia quase pintura no rosto: um leve toque de batom, suavemente,<br />

percorria e acentuava o vermelho dos lábios grossos, contornando<br />

sua boca enérgica, que mal escondia os dentes salientes e fortes.<br />

Pontos róseos, parecendo confetes vermelhos, espalhavam-se sobre a<br />

pele lisa e sedosa.<br />

Adamastor pôde sentir o perfume adocicado e o calor úmido que desprendiam<br />

do corpo quente e jovem de Rosária. Gotas cristalinas e belas,<br />

preguiçosamente, escorriam de sua face avermelhada e desciam, fazendo<br />

curvas, para, finalmente, caírem no colo branco, quase nu.<br />

Ela, ao perceber o olhar de Dr. Adamastor, parou, por momentos, de<br />

pular.<br />

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No salão barulhento, ouviam-se o zum-zum das conversas, os gritos<br />

histéricos, o arrastar cansado de bêbados cambaleantes e as vozes produzindo<br />

sons desafinados. A música, mal tocada pela orquestra do clube<br />

decadente, se desorganizava e se desfazia no ar empoeirado.<br />

A possibilidade de ter que dançar com ela, a princípio, o amedrontou:<br />

“eu não sei dançar; meu corpo é duro...Vou arrumar uma desculpa. Preciso<br />

buscar uma saída, fazer outra coisa, caso ela decida ficar comigo”.<br />

Entretanto estava encantado com seu belo porte, com sua desinibição.<br />

Mas, ao mesmo tempo, tinha medo. Atacar ou fugir? Maldita dúvida!<br />

Deu um passo para o lado, tentando se esconder inutilmente. Fugia da<br />

luz que incidia, quase verticalmente, sobre ele, fugia do compromisso.<br />

Em seu canto, amedrontado, pôde apreciar melhor o rosto de Rosária.<br />

Ficou seduzido pelos seus olhos azuis. Ao fitá-los, enxergou, alucinado,<br />

águas-marinhas, balançando no ar.<br />

Ela, exuberante, vestia um “short” listrado de amarelo e preto, muito<br />

curto e justo, que prendia as volumosas nádegas provocando movimentos<br />

ritmados e engraçados: comprimido no “short” apertado; o bumbum<br />

se agitava quando ela caminhava, dançava e pulava, de um lado para o<br />

outro, como se quisesse escapar das listras. O peito de Rosária, quase<br />

nu, estava coberto por um “topper” vermelho-sangue, da mesma cor dos<br />

pontos coloridos, espalhados por sua face. Seu bojo tentava, sem resultado,<br />

esconder os seios grandes e firmes. Os ombros largos e fortes, apesar<br />

da juventude, já mostravam os primeiros e leves sinais de envelhecimento.<br />

Ele, nesse momento, iniciava, ao lado do balcão do bar, uma dança desajeitada,<br />

sinalizando conquista. Para ele, era ela a moça mais linda que<br />

encontrara. Seus longos cabelos castanho-claros, quase louros, mesmo<br />

amassados de um lado, davam-lhe uma aparência de santa francesa.<br />

Para a mente apaixonada e bêbada de Adamastor, tudo nela o atraía...ela<br />

o encantava.<br />

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Além dos olhos azuis, o que mais chamou a atenção de Adamastor<br />

foram suas coxas grossas, roliças, perfumadas, brilhantes de suor e creme.<br />

Uma fascinação súbita e violenta irrompeu em Adamastor, diante<br />

daquela beleza quase divina. Ajudado pelo álcool, que liberou seus<br />

impulsos e pensamentos mais íntimos, ele, que até aquele instante estava<br />

indeciso acerca da moça ideal para se casar, agora passou a ter certeza:<br />

era aquela! Tinha certeza! Arrebatado, transformado e esbanjando<br />

energia, ele renunciou à costumeira inibição e ao temor da intimidade.<br />

Animado, despojando-se das amarras internas, investiu, vorazmente, em<br />

direção à caça. O perfume de Rosária o transformou: passou, como num<br />

passe de mágica, de apático a desinibido, de triste a alegre, de observador<br />

a folião engajado. Consumido pelo forte desejo, pulou bem à frente<br />

dela. Fingia estar mais bêbado do que estava. Solto, começou a cantar a<br />

marchinha que imaginava estar ouvindo, mas não conseguiu, apesar do<br />

esforço, tornar-se entoado.<br />

Naquele momento de êxtase, ele jamais poderia profetizar que aquele<br />

corpo tão sedutor, aquela formosura e perfeição, um dia iria se transformar<br />

no que é agora: uma massa de carne mal-acondicionada em peles<br />

caídas e cheias de dobras.<br />

O carnaval não tem regras; tudo vale. O rapaz que dançava com ela<br />

carregando, em uma das mãos, um copo de bebida amarelada e insípida,<br />

largou a parceira, como fazendo parte do jogo. Era um jovem magro<br />

e inibido, com uma passividade que contrastava com Rosária, muito<br />

disposta e despertada pelo novo pretendente. Diante dos olhos bêbados,<br />

semi-abertos do “pierrot” apaixonado, ela, automaticamente, olhou para<br />

ele, curiosa e cantarolou a melodia tocada. Sem nada dizer ao rapaz<br />

comprido e triste, largou-o, rebolando em direção ao novo folião.<br />

Se ela não tivesse, naquele momento, tomado a iniciativa de ir atrás de<br />

Dr. Adamastor, talvez, jamais, eles tivessem se encontrado pois, de sua<br />

parte, o que tinha feito, já era um recorde: havia ultrapassado seus limi-<br />

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tes.<br />

Assentado na cadeira, tentando balançar para frente, mas quase caindo<br />

para trás, ele recordava, emocionado, aquela cena.<br />

No DCE, Dr. Adamastor, entusiasmado com a receptividade, imaginou<br />

poder ir mais longe. Cauteloso por instinto, costume e mineirice, continuou,<br />

por certo tempo, olhando para o chão. Aos poucos, foi ficando<br />

hipnotizado pelos grandes olhos azuis - naquela noite, mais azuis e<br />

brilhantes ainda, olhos sensuais, de gazela espantada, no cio. Bêbado,<br />

irrefletidamente, ele partiu para a aproximação. Ela olhava-o com suas<br />

duas jóias incrustadas nas órbitas enormes, redondas... Ao balançar o<br />

bumbum, em gingados lascivos, suas carnes tenras e exuberantes atraíam<br />

o desejo de todos os admiradores de mulheres cheias.<br />

Despedaçado pela paixão alucinante, ele aproximou-se da moça, como<br />

a frágil e pequena limalha é atraída e presa por um poderoso ímã. Ele,<br />

como sapo hipnotizado, caminhou, sem perceber, para a boca da cobra<br />

que iria assimilá-lo totalmente. Ele e ela, entrelaçados, a partir daquele<br />

encontro, que podia não ter ocorrido, misturaram-se, formaram um só<br />

e estranho nó. Ambos, a partir daquele momento, foram perdendo a<br />

individualidade, começaram a enterrar a sonhada liberdade, que cada<br />

um buscava.<br />

A fuzarca do carnaval continuava barulhenta. Dr. Adamastor colocou,<br />

com cuidado, suas mãos desajeitadas e pesadas na cintura de Rosária,<br />

segurando-a, inicialmente, com delicadeza. À medida que o medo de<br />

dançar diminuía, ele passou a pular pelo salão, enroscado à presa, agora<br />

de cabeça erguida. Sorria sozinho, orgulhoso da conquista ou por ter<br />

sido conquistado. De tempos em tempos, tirava do bolso um velho lenço<br />

marrom, amarrotado e esgarçado, naquele momento, bastante umedecido<br />

de suor. Passava-o na nuca, depois no pescoço, testa e cabeça; retirava<br />

o líquido espesso que emergia dos poros de sua face. Após se enxugar e,<br />

sem notar, passava sua grande língua nos lábios molhados do suor que<br />

escorria e, em seguida, gentilmente, oferecia o lenço imundo a ela, que<br />

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ecusava a oferta. Sentia náuseas ao ver o lenço sujo, depois sendo guardado,<br />

com cuidado, no bolso da camisa.<br />

Enquanto segurava a cintura de Rosária, ele se lembrou por segundos,<br />

da última namorada, arrumada, ali mesmo, no Diretório dos Estudantes,<br />

por coincidência também num baile de carnaval. Rápido como os fins de<br />

férias, esse namoro terminou melancolicamente.<br />

Enquanto pulava no salão, ele continuava a pensar: “Agora, com essa,<br />

tudo vai ser diferente...Ela parece ser tão inteligente, carinhosa, calma,<br />

compreensiva e bondosa! Ainda mais com esses olhos!... Ela tem tudo<br />

que desejo...”, concluía, entusiasmado com sua própria crença...”que sorte<br />

a minha, encontrar uma pessoa tão encantadora”, imaginava.<br />

A marchinha conhecida silenciou. Um samba desconhecido começou<br />

a ser tocado e ele aproveitou a oportunidade para convidá-la a parar. O<br />

que o preocupava era aonde iriam conversar: “Não posso oferecer-lhe a<br />

pinga que trago no bolso...Não posso comprar nada, senão, ficarei sem<br />

dinheiro para os outros compromissos. O que fazer?”<br />

Enquanto Adamastor pensava o que fazer, ela o convidou para se assentarem<br />

onde seus pais estavam. Ele se espantou: ”Assentar à mesa... beber<br />

e comer... meu estômago já está pedindo alguma comida. Seria ótimo!<br />

Mas, depois... quem irá pagar?”<br />

Quase sem perceber, ele foi transportado à mesa onde estava a família<br />

dela e pôde observar, atraído, a fartura ali existente: cerveja, uísque,<br />

refrigerantes, empadinhas, coxinhas e pastéis, ainda fumegantes, tão<br />

cheirosos como os omeletes feitos na república. Assentados, sorrindo,<br />

lá estavam o bonachão e obeso pai, ladeado por um senhora cheia de<br />

badulaques, maquiada exageradamente, pronta para posar para o retrato<br />

de casamento. Ficou encantado com a visão da família, principalmente<br />

com o cheiro da manteiga queimada com cebola dos pastéis de queijo;<br />

um perfume que trescalava pelo salão. Os pastéis estavam ali, bem<br />

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próximos dele, espalhados nos pratos, sedutores, que foram engolidos<br />

mentalmente, antes dele ser apresentado aos pais de Rosária. Passou<br />

novamente o lenço sujo no rosto, agora mais molhado, tornou a oferecê-<br />

-lo, como de hábito, a ela. Com a mão gotejando suor, alisou os escassos<br />

cabelos, ajeitou as calças que caíam e colocou a fralda da camisa para<br />

dentro. Diante dos pais, naquele dia muito gentis, Adamastor pensou: “é<br />

numa família dessa que gostaria de entrar. Gente boa. Que sorte! Ganhei<br />

novos pais”<br />

Receoso de ter que contribuir para as despesas finais, ele, evitou se<br />

assentar. Para escapar do compromisso, afirmou que, como estava muito<br />

quente no centro do salão, achava preferível ir para a varanda do clube,<br />

para tomar um pouco de ar. Com as conversas de apresentação, os<br />

pais de Rosária, por mais que ele olhasse para a mesa, com olhos de cão<br />

faminto, não perceberam sua fome e esqueceram de lhe oferecer o que<br />

mais o seduzia: os pastéis quentes. Esfomeado, antes de sair, ele não<br />

resistiu à tentação.<br />

- Exatamente...Ouviu? Certo? Não estou suportando ver essas coxinhas,<br />

esses bolinhos, Adamastor custou a falar. Fazia rodeio para chegar ao<br />

assunto principal, ao que mais o atraía. Evitava mostrar sua atração, a<br />

gula e fraqueza diante dos pastéis; imaginava que isso não ficaria bem a<br />

um engenheiro educado. Depois de um pequeno silêncio, retornou:<br />

- Estes pastéis...Ouviu? Compreendeu?...Parecem estar deliciosos. Senti<br />

o cheiro de longe... evidentemente. Permitam-me tirar um...<br />

Ele gostava de pronunciar certas palavras, mesmo que nada tivessem a<br />

ver com o que ele queria dizer, principalmente quando estava nervoso.<br />

- Claro que sim...esqueci de te oferecer - respondeu o pai de Rosária,<br />

educadamente, com voz de barítono embriagado. - Pode levar alguns<br />

para vocês comerem... Pegue, neste guardanapo...<br />

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- Você não sabe arrumar... Eu arrumo pra eles, disse num tom alto,<br />

como dando uma ordem a ser obedecida, D. Gertrudes, a mãe de Rosária,<br />

prosseguindo firmemente: - Os homens são muito desajeitados…<br />

não sabem fazer nada!<br />

Ele engoliu, ali mesmo, o primeiro pastel, que desceu pela garganta,<br />

queimando-a. Farelos do salgado, bem como um fiapo de queijo ficaram<br />

presos no seu bigode preto. Isso a levou a limpá-lo com rapidez, com<br />

um guardanapo retirado da mesa, antes que ele usasse o lenço marrom<br />

para retirar os resíduos que permaneceram em torno da boca. Engolido<br />

o primeiro deles, o apetite de Adamastor aumentou ainda mais. Após ele<br />

ter se afastado da mesa e atravessado o salão, segurava, radiante de alegria,<br />

com uma das mãos, outro pastel quente, examinando-o com avidez<br />

e atentamente o recheio, antes de cada bocada. Em seguida, oferecia o<br />

pastel, já pela metade, a Ela.<br />

Ele estava embriagado; devido à cachaça ingerida, em virtude do barulho<br />

ensurdecedor vindo do salão, mas principalmente, pela paixão que<br />

o corroía. Tudo isso somado impedia Dr. Adamastor de pensar com<br />

clareza. Foi nesse ambiente confuso que se iniciou, na segunda-feira de<br />

carnaval, o namoro, que durou para sempre, possivelmente com o arrependimento<br />

de ambos.<br />

As brigas foram a tônica da relação e só não aconteceram nos primeiros<br />

dias de namoro. Com o tempo, logo após o casamento, elas foram aumentando<br />

em freqüência e intensidade, passando a constituir o padrão<br />

normal da vida do casal.<br />

Ainda no namoro, devido à grande atração, aumentou a intimidade<br />

física dos namorados. O esperado aconteceu: Rosária ficou grávida.<br />

Quando ela anunciou o fato, Adamastor ficou alegre e satisfeito, pois isso<br />

apressaria o casamento. Era o que ele mais queria. A princípio, ficaram<br />

em dúvida: contar ou não, apressar ou não a união definitiva?<br />

Nem uma coisa, nem outra. Quem decidiu tudo, como era a norma,<br />

foi D. Gertrudes. Envergonhada, ela elaborou um plano para resolver,<br />

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o mais depressa e escondido possível, o fato nefasto. Não admitia casar<br />

uma filha grávida. Isso seria uma afronta à Igreja e aos valores familiares.<br />

Além do mais, o tempo era pouco para preparar a cerimônia, convites,<br />

bebidas e tudo o mais. A solução ordenada por D. Gertrudes foi<br />

cumprida à risca. Clarimundo afirmou, diante de todo o drama:<br />

- Em coisas de mulher eu não entro... Gertrudes sabe bem o que faz...<br />

Conhece essas coisas mais do que eu...Não entendo disso. É ela quem<br />

resolve.<br />

Na casa de Rosária, quem dava ordens era a velha Gertrudes, alagoana,<br />

convicta de sua macheza e que jamais levava desaforo para casa. Dentro<br />

de casa ou na rua, decidia suas desavenças aos berros, com ameaças<br />

e, não muito raro, com pesadas agressões, que ela narrava depois para<br />

todos, dando risadas e com grande orgulho:<br />

- Mostrei, hoje, prá um barraqueiro o que é uma mulher-macho. Veio<br />

me passar a perna: vender novecentos gramas de aipim, como se fossem<br />

um quilo. Pesei noutra barraca; voltei lá e exigi o restante. Ele fingiu<br />

não me ouvir. Joguei tudo na cara dele; xinguei e peguei meu dinheiro<br />

de volta, com a ajuda de policiais. Pensa que sou boba? Ah! Ah!...<br />

A decisão de D. Gertrudes foi respeitada, sem ser discutida. Rosária foi<br />

encarcerada durante sete meses, num convento em Maceió, onde sua tia<br />

Genara, irmã de D. Gertrudes, era diretora. Lá, ficou até o nascimento<br />

do filho, sem o conhecimento de amigos e familiares mais afastados.<br />

Para todos, ela estava nos Estados Unidos, fazendo um curso de inglês,<br />

morando com uma família americana. Os endereços não foram dados,<br />

ou eram inventados, caso alguém perguntasse, querendo lhe escrever ou<br />

telefonar.<br />

Após o nascimento da criança, um menino, o médico, Dr. Paulo César,<br />

obstetra de Maceió e amigo da família - o mesmo que fizera todos os<br />

partos de D. Gertrudes - de comum acordo com ela, arrumou um casal<br />

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sem filhos, parentes dele, em Maceió, para adotarem o filho de Rosária.<br />

O bebê nem chegou a ser batizado, devido à pressa em resolver esse<br />

terrível problema. Ninguém ficou sabendo a quem o recém-nascido foi<br />

entregue. O que se soube foi que se tratava de uma boa família, de posses,<br />

na qual o menino, certamente, seria bem criado e educado. Recebido<br />

como filho, o casal ficou felicíssimo e agradecido a Deus, por receber<br />

essa dádiva vinda, certamente, do céu.<br />

Dr. Adamastor, ameaçado por D. Gertrudes de terminar o namoro, foi<br />

afastado das negociações a respeito da adoção e proibido de ver o filho<br />

que nasceu. Essa proibição foi o castigo imposto por ela, pelo mal que<br />

ele fizera à sua filha, moça recatada e de família. Ela, por sua vez, por<br />

ter sucumbido à sedução do namorado, fora proibida de receber visitas,<br />

exceção feita apenas para sua mãe.<br />

Ele aceitou tudo resignado. No início, imaginou não resistir à ausência<br />

de sua amada. Pensou em visitá-la, mas desistiu. Entretanto, alguns<br />

meses depois, a falta de Rosária e a diminuição da intimidade com seus<br />

pais lhe permitiram perceber que a vida sem ela não era tão ruim como<br />

pensara. Ficou sem seus carinhos, é certo; sem seus olhos azuis; sem<br />

sua voz melodiosa. Em compensação, ficou livre dos seus insultos, seus<br />

gritos estridentes, exigências infantis e ameaças de suicídio constantes<br />

caso rompesse o namoro. Nos sete meses de afastamento, imaginou e fez<br />

planos para acabar com tudo de vez. Entretanto, quando assim pensava,<br />

percebia que não seria nada fácil cortar a relação, cheia de emoções, da<br />

qual passara a sentir falta, inclusive, das brigas.<br />

O namoro, que fora interrompido durante a gravidez, recomeçou após<br />

o retorno de Rosária. Ela, ao voltar, estava mais gorda, mas, ainda muito<br />

bonita. Sua pele, agora, apresentava uma tonalidade mais clara, que a<br />

tornava um pouco diferente. A prisão parecia não ter feito bem a ela.<br />

Após o primeiro encontro com Adamastor, com abraços e beijos demorados,<br />

acompanhados de lágrimas e risos, os dois brigaram. Ela ficou<br />

enciumada, ao notar que ele havia deixado o bigode crescer novamente.<br />

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Anteriormente, ela o obrigara a raspá-lo. Bastou isso para ela imaginar<br />

que ele havia mudado o visual, a pedido de alguma namorada, arranjada<br />

durante seu confinamento.<br />

Pouco antes de se casarem, os desencontros se tornaram mais freqüentes.<br />

Esses fatos não foram suficientes para que eles desistissem de formar<br />

uma família. Aprisionados, um ao outro, foram se acostumando às<br />

discussões exaltadas, aos palavrões trocados, às agressões físicas recíprocas<br />

e, assim, formaram uma estrutura de convivência, em que havia<br />

muito mais desacordos que acordos, mais disputas que harmonia e mais<br />

sofrimentos que prazeres.<br />

Filho de peixe, peixinho é, diz o ditado, e assim aconteceu com Rosária.<br />

A filha seguiu a mãe: decidia os problemas, desde o início do namoro,<br />

na base do grito. Adamastor, aos poucos, adorando sua beleza santa, foi<br />

envergando-se à sua braveza. A princípio, para evitar uma disputa maior<br />

e com receio de perdê-la, depois, acostumado e sem forças, a seguia,<br />

deixando o barco descer, desgovernado, a cachoeira desconhecida. Ele<br />

não conseguia imaginar que, ele próprio pudesse ter mais discernimento<br />

e dirigir sua embarcação para outro porto, menos perigoso.<br />

Muitas vezes, eles se perguntavam o que foi buscado naquela união devastadora.<br />

Sem respostas, em nome do amor, foram se adaptando às brigas<br />

e ao sofrimento que um causava ao outro. Quando, ocasionalmente,<br />

surgia um período de calmaria, por motivos inexplicáveis, alheios à vontade<br />

dos dois, um deles, prontamente, desafiava e agredia o outro e, novamente,<br />

reiniciavam as desavenças. Com o retorno à estrutura-padrão,<br />

brigas continuadas, conhecida de ambos - que eles compreendiam e com<br />

as quais tinham aprendido a viver - eles navegavam satisfatoriamente.<br />

Dr. Adamastor, antes de se casar, para ficar mais próximo de Rosária,<br />

começou a trabalhar com o sogro, inicialmente, no depósito de material<br />

de construções e depois, na edificação de pequenos prédios. Apesar das<br />

desavenças constantes e continuadas, o casamento foi realizado, com<br />

muita pompa, orquestra, garçons, presença de políticos e comerciantes.<br />

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Clarimundo, sendo empresário na área de material de construção, convidou<br />

todos os fregueses e amigos. Por outro lado, D. Gertrudes tinha<br />

uma parentela enorme no Nordeste. Todos vieram para a grande festa.<br />

Lucinho foi o último filho de Dr. Adamastor e Rosária, uma família que<br />

teve um início de vida tumultuado, numa casa onde a desordem e o<br />

sofrimento imperavam. Segundo consta, quando ela esperava Lucinho,<br />

ele andou paquerando uma estagiária da firma de construção de Clarimundo.<br />

Os boatos alcançaram os ouvidos de Rosária, que foi tomar<br />

satisfação, no escritório do marido, com Silbene, que desmentiu tudo,<br />

a princípio, com veemência; aos poucos, pressionada pelo tom de voz<br />

e palavrões cada vez mais pesados de Rosária, cedeu e, praticamente,<br />

confessou o crime. Há notícias de que ela teria tido um filho dele. A<br />

partir dessa data, Silbene foi dispensada, vigiada, impedida de jamais se<br />

aproximar de Adamastor.<br />

Rosária, para punir seu marido, decidiu ficar sem ter relações sexuais<br />

com ele, por uma temporada. De fato, usou a briga como pretexto para<br />

ficar livre do que não gostava; nunca fora uma mulher entusiasmada por<br />

contato sexual com homem algum. Tinha aversão pelo corpo masculino<br />

e, mais ainda, pelos órgãos sexuais masculinos. Com respeito aos homens,<br />

ela seguiu a mãe, que não escondia o desencanto com eles, fossem<br />

de qualquer espécie.<br />

- Não tolero nem cheiro de homem. Homem tem cheiro de queijo ardido,<br />

falava D. Gertrudes, dando boas gargalhadas, diante de Clarimundo<br />

que, nesses momentos, abaixava a cabeça e ria sem graça.<br />

Clarimundo, acostumado com a mulher, manhoso, já desistira de discutir<br />

com Gertrudes, há muito. Continuava a vida sexual, sem chamar<br />

atenção de ninguém, com uma ou outra mulher que encontrasse, que<br />

aceitasse suas cantadas melosas e demoradas. Geralmente, procurava as<br />

mulheres pobres, incultas, sem ideais e planos. “Estas são fáceis”, assim<br />

ele dizia, “não dão trabalho; não preciso gastar muito e nem de muita<br />

conversa, que, de fato, não tenho”.<br />

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O Incesto: Cega Obsessão<br />

De tempos em tempos, Rosária adoecia mentalmente. Nessas ocasiões<br />

seu humor oscilava, ora ficava desanimada e triste e ora alegre e animada.<br />

Suas crises não só se tornavam mais freqüentes, como também, mais<br />

graves. Numa fase ela se julgava bela, saudável e inteligente e, na outra,<br />

imaginava-se feia, “burra”, envelhecida e próxima do fim.<br />

Durante uma de suas crises de euforia ela comprou, de uma só vez,<br />

dúzias de calcinhas, todas iguais; dezenas de livros de culinária e, ainda,<br />

anéis e relógios variados, sem quaisquer objetivos. Bastava alguém<br />

lhe oferecer - podia ser qualquer objeto - para que ela comprasse, sem<br />

pensar. Emitia cheques, sem refletir, de sua conta conjunta com Dr.<br />

Adamastor. Suas energias aumentavam espantosamente; ficava horas<br />

conversando e, ao discutir um assunto, antes de terminar a idéia iniciada,<br />

passava a outra. Isso tornava sua fala, muitas vezes, impossível de ser<br />

compreendida. Deitava-se tarde, levantava-se antes do dia amanhecer.<br />

Ao sair da cama, ainda de madrugada, acendia as luzes da casa, lavava,<br />

furiosamente, a cozinha, o banheiro e as roupas da casa, mesmo não<br />

estando sujas. Arredava mesas e cadeiras, abria e batia portas e, com a<br />

voz esganiçada, cantava alto Beijinho Doce, Chuá-Chuá, Paloma Triste;<br />

suas canções preferidas. Ao pronunciar as palavras dos versos mais<br />

românticos, usava um tom de voz meloso. Assim, ao cantar: “que beijinho<br />

doce que ela tem, um abraço apertado, suspiro dobrado...”, na palavra<br />

“suspiro”, suspirava demoradamente; em “beijinho”, contraía os lábios,<br />

imitando o beijo dado. Esses trejeitos irritavam ainda mais os ouvintes<br />

insones. Na área sexual, ela se transformava, de inibida e tímida, numa<br />

mulher livre e promíscua. Olhava sedutoramente para os homens que<br />

encontrava, exibia seus seios, antes escondidos, vestia roupas vermelhas,<br />

pretas e amarelas; tudo que pudesse despertar a sexualidade. Quando<br />

os impulsos aumentavam, ela agia como um animal, era guiada apenas<br />

pelos instintos.<br />

Dr. Adamastor, que tinha assistido a várias crises, acostumou-se com<br />

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essas mudanças e com os hábitos extravagantes. Num mês de fevereiro,<br />

uma nova crise de excitação, iniciada em meados de dezembro, alcançou<br />

o cume.<br />

Numa noite, após Dr. Adamastor chegar do trabalho, ele convidou-a<br />

para assistir ao jornal, que ela era encarregada de gravar para ele.<br />

- É...Certo...Ouviu?...Compreendeu?... Vamos ver o jornal.<br />

- Ah... meu bem, esqueci...falou agitada e rindo, passando, as mãos nos<br />

cabelos desarrumados.<br />

- Como? Esqueceu? Ouviu? Naturalmente... Não é seu trabalho... Você<br />

não faz nada, realmente; passa o dia falando. Parece que, hoje, você,<br />

desde cedo, está com o falador aberto.<br />

- Também, para quê? Uma chatura... Esse jornal não tem nada. São as<br />

mesmas notícias... Você já conhece todas: desastres de pessoas desconhecidas;<br />

nunca é um <strong>nosso</strong> parente ou amigo, só uma vez aconteceu<br />

isso; reuniões inúteis na Câmara; reclamações ao Procon e mais um<br />

seqüestro...ela não parava de falar...<br />

- Eu gosto...Ouviu? Exatamente...É o que você faz... Cada dia, você se<br />

torna mais incapaz...<br />

As alterações entre os dois foram aumentando, com xingamentos e palavrões<br />

recíprocos. Como sempre acontecia nas brigas, ele foi expulso do<br />

quarto do casal.<br />

Uma forte tempestade caiu naquela noite, acompanhada de relâmpagos<br />

e trovoadas - dos quais ela tinha pavor, principalmente, do barulho.<br />

Durante as crises, o medo aumentava, ela só se acalmava junto a uma<br />

companhia, qualquer que fosse, até mesmo um pequeno cão, servia para<br />

protegê-la. Frustrado por não assistir ao noticiário da noite, irado com<br />

Rosária, Dr. Adamastor, resmungando, pegou o pijama e foi dormir no<br />

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quarto de hóspede. Nessa noite, no auge da agitação, ela arrebanhou<br />

Lucinho, que tinha em torno de cinco anos, para lhe fazer companhia.<br />

Lucinho dormiu logo após se deitar na cama do casal. Entretanto, foi<br />

despertado pelo barulho da porta do quarto que se abrira, bem como<br />

pelos passos duros e pesados da mãe. Ele abriu, preguiçosamente, os<br />

olhos, examinando-a no escuro. Ela se aproximou e o fitou com ternura.<br />

Passou as mãos brancas e lisas, nervosamente, sobre os cabelos do filho e<br />

começou a observá-lo. Hesitava; não decidira o fazer. Caminhou, inquieta,<br />

até o armário de medicamentos, procurando um comprimido para<br />

dormir. Engoliu-o, com o auxílio de um pouco d’água que trouxera para<br />

o quarto. Enquanto esperava o sono, começou a tirar as roupas, sem se<br />

preocupar com o filho. Automaticamente calçou seus sapatos de salto<br />

alto e caminhou nua, de um canto ao outro do quarto. Nesse instante<br />

Lucinho abriu os olhos espantados, diante da cena inesperada. Rosária,<br />

agitada, incapaz de se criticar, vestiu uma calcinha vermelha e, em<br />

seguida, através de gestos cadenciados e libidinosos, colocou um sutiã<br />

da mesma cor e estilo. Dirigiu-se até o criado-mudo e ligou o rádio de<br />

cabeceira. Sons calmos de uma antiga canção italiana, “Cuore Ingrato”,<br />

invadiram o quarto sinistro.<br />

Ele, imóvel e espantado, observava o ritual ali iniciado. Criticado, constantemente,<br />

por praticar más ações, sentia-se culpado de observar o que<br />

via: sua mãe, de calcinha e sutiã, caminhando pelo quarto, sem objetivo<br />

aparente. Era um espetáculo impossível de ser entendido.<br />

Uma vez terminada a canção italiana, ouviram-se os sons belos e singelos<br />

de “Plaisir D’Amour”, uma suave canção de amor francesa, na qual<br />

os prazeres do amor são descritos como efêmeros e as dores, eternas.<br />

Encantada, envolvida pela melodia, fitou Lucinho com olhos acesos<br />

e brilhantes; com inusitada volúpia. Ela se agitava. Dominada pelos<br />

instintos, descontrolada ou, possivelmente, possuída pelo demônio,<br />

maquinalmente, retirou, a calcinha vermelha, deixando o corpo coberto<br />

apenas pelo sutiã vermelho, que protegia os grandes e já frouxos seios.<br />

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Na penumbra do quarto, Rosária parecia dançar, como fazem as profissionais<br />

de “striptease”, diante da platéia atenta. Examinou novamente o<br />

filho: era uma presa fácil demais para ser devorada.<br />

Uma fresta de luz medrosa e fria penetrava, com dificuldade, pela porta<br />

semi-aberta do quarto, permitindo ver a cena desoladora e tétrica que<br />

começava a ser representada naquela noite de tempestade. Lembrava<br />

os espetáculos teatrais pobres das pequenas cidades do interior. Ela se<br />

virou, na penumbra, pôs-se a examinar seu próprio corpo; olhava-o,<br />

tocava-o, todo ele, na solidão da noite. A respiração foi se acelerando.<br />

Com extremo cuidado e delicadeza, ela, após untar as mãos num creme<br />

perfumado, deslizou as pontas dos dedos por todo o corpo, massageando-se<br />

através de toques macios, lentos mas firmes.<br />

Ele, assistia a tudo. Gelado e imóvel, fingia-se de morto. Não compreendia<br />

o que se passava diante dos seus olhos amedrontados.<br />

Rosária, mais uma vez, caminhou, afoita, até ao armário e de lá retirou<br />

um vidro com um líquido leitoso e morno. Com seus olhos de felino,<br />

parecia, observar o momento oportuno para avançar sobre a presa<br />

distraída. De suas narinas saía um sopro quente. Assentou-se na cama e<br />

untou novamente o corpo. Seus dedos agitados aumentavam a força e o<br />

ritmo das massagens. Seu corpo aquecia, queimava. Inebriada, ela não<br />

mais avaliava as conseqüências de suas ações libertinas, atos que, fora da<br />

crise de euforia, ela seria a primeira a criticar com veemência e asco.<br />

Encantada consigo, observando cada pequeno órgão - sinal ou vestígio<br />

de sexualidade - com curiosidade e interesse, ia se friccionando, a cada<br />

momento, com mais vigor.<br />

De tempos em tempos, virava o rosto excitado em direção ao filho,<br />

inerte e desarmado. Lucinho, cada vez mais cheio de culpa, segurava,<br />

como podia, a respiração, ao participar, estupefato, sem o desejar, do<br />

desatino da mãe.<br />

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Após alguns minutos, a respiração barulhenta de Rosária tornou-se<br />

mais profunda, sincronizada com os movimentos das mãos e dedos;<br />

seus músculos enrijeceram. Dominada pela loucura, sem controlar<br />

suas ações, girou o corpo em direção ao filho. Possessa, deitou-se, com<br />

seu corpo grosseiro e imenso, sobre o delicado organismo do filho e o<br />

abraçou fortemente.<br />

Seus grandes seios, umedecidos pelo líquido leitoso e pelo suor que<br />

nascia de seus poros, saíram do pequeno sutiã vermelho, espalharamse<br />

sobre o rosto do garoto, quase impedindo-o de respirar, deixando-o,<br />

ainda, mais assustado e paralisado. Sufocado, ele escutava a respiração<br />

ofegante de sua mãe, os gemidos retidos e profundos, os sons vindos<br />

do seu agitado coração. Após alguns instantes, participou da convulsão<br />

muscular que irrompeu em todo o corpo de Rosária.<br />

Lucinho, perplexo, teve vontade de chorar, entretanto, ao mesmo tempo,<br />

imaginou poder estar recebendo um carinho desconhecido, diferente<br />

dos usuais; um abraço jamais experimentado. Lembrava que sua mãe, só<br />

raramente, transmitia-lhe afetos. Imobilizado, ficou em dúvida se deveria<br />

ou não corresponder àquela afeição ou, no mínimo, aceitá-la, mesmo<br />

sendo um sinal de amor incompreensível. Assim raciocinando ele<br />

resistiu ao impulso de gritar e continuou paralisado, como um animal<br />

pequeno e fraco, diante do inimigo grande e poderoso, da ameaça impossível<br />

de escapar.<br />

Esmagado sob ela, refletia acerca daquela conduta, estranhamente afetuosa,<br />

naquela hora da noite. “Por que tudo aquilo: a nudez, o creme, a<br />

música, o vestir e despir da calcinha, os movimentos de mãos que ele jamais<br />

presenciara? O que isso significaria? O que teria feito para merecer,<br />

naquele dia, tanto empenho de sua mãe, sem receber xingamentos, nem<br />

nada ser exigido?”<br />

Até então, as relações com sua mãe tinham sido admoestações, maltra-<br />

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tos; jamais afagos.<br />

Os espasmos corporais se extinguiram; a respiração se normalizou e o<br />

coração passou a bater mais ritmado. Por fim, a razão retornou. Ao olhar<br />

para o filho, pôde observar que ele tinha os olhos abertos e espantados.<br />

Desorientada, afastou-se rapidamente de seu corpo e, pigarreando,<br />

quase sem voz, perguntou-lhe, aflita:<br />

- Acordou, filhinho?<br />

Ele tornou a fechar os olhos, mas logo os abriu. Observou sua mãe,<br />

certo de que iria receber um castigo. Imaginou ter cometido algum erro<br />

grave, não sabia qual. Ela, assustada, afastou-se ainda mais. Mais serena<br />

e racional, culpada e envergonhada, começou a soluçar. Ao se levantar,<br />

caminhou pelo quarto escuro e abafado, vigiada pelos olhos aflitos do<br />

filho e, só minutos depois, lembrou-se de que estava nua. Procurou,<br />

apressada e desajeitadamente, suas roupas, custando a encontrá-las, uma<br />

vez que, por instantes, desapareceram no quarto desmazelado.<br />

Vestiu, na pressa, a calcinha pelo avesso, ajeitou, de qualquer modo, o<br />

sutiã; colocou, por cima de tudo, o “pegnoir” de veludo vermelho lambuzado<br />

de cremes e, chorando, deitou-se, com cuidado, ao lado do filho.<br />

Minutos depois, começou a abraçá-lo, num misto de atração e aversão.<br />

Chorando e excitada, beijou-lhe o rosto, passando as mãos, ainda untadas,<br />

sobre seus pequenos olhos. Tentava, automática e inutilmente,<br />

fechá-los, pois era intolerável fitá-los. Sabia que estava sendo examinada<br />

por aquela mente indagadora: “Estaria sendo criticada? O que ele estaria<br />

pensando naquele instante? Compreendia aquela ação vil, executada<br />

num momento de desespero?” Ela, angustiada, se perguntava...<br />

A tempestade, aos poucos, foi cessando, um vento fresco soprou.<br />

Rosária imaginou se enforcar; sair daquela casa, para sempre; desaparecer.<br />

Gemendo e orando, ela permaneceu enrolada no corpo do filho,<br />

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mesmo após Lucinho ter adormecido profundamente. Nas suas orações,<br />

pedia perdão a ele e a Deus, implorava uma solução divina para seu<br />

pecado. Julgava-se perdida.<br />

Na manhã seguinte, ele acordou, com a mãe desperta a seu lado. Ela,<br />

com os olhos empapuçados, continuava a lhe pedir, insistentemente,<br />

desculpas, por tê-lo assustado, na noite anterior. Rogo-lhe, ainda, que,<br />

aquele momento vivido por ambos, fosse um segredo entre eles.<br />

Mas esses encontros, ao contrário do imaginado, desejado e prometido,<br />

não terminariam naquela noite. Durante outros períodos de loucura, as<br />

mesmas cenas se repetiram, com o esquecimento completo das promessas<br />

e boas intenções do passado. Preparado o ambiente, agora mais<br />

racional, ela já não se preocupava com o espanto do filho. Tudo já era<br />

conhecido.<br />

O hábito sempre fez as pessoas suportarem e até apoiarem os costumes<br />

mais abomináveis e indignos.<br />

A partir da primeira experiência, Lucinho foi se acostumando com os<br />

abraços e os carinhos da madrugada. Às vezes, quando os intervalos<br />

entre os encontros cresciam e sua mãe, calada e triste, passava semanas<br />

sem chamá-lo para o quarto, ele perguntava-lhe quando iria dormir no<br />

seu quarto. Ela disfarçava, pigarreava, fingia não o ouvir. Sua pele branca<br />

tornava-se cheia de pontos avermelhados e lágrimas envergonhadas<br />

umedeciam seus olhos azuis.<br />

Com o passar do tempo, o prazer da novidade foi diminuindo. Ela<br />

chegava sorridente e agitada; Lucinho esperava o início do conhecido<br />

espetáculo. Deitado, sem se mexer, ele permanecia estendido, como um<br />

defunto à espera de urna funerária e da hora de ser enterrado.<br />

Numa tarde, durante suas crises de euforia, ele, ao sair com sua mãe<br />

para fazer compras, foi obrigado a esperá-la numa lanchonete, ao lado<br />

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do edifício onde entrara. Para diminuir sua angústia, ela lhe ofereceu um<br />

sorvete de creme, recheado com morangos.<br />

O acompanhante de sua mãe, naquele dia, era o pintor de paredes, o<br />

mesmo que minutos antes, esteve trabalhando em sua casa.<br />

A espera foi longa e cansativa. Por mais de uma hora, Lucinho ficou sem<br />

o que fazer. Na saída, sua mãe ordenou-lhe, como sempre, nada dizer<br />

acerca do passeio. Devia contar, caso seu pai perguntasse, que estavam<br />

fazendo compras. Agora mais crescido, pôde notar que sua mãe, junto<br />

ao pintor, ficava diferente do que era em casa: o semblante, o tom de voz<br />

se transformava. Ela se tornava gentil e risonha. Ao se despedir do pintor,<br />

ela o abraçou carinhosamente. Ele lhe deu um tapinha no traseiro.<br />

Ela, em lugar de brigar, deu boas gargalhadas.<br />

Aborrecido com o que viu, mas ainda sem decifrar seu significado, ele<br />

resolveu não mais sair com sua mãe e também, não mais dormir no<br />

quarto dela.<br />

Os tempos passaram. Rosária se transformou mais uma vez. Agora<br />

ficou triste e calada. Passava a maior parte do dia deitada no quarto<br />

fechado, não tirava a velha camisola branca e nem tomava banho,<br />

respondia somente ao que lhe era perguntado e queixava-se de tudo,<br />

principalmente, de doenças. Com voz fraca, quase inaudível, murmurava:<br />

“É preferível morrer a viver assim; não tenho vontade, nem prazer<br />

com nada. Para mim, o fim seria um descanso, uma bênção do céu”. Os<br />

familiares, acostumados às mudanças, não estranhavam quando uma<br />

ou outra personagem da mesma atriz, entrava em cena. Como eram<br />

diferentes! Os amantes da fase de euforia, não tão próximos dela, não<br />

entendiam a metamorfose, o afastamento repentino e “sem motivos”. O<br />

pintor acostumado a sair com ela, ao voltar a pintar a casa, aproximouse,<br />

seguro de sua concordância e tentou marcar um encontro, entretanto,<br />

foi duramente afastado por ela:<br />

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- Como? Eu? Você está louco. Não quero saber de homem; já basta o<br />

que tenho. Detesto fazer sexo. Quer saber? Detesto você. Tenho nojo de<br />

tudo, não sei onde estava com a cabeça ao ir com você, naquele lugar.<br />

Nunca mais me fale nisso...Suma; saia da minha frente, depravado!<br />

O que nunca mudava era seu gênio irascível. Numa ou noutra crise,<br />

alegre ou triste, calada ou falante, ela sempre estava nervosa com tudo.<br />

Bastava acontecer alguma coisa que a desagradasse, algo que ela não<br />

desejasse.<br />

Mas Rosária tinha seus momentos positivos. Nos momentos de lucidez,<br />

preocupava-se com a casa, com Dr. Adamastor e com sua conduta em<br />

relação a Lucinho e com o mal que causara ao filho. Para compensar o<br />

sentimento de culpa, ela se dedicou mais a ele, deu-lhe mais carinhos e<br />

presentes. Entretanto, essa estratégia pouco funcionou. Ele estava, cada<br />

vez mais convencido, que sua mãe fazia algo errado, que não podia ser<br />

comentado.<br />

Ele demorou a entender o espetáculo do qual participara e que se iniciou<br />

naquela noite escura de fevereiro. Mais crescido, ao conversar com os<br />

companheiros, concluiu que o acontecido, não tinha ocorrido com eles.<br />

Quando decifrou com clareza o significado do evento, desesperou-se.<br />

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Na Serena Manhã de Domingo<br />

Numa manhã quente e abafada de novembro, pouco depois do sol mostrar<br />

os primeiros clarões avermelhados, por cima das montanhas azuladas<br />

que contornam Belo Horizonte, Rosária, acompanhada dos filhos,<br />

foi à casa de sua mãe, cumprir uma obrigação familiar: as enfadonhas<br />

visitas domingueiras.<br />

D. Gertrudes e o marido Clarimundo moravam numa casa do bairro<br />

dos Funcionários, na zona sul da cidade. Um imenso portão de ferro<br />

ficava logo na entrada da casa. Era nele que as crianças menores subiam<br />

para girá-lo, abrindo e fechando, até que um adulto viesse acabar com<br />

o divertimento proibido. A casa, comprada por Clarimundo quando<br />

suas rendas aumentaram, situava-se no bairro chique da cidade. Era ali<br />

onde moravam as famílias de maior poder aquisitivo ou possuidoras de<br />

“status” profissional mais elevado.<br />

Para entrar na porta principal da casa era preciso descer uma escada<br />

de três degraus, forrada pelos mesmos ladrilhos encardidos, imitando<br />

âncoras pretas, existentes no chão do alpendre. Duas cadeiras e um sofá<br />

simples, de ferro batido, com assento e almofadas de veludo marrom,<br />

adornavam o comprido alpendre cercado por grades, formando desenhos<br />

sinuosos. Em cima das grades de ferro, assentava-se uma peça de<br />

madeira roliça escura, já gasta.<br />

Uma porta de madeira larga e alta, talhada com figuras geométricas,<br />

separava o alpendre da sala de visitas. Dentro da casa quase não entrava<br />

a luz do sol. A sala era iluminada por oito pequenas lâmpadas que saíam<br />

horizontalmente dos bocais de um velho lustre empoeirado de vidro<br />

amarelo, pendurado no centro do teto. O brilho fosco das lâmpadas era<br />

refletido no forro branco de madeira pintada a óleo.<br />

Um cheiro de cera exalava-se do assoalho brilhante de peroba vermelhoescura.<br />

No centro da sala uma mesa redonda, coberta por uma toalha de<br />

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linho branco engomada, rodeada por seis cadeiras altas, tudo em jacarandá.<br />

O silêncio da casa, seu mobiliário, a quantidade de madeira e ferro,<br />

transmitia ao visitante, uma sensação de estar entrando num museu<br />

ou numa igreja; num local apropriado para se fazer preces e escapar do<br />

mundo barulhento e confuso.<br />

Contrastando com a apatia e a velhice do interior da casa, lá fora, o que<br />

se via era a vida florescendo. Do lado direito: roseiras vermelhas, orgulhosas<br />

de sua vitalidade e beleza, um pouco adiante rosas brancas e amarelas,<br />

indiferentes às agressões das margaridas atrevidas, violetas tristes<br />

tentavam se espichar para alcançar as roseiras, crisântemos exalando<br />

perfume completavam o jardim. Insetos, dourados pelo sol, começavam<br />

seu aquecimento e busca do alimento.<br />

No fundo do terreno, erguiam-se pés de mamão. Ao lado, jabuticabeiras<br />

deixavam cair, no solo, milhares de jabuticabas que ali apodreciam.<br />

Goiabeiras ainda novas começavam a mostrar as flores brancas. No ar<br />

exalava-se um perfume adocicado que era disputado pelas abelhas e<br />

beija-flores em busca do néctar daquele paraíso. Isolada e desapontada,<br />

uma tamareira estagnava. Plantada pelo antigo dono, jamais dera um<br />

fruto, apesar dos desejos e cuidados dos proprietários, todos encantados<br />

com sua imponência.<br />

Num canto, cercadas por telas de arame, galinhas, barulhentas e agitadas,<br />

ciscavam à procura de algum resto de canjiquinha ou, caso tivessem<br />

mais sorte, de abocanhar uma desvalida minhoca, que ousasse atravessar<br />

aquele lugar proibido. Através de uma pequena porta de tela, todos<br />

os dias D. Gertrudes ali entrava para colher ovos frescos. As galinhas se<br />

bicavam, sob os olhares severos de um único galo, com grandes cristas e<br />

barbelas vermelhas, orgulhoso do papel desempenhado.<br />

Ao lado do galinheiro, nos canteiros estreitos, acima do nível do solo,<br />

cobertos por terra escura e úmida, pés de alface verdes e viçosos, couve,<br />

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cebolinha, salsa e taioba. Uma mangueira enorme, situada na divisa do<br />

quintal, mostrava as frutas ainda pequenas e verdes, prometendo, para o<br />

fim do ano, milhares de mangas grandes, cheirosas e avermelhadas, infelizmente,<br />

não tão saborosas quanto sua beleza e perfume. Embaixo dessa<br />

frondosa árvore, um banco de madeira pintado de cinzento, ao seu lado<br />

uma rede com listras pretas e vermelhas, entre a mangueira e o muro,<br />

esperava algum corpo cansado.<br />

Era nesse recanto que a família de D. Gertrudes se reunia todos os domingos<br />

em torno, principalmente, dela.<br />

Os irmãos foram chamados para dentro de casa, para participar de um<br />

jogo de dados, comprado para distrair os netos. Lucinho, cansado do<br />

jogo, saiu para o terreiro, com a prima Isaura, de sua idade, que havia<br />

dormido, aquela noite, com a avó. Os dois, após ter visitado o galinheiro,<br />

balançavam-se no portão de entrada, quando ninguém os via.<br />

No fundo da casa, ao lado do galinheiro, algumas pedras haviam sido<br />

abandonadas desde o tempo em que a casa fora construída. Esse era o<br />

lugar preferido pelas crianças que ali brincavam. Bastava levantar uma<br />

das achatadas e esbranquiçadas pedras, principalmente, nos meses<br />

de outubro e novembro, para que de lá saíssem escorpiões, grandes e<br />

pequenos, todos andando apressados, com os ferrões levantados e prontos<br />

para dar a terrível picada.<br />

Lucinho e a prima, divertiam-se com os perigosos e atraentes bichinhos.<br />

Naquele domingo preguiçoso, debaixo da mangueira, D. Gertrudes,<br />

assentada no banco cinzento e Rosária, deitada na rede, esperavam a<br />

chegada do resto da família. Possuidoras de temperamentos semelhantes,<br />

procuravam inquietas e inutilmente, por um assunto que não vinha:<br />

- A vida hoje em dia tá muito difícil, falou Rosária, sem grande entusiasmo,<br />

tentando iniciar a conversa, mesmo sabendo que este papo não<br />

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lhe interessava e, nem mesmo, à mãe.<br />

- Você tem razão minha filha, hoje tá tudo mudado, o mundo não é mais<br />

o mesmo... resmungou D. Gertrudes, bocejando. Ninguém quer nada<br />

com o serviço... com a dureza... Antigamente, as empregadas trabalhavam<br />

até doze horas por dia. Levantavam ainda antes do sol nascer...<br />

Eram dedicadas à patroa, gostavam da gente e, no entanto, ganhavam<br />

menos do que agora e, além disso, quase não roubavam... Olhe a sujeira<br />

no quintal. Elas não ligam prá nada... Deixam tudo por nossa conta...<br />

Nesse instante, D. Gertrudes se vira e aponta para algumas folhas caídas,<br />

contraindo a face enrugada e empurrando os lábios para frente, para<br />

indicar seu asco e desprezo pelas subalternas.<br />

- É mesmo... a senhora tem razão, balbuciou cansada Rosária, sem prestar<br />

muita atenção ao que foi dito nem às expressões de sua mãe. Esse<br />

ano essa jabuticabeira deu tão pouco... Antes dava muito mais. Eram<br />

mais doces, saborosas, maiores...<br />

- Não foi tão pouco, um pouco menos do que no ano passado...Você<br />

não veio aqui...deu até muita...Também, o tempo...Choveu menos esse<br />

ano, no mês de setembro, quando elas florescem...Mas, olhe o chão...Está<br />

cheio de jabuticabas que caíram. Dá uma pena, tudo apodrecido. Falam<br />

que é porque as árvores estão sendo cortadas. É o progresso, chove<br />

menos... Não sei para onde estamos caminhando. Tenho saudades de<br />

antigamente, de Maceió, do tempo de criança.<br />

- É, suspirou...ando exausta... resmungou Rosária, olhando para o chão,<br />

junto ao pé de jabuticabas. Não sei por que já acordo assim, cheia de<br />

dores. Hoje mesmo, levantei com uma dor aqui na perna!...Não sei o que<br />

é... Acho que são varizes. Tenho muito medo delas... Dizem que podem<br />

dar derrame. Não queria ter filhos; engordei tanto... minha barriga aumentou,<br />

está cheia de estrias. Coisa ruim é velhice...<br />

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- Por quê?<br />

D. Gertrudes muda o tom de voz baixo e aborrecido, elevando-o, para<br />

fingir interesse e simpatia pelo que foi dito: - Você é tão nova...Como<br />

está sua vida com Adamastor?<br />

- A gente vai vivendo, ele não é mau, trabalha muito, ganha bem, mas...<br />

- Todo casamento é igual, as mulheres sofrem muito nas mãos dos<br />

homens... Isso eu sei... resmungou D. Gertrudes; - Minha mãe já falava<br />

o mesmo, ela também nunca viveu bem com meu pai... Você assistiu<br />

ao programa... Como é mesmo o nome?... Aquele de debates...Eu gosto<br />

muito dele... À tarde, quando não tenho o que fazer - e agora é quase<br />

todos os dias - eu assisto...<br />

- Eu também não perco... A gente fica tão bem informada...Tem muita<br />

gente boa que vai lá. Outro dia, foi um psiquiatra, o Dr. Marcondes, eu<br />

acho... comentou Rosária.<br />

- Eu assisti. Falou sobre “sexo e casamento”, não foi? Exclamou mais<br />

animada Gertrudes.<br />

- Acho que sim. Não guardei bem o que falou; mas ele fala muito bem,<br />

todo mundo sabe disso, além do mais, é um bonitão, alegre e falante,<br />

com um homem assim é que eu gostaria de ter me casado. Já assisti outros<br />

programas em que ele apareceu...<br />

- Fala mesmo, mas tem umas idéias esquisitas... Não concordo com<br />

elas... Não gosto dessas novidades de sexo...Fechou a cara D. Gertrudes<br />

enquanto falava.<br />

- Seria bom se ele morasse em Belo Horizonte, iria consultar-me com<br />

ele.<br />

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- Vá a São Paulo...Consulte lá...Os melhores médicos vão para São Paulo.<br />

Mas, consultar pra quê? Perguntou assustada D. Gertrudes.<br />

- Uns problemas que tenho, nada sério... Rosária evitou falar.<br />

- Todos nós temos problemas. Que problema é pior do que ter que<br />

mexer com essa gentinha, cada uma pior e mais safada do que a outra?<br />

E mais ainda: ter que abraçar um homem quando a gente quer é dormir.<br />

Que saudade de minha mãe, suspira D. Gertrudes...Para que consultar<br />

com psiquiatra?<br />

- Certas coisas... É... com relação a Lucinho. Coisa à toa... bobagens,<br />

bobagens...Depois, eu te conto, continuou Rosária, evitando se expor e<br />

desinteressada.<br />

- Eu também tenho problemas com respeito ao seu pai. Minhas preocupações<br />

não são apenas com as empregadas. Cuidar da casa dá trabalho:<br />

verificar se a comida está bem feita, se a roupa foi bem lavada e passada.<br />

O pior é vigiar. Temos que vigiar sempre. Outro dia, uma camisa<br />

nova de Clarimundo, ele tinha vestido poucas vezes, foi queimada, ficou<br />

imprestável. Dá uma pena! E o ruim, você nem imagina... ela nada falou.<br />

Eta gente à-toa. Ela colocou a camisa na gaveta, como se estivesse boa<br />

para vestir. Ele é um bocó. Vestiu a camisa furada e nem notou. Imagine<br />

só... ir trabalhar assim! Por pouco, saía com ela. Que vergonha! Não<br />

gosto nem de pensar... Seu pai já não é mais o mesmo homem... nunca<br />

foi lá grandes coisas, agora está um caco. Não serve pra nada. Você compreende<br />

o que quero dizer, não é? De certo modo até gosto.<br />

- É sempre assim... Também, não sei em que um psiquiatra poderia<br />

ajudar... continuou a falar sem prestar atenção nos comentários de sua<br />

mãe...<br />

- Aqui em Belo Horizonte tem médicos bons. Por que não procura um<br />

deles? Muitos têm aparelhos para examinar as pessoas, alguns desses<br />

vêem ou descobrem...não sei bem... me falaram... até o que nós pensamos.<br />

Por meio de uns risquinhos no papel, os médicos descobrem como<br />

está dentro da nossa cabeça. Deus me livre disso. Nunca irei fazer esses<br />

exames... Completou assustada D. Gertrudes.<br />

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- É... já me falaram acerca de um deles... um que só trata dessas coisas...<br />

- Que coisas? Perguntou mais espantada e atenta, D. Gertrudes.<br />

- Nada. Nada. Coisas que passam pela minha cabeça.<br />

- Fale com sua mãe, eu saberei ajudá-la...quem sabe? Sua mãe sempre foi<br />

sua amiga. Mãe só deseja o bem; quem mais pode ajudar um filho?<br />

- Concordo, toda mãe gosta do filho...Depois... uma hora eu te conto...<br />

hoje não! Não é um bom dia para isso, é uma conversa longa...comentou<br />

Rosária.<br />

- Tá bem, lamentou D. Gertrudes, desinteressada mas, ao mesmo tempo,<br />

satisfeita em não ter que ouvir uma possível e longa história. - Que passarinho<br />

bonito, aquele azulado!... todas as manhãs fico horas ouvindo<br />

seu canto... Olhe lá em cima da mangueira, no alto... Ele gosta de ficar<br />

escondido nos galhos mais altos. Bom para ele...<br />

- Qual? Não estou vendo. Estou vendo um beija-flor.<br />

- Não... ali, na mangueira. Ah! Agora foi para a goiabeira. Acho que ele<br />

tem um ninho por aqui.<br />

- Você se lembra daquele canarinho amarelo que papai me deu? perguntou<br />

Rosária. E lamentou, sem esperar pela resposta: - Era tão bonito!...<br />

- Lembro. Até para dormir, você o levava para o quarto, para lhe fazer<br />

companhia.<br />

- O que foi feito dele? Não me lembro...<br />

- Fugiu, um dia. O arame da gaiola era largo demais para seu tamanho.<br />

Ainda ficou por uns dias, no quintal...<br />

- Não! Lembrei-me. Ele foi dado para Alfredo. Eu até chorei muito.<br />

Agora me lembro... resmungou Rosária.<br />

- Você está enganada. Falou firme D. Gertrudes. - Para o Alfredo foi<br />

dado o poodle, que você tinha e que sujava tudo.<br />

- É... Não sei... Hoje está tão quente...Não é? Mudou de assunto Rosária.<br />

- Ninguém chegou ainda!...comentou D. Gertrudes, - Sua irmã sempre<br />

foi preguiçosa, levanta tarde...<br />

- Que horas são? Estou sem relógio. Não gosto da pulseira me apertando<br />

o braço, dá uma impressão de prisão. Gosto de ficar livre... disse Rosária<br />

bocejando.<br />

- Eu também estou sem o meu. Deve ser umas onze horas.<br />

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- Isso tudo? Por isso mesmo é que já estou começando a ficar com fome.<br />

- Quer comer alguma coisa? Há leite e frutas na geladeira, convidou D.<br />

Gertrudes.<br />

A conversa se prolongou por mais de uma hora nesse tom. Mudavam,<br />

ora para um assunto, ora para outro, sempre se arrastando com dificuldade<br />

e nunca chegando a lugar algum. As duas tinham consciência<br />

de que não havia entre elas, como nunca houve, uma intimidade, que<br />

diziam existir; por certo, nunca mesmo, a tenham desejado. Mãe e filha<br />

falavam por falar, pela vergonha de estarem, frente à frente, sem terem<br />

nada que dizer. Buscavam assuntos mas eles se esvaziavam rapidamente.<br />

- Por falar em comida, continuou Rosária, você leu ontem o jornal?<br />

- Não. Não leio o jornal todos os dias. Pego e olho apenas os filmes que<br />

vão passar na televisão. Sabe, uma coisa que me atrai são os classificados.<br />

Gosto de ver as ofertas, tem muita coisa boa e barata...<br />

- Também vejo, outro dia comprei esse sapato que estou usando, baratíssimo.<br />

Mas tem também muita porcaria nas liquidações... contou Rosária.<br />

- Se tem!<br />

- A gente precisa ficar bem informada. Gosto muito da página policial.<br />

Nesse instante Rosária se levanta da rede e pega o jornal de domingo<br />

que está em cima do banco...<br />

- Olhe aqui, algumas notícias de que gosto de ler, pois me divertem:<br />

“Mulher mata marido a machadadas”.<br />

- Eu, às vezes, leio também essas notícias. A gente pensa: “Ainda bem<br />

que não foi comigo”. Elas nos distraem. O que mais a gente quer nessa<br />

idade? gemeu D. Gertrudes dando um sorriso dúbio.<br />

- Mas existem notícias que eu gostaria que acontecessem comigo: “Ganhou<br />

sozinho o prêmio da Loteria Esportiva”. É o que mais sonho. Assim<br />

poderia comprar tudo o que desejasse sem ter que pedir dinheiro àquele<br />

pão-duro.<br />

- Ele te dá o que você deseja! completou D. Gertrudes.<br />

- Sim. Mas tenho que fazer várias coisas para agradá-lo e não gosto...<br />

A conversa continuava, às vezes quase parava, como um velho caminhão,<br />

soltando vapor pelo radiador, pesado e cansado, subindo uma<br />

ladeira devagar, falhando freqüentemente. A todo o momento, surgiam<br />

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perguntas acerca das horas.<br />

- Deve ser onze e meia, ou mais. Marilda até agora não chegou. Gosto<br />

muito de conversar com ela, não com o Artur, ele é um “chato”!<br />

- Quando vocês eram mocinhas..., Oh! Que tormento era para ela sair da<br />

cama para ir ao colégio. Você também era preguiçosa. Hoje, um pouco<br />

menos...<br />

- Eu não sou boba. Para que ficar trabalhando o dia todo? Para depois<br />

morrer? “Do mundo nada se leva”. Quero ter uma vida boa.<br />

De repente, Isaura chegou aos berros, até à avó.<br />

- Ele me mordeu! Ele me mordeu!<br />

- O que foi minha filha? perguntou a avó, preocupada.<br />

Mas D. Gertrudes, bem como Rosária, apesar de apreensivas com os<br />

gritos da menina, não deixaram de ficar satisfeitas. A partir da mordida<br />

e do pedido de socorro, elas seriam forçadas a tomar uma decisão, a<br />

agir: deixariam de lado a conversa aborrecida, que já estava se tornando<br />

insuportável. Antes, sem direção, agora, a partir do grito, sabiam o que<br />

deveriam fazer.<br />

Rosária olhou para a sobrinha e constatou que o braço dela estava<br />

realmente marcado por ferimentos de dentes. Lucinho, que a acompanhava,<br />

sabia que seria repreendido. Quase sem falar, como era seu hábito,<br />

diante da mãe e da avó, balançou a cabeça, sinalizando que não fora ele<br />

o causador da lesão. Mas não havia dúvida. Ele era o agressor. O garoto<br />

foi duramente xingado por sua mãe, diante da avó, para alegria das duas.<br />

Desse modo elas aliviaram suas tensões. Ele encarnou, como era comum,<br />

a culpa do mal-estar crônico.<br />

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Um Dia de Cão<br />

Ele, na escola, foi transferido de uma sala a outra, a procura de uma professora<br />

ideal para o ajudar a combater a distração e desmotivação. Saiu<br />

da sala de D. Edina e foi para a de D. Maria de Lourdes, desta foi para<br />

a sala de D. Francisca. Ele era inteligente e estudioso nas matérias de<br />

que gostava; mas revoltava-se sempre, contra a rígida disciplina escolar,<br />

principalmente após ter sido transferido para essa nova professora.<br />

D. Francisca era gorda como um barril, baixa, morena de cabelos muito<br />

pretos. Tinha os olhos escuros, miúdos, rodeados por olheiras roxas.<br />

No centro da face, nascia um nariz fino e pequeno para seu rosto arredondado<br />

e grande. Lembrava os desenhos infantis, representando a lua<br />

cheia. A pele do rosto era vermelha-escura, como a dos índios. Durante<br />

as aulas, caminhava de um lado a outro da sala, falando alto. Parecia<br />

estar repreendendo alguém, mesmo quando explicava um texto poético,<br />

ou fazia pilhérias...Nunca sorria.<br />

Os alunos, aos pares, nas estreitas carteiras, encolhiam-se espantados<br />

diante de sua figura autoritária. Apesar da baixa estatura, D. Francisca<br />

era percebida, aos olhinhos amedrontados dos alunos, como um gigante<br />

perigoso, pronto para feri-los. Era para ela que os maus alunos, bagunceiros,<br />

agressivos e desatentos eram enviados, como punição. Cabia a<br />

ela transformá-los em cordeiros bem comportados. Jamais um aluno<br />

enfrentou essa professora temida. Ele, como a maioria, ali estava para ser<br />

domesticado, por não se adaptar a certos companheiros e por não acatar<br />

ordens, para ele injustas.<br />

Naquele início de tarde de segunda-feira, quando os alunos parecem<br />

estar cansados desde o começo da aula, D. Francisca ordenou a Lucinho,<br />

asperamente como sempre, que recitasse o “Pai-Nosso”. A oração tinha<br />

por finalidade agradecer a Deus pela semana que passou, sem desgraças<br />

e pedir para que o pior dia da semana corresse em paz.<br />

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Ele, após relutar por instantes, caminhou amedrontado para a frente<br />

da turma. Apesar do nervosismo, começou a rezar até bem. Num certo<br />

momento atrapalhou-se e interrompeu por segundos a oração. Fez-se<br />

um silêncio, só quebrado quando ele recomeçou. Um calor invadiu o seu<br />

corpo. Diante dos olhares fixos e apreensivos dos colegas, ele se perturbou<br />

mais ainda. A partir desse instante não conseguiu prestar atenção<br />

à oração declamada. Em lugar de dizer, “ vosso nome”, falou “<strong>nosso</strong><br />

nome”. Bastou essa pequena falha para que a professora começasse a<br />

gritar, quase encostando a boca no rosto de Lucinho, permitindo-lhe<br />

sentir o hálito quente e nauseabundo que saía de sua garganta junto com<br />

perdigotos amargos. Cada vez mais abafado, Lucinho começou a ficar<br />

tonto. Enquanto ele encolhia, D. Francisca parecia crescer.<br />

- Mais depressa, molenga! Mais depressa! Fale corretamente. Comece de<br />

novo...Comece de novo! Mais depressa! Você não termina nunca! Ainda<br />

erra! Ande! Depressa! Preciso começar a aula.<br />

O modo de ela falar imitava o som dos discos estragados e rachados,<br />

que têm a agulha agarrada num lugar, repetindo a mesma letra e melodia.<br />

Ela parava por instantes e retornava com os gritos, nos ouvidos de<br />

Lucinho:<br />

- Parece um bicho-preguiça! Molenga!<br />

O pavor continuava entre os alunos que mantinham a tensão reprimida.<br />

Os sons foram ficando distantes, Lucinho, antes vermelho, tornou-se<br />

pálido; não mais conseguia raciocinar. Parou por instantes. Tomou novo<br />

impulso e prosseguiu, balbuciando perdido: - “Pai-Nosso...Pai-Nosso...”<br />

Não foi além disso. Os colegas gargalharam, liberando a ansiedade. D.<br />

Francisca o olhava agressiva, desanimada. Ele não se concentrava em<br />

nada. A ira dela aumentou.<br />

- Você rezando assim, vai para o inferno! Não sabe nada! Palerma! Fica<br />

só no “Pai <strong>nosso</strong>, Pai <strong>nosso</strong>”... Parece um idiota.<br />

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A face de Lucinho, cada vez mais pálida, estampava uma mistura de<br />

medo e ódio. Pensou em avançar no pescoço curto da professora, que<br />

sustentava sua horrorosa cabeça redonda. Faltaram-lhe força e coragem<br />

para tanto. Em dúvida, diante da idéia de atacar ou fugir, prestes a<br />

desmaiar, quase vomitando, amoleceu quando foi amparado por dois colegas<br />

e levado até à pequena enfermaria da escola. Ali, foi prontamente<br />

atendido por uma simpática e bondosa enfermeira, que lhe passou as<br />

mãos macias e sedosas sobre o rosto esverdeado. Em seguida, ela lhe deu<br />

um copo d’água com açúcar, pedindo-lhe, com a voz mais doce do que o<br />

açúcar ingerido, para que ele se recostasse num divã e descansasse, por<br />

uns minutos. Em pouco tempo ele ficou calmo e menos tonto, sua pele<br />

readquiriu o tom róseo natural, estava curado.<br />

Depois de recuperado, foi mandado para casa mais cedo, por ter “adoecido”.<br />

Em casa, como era o costume, foi repreendido pela mãe que não acreditou<br />

na história contada e, depois, mesmo esforçando-se para aceitá-la,<br />

colocou-lhe a culpa, xingando-o duramente, pois não podia tolerar uma<br />

ignorância tão grande; um filho seu que não soubesse, uma reza tão<br />

fácil.<br />

Sem entender as críticas, Lucinho decidiu, sem outra coisa a fazer no<br />

inesperado horário vago, bem como para escapar do ambiente tenso de<br />

casa, ir até à casa da avó.<br />

Lá chegando contou o episódio para D. Gertrudes, que, inicialmente,<br />

também o repreendeu. Depois, ela criticou, com ódio, a maldade da<br />

professora. As críticas violentas da avó à professora, deram a ele alívio e<br />

força para enfrentar, no dia seguinte, D. Francisca. A avó, para agradálo,<br />

ofereceu-lhe ovos frescos para se fortificar. Era assim que recebia os<br />

netos.<br />

Enquanto esperava a avó colher os ovos no galinheiro, ele permaneceu,<br />

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solitário e pensativo, na casa escura. Ouviam-se apenas os batimentos<br />

de seu coração assustado e o tic-tac do grande relógio de pêndulo da<br />

parede da copa. Uma pequena borboleta preta entrou na sala; dançou de<br />

um lado a outro e pousou na parede branca. Lucinho a invejava.<br />

Ele caminhou até à cozinha, tudo limpo, no lugar...ninguém. Inspecionou<br />

o banheiro, a despensa fechada, voltou à sala. Olhou para um e<br />

outro objeto, como se procurasse alguma coisa importante. Ele mesmo<br />

não sabia o que era. Nada.<br />

Abriu a porta do quarto de casal, a cama estava arrumada, a penteadeira<br />

fechada. Uma abelha zunindo, passou perto de seus ouvidos fazendo<br />

cócegas. Virou-se para trás; não havia ninguém, o silêncio continuava.<br />

Entrou no quarto da avó. Abriu curioso o armário, olhou para um terno,<br />

pôs um pouco do perfume na mão e o cheirou, pegou o aparelho de<br />

barba do avô e o passou no rosto. Ofegante, voltou até à porta do quarto,<br />

olhou: nenhum barulho.<br />

Lá fora, D. Gertrudes cantava: “Neste mundo eu choro a dor/ Por uma<br />

paixão sem fim/ Ninguém conhece a razão/ Por que choro no mundo<br />

assim...”<br />

Puxou com cuidado e nervosamente a porta semi-aberta do criado-mudo<br />

e abriu-a completamente. Assustou-se por instantes. Estava paralisado<br />

diante do que via. Sua respiração acelerou-se. Ali estava; poderoso,<br />

belo, quieto, entretanto, ameaçador, o objeto de sedução, a força externa<br />

procurada e temida. Fixou os olhos na peça brilhante, pequena, leve e<br />

atraente. Com o cuidado de quem não quer ferir objeto tão importante<br />

e delicado, gentilmente, apanha o antigo e possante Smith-Wesson, um<br />

revólver guardado e mostrado constantemente, com orgulho, pelo avô.<br />

Ele estava agora, nas suas mãos, preso, sem reclamar, a relíquia adorada.<br />

D. Gertrudes continuava sua cantoria: ”Lá no céu/ junto a Deus/ Em<br />

silêncio minh’alma descansa/ e na terra, todos cantam/ eu lamento<br />

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minha desventura/ nesta grande dor.”<br />

Ele, fechada a porta do criado, embrulhou o revólver com extremo<br />

cuidado no jornal jogado em cima da mesa. A borboleta voou espantada<br />

com o vento provocado pelo movimento das folhas do jornal.<br />

D. Gertrudes continuava sua procura. O galo cantou desarmônico,<br />

enquanto o sol fraco e pálido desaparecia no horizonte ensangüentado.<br />

Ele correu para fora do quarto com o revólver. Rapidamente, desceu as<br />

escadas, antes que a avó voltasse. Escondeu, com cuidado, a arma debaixo<br />

das “Coroas de Cristo”, perto do portão, por onde teria que passar<br />

para sair. Desejava ir logo, afastar-se dali, não podia ser descoberto. Um<br />

sinal de vida percorria seu organismo de menino.<br />

A avó entrou na sala, carregava os ovos e cantava os últimos versos: “<br />

Ninguém me diz/ que sofreu tanto assim/ esta dor que me consome/ não<br />

posso viver/ quero morrer/ vou partir para bem longe daqui/ Já que a<br />

sorte não quis/ me fazer feliz.”<br />

Nervoso, ele queria sair rápido, antes que ela entrasse no quarto e desse<br />

falta do revólver. Recusou firmemente o convite feito por ela para jantar,<br />

alegando estar tarde. Não desejava que a avó o acompanhasse até o<br />

portão. Entretanto, ela decidiu carregar um pouco mais os ovos, com<br />

receio de que ele os quebrasse ao subir a escada para alcançar o passeio.<br />

Esse fato o obrigou a deixar o embrulho escondido por mais algum tempo.<br />

Despediu-se e andou pelas ruas da vizinhança, sempre olhando para<br />

trás, disfarçadamente, para ver se a avó já tinha entrado em casa. Depois<br />

de caminhar não mais de cem metros, ele retornou, ofegante, como se<br />

fosse realizar um perigoso roubo. Não havia ninguém no portão, nem na<br />

varanda ou janelas da casa. Precisava completar o que iniciara. Pisando<br />

nas pontas dos pés, levantando exageradamente cada perna antes de<br />

abaixá-la, entrou no terreiro da casa e retirou, aliviado, o embrulho<br />

debaixo dos espinhos.<br />

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Saiu revigorado. Transformado em adulto, agora possuía poderes especiais,<br />

era capaz de enfrentar pessoas perigosas; até “gangs”. Não precisava<br />

mais ter medo de ninguém. Atravessou, corajosamente, as ruas cheias de<br />

carros e da multidão dos fins de tarde. Empanturrado de energia e disposto<br />

a gastá-la, caminhou um pouco mais do que o necessário, dando<br />

voltas pelo centro da cidade. Andava espichando seu pescoço fino, que<br />

saía do tronco encurvado; levantava os ombros para parecer maior do<br />

que era. Olhava destemido, ora para um lado, ora para outro. Examinava<br />

e desafiava os passantes distraídos, sempre segurando seu embrulho de<br />

jornal. Procurava o marginal perigoso, algum valente disposto a manter<br />

com ele um duelo de bravos. Imaginava, se preciso fosse, matar o ousado<br />

desafiador. Recordava, animado, os filmes de faroeste, imitava, vicariantemente,<br />

o andar compassado e firme dos mocinhos. Para isso, mantinha<br />

os braços finos e sem músculos, afastados do tronco e balançava as<br />

grandes mãos soltas e dependuradas que saíam dos compridos braços.<br />

Parecia estar pronto para a luta. Contava, segundo a segundo, o momento<br />

de começar a atirar contra o maldito fora-da-lei. Era chegada a hora<br />

da decisão. Ele mostraria para todos quem era o gatilho mais rápido de<br />

Belo Horizonte.<br />

Para sorte dos apressados trabalhadores que regressavam exaustos do<br />

serviço naquela segunda-feira, ninguém o desafiou. Ninguém nem mesmo<br />

o notou. Desse modo, ele chegou em casa com o revólver intacto e<br />

com as cinco balas no tambor. Uma das balas, a mais próxima da agulha<br />

do cão, sistematicamente, era retirada pelo avô, para prevenir acidentes,<br />

segundo este dizia.<br />

O Smith-Wesson foi cuidadosamente guardado dentro de um sapato,<br />

quase sem uso, calçado apenas nos casamentos e grandes aniversários. A<br />

caixa foi fechada e escondida dentro da gaveta do guarda-roupas. Antes<br />

de dormir, com o quarto bem trancado, tornou a adorar a arma. Passou<br />

as mãos com carinho sobre seu cano curto, alisou-o, sentiu e deliciouse<br />

com sua textura dura, lisa e fria, com o polimento que refletia a luz.<br />

Tudo nele era belo, tudo indicava poder e simplicidade, virtudes que ele<br />

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jamais possuíra, que sempre invejara. Antes de escondê-la entre folhas<br />

de papel almaço, rodou o tambor, colocando uma bala pronta para ser<br />

disparada. O novo embrulho foi guardado, com cuidado, na pasta escolar.<br />

Esperava com ansiedade a chegada do dia seguinte.<br />

Cantarolando a melodia “High Noon”, Lucinho caminhou sereno e<br />

seguro, corpo solto, ao meio-dia daquela tarde, até chegar à sala de aula.<br />

Sentia-se protegido pelo simbolismo da arma; imaginava ser respeitado<br />

pelos colegas e professoras, caso descobrissem sua força escondida, seu<br />

grande poder. Entrou na sala de cabeça erguida, como há muito não acontecia.<br />

Seus pequenos olhos brilhantes e sua boca fechada e contraída,<br />

davam-lhe a aparência de forte e destemido. Ele mostrava um ar arrogante,<br />

um olhar desafiador, a disposição para a grande batalha.<br />

Mas, sua grande e poderosa inimiga, distraída, ocupada com outros<br />

afazeres, verificava quais alunos não haviam respondido à chamada, a<br />

troca irregular de lugares sem sua ordem, a discussão entre Alfredo e<br />

Mário, por causa do empate do Cruzeiro e Atlético. D. Francisca mal o<br />

olhou, não percebeu sua presença, desconsiderou sua valentia. Tratouo<br />

como fazia todos os dias, nem mesmo se lembrou do episódio do dia<br />

anterior. E, assim, a professora iniciou a aula. Deu algumas explicações<br />

iniciais, dissertou sobre a proclamação da República, que seria comemorada<br />

na próxima semana.<br />

A sala estava como quase sempre, quente e abafada. Recebia em cheio o<br />

sol da tarde. Ela falava, falava, cansada, monótona. Alguns alunos dormitavam,<br />

outros conversavam e, poucos, ou nenhum a ouviam.<br />

Ele estava atento, esperava o momento propício para o início da luta.<br />

Quase mostrou a arma ao colega do lado, quando a professora foi ao<br />

quadro negro.<br />

Quando ia mostrar o troféu guardado, a professora pediu silêncio, aos<br />

gritos. Prosseguiu, pedindo a um aluno para vir à frente comentar o que<br />

ela havia explicado antes. Lucinho, apressado, levantou-se, queria ser<br />

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chamado. Era chegado o momento da desforra; pegaria a arma e darlhe-ia<br />

um tiro na boca. Espichou, o mais que pôde, o pescoço, levantou<br />

o braço, balançou-o no ar em direção à professora. Tudo em vão. Ela não<br />

o olhou. Ainda não foi desta vez a revanche esperada. Para sua decepção,<br />

apesar de todo o empenho e coragem, D. Francisca não o percebeu<br />

ou, de propósito, não o quis chamar. Ele voltou a se assentar.<br />

O aluno requisitado, aos berros, para repetir a lição, foi o magricela<br />

Domício Lana; órfão de pai, morava com a mãe e quatro irmãos num<br />

barracão da favela, a mais de um quilômetro da escola. Pernilongos<br />

famintos, nascidos e criados no esgoto ao lado de sua humilde moradia,<br />

alimentavam-se, diariamente, do seu sangue escasso e aguado.<br />

Ao ser chamado, Domício ocupava-se em coçar feridas redondas e malcheirosas,<br />

nos braços e nas pernas, que formavam pontos altos e crateras.<br />

Algumas cascas amarronzadas e escuras eram arrancadas por suas<br />

unhas grandes e pretas. Abertas, surgiam pequenos buracos vermelhos,<br />

cheios de um líquido leitoso-amarelado, mesclado com raias de sangue<br />

que escorria, sem pressa e se espalhavam por sobre a pele foveira.<br />

Ao se levantar, distraído com as coceiras, evitava pensar no suplício<br />

de ter que, diante dos colegas, mostrar a falta de conhecimentos e de<br />

memória. As perebas apareciam, também, entre seus cabelos curtos e<br />

rijos, que lhe davam a aparência de uma espiga de milho, cheia de grãos<br />

apodrecidos, o que lhe valia o apelido de “milho podre”.<br />

Lentamente, sem parar de se coçar, Domício caminhou até à frente da<br />

turma, com seu olhar de sonâmbulo. Os colegas o olhavam com asco.<br />

Ocasionalmente, ele abaixava o tronco e, maquinalmente, passava as<br />

pontas dos dedos e a palma das mãos no líquido que escorria para os<br />

pés, impedindo-o de entrar na velha botina de solas de pneu. Sem entender<br />

o que a professora dissera, pois não conseguia prestar atenção em<br />

nada, Domício foi grosseiramente repreendido e gozado por ela, como<br />

acontecera com Lucinho.<br />

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Ele, identificando-se com Domício, assistiu seu pavor diante da professora<br />

feroz. Lembrou, amargurado, o sofrimento na tarde anterior. Essa<br />

lembrança, aliada à segurança pela posse do revólver, deu-lhe coragem e<br />

ânimo. A raiva foi crescendo, enquanto assistia às agressões sofridas pelo<br />

fraco colega. Em dado momento, sua ira chegou ao auge. D. Francisca,<br />

muito vermelha, com os olhos muito abertos, que quase saíam das órbitas,<br />

começou a reclamar e a gesticular com seus braços grossos, cheios<br />

de cabelos pretos. Ela não se aproximava de Domício, pois demonstrava,<br />

claramente, nojo ao corpo e às roupas sujas do aluno:<br />

- Idiota! Não aprende nada! Fica aí com cara de bobo, parece que está<br />

sempre dormindo. Na sua casa não tem cama, não? Animada com o<br />

próprio xingamento, ela foi mais longe, ao vê-lo se abaixar para coçar<br />

as pernas e gritou: - Pare de coçar! Você precisa tomar banho, cortar e<br />

limpar as unhas. Está até fedendo!<br />

Foi nesse instante que Lucinho pulou da cadeira com o Smith-Wesson<br />

preso na mão direita. Correu em direção à professora, apontando-lhe<br />

a arma. Espantada, sem entender o que ocorria e sem perceber o que<br />

ele trazia nas mãos, a professora ordenou-lhe, aos gritos, que voltasse à<br />

carteira. Os colegas, despertados por aquela cena inesperada e única, assistiam<br />

animados ao espetáculo, visto apenas na televisão.<br />

Só depois de algum tempo, diante da visão do revólver, D. Francisca<br />

notou que a cena era real, que seu aluno falava sério e poderia matá-la<br />

ali mesmo, caso reagisse. Ele, transformado, falando firme, aos gritos,<br />

obrigou D. Francisca a se assentar atrás de sua mesa de trabalho, num<br />

dos cantos da sala. A partir daquele momento quem dava ordens era ele.<br />

Ninguém tomou conhecimento de Domício que, paralisado e indiferente,<br />

continuava coçando as feridas.<br />

Havia ódio no olhar e tom de voz de Ele.<br />

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- Grite mais comigo! Grite com ele! A senhora é corajosa? Pois grite!<br />

Vou acabar com sua voz, agora! Abra a boca, vou dar um tiro, dentro<br />

da sua boca suja! Abra!, ordenou. D. Francisca tremia atrás da mesinha.<br />

Automaticamente, abriu a boca, obedecendo às ordens do aluno, sem<br />

saber o que fazer.<br />

- Não! Não! Pelo amor de Deus, gemeu a professora, prestes a desmaiar.<br />

O suor descia pelo seu rosto pálido e redondo.<br />

- Reze! Reze o “Pai-Nosso”, para depois morrer, gritava transtornado.<br />

Segurando a arma com as duas mãos, ele apontava para a face da professora.<br />

A sala de aula se transformou num teatro vivo. Alguns alunos assistiam<br />

animados à cena; outros olhavam apreensivos, os mais extrovertidos urravam,<br />

alegres com o espetáculo, que jamais seria esquecido. Uns poucos<br />

choravam, mas todos deliciavam-se com o pavor da mestra todo-poderosa,<br />

a disciplinadora exemplar, temida e forte. Ela tremia, gaguejava,<br />

tornava-se fraca diante de um aluno franzino, que antes, como eles, não<br />

amedrontava ninguém.<br />

Uma aluna, que dizia ser parente da professora começou a soluçar, outra,<br />

que se assentava perto da porta de saída, saiu sem ser vista pelo grande<br />

corredor da escola, gritando:<br />

- Socorro! Socorro! Lucinho quer matar D. Francisca! Ele está matando<br />

a professora.<br />

De todos os lados chegaram professores, serventes e alunos. Apreensivos,<br />

observavam o espetáculo raro: o franzino aluno, de arma em<br />

punho, obrigando a professora a rezar, diversas vezes, o “Pai-Nosso”. D.<br />

Francisca gaguejava. E errava. Ele, imitando os métodos da professora,<br />

ordenava-lhe, aos gritos, repetir a oração.<br />

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- Reze! A senhora errou! Outra vez... Vamos. Continue: “Pai-Nosso...<br />

Isto...”<br />

As aulas foram interrompidas. Os professores temerosos, percebendo a<br />

fortaleza do fraco aluno, acharam prudente não se aproximar demasiadamente.<br />

Lucinho continuava a gritar forte. Tornou-se mais animado e<br />

confiante diante do medo de todos. Não permitia que ninguém chegasse<br />

perto, sob pena de matar a professora, ali mesmo, caso alguém tentasse<br />

tomar a arma. O padre da escola foi chamado. Nada conseguiu. Era um<br />

velho alquebrado e cansado de tudo; esperava, rezando, o sono eterno...<br />

Veio a diretora, orgulhosa de sua habilidade, a simpática enfermeira, que<br />

o tratara tão bem no dia anterior. Todos, com gentileza e doçura, tentaram<br />

interromper aquela cena desesperadora e incerta. Mais um fracasso.<br />

Mas a maioria dos espectadores, interiormente, deliciavam-se com a<br />

cena: D. Francisca, a professora temida por todos, alunos e colegas, se<br />

tornara humilde e fraca. Ela nunca estivera tão meiga. Ao contrário do<br />

modo habitual, seu tom de voz se tornara suave e melódico ao falar com<br />

o algoz. As palavras, que usava diante daquele menino, transitoriamente<br />

corajoso, eram diferentes das usadas antes.<br />

- Meu filhinho, não faça isso. Sua tia gosta tanto de você!... Entregue essa<br />

arma. Ninguém vai lhe fazer mal. Eu juro por Deus, que está no céu. Eu<br />

sempre gostei do seu modo. Você é um menino muito bonzinho. Vou<br />

fazer de você o melhor aluno da sala. Sua tia não vai te punir. Pode estar<br />

certo disso. Todos estão aqui como testemunhas. Falo a verdade, meu<br />

amor.<br />

Nesse momento, ela chorou.<br />

Ele confirmava suas suspeitas: “Como as pessoas mudam, conforme as<br />

circunstâncias. Hoje, sou diferente de ontem, ela também é outra. Transformou-se<br />

numa outra mulher, mais simpática... Ela é agora uma pessoa<br />

de quem eu poderia gostar, caso continuasse assim. Hoje, sou eu o mau.<br />

Ontem, ela. Posso me mudar de bom a mau, bem como ao contrário.<br />

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Qual é a D. Francisca verdadeira? Existiriam outras tias e outros Lucinhos,<br />

diante de outras situações? Muitos me chamam de medroso. Como<br />

eles iriam me chamar agora: corajoso e valente? Possivelmente. Mas,<br />

onde está o Lucinho covarde e medroso? Sumiu? Por quanto tempo?”<br />

Apesar de continuar atento, ele demonstrava os primeiros sinais físicos<br />

de cansaço: seu Smith-Wesson ora era posto na mão direita, ora na<br />

esquerda. Descansava uma perna, depois a outra. Num certo momento<br />

chegou a bocejar diante de todos. Duvidava. Enquanto ameaçava a<br />

professora, refletia e buscava soluções para problemas que lhe invadiam<br />

a mente, para os quais não tinha respostas. Mas sonhava tê-las, um dia...<br />

“O que estou fazendo aqui?” Começava a se sentir mal, no novo papel de<br />

corajoso e valente.<br />

As tentativas para acalmá-lo foram inúteis. Impotente, a direção da<br />

escola chamou a Polícia e o Corpo de Bombeiros, que lá chegaram,<br />

em poucos minutos. Novos pedidos para que ele largasse a arma. Sem<br />

resposta. Os policiais, acostumados a viver situações bem mais perigosas<br />

do que aquela, estavam calmos e esperavam, sem pressa, uma solução<br />

fácil. Ele continuava dando ordens à professora, mas essas eram agora<br />

proferidas num tom de voz mais baixo, devagar e cansado. Alguns policiais,<br />

e mesmo professores, não conseguiam conter o riso diante da cena:<br />

uma imensa mulher ajoelhada diante da mesa, suando e pálida, rezando<br />

sem parar, implorando misericórdia ao pequeno e magro aluno. Este lhe<br />

dava ordens com a voz fina, imitando o modo tradicional das professoras<br />

primárias, domesticadoras de alunos bravios.<br />

Exausto, de repente, ele, desgostoso com aquele ingrato papel, abaixou<br />

o revólver, tirou as balas, virou as costas para D. Francisca e foi-se assentar,<br />

como se nada tivesse acontecido. Ela, não se sabe por que, nesse<br />

momento, tombou, como um saco de areia pesado e, rapidamente, foi<br />

conduzida ao hospital, que ficava perto. Os policiais apreenderam o<br />

revólver, informando à diretora que o proprietário deveria buscá-lo na<br />

delegacia. Despediram-se tranqüilos e sorridentes, fazendo comentários<br />

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entre eles. Os alunos foram saindo; as aulas, naquele dia, foram interrompidas<br />

mais cedo. Alguns estavam aliviados pelo término feliz do<br />

incidente, entretanto, outros ficaram decepcionados pois o esperado e<br />

desejado não aconteceu: nem morte, nem prisão.<br />

Lucinho foi conduzido à sala da diretora onde teve uma longa conversa.<br />

Nesse dia, ela se mostrou mais cuidadosa e gentil. Poucos minutos depois,<br />

Rosária chegou para buscar o filho. Ali mesmo, na presença da diretora,<br />

o repreendeu asperamente, imaginando que era isso o que todos<br />

esperavam de uma boa mãe, mostrar como se dá ordens ao filho rebelde.<br />

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Depois do Choque, a Consulta<br />

No dia seguinte à briga, Rosária conversou com a orientadora educacional,<br />

que sugeriu, após considerações e explicações minuciosas, que<br />

ele fosse levado a uma psicóloga.<br />

Não foi fácil convencê-lo a ir e, muito menos, conduzi-lo ao consultório.<br />

Muitos pedidos e súplicas foram feitos e presentes oferecidos. Também<br />

não faltaram, por parte da mãe, ameaças de espancamento e castigos.<br />

Dias depois, contrariado, ele foi levado ao consultório da Dra. Branca<br />

Imaculada dos Santos, prima da orientadora e psicóloga, com a especialidade<br />

de cuidar de crianças portadoras de “Distúrbios Escolares”.<br />

Lucinho, a partir dessa primeira consulta psicológica, manteve ligações<br />

estreitas com esses profissionais, para o resto da vida.<br />

O consultório, localizado na zona sul da cidade, próximo à escola, era<br />

pobremente mobiliado. Na sala de espera, um velho quadro mostrava<br />

uma pintura de um grande cavalo branco. O animal, sem arreios, era<br />

cavalgado por um menino de olhos verdes, cabelos grandes, louros e<br />

anelados. A criança descalça e com um saiote branco lembrava os belos<br />

anjos brancos, pintados nas igrejas católicas. No centro da sala, uma<br />

mesinha escura, empoeirada, num canto; dentro de um cesto, revistas<br />

infantis velhas e rasgadas. Os clientes esperavam a consulta assentados<br />

em dois bancos de madeira, sem almofadas.<br />

Uma atendente magra, de olhar distante e voz rouca, instalada numa<br />

cadeira de braços, fazia crochê, mexendo unicamente com as pontas dos<br />

dedos. Parecia não se importar com o que acontecia ao seu redor. Por<br />

cima do seu enorme nariz de papagaio, apoiavam-se minúsculo óculos<br />

de aros dourados, estando um deles, amassado e esverdeado.<br />

Depois de cumprimentar Rosária, com um beijinho num lado do rosto,<br />

sempre segurando o crochê com uma das mãos, convidou-a a se assen-<br />

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tar. Após instantes de silêncio, a atendente mudou a fisionomia, alterou<br />

seu tom de voz inicial e, num sorriso forçado, recomeçou seu crochê,<br />

ao mesmo tempo em que se dirigia a Lucinho:<br />

- Como vai meu menino bonito? Está com frio? Vou fazer uma blusa de<br />

crochê para você.<br />

Ele nada respondeu. Olhava para a porta, por onde entrara, imaginando<br />

a hora de ficar livre daquele tormento. A senhora levantou-se e aproximou-se<br />

dele, quase tocando-o com as pontas dos dedos pontiagudos e<br />

enrrugados:<br />

- Como está o papai? Ele não quis vir?<br />

Ele continuou imóvel, embora sua mãe o tivesse cutucado, forçando<br />

uma resposta. Diante da negação do paciente em conversar, a cansada<br />

atendente, preguiçosamente, passou a mão que segurava o novelo sobre<br />

seus cabelos. Ele se sentiu agredido. Olhou com ódio para ela que, desanimada<br />

com o insucesso, dirigiu-se a ele, pela última vez. Agora, não<br />

mais usava o tom de voz melodioso e lento:<br />

- Daqui a pouco, a doutora irá atendê-lo. Não faça essa cara fechada,<br />

senão você fica feio.<br />

Lucinho, retrucou com mau-humor:<br />

- Você fica feia mesmo com a cara aberta.<br />

A atendente deu um suspiro de crítica e voltou para seu canto. Neste<br />

instante, saíram do consultório uma senhora e uma menina de olhos<br />

tristes e vermelhos. Ele a olhou amedrontado. Imaginou o que aconteceria:<br />

“Será que vim aqui para ser castigado pela moça lá de dentro? Quem<br />

contou a ela que eu ia matar a D. Francisca?”<br />

Ao entrar na sala com a mãe, Lucinho se viu diante de uma jovem, alta,<br />

até bonita. A psicóloga, tendo o semblante fechado, representava seu<br />

papel de profissional. Quase sem busto, tinha os cabelos marrom-escuro,<br />

presos por trás, formando um coque que quase não se via.<br />

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Ela, rapidamente, se dirigiu a eles usando poucas palavras. Com uma<br />

voz estridente e fanhosa, ordenou-lhes que se assentassem. Parecia estar<br />

apressada e desejosa de encerrar a consulta, o mais depressa possível.<br />

Ao iniciar a consulta, o telefone tocou insistentemente e ela o atendeu,<br />

sem pressa e de má vontade. Como por encantamento, sua fisionomia<br />

fechada e séria se transformou: sorriu e brincou com seu interlocutor,<br />

ficando mais bonita e suave. Após trocas de amabilidades, por alguns<br />

minutos, marcou um encontro para aquela noite e despediu-se, com um<br />

beijo, imitando-o com seus lábios finos.<br />

Durante a conversa telefônica, Rosária e Lucinho permaneceram assentados,<br />

olhando as paredes por onde se espalhavam desenhos coloridos<br />

manchados do Pato Donald e de Mickey.<br />

Branca demonstrou afetividade e ternura naquela conversa e isso agradou<br />

a ele, que há muito não via uma conduta parecida. Ao retornar ao<br />

trabalho, a psicóloga, amavelmente, pediu desculpas pela interrupção da<br />

consulta, ainda nem começada. Como ainda se encontrava contaminada<br />

pela conversa telefônica, ela continuou a usar o tom de voz, a mímica e<br />

até algumas palavras usadas com o amigo. Entretanto, logo depois, percebeu<br />

o erro: estava tratando Rosária não como mãe de cliente, mas sim<br />

como o fazia com o namorado. Notou que estava exibindo um carinho<br />

exagerado, diferente do habitual. Apressadamente se recompôs e voltou<br />

a ser a psicóloga dura, pouco ou nada simpática, áspera, usando o antigo<br />

tom de voz, os velhos e conhecidos jargãos profissionais. Foi desse modo<br />

que se dirigiu a ele convidando-o a se assentar. Ele, que se levantara,<br />

fingia estar olhando as gravuras, mas, na verdade, preparava-se para fugir<br />

dali. Ela não fez um convite, falando duro e forte, deu uma ordem a<br />

Rosária para que ela saísse. Atenderia Lucinho sem sua presença. Posteriormente<br />

a chamaria.<br />

Rosária tentou, antes de sair, contar fatos acerca do filho: os dias difíceis<br />

que ela passara antes de ele nascer; uma forte gripe que ele teve aos dois<br />

meses, as diversas diarréias, tombos, o medo de baratas, um engasgo, a<br />

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mordida... Mas seu esforço foi inútil. A psicóloga estava certa de sua estratégia<br />

e não quis saber de nenhuma conversa. Como Rosária demorou<br />

a sair, ela se levantou e abriu a porta totalmente, indicando-lhe a sala de<br />

espera. Agora, usando um tom de voz mais alto, disse-lhe, claramente:<br />

- Desejo ouvir primeiro ele, apontando para Lucinho. Depois..., se precisar,<br />

eu a chamarei. Gosto de fazer o diagnóstico do caso com minha<br />

própria cabeça e não com a dos outros. A senhora entendeu? Com<br />

licença.<br />

Segurando a maçaneta da porta, fechou a cara e esperou que Rosária<br />

saísse. Sem outra alternativa, frustrada por nada poder falar e desabafar,<br />

ela saiu resmungando e pensando que nunca mais voltaria ali.<br />

A consulta começou como um inquérito:<br />

- Meu filho... O que veio fazer aqui?<br />

- Não sou seu filho...<br />

- Sim. Então, vou repetir a pergunta:- Por que sua mãe o trouxe aqui?<br />

- Não sei...Por que a senhora me chamou de filho?<br />

- Por nada, respondeu, irritada. - Sei que você não é meu filho. Eu nem<br />

sou casada... Nesse momento, ela se lembrou do telefonema e mudou,<br />

por segundos, o olhar e a voz: - Isso é um modo de dizer...Sou psicóloga...<br />

trato de crianças. Gosto muito dos meninos, retornando ao tom<br />

anterior de profissional.<br />

- Não gosto de você. Você é feia...<br />

- Está achando? Eu te acho bonito...respondeu, imaginando frustrar o<br />

menino, não o agredindo abertamente e sim, ironizando...<br />

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- Eu sei disso...O que é psicóloga?<br />

- A psicóloga é uma pessoa que trata de pessoas como você. Ajuda-as<br />

...Entendeu?<br />

- Não!<br />

- Por exemplo: se o menino briga na escola, se não estuda, se desobedece...<br />

- Eu não preciso de ajuda. Você precisa?<br />

- Sim, às vezes. Todos nós precisamos, certas horas...<br />

- Eu quero ir embora...É a ajuda de que preciso. Tenho que ir à aula,<br />

daqui a pouco...<br />

- Ainda é cedo. Você, hoje, não precisa ir à aula. Vou te dar um atestado<br />

para mostrar à professora.<br />

- Não gosto de D. Francisca. Quero sair de lá.<br />

- Por que?<br />

- Não gosto de gente mandona, de cara fechada, que xinga os outros.<br />

- Você tem razão. Eu, também, não. Ninguém gosta...<br />

- Então, por que você não ri? Sua cara é fechada.<br />

- Eu? pergunta espantada. Você acha que sou assim?<br />

- Sim. Você fecha a boca, como D. Francisca.<br />

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- Você brigou com ela, não foi?<br />

- Briguei, não! Queria matá-la! Quem te contou?<br />

- Minha prima. Ela trabalha na escola.<br />

A consulta continuou nesse pé: Lucinho, desejando ir embora. Detestava<br />

conversar com desconhecidos, com pessoas que fingiam ser simpáticas<br />

com ele. Não foi difícil perceber que a Dra. Branca se mostrava aborrecida.<br />

Dava a impressão de querer terminar - igual a ele - a consulta.<br />

Na realidade, a mente da psicóloga, estava invadida por pensamentos e<br />

imagens mais agradáveis do que os provocados pela consulta: o encontro<br />

que teria naquela noite e que prometia ser mais divertido.<br />

Com esses pensamentos, fazia os planos para a noite, para o fim de<br />

semana e para as próximas férias. Diante daquele menino pirracento,<br />

chato, que a obrigava a prestar atenção à conversa e a interrompia com<br />

perguntas ou críticas, enquanto ela ficava impossibilitada de pensar em<br />

Augusto.<br />

Desanimada, tentou outras técnicas. Forneceu-lhe alguns brinquedos,<br />

folhas com desenhos para copiar, adotou medidas e escalas da personalidade,<br />

dezenas de perguntas. Tudo sem resultado. As respostas do<br />

menino eram evasivas. Demonstrava raiva por estar ali fazendo coisas<br />

que ele não gostava de fazer, sem sentido para ele, diante de uma mulher<br />

estranha, fechado numa sala, sem saber para quê. O interrogatório, para<br />

sofrimento de ambos, continuava:<br />

- Pegue este lápis: faça um desenho de sua família; coloque todos no<br />

desenho, entendeu?<br />

Ele, de má vontade, fez uns rabiscos, sem nexo, de um lado para outro<br />

da folha. Depois, desenhou uma figura, tomando quase toda a extensão<br />

da folha. Dentro dela, desenhou seres pequenos, disformes, sem rosto.<br />

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Branca o olhava, mas estava longe. Enxergava Augusto...belo, elegante<br />

em tudo...Comparava, com pesar, as diferenças entre o cliente e o namorado.<br />

Estava longe, só com muito custo voltou a olhar o desenho.<br />

- Quem é esta pessoa aqui? perguntou Dra. Branca indicando a figura<br />

grande que tomava toda a folha de papel.<br />

- Ela, apontou para a porta por onde Rosária saíra...Mãe... Eu não sei<br />

desenhar, acrescentou Lucinho.<br />

- E onde está seu pai e seus irmãos?<br />

- Aqui, apontou, indicando os riscos partidos, incrustados na figura<br />

maior.<br />

- Ótimo! quase gritou de alegria. Havia feito o diagnóstico: “Era isso;<br />

bem que notei; a mãe tomava conta de todos; dominava a família que<br />

vivia presa a ela”. Animada com a descoberta fantástica, que clareava o<br />

enigma, decidiu ir além: mostrar ao menino dez manchas de tinta, algumas<br />

em preto e branco, outras, coloridas.<br />

- Agora, vou-lhe mostrar estas figuras, uma a uma. Você vai examinálas...Poderá<br />

virá-las para um lado ou outro, de cabeça para baixo, do<br />

modo que você desejar. Após olhá-las, deverá me falar o que você está<br />

vendo em cada uma. Certo? Poderá dar uma ou várias respostas. Entendeu?<br />

As figuras foram mostradas; ele falava o que via.<br />

- Isto é sangue! Aqui, um pinto; outro aqui. Bonecos dançando em volta<br />

de um caldeirão; homens brigando; um coração, um osso, uma bunda de<br />

mulher, nuvens, bichinhos voando...<br />

Ele, animado com o que via, dava diversas respostas, dezenas delas,<br />

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divertia-se com as figuras e, envaidecido, mostrava à psicóloga que era<br />

capaz de ver muitas coisas.<br />

Nova alegria para Dra. Branca. Ele viu, em muitas delas, cores puras,<br />

sem forma, órgãos sexuais diversos, sangue, pouco movimento nas<br />

figuras. ”O diagnóstico está feito”, pensou, satisfeita. Preparava-se para<br />

terminar a consulta e lembrou do encontro que teria, mais divertido do<br />

que seu trabalho.<br />

Rosária, convidada para entrar, tentou, ansiosamente, explicar a história<br />

de Ele. Novamente, quem tomou a palavra, impedindo-a de falar, foi a<br />

psicóloga que, disposta a terminar a consulta, foi dizendo, concentrada<br />

mais no namorado do que no cliente:<br />

- Esse menino precisa de tratamento...<br />

- Tratamento? Que espécie de tratamento?<br />

- Ludoterapia. Ele virá aqui duas vezes por semana - os dois dias que ela<br />

atendia...- Eu vou ajudá-lo. Preciso, também, ter consultas com cada um<br />

de vocês: você e seu marido, em separado, depois, juntos.<br />

Nesse momento, Branca imaginou conseguir um cliente por algum tempo.<br />

Seria ótimo para aumentar seus rendimentos. Caso se casasse, iria<br />

gastar mais e, além disso, ficaria umas semanas sem trabalhar. Precisava<br />

ganhar um pouco mais, para gastar no futuro.<br />

- Nós dois? Adamastor não tem tempo...Eu até que tenho... respondeu<br />

Rosária, mostrando um certo interesse. Assim, poderia encher seu<br />

tempo vazio.<br />

- Seu marido precisa vir, senão, não dá certo. O menino - falava diante<br />

de Ele, que se mostrava indiferente - não sendo tratado corretamente,<br />

pode se tornar um louco! Um esquizofrênico! falou, acentuando bem o<br />

“louco” e “esquizofrênico”, para impressionar Rosária e forçá-la a trazer<br />

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os clientes em potencial.<br />

- Esquizofrenia? Eu tenho um primo que tem isso! Está internado há<br />

mais de vinte anos, está um traste; era um rapaz bonito, inteligente,<br />

forte... Dá dó...<br />

Prontamente, a psicóloga interrompeu Rosária, ela não desejava ouvir<br />

suas idéias.<br />

- Sim. Isso é hereditário. Mas com psicoterapia, ludoterapia, terapia floral,<br />

tudo muda. Vai dar certo, afirmou.<br />

- Eu, uma vez tratei com cristais...Foi muito bom. Deu resultado. Ficava<br />

sempre gripada. Agora...<br />

- Eu... eu... demorando um pouco a responder: - Trabalho também com<br />

cristais, cartas e tarô. Ajuda mais ainda. Fui analisada por uma sumidade,<br />

fiz curso de Neurolingüística, Teoria dos Jogos, Rorschach, Gestalt<br />

e Análise dos sonhos.<br />

- É mesmo? Ótimo! Sempre quis encontrar uma pessoa com esses conhecimentos...Gosto<br />

de interpretar meus sonhos através de almanaques...<br />

Não igual à senhora, é claro... que interpreta como profissional... A<br />

senhora é bem conhecida. Sonhei, essa noite com jacaré; eu estava numa<br />

lagoa...<br />

- Conte-me depois, interrompeu, bruscamente, já segura nesse momento<br />

de que Rosária aceitara os tratamentos propostos.<br />

- Que bom estar bem amparada. Eu gosto muito de astrologia... A senhora<br />

conhece essa ciência?<br />

- Claro, como não? Conheço também... É uma ciência antiga e importante,<br />

como Iridologia. Eu já fiz cursos acerca disso também... Um bom<br />

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psicólogo tem que se manter bem informado sobre tudo que acontece<br />

no mundo; saber dominar todas essas ciências modernas, maravilhosas,<br />

principalmente as ocultas...Se assim não fizer, estará perdido. A cada<br />

minuto, a Psicologia muda. Temos que ir aos congressos, fazer cursos e<br />

mais cursos, acerca de tudo, finalizou.<br />

Assim, a Dra. Branca Imaculada dos Santos se entusiasmou com as<br />

próprias palavras, principalmente, com a aceitação de Rosária. Mas,<br />

lembrando do encontro, queria encerrar a consulta, dando um diagnóstico<br />

final :<br />

- Seu filho tem Carência Afetiva. Está preso à senhora. Os testes mostraram<br />

isso, com clareza. E os testes não mentem, minha senhora. Ele<br />

tem desejos, inconscientes é claro, de matar o próprio pai para possuí-la.<br />

- O quê? Matar o pai? Para possuir-me? Que horror! comentou, tentando<br />

fingir estar espantada.<br />

- Sim, já tive clientes que assim o fizeram. A literatura psicológica<br />

mostra isso a toda hora. Muitas teorias acerca disso foram escritas. Ele é<br />

um caso típico. Entretanto, como pai é pai ... a senhora compreende, não<br />

é? Ele reprime... Explicando melhor, seu superego, a auto-censura que<br />

todos nós possuímos bloqueia esse impulso, essa pulsão, como a chamamos.<br />

Impede que seu desejo saia e se torne realidade, por sinal, terrível<br />

e catastrófico. Nosso organismo é como uma caldeira. A Física moderna<br />

explica isso muito bem: não adianta a gente tentar segurar a pressão da<br />

caldeira. Ela vai aumentando. E o que acontece? Estoura! Bum!<br />

Rosária se assustou com o barulho produzido pela da boca da psicóloga.<br />

- Explode, com certeza. Já vi um botijão de gás explodir. Foi, um dia, lá<br />

no sítio que...tentou contar Rosária.<br />

- Certo, a senhora é inteligente e entendeu, continuou a psicóloga. É pre-<br />

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ciso criar uma válvula de escape; deixar as energias construtivas fluírem;<br />

dar às boas, direções adequadas, já às más, essas devem ser drenadas,<br />

descarregadas ou sublimadas para funções benéficas. Assim, em lugar<br />

de cortar para matar, cortar para salvar, como fazem os cirurgiões.<br />

Eles são todos sádicos, querem ferir os outros, mas sublimam e tratam<br />

as pessoas, usando as mesmas pulsões que eram negativas. De maus,<br />

transformam-se em anjos; todos nós os elogiamos, em vez de execrá-los.<br />

Vou fazer o mesmo com seu perigoso filho. Certas energias, as que não<br />

saíram, são de má qualidade, danosas para o organismo e sociedade....<br />

Reprimida, criada a tensão, pode detonar a qualquer hora. Bumba!<br />

Nesse momento, ela fez um barulho maior ainda com a boca, assustando<br />

ele que ouvia tudo, sem nada entender. Ele, durante a conversa, só<br />

prestava atenção aos movimentos da boca da psicóloga e aos minúsculos<br />

pingos de saliva que saíam em profusão, espalhavam-se, dançavam no<br />

ar iluminados pela fresta da janela onde entrava a luz do sol. Diante do<br />

barulho, ele se aproximou de Rosária, segurando em sua saia. Branca,<br />

indiferente, animada com a idéia do encontro e do cliente que teria,<br />

continuou falando:<br />

- Seu filho está pronto para explodir, se não arrumarmos um meio de<br />

drenar a enorme energia reprimida, se escapar...pronto! É o que ocorre<br />

com a panela de pressão, com o botijão de gás: se o vapor não escapa<br />

eles explodem. Entendeu?<br />

- Sim, tenho notado isso. Outro dia, ele quase matou a professora...<br />

- Impulsionado pela alta pressão, ele irá descarregar a agressão na prima,<br />

na professora ou em você.<br />

- Deus me livre! Não! Em mim?<br />

- Como lhe falei, ele precisa urgentemente de tratamento.<br />

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Branca, dirigindo seu olhar para Lucinho, que assistia a tudo, em pé na<br />

sala, complementou, examinando detidamente sua magreza e seu tórax<br />

encurvado:<br />

- Ele precisa, também - por que não? - de exercícios físicos e de comida,<br />

de muita comida. Em resumo, deverá vir ao consultório duas vezes por<br />

semana... A terapia, para você e seu marido, vou marcar depois... para<br />

os dois. Então, resolveremos como o tratamento será feito. Dê a ele isso,<br />

florais. Tenho muitos; são ótimos para a saúde.<br />

- Posso usar também? Já que tem sobrando...<br />

- Claro. Fará bem para a senhora. É fundamental resgatar a fé na natureza<br />

e aliá-la, com sabedoria, à ciência. Precisamos respeitar a heterogeneidade<br />

do universo, sua ordem, a ação dos astros sobre nós, da<br />

Lua, tudo... Tudo tem uma enorme importância; tudo age em tudo. É<br />

a Holística. O difícil é a compreensão e interpretação do todo. Poucos<br />

conseguem isso...Esse é o papel da ciência moderna: explicar e dominar<br />

a complexidade. Entendeu?<br />

- Sim, perfeitamente. Eu já ouvi falar nisso....Assisto vários programas de<br />

TV que ensinam essas coisas fantásticas. O que seria de nós, viver sem<br />

essas informações preciosas. Seríamos um bando de ignorantes, de idiotas,<br />

como era o homem primitivo. Uma amiga tomou Florais de Bach<br />

para suas cólicas menstruais. Nunca mais teve uma dor! Foi supimpa.<br />

- Claro. Os florais, bem receitados, servem para quase tudo. Mas, cuidado!<br />

Tem que saber usar.<br />

- Gostei da senhora. É muito inteligente. Compreende as coisas, rapidamente.<br />

Além do mais, é interessada nos conhecimentos modernos.<br />

Está atualizada... Coisa difícil, hoje em dia. Detesto gente atrasada, gente<br />

burra e antiquada. Que bom poder ter em nossa cidade uma profissional<br />

do seu gabarito...é um privilégio imperdível. Continue assim, precisamos<br />

de você, termina Rosária.<br />

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- Oh, nada. Faço, modestamente, minha parte, me esforço...Não tenho<br />

esse conhecimento todo... completou, não tão convencida da possível<br />

cura, como sua cliente acreditava. - Marque com a secretária as próximas<br />

consultas.<br />

- Com aquela velhinha encurvada lá de fora?<br />

- Como? Ah... Sim... A velhinha é minha mãe.<br />

- Desculpe, não queria criticar. Ela é muito simpática, faz um crochê tão<br />

bonito! Me mostrou uma blusa que está fazendo...por sinal linda, muito<br />

bonita...<br />

Rosária saiu da consulta confiante e animada. Mudou a impressão negativa<br />

inicial acerca da psicóloga. Sem dúvida, tratava-se de uma profissional<br />

experimentada, com grande conhecimento e sabedoria, capaz de<br />

ajudar Lucinho.<br />

Examinei as anotações da Dra. Branca Imaculada: a primeira e mais<br />

duas consultas. Acontece que essa profissional, após iniciar o namoro<br />

com seu colega, ficou grávida, parando de trabalhar como psicóloga. As<br />

fichas dos poucos clientes que teve nos dois anos em que clinicou foram<br />

guardadas como relíquias e emprestadas a mim para que eu as copiasse.<br />

Dessas fichas, anotei :<br />

“Criança de oito anos incompletos, tímida, agressiva, isolada, desafiadora,<br />

carente, tensa; aprisionada nos tênues limites das fases oral e anal.<br />

Apresenta um Superego permissivo. Conforme os ensinamentos de<br />

Piaget e Bowlby, assimilou, principalmente, seres humanos cruéis, o que<br />

a levou a formar uma imagem distorcida do mundo e uma auto-estima<br />

baixa. Percebe o mundo como perigoso e ameaçador. Está constantemente<br />

roendo unhas. Dominada por mãe possessiva e pai fraco, passivoagressivo.<br />

De Áries, apresenta facilidade para fluir de um lado para<br />

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o outro. Entretanto, devido à ambivalência de sentimentos, está constantemente<br />

oscilando, dominado pelos outros. Como todo e qualquer<br />

egodistônico, o paciente necessita usar, com freqüência, cristais por todo<br />

o corpo, iniciando pelos pés. Com isso, suas energias dissipativas serão<br />

canalizadas para fins mais nobres. Isso ajuda-lo-á a se recompor e a se<br />

reestruturar. As cartas mostraram caminhos escuros e nebulosos, indicando<br />

grandes sofrimentos, no futuro, relacionados, principalmente,<br />

a pessoa da família e, atualmente, a amigos. O elemento feminino se<br />

encontra pouco elaborado em sua consciência machista. Iniciar análises<br />

lacaniana para simbolismo das palavras e junguiana para conscientizar<br />

os arquétipos. Não esquecer de receitar Florais de Bach, escolher, mais<br />

tarde.”<br />

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Paixões e Desencantos<br />

Para agüentar o gênio incerto e desastrado de Rosária, as longas e<br />

pesadas noites, carregadas de sentimentos de fracasso, os fins de semana<br />

que pareciam nunca terminar, Dr. Adamastor encontrou um remédio<br />

para todos esses males: tomar algumas cervejas, fumar seus cigarros e,<br />

preguiçosamente, olhar a fumaça subir em círculos, formados por seus<br />

lábios apertados.<br />

Rosária não gostava de beber mas, em compensação, fumava um cigarro<br />

atrás do outro.<br />

Dr. Adamastor sempre teve dificuldades de lidar com pessoas, principalmente,<br />

com as mulheres. Aliado à falta de preparo, ele encontrou uma<br />

mulher difícil de conviver. A princípio tentou dar ordens a ela, como<br />

dava aos empregados, mas estas jamais foram obedecidas. Ela em vez<br />

de obedecê-lo, o enfrentou com mais e mais agressividade. Pediu ajuda<br />

a amigos e familiares; levou-a a consultas psiquiátricas: nada deu certo.<br />

Ele não aprendeu com a experiência. Depois de inúmeras tentativas<br />

sem resultado, desistiu de domá-la e desistiu também de amá-la. Como<br />

estratégia, afastou-se mentalmente da mulher, apesar de continuar a<br />

viver junto dela, dormindo, muitas vezes, na mesma cama. Uma vez<br />

mais velho, como a energia e a coragem diminuíram, ficou mais difícil<br />

desvencilhar-se da esposa. Sabia que nada mais havia entre os dois e que,<br />

há muito, ela estava morta para ele. Tinha apenas lembranças, nebulosas<br />

por sinal, de que um dia ele a amara.<br />

Como era doloroso e difícil recordar essas vivências!<br />

Como estratégia, passou a conviver com Rosária, tratando-a como se ela<br />

fosse constantemente uma mulher louca, irresponsável. Só assim podia<br />

tolerar seus atos, sem se importar. Então, tudo que ela fazia era visto<br />

com naturalidade - fazia parte de sua alma doente e diferente. Devia ser<br />

respeitada por isso. Enquanto sobrevivia ele esperava sua própria morte<br />

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ou a dela - isso pouco importava. Jamais pensou em matá-la, pois sua<br />

religião, educação e formação moral não permitiam a ele nem imaginar<br />

tal ação.<br />

No começo de cada noite, com dificuldade e sofrimento, ele fechava seu<br />

escritório e voltava para casa. No trabalho conseguia descansar mais<br />

e assim, quanto mais ficava fora de casa, sem se lembrar que deveria<br />

retornar, melhor. Em casa sentia-se terrivelmente só. Distraía, como<br />

observador, olhando Rosária caminhar de um lado ao outro da casa,<br />

discutir e dar ordens, brigar, brigar com todos. Mas ao mesmo tempo,<br />

imaginava como deveria ser bom ter alguém para amar; uma pessoa que<br />

ele pudesse ajudar a crescer; participar de seus sonhos e ajudar a alcançá-los.<br />

Não havia mais nada disso; os dois moravam juntos mas estavam,<br />

certamente, isolados.<br />

Na família, todos evitavam provocá-la e receber dela os palavrões<br />

freqüentes; assistir às suas crises de violência e às gritarias histéricas.<br />

Apenas a filha, Roberta, a enfrentava, ocasionalmente. Desde criança,<br />

ela ouviu sua mãe, milhares de vezes, dizer que teria sido muito melhor<br />

se ela não tivesse nascido. Durante as crises, as reclamações e acusações<br />

contra a filha aumentavam. Roberta, já acostumada, evitava escutar os<br />

xingamentos mas, às vezes, se envolvia e revidava as agressões, fazendo<br />

uso dos mesmos nomes que aprendera com ela.<br />

Os outros membros da família procuravam não participar das disputas<br />

entre as duas mulheres da casa. Sabiam que tal proeza era perigosa,<br />

como também as desavenças, que ninguém sabia exatamente porque<br />

aconteciam, não eram da conta de ninguém.<br />

Agostinho, que estava sempre lendo Filosofia, Literatura e Religião,<br />

preparando aulas, algumas vezes tentou manter a harmonia da família.<br />

Entretanto, há muito tempo, descobrira que nada conseguiria e, assim,<br />

desistiu de continuar seu trabalho de pacificador. Admirado pelo pai,<br />

devido à inteligência e juízo, não era respeitado pela mãe, para quem era<br />

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um fraco, um efeminado.<br />

- Você é um maricas, para não te dizer coisa pior. Nunca vi um homem<br />

como você. Não procura mulher, não briga. Tenho medo do quê você<br />

vai dar.<br />

Agostinho a entendia e perdoava, julgava que sua mãe era uma sofredora,<br />

uma mulher educada de maneira equivocada e que, infelizmente, não<br />

teve um marido forte e decidido para ajudá-la a crescer e, domá-la.<br />

Há muito Dr. Adamastor havia entregado seu poder para ela, que passou<br />

a dar ordens desordenadas.<br />

Durante sua vida, segundo anotações que me foram cedidas, Rosária<br />

teve alguns poucos contatos com profissionais da Psiquiatria; para tratamentos<br />

próprios e para dar seguimento aos tratamentos de Lucinho.<br />

Recebeu deles diagnósticos os mais variados: Personalidade Impulsiva,<br />

Histérica, Narcisista e “Borderline”; Transtorno Maníaco-Depressivo, e,<br />

ainda, Ciclotimia. Tudo indica que ela não seguia o tratamento indicado,<br />

a não ser por um curto período. Parece que seu estilo de personalidade,<br />

somado à sua agressividade, fazia os terapeutas desistirem de tratá-la,<br />

como, pouco a pouco, também foram fazendo seus familiares.<br />

Quando a vi pela primeira vez, parecia já ter entrado na menopausa. As<br />

reclamações contra os filhos começaram quando eles eram ainda crianças:<br />

ora, era um que não queria tomar banho, ora outro que não queria<br />

fazer os deveres da escola e muitas outras picuinhas que a encolerizavam.<br />

Perdia o controle e espancava Roberta e Lucinho por fatos tão simples<br />

como pegar a escova de dentes de forma errada ou apertar o tubo de<br />

dentifrício no meio. Nessas ocasiões, ela própria se lastimava:<br />

- Não agüento mais! Vocês só me dão trabalho. Não ajudam em nada.<br />

Um dia, eu deixo vocês e quero ver como se arrumarão. Para que fui me<br />

casar?<br />

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Ela tentou o suicídio algumas vezes: ora, cortando o pulso, ora tomando<br />

doses exageradas de analgésicos ou de calmantes e tentando se enforcar.<br />

Ficava deprimida por qualquer motivo: fofocas desagradáveis vindas<br />

de parentes e vizinhos, a morte de um artista de TV, ou qualquer outro<br />

pequeno aborrecimento eram suficientes para desencadear-lhe uma<br />

crise.<br />

Entretanto, tinha pelo marido um carinho que chegava a irritá-lo: arrumava<br />

suas roupas com esmero, tanto que, quando ele se levantava para ir<br />

trabalhar, as que ia usar naquele dia, desde a meia até o cinto, já estavam<br />

prontas à sua disposição. A xícara e o guardanapo preferidos, as torradas<br />

com pão de glúten ou o bife bem passado, eram sempre colocados na<br />

cabeceira da mesa, local reservado exclusivamente para ele.<br />

Dr. Adamastor gostava desse cuidado, apesar de criticá-la pelos excessos.<br />

Parece que essa caridade o prendia a ela. Rosária se preocupava muito<br />

com a saúde dele. Não o largava durante uma gripe. Imaginando que<br />

poderia estar febril; não permitia que se levantasse; tomava sua temperatura<br />

de duas em duas horas, além de empanturrá-lo com limonadas,<br />

aspirina, mel e outros remédios caseiros. Caso não melhorasse, marcava<br />

consulta e o acompanhava ao médico. Na consulta médica era ela que<br />

explicava os sintomas dele.<br />

Certa ocasião, durante um passeio pelo curral de uma fazenda de amigos,<br />

um bicho-de-pé penetrou no dedão do Dr. Adamastor. O pequeno<br />

incidente, até agradável no início - ele gostava de coçar o local e era<br />

ajudado por ela - foi se agravando; o dedo foi ficando inflamado; vermelho<br />

e inchado. O dedo grosso e roxo, cheio de pus, o impossibilitou,<br />

por uns dias, andar. Rosária preocupada com o perigo da infecção, não<br />

o largou. Bondosamente foi ela que lhe deu banhos nos pés e no corpo,<br />

ajudava-o, dando-lhe o braço, a caminhar dentro de casa, e auxiliava-o<br />

na troca de roupas. Desse modo, um inocente e simples bicho-de-pé,<br />

propiciou ao casal, por alguns dias, uma convivência harmoniosa, digna<br />

de um casal feliz...Durante esse período, o casal viveu os melhores mo-<br />

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mentos de sua vida.<br />

Ao lado dessas gentilezas, entretanto, durante as crises de nervos, ela se<br />

transformava: deitava-se no chão, rolava no assoalho, principalmente se<br />

alguém tentasse segurá-la ou levantá-la. Nessas ocasiões, era costume<br />

gritar:<br />

- Vou matar a todos, quebrar tudo - tudo mesmo - me soltem. Assim<br />

vocês verão como sou corajosa.<br />

- Não faça isso, Rosária. Ouviu? Certo? Exatamente...não há motivo...<br />

acalme-se... Tudo vai passar... Não fique com raiva, sussurrava com voz<br />

medrosa o Dr. Adamastor.<br />

Desajeitadamente, passava as mãos geladas na própria cabeça suada,<br />

onde nasciam os últimos fios de cabelos.<br />

- Deixe-a rolar! É disso que ela gosta...Para que ajudá-la? Continua<br />

sendo a criança de sempre! esbravejava Roberta, diante da cena trágicocômica.<br />

Rosária, nesses momentos, fixava vigorosamente os olhos azuis, ainda<br />

belos, em direção a filha. Seu transmitia ódio. Alta, com o corpo, agora,<br />

imenso e mole, parecendo um urso, ela parecia estar sempre querendo<br />

atacar as pessoas com sua voz aguda.<br />

O ritual era sempre o mesmo: qualquer pequeno fato que a frustrasse,<br />

fazia com que perdesse o controle e começasse a brigar. Tudo servia para<br />

mudar seu humor oscilante, como aconteceu naquela manhã: o feijão,<br />

que fora colocado para cozinhar para o almoço, não era o mulatinho, o<br />

de sua preferência. Bastou isso para que o pequeno e velho rádio, colocado<br />

na mesa da cozinha, onde Cândida, a cozinheira, certificava-se<br />

das horas e ouvia as pregações da Igreja, fosse lançado no piso. Nesse<br />

instante, sua pele, muito branca, aos poucos, tingia-se de um vermelhosangue;<br />

os músculos contraíam e se esticavam, como se quisesse mostrar<br />

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mais vitalidade e tamanho, procurando amedrontar os assistentes. Mas,<br />

diante dos familiares, espectadores desse teatro freqüente e ridículo,<br />

todo seu esforço era em vão. Dr. Adamastor, conversava consigo mesmo:<br />

“Exatamente, repete o que sempre fez, realmente, daqui a pouco, estará<br />

dando boas gargalhadas ou chorando na cama. É só esperar...”.<br />

- Quer um copo de água com açúcar? Ofereceu ele, temeroso, esperando<br />

uma má resposta.<br />

- Cândida! gritou Rosária, abrindo a enorme boca, tendo, agora, mais<br />

brilho nos olhos azulados. Desesperada, exigia que suas ordens fossem<br />

obedecidas. Esbravejava, cada vez mais alto:<br />

- Você é a culpada. Se eu morrer, você vai ver... Já te falei que gosto é do<br />

feijão mulatinho e não o preto. Traz água com açúcar, com muito açúcar.<br />

Ouviu? Da próxima vez, eu te mando embora. Você vai passar fome, lá<br />

na sua terra.<br />

Nesse instante, a campainha da casa toca e entra sua irmã Marilda,<br />

acompanhada do encanador. Eles foram pedir emprestada uma chave<br />

inglesa para consertar a torneira. O bombeiro, um senhor de uns sessenta<br />

anos, fixava o chão como se estivesse procurando algo. Ela continuava<br />

na crise de nervos, esbravejando e dirigindo-se à irmã:<br />

- Na hora de pedir, aparece. Quando a gente está doente, nada! Nem<br />

procura ter notícias...<br />

Rosária, agora, andando de um lado ao outro, ia da cozinha à sala de<br />

jantar. Olhava para todos com rancor. Parecia um cão raivoso preso,<br />

procurando fazer medo às pessoas, rosnando e mostrando os dentes.<br />

Agia como se estivesse sendo ameaçada.<br />

O bombeiro se assustou, quando a olhou, levantando, por segundos, a<br />

cabeça. Naquele momento, ela nada tinha da alegre e sedutora mulher<br />

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com a qual ele já se encontrara muitas vezes, durante o período em que<br />

trabalhou na casa do Dr. Adamastor. Naqueles alegres tempos, Rosária,<br />

após várias investidas, conquistou o tímido bombeiro e saía com ele<br />

para as pensões da cidade, sempre no horário de serviço, alegando ter<br />

que comprar material para os consertos da casa. “Ela está envelhecida”,<br />

pensava o senhor Lauro, “engordou muito; está cheia de manchas vermelhas<br />

na cara.” Essas manchas, em várias partes do corpo, apareciam<br />

durante as crises de raiva e logo iriam desaparecer. Os encontros com ele<br />

terminaram pouco depois de o trabalho na casa se findar. Ainda tiveram<br />

alguns poucos encontros. Entretanto, o ciúme, bem como as exigências<br />

demonstradas pelo bombeiro, a desgostaram. Lauro passou a exigir exclusividade<br />

quando ela demonstrou estar saindo também com outros.<br />

A crise de nervos não terminou com a chegada da Marilda e de Lauro.<br />

Rosária parece ter ficado mais excitada com os novos espectadores.<br />

Pegou o copo d’água com açúcar e o espatifou na parede, diante de<br />

todos. Um filete de água esbranquiçada escorreu lentamente em direção<br />

ao assoalho, misturando-se aos cacos de vidro avermelhados. Cansada<br />

da representação, seus berros foram-se extinguindo, como sempre. Os<br />

gritos se transformaram em soluços sentidos que causavam piedade no<br />

marido. Ele passou as mãos nos cabelos desarrumados de Rosária, procurando<br />

dar-lhes mais forma. Enquanto ele se penalizava com a situação<br />

da mulher, Roberta mostrava desprezo e indiferença por sua mãe.<br />

Mais calma, ela procurou pelos cigarros. Não os encontrando no bolso,<br />

foi até o quarto e abriu um novo maço. Tirou um, colocou-o entre os<br />

lábios arroxeados, e o acendeu com um isqueiro antigo, presente do<br />

tempo de namoro, engoliu, aspirando toda a fumaça. Logo na primeira<br />

tragada, deu os últimos suspiros, carregados de lamentos tristes, indicadores<br />

do término da crise de nervos.<br />

Retornou ao quarto em busca de um tranqüilizante. Como não o encontrou,<br />

perguntou ao marido se tinha algum com ele. Dr. Adamastor,<br />

pacientemente, foi até ao armário dela e de lá tirou o calmante desejado.<br />

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- Você o escondeu de mim? Perguntou, aos gritos, retomando o tom<br />

normal.<br />

- Não, respondeu, quase sem soltar a voz e com receio de que a cena<br />

recomeçasse. “Bem que ela poderia tomar isso logo, dormir por umas<br />

boas horas... Assim, todos poderíamos ter paz e descanso”.<br />

- Procurei no armário e não achei! Você tem medo de que eu tome muitos<br />

de uma só vez? Uma hora, vou fazer isso. Já fiz outras vezes. Não deu<br />

certo...mas, um dia, irei acabar com minha vida. Um dia, vocês verão!<br />

Ela falava e olhava ameaçadoramente para Roberta, que passava pela<br />

sala.<br />

- Eu bem que gostaria... resmungou a filha.<br />

- Eu ouvi! Tá bem! Eu ouvi! Sei que vocês todos, você também, até Cândida,<br />

me detestam; querem me ver longe; morta. Vocês ainda terão essa<br />

alegria! Eu não presto mesmo, não valho nada, sou uma merda! Para<br />

que viver?<br />

Entrou na cozinha, atrás da filha, para que essa não pudesse deixar de<br />

ouvir o que ela desabafava. Enquanto Roberta pegava uma laranja na geladeira,<br />

sua mãe, aproveitando a porta aberta, tirou uma coxa de frango<br />

gelado - sobra do jantar da véspera - e, de uma só vez, com sua boca<br />

bem aberta, engoliu a carne, mastigando-a e falando ao mesmo tempo.<br />

Ela, com seu vestido largo, de bolas vermelhas, mais parecia um palhaço<br />

pronto para começar o espetáculo.<br />

Assim corria a vida de Rosária. Nos dias de crises mais intensas, rasgava<br />

as roupas do marido, quebrava objetos, cortava os pulsos. A família foise<br />

acostumando...Nas primeiras vezes, Dr. Adamastor a levava, preocupado,<br />

para o hospital de urgência. Ainda na ambulância, ela se acalmava,<br />

voltava a agir e a falar como sempre, curada e pronta para entrar em<br />

novas crises.<br />

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Dr. Adamastor ouvia, impassível, os lamentos, palavrões e acusações.<br />

Quando estava cansado e sem tempo, retirava-se e ia para o trabalho.<br />

Algumas vezes, quando lhe sobrava paciência, participava da peça<br />

montada, assistindo-a, como espectador cativo de um drama encenado<br />

dezenas de vezes. Ele sabia, diante de cada cena, qual seria a próxima e<br />

como iria terminar.<br />

Os filhos foram criados e educados nesse clima, sob a influência da mãe<br />

agressiva e impulsiva, que não media os atos nos momentos de ira e de<br />

um pai fraco, que não mais participava do que ocorria na família.<br />

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Na Esquina da Cidade Baixa<br />

Lucinho conheceu cedo o ambiente esquisito, pobre e triste da zona<br />

boêmia, onde homens solitários despejavam angústias e tédios de<br />

uma vida descolorida. Acontece que, para ele ir de onde morava até o<br />

depósito de material de construção do pai, onde, ás vezes, trabalhava,<br />

necessariamente tinha que passar por essas casas, dar de frente com essas<br />

mulheres. Os primeiros contatos lhe despertaram além de um certo<br />

medo, uma grande curiosidade; um desejo de explorar melhor o lugar e<br />

as pessoas freqüentadoras daquele antro.<br />

As atrações daquele parque, que excitavam os jovens imberbes, eram<br />

muitas: a mostra de partes do corpo nunca vistas, a liberdade do uso de<br />

vestimentas e adornos, em geral não usados em suas famílias, o tipo de<br />

vida e de trabalho exercido e os valores totalmente diversos dos ensinados<br />

em casa. Além disso, através delas, existia a possibilidade de obter<br />

um prazer diferente, altamente cobiçado e, até então, inacessível. Ali, alcançava-se<br />

tudo sem a necessidade de ser elegante ou bonito, de ter boa<br />

conversa e dinheiro, de ser inteligente e culto. Bastava ter uma pequena<br />

quantia no bolso. Era, portanto, uma atração democrática, possível de<br />

ser obtida para os não bafejados pela sorte. Tudo era alcançado de um<br />

modo descomplicado, como se compra um sorvete: bastava entregar o<br />

dinheiro exigido; muitas vezes, sem nem abrir a boca e já se deitava nu,<br />

após uma caminhada pelos corredores escuros com a mulher escolhida.<br />

Alta ou baixa, gorda ou magra, bonita ou feia, bastava selecionar. Havia<br />

“mercadorias”, para todos os gostos.<br />

Mas, para visitarem essas moradoras, os fregueses, principalmente<br />

os novatos, precisavam cumprir um ritual previamente traçado. Em<br />

primeiro lugar, deviam passar pelos botecos acinzentados, embaçados<br />

pela fumaça lançada pelas bocas amargas dos seus freqüentadores. Esses<br />

rapazes deviam engolir, antes da temida empreitada, alguma droga.<br />

Só assim, teriam coragem para continuar. Ainda tensos, os jovens se<br />

assentavam nas cadeiras de ferro manchadas, onde se liam restos do<br />

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antigo letreiro com propaganda de cerveja; o hábito era conversar em<br />

voz alta, usar desnecessariamente palavrões. Todos esforçavam-se para<br />

demonstrar uma animação inexistente, tudo visando a esconder o medo.<br />

Tudo isso fazia parte de um ritual que devia ser seguido à risca. Uma vez<br />

assentados, impreterivelmente, seus frágeis ocupantes pediam, num tom<br />

de voz diferente do usado na conversa que fluía, o alimento preferido:<br />

- Oh, meu chapa! gritando e, comumente, com um riso, indicando escárnio:<br />

- Uma “cerva” geladinha. Traga também três pingas, uma Cocacola<br />

gigante e um maço de cigarros Hollywood.<br />

Não era um pedido, mas, sim, uma ordem, como as ouvidas, continuadamente,<br />

dos patrões dos que ali estavam. O balconista mal-humorado,<br />

mistura de garçom e lavador de copos, embrulhado num avental comprido,<br />

odiando ter que servir e obedecer àqueles fregueses humildes,<br />

decifrando a simbologia incorporada ao som, levava até à mesa o pedido<br />

e abria a garrafa. Despejava vagarosamente nos copos, a cerveja, à espera<br />

de uma provocação para iniciar uma briga, que, na maioria das vezes,<br />

não vinha. Dos copos embaçados pela gordura das mãos do balconista<br />

escorria uma espuma sonolenta sobre a velha toalha manchada com<br />

restos de arroz seco. Nuvens de gordura quente subiam e se espalhavam<br />

por toda parte, nascidas no enorme tacho, onde eram fritos os pastéis de<br />

queijo. Aos poucos, eles iam se acostumando ao lugar.<br />

Os homens que ali iam necessitavam rezar nessa capela, de pôr em<br />

prática um conjunto de rituais para incorporar e assimilar os fluidos e<br />

energias do meio. A cerimônia incluía: o ambiente acolhedor, misterioso<br />

e, ao mesmo tempo, perigoso, a fumaça e a gordura que se espalhava; a<br />

união de pessoas antes desligadas, o álcool consumido simbolizando o<br />

vinho. Os jovens tímidos, de voz em falsete, nesse altar, transformavamse,<br />

de repente, em homens valentes, desinibidos, de voz firme e grossa.<br />

Os fiéis, no santuário, antes da grande batalha final, oravam, agrupados.<br />

Daqui a pouco, enfrentariam uma perigosa e incerta guerra contra<br />

inimigas experimentadas, brutas e debochadas. Essas mulheres, muitas<br />

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delas mais estúpidas do que eles, tinham perdido todo o medo, pois<br />

nada mais esperavam do mundo. Diante desse exército bem treinado,<br />

era preciso ter todo o cuidado: primeiro acalmar a mente e relaxar os<br />

músculos depois, nada mais indicado do que um esquentamento e alongamento<br />

do corpo, como fazem os atletas treinados frente às disputas.<br />

Todo esse rito inicial se propunha eliminar ou, pelo menos, abrandar,<br />

por instantes - sem resultado - os preconceitos moralistas, os sentimentos<br />

de culpa, adquiridos através da família e da Igreja, as falsas<br />

informações acerca da maldade dessas mulheres decaídas e das terríveis<br />

doenças que elas transmitiam para seus fregueses. Diante dessas informações,<br />

para enfrentar aquele mundo mal conhecido e perigoso, era<br />

necessário estar entorpecido. Era essa uma das funções da terapia no<br />

bar.<br />

Depois de umas e outras, por mais ou menos noventa minutos, tempo<br />

adequado para se adaptar ao lugar, ou para não mais notá-lo, o pacientealuno<br />

estava melhor preparado para ouvir as preleções do professor. Não<br />

bastava apenas estar calmo para entrar na arena dessa perigosa aventura.<br />

Se quisesse sair vitorioso era preciso mais alguma coisa, tão ou mais importante<br />

que a bebida: as preleções de um iniciado naqueles tenebrosos<br />

e complexos caminhos.<br />

O instrutor, com sua calma e sabedoria, percebia a chegada do momento<br />

propício. Só então começava as conversas acerca de como agir naquele<br />

lugar. A aula, cheia de exemplos, começava com o professor relatando<br />

suas experiências pessoais, as de outros mestres, não deixando de usar,<br />

também, casos cômicos, trágicos, conhecidos e divulgados através da<br />

literatura do lugar.<br />

Os conselhos eram dirigidos principalmente aos novatos. Entretanto,<br />

todos escutavam com interesse, às vezes, com perplexidade, atenção e<br />

grande emoção. Nas aulas noturnas, as sábias lições, eram pronunciadas<br />

num tom de voz magistral, baixo e tranqüilo, como convém ao experi-<br />

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mentado mestre, bem diferente da voz inicial, alta e aguda dos preparativos,<br />

na fase de relaxamento. O momento agora era solene, a preleção<br />

era séria. Uma distração poderia ser fatal para o inexperiente aluno.<br />

A palestra versava sobre temas diversos: os cuidados para não apanhar<br />

doenças venéreas, as técnicas para se aproximar da perigosa mulher,<br />

como deveria ser feito o contato físico, como se despir, o que fazer para<br />

não ser explorado ou roubado no quarto e, por fim, como aproveitar o<br />

dinheiro gasto, isto é, ficar o maior tempo possível e, também, usufruir<br />

o máximo do encontro. Um último objetivo era dado no final da aula,<br />

apesar do professor não acreditar na capacidade dos alunos para tanto:<br />

deveriam tentar conquistar a mulher, seduzi-la, sem pagar-lhe. Desse<br />

modo, poderiam voltar e receber seus favores em outras ocasiões. Esse<br />

era o sonho de todos.<br />

- Você deve examinar a mulher antes de se aproximar dela. Evite as<br />

novas. Essas são as mais perigosas, agressivas. Não servem para os<br />

frangotes. Com elas é preciso ter muita experiência. As mais velhas são<br />

mais pacientes, sabem das dificuldades dos jovens. Toleram mais os calouros,<br />

pois já não têm tanto prestígio e poder. Preste atenção! Olhe bem!<br />

Verifique se têm manchas na pernas: pode ser sífilis, que mata ou aleija.<br />

Trate o preço antes e quanto tempo vai durar.<br />

Assim falava Zão, na sua voz de conhecedor profundo daquelas mulheres<br />

e continuava: - Meu irmão, o Sula, tem uma mulher aqui. Ele não<br />

paga nada. Pelo contrário, ela é quem paga suas contas. Entretanto,<br />

vocês pensam que isso é fácil? Ele demorou anos para conseguir essa<br />

proeza. Além disso, é preciso ter um charme especial. Não é qualquer<br />

um que consegue isso. É necessário treinamento e tarimba.<br />

- Oh, que bom deve ser ter uma mulher que goste da gente, sem ter que<br />

lhe pagar o serviço, ainda cooperando com meus gastos, comentou Zezinho,<br />

excitado com a possibilidade.<br />

- Não é bem assim! Falou, repreendendo Zão. Nem pense nisso...Dá<br />

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muito trabalho... É preciso ter cancha. Nair vem sempre atrás de Sula.<br />

Basta ele faltar um dia. Tem que ser bom. Você nem imagina como! Isso<br />

não é para você, Zezinho, completou Zão, falando duro e com segurança.<br />

- Eu já sabia. Falei por falar. Vou tentar uma namorada mesmo...Essas<br />

mulheres são complicadas.<br />

- Como? Você ainda é virgem! Não conhece nada delas.<br />

Risos gerais, e até, gargalhadas, relaxamento geral no intervalo da<br />

preleção. Nova acomodação nas velhas cadeiras para continuar as explicações.<br />

A coragem que faltava aos iniciantes ia, aos poucos, invadindo os organismos<br />

inocentes daqueles moços desajeitados que ousariam, daqui<br />

a pouco, cantar “de galo”. Assim, lentamente, diminuída a ansiedade, os<br />

ensinamentos recebidos eram aprendidos e decorados.<br />

Naquelas bandas, havia bons e maus professores, eficientes e incapazes,<br />

sérios ou debochados, assim como bons e maus alunos. Mas, todos os<br />

mestres eram ouvidos com extremo interesse e seriedade pelos aprendizes,<br />

certos da importância do conhecimento recebido.<br />

Eram muitos os candidatos àquele vestibular. Alguns desistiam antes<br />

de tentarem a vaga, outros fracassavam nas primeiras provas e buscavam<br />

uma segunda oportunidade. Apenas uns poucos felizardos tinham<br />

sucesso na primeira prova, ultrapassavam a difícil barreira, adquirindo o<br />

status de iniciado. A hora da mudança havia chegado. Classificados, eles<br />

seriam respeitados no grupo como homens.<br />

Entretanto, devido à grande tensão dos primeiros ensaios, os calouros<br />

que ousavam se inscrever nessa aventura, geralmente, quase ou nada<br />

usufruíam do contato sexual propriamente dito. Convidada a mulher,<br />

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o jovem entrava em sua casa, tremendo e sofrendo, apesar de saber de<br />

cor o que deveria fazer. O desmame tinha uma conotação puramente<br />

simbólica. Iam ali para atravessar uma ponte, para cumprir um ritual<br />

exigido, participar da “cerimônia de iniciação”. Apenas depois desse<br />

batismo, iriam se transformar em homens dignos do nome. Não mais<br />

teriam vergonha de ser o que eram - pertencer ao grupo dos virgens, dos<br />

que nada sabiam desse mundo sedutor. Depois da estréia, se fosse bem<br />

sucedido, teriam o que contar aos amigos, principalmente aos inimigos,<br />

e isto era mais importante que a relação, propriamente dita, com a<br />

prostituta. O novo homem seria, a partir daí, ouvido com admiração e<br />

inveja pelos companheiros, que ainda não haviam trilhado o perigoso e<br />

atraente caminho. A fantástica façanha, contada com minúcias, alguns<br />

fatos inventados, outros retirados de histórias vividas ou ouvidas dos<br />

mestres, era transmitida com prazer e orgulho. Encantava o grupo de<br />

ouvintes maravilhados.<br />

Como toda festa que se preze, a cerimônia do desmame tinha que ser<br />

comemorada, também, antes de sua realização. Através dos comentários<br />

acerca do que fariam no fim de semana, os jovens experimentavam, por<br />

diversas vezes, poderosas emoções antes do encontro que não duraria<br />

mais do que dez ou quinze minutos. Discussões carregadas de temor<br />

cresciam à medida que o dia fatal se aproximava. Os jovens, em grupos,<br />

teciam comentários, imaginando como seria o encontro e o que<br />

fariam com a vendedora de prazeres. Cada um, dentro de suas fantasias,<br />

sonhava com sua beleza e juventude, o corpo firme e escultural, a pele<br />

sedosa, o delicado perfume. Esse modelo de mulher fora aprendido, não<br />

da convivência com o grupo disponível, mas com os filmes americanos<br />

da época: as freqüentadoras do “saloon” e amantes dos vaqueiros embriagados,<br />

com as formosas mulheres das novelas e das pornochanchadas;<br />

todas mulheres lindas, limpas e atraentes.<br />

Lamentavelmente, as pecaminosas mulheres da rua Guaicurus não<br />

eram tão bonitas assim. Seus corpos eram bastante diferentes das jovens<br />

amadas, desejadas e sonhadas, que habitavam a imaginação dos jovens.<br />

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Quase todas as moradoras da zona boêmia tinham seus corpos sujos e<br />

aversivos, balofos, caídos, descoloridos, feios.<br />

Apesar da realidade insensível e ingrata, a presença e a força do ideal era<br />

tão grande que dominava a mente desses meninotes, iludindo-os, por<br />

instantes. O desejo de encontrar a loura de cabelos cacheados e de olhos<br />

azuis era mais poderoso do que a sensibilidade ao feio. As desajeitadas<br />

morenas gordas da Guaicurus se transformavam, através do espelho<br />

partido de cada adolescente, em imagens lindas. Na mente dos jovens<br />

eles visitavam, na sua noite de estréia, jovens loiras e delgadas, altas e de<br />

corpo escultural; muito parecidas com as prostitutas do “saloon”. Desse<br />

modo, na conversa do dia seguinte, comentava-se o encontro imaginado<br />

com tais deusas e não se descreviam os corpos reais encontrados,<br />

freqüentemente, repugnantes. Todos ficavam felizes com as escolhas;<br />

elas eram delicadas, cheirosas, um amor de mulher.<br />

Bem ou mal, certo ou errado, todos os anos milhares de jovens iniciavam<br />

seu aprendizado naquele santuário; ali visitavam mestras velhas,<br />

acabadas e derrotadas. Estranhamente iam começar a aprender a amar,<br />

paradoxalmente, com professoras mal preparadas, pois tiveram, ainda<br />

muito cedo, as emoções positivas, os desejos mais sublimes e as pequenas<br />

alegrias da vida, enterradas. Essas mulheres carentes de amor, tinham<br />

como função iniciá-los num caminho que, mais tarde, serviria de<br />

modelo e seria transferido para as namoradas e esposas.<br />

Provavelmente, aquela nunca foi uma boa escola.<br />

Apesar dos pesares, naquela “universidade” assustadora, Lucinho encontrou<br />

algumas amizades: uma saudosa prostituta, numa noite chuvosa,<br />

talvez tendo se apiedado dele, deu-lhe grande atenção, conversando,<br />

demoradamente e contando fatos daquele mundo desconhecido. Também<br />

lhe foi útil a amizade com um “farmacêutico”, que, na verdade, era<br />

um eficiente balconista da Farmácia Lua do Paraíso. Certa noite, ele<br />

sentia uma forte dor de dente, quando passou em frente dessa farmácia.<br />

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Entrou e pediu um comprimido que pudesse aliviá-lo. Prontamente, o<br />

“farmacêutico” trouxe-lhe, em lugar do comprimido, um fósforo com<br />

um chumaço de algodão enrolado na ponta, molhado com guaiacol. O<br />

próprio vendedor se prontificou a olhar o dente e colocar no lugar certo<br />

o bendito líquido, que lhe aliviaria a dor.<br />

- Mostre-me o dente… É este? Mais para debaixo da luz.<br />

O balconista foi logo pegando no rosto de Lucinho, com intimidade de<br />

quem já examinou órgãos humanos mais difíceis de serem mostrados.<br />

- Este aqui, indicou com dificuldade, envergonhado da proximidade<br />

daquele homem desconhecido.<br />

- Abra mais a boca. É preciso ter cuidado, pois guaiacol é perigoso. Tem<br />

que ser no lugar exato. Vai sarar logo. Deixe-me molhar mais o algodão.<br />

Agora, abra. Pronto. A dor vai passar, repetiu.<br />

De fato, a dor desapareceu em poucos minutos. Esse vendedor, tido por<br />

todos como o farmacêutico do lugar, parecia entender de tudo. Ao notar<br />

o modo de vestir de Lucinho, diferente da maioria dos que por ali passavam,<br />

bem como o jeito tímido de agir, ele, curioso, não quis cobrar o<br />

tratamento e o abordou, querendo conhecer detalhes:<br />

- Você não parece ser um freqüentador habitual daqui.<br />

- Por que? Sou diferente? Perguntou satisfeito por não ter sido confundido<br />

com os tipos do lugar.<br />

- Claro. Estou aqui há mais de vinte anos. Conheço os que vêm aqui...<br />

Até seus dentes... Os seus estão bem tratados; não falta nenhum. Não é<br />

que eu conheça cada um dos que por aqui andam ou conheça tudo. Não<br />

chego a tanto, apesar de ser esse meu sonho.<br />

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- Não entendi. Como conhece?<br />

- Não sou um homem culto, mas sou bom observador. Os que vivem<br />

aqui, os que vêm muito aqui, neste lugar, repetiu, eles adquirem certos<br />

cacoetes que os identificam. Em todos os grupos há certos sinais; informações<br />

comuns que as pessoas emitem ou mostram. Eles indicam que a<br />

pessoa pertence a um ou outro grupo. Cada um tem um modo de falar,<br />

de ver as coisas e tecer comentários a respeito delas. Não vê os médicos?<br />

Eles se vestem de branco; muitos carregam no bolso, bem visível, o<br />

estetoscópio.<br />

Nesse momento, ele abandonou o papo para atender a um cliente que<br />

lhe pediu um medicamento para gonorréia e, prontamente, buscou<br />

comprimidos, explicando como tomá-los. Voltou rápido, para continuar<br />

a conversa interrompida, altamente interessado em mostrar seus conhecimentos.<br />

- Pois bem, continuando meu raciocínio: para que um estetoscópio no<br />

bolso do jaleco? Para mostrar quem ele é, como se estivesse usando um<br />

distintivo ou uma faixa dizendo: “olhem, sou médico”! Com o objeto<br />

de seu uso, não precisa falar quem ele é. Todos já sabem. Assim, passa<br />

a ser respeitado como tal. Além disso, observe os médicos. Todos falam<br />

baixo, olham fixamente para as pessoas, sempre estão examinando<br />

algo. Franzem a testa, como se estivessem pensando no tratamento ou<br />

diagnóstico, mesmo quando estão imaginando quanto vão cobrar pela<br />

consulta. E as palavras, heim? Todos usam as mesmas: “a PA subiu. É<br />

preciso dar um anti-hipertensivo”; “meu paciente apresentou um CA<br />

maligno com metástases” ; “ teve um AVC, nunca mais foi o mesmo;<br />

”. Ora, os ouvintes abrem a boca e pensam: “quanta sabedoria, quanto<br />

conhecimento e inteligência!” E o advogado? Esse é mais fácil ainda de<br />

ser identificado. Escute ele falar! Você sabe, né...?<br />

- Nunca prestei muita atenção, falou, pouco interessado na conversa.<br />

Não fora ali para conversar com um desconhecido falante.<br />

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- Eles falam mais bonito ainda que os médicos. Arranjam sempre palavras<br />

difíceis, que nós todos usamos, mas só em ocasiões especiais,<br />

nos discursos políticos, nas festas de casamento ou em enterros. Eles<br />

falam como se estivessem discursando: “Há momentos na vida de um<br />

homem no qual o silêncio é crime. Criminoso seria eu se deixasse de<br />

pronunciar essas palavras que jorram de minha garganta ressequida de<br />

justiça ...” É sempre assim. Os ouvintes entusiasmados pensam: “é um<br />

advogado; como fala bem, é muito culto”. Um assunto que nós explicamos<br />

com poucas palavras, eles usam muitas. Gostam de usá-las, para<br />

esclarecer ou esconder o que dizem, mesmo quando não há necessidade<br />

delas. Eles rodeiam, vão longe, tão longe que as pessoas pensam que eles<br />

se esqueceram do que iam dizer. De repente, chegam à esperada conclusão...<br />

bonita, elegante. Um discurso inflamado, começando por “Meus<br />

senhores, data venia,” e centenas de outros jargões. Todos ficam boquiabertos,<br />

inclusive o próprio autor do discurso. Quanta beleza! Quando<br />

termina, ele olha para todos que o ouviram, esperando a ovação e as<br />

palmas. Tira o lenço, branco e bem passado, do bolso e limpa o rosto<br />

com altivez. Eu gosto de vê-los. Gostaria de ser advogado, de falar como<br />

eles. Pois bem, meu caro. Como é mesmo seu nome?<br />

- Lúcio.<br />

- Eu sabia! Não é nome desse povo daqui. Os nomes aqui são outros.<br />

Nesse momento, franziu a testa, mostrando aversão aos moradores do<br />

lugar. Lúcio é um nome de gente importante. O nome vem de luz, que<br />

dá a luz, clareia o céu e a terra. Como esse pessoal aqui se chama? João<br />

da Silva, José de Souza, Margarida, Teresa, Maria da Consolação ou<br />

das Dores. Achei um Apolônio e um Dorval. Este foi por causa de um<br />

jogador de futebol, mas é raro. Na zona, não há nomes bonitos como<br />

Lúcio, Eduardo, Roberto, Otávio. Isso sim, é nome de gente. Não dessa<br />

gentinha daqui. Mas, voltando ao que estava dizendo: também, na zona,<br />

as prostitutas seguem um padrão de conduta, como os médicos, advogados,<br />

eu e você. Ninguém escapa. Todas as novatas chegam, inicialmente,<br />

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desajeitadas. Olham as outras, examinam o ambiente, procurando<br />

alguma luz para elas, observando tudo, o mundo ainda estranho. Olham,<br />

principalmente, para as mais antigas, as mais vividas, as mestras.<br />

Aos poucos, vão aprendendo, sem querer, como os médicos e advogados.<br />

Isso aqui é uma escola, a universidade da vida. Todos aprendem. O<br />

modo usado aqui as identifica. Observe-as: Todas têm uma maneira de<br />

falar singular, da mesma forma que os médicos usam hipertensão em lugar<br />

de pressão alta. Cada pessoa descreve seu mundo com as palavras do<br />

próprio grupo. Elas, desculpe-me a má palavra, usam ”puta que pariu,<br />

fedaputa”, em lugar de “merda” ou de “sem-vergonha” que nós usamos<br />

- seu vocabulário é rico em palavras de baixo calão, do mesmo modo<br />

que os nordestinos têm muitos nomes para as palmeiras. Tudo isso<br />

lhes dá a sensação ou a idéia de que pertencem ou fazem parte de uma<br />

agremiação com a qual elas se identificam e respeitam. São irmãs da<br />

mesma religião, trabalham para a manutenção e crescimento do grupo.<br />

Uma vez tendo assimilado as noções de como ser prostituta, elas passam<br />

a usar determinadas roupas, cortes e cor de cabelos, sapatos de um certo<br />

feitio, etc. O observador externo pode imaginar que elas, livremente,<br />

escolheram esse modelo de roupas e palavras. Nada disso! Como os advogados<br />

e médicos, elas também estão aprisionadas à sua classe, aos seus<br />

jargões, que às vezes, suplantam a individualidade desejada. Na verdade,<br />

foram contaminadas. Ouviu? Contaminadas pelo grupo que copiaram,<br />

sem saber. Como os médicos elas falam cansadas, mas orgulhosas, do<br />

plantão tirado: “essa noite trabalhei exageradamente, estou exausta”. Passam<br />

a beber mais do bebiam, a fumar, a olhar as pessoas com um olho<br />

inquisidor e desconfiado, a usar certos remédios e certo tom de voz.<br />

Depois de um certo tempo, é fácil saber quem é quem, basta examinar<br />

os sinais. Por isso, vi que você não é freqüentador usual daqui.<br />

Esse falante e desinibido balconista tornou-se, a partir desse primeiro<br />

encontro, um amigo de Lucinho, que, muitas vezes, sem o quê fazer, ia<br />

até à farmácia - só se encontravam lá - para ouvi-lo. Assentava-se na<br />

velha cadeira de madeira, no lado de fora do balcão e ficava ali até cansar,<br />

ouvindo casos da zona boêmia, que Goulart sabia contar e observar<br />

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mais do que ninguém. Ele não dialogava, não ouvia; apenas descrevia<br />

os fatos do seu modo, com absoluta certeza, fazendo comentários. Seu<br />

tema preferido eram os casos presenciados daquelas mulheres e dos<br />

homens que as exploravam. Mas, por vezes, também refletia e comentava<br />

esses acontecimentos com a sabedoria simples, mas com alguma<br />

profundidade de quem já viveu muito e observou. Goulart sempre tinha<br />

suas hipóteses e fazia interessantes associações entre um fato e outro.<br />

Foi ali, com aquele homem, ingênuo, que Lucinho mais aprendeu sobre<br />

esse grupo e mesmo outros. Muitas vezes, pensou: “será que as idéias<br />

de Goulart estão certas? Erradas ou certas, elas têm servido para tentar<br />

compreender esse mundo desconhecido. Não possuo outros moldes<br />

melhores”, dizia para si mesmo, “portanto, irei usar suas idéias, até que<br />

alguém me ensine uma forma mais apropriada para compreender esse<br />

complicado inferno” .<br />

Com o passar do tempo, Lucinho decidiu abandonar suas idas noturnas,<br />

silenciosas e solitárias a esse mundo que teimava em compreender.<br />

Pensava em encerrar em definitivo as incursões àquele lugar. Já havia<br />

cumprido sua missão, mas os convites não paravam...<br />

Certa noite, foi convidado, insistentemente, por Surdina, para dar uma<br />

volta na zona. Surdina era um operário de seu avô, carregador de tijolos,<br />

telhas e sacos de cimento. Ele era quatro anos mais velho do que Lucinho,<br />

bem mais experimentado para lidar com aquele comércio esquisito.<br />

Um ano a mais de experiência naquele lugar fazia uma grande diferença.<br />

Por isso, Surdina caminhava pelas ruas da região com mais desenvoltura,<br />

mais relaxado.<br />

Lucinho, mais tímido, preferia olhar para um lado e outro, examinar<br />

cada uma daquelas mulheres, certificando ou negando os ensinamentos<br />

de Goulart. Ele pensava no que tinha escutado dele: “O mundo dessas<br />

mulheres e seus protetores vai além dos fatos que presenciamos”.<br />

Era esse porão, abaixo dos fatos, que, realmente, lhe interessava. Ele já<br />

conhecia muito acerca dessas mulheres; desde cedo teve sua experiência<br />

catastrófica com o sexo.<br />

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Ele especulava consigo mesmo, enquanto andava pelas ruas: “a maioria<br />

delas vive apenas naquela região restrita ao comércio do corpo. Muitas já<br />

estavam desfiguradas pela desnutrição, pelas doenças e bebidas. Diversas<br />

nunca aprenderam a ler. Algumas tiveram seus próprios pais incentivando-as<br />

a procurar aquela vida sem retorno, para ganhar dinheiro para<br />

a família, outros pais, eles mesmos, tiveram relações com elas, quando<br />

eram ainda crianças”.<br />

Lembrava: “as que moravam, viviam e morriam naqueles cortiços,<br />

não pareciam ter amigas. A regra que vigorava era cada uma por si,<br />

assemelhando-se a grupos de animais, onde só existiam paz e harmonia<br />

quando havia recursos de sobra. Bastava haver um pequeno tropeço, um<br />

sapato que sumiu, uma brincadeira insignificante, para que os palavrões,<br />

agressões físicas se iniciassem. A maioria assistia indiferentemente a<br />

essas lutas diárias, algumas riam e torciam para uma ou para outra, mas,<br />

quase todas continuavam em busca do freguês desejado, sem dar atenção<br />

ao que ali acontecia. Dormiam tarde, quando a população acordava<br />

para trabalhar, levantavam-se ao meio dia. Permaneciam deitadas<br />

grande parte do dia, sonolentas da ressaca da noite anterior, desfalecidas<br />

em camas sujas, infectas, cheirando a urina e sêmen, um odor<br />

que exalava longe, produzia náuseas. Comiam como animais, fazendo<br />

montinhos de comida com as pontas dos dedos e os enfiavam pela<br />

boca a dentro. O alimento era o resto, rejeitado pelos mais poderosos,<br />

o encontrado facilmente a baixo custo. Não tinham planos e idéias para<br />

escapar daquela maldita prisão, onde foram encarceradas. Tinham as<br />

mentes bloqueadas pela ignorância e pela apatia; não eram mais capazes<br />

de fazer indagações acerca da vida que levavam. Elas pareciam ser livres<br />

para fazerem o que desejassem. Entretanto, ao mesmo tempo, estavam<br />

marcadas para sempre com certas idéias negativas de si mesmas, inoculadas<br />

nas suas mentes fracas pela sociedade que as rejeitou, estigmatizou<br />

e as usava como esgoto.”<br />

Abatido com esses pensamentos, caminhava pelas ruas com Surdina,<br />

que dava boas risadas diante da mulher bêbada, cambaleando pelos pas-<br />

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seios, cantando uma canção chorosa, lenta e quase incompreensível.<br />

“É de sonho e de pó/ O destino de um só/ Feito eu/ Perdido em pensamentos/<br />

Sobre o meu cavalo/ É de laço e de nó/ De gibeira o jiló dessa<br />

vida/ Cumprida o sol/<br />

Sou caipira, pirapora nossa/ Senhora de Aparecida/ Ilumina a mina<br />

escura e funda/ O trem da minha vida... O meu pai foi peão/ Minha mãe<br />

solidão/ Meus irmãos perderam-se na vida/ À custa de aventuras/ Descansei,<br />

joguei; Investi, desisti/ Se há sorte, não sei/ Nunca vi/ Sou caipira,<br />

pirapora nossa/ Senhora de Aparecida/ Ilumina a mina escura e funda/<br />

O trem de minha vida... Me disseram porém/ Que eu viesse aqui/ Pra<br />

pedir/ De romaria e prece/ Paz nos desaventos/ Como eu não sei rezar/<br />

Só queria mostrar/ Meu olhar, meu olhar, meu olhar... Sou caipira...<br />

Surdina troçava do lavrador, vestido com calças listradas, botas amarelas,<br />

um cigarro de palha, em uma das mãos, que tremia diante de duas<br />

mulheres. Ria às gargalhadas, de uma mulher gorda, baixinha e desdentada<br />

que, diante das provocações de um rapaz franzino, levantava a saia<br />

até os ombros, deixando descobertos todos os órgãos genitais.<br />

Os mesmos fatos que faziam Surdina rir, provocavam em Lucinho<br />

tristeza e desânimo com a vida ali presenciada. Os dois andavam juntos<br />

sim, mas seus pensamentos eram totalmente diferentes. Surdina parecia<br />

não assimilar e aproveitar os fatos percebidos. Estava muito mais interessado<br />

na mulher com a qual se deitaria naquela noite. No seu silêncio,<br />

enquanto refletia, Lucinho observava que a vida para aquelas mulheres<br />

corria para um fim melancólico. Mas tanto elas quanto Surdina não o<br />

percebiam.<br />

No início da noite, como bichos noturnos, elas saíam de suas tocas. Se<br />

postavam nas ruas cheias de homens famintos por fêmeas desoladas.<br />

Daqui a pouco, seriam usadas, por uns poucos minutos e recompensadas<br />

com notas surradas como elas.<br />

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Aborrecido com as conversas do amigo, queria se ver livre do companheiro,<br />

ir embora para casa. Cada dia mais ele tinha asco ao assistir tal<br />

espetáculo. Mas, com o encontro de Surdina com uma daquelas mulheres,<br />

ele foi obrigado a esperar, por mais quinze minutos, o seu retorno.<br />

Segundo Goulart, era esse o tempo mais do que necessário para que os<br />

homens descarregassem as angústias acumuladas durante a semana.<br />

Surdina, que se arvorava ser o orientador sexual de Lucinho, convidouo<br />

a entrar num daqueles quartos. Ele, que não queria ir; deu diversas<br />

desculpas para escapar da visita a uma dessas doadoras de prazer. Mas, o<br />

amigo continuava a pressioná-lo:<br />

- Tá com medo! Vai ver que você nunca foi...ah, ah, É virgem ainda?<br />

dizia Surdina, brincando, para forçá-lo a ir.<br />

- Não amole, não tenho vontade, a maioria ou todas não me atraem em<br />

nada!<br />

- Não é homem? Vou contar pra turma.<br />

A conversa continuava nesse tom, até que, num certo momento, chatiado,<br />

para provar sua virilidade e coragem, ele decidiu gozar os prazeres<br />

do sexo com a mesma mulher com a qual o amigo tinha encontrado.<br />

Enquanto isso, seu amigo ria, do lado de fora, junto à janela do cômodo,<br />

onde se dava o encontro. Ele imaginou que, para se ver livre daquilo, era<br />

mais fácil entrar que ficar ali, discutindo um assunto desinteressante.<br />

Entrou no quarto da mulher magra e comprida, de cabelos pretos,<br />

espetados, fria como a maioria, sem nenhum desejo, para cumprir um<br />

compromisso. O silêncio do quarto só era quebrado pela tosse seca, insistente<br />

da sofredora, de minuto a minuto e pelo barulho das molas que<br />

rangiam embaixo dos corpos em movimento, na cama quase a desmanchar.<br />

Num canto, mais no escuro, dormia, choramingando, uma criança<br />

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de pouco mais de cinco meses.<br />

Terminado o serviço, apressadamente, já fora daquele ambiente, voltou<br />

a respirar aliviado um ar mais puro do que o daquela pocilga onde<br />

fora aprisionado para cumprir uma tarefa exigida aos homens machos,<br />

fortes, corajosos, coisa que ele sabia, nunca fora e nem desejava ser.<br />

Voltou para casa envergonhado de ter agido contra sua vontade. Buscava<br />

ser ele próprio e não um simples seguidor de idéias alheias. Na verdade,<br />

Surdina, como a maioria dos seus amigos, pouco ou nada conhecia dele.<br />

Talvez, ninguém. Ele próprio tinha dúvida acerca dos seus objetivos e<br />

valores. Naquela noite, custou a dormir. Via, diante de si, aquele zumbi<br />

tristonho, tossindo, que pronunciou, no máximo, duas ou três palavras.<br />

Lembrava, com pesar, o rosto da criança adormecida, o bico amarelo em<br />

sua boca. Isso lhe fazia pensar, mais ainda, que estava na hora de parar<br />

de ir àquele lugar, onde havia muito mais sofrimentos do que prazeres.<br />

Entretanto, continuava a voltar, apesar das próprias críticas, atraído por<br />

aquele mundo diferente do aprendido em casa e na religião, que detestava,<br />

mas que o atraía e o fazia lembrar de sua mãe.<br />

Naquele sábado, em companhia dos amigos Zão e Catabicho, Lucinho<br />

entrou no boteco, cheirando a gordura rançosa e onde o lixo era despejado,<br />

logo na entrada. Escolheram uma mesa próxima à rua, de onde<br />

respiravam um pouco mais de ar puro e podiam ver os freqüentadores<br />

da noite. Pediram cervejas. Lucinho, antes de esvaziar o copo, deu uma<br />

provada leve. Olhou a cor da cerveja, franziu a testa, como sempre,<br />

enquanto pensava algo para dizer. Catabicho, sem entender a expressão,<br />

disse-lhe:<br />

- O que aconteceu? Não veio aqui para refletir. Estamos na putaria. Aqui<br />

não é escola.<br />

- Não falei nada. Vim para isso, para deixar de pensar.<br />

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Sentados juntos, enquanto olhavam o movimento diante do boteco e<br />

bebiam vagarosamente, os amigos comiam grandes cachorros-quentes<br />

regados a mostarda. Lucinho recordava e tentava contar-lhes, o que<br />

ele começara e ninguém ouviu, acerca do seu amor. O teor de álcool<br />

já aumentara na cabeça de todos. O tempo calmo do início da noite já<br />

se tornara mais agitado e quente. Ali mesmo no bar, ao lado deles, a<br />

polícia já havia prendido dois assaltantes. Na rua, houve um atropelamento<br />

comum de bêbado, que não interessou a ninguém. Muitas vezes,<br />

um enorme silêncio ocorria, que não os angustiava, pois o espetáculo<br />

constante os divertia ou os exasperava. Discutiram o que fariam daqui<br />

a pouco, mas, como sempre, seria o esperado, pois não havia outras opções.<br />

Depois da bebida, automaticamente, se dirigiram para a conquista<br />

de mulheres, ali, à disposição. Pagaram a conta, com certa dificuldade<br />

para tirar o dinheiro, após dividirem a pequena despesa. Caminharam<br />

pela rua Guaicurus, dobraram a rua São Paulo e entraram na Avenida<br />

Oiapoque.<br />

Eram mais de onze horas da noite. As ruas estavam cheias de homens<br />

aflitos; alguns bêbados, travestis; mulheres novas, algumas bonitas, outras<br />

acabadas e desleixadas, muitas loiras. Uma delas, muito alta e quase<br />

negra, vestia um “short’ branco muito curto e um pequeno “bustier”<br />

preto, deixando à mostra quase todo o corpo desnudo, uma outra, já<br />

idosa, de cara redonda e de cabelos vermelhos, como uma boneca gorda<br />

e feia, sem se mexer, debruçava os braços moles e brancos na janela,<br />

de onde observava os possíveis compradores de corpos que passavam.<br />

Tinha uma aparência de estrangeira, sendo chamada de “polaca”, provavelmente<br />

devido à sua origem. Havia uma jovem, quase criança, de<br />

estatura pequena, assemelhando-se a uma índia, com longos cabelos<br />

pretos e lisos, embriagada, que cantava, aparentando alegria, uma melodia<br />

triste e comovente do norte de Minas. Algumas, em bando, falavam<br />

alto, davam gargalhadas, comentavam os acontecimentos do seu pequeno<br />

mundo, de forma grosseira e com palavrões. Após tragar a fumaça do<br />

cigarro de mau cheiro, cuspiam no passeio, onde esperavam os fregueses<br />

distraídos.<br />

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Os homens rodavam o quarteirão. Examinavam, com cuidado, as mercadorias<br />

expostas. Às vezes, se postavam em frente a elas, esperavam o<br />

momento mais fácil de dar o bote na presa, de levá-las até o leito morno<br />

do quarto pobre dos casebres aos pedaços. Nos bares, sons roucos, incompreensíveis,<br />

saíam de uma vitrola que tocava antigas músicas populares,<br />

sem que ninguém prestasse atenção.<br />

Carros de polícia, de sirenes ligadas, passavam. Policiais fardados faziam<br />

a ronda na região. Caminhavam sérios, com olhos e andar de autoridade.<br />

Diante das mulheres mais sedutoras, paravam e sempre tinham<br />

alguma coisa importante para dizer. Todos eram respeitados, tratados<br />

com medo pelos homens e com grande carinho e sedução pelas mulheres.<br />

Muitos não resistiam aos encantos das mais belas e, após terminar<br />

o serviço, voltavam para seus braços, para usufruírem uma noitada de<br />

prazer. Os bêbados, que se aproximavam das mulheres para importunálas,<br />

eram advertidos e, caso continuassem a aborrecê-las, eram enxotados<br />

a pontapés ou fortes empurrões pelos policiais sempre vigilantes.<br />

As ruas, bem como os bares, pareciam ser propositalmente mal iluminados<br />

em toda a sua extensão. Nas casas, onde se davam os encontros,<br />

lâmpadas fracas emitiam luzes desbotadas; essa penumbra evitava<br />

revelar, com nitidez, as cicatrizes gravadas naqueles rostos nostálgicos.<br />

A maioria, antes de vir à capital, viveu noutros bordéis, geralmente mais<br />

próximos da cidade onde morava sua família. Essas mulheres já haviam<br />

percorrido todas as etapas possíveis para construir uma vida digna. Ali<br />

estavam, desenganadas e entediadas, esperando, possivelmente desejando,<br />

o fim da vida; a morte que se iniciara já ao nascer. Viviam o último<br />

estágio. Dali, não teriam mais para onde ir. Muitas faleceriam de doenças<br />

venéreas; outras, acidentadas ou assassinadas, algumas, devido ao<br />

álcool ou as drogas, mas todas antecipavam a morte.<br />

Muitas eram as histórias que se contavam sobre cada uma. Várias, num<br />

tempo longínquo, apaixonaram-se por jovens que lhes prometeram<br />

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casamento com festas, lua-de-mel e muitos filhos. Acabaram sendo enganadas<br />

e exploradas. Com o passar do tempo, abandonadas e desiludidas,<br />

vieram terminar seus dias naquele antro. A maioria não tinha filhos<br />

ou não sabia onde eles estavam.<br />

Os homens, normalmente, tinham repugnância e fugiam delas durante<br />

o dia. Mas, no início da noite, na escuridão, tudo se transformava. Os<br />

homens que as haviam repelido durante o dia as procuravam à noite.<br />

Lutavam e brigavam; alguns morriam por elas na madrugada. Os seus<br />

críticos mais ferozes eram os que mais as amavam e buscavam esse lenitivo<br />

que lhes fornecia paz e prazer, por algumas horas. Na cama, à noite,<br />

esses homens lhes davam abraços carinhosos, sussurravam, com voz<br />

doce e suave, desejos escondidos. Por minutos, em troca do difícil dinheiro,<br />

carinhos ilusórios, é certo, mas, mesmo esses, não eram recebidos<br />

de ninguém; nem da esposa, nem mesmo dos filhos. Que poder teriam<br />

essas mulheres?<br />

Alguns chegavam a se apaixonar por elas, outros passaram a viver com<br />

essa mulheres. Diziam alguns - como sempre, há discordância - que elas,<br />

uma vez fora do seu ambiente, jamais voltavam a viver onde sofreram.<br />

Outros, entretanto, falavam o oposto: que elas jamais abandonavam o<br />

padrão de vida de mulheres fáceis, viciadas no sexo.<br />

Elas brigavam por qualquer motivo; jamais levavam desaforos para casa.<br />

Por que tudo aquilo? Seria uma obrigação carregar pela vida afora a<br />

marca ruim, para que todos soubessem identificar sua nódoa estigmatizante,<br />

mesmo depois de muitos anos? Seria um castigo imposto por<br />

Deus?<br />

Ali por perto, na mesma rua, mulheres um pouco mais bem cuidadas<br />

dançavam sonolentas, cansadas e deprimidas, com homens tímidos,<br />

que furavam um cartão para cada dança recebida. Os donos delas as<br />

esperavam às três horas da manhã, na porta do Montanhês, do Rádio,<br />

do Chantecler. Nessa hora, gigolôs, de sapatos pretos e terno de linho<br />

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anco, de cabelos grandes, puxados para trás e untados de brilhantina<br />

Royal Briar, onde refletia a luz dos postes, começavam a aparecer para<br />

receber e contabilizar a féria de sua mulher. De tempos em tempos,<br />

ouviam-se gritos, uma mulher apanhava do seu homem, acusada de<br />

não estar entregando todo o dinheiro arrecadado na noite. Um homem,<br />

cambaleando, era empurrado por um balconista irado e caía na rua, sem<br />

que ninguém fizesse nada para ampará-lo. Viam-se nos cantos, homens<br />

vomitando o asco que habitava suas almas podres de idéias e alimentos.<br />

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Encontrando Sefira<br />

As conversas dos homens nas portas dos botecos, nos meio-fios dos passeios,<br />

não podiam ser outras a não ser acerca das mulheres que estavam<br />

ali. Falavam sobre as novatas que haviam chegado, discutiam acerca<br />

das que melhor trabalhavam, as capazes de oferecer mais carinho aos<br />

fregueses e informavam sobre os perigos das doenças venéreas. Mas,<br />

além disso, nessas rodas, o futebol e o crime eram comentados com<br />

ardor, entusiasmo e como valor máximo da vida. Motivos banais, como<br />

um erro possível do juiz no último Atlético X Cruzeiro, bastavam para<br />

que se iniciasse uma briga de morte.<br />

Após ter saído do bar, Lucinho caminhava; como se estivesse sozinho,<br />

afastado, muito longe... Olhava para um lado, para o outro... Ali, há vários<br />

anos, numa noite escura e suja como qualquer outra daquele lugar,<br />

ele conheceu e se apaixonou - o que jamais imaginara - por uma dessas<br />

mulheres decaídas. Recordava, com tristeza, o encontro com Sefira e<br />

suas conseqüências. O grupo andava, o silêncio foi quebrado:<br />

- Eis a casa de Marilda... Está quase caindo. Lá dentro é pior ainda”...<br />

comentou Zão.<br />

Lucinho esfregou a testa molhada de suor, nada respondeu, iniciou suas<br />

recordações: ”Aqui, encontrei a mulher que mais amei em minha vida.”<br />

Evitou falar acerca desse assunto com os amigos sonolentos. Também,<br />

para quê? Na realidade, a amizade entre ele e Sefira começou quando<br />

não era para começar. Foi um acaso. Apesar de não querer lembrar, sua<br />

mente, teimosa, continuava a descortinar o fato:<br />

“Eu já possuía algumas idéias dessas mulheres, que Goulart me passara;<br />

era fácil para mim distinguir uma da outra, a mais carinhosa, a que gostava<br />

de explorar ou agredir... Foi nesse ambiente pesado e enfumaçado<br />

que, numa certa noite, eu me vi diante de uma mulher morena pálida,<br />

de cabelos soltos, não tendo mais do que um metro e sessenta de altura.<br />

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A vitrola gemia, cansada, “Copacabana”, na voz de Dick Farney. Eu a vi<br />

no portão de entrada do beco e iniciei uma conversa para impressionar<br />

meus amigos daquele dia. Entretanto, aquela morena, de olhos grandes,<br />

pretos, sorriu para mim de uma forma tão pura e meiga, diferente, que<br />

me cativou de imediato. Senti por ela uma imensa ternura e amor. Ela,<br />

como eu, sofria de solidão; parecia ser capaz de me entender.<br />

- Boa noite, aproximei-me um tanto temeroso.<br />

- Boa noite, respondeu Sefira, mostrando os grandes dentes, que mal<br />

cabiam na pequena boca de lábios arroxeados. Sua voz rouca exalava<br />

tristeza, como tudo ali. Vestia uma pequena bermuda larga que mostrava<br />

as coxas roliças e fortes, um “topper” preto, coberto, em parte, pelo<br />

cabelos longos, puxados para frente e que cobriam também parte do<br />

tronco magro. Calçava sandálias roxas, simples e pobres. Tive vontade<br />

de abraçá-la, ali mesmo, para externar, não uma atração física - que na<br />

verdade, não existia - mas sim, minha simpatia ou fusão com um ser<br />

humano que, naquele momento, sofria, como eu. Era atraído pela união<br />

de um homem e uma mulher. Ela, para mim, simbolizava o sofrimento<br />

e a fraqueza humana. Depois de um silêncio prolongado, sem ansiedade,<br />

continuei:<br />

- Como vai? Mora aqui há muito tempo? Nunca te vi... Até que não sou<br />

um freqüentador assíduo deste lugar... apressei em explicar-lhe, com<br />

receio de ela pensar que eu era constante na zona.<br />

Sua voz soou encantadora, adocicada e sonora, deslizando por sua boca:<br />

- Vim de Salinas. Não tive outro modo...<br />

- Salinas? Conheço. Fica longe. Trabalhava lá?... “Eu me atrapalhei e<br />

pensei estar sendo indelicado, o que não era meu hábito com pessoas<br />

desconhecidas e bondosas como Sefira.<br />

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- Falo: trabalhar em algum lugar, não nisso. Tentei consertar.<br />

- Sim. Comecei a trabalhar cedo. Tenho oito irmãos. Sou a mais velha.<br />

Meu pai bebe; quase não ganha nada. Minha mãe trabalha como faxineira<br />

no Grupo Escolar de Salinas. Por isso, estudei até a sétima série.<br />

- Até a sétima! E não arrumou outro emprego? Não é que penso mal<br />

disso, mas tem coisas melhores. Trabalhar numa loja comercial, por<br />

exemplo.<br />

- Já fiz isso. Mas ganhava meio salário mínimo e, além disso, o patrão<br />

tentou me forçar a transar com ele. Nessa época, só tinha treze anos,<br />

ele, cinqüenta. Era gordo, parecia estar sempre engordurado, com mau<br />

cheiro.<br />

umava sem parar, por onde passava ficava um cheiro de queimado saído<br />

de suas roupas e cabelos. Mandou-me embora, por não ter aceitado seu<br />

convite.<br />

- Mas há pessoas melhores do que esse seu patrão.<br />

- Também pensei assim... Fui trabalhar na prefeitura. Ajudei na campanha<br />

eleitoral, do atual prefeito, Narciso. Ele resolveu me ajudar. Comecei<br />

a varrer ruas, a maioria delas chão de terra vermelha, num calor de<br />

quarenta graus. Lá é quente, muito quente mesmo. Acabado o dia, estava<br />

exausta, cheia de terra, por dentro e por fora do meu corpo. Era difícil<br />

tirá-la com o banho. E para quê? Para um mês depois, receber meio<br />

salário. Para piorar, o prefeito começou a se aproximar de mim, para<br />

satisfazer suas necessidades, já que sua mulher, uma velha doente, não o<br />

servia. Meu namorado, capinador de lavoura, acabou com minha virgindade.<br />

Disse que estava apaixonado por mim, que o casamento seria<br />

logo. Eu, sim, esperava dele um mundo que ouvia nas novelas na casa<br />

da vizinha. Mas, nada. Foi uma ilusão, entre várias. Pouco depois de me<br />

conquistar, sumiu, foi atrás de outra. Mais tarde, já deflorada, tive outros<br />

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amores. Todos querendo a mesma coisa: meu corpo de adolescente,<br />

ainda puro. Apesar de já ter transado, pouco entendia, se é que agora<br />

entendo.<br />

- Quantos anos tem? Cortei o relato, mostrando interesse.<br />

- Dezenove. Há seis meses, tomei essa decisão, num momento de desespero...<br />

Vim para Belo Horizonte, junto com outras, que já tinham<br />

abraçado esse caminho. Antes de vir, aos poucos, comecei a ser, mais<br />

e mais procurada pelos homens da cidade, que cochichavam entre eles<br />

sobre a nova carne existente. Morava com minha mãe. Ela vendo a<br />

necessidade do dinheiro, fingia não perceber as minhas saídas, à noite,<br />

ora com um, ora com outro. Para tampar sua consciência, ela me dava<br />

conselhos ou me xingava, conforme o dia. Meu pai, que me tomava<br />

parte do dinheiro, nada dizia. Em pouco tempo, fiquei conhecida. Deixei<br />

de ser menina e virei puta, de respeitada a escrachada, por pertencer a<br />

esse grupo, das vagabundas.<br />

Parou, por uns instantes, dando um prolongado suspiro...e continuou: -<br />

Nem sei por que estou lhe falando isso. Faz tão mal lembrar...ninguém se<br />

interessa pela vida dos outros, muito menos por uma puta nova. Ainda<br />

se fosse mais velha, com mais experiência, teria mais casos interessantes<br />

para contar aos repórteres, escritores, padres, pastores, políticos, todos<br />

os que exploram os abandonados, que gostam de contar nossas histórias<br />

para outros e ganham dinheiro com nossa desgraça. Sei que os padres e<br />

pastores, nos salvando, também se salvam, pois estão fazendo o bem. E<br />

Deus todo-poderoso, que sabe de tudo, vai ser bom para eles na outra<br />

vida... e nesta também. Não estou querendo me defender, mas se cada<br />

um faz sua parte, cada um usa a cabeça e outras partes do corpo para<br />

viver, porque umas são mais valorizadas e outras não? Eu faço parte do<br />

grupo das que trabalham com partes do corpo que não são bem vistas,<br />

apesar de todos e tudo falarem sobre nós: anúncios, novelas, cinemas,<br />

romances, poesias e religião. O que seria da religião se não existissem os<br />

pecadores, os que fazem o que ela diz ser errado...?<br />

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107


Eu ouvia tudo, incomodado com seu raciocínio, não esperado e diferente<br />

do meu. Entretanto, ia seguindo cada frase de Sefira, com grande<br />

interesse, disposto a continuar ali, por mais tempo. Temia ser repreendido<br />

por ela, por estar tomando seu tempo, em pé, diante da entrada<br />

do beco, que levava a seu pequeno quarto. Parece que, para ela, pouco<br />

importava ganhar dinheiro. Naquele momento, era mais agradável conversar<br />

- como há muito ela não fazia - do que transar para ganhar uma<br />

migalha. Era raro encontrar um homem disposto a ouvir uma prostituta<br />

e deixar de lado o que eles mais queriam. Nossa conversa parecia lhe dar<br />

uma idéia de comunhão com o mundo, de ligação com pessoas, que,<br />

muitas vezes, mal trocavam uma ou duas palavras. Mas, seguindo o padrão,<br />

ambos, com medo de sermos mal-interpretados, decidimos entrar,<br />

ainda mais quando um vento forte começou a varrer todo o lixo jogado<br />

na rua, provocando uma poeira carregada de copos vazios e jornais velhos.<br />

Os primeiros pingos de chuva começaram a cair.<br />

Entramos timidamente no quarto em que mal cabia uma cama estreita.<br />

Esta, coberta com uma colcha amarelada, cheia de remendos, tampava<br />

todo o leito, se estendendo até o piso de ladrilhos com desenhos de<br />

flores pretas, já quase desaparecidas e gastas. Via-se que o quarto fora<br />

dividido em dois para aproveitar espaço, por um tapume de tábuas<br />

avermelhadas de compensado, que não alcançava o teto. Esta divisão<br />

permitia o uso do quarto, ao mesmo tempo, por dois casais. Assim, caso<br />

o outro amante não se incomodasse ou se descuidasse, podia-se ver e<br />

ouvir a cena que acontecia no cubículo ao lado.<br />

As paredes, pintadas com cal branca, estavam descascadas em vários<br />

lugares, mostrando o reboco, onde a cama, guarda-roupa e criado foram<br />

encostados, durante um certo tempo, e depois, mudados de lugar. Num<br />

canto, encostado na parede, estava um velho guarda-roupa torto, preso<br />

à parede por barbantes grossos e um cinto preto, quase desmanchando.<br />

De dentro dele, com alguma dificuldade, após soltar os cordões que seguravam<br />

a porta, Sefira tirou um prato amassado de alumínio contendo<br />

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estos de um jantar que não fora totalmente ingerido: resíduos de feijão<br />

preto, um montículo de arroz endurecido, meio ovo frito e um pedaço<br />

de lingüiça. Educadamente, ela me ofereceu a refeição, mas, antes,<br />

demonstrou estar faminta, pois olhou, com prazer, para o alimento que<br />

me provocou náusea. Retirou de dentro do guarda-roupa uma colher,<br />

dois paninhos manchados, usados, geralmente, para limpar as sobras da<br />

relação sexual. Um deles foi colocado, com cuidado e carinho, embaixo<br />

do prato e em cima de suas coxas firmes e belas; um outro, que estava<br />

sempre na sua mão esquerda, servia para limpar sua bela boca, circundada<br />

pelos lábios grossos e arroxeados.<br />

Como não havia cadeiras, assentamos-nos na cama, onde Sefira dormia<br />

e entregava-se a fantasias. Mais para o canto, ficava uma espécie de criado-mudo<br />

grande, desengonçado e, em cima dele, dezenas de pequenas e<br />

feias estatuetas, grosseiramente pintadas de branco e azul, representando<br />

santas deformadas. Em cima do criado, via-se, também, um prato,<br />

onde ficava uma jarra, cheia de água, que seria usada para o “banho”,<br />

lavar as mãos, após a transa, e mesmo para beber. Não havia banheiro,<br />

nem mesmo lavabo, no cubículo. No quarto fechado exalava um cheiro<br />

acre e forte de creolina, lisofórmio, misturados com o odor de mofo e<br />

secreções. Um velho rádio, ligado numa estação da noite, tocava canções<br />

e valsas românticas antigas. Ouvia-se, além dos chiados, uma voz provocadora<br />

de sono, recitando poesias enviadas pelos ouvintes solitários<br />

da madrugada. O locutor, por vezes, dava conselhos, lendo trechos de<br />

“Pingos de Sabedoria”, livrinho ofertado por uma ouvinte interessada<br />

na salvação das pessoas. Ocasionalmente, ele entrevistava, por telefone,<br />

ouvintes aflitas, necessitadas de desabafar, seja com quem for.<br />

Sefira maquinalmente colocava na boca faminta a lambança, indiferente;<br />

como parecia levar sua vida. Não ouvia o rádio de onde o locutor falava,<br />

não ouvia o barulho forte do vento, que soprava, agora, com violência.<br />

Ela parecia não sentir necessidade de prestar atenção em nada ao seu<br />

redor. A voz vinda do rádio, que ela não compreendia, talvez lhe desse<br />

um falso sentimento de que não estava só. Mas, ao mesmo tempo, temia<br />

ouvir e assimilar o que estava sendo falado acerca do outro mundo,<br />

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aquele exterior que ultrapassava o minúsculo mundo das prostitutas.<br />

Isso poderia lhe dar a terrível consciência da sua solidão.<br />

Após colocar displicentemente o prato em cima do móvel arredando<br />

para um lado as estatuetas, ela começou, automática e lentamente, a<br />

tirar suas roupas, como se estivesse diante de um cliente como os outros.<br />

Espantei-me com seus gestos. Não entrara ali para isso e nem desejava o<br />

que ela parecia imaginar. Eu preferia continuar a conversa. Observei Sefira,<br />

sem nada dizer. Despida, foi até à jarra, despejou um pouco d’água<br />

morna num copo de papel amassado, que estava em cima da mesa improvisada<br />

e o sorveu de uma só vez.<br />

A chuva ia, aos poucos, aumentando. O barulho era enorme sobre nossas<br />

cabeças, fazendo desaparecer, por instantes, o som das canções do<br />

velho rádio e até nossas conversas lentas, medrosas, que buscavam um<br />

contato, que desconfiávamos poder construir. Alguns pingos de chuva<br />

atravessavam as velhas telhas remendadas com plástico, penetravam no<br />

forro de madeira carcomida, misturavam-se com restos de excrementos<br />

dos cupins que habitavam o forro do barracão, e caíam.<br />

O cubículo sem janelas continuava quente e abafado, apesar da chuva,<br />

fazendo com que, constantemente, eu limpasse a testa suada com meu<br />

lenço bordado. Sob a fraca luz, onde era difícil distinguir os contornos<br />

dos rostos, ela mostrava-se linda, principalmente quando vista de perfil.<br />

Nessa perspectiva, sua fisionomia lembrava as princesas do Egito, de<br />

narizes aquilinos e delicados e os lábios pronunciados. Com muita dificuldade<br />

confessei a Sefira que não fora ali para transar. Ela se espantou.<br />

Percebia-se que estava gostando de minha atitude, de viver um momento<br />

diferente. Assim, ela retrucou, seguindo o padrão que já marcara sua<br />

vida, porém, sem muito convencimento, almejando uma resposta para<br />

que tudo continuasse como estava:<br />

- Então, está tomando meu tempo, para quê? Depois, não vai querer me<br />

pagar, alegando não ter feito nada. Estou à sua disposição.<br />

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- Não se trata disso, consertei . Não se preocupe. Eu te pagarei. Não<br />

tenho muito dinheiro, mas o suficiente para te recompensar. Preciso<br />

mais de uma conversa do que de sexo... balbuciei, com dificuldade...<br />

Estava envergonhado de estar me abrindo com aquela mulher, até há<br />

pouco desconhecida e, recriminava-me por estar gostando dela, de estar<br />

ali, falando com simplicidade, uma experiência que, há muito, não tinha.<br />

E com quem? perguntava-me, surpreendido.<br />

- Certo. Já recebi fregueses como você. Alguns são esquisitos; desejam<br />

coisas estranhas de nós. As mais antigas contaram-me casos escabrosos.<br />

Um pouco amedrontada com as próprias lembranças, perguntou: “Posso<br />

continuar sem roupas? Está muito quente. Mesmo quando estou só, fico<br />

assim. Não quer tirar a roupa, também?”<br />

- Não.. Agora, não! Não se preocupe, não sou tarado. Pode ficar calma, à<br />

vontade. Não me incomodo com sua nudez. Acho você bonita. Seu<br />

corpo, sem roupa, é mais atraente. Além do mais, você tem outras coisas,<br />

mais interessantes do que seu corpo, para mim...<br />

- Eu? Disse espantada, sem compreender. O que tenho para os homens,<br />

além do meu corpo? Ela jamais havia pensado em agradar os homens<br />

com algo além do sexo. Não entendia o que eu queria dizer. - Como é<br />

mesmo seu nome? Perguntou, somente agora parecendo se interessar.<br />

- Lúcio. Chamam-me de Lucinho.<br />

- Lúcio. Nunca conheci ninguém com esse nome... Acho bonito. Nesse<br />

instante, ela olhava fixamente para mim, examinando-me pela primeira<br />

vez, sob a luz opaca. Às vezes, escurecia todo o quarto, devido aos<br />

relâmpados e trovoadas.<br />

- Você também é bonito. Tenho um homem, sabe? Não vou esconder...<br />

Ele me explora. Vem aqui todas as noites. Deve vir daqui a pouco.<br />

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Dorme comigo, mas vem aqui mais para buscar parte do que ganho.<br />

Eu ouvia...Não desejava mais escutar tais histórias chatas, pois já as<br />

conhecias de sobra e me causavam ódio: a exploração de uma pessoa<br />

sobre a outra. A temperatura do quarto, aos poucos, baixou. Um vento<br />

frio atravessava os vãos da porta de entrada, penetrando na nossa pele.<br />

Sefira, soltando-se um pouco, enroscou-se nos meus ombros e, carinhosamente,<br />

após ter beijado com ternura meu rosto, aconchegou-se e<br />

pediu-me para abraçá-la. Estava com frio. Um pouco desajeitado com<br />

seu pedido, passei meus braços em torno de seu pescoço delicado. Pela<br />

primeira vez na minha vida, senti que estava amando uma pessoa sem<br />

querer nada em troca. Sentia-me, como jamais estivera, fundido a esse<br />

corpo desconhecido. Tinha vontade de continuar assim, por muito<br />

tempo, para toda a vida. Não era preciso mais nada. Bastava o que estava<br />

acontecendo. Maquinalmente, comecei a passar as mãos no seu rosto e<br />

cabelos. Ela gemeu, doce e delicadamente, como fêmea que se entrega...<br />

- Tem mãos de mulher: macias, mais macias do que as minhas. Olhe,<br />

mostrando-me as suas e passando-as sobre o meu rosto.<br />

Como uma menina medrosa, enroscava-se no meu corpo, buscando<br />

proteção. O barulho da chuva aumentava, servindo de fundo à cena,<br />

que ia se instalando naquele quarto pouco propício a um idílio amoroso.<br />

Assim, durante um bom tempo, ficamos abraçados um ao outro.<br />

Ocasionalmente, o rosto e os lábios de Sefira procuravam minha boca<br />

sedenta e <strong>nosso</strong>s rostos formavam uma só imagem. Não mais falávamos<br />

acerca do que ocorria; <strong>nosso</strong>s corpos colados expressavam tudo; o silêncio<br />

continuou por minutos...<br />

- Há muito não me sentia tão bem, confessei enquanto passava as mãos<br />

nas suas costas desnudas.<br />

- Eu também. Você é diferente. Tem certeza de que não me quer como<br />

os outros? Disse Sefira, achando que devia oferecer o corpo para aquele<br />

a quem ela estava amando e simpatizando.<br />

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- Para quê? Não está se sentido bem assim? falou Lucinho.<br />

- Você acha que meu corpo é feio? Quase não tenho bumbum. Eu não<br />

lhe agrado. Gostaria muito que você se sentisse atraído por mim, disse,<br />

acostumada a ver o amor somente por esse prisma, imaginando que se<br />

um homem não a desejasse, como imaginava, não a desejaria de forma<br />

alguma, pois somente assim uma mulher pode agradar aos homens.<br />

A conversa foi interrompida bruscamente, com batidas fortes, quase derrubando<br />

a porta. Separamo-nos assustados.<br />

- Deve ser Olegário, meu homem. Não se assuste. Vou falar com ele que<br />

estou com um freguês. Ele volta depois.<br />

- Não se preocupe. Vou-me embora. Volto outro dia. Vai atrapalhar sua<br />

vida. Quanto lhe devo?... A batida mais intensa levou Sefira a abri-la,<br />

mesmo sem se vestir. Diante dela, assustado, estava um homem forte,<br />

branco como cera, vestido com um terno de linho surrado e ensopado.<br />

Sem olhar para mim, que estava paralisado, sentado na cama, segurou-a<br />

pelos braços, gritando:<br />

- Está bêbada! Não ouviu uma barulhada nas ruas? O rio Arrudas está<br />

enchendo! Começou a inundar tudo! A água está vindo para cá! O<br />

hospital está cheio de policiais, do Corpo de Bombeiros. Entrou água<br />

no porão do hospital, onde dormiam algumas mulheres... Disseram que<br />

algumas delas morreram afogadas. Saia depressa. Vista-se!<br />

Levantei-me de uma só vez, lamentando o ocorrido. Não tive tempo de<br />

me despedir, nem de pagar, conforme o combinado. Perguntei-lhe se<br />

desejava alguma ajuda. Seu namorado, olhando-me como um inimigo,<br />

colocou-me para fora do quarto, sem que ela pudesse fazer qualquer<br />

gesto para impedi-lo.<br />

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O vento forte aumentava, ajudado pela chuva pesada, varria, com raiva,<br />

as ruas. Umas poucas pessoas saíram de suas tocas, tinham os cabelos<br />

em desalinho, olheiras, rostos sonolentos e cansados. Pequenos ajuntamentos<br />

se formavam; discutiam e andavam, de um lado para outro,<br />

enquanto olhavam a enchente que começara. A maioria caminhava para<br />

o Hospital de Doenças Venéreas Antônio Aleixo, que ficava um pouco<br />

abaixo do quarto onde Sefira morava. Policiais, aos berros, afastavam os<br />

observadores mais corajosos.<br />

Fiquei parado, debaixo da pesada chuva, desprotegido, tendo os olhos<br />

fixos nas pessoas ali aglomeradas. Uma lama escura e furiosa saía do rio,<br />

ameaçando tudo à sua frente. A água escura, grossa e cheia de espuma,<br />

carregava todo o lixo ali despejado.<br />

Era o caos: soldados do Corpo de Bombeiros tensos davam ordens<br />

desencontradas. Relâmpagos, trovoadas. Gente curiosa sussurrava.<br />

Alguns ouviam, com atenção, as descrições dos assistentes mais bem<br />

informados. Todos observavam a tentativa de salvamento das mulheres<br />

hospitalizadas. Quatro homens saíram do hospital, carregando, na maca,<br />

um corpo enrolado num lençol, sob os olhares tristes e um profundo<br />

silêncio da platéia, que teimava em assistir a tudo. Mais dois corpos<br />

foram transportados para o velho rabecão, estacionado no outro lado da<br />

rua. Pude enxergar, um pouco adiante, Sefira, bela, apoiada nos ombros<br />

do seu protetor. Chorava, suas delicadas lágrimas se misturavam com os<br />

grossos pingos de chuva. Algumas mulheres sentiram-se mal e tiveram<br />

que ser socorridas pelos sonolentos e cansados médicos e enfermeiros<br />

das ambulâncias.<br />

Sozinho, molhado até à medula, continuei postado, observando o movimento,<br />

por muito tempo. Olhava para Sefira; tinha pensamentos alegres<br />

e prazerosos, lembrava do encontro; diante dos corpos que passavam<br />

nas macas, tornava-me triste.<br />

A chuva diminuiu. Acabrunhado e solitário, caminhei em direção ao lo-<br />

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cal onde a enchente estava mais forte, orientado pelo barulho das águas<br />

que continuava arrastando tudo. Buscando uma posição segura, observei<br />

aquele espetáculo raro, bonito, amedrontador. Estava aprisionado,<br />

impossibilitado de largar aquele lugar, largar Sefira, abandonar minha<br />

fusão com a natureza, com a vida, com a morte, com o universo.<br />

Exausto e sonolento, percebendo que a enchente continuava, decidi<br />

caminhar, cambaleando e escorregando em direção à minha casa. A<br />

ponte, que teria de atravessar, estava intransitável. Pela manhã, depois de<br />

muito andar, quando os primeiros clarões apareciam, cheguei em casa.<br />

Entrei, fazendo barulho no assoalho, com os sapatos molhados. Retirei<br />

a roupa ensopada e entrei no chuveiro quente. Lá, fiquei por um longo<br />

tempo, deixando a água tépida cair sobre o corpo frio, para relaxar, enquanto<br />

recordava a bacia com água, as estatuetas feias das santas aleijadas,<br />

o ovo e arroz com feijão esturricado, no prato de alumínio, o quarto<br />

abafado e sem janelas. Lembrei-me de Sefira com ternura. Dela que, em<br />

alguns raros momentos, sorriu para mim, com seus dentes para fora. De<br />

seus abraços e de seus beijos carinhosos. Senti saudade! Voltaria a vê-la?<br />

Gostaria muito!...<br />

Em casa, todos dormiam. Dr. Adamastor roncava ritmado. Rosária tossia<br />

e tossia. O dia amanhecera. Lá fora, a chuva caía, agora mansa, leve<br />

e teimosa, sobre o telhado resistente e impenetrável de nossa moradia.<br />

Lembrei-me, com saudades, do frágil telhado do barracão de Sefira. Lá<br />

havia algo que na minha casa não existia, o que mais procurava: uma<br />

compreensão para a vida humana, para minha vida... O amor, a paixão<br />

gostosa, que desabrochou forte, alegre e livre dentro do meu peito.<br />

Começava a ter certezas que antes não existiam...<br />

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Manicômio:Loucuras de uma Paixão<br />

Lucinho não conseguiu dormir. Pensava em Sefira, nas mulheres abandonadas<br />

pela sorte e mortas pela enchente.<br />

Levantou-se um pouco antes do almoço, sonolento e excitado. Seus<br />

familiares à mesa conversavam os assuntos de sempre. Ele, sem cumprimentar<br />

ninguém, arrancou o jornal das mãos de seu pai à procura de<br />

informações acerca da enchente da noite anterior. Iniciou-se uma discussão<br />

entre ele e seu pai. Rosária saiu em defesa do marido, criticando<br />

Lucinho pelo horário de chegar, pelo barulho que fez acordando todos e,<br />

principalmente, por ter sujado o assoalho com seus sapatos encharcados.<br />

- Você chega tarde, faz um barulho daquele, acorda todos, levanta com<br />

essa cara, arranca o jornal que seu pai está lendo e, além disso, reclama...<br />

- Não tenho nada a falar com a senhora. Não lhe devo nada. Você é que<br />

me deve. O que me fez... ela, amedrontada com o que ele poderia continuar<br />

a dizer, decidiu ser mais cautelosa e mudar o tema da agressão.<br />

- Estou lhe falando agora a respeito do jornal. Seu pai estava lendo. Você<br />

o tirou, sem ao menos pedir licença. Isto é uma grosseria!<br />

- Não estou bem. Deixe-me em paz. Estou nervoso. Não dormi essa<br />

noite, estou chateado.<br />

- Quer um ovo quente? Aproximou-se Cândida, gentilmente, trazendo<br />

para Lucinho o que lhe fora oferecido...<br />

- Não quero nada, não! gritou, enfurecido, jogando ao chão dois ovos<br />

que se espatifaram, deixando um rastro branco-amarelento.<br />

- Não grite com ela, berrou Dr. Adamastor.<br />

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- Grito com quem quiser. Até com o senhor, como agora. Você é um<br />

corno manso, que não toma atitude alguma.<br />

Ela sentiu um calor subindo pelo corpo, não por estar sendo descoberta<br />

- seus encontros, que não eram raros, não foram segredos bem guardados,<br />

mas sim pelo desafio dele, diante de todos. Isso era intolerável.<br />

- Pare! Berrou Dr. Adamastor, mais animado do que o normal e mais<br />

feliz por ter sido despertado do marasmo. Corajoso com o próprio grito,<br />

continuou: - Cale a boca, seu depravado!<br />

O grito fez Lucinho perder a cabeça de vez. Provavelmente, o que ele<br />

mais desejava; o número de problemas que tinha enfrentado havia passado<br />

do limite.<br />

Levantou-se de onde estava e iniciou uma quebradeira na casa. Chorando<br />

e dando gritos, ameaçando matar o pai com a serra de cortar pão, ele<br />

andava de um lado ao outro da casa. Com muito custo, foi seguro pelo<br />

pai, Agostinho e Cândida, que o imobilizaram, por segundos.<br />

Rosária, falando macio, o abraçou. Calmo, soluçando no colo da mãe,<br />

ele ficou por muitos minutos até que chegasse o primeiro psiquiatra que<br />

conseguiram contatar. Em virtude da agressão e excitação, o médico,<br />

temeroso de nova crise, decidiu interná-lo, para que ele recobrasse o<br />

domínio de si.<br />

Uma vez mais calmo, após ter sido sedado pelos tranqüilizantes e,<br />

principalmente, olhares, palavras doces e abraços da mãe, Lucinho foi<br />

conduzido até o hospital. Ao ser internado, ainda na portaria, ele já<br />

havia melhorado. Despediu-se da mãe com um forte abraço, e olhou<br />

sem rancor, para o pai. Abraçou, com ternura, o irmão, que, nesse momento,<br />

não suportando a situação constrangedora, tinha os olhos cheios<br />

de lágrimas.<br />

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O Hospital Schneider não era nem um lugar aprazível, nem de dar<br />

medo. Naquele início de tarde, após a internação, Lucinho foi se deitar,<br />

pois não havia dormido e, além disso, queria muito esquecer o ocorrido<br />

na noite anterior; ele só acordou às seis horas da tarde.<br />

- Dormiu muito, heim, companheiro? Disse-lhe, cumprimentando-o, o<br />

colega de quarto, quando Lucinho abriu os olhos.<br />

Esse devia ter não mais de quarenta anos. Era um pouco gordo, cabelos<br />

curtos, quase raspados, assentados num rosto redondo e simpático.<br />

Parecia inteligente. Gustavo, assentado na cama, encostado no travesseiro,<br />

lia o conto “O Marido Enganado”, de Tchekov. Marcou o livro,<br />

fechou-o e continuou:<br />

Você dormiu desde que chegou. Mora em Belo Horizonte?<br />

- Sim, disse-lhe, educadamente, com uma voz enrolada, que custou a<br />

sair. Nem sei bem por que estou aqui. Estou com fome. Desde ontem,<br />

não como nada. Como é este lugar? Está internado há muito tempo?<br />

- Pouco mais de duas semanas. Não é dos piores. Já estive internado<br />

em lugares piores... A comida é razoável. Os enfermeiros, com exceção<br />

de um deles, o Duarte, tratam a gente bem. Dão remédios demais. Eu<br />

mesmo tomo mais de cinco diferentes: Haldol, Akineton, Neozine, Valium<br />

e Tryptanol. Todos dão sono e fome. Acho que engordei três quilos<br />

em duas semanas... Às vezes, dão impregnação...<br />

- Impregnação? Que é isso?<br />

- Você é novato mesmo! É um efeito ruim do remédio. A gente fica com<br />

o corpo todo duro; andando de um lado para o outro, sem parar, como<br />

um zumbi; sem querer a gente fica fazendo movimentos com os músculos,<br />

repuxando pescoço para um lado. O pior é quando o corpo fica<br />

duro, sem poder mexer, doendo na carne. Como um robô, entendeu? O<br />

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movimento fica difícil, depois passa.<br />

- Será que me deram esse remédio? Tenho medo. Pareço-lhe doido?<br />

Aqui não é hospital para loucos?<br />

- Sim, mas você parece bem... É, não sei bem... Tem gente que parece<br />

são e não é. Eu, por exemplo, não tenho nada e estou aqui. Tudo<br />

perseguição. Vim parar no hospital porque descobri que minha mulher<br />

estava me traindo. Traindo não só com um: com vários homens. Ela,<br />

muitas vezes, disfarçadamente, saía de fininho para encontrar com os<br />

namorados. Vieram até para dentro de minha casa...<br />

- Dentro de casa? E o que você fez? Esforçando-se para se mostrar interessado,<br />

quando, realmente, estava cansado desses casos.<br />

- Nada, pois não os encontrei. Quando eu estava dentro de casa, eles<br />

não entravam. Passavam defronte de minha casa para inspecionar<br />

se podiam ou não...Olhavam para a janela, como se nada quisessem,<br />

disfarçadamente, para não serem percebidos...Ela os avisava de que eu<br />

estava lá... através de sinais. Sabe? Ora era um espirro, ou uma tosse, ora<br />

uma toalha pendurada na janela. Outras vezes era queimando incenso.<br />

Um dos namorados é policial; este é o que mais me persegue. Entrei no<br />

ônibus, ele entrou atrás, ficou assentado na cadeira ao lado da minha,<br />

olhando com o canto do olho. Quando eu olhava, ele virava a cara para o<br />

outro lado, como se nada quisesse. Certa vez, para testar minhas suspeitas,<br />

desci, logo após entrar no ônibus. Ele fez o mesmo. Então, rapidamente,<br />

tornei a entrar, no mesmo ônibus. Ele, também, pegou o ônibus e<br />

continuou me espreitando.<br />

- Mas, por quê? Além de andar com sua mulher, te persegue...<br />

- Sim. Essas coisas não são fáceis de explicar... É o que quero entender.<br />

Só pode ser negócio de comunista.<br />

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- Como? Ele é comunista?<br />

- Não! Eu. Eu já fui. Falando baixo: - Até hoje me perseguem por causa<br />

disso. Certa vez, fui internado aqui mesmo... A perseguição foi grande:<br />

mensagens no rádio, nos jornais. As notícias eram claras: “Ele será punido”;<br />

“A polícia fará tudo para prender os culpados”; “O governo não<br />

permitirá arruaças”; “A família do criminoso se acha desestruturada”, e<br />

outras parecidas. Tudo feito para mim, para me colocar doido. Ora, é<br />

fácil descobrir que tudo aquilo tinha um alvo. Mostrar para todos que<br />

eu ia ser pego e punido. Eu torço para o Cruzeiro. Até aí nada de mais.<br />

Entretanto, quando meu time perde, basta um jogo, os atleticanos soltam<br />

foguetes na porta de minha casa ou nas imediações. Tudo para me<br />

gozar. Os automóveis buzinam estridentemente; os atleticanos berram:<br />

bicha, bicha, até o desespero. E não param aí. Uma revista - acho que foi<br />

a Manchete - publicou uma reportagem acerca de Gustavo, que é o meu<br />

nome, colocando-me como homossexual; mostrando meus possíveis<br />

parceiros e tudo o mais. Coisa que eu jamais fui. Uma mentirada danada.<br />

Foi uma vergonha. Sofri meses. Até hoje, quando passo nas ruas,<br />

as pessoas olham para mim e me gozam. Alguns falam às claras : bicha,<br />

bicha, bicha. Como me defender? Já briguei com um e outro, fui à Polícia<br />

Federal e dei parte. Quando entrei para falar com o policial, esfriei...<br />

- Por que?<br />

- Quem lá estava era um perseguidor antigo, apenas disfarçado. Arrumou<br />

um grande bigode, deixou o cabelo crescer, mudou até de cor e<br />

engordou. Tudo para aparentar ser outro. Vi logo que estava perdido.<br />

Queria fugir, mas não tinha mais jeito. Conversou comigo, dissimuladamente,<br />

como é habitual, sem me olhar. Ele sabia que eu tinha percebido<br />

que ele era um dos que freqüentavam minha casa. Eu, fingi nada notar<br />

quando ele perguntou-me, dando suas mensagens: “O que o senhor<br />

deseja?”, disse-me com a voz rouca, muito baixa, para que ninguém ouvisse.<br />

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120


Expliquei-lhe tudo, estava apavorado. Vi que ele estava apressado, queria<br />

se ver livre de mim. Arrumou uma desculpa para me mandar embora<br />

rápido; ao me despedir, após apertar minha mão, senti que ele, com o<br />

indicador, coçou minha mão. Para piorar, ainda, gozou-me, falando e<br />

rindo: - “Tomaremos todas as providências, senhor Gostoso - juro que<br />

ele me chamou assim: de gostoso - “Não será mais importunado por<br />

seus perseguidores”.<br />

Saí de lá pior do que entrei. Imaginei que seria preso, ali mesmo. Tive<br />

sorte ou sei lá o quê. Em seguida um policial que estava no banheiro da<br />

sala do diretor, escondido, olhando pela fresta da porta semi-aberta - eu<br />

observei tudo - começou a me seguir pelos corredores da polícia, em todos<br />

os lugares que entrava. É terrível. Às vezes, quando sou perseguido,<br />

xingo, mando o nome da mãe. Eles riem mais ainda, não se importam;<br />

falam que eu estou louco. As mulheres debocham de minha impotência.<br />

Tudo falso. Gosto de mulheres. Apenas, não sinto muita atração pela<br />

minha. Ela é feia e, pior do que tudo, tem um cheiro estranho. Me lembra<br />

enxofre queimado...<br />

Ele ouvia tudo, espantado. Aos poucos, foi se recuperando do sono.<br />

- Certa vez, continuou Gustavo, fugi de Belo Horizonte, em direção a<br />

Liberdade de Minas, a cidade onde nasci. Nos primeiros dias, como<br />

quase ninguém sabia da minha ida, não tive aborrecimentos. Mas, aos<br />

poucos, as pessoas da cidade - comerciantes, meninos da escola, até<br />

pedintes - começaram a caçoar de mim, falando as mesmas coisas de<br />

sempre: comunista, corno manso, veado e tudo mais. Acho que foi a<br />

imprensa que divulgou, para todos, onde eu estava e como me provocar.<br />

Sem que ninguém desconfiasse, fui até uma banca de jornal e fiquei<br />

lendo. O vendedor ficou me espreitando de rabo de olho. As manchetes<br />

dos jornais só traziam notícias a meu respeito. É claro que o jornaleiro<br />

sabia: “Foragido da Polícia se esconde no interior de Minas”, e, também,<br />

“Homem gordo, aparentando ter quarenta anos, é suspeito de comandar<br />

as invasões”; “Autor de crime desaparece”. Tive que voltar, pois nada<br />

adiantou minha fuga, meu esconderijo. Em pouco tempo, todos sabiam<br />

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quem eu era, passei a não mais sair da pensão onde estava. Lá, tive dor<br />

de barriga: puseram veneno na comida. Passei a tomar apenas leite, pois<br />

todos sabem que o leite combate os venenos. Deve ser o pessoal do jornal,<br />

onde trabalhei, que resolveu me dedurar...<br />

- Você, então, é jornalista?<br />

- Fui. Estou aposentado. Trabalhei, por uns tempos, como repórter policial.<br />

Vi muita injustiça e agressão, mas nunca fiz nada contra ninguém,<br />

muito menos contra os policiais. Não gosto deles, mas os respeito. Não<br />

sei por que os delegados e detetives me perseguem. Sei de muita coisa.<br />

Tudo guardado aqui, oh, na cabeça. Trabalhei, depois, na política. Mais<br />

problemas, pois vi mais coisas, ainda que não se podem escrever nos<br />

jornais. Fui atropelado, provavelmente por algum deputado. Devido<br />

as fraturas, tive que ficar internado vários meses. No hospital conheci<br />

minha mulher que é enfermeira. Ela é culta e inteligente mas, como lhe<br />

falei, tem o tal cheiro estranho. Será de capeta? Sei lá. Eu não acredito<br />

nisso, mas tem gente que fala que eles podem se incorporar nos seres<br />

humanos, até em alguns animais; bode, por exemplo. Tenho que suspeitar<br />

dela, pois veja: ela usa, determinadas horas, um cabelo formando um<br />

chifre. Tudo para me gozar. Penso que ela quer me espantar, para que eu<br />

fuja e, assim, fique livre para andar com todos os homens que deseja.<br />

Nesse momento, a porta do quarto é aberta. Entra um enfermeiro alto,<br />

forte, bem barbeado, novo ainda, educado, que se dirige, amavelmente,<br />

para Gustavo e, depois, para Lucinho. Cumprimenta-os.<br />

- Como vai? Dormiu muito? Deseja jantar ou tomar um lanche? Trouxe<br />

umas roupas, que sua família deixou para você e, também, estes livros.<br />

- Livros? Deixe-me ver, apressou-se Gustavo em olhá-los: “Vinhas da<br />

Ira” e ‘Ressurreição”...Já li os dois. Gostei mais deste, de Tólstoi; uma<br />

linda história de amor: o homem era um apaixonado pela mulher, que<br />

acabou sendo prostituta, condenada por roubo e assassinato. Mas era<br />

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tudo trama contra ela; parece com meu caso. Os assassinos eram outros.<br />

É sempre a injustiça imperando.<br />

- Leio muito, também, comentou, sem saber o que falar... Vou tomar o<br />

lanche.<br />

Desse modo, ele imaginou se afastar um pouco do falante Gustavo,<br />

visitar a enfermaria, sair daquele quarto abafado, de pequenas janelas,<br />

que mais parecia uma cela de prisão. Vestiu um pijama limpo, que lhe foi<br />

entregue pelo enfermeiro. Procurou na sacola um chinelo, o mesmo que<br />

sempre usava em casa, calçando-o, passou pela porta, educadamente aberta<br />

pelo amável enfermeiro, que o conduziu até um salão, onde outros<br />

pacientes tomavam chá, café, chocolate com torradas e bolo. Alguns discutiam<br />

futebol, outros assistiam na televisão, colocada num suporte bem<br />

alto, a um programa de auditório, onde cantores se exibiam, enquanto<br />

duas mulheres dançavam quase nuas.<br />

Num canto do salão, aglomerava-se um grupo de pacientes, indiferentes<br />

ao programa da televisão e ao lanche. Todos estavam interessados numa<br />

mulher ali presente. Lucinho se aproximou mais do grupo, curioso, para<br />

se certificar do que estava ocorrendo. Nesse aglomerado de homens,<br />

estranhou encontrar, falante e animada, uma bela mulher alta, de cabelos<br />

ligeiramente anelados e longos, grandes brincos de argolas amarelas,<br />

sapatos de saltinhos arroxeados, uma calça de linho bege e uma camisa<br />

branca e fina, parecendo de seda. O rosto, muito pintado, mostrava,<br />

principalmente, os lábios vermelhos e proeminentes, que guardavam os<br />

dentes muito claros. Mas, aos poucos, chegando mais perto, teve uma<br />

decepção: a bela mulher falava numa voz de falsete e era, de fato, travesti.<br />

Os pacientes, à sua volta, estavam entusiasmados com sua presença<br />

naquele ambiente sem mulheres. No início da noite, a direção do hospital,<br />

para evitar os tumultos que começavam, transferiu o paciente para<br />

a enfermaria de mulheres. A calma e harmonia voltaram a imperar na<br />

seção.<br />

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O médico, contratado pela família para cuidar de Lucinho, entrou no<br />

hospital, no início da noite. Educado e gentil, levou-o para o seu quarto,<br />

tendo pedido a Gustavo para deixá-los a sós, por uns instantes. A conversa<br />

foi rápida, não tendo durado mais do que cinco minutos. Lucinho,<br />

por mais que quisesse desabafar, não conseguiu, pois não lhe foi dado<br />

tempo. Ele queria discutir os diagnósticos anteriores do seu caso. Não<br />

foi permitido:<br />

- Doutor, como é mesmo seu nome? Eu esqueci.<br />

- Dr. George.<br />

- Pois bem, Doutor. Eu já fui examinado por diversos psiquiatras...<br />

- Eu sei disso. Sua mãe me contou. Todos imbecis...<br />

- Como? O Prof. Pinelli não...<br />

- Você tem um Transtorno de Personalidade “Borderline”.<br />

- Não entendi. Você nem me examinou, nada conversou comigo. Nunca<br />

ouvi isso. Nenhum me falou isso... O que significa esse transtorno?<br />

- Primeiro, é difícil explicar para um leigo. Segundo, caso eu quisesse<br />

explicar, não teria tempo. E, terceiro, caso tivesse tempo, você não entenderia<br />

minhas explicações. Portanto, para que falar? Para nada? Você é<br />

o cliente e eu sou o médico. Eu trato e você aceita minhas orientações.<br />

Vou lhe receitar...<br />

Dr. George tira do bolso folhas do receituário da clínica e começa a escrever,<br />

continuando suas explicações:<br />

- Você tomará, durante um mês, um antipsicótico, para diminuir sua<br />

excitação e agressividade...<br />

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- Mas eu não estou agressivo...<br />

- Mas ficou!... E fica sem mais nem menos. Tomará, também, um antidepressivo<br />

para as depressões...<br />

- Não me sinto deprimido.<br />

- Quem sabe sou eu, não você! Eu faço os diagnósticos. Você me fornece<br />

os dados ou pistas e deve obedecer. Esse é o seu papel.<br />

- Mas, ainda não fui examinado.<br />

- Para quê? Eu tenho olho clínico. Basta ver e já vi milhares de pacientes<br />

iguais a você. Além disso, ouvi de sua mãe sua história, semelhante a<br />

todas histórias dos “borderlines”. Para que um papo que não leva a nada?<br />

Rodear, rodear, fingir que está procurando quando já encontrou...tudo<br />

para chegar onde já sei...O diagnóstico está pronto. Vamos ao tratamento,<br />

isso é que interessa! Não gosto dessa lengalenga dos terapeutas:<br />

uma conversa fiada, sem objetivo, ou melhor, para ganhar dinheiro do<br />

cliente, para fingir que estão descobrindo e, depois, tratando. Comigo é<br />

diferente; é pá e bola.<br />

- Mas, uma história dita por minha mãe... Não é diferente da minha?...<br />

Eu gostaria de contar-lhe a minha versão...<br />

- Claro que é! Mas também, não! Sempre são versões, suposições acerca<br />

de fatos. Ela é tão confiável quanto você; e quer o seu bem. Para dormir,<br />

vou te receitar um ansiolítico, que poderá ser tomado, caso esteja nervoso,<br />

durante o dia. Tudo certo?<br />

- Já estou nervoso depois dessa conversa.<br />

- Então, comece a tomar agora um deste aqui, o ansiolítico... Aponta o<br />

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assinalado.<br />

Passa um enfermeiro que é incumbido de dar os medicamentos ao paciente.<br />

- Mais um ponto - continuou o Dr. George - se não der certo essa medicação,<br />

daremos eletrochoque.<br />

- Eletrochoque! Quer me matar?<br />

- Não mata ninguém... E não dói. É um remédio salvador em muitos casos.<br />

Não se assuste. Mais um recado: amanhã é sábado, irei para minha<br />

fazenda pois tenho que vacinar o gado. Tem aparecido muita aftosa por<br />

lá. Preocupo-me também com as vacas. Não posso viver só junto dos<br />

clientes; elas me tomam muito tempo. Por isso, não virei aqui amanhã,<br />

nem no domingo. Se tiver algo de urgência, há o residente para ajudá-lo,<br />

eles são ótimos e prestativos. Até segunda.<br />

- Até segunda.<br />

Ele estava desesperado. Pensou em tentar, ali mesmo, o suicídio. Mas<br />

como? Ficou parado; assentado na cama, por alguns momentos, sem se<br />

mexer, fechado no quarto sem móveis.<br />

Logo após a saída do médico, voltou o enfermeiro com um copinho,<br />

onde estava o ansiolítico receitado.<br />

- Beba, falou com delicadeza.<br />

- Mas, precisa?<br />

- São ordens. Vai te ajudar a se acostumar com o hospital.<br />

Nesse momento, aparece Gustavo, que entra na conversa.<br />

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- Pode tomar. É do mesmo que tomo. Dá um descanso na gente... Parece<br />

como se tivéssemos tomado um copo de pinga. A ressaca é pequena...No<br />

caso do calmante. Tomei vários desses, já lhe falei.<br />

- Sim, vou tomá-lo. Ele fingiu tomar os comprimidos e os guardou debaixo<br />

do lábio inferior. Bebeu o copo d’água, despediu-se do enfermeiro<br />

e foi ao banheiro, fingindo urinar e, lá, cuspiu o comprimido que amargava<br />

a boca junto com a saliva grossa. “É o que farei; irei cuspir todos<br />

o medicamentos desse médico, não falarei para ninguém, nem para<br />

Gustavo, pois ele fala demais”, pensou.<br />

Mais tarde, teve dúvidas se devia ou não ter tomado os comprimidos<br />

calmantes. Parece que, para tolerar o hospital, o vazio e o tédio, era<br />

necessário ingerir os medicamentos que acalmam, tampam a mente,<br />

impedindo-nos de pensar. O Dr. George, talvez, tivesse experiência e<br />

razão.<br />

Os dias se passaram, todos iguais, no Hospital Schneider.<br />

Parece que, num ambiente com poucos estímulos, sem objetivos importantes<br />

- como ocorre nas pequenas cidades do interior - qualquer<br />

acontecimento ganha destaque e diverte as mentes ávidas por notícias:<br />

um cão que foi atropelado, uma vaca que dá muito leite, o casamento<br />

da solteirona. No hospital acontecia a mesma coisa. À noite, em torno<br />

de um paciente que estava internado no hospital há mais de dez anos,<br />

reunia-se um grupo para jogar truco. Aristeu, um verdadeiro “rato de<br />

hospital”, sabia de vários casos ali acontecidos. Todos, ao se reunirem<br />

em torno de Aristeu, estavam mais interessados em ouvir as histórias<br />

contadas por ele, primo do diretor, ex-alcoólatra, jogador de pôquer e,<br />

constantemente desempregado. Suas longas histórias começavam sempre<br />

com a pergunta:<br />

- Alguém se lembra da Conceição?<br />

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A resposta óbvia era não. Todos estavam internados ali há pouco tempo<br />

e iriam embora, logo. Lucinho, sem ter outra coisa a fazer e para escapar<br />

das idéias de perseguição de Gustavo, começou a se reunir com o grupo.<br />

Às vezes, até se divertia.<br />

- Ninguém se lembra da Conceição? Ela foi internada aqui, há muito<br />

tempo. Era uma protegida do Dr. Otávio, um médico antigo e famoso na<br />

capital. Foi diretor desse hospital. Tinha sido até Secretário de Saúde, no<br />

governo de ... Não me lembro, mas isto não tem importância. Lembramse<br />

dela?<br />

Todos ficavam calados, esperando a continuação da história. Aristeu<br />

ficava nervoso se alguém conhecesse a paciente e entrasse na conversa.<br />

E assim ele contava uma longa história. De repente, um dos jogadores,<br />

menos interessados nos casos, bradava:<br />

- Truco! Vale seis!<br />

Não foi contestado. Deixavam que ele ganhasse o truco, sem se importarem,<br />

pois os casos pareciam mais interessantes. Para outros, já dopados<br />

pelo excesso de medicamentos, as histórias eram um excelente<br />

sonífero.<br />

- Eu sempre gostei dos dias de visitas - continuava Aristeu sem se importar<br />

com o jogo. Às vezes, ganhava alguns presentes, ao ajudar os<br />

pacientes a encontrarem suas famílias. Tinha uma senhora simpática<br />

que ia lá mais pra me ver do que para visitar o marido. Gostei muito<br />

dela. Ela sumiu, depois que seu marido foi transferido para Barbacena.<br />

Não mais deu notícias. Penso muito nela... As visitas eram às quintas<br />

e domingos, na parte da tarde, continuou, preparando-se para contar<br />

mais um caso. Antes, olhou as horas para ver se dava tempo, pois às dez<br />

horas, todos tinham que ir para seus quartos.<br />

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- O hospital, nos dias de visitas, enchia-se de familiares dos pacientes,<br />

cada um trazendo comidas e agasalhos em suas sacolas de supermercado.<br />

Os encontros, freqüentemente, provocavam fortes emoções, às vezes,<br />

com discussões, queixas e até brigas. Após as visitas, muitos pacientes<br />

pioravam e tinham crises nervosas. Os enfermeiros recebiam algumas<br />

migalhas a mais - completando o seu magro salário.<br />

Foi numa quinta-feira, à tarde, num dia movimentado de visitas, que<br />

Dr. José Porto saiu do hospital e pediu ao plantonista para aplicar um<br />

eletrochoque num dos seus pacientes, que deveria procurá-lo, em torno<br />

das três horas. Exatamente às três, apareceu na portaria um senhor, que<br />

procurava Dr. Porto. O plantonista, já avisado, foi ao seu encontro.<br />

- Está procurando o Dr. José Porto? Ele me avisou, teve que sair e pediume<br />

para ajudá-lo. Entre aqui.<br />

- Sim. Vim me encontrar com ele, confirmou o senhor, que vestia uma<br />

calça de brim amarela e uma camisa azul celeste.<br />

Ele quase não falava de tanta timidez. Foi seguindo o Dr. Josué Costa, o<br />

gentil plantonista, até uma sala sombria, onde estava uma maca.<br />

- Pode-se deitar aí, nessa mesa, disse-lhe gentilmente o Dr. Josué.<br />

Segurando-o pelo braço, ele o ajudou a subir a pequena escada e a<br />

deitar-se na maca. O homem, tendo os olhos espantados, suando, nada<br />

disse. O médico imaginou: “É o medo; todos têm”. Chamou dois enfermeiros<br />

fortes e sérios, que chegaram carregando um pesado aparelho<br />

embutido numa caixa amarelada de madeira. O aparelho foi aberto<br />

e ligado na tomada elétrica, fazendo com que uma pequena lâmpada<br />

vermelha se acendesse. Enquanto isso, o homem permanecia deitado na<br />

maca, sem nada entender do ritual que se desenrolava. Uma vez ligado o<br />

aparelho, foram puxados dois pequenos condutores elétricos, tendo nas<br />

suas extremidades duas pequenas placas de metal. O enfermeiro umede-<br />

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ceu um pedaço de algodão com água da torneira e, em seguida, passouo<br />

nos dois lados da testa do senhor que continuava deitado. Dr. Josué foi<br />

até ao aparelho e girou um pequeno botão de voltagem até 750 miliamperes;<br />

girou outro, marcando 0,5 de segundo. Pediu, delicadamente, para<br />

que o senhor abrisse a boca. Colocou um chumaço de algodão, enrolado<br />

num papel azul do pacote de algodão, de um canto ao outro de sua boca<br />

e mandou que ele fechasse firmemente a mandíbula, de modo a morder<br />

o algodão. O senhor, sempre sem entender, obedecia a tudo. Nesse<br />

momento, o médico percebeu que o senhor usava uma dentadura. Após<br />

retirar o chumaço de algodão, pediu-lhe que a retirasse e a colocou em<br />

cima da mesa, onde estava o aparelho ligado à rede elétrica. Retirada a<br />

dentadura, novamente foi colocado o chumaço. Um enfermeiro passou<br />

por detrás de sua cabeça, segurando-a firmemente, no queixo, puxandoo<br />

para trás. Fez, nesse momento, um leve sinal de cabeça para o médico,<br />

indicando que estava tudo pronto. Ele colocou as duas pequenas chapas<br />

de metal nos lados da fronte do senhor, no local molhado, firmando-as<br />

com o auxílio da tira de borracha, da largura das placas, apertando-as<br />

bem, para que tivessem um bom contato com a pele.<br />

- Não vai doer nada, ouviu? Fique calmo.<br />

O paciente, tendo o chumaço de algodão dentro da boca fechada, nada<br />

pôde dizer e continuava quieto. O Dr. Josué voltou ao aparelho, verificou<br />

tudo, mexeu num e noutro botão, pediu ao enfermeiro para firmar o<br />

queixo do senhor. Vendo que tudo estava certo, fez um último sinal com<br />

a cabeça para os enfermeiros e pronto: apertou um botão preto.<br />

Por uns trinta segundos, todos os músculos do corpo do senhor se<br />

enrijeceram. Sua respiração parou temporariamente. Após esse período<br />

inicial de endurecimento muscular, apareceram fortes contrações, provocando<br />

flexões dos antebraços, sobre seus braços e, das coxas, sobre<br />

o tronco. Os fortes enfermeiros ali postados continham as contrações<br />

impedindo que os membros, inferiores e superiores, se fletissem totalmente.<br />

Durante mais trinta segundos, ainda sem respirar, o paciente era<br />

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só contrações musculares violentas, que foram diminuindo, aos poucos,<br />

até terminarem. O senhor, branco como o algodão colocado na sua<br />

boca, suava. Desmaiado, mais parecia um morto. Após mais alguns segundos,<br />

a respiração voltou com inspirações profundas e lentas. Também,<br />

aos poucos, a cor avermelhada e morena de sua pele, queimada pelo sol,<br />

retornou ao que era antes da passagem da corrente elétrica. Estava tudo<br />

bem: o aparelho, desligado e guardado: o suor de sua face, enxugado.<br />

Nesse instante, o Dr. Josué foi chamado novamente à portaria e pediu a<br />

um enfermeiro que ficasse cuidando do senhor para que ele não caísse<br />

da maca, enquanto estivesse desacordado - o que duraria ainda uns<br />

trinta minutos.<br />

Ao chegar à portaria, lá estava um outro senhor, procurando o Dr. José<br />

Porto. O Dr. Josué ficou um pouco apreensivo, imaginando o que poderia<br />

ter ocorrido.<br />

- Está procurando o Dr. Porto? Ele saiu. O que deseja? Falou um pouco<br />

trêmulo.<br />

- Sim. Procuro. Ele saiu? Como assim? Ele me pediu para vir aqui...<br />

- Para que? Perguntou Dr. Josué assustado, quase certo de ter cometido<br />

um engano.<br />

- Para que ele me aplique um eletrochoque. Eu tomo eletrochoque, após<br />

minha alta, três vezes por semana: terças, quintas e sábados. Hoje é dia.<br />

- Eletrochoque? Ah! Sim. Como não? Entre, por favor...Não!... Espere<br />

um pouco. Um instante só, entendeu?<br />

Saiu apressadamente para o local, onde permanecia deitado e ainda desmaiado<br />

o senhor que, minutos depois, recuperou a consciência. Ainda<br />

um pouco confuso, depois de algum tempo, conseguiu explicar quem<br />

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ele era. Fora ao hospital visitar seu filho que estava internado e que era<br />

cuidado pelo Dr. Porto. Queria encontrá-lo, apenas, para saber se podia<br />

levá-lo, de alta, para casa.<br />

- Boa noite para todos, despediu-se Lucinho, dirigindo-se para o quarto<br />

acompanhado de Gustavo.<br />

A permanência de Lucinho no hospital não durou muito. Não estava<br />

tomando nenhum remédio. Cuspia-os todos no vaso. Seu médico<br />

imaginava que ele estava melhorando, a cada dia mais. Como tinha um<br />

bom comportamento, sendo inteligente e capaz de conversar, em pouco<br />

tempo conseguiu a amizade e intimidade dos enfermeiros e vigilantes<br />

do hospital. Saía, a qualquer hora, para comprar jornais e comestíveis<br />

por perto. Foi numa dessas idas à mercearia, em frente ao hospital,<br />

que Lucinho ficou conhecendo Virgínia. Na verdade, eles já tinham se<br />

encontrado ali, por diversas vezes, fazendo pequenas compras para eles<br />

mesmos ou para companheiros internados, que não tinham tal regalia.<br />

Numa tarde, ele estava escolhendo laranjas, quando dele se aproximou<br />

Virgínia. Ela parecia não ter mais do que vinte e cinco anos. Era um<br />

moça alegre, um pouco mais baixa do que ele, morena, bonita e, principalmente,<br />

simpática e desinibida. Conversava com todos na mercearia,<br />

onde era muito conhecida e estimada. Vestia, nesse dia, um saiote bem<br />

pequeno, que punha à mostra sua belas pernas, um pouco brancas. Magra,<br />

usava um “bustier” branco, que permitia uma visão atraente de seu<br />

busto bem formado. Foi ela quem iniciou a conversa:<br />

- Você também está internado no hospital? Vejo-o sempre.<br />

- Sim. Eu te vejo, também. Até pensei em me aproximar de você. Fiquei<br />

em dúvida. Sou cheio delas...<br />

- Que bobagem. Eu sou muito falante, tá vendo? Não queria ir-me<br />

embora sem levar algumas recordações daqui... Deixe-me escolher as<br />

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laranjas para você. Homem não conhece isso, essas que escolheu estão<br />

verdes demais, provavelmente azedas...<br />

- Devem ter o gosto da vida.<br />

- Hum!... Nada. Tá querendo bancar o inteligente, hein?<br />

Lucinho corou de vergonha e Virgínia continuou:<br />

- Oh! Ficou sem graça, coitadinho?<br />

Nesse momento, ela deu um passo em sua direção e o abraçou repetindo,<br />

“coitadinho”, ali mesmo, na presença de todos, com muita naturalidade<br />

e ternura. Esse gesto, apesar da falta de graça, fez com que ele<br />

simpatizasse com ela.<br />

Escolhidas e pesadas as laranjas, os dois saíram, caminhando juntos até<br />

ao hospital. No caminho, ele ficou sabendo que ela teria alta dali a três<br />

dias.<br />

Conforme o combinado, Virgínia foi até onde ele estava internado e<br />

tirou diversas fotografias do lugar e das pessoas, principalmente de<br />

Lucinho. Apenas Gustavo evitou aparecer, pois desconfiou, imaginando<br />

que tudo aquilo tinha um fim: arrumar mais provas contra ele, para<br />

puni-lo ou matá-lo. Nos diversos encontros que tiveram, ficou sabendo<br />

que ela era mais velha do que ele havia imaginado. Era arquiteta, estava<br />

com casamento marcado para aqueles dias e o seu noivo vinha diariamente<br />

visitá-la. Ela foi internada devido às crises de bulimia e cleptomania,<br />

sobre as quais ela falava sem se importar. No sábado pela manhã a<br />

nova amiga recebeu alta e Lucinho foi até a secretaria do hospital para se<br />

despedir dela.<br />

Após a saída de Virgínia, a vida no hospital piorou para Lucinho. Os<br />

poucos encontros que tiveram lhe fizeram bem. Passou a desejar, o mais<br />

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depressa possível, sair dali. Na segunda-feira, após longa espera, conseguiu<br />

conversar com seu médico e lhe pediu para ir embora. Já não<br />

havia mais motivos para permanecer internado. Entretanto, sem ligar<br />

para suas ponderações, o médico evitou marcar um dia da alta, falando<br />

apenas que ia pensar acerca do pedido. Após o encontro frustrante, ele<br />

decidiu agir de outro modo. Percebendo que tinha liberdade e todas<br />

as facilidades para sair à rua, não foi difícil para ele, interromper sua<br />

permanência no hospital, de uma vez por todas. Teve a ajuda de Gustavo<br />

que, para evitar suspeitas jogou suas roupas pela janela. Estas caíram<br />

perto de onde haviam combinado. Pegou o embrulho, entrou no supermercado<br />

onde fazia compras, foi até o banheiro e lá trocou de roupa,<br />

passando a usar a mesma roupa com a qual se internara. Calmamente,<br />

voltou para casa.<br />

Sua família, acostumada a tudo, não se espantou ao vê-lo. Perguntaramlhe<br />

o que ocorrera e ele, sem esconder, falou que não agüentava mais<br />

ficar no hospital. Estava na hora de sair. Não aplaudiram sua idéia, mas<br />

também não o contestaram. A partir desse dia, ele passou novamente a<br />

viver com a família.<br />

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Adeus às Ilusões<br />

Lucinho, logo após sua fuga do hospital, decidiu procurar Sefira. Sua<br />

presença era constante em sua mente. Procurou se esmerar para o esperado<br />

encontro. Tomou um bom e demorado banho, vestiu a melhor<br />

roupa. Lembrava-se bem do pequeno quarto da rua Guaicurus.<br />

A noite estava clara. A temperatura amena. Uma lua cheia começava a<br />

nascer bela no céu estrelado. Era uma terça-feira, dia de pouco movimento<br />

na zona boêmia. Ele chegou rápido ao seu destino. Passou antes<br />

diante do hospital, onde a viu pela última vez. Lembrava com sofrimento<br />

da imagem de Sefira, abraçada ao gigolô, protegida pelo guardachuva.<br />

Sentia ódio, ao imaginar o poder daquele homem grosseiro e<br />

agressivo sobre aquela mulher delicada e gentil.<br />

Não foi fácil achá-la. Procurou-a na velha casa. Mas o pequeno quarto<br />

tinha nova moradora: uma mulher bem mais velha que mal conversou<br />

com ele.<br />

- Boa noite, foi dizendo, decepcionado e com dificuldade, pois esperava<br />

encontrar Sefira.<br />

- Boa noite, respondeu com voz pastosa e grossa a feia mulher que veio<br />

recebê-lo, mancando da perna direita, imaginando ser um freguês. -<br />

Hoje, não estou trabalhando; tomei um tombo, destronquei esta perna,<br />

dói muito. Volte outro dia.<br />

- Desculpe-me, estou procurando uma moça - não sabia que palavra<br />

usaria: moça ou mulher - ela se chama Sefira, morava aqui.<br />

- Não conheço. Moro aqui há quinze dias... O que você quer com ela?<br />

- Sou um amigo... Preciso encontrá-la. Não sabe onde ela está morando?<br />

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- Já lhe disse que não! Ela fez alguma coisa errada? Roubou de alguém?<br />

Você é “tira” ?<br />

- Não, não se trata disso.<br />

- Não precisa me enganar, sei que você é policial. Eu os conheço de<br />

longe. Se soubesse alguma coisa, falaria. Não escondo nada. Eu sei que<br />

não devo nada a ninguém!<br />

Sem sair da porta, semi-aberta, a moradora começou a fechá-la, quase<br />

empurrando Lucinho.<br />

- Não sabe mesmo? Perguntou desanimado, pela última vez.<br />

- Não! Passe bem.<br />

Não foi dessa vez o encontro. Entretanto, o fracasso não o desanimou.<br />

Ele continuou a procura. Foi atrás da mulher que morava no quarto dividido<br />

pelo tapume. Não foi fácil. Ela estava trabalhando, demorou cerca<br />

de quinze minutos para atendê-lo. Ele, ao entrar no cubículo, deu-lhe alguns<br />

trocados e contou-lhe minuciosamente o encontro que tivera com<br />

Sefira, para evitar que a mulher também, imaginasse ser ele um policial<br />

ou um vingador qualquer. Mais gentil, entretanto, ela pouco informou:<br />

- Não sei para onde ela foi. Sei que ficou doente; acho que foi pneumonia.<br />

Tomou muita chuva naquela enchente. Foi internada na Santa Casa.<br />

- Como é seu nome?<br />

- Miréia, por que?<br />

- Miréia, quero lhe pagar pela informação, sou amigo dela, preciso<br />

encontrá-la.<br />

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- Eu sei que ela estava sem dinheiro, o pouco que ganhava dava ao<br />

Olegário. O que sobrava, não dava nem para pagar o quarto. Ao retornar<br />

do hospital, foi despejada...mesmo estando ainda doente.<br />

- Não sabe onde está? Para onde foi? Preciso encontrá-la! Sabe se tem<br />

parentes, amigas, em algum lugar?<br />

- Sei que é comum às mulheres de <strong>nosso</strong> grupo, as que não têm dinheiro,<br />

quando estão passando dificuldade, procurar um abrigo, aqui perto. Ele<br />

fica na rua Paquequer. Lá, tem cama e comida, muito ruim, mas melhor<br />

do que nada... Ah! Ela tem uma amiga; estavam sempre juntas. Mora no<br />

Hotel Maravilhoso, é logo ali, nesta mesma rua mais para cima. Eram do<br />

mesmo lugar. Ela deve saber onde ela está morando...<br />

Ele ficou preocupado com o que ouviu. Sentia-se culpado por não ter<br />

feito algo por ela.<br />

Passou primeiro no abrigo. Uma funcionária de cara fechada, com<br />

extrema má vontade, olhou as anotações. Depois de algum tempo, sem<br />

nada dizer, sem fitá-lo, informou-lhe que nenhuma mulher com o nome<br />

de Sefira, esteve abrigada ali. Disse-lhe mais, sempre sem olhá-lo, que<br />

esteve internada, por quatro dias, uma mulher como ele descreveu:<br />

morena, de dezenove anos, natural de Salinas. Mas o nome dado foi Luzia<br />

e não Sefira. Depois de implorar, por diversas vezes, Lucinho obteve<br />

permissão para entrar no dormitório. Imaginava poder encontrar sua<br />

irmã de criação, como ele havia dito à cansada funcionária.<br />

No grande salão escuro, cheirando a mofo e urina, encontravam-se<br />

algumas mulheres, dormitando. Examinou, uma a uma. Constatou,<br />

tristonho e decepcionado, que Sefira não estava entre elas. Ainda, não de<br />

todo derrotado, foi até o Hotel Maravilhoso, à procura de Lisa, a amiga<br />

e conterrânea dela. Teve que esperar um freguês sair do quarto. Aproximou-se<br />

da mulata de cabelos oxigenados, com cuidado:<br />

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- Você é a Lisa?<br />

- Sim, vamos entrar? - disse sorrindo, e já começando a tirar a roupa.<br />

Tem muito tempo que você não vem aqui. Estava viajando?<br />

- Não! Bem...Não tire a roupa. Vim aqui por outros motivos. Não te<br />

conheço; nunca transei com você.<br />

- Uai, então o que estou esperando? Saia logo. Tenho o que fazer. Como<br />

sabe meu nome?<br />

- Uma sua amiga me deu esse endereço. Preciso de uma informação<br />

muito importante . Não sou policial! Sou amigo dela. Fui procurá-la,<br />

mas tive notícias de que adoeceu. Quero ajudá-la.<br />

Ainda não foi dessa vez que conseguiu seu objetivo. Após essas explicações,<br />

Lisa amansou e foi mais gentil. Entretanto, mostrava pressa em<br />

despachá-lo, frustrada com o encontro imaginado.<br />

Contou-lhe que Sefira foi internada. Com o tratamento, ela melhorou<br />

da pneumonia. Entretanto, não voltara a trabalhar; pensava abandonar<br />

aquela vida: estava ganhando pouco e traumatizada que ficou com a<br />

morte das colegas, uma das quais era sua amiga íntima. Estava morando<br />

na casa de uma prima, no Bairro Tirol. O lugar certo, ela não sabia. O<br />

bairro era longe.<br />

Lisa apenas sabia o nome do bairro; não sabia o nome da rua nem seu<br />

número. Disse-lhe, para ajudá-lo, que era perto de uma padaria e que a<br />

prima era conhecida por Tina.<br />

No dia seguinte, cedo, ele pegou o ônibus para o Bairro Tirol. Era<br />

procurar agulha no palheiro. Desceu numa praça onde encontravase<br />

uma padaria. Perguntou ao caixa, depois, a alguns empregados e<br />

fregueses, se conheciam Tina. Ninguém conhecia. Entretanto, descobriu<br />

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que havia uma padaria, um pouco adiante. Caminhou até lá. Novas perguntas.<br />

Depois de muita frustração, uma mocinha que fora comprar pão<br />

disse-lhe conhecer uma pessoa com o nome de Tina. Novas esperanças<br />

conduziram-no até o barraco de três cômodos, à beira de um pequeno<br />

córrego que recebia o esgoto do bairro.<br />

Finalmente, encontrou Tina. Quando ele começava a perguntar-lhe<br />

sobre Sefira, ele a avistou, ao lado da casa, brincando com algumas crianças.<br />

Seu coração bateu forte; o suor escorreu pela testa. Abandonou,<br />

bruscamente, a conversa, correndo em direção a ela, que, ainda, não o<br />

tinha percebido. Animado, ofegante, ele se postou à sua frente. Olhou-a<br />

sorridente, e tentou abraçá-la. Foi prontamente empurrado para trás, pelos<br />

braços de Sefira que, espantada e com medo, afastou-se. Não o havia<br />

reconhecido. Decepcionado ele falou quase sem ar:<br />

- Como vai? Estou atrás de você.<br />

- O quê? Quem é você? O que você quer? perguntou Sefira, assustada<br />

com aquele desconhecido diante dela, com ares de intimidade.<br />

- Não se lembra de mim, de Lucinho? Não, não, de Lúcio. Nós nos<br />

encontramos lá, você não se lembra? Ele teve vergonha de dizer o local<br />

exato.<br />

- Não estou me lembrando! Não te conheço.<br />

- Aquela noite, a da enchente, nós estávamos no quarto...<br />

- Enchente? Ah! Sim. Agora me lembro. Aquele dia em que morreram as<br />

mulheres.<br />

Sefira lembrava-se muito mais da tempestade, do rio Arrudas transbordando,<br />

da morte da amiga, da pneumonia que teve. Entretanto, para<br />

decepção de Lucinho, quase nada lembrava acerca dele; o pouco, era<br />

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sem nenhum entusiasmo. Fora tanta procura, para aquela frieza da parte<br />

dela.<br />

- Certo! Tenho te procurado... Fiquei uns dias fora; é... é... viajei; fui à<br />

minha terra.<br />

- Eu saí de lá, adoeci...<br />

A conversa continuou nesse pé: ele, frustrado, ainda tentava manter uma<br />

alegria não mais existente. Sefira, por sua vez, mostrava-se indiferente,<br />

queria se descartar dele, o mais depressa possível. Ela, possivelmente<br />

mais acostumada às frustrações, evitava ter mais outra; tinha medo,<br />

desconfiava, perguntava-se: “O que deseja um homem bonito e limpo,<br />

que deve ter dinheiro, educado? Jamais estará interessado em mim, que<br />

nada tenho.” Ela gostaria de saber a razão dessa procura: “Vir de longe<br />

para me procurar, depois de mais de um mês sem me ver, após um único<br />

encontro, que nem transa teve. Tem alguma coisa estranha nisso”.<br />

Conversaram durante algum tempo, sob a guarda da prima. Ela não<br />

apoiava esse encontro com um estranho. Ele, depois de algumas tentativas,<br />

percebeu, desanimado, que era melhor ir embora, para não piorar<br />

mais ainda a ligação pretendida. De qualquer forma a havia encontrado,<br />

o que era o mais importante. Despediu-se amavelmente de Tina e Sefira.<br />

Pediu permissão para lhes fazer nova visita. Anotou, com cuidado, o<br />

endereço.<br />

A partir desse encontro frio e frustrante, outros aconteceram. Tina<br />

passou a confiar nele, até a gostar do seu jeito tímido e educado. Rapidamente,<br />

formou-se, também, uma grande amizade entre os dois filhos<br />

dela e Lucinho, o que fortaleceu as ligações com a família. Mas, mesmo<br />

assim, Sefira continuava desconfiada e desinteressada dos encontros.<br />

Apesar da indiferença dela que ele mal percebia, possivelmente devido à<br />

paixão, ele tornou-se íntimo da pequena família. Aos poucos, passou a<br />

ser o homem da casa, tratado como uma pessoa importante, inteligente,<br />

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que os ajudava em quase tudo: cuidava do conserto das torneiras, discutia<br />

com o vizinho o gasto exagerado da água que deveria ser dividida<br />

por igual, conseguia escola para as crianças. Ele trabalhava com satisfação<br />

em benefício da família - papel não exercido na sua própria casa.<br />

Naquele lar, ele recebia um carinho diferente ou oposto ao recebido em<br />

casa. Ele, ao resolver os problemas diários, imaginava estar agradando e<br />

conquistando Sefira.<br />

Como o passar dos dias, principalmente nos fins de semana, ele passava<br />

a maior parte do tempo no barracão de Tina.<br />

Sefira continuava pensativa, calada, triste. Lucinho, entusiasmado, apaixonado.<br />

Ela demonstrava, claramente, seu aborrecimento pela vida que<br />

levava. Ele, nada percebia. Ela não gostava daquela vida familiar, monótona,<br />

repetida, com os dias todos iguais: cuidar da casa e das crianças.<br />

Ele amava Sefira e a vida monótona.<br />

Algumas vezes, despertado do sonho pelas lamentações e tristezas de Sefira,<br />

ele, para animá-la, fazia planos, muito entusiasmado, de vir morar,<br />

em definitivo com eles e trabalhar mais na loja do pai. Esperava, desse<br />

modo, ajudar mais nas despesas da família. Entretanto, isso não despertava<br />

Sefira do marasmo. Ao contrário, deprimia-lhe imaginar ficar ali,<br />

enterrada para sempre, numa vida que jamais imaginou.<br />

Os planos animados de Lucinho, com relação a uma vida a dois, gelavam-na.<br />

Ao mesmo tempo que ela silenciava, evitando expressar o que<br />

pensava, também, comunicava, nas entrelinhas, seu aborrecimento. Ele<br />

não detectava essas filigranas da comunicação. Inocentemente, captava<br />

apenas a informação que queria receber. Não decifrava as duplasmensagens,<br />

que eram a cada dia mais usadas por ela: ao abraçá-lo, ela,<br />

ao mesmo tempo, o repelia, contraindo, demonstrando um mal-estar<br />

não notado; numa conversa que fluía aparentemente tranqüila e cordial,<br />

ela intermediava, sutilmente, alfinetadas desnecessárias; demonstrava<br />

satisfação com um presente recebido, mas mantinha uma postura de<br />

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sofrimento e, durante os passeios realizados pelos dois, ela emburrava e,<br />

ao mesmo tempo, afirmava estar satisfeita por estar saindo com ele.<br />

A dúvida de Sefira aumentava. A vida que levava era pacata demais<br />

para seu costume: “a vida da zona é triste e ruim, mas é movimentada e<br />

agitada. Preciso de coisas novas, fiquei acostumada com a vida antiga, é<br />

minha natureza, não agüento essa muito tranqüila”, dizia para si mesma,<br />

enquanto ouvia os animados planos de Lucinho para o futuro. Nesse<br />

ambiente, onde o prazer de um era o sofrimento do outro, o inevitável<br />

aconteceu: a alegria durou pouco.<br />

Uma noite, como outras, ele foi encontrar a amada. Estava animado,<br />

cheio de planos, pois combinara com o pai trabalhar mais tempo na<br />

loja. Imaginava ganhar um salário maior, desse modo poderia viver<br />

com Sefira como pretendia. Chegando ao barracão, percebeu que estava<br />

fechado. Espantou-se. Procurou o vizinho, o mesmo com o qual, antes,<br />

ele tinha discutido, por causa do gasto excessivo de água.<br />

- Boa noite, senhor Roberto.<br />

- Boa noite! Como vai o senhor? Respondeu formalmente, Roberto.<br />

- Estou querendo um favor do senhor. Sei que me conhece, venho aqui<br />

sempre.<br />

- Sim. Sei quem é. Tenho uma estima pelo senhor. Aquela briga, pra<br />

mim, tá encerrada.<br />

- Ótimo! Para mim, também. Estou à procura de Sefira, Tina e os meninos.<br />

O senhor sabe alguma coisa? Tenho vindo aqui, quase diariamente.<br />

Hoje vim, como sempre. Entretanto, não vejo ninguém. Está tudo<br />

fechado. Estive aqui a noite passada...<br />

- É... Oh... Eu não queria falar, não. Não tenho nada com isso...Eles não<br />

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me proibiram de falar, nem me pediram. Mas, eu tenho uma boa idéia a<br />

seu respeito. Mesmo sem gostar de candonguice, vou te contar.<br />

Nesse momento, Lucinho estava aflito, suando, sem entender nada. Previa<br />

má notícia. Roberto, lentamente, para pensar melhor, tirou do bolso<br />

um pedaço de fumo de rolo, abriu o canivete. Com muito custo, tirou<br />

uma palha de milho cortada e a abriu com cuidado. Alisou-a bem, passando<br />

o corte do canivete, de um lado a outro. Olhava unicamente para<br />

a extremidade do pequeno pedaço do rolo de fumo, que ia cortando<br />

com a mão direita. Farelos do fumo cortados caíam sobre a palma da<br />

mão esquerda, em concha, impedindo-os de ir ao chão. Cortada, reunida,<br />

colocou-a dentro de duas palhas já preparadas para fazer o cigarro.<br />

Enrolou-a com calma irritante. Passou a saliva nas bordas de cada uma<br />

e, só então, voltou a falar, após oferecer a Lucinho um dos cigarros preparados.<br />

Diante da negativa, aconselhou com sua voz fanhosa:<br />

- Um cigarro nesses momentos faz bem, tranqüiliza a gente. Sou homem<br />

também. Por isso, te entendo. Eu, no seu caso, fumaria um. A notícia<br />

não é boa. Não quer mesmo? Tem certeza de que não? Mas, voltando<br />

à vaca-fria: o pessoal daí foi embora - falou de repente, completando o<br />

pensamento enquanto acendia o cigarro.<br />

- Foi embora? Sefira também? Não entendi?<br />

Lucinho estava transtornado, perdido...<br />

- Como já disse, não me falaram, não. Mas, você sabe, mulher fala muito<br />

e fica sabendo de tudo, né? Assim, Donana me contou que Sefira estava<br />

apaixonada por um cara aí: um antigo namorado, sei lá quem ele é. Eu<br />

sei, isso eu vi com meus olhos, que ele vinha aqui de vez em quando. Um<br />

homem de branco...Ele também é muito branco, parece que não toma<br />

sol...de nome Olegário.<br />

Nesse momento, Lucinho, quase desfalecido, se assentou num banco de<br />

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madeira em frente da casa, nervoso, quase não conseguia falar. Percebia,<br />

com pesar, que os planos feitos à tarde afundavam-se. Nada mais podia<br />

ser feito. Estava tudo acabado. Com custo, gemeu para interromper o<br />

terrível silêncio:<br />

- Mas...e o resto do pessoal ? Tina e as crianças?<br />

- Foram todos embora, para Salinas, no norte de Minas. O homem<br />

branquelo, o que usa um terno branco também foi com eles. Eu não<br />

tenho medo de homem, mas ele parecia ser bravo. Estava sempre xingado<br />

a moça, sempre. A gente até acordava com seus xingamentos. Mas<br />

você sabe, mulher é assim mesmo; gosta de homem que xinga, que bate,<br />

de homem bravo, valente. É um bicho bobo mesmo. Eu mesmo, para<br />

agradar Donana, de vez em quando, tenho que dar uns tabefes nela.<br />

Não gosto, mas é preciso. Foram todos. Não deixaram nada, só dívidas.<br />

Parece que estão devendo a padaria, o aluguel do barracão e o armazém<br />

da esquina. Os bagulhos, esses eles levaram todos. Eles te devem?<br />

- Oh, não, não, nada! Nada mesmo! Deixaram algum recado para mim,<br />

com alguém?<br />

- Que eu saiba, não. É um povo muito esquisito, de pouca conversa. A<br />

uma hora dessas, devem estar longe. Foram dentro de um caminhão de<br />

carvão, na gaiola dele. Sefira e o moço foram na boléia e os outros, no<br />

meio da sujeira. Não quer mesmo um cigarrinho? Eu tenho mais fumo<br />

lá dentro, não vai me fazer falta. Pode aceitar. Eu gosto muito de assuntar<br />

com gente esclarecida.<br />

- Não, obrigado. Obrigado pelas notícias, falou com imensa dificuldade,<br />

imaginando até pegar um dos cigarros oferecidos.<br />

- De nada. Engraçado, né? Agradecer uma notícia ruim. Pelo que sei, a<br />

gente devia agradecer coisas boas. Mas não te apoquente, mulher é assim<br />

mesmo: são todas iguais, trai a gente à toa, por nada. Você é novo. Tá<br />

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na hora de aprender. Para esquecer uma mulher, a gente deve arrumar<br />

outra, desconfiando dela também pois a mais santa pode te trair mais<br />

ainda. Um amigo meu me ensinou a viver com elas. Eu aprendi: a gente<br />

deve pensar que todas vão nos trair. Assim, quando somos passados prá<br />

trás, não ficamos chatiados, pois nem fomos enganados, nem traídos, a<br />

traição já era esperada; assim, ela não existiu.<br />

- Até logo. Mais uma vez, obrigado, despediu-se aborrecido com a conversa.<br />

- Não há de quê. Não quer entrar para tomar um cafezinho? Depois,<br />

você fuma um pito. Está precisando. Fica mais um pouco. Tenho poucas<br />

pessoas para conversar...<br />

Lucinho saiu dali como se tivesse levado um violento soco na face. Não<br />

foi fácil levantar-se do velho banco, caminhar pelas ruas escuras do<br />

bairro, até o ponto do ônibus. Devia ter aceito o café de Sô Roberto. Pensava,<br />

atordoado, no que acabara de ouvir; parecia ser verdade. Agora ele<br />

rememorava e começava a perceber o que Sefira sempre mostrara e ele<br />

não notava, pois a paixão o cegara: o pouco interesse por ele.<br />

Entrou no ônibus e o trocador o olhou espantado; dava a impressão de<br />

que ia desmaiar, ali mesmo. Estava pálido. Caiu sobre um dos bancos<br />

vazios do ônibus que, naquele horário, felizmente, trafegava quase sem<br />

passageiros. Abriu o mais que pôde a janela ao seu lado, deixando o<br />

vento forte açoitar sua face fria. Não conseguia conter algumas lágrimas.<br />

Olhava para fora, para longe, para as fracas e pequenas luzes, que pouco<br />

iluminavam os casebres da vila por onde passava. Em cada casa, ele<br />

imaginava estar vivendo, descansando, dormindo uma Sefira, bela, sonhando<br />

e sorrindo, como naquela noite saudosa da rua Guaicurus.<br />

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A Comédia Humana<br />

Virgínia telefonou para Lucinho poucos dias após ter-se casado. Queria<br />

mostrar-lhe as fotografias tiradas no hospital. Ele não queria lembrar<br />

do hospital. Entretanto, devido a insistência de Virgínia, ele se dispôs a<br />

recebê-la. Naquele fim de tarde, Virgínia chegou sorridente à sua casa:<br />

- Hei, Lucinho. Dê-me um abraço. Como vai?<br />

- Tudo bem? Está bonita!....Chique, hein? falou com dificuldade Lucinho.<br />

- Não foi ao meu casamento! Senti sua falta. O meu médico, também,<br />

nada! Psiquiatra é assim mesmo... Apenas me mandou um telegrama.<br />

- Não tive jeito de ir... Estive muito ocupado. Voltei a trabalhar no<br />

depósito de meu pai.<br />

- Não faz mal. Irá no próximo. Tenho tanta coisa para te contar.<br />

- Eu também... lembrando dos encontros com Sefira.<br />

- Está triste? perguntou Virgínia.<br />

- Mais ou menos. Tenho pensado em sair de casa, mudar de vida, resmungou<br />

Lucinho.<br />

- Por que? Aqui parece ser tão bom, calmo...<br />

- Você não sabe nada...Minha casa me lembra coisas desagradáveis...<br />

Virgínia não estava interessada em ouvi-lo e, sim, em lhe contar o que se<br />

passava com ela.<br />

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- Deixe-me contar um caso...Ele é alegre, vai te fazer bem.<br />

- Não vai me dizer que está pensando em casar com outro, brincou.<br />

- Ainda, não. Antes de me casar fiz o curso para casamento. Esses que<br />

a Igreja exige, tem um nome...é Preparação para o Casamento. Não<br />

importa... eu e Erotides. Você não acredita! O padre Teófilo, responsável<br />

pelo curso, apaixonou-se por mim.<br />

- Não diga! O padre? É brincadeira sua. Nunca sei quando está falando<br />

sério.<br />

- Desde a primeira aula, eu percebia seus olhos escuros excitados de<br />

desejo.<br />

- Você ficou encantada...Comentou.<br />

- Sou esperta nisso. Coloquei mais lenha na fogueira... caiu feito um<br />

pato. Telefonou-me, dizendo que eu faltara num dia importante...que<br />

estava preocupado comigo... outras bobagens desse tipo. As conversas<br />

de sempre...finalmente, como era de se esperar, convidou-me para ir à<br />

igreja...tinha uma coisa séria para conversar comigo. Fomos eu e Deus.<br />

Gosto de assistir às cantadas e, ao mesmo tempo, representar o papel da<br />

vítima, brincou Virgínia.<br />

- Como sabia? Podia não ser cantada...<br />

- Oh bobo..., é fácil. Havia um olhar e tom de voz, bem como o nervosismo...Chegando<br />

à casa paroquial, ofereceu-me café, biscoitos, chocolates,<br />

só faltou uísque ou vinho sagrado. Tudo desajeitadamente; o que confirmava<br />

minhas hipóteses. Comportei-me como uma moça recatada: olhando<br />

para o chão, falando baixo, com poucos gestos, o necessário...Ele,<br />

por outro lado, limpou a garganta várias vezes, tossiu... pediu desculpas<br />

por estar resfriado. Depois dos rodeios processuais de sempre, final-<br />

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mente, chegou onde queria. Era fácil adivinhar...completou Virgínia.<br />

- Fez uma bela declaração de amor.<br />

- Que nada! Você não entende disso! Ele não tem cancha, já lhe falei. Ele<br />

está acostumado a cantar velhas beatas, que nada exigem. Encantam-se<br />

facilmente, principalmente com os padres.<br />

- É... Não sei, não sou bom nisso. Deve ser fácil conquistar beatas...<br />

- Velhas solitárias e abandonadas, provisoriamente abrigadas na igreja...<br />

Ele falou o trivial - seduções vindas do representante de Deus na Terra:<br />

disse-me que era linda, que, desde a primeira vez que me viu, ficou<br />

apaixonado...O que todos falam, o que ouvi milhares de vezes; nem<br />

precisava continuar a falar, após cada palavra, já sabia a que viria, seguiu<br />

o padrão, brincou Virgínia.<br />

- Interessante. Existem frases que a gente sabe como elas vão terminar...<br />

Todos completam as frases dos gagos, interrompeu Lucinho, achando<br />

graça e começando a ficar interessado no caso.<br />

- É uma delícia ser cantada e observar como esta é feita. Ficar ouvindo,<br />

presente ao ato e, ao mesmo tempo, ausente... Olhei para ele com olhos<br />

apaixonados, usei uma voz mais rouca e melodiosa - dá mais tesão. É<br />

bom dominar os homens, principalmente, os por quem tenho antipatia...<br />

- Antipatia? Como? Você não aceitou seu convite? Exclamou, sem entender.<br />

- Não gosto e nem tenho atração por ele. Se fosse inexperiente iria logo<br />

para a cama...ou, quem sabe, choraria de emoção pelo encontro quase<br />

divino. É bom tê-lo em minhas mãos... como ele gosta de ter as ovelhas<br />

presas. Quando puxou a linha, certo de que o peixe estava fisgado,<br />

levantei-me tranqüila, sorridente pela trapaça... Mudei a voz e os gestos,<br />

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falando firme. Saí da sala. Era outra, a crítica, a consciente. Desta, ele<br />

tem medo, respeito e mais tesão...arrematou Virgínia.<br />

- O que ele disse após o fracasso de sua missão evangélica?<br />

- O discurso religioso, com bênção e oração: “minha paixão dominou<br />

meus ideais sagrados, aprendidos na Igreja”, “há muito não durmo,<br />

devido ao peso da consciência” . Tudo tinha um só objetivo: levar o<br />

crédulo ou a crédula para a cama. Esconder, com as palavras, a realidade<br />

desejada por ele, atingir o pretendido sem que a vítima ludibriada percebesse.<br />

Muitas sentem-se satisfeitas por estarem servindo a um homem<br />

tão honrado e piedoso - uma cantada, mistura do sagrado e divino com<br />

o corpo impuro e pecador. Eu sei que se por acaso cedesse, deitaríamos<br />

ali mesmo, dentro da igreja, para a apoteose final. Para o inferno com<br />

tudo. A voz de Virgínia mudou, nesse instante, mostrando seu ódio ao<br />

padre Teófilo:- Tratou-me como doadora de esmola, que deveria imolar<br />

o corpo à Igreja para o sacrifício final. Sabe?... Penso que não gosto de<br />

homem algum...<br />

- O quê? Falou espantado Lucinho.<br />

- Isso mesmo. A cada dia, tenho mais raiva dos homens. Perdoe-me.<br />

Você também é homem, mas tenho raiva deles, no geral... não, de cada<br />

um, do particular...Ele, depois...procura-me sempre. Dei-lhe até um<br />

presente.<br />

- Como? Então passou a gostar dele?<br />

- Nada disso! Respondeu Virgínia. Lá vem você com suas maluquices.<br />

Presenteamos também pessoas de quem não gostamos...a quem detestamos.<br />

Já fiz isso outras vezes. Queria testá-lo, fazer minhas pesquisas<br />

idiossincráticas. Dei-lhe as reproduções de pinturas de Van Gogh.<br />

Acontece que o livro nada custou. Foi roubado numa livraria...Ele sabe<br />

que tenho essas manias. Queria verificar a coerência existente entre os<br />

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princípios pregados para o povo e a conduta real, diante de seduções ou<br />

tentações; se as crenças eram firmes ou se balançavam...é fácil resistir a<br />

um objeto pelo qual não somos atraídos, mas não ao cobiçado...<br />

- O que aconteceu?<br />

- O Padre Teófilo agradeceu a lembrança comovido. Disse-me que<br />

amava Van Gogh. Amava mais a mim.<br />

- Ah! Aceitou o livro roubado?<br />

- Tentou dar a impressão de que o recebia para me agradar. Em seguida<br />

pediu licença, cheio de mesuras, para me abraçar em retribuição. Já<br />

esperava tudo...Deixei... para completar o “script”. Eu estava curiosa.<br />

Assistia à cena programada e interpretava meu papel. Veio como um<br />

sapo para a boca da cobra... manso, ingênuo, imbecil, torto...continuou<br />

Virgínia animada.<br />

- Mas você o desejava?<br />

- Deus me livre! Detesto esse tipo de homem...Só serve mesmo para o<br />

deboche. Algumas mulheres se casam com esses homens para se divertirem,<br />

diariamente.<br />

- E aí? Perguntou curioso Lucinho.<br />

- Quando entro num jogo desses, não sei seu final. O alvo inicial imaginado<br />

pode ser mudado durante o processo, por outro muito diferente do<br />

pretendido...concluiu Virgínia.<br />

- Como o jogo de futebol ou de xadrez.<br />

- É... Conforme o lance do adversário, muda-se a estratégia...É preciso<br />

ficar atenta... Se distrair, a pessoa passa a ser controlada pelo adversário,<br />

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perde-se em meandros não desejados. O objetivo mais alto deve estar<br />

claro para não ser mudado durante o percurso.<br />

- Qual seria esse objetivo? Desejava alcançar duas metas: o sexo e o<br />

deboche.<br />

- Criticar eu sempre quero. Mas, eu mesma não sei tudo o que queria...É<br />

possível que buscasse duas metas. Mas uma coisa eu sei...Ele não me<br />

agradou. Tinha mau hálito, um suor gosmento na testa, tremia. Só faltou<br />

correr ao banheiro. Tive pena...Parei: o importante já tinha acontecido...<br />

- Como? Ainda não tinha acontecido...exclamou Lucinho.<br />

- Você não sabe de nada! Queria tê-lo preso a mim. Sinto-me bem<br />

quando faço isso, mesmo com um estúpido e incompetente, tanto na<br />

área religiosa como na sexual. Para a maioria das mulheres, ir para a<br />

cama não tem grande significado...Desejamos dominar a fera...<br />

- Apenas isso? Não é pouco?<br />

- Durante a conquista, ao imaginar ir para cama, ou estando nela, os<br />

homens ficam dóceis e maleáveis, fazem o que desejamos. É isso que nós<br />

mulheres queremos: enfraquecer o sexo forte, transformá-lo em fraco,<br />

inferior.<br />

- Deve ser bom ter alguém preso a você, como um gatinho no seu colo,<br />

esperando o próximo carinho... ele lembrava-se de Sefira no quarto, nos<br />

seus braços.<br />

- Não devemos nos ligar em demasia. Acorrentados ao parceiro corremos<br />

o risco de cair no abismo, um preso ao outro. O sexo propriamente<br />

dito, com homem algum, nunca me interessou.<br />

- Não vai me dizer que gosta de... interrompeu Lucinho.<br />

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- Que é isso? Não sou dessas coisas, não. Gosto das conquistas. Quero-o<br />

conquistado, para depois largá-lo, logo que noto que ele me pertence...<br />

Quanto mais estranhas e difíceis, mais elas me emocionam, completou<br />

Virgínia.<br />

- A dificuldade é que atrai?<br />

- Sim, penso que tudo é assim. O complicado e difícil atraem. Não é só<br />

com o sexo, não...Sou atraída por objetos nas casas comerciais, principalmente<br />

chocolates. Se vou a uma loja onde não há risco para o roubo,<br />

vou embora sem tirar nada.<br />

- Você havia me falado. Não deseja possuir o que você roubou?<br />

- Claro que não. Compro os chocolates que desejar, tenho dinheiro para<br />

isso. A emoção emerge com a loja cheia, com guardas por todos os lados...diante<br />

do risco. Só assim sinto-me atraída. No momento do roubo,<br />

qualquer objeto sem valor algum serve.<br />

- Mas, e com o padre, você teve dificuldade? Perguntou Lucinho.<br />

- Nada de estranho...havia novidade. A emoção da vida vem disso.<br />

Eu não sabia aonde ia chegar. Foi o primeiro padre de minha vida. O<br />

próximo não vai me emocionar, devo desistir antes de começar. Comentou,<br />

emocionada, Virgínia.<br />

- Prefiro comprar, em vez de roubar.<br />

- Sinto-me atraída e gratificada pelo ato de roubar, não pelo produto ou<br />

resultado do roubo.<br />

- Estranho...<br />

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- Nada! Você é burro! Todas as pessoas se parecem comigo. Ficam<br />

satisfeitas com o processo, as estratégias usadas, não com o fim do ato.<br />

Cada um de nós busca as emoções agradáveis durante as ações, não no<br />

término delas. O fim não dá prazer, o processo, sim. As pessoas ficam<br />

tristes após as vitórias, uns se embriagam, outros dormem e há, também<br />

os que se suicidam.<br />

- É. Talvez tenha razão. Vou pensar. Nunca imaginei roubar para me<br />

excitar.<br />

Lucinho se lembrou de quando quis matar a professora, a excitação,<br />

o bem-estar, a energia sentida. Até mesmo a crise diante da família,<br />

quando jogou tudo pelos ares. “E se tivesse matado D. Francisca?”,<br />

perguntou-se. “Sentir-se-ia bem ou mal?”<br />

- Comecei tirando chocolates nas Lojas Americanas. É a loja preferida.<br />

- Por que Lojas Americanas?<br />

- Não sei bem. Acho que por ter-me habituado...do mesmo modo que as<br />

pessoas, numa cidade, resolvem suicidar-se, pulando de um certo prédio<br />

e não de outro, e os comícios acontecem numa praça. É um prédio,<br />

um espaço que atrai; cada um tem sua simbologia. Talvez pelas dificuldades...<br />

- Eu não tenho essas certezas. Ora fujo dos riscos, ora os procuro...<br />

- Imagine um jogo de futebol, onde uma equipe é muito melhor do que<br />

a outra; a torcida tem certeza da vitória do melhor. Quem irá assistir a<br />

esse jogo? Ninguém. Talvez, alguns idiotas.<br />

- Mas gostamos de ganhar e não de perder, argumentou Lucinho.<br />

- É difícil saber quando ganhamos. Muitas vezes, pensamos estar gan-<br />

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hando mas, na verdade, estamos perdendo. Outras vezes, ocorre o contrário.<br />

Posso ganhar com respeito a uma característica, e perder com respeito<br />

a outra; cada uma com seu significado particular, examinada com<br />

os valores da minha cabeça. Um paciente que perdeu sua capacidade de<br />

amar, pode, ao ficar doente, ganhar o afeto dos médicos e dos familiares,<br />

que antes não tinha. Trocou um valor - saúde - por outro: ser cuidado.<br />

Qual é o mais importante?<br />

- Compreendi. Atuamos em busca de vários objetivos ou valores, ao<br />

mesmo tempo. O prazer da vitória depende do referencial adotado.<br />

- Certo. Não atrai pichar um prédio fácil de ser pichado, todos podem<br />

fazê-lo. Pichar prédios não é uma tarefa, por si só, que traga grandes<br />

emoções. O prazer está no desafio, no risco. Tudo é assim. Estamos,<br />

constantemente, tentando superar-nos. Portanto, que graça teria namorar<br />

um homem facilmente conquistável... que nada nos acrescenta...<br />

Seria como pichar o muro de nossa casa. Precisamos sentir que estamos<br />

crescendo. Se tenho êxito numa empreitada difícil, se me supero - quanto<br />

mais rápido melhor - fico feliz e animada comigo; aumento minha<br />

auto-estima. O prazer vem dessa caminhada em busca dos objetivos<br />

desejados e alcançados. Uma vez nascidos, fabricamos <strong>nosso</strong>s caminhos<br />

buscando superar o que éramos antes, sempre tentando ir além. Marchamos<br />

em direção ao não vivido, mas, inexoravelmente, amarrados<br />

e direcionados pelo já vivido, pelos antigos valores. São eles que dão o<br />

significado às nossas ações. Viver é caminhar, expandir-se, preso ao eixo<br />

de cada um, completou Virgínia.<br />

- Mas roubar? Seria uma meta?<br />

- Claro. Mas não é só isso. Todos os atos têm algo em comum...precisamos<br />

perceber a semelhança. O que tirei dou ao padre ou jogo fora...O<br />

objetivo foi a conduta arriscada, é ela que seduz.<br />

- Nunca foi pega, roubando? Perguntou Lucinho.<br />

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- Muitas vezes. Eles, quando me vêem bem vestida e bonita, xingam-me<br />

e me perguntam se tenho dinheiro. Assim, fica tudo resolvido; mandamme<br />

embora após passar no caixa. Mas, às vezes, não sinto nada, explicou<br />

Virgínia. Fico excitada pela ação empreendida e pelas dificuldades<br />

encontradas. Caminho pela rua, decidida a entrar na próxima loja, desde<br />

que seja semelhante à anterior, Lojas Brasileiras, por exemplo. Ali, continuo<br />

minha tarefa interrompida... Ela precisa ser completada, para que<br />

eu me estabilize, volte ao nível de excitação ótimo.<br />

- Não me diga que ... vai roubar em outra loja? falou baixo Lucinho.<br />

- Tenho vergonha também, o que, por um lado, afasta-me. Mas prossigo,<br />

tenho um plano fixo que me ordena o que fazer. Tento, até dar certo...<br />

Realizando o planejado, fico tranqüila. O ato tem mais poder do que a<br />

barreira existente: o medo e a vergonha.<br />

- Você chama essa conduta de crescimento, de maior maturidade?<br />

- Sei lá! Você é um chato. Vive querendo explicar e entender os fatos; é<br />

teórico demais. Quem me orienta é meu organismo. É com ele que converso<br />

antes das ações, ele me dá as dicas do que irá me proporcionar: um<br />

bem ou mal-estar. Já observei: quando sou pega e repreendida, emociono-me,<br />

mas a excitação me faz sentir bem. As pessoas caminham numa<br />

direção ou em outra para fugir do vazio, da falta de “excitação ótima”. O<br />

que faço, nada mais é do que um ritual particular, que visa a aumentar<br />

minhas emoções agradáveis. Um remédio que todos usam. A fórmula<br />

pode ser diferente, mas leva aos mesmos resultados, serve para a mesma<br />

doença a qual todos nós sofremos. Precisamos de estímulos para conseguirmos<br />

detonar as emoções desejadas. O mundo possui diversos<br />

estimulantes disponíveis; prontos para serem usados;. Cada um escolhe<br />

o seu. Inventamos as metas que nos farão alcançar o ponto ótimo de animação.<br />

Agarramos, naturalmente, as que funcionam; largamos as outras,<br />

as que provocam o não-prazer... É preciso descobrir o estimulante<br />

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apropriado para cada um, concluiu Virgínia.<br />

- Tudo para alcançar esse estado, essas emoções?<br />

- Exato! O que mais nós buscamos durante nossa vida? Todas as nossas<br />

ações, desde a simples à mais complexa, são inventadas para produzir as<br />

emoções prazerosas. Elas podem ser geradas pelos mais diversos meios.<br />

Usamos bebidas ou drogas quando não conseguimos usar as estratégias<br />

corretas para alcançar esse estado desejado. As drogas nos levam<br />

ao prazer sem ser preciso alcançar nada ou, com sua ajuda, ficamos<br />

insensíveis ao desprazer. Uma pessoa mata a outra para sentir emoções<br />

prazerosas. Outra, se assim o fizer, sofrerá.<br />

- Até matar? Exclamou Lucinho.<br />

- Desde que seja uma necessidade interna, que traga alívio emocional ou<br />

prazer. Vivemos egoisticamente: ou na busca de emoções positivas, ou<br />

fugindo das negativas. As metas procuradas variam de pessoa para pessoa.<br />

Por isso achamos estranho o objetivo do outro, a ação que o anima;<br />

para seu crítico, a ação pode provocar o desânimo.<br />

- Mas há os que passam a vida realizando objetivos determinados pelos<br />

outros: educadores, governadores e, principalmente, pelos familiares.<br />

- Essas tarefas são procuradas porque seu executor acredita que elas<br />

sejam corretas, por serem elogiadas e valorizadas pela sociedade ou as<br />

evita por serem criticadas. Mas elas têm o mesmo fim das outras: produzir<br />

um estado emocional agradável, uma ligeira alegria, bem-estar,<br />

energia, escapar do mal-estar. Uns roubam, outros fazem penitência,<br />

alguns trabalham incessantemente, diversos compram sem parar, uns<br />

transam e transam, tudo tem o mesmo fim: promover o equilíbrio<br />

biológico, arrancar-nos do vazio, do tédio, aumentar a produção das<br />

“cocaínas”, dopaminas e endorfinas produzidas pelo <strong>nosso</strong> organismo.<br />

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- Você simplifica, ao extremo, as grandes metas do homem. E se nos<br />

faltam meios para aumentarmos <strong>nosso</strong>s estoques empobrecidos dos<br />

energizantes internos? O quê fazemos?<br />

- Há vários recursos. Em <strong>nosso</strong> país, a população, no início da semana,<br />

fica excitada, por um ou dois dias - não mais do que isso - para discutir<br />

os problemas apresentados pelas revistas publicadas no domingo. Essas<br />

informações provocam emoções em quem não é capaz de produzi-las<br />

com um padrão de vida próprio. A discussão dos assuntos semanais<br />

anima a pessoa. Através desse remédio fornecido pelas revistas, os<br />

“pacientes” melhoram - ao discutir: “vende-se ou não a Vale”, “o aborto<br />

deve ou não ser liberado”. O observador desatento poderá imaginar<br />

que a solução desses problemas é vital para o desvalido leitor, explicou<br />

Virgínia.<br />

- Todo povo tem sua “Veja” ou “Isto É” para ler e comentar, animadamente,<br />

os problemas inventados pelo repórter.<br />

- Claro! Essas revistas, como vários programas das televisões, enchem a<br />

vida das pessoas. Os telespectadores ficam animados, desejosos de dar<br />

suas interpretações sobre os fatos expostos. A maioria dá opiniões, geralmente<br />

fabricadas pela mesma imprensa que lançou o problema para ser<br />

discutido. Na semana seguinte outros medicamentos aparecem, quando<br />

os antigos não mais conseguem despertar os leitores.<br />

- Mas eles morrem já na terça-feira... Fica um espaço vazio...<br />

- Mas entram novos excitantes: os jornais diários. Nesse trabalho terapêutico,<br />

os jornalistas procuram a droga mais eficaz para o leitor: o fato<br />

simples, inusitado e escandaloso: este é o mais usado; que não permite<br />

imaginação. Essas “drogas” diárias, a preços populares, são consumidas<br />

avidamente, sem que os leitores ou telespectadores sejam importunados<br />

e proibidos, pela Lei e Polícia, de usá-los, explica Virgínia.<br />

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- Não poderia ser diferente. Como vão agir? Eles não têm alternativas...<br />

- Os excitantes são diversos: ora é um desastre aéreo; ora, um crime bem<br />

estranho; às vezes, uma atriz que fere, com unhadas e dentadas, o namorado;<br />

ocasionalmente, é o suicídio de um político. Não faltam notícias.<br />

Elas são procuradas com cuidado, se não nascem no estado de origem,<br />

buscamo-las em outro estado ou na China. Mas sempre é o escândalo,<br />

o esquisito, se possível, com pessoas provisoriamente famosas, ligadas<br />

ao povo sem nome pelo seu charme, prestígio, poder, beleza, bumbum<br />

e carisma. A atração pode ser um criminoso matando. Sendo famoso, é<br />

um notável que, com sua energia, estimulou a nação adormecida.<br />

Alguns, além das notícias, xingam e brigam, defendendo suas ideologias<br />

utópicas. Entretanto, paradoxalmente, se seus desejos são realizados,<br />

eles, em lugar de ficarem felizes, retornam ao tédio anterior. Buscam,<br />

ansiosamente, um outro problema para defender ou, principalmente,<br />

atacar. Como viciados, precisam de mais doses da droga salvadora, finaliza<br />

Virgínia.<br />

- Nesse caso, é bom as pessoas sofrerem. Assim, têm motivos para<br />

viverem e imaginarem soluções.<br />

- Sim. Se tivéssemos estoques dessas substâncias, supridos pelas próprias<br />

metas, que nos dão prazer e sentido, não nos engajaríamos em diversas<br />

procissões à procura do nada. Mas quem as tem? Todos os governos<br />

interessados no bem-estar do povo estão atentos para produzirem divertimentos<br />

populares: festas, circos, teatros, esportes, leituras superficiais,<br />

notícias e mais notícias. Ocupadas com esse mundo de diversões<br />

e de trabalho, as pessoas se animam, sem questionar os desejos do seu<br />

controlador.<br />

- Não tenho capacidade para entender tudo isso, comentou Lucinho,<br />

com amargura.<br />

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- Precisamos nos ocupar com alguma coisa. Como essa nossa conversa<br />

começa a ficar incapaz de nos excitar, não nos custa buscarmos outras<br />

excitações.<br />

O papo foi momentaneamente interrompido pela entrada de Cândida,<br />

na sala, avisando que havia preparado o lanche. Virgínia prontamente<br />

aceitou o convite. Durante o lanche, diante do Dr. Adamastor e Rosária,<br />

a conversa foi outra, os assuntos preferidos da família: criticar a empregada,<br />

o preço alto das roupas e a desonestidade das pessoas.<br />

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Jogo de Palavras<br />

De volta à sala, Virgínia pega o jornal diante dela, na página policial e lê<br />

algumas notícias:<br />

- “Mulher mata marido a machadadas”; “Artista assassinado”; ”Fazer<br />

vida: programa de fim-de-semana de milionária”. Mas tem mais: “A<br />

primeira-dama visitou a creche Menino Jesus, tendo ficado impressionada<br />

com a dedicação dos funcionários. Abraçou, sem nojo, as crianças,<br />

que cantaram espontaneamente, para ela, que se emocionou e chorou”.<br />

Tudo isso diverte e anima o povo, fornece-lhe fatos para discutir, na ausência<br />

de outros, noticias fáceis de digerir e de guardar. Viu que interessante?<br />

Comentou Virgínia.<br />

- Muitos só lêem isso, fatos e fatos, sem comentário algum. Fico imaginando:<br />

o que será que leva essas pessoas a devorarem apenas esses fatos<br />

e nada mais?<br />

- Acho que é o mesmo que leva muitas a ficar o dia todo num bar,<br />

bebendo cerveja, ouvindo músicas barulhentas, batendo papo. Outros<br />

poderiam estar melhores na luta contra o câncer de útero ou no combate<br />

ao colesterol e, por que não, investindo contra os acidentes nas estradas,<br />

no combate aos seqüestros, contra os perigos de comer carnes...Todos<br />

estão à procura da animação, como te falei...<br />

- Os que buscam o sofrimento: que fazem penitências nas procissões,<br />

andam de joelhos, fazem jejuns prolongados, orações continuadas,<br />

reclusões nos conventos…Eles, também, estão à procura do prazer?<br />

Indagou Lucinho.<br />

- Claro! Pense o contrário: estão fazendo isso para sofrer? É insensato<br />

imaginar que o ser humano possa agir contra ele próprio. Sempre age<br />

em busca de alguma meta imaginada onde obtém o prazer, que pode ser,<br />

por exemplo, chicotadas no próprio lombo.<br />

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- É possível, concordou Lucinho lembrando dos próprios sofrimentos.<br />

- Uma pessoa passa anos estudando para fazer um concurso. Ela está<br />

buscando o sofrimento? Não! Busca alcançar uma meta a longo prazo:<br />

passar no concurso, ter, talvez, uma vida melhor no futuro. Do mesmo<br />

modo, o penitente “sofre”, como o estudante, para obter prazer no<br />

futuro. O estudante, durante os estudos, está se sacrificando, mas sabe<br />

que poderá chegar aonde deseja: ser classificado. O filho imagina ser um<br />

bom filho, caso siga as idéias, tidas, numa época, como absurdas, ensinadas<br />

por seus pais. Portanto, todos os que buscam o sofrimento estão<br />

gozando; eles alcançam metas mais importantes do que o sofrimento<br />

aparente, visto pelos olhos do observador externo. É sempre uma outra<br />

meta, não muito clara, mais importante, que predomina e coordena as<br />

aparentes ações estranhas. Veja meu caso: com minhas ações, alcanço o<br />

que desejo. Explicou Virgínia.<br />

- Esquisito, estranho. Dá o que pensar. Essas idéias vão contra alguns<br />

pensamentos meus.<br />

- O prazer ou o “sofrimento” em busca do prazer, produz, no organismo,<br />

as mesmas substâncias que nos fazem sentir bem e eliminam o vazio.<br />

Precisamos desses atos. Até a prisão pode ser desejada e prazerosa, pode,<br />

por exemplo, pagar sentimentos de culpa, produzindo o estado de alerta<br />

e energia agradável. Já leu “Crime e Castigo”? Este romance mostra de<br />

forma brilhante, tudo que falei, argumentou Virgínia.<br />

- Que loucura! Gritou Lucinho, refletindo acerca do seu sofrimento.<br />

- Você, por acaso, é normal? Sabe o que é um louco? Pode parecer loucura<br />

você, ao mesmo tempo, amar e odiar a pessoa. Mas nós todos somos<br />

parecidos. Quantos ficam vigiando uma barata, às vezes, por muito<br />

tempo, depois correm atrás da coitada, quebram uma coisa e outra, com<br />

a idéia fixa: ”vou matá-la”… É a ordem interna que manda. Se as pessoas<br />

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pensassem porque ficam aflitas com a vida da barata, ficariam perplexas,<br />

pois sabem, no fundo, que outras e outras virão. Entretanto, é aquela,<br />

símbolo de todas as outras, determinada, que precisa ser morta, vingada...<br />

A morte dela é que provoca o prazer. Alcançado <strong>nosso</strong> objetivo, nós<br />

nos aliviamos, atingimos <strong>nosso</strong> equilíbrio. Assim, acontece comigo ao<br />

roubar chocolates. Caso minha empreitada tenha sucesso, chego em casa<br />

animada e começo a preparar um ritual particular, que se inicia geralmente<br />

à noite.<br />

- Para matar pernilongos, fico quieto, ouvindo o barulho, de olho nele,<br />

pensando: “uma hora te mato”. Minha raiva vai crescendo à medida em<br />

que ele escapa. Quando não consigo exterminá-lo, deito-me derrotado,<br />

com ódio dele e de mim. Até perco o sono, por ter fracassado.<br />

- À noite, assento-me relaxada, depois de um banho demorado e morno,<br />

começou seu relato Virgínia. Os bombons repousam, envoltos em papéis<br />

brilhantes, espalhados numa chocolateira vinda da Índia, colocada em<br />

minha cama. Seduzem-me, com o cheiro misterioso, parecem sorrir,<br />

enquanto esperam o início da orgia. Apago a forte luz do quarto e<br />

acendo a do abajur, junto à cabeceira da cama. O quarto aconchegante<br />

está iluminado apenas por uma penumbra cinzenta e morna. Solenemente,<br />

caminho até o toca-discos e o ligo; começa a tocar, baixinho,<br />

aumentando num crescente, a “Abertura de Tannhauser”. Nessa noite<br />

de comemoração, visto-me a rigor: uso uma camisola preta, rendada,<br />

leve, esvoaçante, a mais bela delas. Perfumo-me com “Animale”. Virgínia<br />

continua: - Observo os bombons de longe, aproximo-me de onde estão.<br />

Assento-me vagarosamente na cama macia; recosto-me nos travesseiros,<br />

ajeitando-os, com gentileza, às minhas costas relaxadas, desnudas.<br />

Examino-os, com olhar lânguido, um a um. Então, aproximo-os da face;<br />

sinto-lhes o perfume tentador. Com as pontas dos dedos, aliso-os, passando<br />

as mãos nas suas vestimentas provisórias e coloridas. Sinto sua<br />

textura macia e delicada. Com maestria e sem feri-los, retiro o invólucro.<br />

Examino a nudez triste, os contornos tentadores e atraentes. Passo<br />

os lábios finos e úmidos na superfície lisa e delicada. Parto-os, ao meio,<br />

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com uma leve mordida, sem machucá-los. Expostos, examino o interior,<br />

as diferentes colorações e asperezas, o segredo encantador que guardam<br />

dentro de si. A música sai brilhantemente do disco. O perfume trescala<br />

adocicado, penetra, em ondas, no meu ser carente de amor. Tudo me<br />

encanta: a beleza, o perfume, as formas delicadas, a passividade e submissão<br />

ganham vida, atraem-me, excitam-me. Um a um os bombons<br />

vão sendo triturados. Ali, no calor de minha boca, umedecidos, rolam<br />

esfacelados sob a língua inquieta, que extrai do seu corpo todo o sabor<br />

delicioso. Aos poucos, eles vão desaparecendo e tornando-se parte do<br />

meu organismo.<br />

Nessa noite de orgia, posso comer todos: um, mais outro, outro mais,<br />

dez, vinte, até o último. Em nada alterarão meus planos de não engordar.<br />

Como o máximo possível. Algum tempo depois, sinto-me como se fosse<br />

estourar. Entretanto, estou animada, cheia de vigor, de poder. Dentro<br />

de minha alma, imperam a calmaria e a segurança. Sinto-me como se estivesse<br />

orando numa igreja, sozinha, diante do altar, em comunhão com<br />

Deus. Como você vê, sou magra e detesto engordar. Após comer todo o<br />

chocolate que consigo, eu sei que o ritual da comilança está se aproximando<br />

do fim.<br />

- Você é mesmo uma louca! Agora, compreendo melhor por que você foi<br />

internada para tratar de sua bulimia. Não é este o nome?<br />

- É...Deixe-me contar o resto: nada mais faço do que praticar meu ritual<br />

particular. Todos os têm. Você já participou de procissões, aniversários,<br />

casamentos e outros rituais? Não há diferença. Todas essas cerimônias<br />

cumprem as mesmas funções: ligar-nos a algo, relacionar-nos, fazer com<br />

que nos tornemos um todo. Na comilança, ligo-me a dois propósitos:<br />

comer e emagrecer. Escapo, por momentos, do mundo confuso e complexo<br />

em que vivo. Terminada a cerimônia orgiástica, restam os papéis<br />

sem vida, pois perderam seu conteúdo. Sem mais algum para degustar,<br />

caminho, ao som dos últimos acordes da música, direto ao banheiro.<br />

Enternecida e pesarosa, diante do vaso, faço uma reverência, abaixo a<br />

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cabeça, despeço-me do sonho vivido, do chocolate comido, que, nesse<br />

momento, irá abandonar meu corpo. Enfio o dedo na garganta, busco a<br />

náusea. Meu organismo resiste, esforça-se para manter o ingerido. Faço<br />

mais uma tentativa. Dessa vez, mais forte. Meu estômago não tolera o<br />

novo estímulo e devolve tudo o que foi comido. Vomito. Vomito tudo.<br />

Retorno à minha vida solitária, triste, séria, ciente de ter cumprido o<br />

prometido a mim mesma. Para os psiquiatras - eles gostam muito de<br />

nomes bonitos - eu tenho Bulimia e Cleptomania. Para mim, que sofro<br />

as conseqüências dos meus atos, faço o que gosto, tenho direito a agir<br />

assim. Eles me interpretam com suas teorias, eu, com as minhas. Quem<br />

tem razão? Para mim, eu; para eles, eles. Acredito que a maioria dos<br />

psiquiatras defende, também, como valor máximo, a liberdade de escolha<br />

do seu cliente. Se pensarmos desse modo, encaixo-me nesse valor,<br />

no mais alto por eles defendidos: a liberdade. Esta me permite roubar,<br />

comer, vomitar. Por que não? Esse ato não é tão estranho, como parece.<br />

Muitos, principalmente vocês, os homens, trabalham duro, ganham o<br />

difícil dinheiro e o jogam fora.<br />

- Como?<br />

- Vão ao bar e bebem até não poder mais; gastam o que não podem, para<br />

depois vomitarem ou desmaiarem. Dias depois, repetem o mesmo ritual.<br />

Outros chegam em casa para descansar após um penoso dia. Ao entrar,<br />

começam a discutir e xingar os familiares. Muitas vezes, espancam-se<br />

mutuamente. Depois, exaustos das brigas, terminam o ritual e dormem<br />

aborrecidos. No dia seguinte, recomeçam o sofrimento. Tudo como faço.<br />

- Estou descobrindo que você se parece comigo, com minha mãe e com<br />

todas as pessoas que conheço, comentou Lucinho. Pensando assim, todos<br />

nós, ricos e pobres, inteligentes ou idiotas, estamos ligados a certos<br />

rituais que visam à execução de objetivos; todos buscamos prazeres<br />

particulares. Cada um crê que seus objetivos são mais elevados do que<br />

os outros. Será isso?<br />

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- Estranhamos o ritual do outro. Bobagens, tudo bobagens. Nossa vida<br />

não passa dessas pequenas idiotices, que cada um agarra como se fosse<br />

uma grande empreitada, vital para ele. Será mais elevado orar, trabalhar,<br />

lecionar do que discutir, ou roubar chocolates, para depois vomitá-los?<br />

- Eu acho que sim. Sei que você não pensa assim! Expressou Lucinho.<br />

- Aprendemos um tipo de meta e de ritual, se quiser pode chamar<br />

de estratégia, para alcançar <strong>nosso</strong> objetivo. O que fazemos, enquanto<br />

vivemos? Perseguimos metas que foram impressas nos <strong>nosso</strong>s genes ou,<br />

ainda muito cedo, foram aprendidas. Para o resto da vida, estaremos<br />

seguindo essas marcas grudadas em <strong>nosso</strong> ser. Marcas sujas ou limpas,<br />

feias ou bonitas são seguidas até a morte: todos buscamos a sua consecução.<br />

Poucos tentam mudar essas cicatrizes. Se a transformação for<br />

muito acentuada, a pessoa perde a identidade, vira outra, não mais se<br />

reconhece.<br />

- É essa meta ou ideal perseguido que dá sentido à sua vida? Perguntou<br />

Lucinho, continuando: caso você se desviasse do seu caminho, deixaria<br />

de ser você? Não pensa se seu ato é bom ou mau? Para você, o vômito, o<br />

roubo e estupro podem ser um objetivo a ser perseguido para satisfazer<br />

motivos diferentes, dos aparentemente visíveis?<br />

- Lógico. O vômito pode, no meu caso, simbolizar um alívio final. Muitas<br />

vezes, tomo um banho para tirar ou limpar as coisas ruins que ouvi<br />

ou fiz; alguns tomam banho de “descarrego”, falou Virgínia, debochando.<br />

Das cerimônias usadas para alcançarmos as metas propostas, muitas<br />

chamadas de altruístas, que de fato são sempre egoístas, algumas são<br />

engraçadas. No colégio onde estudei, nós éramos treinadas para praticar<br />

a caridade, por sinal, uma grande meta na vida do cristão. Para isso, foi<br />

imposto que deveríamos dar esmolas. Para a realização desse ato, que<br />

era público, os pedintes eram selecionados pelas freiras: todos educados,<br />

gentis e limpos. Praticávamos a caridade arrumada previamente, durante<br />

o horário de 3h45min às 4h, todas as quintas-feiras. Esses cuidados<br />

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eram tomados pelas freiras para que, durante o contato com a miséria,<br />

nós, alunas frágeis, ricas e sensíveis, não ficássemos impressionadas e<br />

sofrêssemos com ela. Diante da pobreza real, poderíamos perder o sono<br />

- isto não era bom. Assim, ela devia ser maquiada. Precisávamos praticar<br />

o bem - um valor a ser atingido - sem sermos, nem impressionadas, nem<br />

incomodadas pela pobreza em si - um atributo do qual devíamos fugir.<br />

As irmãs eram sábias, como são os ricos: sabem praticar o bem sem<br />

serem perturbados pela desgraça “chata” e desagradável. À medida em<br />

que a gente compreende as metas e as necessidades dos outros, começamos<br />

a compreender a pessoa e, por isso mesmo, a simpatizar-nos com<br />

ela. Gosto de você, te admiro. Se pensamos assim é porque começamos a<br />

entender as razões escondidas dentro da pessoa.<br />

- Engraçado. Há condutas, valores e gostos para todas as pessoas. Para<br />

cada cabeça, há caminhos diversos... Passei a gostar de você. Antes, no<br />

hospital, tive medo.<br />

- Eu quero me curar? Que seria de mim se ficasse sã? Tornar-me-ia uma<br />

moça bem comportada. Deus me livre! Possivelmente, morreria. Tenho<br />

nojo dos normopatas, os desajustados ajustados, iguais a todos. São uns<br />

chatos, os homens sem entropia.<br />

- Mas ao criticar, ao interpretar as interpretações, você está filosofando.<br />

Continuo a achar que você, não querendo pensar, raciocina mais do que<br />

supõe! Pensa, às vezes, até profundamente, melhor do que muitos.<br />

- Somos animais que não nos aceitamos. Inventamos as mais esquisitas<br />

tarefas para mudar <strong>nosso</strong> caminho natural, na vã tentativa de evitar<br />

pensar acerca do que somos, do que seremos e para onde vamos. Não<br />

devíamos ter começado a pensar. Seria melhor se tivéssemos paralisado<br />

nossa evolução na fase das abelhas. Viveríamos mais felizes, sugando<br />

néctar das flores, polinizando as plantas, cheirando o universo. A vida<br />

seria mais fácil...Descubra os indicadores que poderão fazê-lo feliz, completou<br />

rindo Virgínia.<br />

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- Que conversa estranha...<br />

- Nada disso! Vou dar um exemplo: os homens gostam de mulheres que<br />

os tapeiam, que fazem pouco caso deles. Por isso, gostam de mim. Meu<br />

marido não ganha muito, entretanto obrigo-o a fazer dívidas, desde o<br />

namoro, para vê-lo apertado. Assim, torno-o satisfeito com a vida.<br />

- Piorou. Agora não entendi nada, estou confuso como nunca...<br />

- Conheço os homens. Forço meu marido a comprar um anel que desejo.<br />

Ele reclama um pouco, faço meu jogo sedutor. No fim da tarde, ele<br />

chega alegre, sorridente; abraça-me com carinho e me entrega o presente<br />

pedido. Mostro minha alegria, não pelo presente alcançado, mas por<br />

tê-lo feito feliz por sacrificar-se por mim. Dominando-o e explorandoo,<br />

fazendo-o de idiota, transformo-o de infeliz em feliz! Assim, ajudo-o<br />

e reforço <strong>nosso</strong>s elos matrimoniais. Depois, guardo o presente; poucas<br />

vezes o uso, algumas vezes, jogo-o no lixo.<br />

- Para você, ajudar um homem a se sentir feliz é forçá-lo a fazer dividas<br />

por nada, ou melhor, para que a esposa possa continuar no caminho<br />

tortuoso? Argumentou Lucinho.<br />

- Cada um pensa e age de modo diferente, Erotides sente-se feliz por<br />

realizar os desejos da sua querida mulher. Esse é seu ideal principal, o<br />

mais importante de sua vida, igual a muitos homens. Por que não? Nossos<br />

ideais se casam. Eu o exploro para que ele se sinta feliz. Os casamentos<br />

que dão certo são assim: um manda, outro obedece. Um se sente<br />

bem agradando o outro. Já falamos sobre isso: o eleitor não fica feliz ao<br />

eleger seu candidato? O serviçal, por fazer o serviço bem feito, fazer a<br />

alegria do patrão? Um gosta de bater, outro, de apanhar. Um ganha dinheiro<br />

para que sua mulher gaste a rodo. As separações ocorrem quando<br />

os dois têm os mesmos ideais. Assim, se os dois gostarem de bater, mandar,<br />

gastar ou trabalhar exageradamente, fatalmente irão se separar.<br />

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- Interessante. Um precisa complementar o outro. Um gosta de gastar, o<br />

outro, de economizar. Se os dois gastassem, o dinheiro acabaria. Mas, se<br />

os dois juntassem dinheiro?<br />

- Também não daria certo. Eles ficariam enfadados de tanto trabalhar<br />

e guardar. Desfrutariam de poucos prazeres. O homem rico fica feliz<br />

quando encontra uma amante que lhe toma, aos poucos, todo o dinheiro.<br />

Sua felicidade dura apenas o tempo em que o dinheiro vai desaparecendo.<br />

Quando acaba, fica furioso por ter sido tapeado. É preciso<br />

que um contrabalance o outro. Só assim, será encontrada a harmonia<br />

necessária para formar uma união estável.<br />

- No seu caso, você pensa que seu marido está feliz?<br />

- Tanto ele como o padre. Eu amo Erotides porque ele contribui, sem<br />

reclamar, para o <strong>nosso</strong> bem comum. Acha-me a melhor das mulheres,<br />

coopera para que eu alcance meus caprichos secretos. Isso ocorre com<br />

todos os pais: trabalham duro, gastam pouco com eles mesmos; com o<br />

dinheiro economizado, imaginam, com alegria, qual presente irão dar ao<br />

querido filho: uma bicicleta, um video-game, uma viagem aos Estados<br />

Unidos da América. Podem, até, depois, ficar devendo e queixando da<br />

dura vida que levam. Mais tarde, o filho faz outra exigência. Mais uma<br />

vez os pais se esforçam para realizá-la, fazem o possível e impossível,<br />

só ficarão felizes quando cumprirem esse compromisso. Mesmo que<br />

tornem a se queixar. É preciso que haja esse jogo, no qual, cada um faz<br />

um papel que ajuda o outro, tudo bem ajustado. Se, por sorte, encontrarem-se,<br />

a vida correrá tranqüila, expressou Virgínia.<br />

- Você, às vezes, lembra-me o vírus que destrói a célula que o hospeda.<br />

- De jeito nenhum. Cultivo os que me auxiliam a viver e que querem<br />

fazer tudo para me ver feliz. O que é o amor? Nada mais do que o egoísmo<br />

a dois, a exploração de um pelo outro. Quando uma pessoa diz que<br />

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ama a outra, está afirmando que precisa dela, não pode viver sem ela.<br />

Por quê? Porque ela lhe dá algo; fornece-lhe o de que necessita. Sempre é<br />

o egoísmo que impera, de um lado e do outro. Amamos alguém porque<br />

ele melhora nossa vida. Eu melhoro a vida do meu marido, ganhando<br />

seus presentes, agradecendo a ele, exigindo mais. Portanto, eu o amo.<br />

Ele me ama porque seu destino é presentear sua amada, fazer tudo por<br />

ela. Assim ele fica feliz. Se eu não pedisse ou aceitasse seus sacrifícios,<br />

ele não gostaria de mim, já que não estaria cumprindo seus objetivos superiores:<br />

doar, sofrer, trabalhar em beneficio da amada. Ele se encontra<br />

e cresce durante suas doações, para a alegria e felicidade de sua querida<br />

mulher. Por isso mesmo é que alguns casamentos dão certo, correm<br />

suavemente, conforme as regras aceitas implicitamente, ou de forma tão<br />

secreta que os próprios cônjuges desconhecem o segredo. Os estranhos<br />

à família, não tendo acesso a essas regras íntimas, a esses segredos de<br />

estado, não compreendem como o casamento perdura. Aparentemente,<br />

temos a impressão de que um explora o outro, mas de fato, um complementa<br />

o outro. A vida de todos nós é assim, entendeu agora? Perguntou<br />

Virgínia.<br />

- Vou pensar melhor sobre isso. Suas idéias têm uma certa lógica. Não<br />

sei se concordo...<br />

- Continuo a falar com o padre Teófilo, mesmo depois de casada. Ele<br />

sempre viveu de esperança: eu lha forneço. Se lhe desse outras coisas, a<br />

esperança acabaria com a doação. Ele entraria em tédio, iria buscar outros<br />

objetivos para ter sua esperança renovada. Enchi sua cabeça de sonhos,<br />

do que ele mais gosta, a essência de sua pregação. Ele me visitou, faz<br />

uma semana, enquanto meu marido trabalhava. Fiz o jogo programado,<br />

excitei-o, animei-o, dei-lhe as esperanças esperadas. Garanto que ele saiu<br />

satisfeito, sonhando, e deve voltar.<br />

- Mas você não inventou esse modo de agir... Você segue as idéias de<br />

quem?<br />

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- Com certeza a dos rebeldes. Do povo, não! Eu já segui o povo... Hoje,<br />

sou uma renegada. Poucas vezes, ajo com a massa. Examino o que o<br />

povo pensa e, como orientação, procuro fazer o oposto; é minha única e<br />

firme aliança com ele. Quase sempre dá certo. O que dá errado é seguilo.<br />

Há os que afirmam que o povo sabe o que faz; esses que assim agem,<br />

fazem o mesmo que eu faço com o padre. Divertem-se à custa da vítima.<br />

Nunca fui de ficar presa aos trilhos, quanto mais sair deles, melhor.<br />

Como sou livre, obstinada pela liberdade, sigo os caminhos ordenados<br />

pelo meu interior; assim, tento terminar minha construção até a morte.<br />

Não estou presa nem às minhas afirmações, num momento, digo uma<br />

coisa, a que me serve, noutro, afirmo outra...Elas, muitas vezes, são contraditórias.<br />

E daí? O que me obriga a ser coerente? Nada! Minha coerência<br />

é a minha incoerência.<br />

- Assim, você fica dividida, deixa de ser uma.<br />

- Que importância tem? Quem não é partido? Houve evolução, a sociedade<br />

mudou porque houve alguns loucos, os que tiveram coragem para<br />

pensar diferente. Um dia, todos poderão segui-los. Essa postura perturba<br />

as mentes seguras de que só existe um caminho a seguir. Enterrei<br />

o passado religioso, os velhos hábitos e princípios, tudo que me impedia<br />

de ousar viver minha vida plena. Busco algo novo dentro de mim, não<br />

fora, nos outros.<br />

- Mas, jamais, escapará. Se suas idéias foram construídas em contraposição<br />

aos velhos princípios, às idéias antigas, se são baseadas na<br />

revolta contra alguma coisa, você está, inexoravelmente, presa ou ligada<br />

a elas; suas idéias novas foram geradas pelas velhas mães, cheias de vício.<br />

- Eu sei disso! Não podia ser de outro modo, reafirmou Virgínia. -<br />

Como, nascidas do nada? Todo os desenvolvimentos de idéias surgiu<br />

do combate às outras. Lamentavelmente, continuo, por mais que deseje,<br />

presa às antigas idéias. Se as combato, foram elas que possibilitaram<br />

minha declaração de guerra particular, pois me apoiei nelas. Vamos<br />

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pensar: as idéias, que comandam as novas, nasceram das antigas; tudo<br />

certo. Mas tenho procurado outras e outras, para derrotar todos os<br />

comandantes do antigo exército. Tento, como posso, ficar livre das idéias<br />

iniciais que me dominaram, escravizaram-me e fizeram-me sofrer. Um<br />

dia conseguirei...<br />

- Jamais terá essa alegria, debochou Lucinho. - Sempre você estará presa<br />

a elas. Você nunca as deixará, jamais será outra, diferente da Virgínia,<br />

acorrentada à sua própria história, à história de todos os homens que<br />

nos precederam, de todos os animais que vieram antes do homem.<br />

- Sempre seremos homens, com alguma coisa de chimpanzé, presos, até<br />

à morte, a outros bichos; viemos da mesma fonte produtora. Estamos<br />

ligados a tudo isso, à poeira cósmica que nos precedeu. Mas, continuo<br />

a sonhar: uns poucos conseguem se libertar, mostram, um pouco mais,<br />

sua individualidade, seu próprio caminho, completou Virgínia.<br />

- De qualquer modo, é bom e salutar desejarmos nos soltar dessa cadeia.<br />

Por isso te admiro e te louvo. Até invejo seu esforço dramático. Tenho<br />

tentado o mesmo, através de outros caminhos. Creio que todos os seus<br />

esforços não vão levá-la a nada, mas faço votos para que prossiga e que<br />

tenha êxito, embora não acredite que seja possível. Receio que fique<br />

caminhando em círculos, sem jamais escapar deles. Possivelmente fascinada<br />

pela beleza e atração da circunferência bem descrita, comentou<br />

sarcasticamente Lucinho.<br />

- Para mim, isso é sem importância. Só de imaginar estar me conduzindo<br />

conforme meus princípios, sonhando estar me libertando, ficarei<br />

satisfeita, mesmo se estiver enganada, disse Virgínia, já cansada de tanto<br />

falar e aprofundar.<br />

- Não foge ao que todos somos: o padre, seu marido e todos os demais<br />

homens do planeta Terra. Você é tapeada pelas suas teorias, mais do<br />

que os outros, pois crê não estar sendo. Todos pensam ser capazes de<br />

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esclarecer os mecanismos da vida e do universo. Caminhamos, sim,<br />

muitas vezes, para trás e, algumas vezes, damos alguns passos tímidos<br />

para frente. Quando acontece isso, percebemos, horrorizados, que nossa<br />

ignorância era muito maior do que imaginávamos, afirmou Lucinho.<br />

- É essa procura que vale... Que mais podemos fazer além disso? Eu apenas<br />

imagino que dirijo minha vida, que sou livre... Sei que minto para<br />

mim mesma, mas eu, também, preciso disso. Não quero discutir, pois<br />

não chegaremos a lugar algum, não há meios de saber se estou ou não<br />

certa; suspeito, apenas isso. Também, para quê as certezas?<br />

- Não se esforce muito para descobrir aprofundando, verá que seus<br />

pensamentos atuais se apóiam sempre em estacas podres, fincadas no<br />

brejo, como qualquer outra base na qual procuramos nos apoiar. Mas<br />

são elas que sustentam e dirigem todas suas ações e pensamentos. Você,<br />

minha cara amiga, está enganada, como todos nós, disse rindo, Lucinho,<br />

olhando, com pesar, para Virgínia.<br />

- Não sei... vou pensar mais. Hoje devo beber um pouco, para me impedir<br />

ir mais a fundo nessas divagações dolorosas. O poder...<br />

Neste instante, ela olhou-os com seus olhos azuis brilhantes, sem nada<br />

falar. Era o sinal de que estava na hora da visita ir embora. Eram oito e<br />

meia da noite, ela ia assistir a novela e queria a sala livre. Lucinho, desajeitado,<br />

levantou-se, convidando Virgínia para entrar no seu quarto. Ela<br />

preferiu se despedir. Também, para quê continuar?...<br />

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Rompendo o Silêncio<br />

A longa e estafante conversa que Lucinho teve com Virgínia, aumentou,<br />

ainda mais, sua confusão acerca do caminho a tomar. Anteriormente,<br />

preocupações semelhantes levaram-no a sofrer crises nervosas e a se<br />

submeter a tratamentos psiquiátricos. Em virtude da pouca melhora<br />

obtida com os tratamentos, ele decidiu consultar com um conhecido<br />

professor universitário, já com o tempo de aposentadoria vencido, que,<br />

teimosamente, continuava dando cursos e fazendo pesquisas na Universidade.<br />

O eminente professor acreditava estar perto de construir uma teoria<br />

psiquiátrica magnífica, capaz de fornecer todas as explicações acerca da<br />

conduta humana; uma mistura de Psicanálise, Bioquímica e Teoria do<br />

Desenvolvimento. O ponto central dessa teoria - o complexo de “Delirius<br />

Mater” - descrevia o relacionamento sexual involuntário e precoce<br />

entre um dos pais com o filho ou filha. Foi esse ponto que passou a ser<br />

investigado com profundidade pelo professor.<br />

A teoria do Prof. Pinelli parecia ter sido criada especialmente para os<br />

dramas vividos por Lucinho, principalmente, os fatos relacionados à sua<br />

mãe. O professor esperava, com a publicação de suas idéias, revolucionar<br />

a psiquiatria mundial e outras teorias do comportamento humano.<br />

Os trabalhos iniciais foram mostrados em congressos nacionais e internacionais,<br />

sendo Lucinho o exemplo vivo do possuidor da Neurose<br />

“Miserere Dolorosa”, devido ao complexo “Delirius Mater”.<br />

Essa notoriedade, evidentemente, funesta, em lugar de entristecer o<br />

paciente, deu-lhe imensa e estranha alegria. Passou a acreditar na cura e<br />

que a teoria do professor era sua última salvação.<br />

Sua análise com o Prof. Pinelli, que durou meses, teve várias fases e a<br />

ajuda de outros profissionais interessados na teoria, discípulos e ex-<br />

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alunos.<br />

Para aprofundar-se mais em suas teorias, o professor conduziu Lucinho<br />

até um terapeuta especializado em hipnose, pedindo-lhe que fizesse<br />

uma regressão no paciente. Desejava ter dados mais ricos a respeito dos<br />

abusos sexuais.<br />

Ele foi convidado a se assentar numa poltrona confortável e reclinada,<br />

onde ele ficava quase deitado. Devia ficar bem relaxado, desapertar a<br />

fivela do cinto, deixar as roupas soltas. O encarregado da hipnose, Dr.<br />

Walter, começou a falar usando sua voz sonífera e fanhosa. Tudo ali<br />

era feito lentamente. Tirou, com extrema calma e demora, do bolso da<br />

camisa preta, uma caneta dourada, amarrada a uma linha branca comprida.<br />

Segurando esta, com as pontas dos dedos, começou a balançar a<br />

caneta diante dos olhos aflitos de Lucinho. Pausadamente, o hipnotizador<br />

começou a falar:<br />

- Inicialmente, você deverá fixar os olhos nessa caneta que estou balançando<br />

diante de você. Daqui a pouco, vai se sentir sonolento, bastante<br />

sonolento. Quando isso acontecer, você irá fechar os olhos e prestar<br />

atenção às minhas palavras; apenas nelas, não deverá ter sua atenção<br />

despertada para mais nada. Entendeu? Olhe para a caneta. Ela irá balançar<br />

de um lado a outro, você prestará atenção à minha voz. Certo?<br />

O Dr. Walter continuou a falar nesse tom:<br />

- Relaxe todo o corpo, dos pés à cabeça. Você está inteiramente concentrado<br />

na minha voz. Só preste atenção a ela. Bem relaxado... muito<br />

calmo… o mais tranqüilo possível. Certo? Agora você está bem calmo,<br />

relaxado e se sentindo muito bem; prestando sempre atenção à minha<br />

voz... concentrado nela… somente nela… você começará a sentir uma<br />

onda de calor agradável, que vai se iniciar no alto da cabeça. Essa onda<br />

de calor irá, pouco a pouco, descen...do... vaga...rosa...mente... bem<br />

lenta...mente; ela começa na cabeça, depois... des...cerá para a testa... aos<br />

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poucos, alcançará os olhos... nariz... boca e lábios... vai descendo mais...<br />

e mais.... o relaxamento, agora, está passando pelos maxilares.... queixo....<br />

pescoço.... tórax... braços. Uma onda caminha; uma onda de calor<br />

muito...muito agradável, relaxante... vai agora para o abdome.... para a<br />

barriga... bacia... nádegas... coxas e, mais lentamente, ainda, esse calor<br />

passa pelos joelhos... pernas e atingirá os pés, que agora estão quentes<br />

e relaxados.<br />

Após esse preâmbulo, que durou uns dez minutos, repetido mais de uma<br />

vez, Lucinho ficou ligeiramente hipnotizado. Ao lado dele, assentado,<br />

estava o Prof. Pinelli. Entretanto o professor adormeceu mais depressa<br />

e mais profundamente que Lucinho; após se debruçar sobre a mesa de<br />

trabalho do Dr. Walter ele começou a roncar. Preocupado com o ocorrido,<br />

sem fazer barulho, o professor foi acordado pelo hipnotizador para<br />

que assistisse ao interrogatório.<br />

- Você, agora, está regredindo para uma idade anterior a que você tem<br />

no momento. Aos poucos, você vai retornando a um período de vida,<br />

quando você era um adolescente. Vamos voltar no tempo que já se foi,<br />

que ficou para trás, quando você foi se matricular no segundo grau do<br />

colégio Dom Silvério. Lembre-se da escada em frente ao colégio... Agora<br />

você vai subir a escada, um degrau, mais outro...<br />

Nesse momento, as pernas de Lucinho imitaram os passos de subir<br />

degraus.<br />

- Sobe mais um degrau. Pronto! Agora chegou ao saguão do colégio…<br />

Diversas outras instruções foram dadas. Ele ia, aos poucos, regredindo,<br />

conforme as instruções do doutor. Visualizava a sala de aula do<br />

primário, onde estudou no grupo escolar Barão do Rio Branco. Depois,<br />

regredindo mais ainda, alcançou o tempo de criança, antes de entrar<br />

para a escola. Era o momento mais esperado da regressão. O professor,<br />

nesse instante, mostrava-se não só mais atento e ansioso, como também,<br />

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cansado com a demora. Ele assistia a tudo, esperava por essa fase crucial<br />

e decisiva para suas pesquisas.<br />

Apressadamente, o professor, sem ser convidado, entrou em cena; tomou<br />

a frente do trabalho e, sem esperar as instruções do Dr. Walter, com a<br />

voz rouca e metálica, começou a sugestionar o cliente, para situá-lo na<br />

época dos contatos com a mãe:<br />

- Você, agora, está entrando no quarto de sua mãe. Deita-se, ela abre a<br />

porta, etc. etc.<br />

Dr. Walter, ex-aluno do professor, não gostou da intromissão, da pressa,<br />

nem do tom de voz usado para entrar no inconsciente de Lucinho. Entretanto,<br />

devido ao respeito que tinha pelo ex-professor - não, por achar<br />

que ele agia certo - decidiu permanecer calado, prevendo um fracasso<br />

no processo que se iniciara bem.<br />

Não deu outra. Nesse instante, começou a chorar e chegou a abrir os<br />

olhos, que foram prontamente fechados pelo professor. Novas perguntas<br />

e novos choros. Não faltaram xingamentos dirigidos ao professor. Este<br />

forçava Lucinho a relatar o desejado, já imaginando um possível fracasso.<br />

Após algumas tentativas frustradas, com o paciente acordado, não<br />

mais hipnotizado. O Dr. Walter desistiu de continuar o trabalho.<br />

Irado, o Prof. Pinelli continuou, ali mesmo com o inquérito. Nesse momento,<br />

como ocorre nas delegacias de polícia, o professor pressionava o<br />

réu para confessar o que era desejado. Lucinho, teimosamente, continuava<br />

calado e, a cada minuto mais, recusava-se a falar sobre fatos, para<br />

ele, dolorosos e, para o professor, excitantes e intrigantes.<br />

Infelizmente, para decepção dos dois: o professor e Dr. Walter, o conteúdo<br />

lembrado e verbalizado não continha o material esperado. Lucinho,<br />

acuado e forçado a falar acerca do problema, sentiu-se culpado por não<br />

conseguir enxergar as cenas desejadas. Mas ficou, também, irado com a<br />

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pressão sofrida. Teve a sensação de ser um criminoso, confessando seu<br />

crime diante de autoridades poderosas, que o forçavam, de todos os modos<br />

possíveis, a dar mais detalhes dos crimes cometidos naquelas noites.<br />

A partir desse acontecimento, as relações entre Lucinho e o professor se<br />

estremeceram. Ele continuou a procurá-lo no consultório, acreditando<br />

na sua teoria, satisfeito com o papel que tinha nela. Entretanto, percebia<br />

que a relação antiga já não era mais a mesma, houve uma ruptura<br />

grave entre eles. O professor, mais experimentado nessa área, para azar<br />

de <strong>nosso</strong> herói, foi cortando os encontros, alegando viagens, doenças,<br />

excesso de trabalho ou dando várias outras desculpas.<br />

Por outro lado, as melhoras esperadas com a teoria fantástica não aconteceram.<br />

Diante da falha da hipnose, diversos medicamentos importantes<br />

foram receitados e tomados pelo paciente obediente, dentro do<br />

esquema teórico do Prof. Pinelli. Após uma série de contratempos, Lucinho,<br />

abandonado pelo seu gênio salvador, foi enviado para um outro<br />

terapeuta, mais desocupado e com idéias menos mirabolantes.<br />

É sabido que todos nós, diante das incertezas e dos grandes sofrimentos,<br />

das barreiras intransponíveis e impossíveis de serem vencidas, passamos<br />

a usar crenças fantásticas, mágicas, que resistem a qualquer lógica.<br />

Quase todos nós, em alguma fase de nossa vida, nos ligamos, com<br />

entusiasmo e muita fé, a uma idéia filosófica, a uma ideologia política<br />

ou religiosa, acreditando estar ali a salvação da humanidade. Mais tarde,<br />

decepcionados, percebemos que nos enganamos. Ele, apesar dos fracassos,<br />

continuou acreditando que a teoria do professor seria sua salvação<br />

e com ela seus problemas estariam descobertos e resolvidos. Ele era seu<br />

Messias. Imaginava que, a partir de então, não só teria uma idéia precisa<br />

de si, como também, poderia dar asas a sua grande inteligência, uma<br />

inteligência de gênio, como afirmou o professor.<br />

Assim, sonhador, imaginava que, o que sempre buscou estava prestes a<br />

ser alcançado, um conhecimento de si mesmo, de seus recursos, obje-<br />

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tivos e talentos. Apesar do fracasso e da desistência do professor, imaginando<br />

conhecer os problemas e as soluções para eles, ufanava-se: era<br />

preciso apenas usar a teoria e tudo seria explicado e resolvido.<br />

Para fugir do cliente, o professor indicou o Dr. Erasmo, psiquiatra com<br />

grande experiência, muito prático e de grande nome, que mantinha uma<br />

independência na maneira de pensar. A consulta foi marcada rapidamente.<br />

Lucinho estava ansioso e esperançoso por encontrar um outro<br />

Prof. Pinelli, um seguidor fanático do seu mestre.<br />

Dr. Erasmo era baixo e um pouco gordo. Os poucos cabelos que tinha,<br />

dos dois lados da cabeça, eram grisalhos e ralos. Usava, desde os tempos<br />

de rapaz, um pequeno e fino bigode. Suas maçãs do rosto, muito vermelhas,<br />

pareciam ter sido pintadas com ruge. Andava rapidamente como<br />

se estivesse dando pulinhos. Ele evitava fitar o paciente de frente, mas<br />

estava sempre atento a qualquer gesto ou palavra dele.<br />

Ao entrar no consultório, Lucinho foi gentilmente conduzido pelo<br />

Dr. Erasmo até a cadeira onde devia se sentar. Distraidamente, sem se<br />

lembrar do telefonema, recebido dias antes, Dr. Erasmo perguntou-lhe<br />

quem o enviara:<br />

- Quem o indicou para consultar comigo?<br />

- Então, não sabe? Meu analista, Prof. Pinelli. Foi ele quem, após longos<br />

estudos, descobriu que sofro de um mal, por sinal, raro; sou um caso<br />

quase único no mundo. Os profissionais poderão aprender com meus<br />

problemas e meu comportamento.<br />

- Como? Não entendi.<br />

- Fui indicado pelo Prof. Pinelli, disse, falando alto, ligeiramente agressivo,<br />

esperando uma resposta. Desgostoso com o silêncio do médico,<br />

continuou, falando alto: - Você o conhece, não é?<br />

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- Sim, foi meu professor. Ah, agora me lembro; ele me telefonou. Certo.<br />

Lembrei-me.<br />

- Ele é famoso, faz conferências no mundo todo, é um dos maiores nomes<br />

da Psiquiatria mundial e suas idéias, as mais modernas, são discutidas<br />

pelos mais estudiosos em todos os lugares.<br />

- Sim, respondeu Dr. Erasmo, mostrando pouco entusiasmo com a conversa.<br />

Ele esperava que o cliente começasse a falar de seus problemas;<br />

já ouvira, por diversas vezes, essas frases onde se elevava o indivíduo às<br />

alturas. Muitas vezes, o elogiado não passava de um charlatão. Imaginava<br />

mesmo sabendo que podia estar errado, que todos os “muito famosos<br />

e sábios” faziam sua propaganda particular, distorciam a verdade em<br />

beneficio próprio; muitos deles eram possíveis enganadores, interessados<br />

na fama ou, principalmente, no lucro. “Seria esse o caso do professor?” ,<br />

especulava Dr. Erasmo.<br />

- Eu me tratei com ele por muito tempo. Devido ao grande número de<br />

clientes que ele tem e por ser meu caso muito complicado, tomando<br />

muito tempo, ele me confiou ao senhor. Mas já tem o diagnóstico e o<br />

modo de me tratar. Como agora não mais preciso dele, pois está mais<br />

fácil o tratamento, qualquer um poderá continuar o trabalho iniciado.<br />

Disse-me que o senhor o conhece, bem como sua teoria e, portanto,<br />

estaria apto para completar o tratamento.<br />

Dr. Erasmo ficava cada vez mais apressado; seu tempo ia se esgotando<br />

com aquela conversa inútil. Lucinho rodeava, rodeava, não entrava no<br />

assunto.<br />

- O quê o traz aqui?<br />

- Você é apressado, hein? Agora mesmo irei lhe contar. Desejava apenas<br />

colocá-lo a par dos meus tratamentos anteriores, principalmente<br />

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do último, pois se fosse contar tudo, todos os tratamentos realizados,<br />

ficaríamos aqui muitos dias. Já fui a mais de vinte terapeutas diferentes;<br />

alguns, ótimos, excelentes, daqui, do Rio e de S. Paulo. Depois que conheci<br />

o Prof. Pinelli, descobri que fui enganado. Na verdade; não sei não.<br />

A maioria dos psiquiatras com os quais tratei era ignorante. Ele é muito<br />

superior a todos; sabe muito mais, é muito mais culto e inteligente do<br />

que esses psiquiatrazinhos com os quais consultei.<br />

- Tudo bem! Espero não fazer parte dessa sua listinha, ironizou Erasmo.<br />

- Tudo começou há muitos anos; a primeira vez que fui a uma psicóloga,<br />

eu era uma criança, tinha em torno de cinco anos...não me lembro<br />

mais...<br />

Ele foi contando seus problemas, desde o dia em que deu uma dentada<br />

na prima, depois quando pegou o revólver do avô para matar a professora,<br />

D. Francisca. Contou, também, sobre as crises e internamentos.<br />

- Muito bem. Creio que poderei ajudá-lo, apesar dos problemas que<br />

enfrentou. Você está bem, apenas um pouco ansioso... ligeiramente minucioso,<br />

obsessivo. São problemas simples, semelhantes a muitos... Não<br />

graves... Já tratei de muitos outros parecidos.<br />

- Não! Nada disso! Deixe-me explicar: você irá aprender, interrompeu,<br />

irritado com a comparação, pensando que seu caso era fácil e que poderia<br />

ser tratado como outros milhares…<br />

- Estou velho para aprender...<br />

- Deixe-me falar! Disse com impaciência. Ele precisava mostrar o que<br />

sentia e como estava diagnosticado: não era um casinho qualquer. - O<br />

professor, continuou, tratou de mim durante muito tempo; não foi uma<br />

sessão, não. Não se faz um diagnóstico tão rápido. No início, foi difícil<br />

e sofrido. Dei muito trabalho a ele, hoje, vejo quanto o perturbei. Mas<br />

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penso que, também, o ajudei. Foi através dos meus problemas, do meu<br />

caso, que ele construiu sua brilhante teoria. Já publicou um livro sobre<br />

ela, baseada na minha vida. Já fez até conferências, aqui e no exterior, em<br />

vários congressos. Ele foi o único brasileiro convidado a falar no último<br />

congresso de Psiquiatria, realizado em Quebec. Ele fala francês, inglês,<br />

alemão e italiano, é um poliglota, um gênio! Não é de se espantar, pois<br />

como um dos expoentes da psiquiatra mundial, vem pesquisando o<br />

comportamento humano há um longo tempo. Quebrou a cabeça, no<br />

início, antes de me conhecer; depois, escreveu seu primeiro trabalho a<br />

meu respeito. Nessa ocasião, ele descreveu um esboço de sua teoria; depois,<br />

outro e, finalmente, um livro. Agora, já publicou mais outro e está<br />

no terceiro. Nesse último, ele descreve as observações obtidas através<br />

de minhas análises. O livro deverá ser publicado nos próximos meses.<br />

O meu caso será descrito em detalhes. Fui seu principal cliente, eu o inspirei,<br />

falava Lucinho sem parar, entusiasmado com o relato: - Para que<br />

ele pudesse me estudar melhor, eu ia, diariamente, ao consultório, no<br />

início do tratamento. Posteriormente, percebemos que eram necessários<br />

contatos mais freqüentes, pois tratava-se de estudos altamente complicados.<br />

Você deve saber, não é?<br />

- Sim, respondeu Erasmo; sei. Isso é...não sei...É muito difícil..., desanimado<br />

e desinteressado por todas essas considerações indigestas, repetitivas,<br />

que não levariam a nada e que detestava.<br />

- Pois bem. Aos poucos, foi penetrando mais nos meus problemas, na<br />

minha vida mental e emocional, principalmente, no meu inconsciente,<br />

no ID. Ele pesquisou todo meu passado, antes e depois dos três anos,<br />

quando começaram meus problemas. As idéias importantes que surgiam<br />

eram muitas e precisávamos de mais tempo. Ele, bem como seus<br />

assistentes, estava altamente interessado no meu caso. O grupo, por<br />

ele chefiado, extraía os conhecimentos básicos, da teoria que construía<br />

através de minhas análises. Essas idéias foram transmitidas para os<br />

grandes cientistas deste planeta. Ele descreveu, com minúcias, como<br />

funciona uma mente distorcida. Penso que o senhor, como estudioso<br />

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do assunto, segundo me informaram, conhece e sabe que essas teorias<br />

antigas - Psicanálise, Comportamental, Cognitiva, Neuro-lingüística e<br />

outras - estão erradas. Como é sabido, elas não mais funcionam. Todas,<br />

com exceção da teoria do professor, descrevem e explicam apenas certos<br />

fatos da conduta, não todos. Algumas delas só tratam dos sintomas, das<br />

conseqüências, e não das causas. Nesse caso, o paciente sempre continua<br />

doente, pois, se as causas continuam, não foram erradicadas, não se<br />

curou a pessoa. Isso é claro como água! Todos sabem...<br />

O Dr. Erasmo encontrava-se, a cada momento, mais aborrecido. Já ouvira<br />

tudo aquilo, por milhares de vezes, todos defendendo teorias diferentes<br />

que combatem as causas, que para ele, nenhum cientista jamais<br />

descobrira. Mas, Lucinho insistia nas suas ponderações.<br />

- A maioria das teorias são superficiais, sem fundamentos válidos. A<br />

Psicanálise é carregada de misticismo, suas explicações são metafóricas<br />

e, como toda explicação mítica explica a complexa conduta através de<br />

um ou dois conceitos; é ultra-simplificada, por isso, errada. É preciso ir<br />

além. Todas essas teorias antigas serão, no futuro, dinossauros, velharias<br />

sem valor, irão para o lixo, isso não demorará. Ou você usa apenas as<br />

últimas? Perguntou, repentinamente.<br />

- Não... Sim, já estudei todas. Nunca fui muito preso a uma teoria específica.<br />

Critico-as todas. Cada uma tem suas virtudes próprias, seus<br />

ensinamentos, mas também, suas falácias, os resíduos inaproveitáveis.<br />

- Não gosto de palavras sofisticadas. Vim aqui porque me falaram que o<br />

senhor está estudando a teoria do professor. Disseram-me que o senhor<br />

é um homem simples, sem afetação.<br />

- Sim. Li os trabalhos, assisti a suas conferências e notei que ele tem<br />

idéias interessantes, não tão novas...falou nesse momento, o Dr. Erasmo,<br />

num tom mais baixo possível, para não ser ouvido.<br />

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- O quê? Espantoso! O senhor é o primeiro a falar uma bobagem dessas.<br />

É o que existe de mais moderno! Parece que o senhor não anda a par do<br />

que existe de mais correto. Eu, hoje em dia, penso que conheço Psiquiatria<br />

mais do que a maioria dos médicos-psiquiatras; dos psicólogos, nem<br />

se fala: são uns ingênuos, alguns, imbecis completos. Penso, às vezes,<br />

que poderia dar aulas para os alunos das Universidades, acerca dos meus<br />

problemas e do que ocorreu comigo. Não me formei em Medicina, ou<br />

em Psicologia, porque não quis. Há muita discriminação. Os diretores<br />

e reitores protegem aqueles que têm diplomas e não dão oportunidade<br />

aos que têm o conhecimento sofrido na alma, a sabedoria...Os que não<br />

sabem, que nunca adoeceram, escrevem teorias a respeito dos pacientes;<br />

entretanto, o conhecimento dos que sofreram e não dão aulas, é, muitas<br />

vezes, mais profundo e correto do que o dos medalhões...Já entrei em<br />

vestibulares e passei em todos que tentei. Depois, acho uma besteira o<br />

que estou ouvindo e abandono o curso; entro noutro; largo-o, também...<br />

pelos mesmos motivos.<br />

- É a Lei. Você, como todos, tem de se adaptar a ela. Alguns, não formados,<br />

podem ser julgados por uma comissão de professores universitários<br />

e receber o título de “ Notório Saber”. O candidato a esse título deverá<br />

possuir um grande conhecimento na área na qual é candidato, mesmo<br />

não tendo o curso superior. Por que você não tenta isso?<br />

- O Prof. Pinelli falou-me acerca disso. Penso nisso. Mais tarde, darei<br />

conferências ou aulas acerca das minhas descobertas sobre o comportamento<br />

humano. Fui convidado por uma amiga, que tem problemas<br />

semelhantes aos meus para, juntos, darmos cursos para os que não têm<br />

acesso a essas informações que consegui penosamente. Nós, clientes,<br />

sabemos mais do que os terapeutas a respeito das doenças, apenas não<br />

possuímos o vocabulário apropriado para explicá-las. Já me convidaram<br />

até para fundar uma nova religião, eu seria o teórico, ela seria a pastora;<br />

ela é mais desinibida, eu não falo bem. Lucinho pára um pouco e dá um<br />

suspiro profundo e retoma a conversa. - Adquiri conhecimentos com<br />

grande sofrimento. Penso, se tudo der certo - em dar cursos, como mui-<br />

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tos que são anunciados nos jornais. Poderia até ganhar algum dinheiro,<br />

mais do que com o meu trabalho na loja do meu pai; ajudaria as outras<br />

pessoas. Não é o que os psiquiatras fazem?<br />

- Sim. Eles ganham a vida tentando auxiliar os outros.<br />

- É o que se diz; mas, muitas vezes, em vez de ajudarem, atrapalham.<br />

Um deles já me receitou Haldol, achando que eu era esquizofrênico; um<br />

outro, Tofranil, pensando que eu estava deprimido; vários receitaram<br />

Valium, Frontal, Lexotan, Lorax e outros tranqüilizantes, afirmando que<br />

o que eu tinha era ansiedade. Para um deles, o de São Paulo, eu tinha<br />

Transtorno Afetivo Bipolar - um nome até bonito; receitou-me Carbonato<br />

de Lítio. Um, imaginou que eu tinha cisticercose cerebral e receitou<br />

Rivotril; depois trocou por Gardenal. Deu tudo errado. Você sabe o que<br />

é cisticercose, não é?<br />

- Sim. É um ovo de tênia que, através da circulação, vai até o cérebro e<br />

fica lá, podendo causar certos sintomas...<br />

- Exato. O senhor sabe. Não precisa falar mais. Um outro fez tomografia<br />

computadorizada, um exame moderno, caro, para ver se tinha lesões<br />

cerebrais. Nada encontrou. Um deles, famoso que, às vezes, costuma<br />

aparecer em programas na TV e cobra muito caro - até escreveu livros<br />

bonitos para um público imbecil...é melhor não falar devido a ética...<br />

achou que eu tinha que fazer um mapeamento cerebral para verificar se<br />

a circulação estava correta. Disse-me que havia um pequeno problema<br />

nas ondas cerebrais, que me impedia de pensar com exatidão e cautela,<br />

de planejar, o que me levava a agir impulsivamente. O tratamento, por<br />

sinal muito caro, não seria demorado: pouco mais de dois anos. Você<br />

conhece esse tratamento? É famoso.<br />

- Mais ou menos.<br />

- Não conhece? Todo mundo sabe de que se trata. Então, não vê TV?<br />

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- Você acertou! Vejo pouco.<br />

- É nisso que dá. A TV, ás vezes, nos ensina, bastante. E a “Folha”?<br />

Vai ver que não lê nem a “Folha”, ou as revistas mais lidas como: “Isto<br />

É”, “Veja”. Em todos esses informativos já saíram artigos acerca disso.<br />

Você lê esses jornais e revistas?<br />

- Também, não. É claro, às vezes, quando não tenho coisa melhor a fazer,<br />

passo os olhos.<br />

Nesse ponto da consulta, ele começava a se preocupar com o modo do<br />

Dr. Erasmo. Imaginava que ele poderia não ser tão capaz assim, pois<br />

parecia não possuir os conhecimentos esperados. Isso era terrível para<br />

Lucinho.<br />

- Mas esse tratamento apareceu até no Fantástico. Nem esse programa<br />

você vê? De onde vêm os seus conhecimentos? Apenas das notícias antigas<br />

lidas nas revistas médicas?<br />

- Não, não vejo! Respondeu; começando a se envolver com as perguntas<br />

e agressões. Ao mesmo tempo, recriminava-se por estar sendo manipulado<br />

por aquele jovem. “O que está acontecendo comigo? Começo a<br />

perder a cabeça, facilmente”. Dr. Erasmo, nesse instante, lembrou, momentaneamente,<br />

de sua mulher que estava internada no CTI do Hospital<br />

das Clínicas.<br />

- Não sei se devo prosseguir; imagino que eu não serei entendido. Acho<br />

que você deve entender, não é possível! Falaram tão bem a seu respeito!<br />

Deve estar troçando de mim, falando que não sabe dessas coisas tão banais,<br />

comparadas com o meu caso que é muito mais complicado. Talvez<br />

isso seja um jogo seu. Os psiquiatras são mestres nisso, falam uma coisa<br />

e fazem outras. Está fingindo, troçando e isso não é ético.<br />

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- Não existem milagres. Muitos profissionais são charlatães, falou, Dr.<br />

Erasmo com certa aspereza, lembrando de casos e tratamentos mal feitos<br />

que presenciou: - É o que mais existe na Medicina, na Política e, principalmente,<br />

nos que formam as opiniões, na Imprensa. Todos esses grupos<br />

atraem muito os desonestos, os que visam apenas o dinheiro e o poder.<br />

Mas isso não vem ao caso: Prossiga, pode me contar sua história, arrematou<br />

arrependido de ter falado mais que devia; não era seu habitual.<br />

Estava sendo manipulado pelas provocações daquele cliente simpático e<br />

simples.<br />

- Charlatães? O senhor é louco! O que quero te contar é que já fui a<br />

diversos psicólogos e psiquiatras bons, sabe? Tem muitos ruins, eu sei...<br />

Lucinho continuou falando, agora mais nervoso: - muitos melhores do<br />

que o senhor. Eles conhecem Psiquiatria. Fui também - não deveria falar<br />

mas não tenho medo de suas críticas, pois já sei quem sou eu - até a<br />

curandeiros...a videntes, numerólogos, cartomantes. Vai ver que você<br />

pensa que isso não vale nada! Grandes políticos... Conheço, também,<br />

até embaixadores e juizes que procuram essas pessoas. Eles ajudam aos<br />

necessitados. Alguns deles descobriram, sem sequer me conhecer, o<br />

que tinha acontecido comigo, e mais, o que estava ocorrendo. No inicio,<br />

achei bom, parecia que tudo estava dando certo, entretanto...mais tarde...<br />

Nesse momento, Lucinho teve uma crise de tosse e continuou com dificuldade:<br />

- Percebi que havia erros em suas previsões; eles não estavam<br />

acertando tudo! Alguns estavam totalmente equivocados! Certa vez, fui<br />

a uma vidente ou cartomante, sei lá, ela trabalhava com cartas, búzios<br />

e outras coisas do gênero; também cobra caro, é muito conhecida: a<br />

Isaurinha, conhece? Ela é psicóloga e socióloga; foi aluna do <strong>nosso</strong> presidente,<br />

gente sábia como ele.<br />

- Não. Nunca ouvi falar.<br />

- Não conhece o Presidente? Desisto. O senhor não conhece ninguém!<br />

De onde vem seu conhecimento?<br />

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- Nunca ouvi falar de Isaurinha! Quanto ao Presidente, até hoje não fui<br />

apresentado a ele, ouço-o, às vezes, a contragosto, sem desejar e sem entusiasmo.<br />

Não presto muito a atenção no que ele diz, nem no que se fala<br />

acerca dele, seja mal ou bem. Deixe isso pra depois...<br />

- O senhor é casado?<br />

- Para que quer saber? Falou rápido Dr. Erasmo, muito espantado.<br />

- Por simples curiosidade. É proibido dizer? Todos falam. O professor<br />

contou-me tudo a respeito dele: ficou viúvo três vezes. Sua última mulher<br />

morreu há quatro anos. Eu já me tratava com ele... ele ficou muito<br />

triste com sua morte; mas foi até bom, pois foi, a partir dai, que se estreitaram<br />

nossas ligações. Já lhe disse: cheguei até a dormir em sua casa. Ele<br />

é um homem educado, fui muito bem tratado... é... depois tivemos uma<br />

briga feia.<br />

- Como?<br />

- Isso mesmo. Muitas vezes, dormi lá! Foi um modo que ele arrumou<br />

para estudar meu caso melhor. Ele queria anotar meu sono e, principalmente,<br />

meus sonhos, no momento de sua realização. Além disso, ele<br />

estava muito deprimido com a morte da mulher; quase não dormia e,<br />

assim, pude ajudá-lo um pouco, também. À noite, ele ficava à beira da<br />

minha cama, observando quantas vezes eu virava o corpo, o que falava,<br />

se meus olhos mexiam e quantas vezes isso ocorria. Fazia centenas de<br />

anotações acerca do meu sono e sonho. Aprendi com ele, mas sei que o<br />

ajudei muito, acredito que mais do que ele me ensinou.<br />

- Bem... - fazendo uma cara de desaprovação bem clara.<br />

- Você é do tempo antigo. Acha que um psiquiatra não pode ter esse tipo<br />

de intimidades com seus pacientes. Por que não?<br />

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- Hum... hum...<br />

- Um dos terapeutas que consultei só falava desse modo: hum, hum.<br />

Você estudou com ele O Prof. Pinelli acha que os que falam assim, nada<br />

sabem; fica fácil trabalhar desse modo. Tudo fica por conta do cliente:<br />

hum, hum, hum. O cliente deita no divã, começa a falar e ele fica resmungando;<br />

hum... hum... hum... No fim, a gente paga uma consulta que<br />

nada ajudou... para isso, seria melhor que eu treinasse um papagaio e<br />

falasse para ele ou, se quisesse ser um pouco mais sofisticado, usasse um<br />

gravador, fica mais barato e divertido.<br />

- Concordo; é complicado...<br />

- Você fala duas idéias ao mesmo tempo. Concorda com quê? O quê é<br />

complicado?<br />

- A cada hora você troca de assunto, ainda estou pensando, meu raciocínio<br />

é mais lento do que o seu... replicou Dr. Erasmo, desanimado<br />

com o andamento da sessão.<br />

- Ah, que saudade do professor. A psiquiatria era complicada antes da<br />

teoria dele... ficou muito mais fácil, mais simples, após seus estudos e<br />

explicações.<br />

- Vamos terminar a consulta, seu horário já se esgotou há muito tempo.<br />

- Não gosto dessas frescuras de horário terminado. Detesto isso: “seu<br />

horário terminou”, nada de útil falamos. Com o professor, não havia<br />

isso, ficava lá o tempo que quisesse.. duas, três horas, até terminar o que<br />

precisava, até cansar-me. Ele queria aprender com o meu caso, que é<br />

raro, ou único. Se o tempo fosse pouco, passava lá à noite para terminar<br />

a conversa. Tomava até um vinho com ele; dizia que o álcool ajudava a<br />

ab-reação. Durante a catarse, eu falava mais, colocava meu inconsciente<br />

para fora e, assim, ele lia melhor minha mente interior.<br />

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- Tenho outros clientes para atender, cada um tem seus afazeres próprios;<br />

preciso de seguir os horários marcados.<br />

- O senhor parece obsessivo, preso a esquemas rígidos; não é capaz de<br />

abrir exceções, ainda mais para casos especiais e raros iguais ao meu. O<br />

que os outros clientes vêm fazer aqui? Contar baboseiras, besteiras do<br />

dia-a-dia: o filho que teve diarréia, o marido que dormiu fora de casa,<br />

a empregada que roubou o pó de café, tudo sem interesse algum, não<br />

é? É mais interessante para o psiquiatra tratar pacientes melhores, mais<br />

inteligentes e cultos, com quem ele próprio poderá aprender, como<br />

meu caso. Eu falo acerca de teorias complicadas e não de fatos isolados;<br />

associo idéias, tiro conclusões; relatar fatos isolados, qualquer jornal<br />

vagabundo faz.<br />

- Não sei bem.<br />

- O senhor tem medo de dar opiniões, perdoe-me, mas sou capaz, agora,<br />

com meus conhecimentos atuais, de afirmar que o senhor tem, também,<br />

o complexo de “Delirius Mater”, não é?<br />

- Não sei o que está querendo dizer. Meu tempo, como já disse, terminou.<br />

Estou atrasado, conversaremos mais acerca disso no próximo<br />

encontro, certo?<br />

- Eu pago outra consulta, assim, fico mais tempo, vai ser melhor para o<br />

senhor.<br />

- Não se trata disso! Até logo!<br />

- Que dia volto?<br />

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Irmãos entre Quatro Paredes<br />

- O que foi? A essas horas num quarto fechado? Está doente? Perguntou,<br />

gentilmente, Agostinho<br />

- Não amole. Faço o que quero, respondeu, asperamente, Lucinho.<br />

- Foi ao médico? Gostou?<br />

- É um chato. Colocou-me mais minhocas na cabeça. Já não sei o que<br />

fazer...quando me sentia seguro, compreendia-me, com as interpretações<br />

do Prof. Pinelli...<br />

- Como? Agostinho continuou o inquérito.<br />

- Dr. Erasmo não disse claramente o que pensa. Você sabe como são os<br />

psiquiatras, falam por rodeios, como você. A gente nunca sabe o que<br />

estão querendo expressar; muito menos pensando, retrucou Lucinho.<br />

- Eu? Falo claro. Não afirmo coisas de que não tenho certeza. Possivelmente<br />

não tenho certeza de nada! falou, orgulhoso, Agostinho.<br />

Nesse momento entra Roberta, procurando um livro seu que havia<br />

sumido.<br />

- Estão falando de psiquiatra? É o que ele mais entende; sempre viveu no<br />

meio deles. O que ele já gastou com esses tapeadores daria para construir<br />

uma usina, para fornecer energia e luz para uma cidade de dez mil<br />

habitantes. Suas análises pioraram sua cabeça, escureceram com fuligem<br />

sua mente que nunca foi clara...<br />

- Não encha o saco. Estou melhorando, começo a entender o meu mal;<br />

as causas dos meus problemas; já lhe expliquei mil vezes as teorias do<br />

professor...Ele é um cientista inteligente, sabe o que fala...Não é um idi-<br />

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ota como você. Afirmou, Lucinho, dirigindo-se a Roberta.<br />

- Ah, ah... Acho uma graça. Mudou de drogas: trocou maconha por<br />

cocaína ou vice-versa; não sei bem. Usava as drogas excitantes de D.<br />

Rosária, de Dr. Alberto, Pedro, Antônio, agora, passou a usar os calmantes<br />

do Prof. Pinelli. É difícil descobrir qual é a pior.<br />

- Não é de sua conta! Uso os ensinamentos que desejar, além do mais,<br />

não quero ouvir suas opiniões, muito menos suas metáforas.<br />

- Levanta dessa cama! Onde está meu livro? gritou Roberta.<br />

- Eh... está me mandando? Acha que pode me dar ordens, retrucou.<br />

- Você estrila à toa, todas as vezes que alguém fala com você... Não foge<br />

ao padrão maternal, puxou a mãe, aquela fil... ela continuava a xingar,<br />

enquanto ele permanecia deitado.<br />

Agostinho, sem saber o que fazer, olhava aborrecido a parede nua do<br />

quarto fechado, onde não entrava um feixe de luz.<br />

- Sua também, ouviu? esbravejou Lucinho, enquanto olhava firme, com<br />

olhos brilhantes, em direção à irmã. Nossa! Ainda será como ela; é a<br />

praga que te rogo, ninguém foge ao seu destino.<br />

- Nada disso! Deus me livre! Você, muito mais do que eu, a puxou.<br />

Parece muito com ela, nunca abandona suas idéias...Eu, nem a considero<br />

minha mãe...Tenho idéias diferentes. Minha mãe está morta, enterrada,<br />

há muito tempo; encontrei outras. Nem sei mais se, para mim, ela existiu,<br />

algum dia. A sua, essa megera toda-poderosa, habita todos os pontos<br />

do seu reduzido mundo, invadiu, dominou e escureceu todos aposentos.<br />

Sua deusa, essa desgraçada, objeto de sua devoção, controladora de todos<br />

os seus pensamentos e ações, é que lhe dá direção, sossego e amparo.<br />

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191


Roberta conversava como se soubesse de tudo; deu um sorriso irônico e<br />

continuou:<br />

- Ela tem feito todas as suas vontades, todas elas. Ao por no mundo esse<br />

imbecil, ao construí-lo, exigiu de sua cria uma fidelidade estrita ou a<br />

morte. Você preferiu a proteção, suas velhas idéias, em lugar de pensar e<br />

decidir por si mesmo.<br />

- Eu te mato! Gritou. Não gosto de falar sobre isso, nem mesmo com<br />

os psiquiatras. Detesto certos assuntos, esse é um deles. Já discuti isso,<br />

muitas vezes, com quem entende melhor do que...<br />

- Você, no fundo, sabe que vai ao psiquiatra para representar... Para<br />

inventar mentiras para eles, acerca do seu falso crescimento; dos seus interesses,<br />

que nunca foram seus; das novas idéias, que, de fato, são velhas.<br />

Tudo é mentira que, no fundo, eles querem ouvir. São idéias falsas, adaptadas<br />

e arrumadas para preencherem as teorias bonitas, caprichosas e artificialmente<br />

elaboradas. Ouvindo as narrações enganosas, os terapeutas<br />

sentem-se gratificados, sonham estar ajudando o cliente. Mas, de fato, é<br />

o cliente que está ajudando o psicólogo. Essas elucubrações lançadas por<br />

eles nas mentes inocentes fornecem aos ingênuos pacientes como você, a<br />

sedutora idéia de tranqüilidade. Suas belas interpretações criam a ilusão<br />

da captação do incompreensível. Palavras, apenas palavras, tudo para<br />

esconder a realidade feia...<br />

- Idiota, não estou interessado em saber como você interpreta as interpretações.<br />

- Essas “redes” interpretativas, continuou Roberta sem ouvi-lo, essas<br />

suposições coloridas com esmero, carregadas de palavras retiradas dos<br />

mitos e vestidas com símbolos atraentes são, como os mitos que lhe deram<br />

origem, ficções inúteis. Para que criar um nova mentira, se já existe<br />

uma? Duas idiotices seriam melhor do que uma? Só os imbecis, como<br />

você, não percebem que as teorias utilizadas pelos terapeutas são inven-<br />

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ções para reunir comportamentos separados e incompreensíveis, para<br />

acalmar e ludibriar seu próprio construtor e, muito mais, seus seguidores.<br />

Os pseudo-esclarecimentos fornecidos nas análises são abstrações<br />

genéricas fingindo fazer parte do indivíduo; selecionam partes de um<br />

conjunto complexo e afirmam descrever a totalidade. As interpretações<br />

pouco ou nada têm a ver com a realidade que cada um de nós vive. Você<br />

diz que deseja escapar das falsas idéias impostas pela nossa mãe mas,<br />

ao mesmo tempo, submerge-se nas fantasias dos psicólogos, embarca<br />

nos seus sonhos. Pagará caro por isso! Eu te conheço, mais do que eles;<br />

tenho instrumentos melhores para te estudar do que as teorias improvisadas<br />

deles. Eu te observo agindo livremente nesse mundo real, não<br />

no artificial do consultório; por isso sei quem você é. Quer te conhecer<br />

mais? Vou falar o que penso a seu respeito!<br />

- Não! Já lhe falei. Não! Não quero ouvir nada de você! Eu te odeio! berrou<br />

Lucinho.<br />

- Um vagabundo, aproveitador, medroso, que nunca fez nada; se diz<br />

doente para receber esmolas dos que estão aflitos e necessitados de dálas.<br />

Sempre encontramos os que desejam aplacar seus sentimentos de<br />

culpa. Faz tudo para não crescer, foge dos riscos, das responsabilidades<br />

do adulto; usa a inteligência infantil. Para que ir ao psiquiatra? Para que<br />

ele lhe diga asneira, de um modo mais civilizado e gentil, principalmente<br />

falso?<br />

- Estou trabalhando, estou tentando me mudar. Pare! Eu te mato, já te<br />

disse... Desgraçada!<br />

- Viu, como te atingi? Se minhas palavras nada tivessem a ver com<br />

você, nessa hora, estaria dando boas gargalhadas das besteiras que falei.<br />

Entretanto, reagiu, acertei no alvo, porque há feridas, marcas antigas que<br />

sangram facilmente, desde que usemos o código apropriado. Coitado<br />

é o que é agarrado à saia da mãe. E que mãe! A mesma que fez gerar,<br />

em nossas mentes, as idéias mais absurdas e falsas do mundo; ela mere-<br />

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cia morrer antes da gente ter nascido. O mundo grande, o de fora da<br />

família, não se adapta às noções aprendidas em casa, ele não se importa<br />

com seus desejos e necessidades, nem se encaixa nas utopias dos psicólogos;<br />

não foi treinado para viver nele. Esse mundão é governado por<br />

outras regras, bem diferentes das que imperam nessa casa suja e imoral.<br />

Preso às imbecibilidades ensinadas por D. Rosária, busca, lá fora, uma<br />

realidade para adaptar às suas idéias idiotas. Isso não é possível. Para<br />

que ocorresse isso, você precisaria construir tudo de novo, tendo como<br />

receita a forma do seu pensamento. Lá, no mundo real, onde você tem<br />

medo de ir, tudo é diferente do que existe em sua imaginação - arrematou<br />

Roberta séria.<br />

- Isso eu já sei. Não precisaria ser dito. Dei muitas cabeçadas, usando<br />

as velhas idéias. Agora, estou, depois do Prof. Pinelli, acertando meus<br />

passos, sabe? Nem devia te responder. Essa sua conversa me enoja... Não<br />

preciso dela. Tenho orientadores melhores, gemeu Lucinho.<br />

Agostinho, em pé, tenta, desanimado, apaziguar os ânimos, coisa que<br />

já fez inúmeras vezes; para isso, usou sua voz calma, as idéias neutras.<br />

Volta-se para Lucinho, com suavidade.<br />

- Tenho procurado ajudá-lo...O esboço do mundo que você aprendeu,<br />

principalmente de nossa mãe, é muito diferente desse...do real... Nesse<br />

ponto, concordo com Roberta. Eu tive e ainda tenho minhas dificuldades.<br />

- Oh! Isso é óbvio; não posso ter uma idéia das coisas, das pessoas, em<br />

geral, como você tem; como não posso usar sua maneira de ver o mundo...ou<br />

dessa puta - olhando com os olhos brilhantes para a irmã. - Cada<br />

um imagina a realidade a seu modo. Uma coisa eu sei: a idéia que tenho<br />

de mim e das coisas não tem funcionado. Ao agir, percebo que esbarro<br />

em situações intransponíveis, não tem dado certo...Espero uma coisa e<br />

acontece outra, estou encurralado no labirinto resmungou.<br />

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194


- O que deve fazer é examinar seu modo de pensar, errará menos, caso<br />

comece... comentou Agostinho, seguro do que falava.<br />

- Mas, como? O que mais venho fazendo, desde que nasci? Tento descobrir<br />

e incorporar uma idéia mais bem adaptada para viver, uma melhor<br />

idéia de mim mesmo, tudo para poder acertar mais. Você pensa que a<br />

realidade que você enxerga é mais correta do que a que percebo? Que<br />

as suas representações e suposições do mundo são as certas? Que a vida<br />

que você leva é melhor do que a minha? Você, também, está querendo<br />

me crucificar com suas certezas! Sei muito bem disso, depois, é claro,<br />

das análises com o professor...Tudo está mudando; vejo-me e compreendo-me,<br />

agora, de modo diferente; entendo melhor o mundo ao meu<br />

redor, incluindo vocês.<br />

Roberta dá uma gargalhada e caminha para o canto do quarto à procura<br />

do livro que não é encontrado. Agostinho vira-se para Lucinho e arremata:<br />

- Oh, coitado! Não imagina que a realidade, olhada sob a ótica ensinada<br />

pelo professor, pode ser mais inadequada, mais inexata ainda do que a<br />

existente na sua mente, imposta pela nossa mãe.<br />

- Você não sabe nada! O professor é um sábio, conhece muito mais o<br />

comportamento do que você. Muitas coisas ensinadas por ele, mesmo<br />

algumas de nossa mãe, funcionam e me alegram... Dão-m paz.<br />

- Acertou! Paz, sim. Alegria, sim, mas, infantil, tola; alegria dos bobos,<br />

continuou Roberta. A busca da paz, que você tanto procura, só é alcançada<br />

através do falso conhecimento, pela imposição de dogmas que<br />

descrevem o falso, o imaginário e ilusório. Você só terá paz durante os<br />

sonhos ou nas idéias utópicas. Estes sim, tranqüilizam, a realidade, não!<br />

- Quem disse que essa sua afirmação é verdadeira? Pode, também, ser<br />

mais uma besteira...<br />

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- Tanto é assim que basta aparecer alguém, como ele - comentou Roberta,<br />

sem ouvi-lo - lançando alguma idéia, teoria ou tratamento idiota<br />

e absurdo, para que, rapidamente, uma multidão de náufragos se<br />

lancem à procura desse salva-vidas milagroso, correm para agarrá-lo,<br />

na vã esperança de que, com a posse desse instrumento, estarão a salvo<br />

das tempestades, abrigados e protegidos. Estarão sim, tapeados, como<br />

antes estavam sob a proteção de outras quimeras. É muito simples; se<br />

existisse uma idéia certa, uma melhor do que as outras, ninguém ficaria<br />

procurando por elas. Você sabe que o lançamento de novos modos de<br />

viver, de aconselhamentos, é o que mais existe. Não há certeza em nada,<br />

apenas probabilidades! E olhe lá! Ouviu? A todo momento surge um<br />

novo Messias, como seu mestre Pinelli, usando idéias falsas, prometendo<br />

o inalcançável. Aí é que está o mal!<br />

- O mal? retrucou Lucinho, confuso. As terapias buscam isso: idéias<br />

mais adaptadas para cada cliente.<br />

Agostinho vira-se e completa:<br />

- Mas as idéias já conhecidas, as familiares, essas protegem, nos dão a<br />

paz por serem conhecidas, usadas, muitas vezes; apesar de que elas estejam<br />

ultrapassadas para a nova realidade.<br />

- Já desmoronaram há muito tempo - entrou Roberta na conversa. -<br />

Ouviu? Bumba... A construção foi destruída, os alicerces estavam assentados<br />

na lama. Você não percebe? Mas não adianta ficarmos atrás de<br />

outras idéias, das externas e milagrosas, as que dão segurança eterna,<br />

como as idéias que nossa mãe insinuam. Não existem fórmulas para nos<br />

fazer ver um mundo ordenado, cheio de pessoas santas e honestas. É um<br />

sonho, isso foi o que aprendemos quando éramos crianças, veja onde:<br />

no catecismo. Se acreditarmos nisso, também devemos acreditar nos<br />

demônios e bruxas. Você está sempre buscando o milagre da teoria boa,<br />

da mãe boa, do pai bom. Isso nunca existiu. Nossos pais, como todos os<br />

outros, ensinam-nos maneiras distorcidas para pensar, noções equivoca-<br />

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das e ilusórias do que eles aprenderam com seus pais. Nesse ponto, não<br />

podemos culpá-los, também eles aprenderam erradamente - continuou,<br />

animada com suas idéias, vermelha de emoção.<br />

- Como?<br />

- Você já está velho. Deveria ter entendido isso há mais tempo -<br />

prosseguiu Roberta. Quanto mais apoio e esperança tivermos nas idéias<br />

emprestadas pelos outros, menos vamos usar as nossas próprias; desse<br />

modo, ficaremos com menor experiência, seremos mais irresponsáveis<br />

e sofreremos mais decepções...teremos mais paz, como disse Agostinho,<br />

devido a ignorância dos perigos e da nossa pobreza mental.<br />

- Somos idiotas, então? - resmungou Lucinho, decepcionado com essas<br />

idéias. Lembrava-se dos seus pensamentos, reflexões e como tentava se<br />

enganar. Mas continuou em voz alta, seu raciocínio: - As terapias nos<br />

permitem ver as saídas, as portas que nós mesmos temos que descobrir e<br />

abrir, que devem ser melhores... argumentou, sem entusiasmo, receando<br />

ser percebido por sua irmã. Mas, ainda perguntou, com medo da resposta,<br />

já sem forças: Para você não existem saídas?<br />

- Você não vê isso: “o cliente é que deve descobrir seu caminho!” Isso é<br />

uma teoria, uma bússola do terapeuta, na qual nem ele mesmo acredita.<br />

Quem falou que isso é que é o certo? O que é isso: “descobrir seu caminho<br />

por si” ? Nesse caso, para quê os cursos que todos fazem? Para quê<br />

as escolas ou as terapias se cada um aprende por si mesmo? E, se pensarmos<br />

assim, os pais não deveriam ensinar nada aos filhos, estes deveriam<br />

ser deixados para que aprendessem sozinhos, sem ninguém, possivelmente<br />

com as baratas. Isso tudo é um modo de pensar, uma crença dos<br />

que paradoxalmente, ordenam o cliente a ser livre. Ouviu ? Ordenam!<br />

- Ora, você sempre acha que pensa melhor, os outros estão errados. Só<br />

você sabe - ironizou.<br />

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- Além disso, como você examina as idéias dos terapeutas geniais e a<br />

validade delas? Com que idéias você está me criticando? Naturalmente,<br />

tem que ser com as suas idéias, as que habitam sua cabeça. Ora, se sua<br />

cabeça não presta, pois ela trabalha com idéias defeituosas e confusas, o<br />

resultado da sua investigação ou crítica, fatalmente será também confuso,<br />

errado, como foi o instrumento usado para isso. Você está medindo a<br />

febre com o termômetro defeituoso. O resultado não é confiável.<br />

- Você também acabou de fazer isso. Suas considerações foram realizadas<br />

por qual cabeça? Pela sua, tão defeituosa quanto a minha.<br />

- Concordo, em parte...Eu e você ficamos presos às idéias inadequadas<br />

para examinarmos os fatos que nos rodeiam. Mas, eu me livrei<br />

mais cedo da família. Se não arrumarmos outras idéias, repetiremos os<br />

mesmos erros ao interpretar os acontecimentos. Não posso tirar uma<br />

pressão arterial com uma agulha; esta não é construída para isso. Do<br />

mesmo modo, se tenho dentro de minha cabeça idéias para brincar de<br />

roda, ou para me queixar diariamente aos médicos, não posso, com elas,<br />

examinar se devo ou não me casar ou fazer ou não tal curso superior.<br />

Isso me parece mais complicado. A maioria das pessoas, iguais a você,<br />

defende o uso do raciocínio simples, o mesmo usado para ligar o som do<br />

toca-disco, para decifrar e conduzir os grandes problemas.<br />

- Continua a usar sua mente distorcida para dar ordens - reclamou Lucinho.<br />

- Vou te dar um exemplo: os jornais perguntaram a diversos transeuntes<br />

de quinze a vinte anos, como resolver a política cambial do Brasil; se o<br />

<strong>nosso</strong> governo é bom ou ruim; se a Vale deve ou não ser vendida. Todos<br />

deram opiniões baseadas em conhecimento zero acerca de cada um<br />

desses problemas. Deram a resposta com a primeira bobagem que lhes<br />

veio à tona, usando, para isso, o mesmo raciocínio empregado para fintar<br />

o cobrador do ônibus, ou para agredir o torcedor do time adversário.<br />

Não prestamos atenção à existência de outras possibilidades capazes de<br />

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interpretar e organizar os fatos questionados de forma mais profunda e<br />

adequada e nem mesmo as examinamos.<br />

- Não estou entendendo o que você está querendo dizer; largamos algumas<br />

idéias, as mais adequadas, em benefício daquelas sem valor? Isso é<br />

um disparate! Você me perturba...<br />

- Você demorou a falar, creio que estava pensando...estava examinando<br />

o que falei para relacionar as idéias antigas que tem em mente, derivadas<br />

da convivência com nossa mãe, com as teorias dos seu terapeutas,<br />

comentou Roberta, entusiasmada com seus argumentos.<br />

- Não disse nada de mais, cada idéia ou cada raciocínio é realizado desse<br />

modo: ligo uma idéia à outra já existente; isso Agostinho já disse mil<br />

vezes. Ligo minha idéia a uma na qual acredito ou desejo combater...<br />

Uma serve de apoio à outra...comentou com calma, Lucinho.<br />

- Esse é o mal: ligamos uma idéia - a que desejamos defender ou atacar<br />

- a outra idiota - que lhe serve de apoio - a um pensamento que nada<br />

tem a ver com o anterior, como falei acerca das respostas dadas pelos<br />

entrevistados na rua. Não posso me julgar feliz pelo que a cartomante<br />

falou, baseada na presença de um ás vermelho, quando tirei uma carta.<br />

Não devo ficar tranqüila, deixar a vida correr e não me esforçar, porque<br />

o pai-de-santo me garantiu que estou protegida. Uma coisa não tem<br />

relação com a outra, uma não atua na outra, essas afirmações são idiotas.<br />

- Claro. Isso todo mundo sabe, resmungou, sem entusiasmo.<br />

- Claro, nada! Toda a população utiliza desses meios mágicos para<br />

conduzir sua vida. Você não está também utilizando esse meio mágico?<br />

As teorias psicológicas são mágicas mais sofisticadas, mais difíceis de<br />

descobrir onde se localiza o engodo. A maioria fornece explicações<br />

que nada têm a ver com os fatos vividos, retrucou Roberta, sem prestar<br />

atenção ao argumento de Lucinho. Tudo é interpretado através da teoria<br />

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utilizada - sem auxílio de outras, desse modo, sempre as interpretações<br />

serão certas. Eu sei que não vai gostar: as próprias teorias dos psicólogos<br />

servem de apoio para eles. Os psiquiatras se sentem seguros e animados<br />

ao defenderem uma concepção acerca da conduta, principalmente<br />

quando eles percebem a existência de vários seguidores que acreditam e<br />

seguem, muitas vezes mais do que eles próprios, suas crenças, mesmos<br />

as esdrúxulas.<br />

- Não fale bobagens, murmurou Lucinho, refletindo: “pode haver alguma<br />

verdade nas palavras de Roberta; ela pode perceber o que não noto”.<br />

- Desse modo, eles se apoiam no apoio dos outros, passam a acreditar<br />

que o que falam é o certo, gritou Roberta. Uns tapeiam outros, muitos,<br />

a si mesmos. A aproximação com a verdade é difícil e amedronta, pode<br />

quebrar <strong>nosso</strong>s assentos, derrubar <strong>nosso</strong>s fundamentos.<br />

- Nunca sei, ao certo, com quem está a mentira: eles ou você.<br />

- Quer saber a verdade? Ninguém! A segurança principal, buscada por<br />

todos homens normais do século XX - antes, parece, que não era assim<br />

- é estarem agrupados; seguir os mesmos mitos; caminhar na procissão,<br />

passo a passo, em ordem, seguir a hierarquia, sem jamais levantar a cabeça<br />

para olhar ou tentar desvendar os mistérios da caminhada silenciosa.<br />

Como sonâmbulos, os fiéis sentem-se seguros, por estarem reunidos<br />

num bando, todos caminhando para o desconhecido matadouro. Basta<br />

pertencer ao grupo...Alguns chegam a dizer: “ A voz do povo é a voz de<br />

Deus”.<br />

- Como você chegou a isso?<br />

- Não vê as pesquisas de opiniões? O que elas contêm? - continuou raciocinando<br />

Roberta. Quantos imbecis acreditam em uma idiotice. Todos<br />

ficam felizes por pertenceram ao grande grupo dos estúpidos, dos que<br />

crêem no disco-voador, nos duendes, nos anjos da guarda, na outra vida,<br />

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nos espíritos, alma de outro mundo, fantasmas, extra-terrestres e toda<br />

uma gama de bobagens, infantilidades inventadas para encher mentes<br />

vazias. Entusiasmados, muitos formam grandes sociedades congregando<br />

os diversos idiotas que têm a mesma crença. Reunidos, uns elegem outros,<br />

cantam, fazem discursos, escrevem, vão a congressos, tudo para proteger<br />

as mentiras defendidas pela seita onde estão abrigados. Quando o<br />

número de adeptos e adoradores da crença é grande, a estupidez passa a<br />

ser aceita até pelo Governo, adorada e procurada, com vigor, por todos,<br />

como verdades elevadas e sublimes, que devem ser seguidas até a morte<br />

e, pior, muitos dedicam sua vida a essas idéias e alguns morrem por elas.<br />

- Você está louca! Precisa ser internada! gritou com raiva Lucinho. Basta<br />

de palpites; essas são as idéias mais idiotas que já ouvi. Você só fala<br />

asneira! Como criticar, com sua mente, as crenças dos outros! Além do<br />

mais você não é uma profissional em nada. Você fala acerca do que vai<br />

dentro das aspirações de cada um, sem nada compreender, sem nunca<br />

ter pesquisado. Sem saber, inventa, para combater certas teorias e interpretações<br />

seguidas pela maioria, você cria suas próprias interpretações<br />

acerca dos teóricos. Além disso, com suas teorias, agride a todos. Só<br />

você está certa? Oh, meu Deus! Tenha piedade dessa pobre de espírito,<br />

argumenta, já sem força e desanimado.<br />

Nesse momento, pensativo e com a voz calma, entra, novamente, na<br />

conversa, Agostinho.<br />

- Você tem razão, Lucinho; ela está falando de modelos, está expondo<br />

seu meta-modelo, isto é, uma interpretação sua das teorias interpretativas,<br />

das maneiras de enxergar o mundo. Mas, não sei se ela está exagerando<br />

ou brincando; a gente não sabe quando ela ironiza ou não...<br />

- Nunca falei tão sério, retrucou Roberta, rindo debochadamente. Todos<br />

dão conselhos. Por que não posso dar os meus? Os psicólogos, então...<br />

Eu sei que seu prato principal é o sexo; é o que eles mais gostam de<br />

falar...Mas, falam, também, a respeito de muitas outras coisas; são peri-<br />

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tos em viver bem. O que eu conheci, nada conseguiu, um fracasso, mas,<br />

mesmo assim, continuava vomitando suas teorias em cima dos clientes<br />

incautos...Entretanto, sua belas idéias jamais deram certo para ele. Como<br />

poderiam dar certo para os outros? Eles falam até da roupa que devemos<br />

usar, da morte, da outra vida, do sexo dos anjos. É o seu ganha-pão. Se<br />

não fizerem isso, o que vão fazer? Eles estão bem acompanhados. Proliferam,<br />

junto deles, outros conhecedores da alma humana: adivinhos,<br />

cartomantes, sensitivos, pais-de-santos, leituristas de mente e da íris,<br />

hipnotizadores. A lista é enorme. Todos esses profissionais, muitos...mas<br />

muitos mesmo, vivem disso, de impor suas idéias esquisitas sobre nós,<br />

exigindo que nos comportemos de acordo com seu catecismo ingênuo.<br />

- Você sempre tentou me deprimir. Não estou bem, estou confuso e desanimado...Você<br />

percebe, principalmente depois das descobertas que fiz...<br />

Imagino, às vezes, que não tenho mais motivos para me alegrar...Nem<br />

mesmo para viver. Relembrei coisas desagradáveis nas sessões terapêuticas,<br />

de coisas que não gosto nem de pensar e de falar. Às vezes, penso:<br />

para que ir atrás da salvação, de arrumar uma saída para minha vida, de<br />

me cuidar? Seria para viver bem ou escapar da morte? Estou chegando à<br />

conclusão de que é exatamente do viver que fujo...Como quase todas as<br />

pessoas. Evito construir meu próprio caminho; ocasionalmente, busco o<br />

dos outros; que é a não-vida; a morte. De quando em quando, entregome<br />

às diversões, tudo para não pensar na minha própria existência. Mas,<br />

em vão. Poucas vezes consigo fingir que estou bem, mostro, somente por<br />

fora, um vigor que não tenho; que nunca tive...Noto que, muitas vezes,<br />

represento bem, outras, nem tanto. No fundo da alma, quando converso<br />

comigo, vejo que tudo está mal, não gosto do que sou, das idéias que<br />

grudaram em minha mente...Idéias dos outros que não me largam...<br />

Corpos sinistros que estão incrustados às outras idéias. Não consigo<br />

diferenciar as que são úteis para mim, as que podiam me levar a alcançar<br />

minhas metas, das que me atrapalham...Nem bem sei, atualmente, o que<br />

quero; não mais sei quais são meus objetivos. Além disso, não sei como<br />

me liberar desses invasores maléficos. Entendeu? Não quero discutir,<br />

muito menos brigar com você, tenho problemas demais para pensar.<br />

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202


Não quero tocar nessas feridas que sangram facilmente.<br />

- Pelo menos imite as idéias que lhe parecerem menos antipáticas,<br />

ironizou Roberta, mas mostrando ter sido tocada pela emoção de Lucinho.<br />

Existem umas idéias menos ruins do que outras. Boas? Essas não<br />

existem! Desista de encontrá-las.<br />

- As menos antipáticas podem ser piores ainda... lamentou.<br />

- Eu sei o que deve fazer, comentou Agostinho, entrando em auxílio do<br />

irmão. Existem idéias que criticam as idéias, ela está, por querer ou sem<br />

querer, fazendo uso disso com freqüência. Algumas delas ajudam a compreender<br />

as explicações, as que estão acima das idéias acerca dos fatos;<br />

são as grandes, as mais amplas, as que criticam as próprias idéias.<br />

- Oh! Não vê que isso é o que estou tentando fazer há anos? O que as<br />

idéias dos terapeutas fazem? Nada mais do que criticar <strong>nosso</strong> modo de<br />

vivenciar ou de interpretar o mundo, lamentou Lucinho, continuando<br />

com sua voz triste: - Parece que querem me dizer que todas estão erradas...<br />

Agora, estou preso à última que encontrei, à do Prof. Pinelli. O quê<br />

fazer? Se essa, também, estiver errada, como as outras, se for sem sentido,<br />

estarei sem rumo. Além do mais, para executá-la, terei um trabalho<br />

absurdo. Será que a cura valeria o custo dela? Não sei... Seria bom se eu<br />

pudesse...<br />

- É um problema difícil de resolver, os custos de uma mudança...argumentou<br />

Agostinho, pensativo.<br />

- Não consigo me despojar das cinzas que se agarraram ao meu corpo,<br />

produzidas pela queima das velhas árvores...Elas são estranhas à minha<br />

vida...Fazem-me mal, não me largam, por mais que me esforce. Entretanto,<br />

não consigo usar outras melhores; estou preso, exatamente, às antigas,<br />

às que me martirizaram e me fornecem uma direção inadequada.<br />

Faço mais em benefício dessas idéias...do que das que gostaria de usar.<br />

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203


Muitas vezes, na minha confusão, troco uma pela outra; não diferencio<br />

mais nada - gemeu Lucinho desesperado.<br />

- Não existe homem puro, feito dele próprio; isso é uma ilusão, ponderou<br />

Agostinho. Todos nós somos uma mistura de homens, algumas<br />

partes não têm nada a ver com o que pretendemos ser. Você não tem<br />

nada de genuíno; é fabricado pela mistura de corpos estranhos, que formaram<br />

sua individualidade; no fundo, todos somos extra-terrestres.<br />

Daí, o sucesso dessa ficção, pois eles são examinados através dos <strong>nosso</strong>s<br />

extraterrestres internos.<br />

- Então, para que falamos em seguir o que nós somos, em sermos espontâneos?<br />

Todos nos incentivam a sermos naturais, a buscar nossa individualidade.<br />

Mas, se somos uma mistura de outros, ponderou Lucinho,<br />

tenso: onde encontrar essa espontaneidade? Qual individualidade<br />

usarei?<br />

- Nenhum homem chega a ser ele próprio, livre dos outros...apesar de<br />

ser o sonho de alguns... A tendência atual da sociedade é inversa: valoriza<br />

o ser parecido com os outros, o ser sem individualidade; o engolido<br />

pelo “social” ou “povo”; o desfigurado ou despojado de sua identidade<br />

particular, comentou Agostinho, entusiasmado, como se estivesse dando<br />

uma aula.<br />

- Isso é desanimador...Prefiro não acreditar, toda minha vida busquei<br />

a autenticidade, o natural...O que fazer? Os psicólogos jogaram essa<br />

crença em minha mente - falou, cansado.<br />

- Entretanto, todos eles não são espontâneos: todos usam os cacoetes da<br />

seita: jargões, tom e timbre da voz, lêem os mesmos livros, freqüentam<br />

os congressos, assistem às mesmas peças de teatro e filme, comentou<br />

Roberta rindo.<br />

- Cada um se apodera do que consegue para se construir: noções boas e<br />

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más. Todos tentamos eliminar certas impurezas, mas cultivamos outras;<br />

jamais chegaremos à pureza almejada, comentou Agostinho, no mesmo<br />

tom.<br />

- Você apenas guardou as impurezas, principalmente, os dejetos lançados<br />

pelos seus orientadores, mais precisamente, a borra excretada pela<br />

sua querida e honrada mãe, entrou na conversa Roberta, rindo das suas<br />

próprias palavras e brincadeiras.<br />

- Gostaria, se pudesse, de viver num ambiente cheio de pessoas diferentes<br />

dessas com as quais convivo, longe, principalmente, de você. Bem<br />

longe, para que não mais interferisse em minha vida, que não desse palpites...Gostaria<br />

de estar afastado, até de mim mesmo, com meu espírito<br />

despojado das idéias alheias, ou sem idéias, puríssimo, imaculado, uma<br />

folha em branco, comentou com lágrimas, Lucinho.<br />

- Você? É o que mais procura pessoas para receber deles suas idéias para<br />

ouvir, com imenso interesse, o que elas pensam de você; se conhece<br />

através do espelho das idéias dos outros, não das suas. Além do mais,<br />

um lugar cheio de pessoas interessantes, agradáveis, honestas, de convivência<br />

fácil...esse paraíso todos querem, mas, meu irmãozinho querido,<br />

jamais esse lugar existirá... na realidade, todos sonhamos com ele,<br />

mas, depois de Adão e Eva, ele implodiu...<br />

- Você só sabe gozar as pessoas. Por um momento, durante essa discussão,<br />

imaginei, burramente, que você estivesse raciocinando sério,<br />

resmungou Lucinho.<br />

- Tudo é brincadeira, a vida é um jogo ou uma brincadeira de mau gosto<br />

e que só termina com a morte. Não leve a vida a sério. Onde você escondeu<br />

meu livro? Eu sei que foi você que o tirou do meu quarto... completou<br />

Roberta. Onde está meu livro?<br />

- Não gosto de você. Olhando com rancor para ela, continuou: não gosto<br />

das pessoas em geral... Ah! como é triste! Pior é perceber que me pareço<br />

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com todas elas...Com todas as que detesto, até com você, isso me faz<br />

sofrer mais ainda.<br />

- É péssimo nos observar através das imagens refletidas dos outros. Isso<br />

é triste, meu irmão, eu sei disso...<br />

- Não entendi...<br />

- Você faz isso sem parar e não compreende? Como é burro! continuou<br />

Roberta: - Como não há solução certa e segura, como não há garantia,<br />

todos nós agarramos a primeira bandeira que nos aparece para escaparmos<br />

das incertezas e desgraças. A fé é fundamental, a direção pode ser<br />

qualquer uma. Uma vez acreditando na via salvadora, passamos a nos<br />

sentir bem, confortáveis e seguros. Examine a vida das pessoas: cada<br />

uma se agarra a um ideal, a uma meta, mais acertadamente, a uma<br />

mentira: uma crença religiosa, um trabalho, uma ligação afetiva, ideologia<br />

ou, naturalmente, uma teoria psicológica, do Prof. Pinelli, por<br />

exemplo. Devemos nos prender a essas atividades com bastante fé para<br />

termos a ilusão - ilusão compreende? - de estarmos salvos, livres dos<br />

perigos, tranqüilos, para não mais nos preocuparmos com as outras possíveis<br />

soluções...Não devemos, jamais, discutir o valor dessa. Somente<br />

assim escapamos da maldita incerteza! Entendeu agora?<br />

- Já vem você com suas agressões, precisava citar o professor? Eu procuro<br />

viver sem essas bandeiras...Você, sim, precisa sempre delas para fugir<br />

do inesperado.<br />

- Ora, essa. Já aprendi a lidar com os infortúnios da vida, se espero que<br />

tudo possa ocorrer, inclusive o desastre não desejado, o desencontro,<br />

conforme meus desejos, fico protegida, vacinada, pois o que acontece, é<br />

esperado; assim, não sofro decepções. Sua bengala, desde que nasceu, é<br />

D. Rosária; como não enxerga!<br />

- A sua é me criticar para esquecer das próprias críticas que faz sobre<br />

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você mesma... ninguém escapa... comentou, agora mais interessado, ao<br />

se lembrar das várias terapias a que se submeteu, com muita fé. Pensando<br />

no fracasso da maioria delas.<br />

- Não. Ninguém escapa! Mas, seria pior sem as crenças. O caminho<br />

seguido pelo outro é idiota para aquele que não o segue. Um dos objetivos<br />

pode ser: “nunca fazer nada e colocar a culpa nos outros”, como<br />

sempre você fez...Ou acreditar nas interpretações absurdas dos analistas,<br />

ironizou Roberta.<br />

- Como você está fazendo agora: jogando interpretações em cima de<br />

mim. E você que leva a vida como uma brincadeira? Pior ainda: de mau<br />

gosto... Essa é sua bandeira: a brincadeira, a irresponsabilidade.<br />

- E, daí? Cada um faz o que pode ou dá o que tem, como afirma nossa<br />

mãe. Você lamenta a vida, eu rio dela...Debocho da vida e da morte...<br />

Não me preocupo se ela vier mais cedo ou mais tarde. Já vivi bastante.<br />

Cada um gosta de uma coisa; segue seu ideal, sua mentira atraente, que<br />

é examinada através de outras inverdades, muitas delas, pouco a pouco,<br />

ganham o “status” de verdades. Isso não importa; precisamos disso.<br />

Talvez você se sinta mais feliz, pois tem mais companheiros, o número<br />

dos lamentadores é bem maior do que o daqueles que não se queixam,<br />

dos que riem.<br />

- Pode ser ... gemeu Lucinho. Como não queixar? Todos se queixam, a<br />

vida é ruim para todos.<br />

- Sim, concordo; alguns vivem só para isso...Outros vivem, exclusivamente,<br />

para não pecar... não fazem o que mais atrai as pessoas. Tudo,<br />

qualquer coisa, a que a gente se dedica com vigor, nos acalma. Vários<br />

ficam felizes, comentando as desgraças dos outros, outros, a própria;<br />

mas, todos se tranqüilizam, agarrando-se às crenças falsas, que sempre<br />

governaram a história dos homens, afirmou Roberta.<br />

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- Tudo são, de uma certa forma, crenças. Uma coisa é a realidade, esta é<br />

inatingível, a outra é o que se fala a seu respeito, comentou Agostinho,<br />

sério. Falamos e falamos; acreditamos mais nos sons que ouvimos ou<br />

emitimos, nas interpretações nossas ou dos outros, acerca de nossa vida,<br />

do que na nossa própria experiência vivida; comemos gatos por lebres,<br />

acreditamos mais no cardápio do que na comida.<br />

- Para que tentar descobrir a verdade, se ela é inatingível? Você, como<br />

todos nós, acredita na sua verdade; entretanto, quer me forçar a aceitála,<br />

como se fosse minha verdade. Já as tenho de sobra, comentou, virando-se<br />

para ela.<br />

- Não é bem isso, discordo do seu modo de fugir delas; todos fugimos,<br />

eu também. Penso que há fugas mais nobres. É melhor viver longe da<br />

realidade... Não é Agostinho?<br />

- Penso um pouco diferente. Quase todas as explicações ouvidas acerca<br />

da realidade, principalmente aquelas acerca de problemas complicados,<br />

como essas discussões nossas, bem como as teorias dos psicólogos,<br />

dos religiosos, das ideologias trabalhistas ou comunistas, supõem estar<br />

descrevendo a realidade “verdadeira”, altamente complexa. Mas, de fato,<br />

descrevem um mundo simplificado, de fácil entendimento, lamentavelmente,<br />

inadequado. Os cientistas sabem que suas descrições não são certas;<br />

estudam algumas partes isoladas arbitrariamente de um todo. Temos<br />

dois caminhos: um é assimilar esse arremedo de mapa, essa descrição<br />

simplória dos fatos, com muita fé; o outro, é penetrar nas difíceis e complicadas<br />

explicações, que sempre nos levam a outras, mais difíceis ainda,<br />

sem jamais alcançarmos a totalidade do fato. O garimpeiro disposto a<br />

isso irá passar toda sua vida em busca desse topázio imaginário, desse<br />

ouro que lhe fornecerá a luz. Ora, o povo usa o falso mapa do mundo<br />

para decifrá-lo e compreendê-lo, trabalha com o simples, para decifrar<br />

o complexo. Além de nunca o alcançar, imagina o estar compreendendo<br />

sem notar que trabalha com o arremedo dele; se utiliza de um mapa que<br />

pouco representa do território que está sendo examinado. Entretanto,<br />

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apesar de serem descrições muito falsas - as nossas também são - eles<br />

acreditam nelas; por isso mesmo, erram, constantemente, em suas previsões<br />

e ações, mas, por outro lado, não gastam seu precioso tempo com<br />

a procura. Essas noções elementares do povo servem para solucionar<br />

questões práticas e simples. É o que eles desejam, conforme seus modelos.<br />

O maior mal disso é que o povo imagina que suas suposições são<br />

certas; ele não sabe que não sabe.<br />

- Você também gosta de impor suas mentiras...suas ideologias ou seus<br />

mitos. Explica tudo fácil e simples... Por que acreditar nas suas idéias?<br />

Elas também podem ser falsas, como qualquer explicação. Que garantia<br />

tenho? gaguejou Lucinho.<br />

- Garantia nenhuma... retrucou Agostinho seguro do que falava; eu ajo,<br />

possivelmente, como todos. Procuro desbravar meu próprio caminho,<br />

o que de melhor consigo e aceito ser o adequado para mim. Há uma<br />

diferença: eu afirmo uma coisa, como estou fazendo agora, mas afirmo,<br />

também, que meus princípios e raciocínio podem e devem estar errados;<br />

eu próprio tenho dúvidas acerca deles. Trabalho como todos, com minhas<br />

representações ou suposições...Escolhi ser filósofo, criticar todas as<br />

noções, examinar a validade maior ou menor do conhecimento, inclusive<br />

o meu saber. A minha segurança é: não ter segurança. Penso que só<br />

assim posso desenvolver meu pensamento e conhecimento, verificando<br />

meus erros, armazenando novos conhecimentos.<br />

- E, novamente, armazenando idéias erradas, suposições que mais tarde<br />

serão destruídas... comentou, zombando, Lucinho.<br />

- Certo. O que mais posso fazer? Ficar eternamente preso à mesma<br />

bobagem e agir com ela? Muitas pessoas, como os insetos, jamais duvidaram<br />

do seu caminho, agem sempre com os mesmos pressupostos, de<br />

milhões de anos atrás, não o examinam nunca.<br />

- Ótimo! Chegou onde queria. Não quero ouvir outras idéias além das<br />

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que conheço. Desejo continuar com as minhas... antigas e erradas; quero<br />

segui-las, sem interferência de ninguém, sem pensar, “não me dê conselhos,<br />

sei errar sozinho”, não é assim a frase popular? Comentou Lucinho.<br />

- Ora, ora, quem está falando! Nunca mais tire minhas coisas, tá ouvindo?<br />

gritou Roberta, que estava ao lado dele. Não mexo nos seus objetos.<br />

Precisa continuar imbecil, você só tem esse pensamento. Se largá-lo, estará<br />

perdido; é perigoso. Sem a ajuda desses alicerces de mil anos, ficará<br />

mais idiota, se é que tem jeito de aprofundar mais na imbecilidade, que<br />

já possui em alto grau. Sem as idéias da mamãe querida ficará sem nada<br />

para apoiar seus pensamentos. Só tem eles.<br />

- Sua filha da puta...<br />

- Temos a mesma mãe. Foi ela quem deu origem a todos os pensamentos<br />

primitivos que possuímos, tudo parido da mesma puta..., concebido<br />

da mesma semente. Nesse caso, concordo com você; desde que nasci,<br />

considero-me uma filha da puta; nossa mãe, mandona, chata, histérica;<br />

talvez tenha nos atrapalhado mais que ajudado... Isso é o que penso dela,<br />

posso um dia mudar. Não sei...<br />

- Vamos parar, vocês só conversam brigando, entra novamente, Agostinho.<br />

Aprenderam com quem? Da pessoa que criticam. Agem, automaticamente,<br />

como ela sempre foi. Como é difícil escapar! Voltando ao assunto:<br />

se você passar a ler somente os livros e as idéias do Prof. Pinelli: se for<br />

apenas à sua igreja, se escutar seu raciocínio e dos seus companheiros,<br />

jamais duvidará e nunca mudará de opinião... Muitos fazem assim.<br />

- Não precisa xingar tanto. Posso, se permitir, não desejar conhecer além<br />

do que conheço e não adotar suas idéias. Fico mais feliz com minha<br />

pobreza e limitação... Penso que é melhor viver satisfeito com minha<br />

ignorância, com a crença de uma teoria psicológica correta e eterna, do<br />

que viver como você... Morrerá desesperado com sua sabedoria acerca<br />

dos problemas insolúveis. Deve haver soluções mais simples para essa<br />

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vida...<br />

- Ora, quem está dizendo... criticou Roberta.<br />

- Não quero mais conversar sobre esses problemas complicados e chatos.<br />

Vocês não deveriam me dar conselhos, falou Lucinho. Nenhum homem<br />

deveria mandar no outro. Ninguém sabe o que é o melhor; ninguém<br />

pode saber das causas, muito menos das causas das causas...nem das<br />

conseqüências delas.<br />

- Você vive de acordo com as regras dos outros, principalmente de<br />

uma... você é um pária, um inútil, isso é o que é!<br />

- Lésbica, vagabunda, gostaria de te ver morta, longe...Retrucou Lucinho,<br />

com ódio.<br />

- Chega! Vamos parar! Vá para seu quarto, Roberta...Eu também vou<br />

sair...disse Agostinho.<br />

- Ainda desconto o que você me falou, bicha enrustida.<br />

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CTI - A Um Passo do Fim<br />

Dr. Erasmo, nos últimos dias, passara parte do seu tempo, na ante-sala<br />

do CTI. Yeda, sua mulher, há alguns dias, estava internada no Hospital<br />

das Clínicas, após ter tentado o suicídio com um tiro dado no ouvido.<br />

Não havia mais esperanças dela sobreviver. Ele estava tenso naquele fim<br />

de tarde.<br />

Imaginando o pior, após ter engolido um pequeno lanche, foi direto para<br />

o hospital. Decidiu caminhar em lugar de usar o carro, conforme seu<br />

hábito, principalmente nos momentos de maior tensão. Essa técnica lhe<br />

acalmava.<br />

Uma chuva miúda e enjoada caía há quase uma semana sobre a cidade<br />

cinzenta; um vento frio fustigava a face contraída e tristonha do Dr.<br />

Erasmo, tornando mais vermelha ainda as maçãs do seu rosto. A água<br />

escura e suja, de mau cheiro, que escorria pelas ruas, era lançada sobre<br />

os pedestres desprotegidos e encharcados. Todos andavam depressa,<br />

alguns corriam, desejosos de escapar daquela balbúrdia. Ora ele se<br />

desviava de um transeunte, ora de outro. Os carros presos no trânsito<br />

caótico buzinavam histericamente. Ele atravessou uma rua, esperou um<br />

sinal abrir, cumprimentou um conhecido; agia como um autômato. Seu<br />

olhar, aparentemente dirigido para os acontecimentos da rua, examinava<br />

o interior de sua mente. “Como estará ela agora? Estará viva?”<br />

Dr. Erasmo sentia, mais do que nunca, o desespero e o tédio das pessoas.<br />

Caminhava cabisbaixo e, automaticamente, pensava no sofrimento que<br />

teria que enfrentar após a morte da mulher.<br />

Eram 7 h da noite. Chegando, o porteiro, por não o conhecer, apesar do<br />

Dr. Erasmo ter trabalhado naquele hospital toda a sua vida, exigiu dele a<br />

carteira de identidade, que deveria ser ali deixada. Por mais que tentasse<br />

explicar quem era, o que ia fazer no quarto andar, onde se localizava o<br />

CTI, não escapou às exigências do eficiente porteiro, que mostrava uma<br />

satisfação escondida ao impor autoridade e poder.<br />

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Sem capacidade para grandes raciocínios, imaginou, num relance, como<br />

seria bom se desse um tiro nele. Se assim o fizesse ficaria aliviado, pelo<br />

menos por algumas horas enquanto fugisse, arrumasse um advogado...<br />

seria obrigado, durante sua fuga - todos achariam normal, a abandonar,<br />

por dias, o hospital, o consultório, os problemas intoleráveis que estava<br />

vivendo. Mas desistiu da idéia, ainda não matara ninguém. Achou<br />

menos difícil obedecer ao exigente funcionário e submeter-se aos seus<br />

caprichos. Subiu pela escada sem pressa; atrasava, por querer, sua chegada<br />

ao CTI.<br />

No 4º andar, medrosamente, apertou a campainha. Uma jovem atendente,<br />

fria e sisuda, cumprimentou-o com amabilidade. Conhecedora<br />

do seu sofrimento, deu-lhe um sorriso sem graça. O ambiente assustava<br />

os não acostumados ao lugar; os que ali trabalhavam calçavam botas de<br />

pano por cima dos sapatos e vestiam aventais brancos, muito largos; os<br />

usados pelos residentes mostravam manchas e respingos de sangue.<br />

Após se preparar para entrar - o que tomava alguns minutos e era uma<br />

cerimônia realizada no mais profundo silêncio, na qual todas as fisionomias<br />

mostravam-se muito sérias - o visitante da morte caminhava<br />

até uma grande pia. Ali, suas mãos eram lavadas com um sabão líquido<br />

especial e secas no ar quente, aberto pela atendente. Era aconselhado,<br />

após a colocação da roupa especial e de ter lavado as mãos, a não tocar<br />

em nada, inclusive no paciente visitado. Apesar de ali não ter espelhos,<br />

não era difícil para o visitante imaginar como ele estava estranhamente<br />

vestido; bastava olhar para os que ali transitavam: médicos, enfermeiras,<br />

visitantes, todos usavam a mesma vestimenta.<br />

Dr. Erasmo entrou no CTI deslizando suavemente; sua mulher agonizava...<br />

No amplo salão iluminado por lâmpadas frias e claras, imperava<br />

o silêncio. Ouviam-se apenas os silvos desafinados dos instrumentos<br />

vigilantes que não paravam de funcionar; anunciavam, pronta e rapidamente,<br />

as falhas ocorridas nos organismos moribundos. Ajudados pelas<br />

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máquinas, pulmões esgotados soltavam, de tempos em tempos, lamentos<br />

roucos. O ar expelido com dificuldade, ao atravessar o tubo da traquéia,<br />

misturava-se aos líquidos corporais não deglutidos, produzindo sons<br />

desafinados que assustavam. O ruído parecia indicar a proximidade da<br />

morte dos que ali estavam prostrados e sem esperanças. Naquele lugar se<br />

travava a batalha final, lutava-se, na maior parte das vezes, inutilmente,<br />

para evitar a passagem do paciente para a sala ao lado: último leito dos<br />

que sucumbiram diante do sofrimento. Daquela sala tenebrosa, a ida<br />

para a sala lateral era uma questão de tempo.<br />

Yeda permanecia esticada no seu leito, nua e com o rosto voltado para o<br />

teto, como quase todos ali. Agonizava. Era difícil saber se ela estava viva<br />

ou morta.<br />

Dr. Erasmo caminhava pelo salão fúnebre com o coração apertado.<br />

Tentava, contraindo voluntariamente os músculos faciais, olhando, tola e<br />

inutilmente, para uma e outra parede; tentava não prestar atenção a sua<br />

dor. Mas todos, naquele lugar, detectavam e compreendiam facilmente o<br />

sofrimento do outro.<br />

Tosses repentinas de um senhor foram ouvidas; sussurros tensos dos<br />

médicos e enfermeiras. Tudo causava pânico no visitante ao observar<br />

esse ritual macabro.<br />

Parecia que os que ali trabalhavam dançavam um balé ao som dos<br />

lamentos. Os bailarinos, suspensos no ar, deslocavam-se, sem jamais tocar<br />

o piso emborrachado. Andando de leito em leito, seus olhos atentos,<br />

detectavam os acordes indicadores de risco e davam ordens ao corpo<br />

para que este tomasse as medidas necessárias. No fundo do amplo salão,<br />

o silêncio é quebrado:<br />

- Ai! Aiiii! Ouvia-se um grito, que se iniciou forte mas, pouco a pouco,<br />

tornou-se lento e fraco. Uma enfermeira, que não devia ter mais do que<br />

vinte e cinco anos - deslizou até o leito e, imediatamente, olhou para<br />

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outra. Através desse sinal - não foi preciso nada falar - ela pedia socorro<br />

à companheira mais competente que estava no leito ao lado. Esta,<br />

mais madura, era uma morena forte, um pouco obesa, aparentando ter<br />

quarenta anos. Ela assistia a um senhor velho, de olhar distante, que<br />

dava a impressão de estar hipnotizado ou orando, contrito; aspirava,<br />

com a ajuda de um aparelho manual, uma gosma grossa e sanguinolenta<br />

que se encontrava presa à garganta dele, impedindo-o de respirar.<br />

Largou, por instantes, seu paciente e falou firme e baixo para a mais<br />

nova:<br />

- Seda! Vamos, seda! Dava-lhe uma ordem e parecia aborrecida com<br />

aqueles gritos que ainda continuavam:<br />

- Ai, Soltem-me, quero ir embora; vou reclamar à diretoria. Ai! Quero<br />

ver minha filha.<br />

Quem gritava era uma senhora, diferente das que ali estavam: além<br />

de bem nutrida, forte, conseguia respirar sem ajuda dos aparelhos e<br />

pronunciava bem as palavras. Havia tomado uma grande quantidade<br />

de comprimidos para morrer. Pela terceira vez tentou esse meio para<br />

terminar com seus sofrimentos; uma técnica geralmente ineficiente para<br />

acabar com a vida. Foi amarrada no leito, pois, quando se levantava,<br />

andava pela enfermaria, criando problemas para todos. Uma injeção a<br />

fez dormir rapidamente, por instantes. Possivelmente, tentaria durante<br />

uma nova briga com o marido, o suicídio. Um dia seu esforço poderá ser<br />

coroado de sucesso; havia falhado novamente. A enfermeira mais forte<br />

sussurrou nos ouvidos da mais nova:<br />

- Devíamos deixá-la morrer, se é isso que ela quer. Até que não é feia...<br />

Seu marido deve ter razões para não a querer.<br />

Nesse instante, a fisionomia da enfermeira mais velha se alterou; foi<br />

possível perceber em sua face um sorriso irônico, de curta duração. Em<br />

seguida, ela voltou a cuidar do paciente que estava com dificuldade para<br />

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espirar. A mais nova, aos poucos, ia se acostumando com aquele ambiente<br />

e as brincadeiras ali possíveis de existir.<br />

Num outro leito, debruçados em frente a uma paciente, estavam um médico<br />

bastante idoso, acompanhado por dois residentes e uma jovem enfermeira<br />

estagiária. Diante deles, em coma, jazia uma mulher de cabelos<br />

avermelhados descoloridos, sob os quais apareciam raízes de cabelos<br />

finos e brancos. O carro em que ela viajava foi esmagado por uma possante<br />

carreta. Ela foi a única que escapou da morte.<br />

O grupo, comandado por esse médico, tentava de todos os modos, salvála.<br />

Enquanto isso, indiferente a tudo, o monitor, com seus sons típicos,<br />

dava o alarme, mostrando os fracos batimentos cardíacos. Os médicos,<br />

principalmente os mais jovens, olhavam atentos e com apreensão para<br />

o aparelho. Percebiam-se suas faces sérias demais para aqueles rostos,<br />

quase todos de crianças. Os olhares agora destoavam do normal para<br />

essa idade, já que estão, habitualmente, brincando e rindo.<br />

Uma mulher de mais de sessenta anos jazia despida num leito, tendo<br />

ao lado, possivelmente, uma filha aflita, que orava e segurava as mãos<br />

cadavéricas da paciente.<br />

Uma pequena cortina de plástico cinzento separava, num outro leito,<br />

uma criança que ali estava há vários dias. Era uma menina de apenas dez<br />

anos que estava em coma e vivia seus últimos dias, em virtude de um<br />

câncer ósseo. O tumor invadiu e dominava seu frágil organismo, há dois<br />

anos.<br />

Adiante um rapaz muito claro e magro, sem esperança de recobrar a<br />

consciência. Devia ter uns quinze anos e fora brutalmente atropelado<br />

por uma moto, dirigida por um motorista bêbado.<br />

Perto, agonizava uma moça, que ainda teimava em mostrar sinais de<br />

beleza. Há dois anos, fora miss em sua cidade. Em virtude de uma leucemia,<br />

no seu estágio final, não mais reagia à ação dos dedicados médicos<br />

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e dos seus medicamentos, algumas vezes milagrosos.<br />

Num leito via-se uma maior aglomeração de profissionais: médicos,<br />

enfermeiras e atendentes diversos. Todos se mostravam aflitos; lutavam<br />

contra a morte do rapaz de vinte anos, estudante de Medicina, conhecido<br />

de todos, que foi acidentado, há poucos dias, com a ponta de um<br />

guarda-chuva. Ao sair de casa, percebendo que começava a chover, ele<br />

gritou para seu irmão pedindo-lhe que jogasse, pela janela, o guardachuva.<br />

Por azar, o rapaz não o segurou adequadamente. Tendo escapado<br />

de suas mãos, ele perfurou os ossos do crânio, penetrando no cérebro.<br />

Nesse instante, o rapaz, apesar da luta dos que desejavam salvá-lo, morreu.<br />

Todo o trabalho foi inútil.<br />

No CTI os fracassos, na luta contra a morte, eram mais freqüentes do<br />

que os sucessos. Por isso, era difícil para os próprios profissionais de<br />

saúde, trabalhar naquele lugar. Depois da morte desse estudante de<br />

Medicina, pouco a pouco o grupo foi se dispersando. Todos caminhavam<br />

de cabeça baixa, a maioria limpando as lágrimas que escorriam<br />

dos olhos brilhantes, tristes e decepcionados. Durante alguns segundos,<br />

ninguém falou naquela procissão improvisada e não desejada. Ouviu-se<br />

apenas o desabafo de um deles:<br />

- Aprendi mais uma coisa: não há justiça nessa vida; dei alta, esta tarde<br />

a um malandro, alcoólatra, que nunca trabalhou, que sempre viveu às<br />

custas da exploração de pessoas, inclusive do hospital...Ele já foi internado<br />

por diversas vezes, voltará outras tantas. Entretanto, Otávio, que era<br />

sério, bom estudante, tinha um grande futuro, é acidentado de maneira<br />

tão rara e morre. Este mundo não tem mais comando...Ocorre o que a<br />

natureza injusta escolhe...<br />

Nesse momento, ouve-se uma voz mais alta:<br />

- Prefiro morrer! Vou pular a janela!...Era um senhor que tivera um<br />

infarto e que não aparentava, externamente, estar tão mal; não estava enrolado<br />

em tubos e conseguia reclamar. Ele queria urinar e, para isso, foi<br />

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designada uma enfermeira para levá-lo ao banheiro já que, no seu caso,<br />

não era necessário urinar no “marreco”. Entretanto, ele, que jamais havia<br />

adoecido, achava preferível morrer a ser auxiliado por uma mulher para<br />

simplesmente urinar, coisa que ele sempre fez sem ajuda. Depois de algumas<br />

considerações e devido a firmeza de seu desejo, foi-lhe permitido,<br />

apesar dos riscos, que entrasse no banheiro, desacompanhado. Felizmente,<br />

diante dos olhares apreensivos, ele voltou sem ter morrido.<br />

Erasmo assistia a tudo. Naquele instante, concordava com o que ouviu<br />

do médico desiludido. Solitário, meditava acerca de tudo o que via. Um<br />

ex-aluno, de andar lento e estudado, aproximou-se. Continuava transtornado<br />

pela morte do amigo e sofria. Fitou Dr. Erasmo, com os olhos<br />

vermelhos e umedecidos, o rosto pálido demonstrava cansaço. Esforçava-se<br />

para ser gentil.<br />

- Professor Erasmo, como vai? Sua voz custou a sair; ainda estava chocado<br />

com o fracasso ocorrido antes e continuou: - o quadro de sua esposa<br />

continua estável, nada mudou, o prognóstico é sombrio...<br />

Procurava os termos médicos, se possível sem conotações emocionais<br />

e evitava mostrar a gravidade do estado de Yeda; tentava falar sem<br />

provocar emoções desnecessárias. Ele fixou seu olhar nos olhos do Dr.<br />

Erasmo; esperava iniciar um diálogo...<br />

- Ela não recuperou a consciência? perguntou, apenas para preencher o<br />

silêncio que surgira. Sabia que ela estava em coma; continuava a observá-la.<br />

Yeda, envolta em aparelhos e tubos diversos, estava, naquele momento,<br />

respirando por uma abertura feita na traquéia, logo abaixo do seu queixo.<br />

O ar que por ali entrava fazia um barulho desagradável, lembrando<br />

um cano ao ser desentupido. Imóvel em seu leito, dormia, para nunca<br />

mais acordar. De tempos em tempos os músculos da face contraíam-se<br />

por segundos, indicando dor.<br />

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218


Fixando seu corpo inerte, nu e frio, Dr. Erasmo entrega-se às suas<br />

recordações... “Quantas e quantas vezes abracei este mesmo corpo<br />

aquecido, agitado, cheio de vida e ternura, envolto em roupas limpas e<br />

cheirosas, atraentes e coloridas.“<br />

Agora Yeda dava-me seu último adeus, através do único sinal de vida<br />

visível: sua respiração barulhenta. Estava prestes a abandonar tudo; não<br />

mais dava resposta para nada... Ela, como uma planta criada sem terra<br />

e sem sol, ainda vivia, devido ao adubo e à luz artificial. Olhava-a com<br />

pesar e, ao mesmo tempo, ouvia o Dr. Juarez usando frases e palavras<br />

contaminadas pelo sofrimento:<br />

- Compreendo sua dor, sempre há esperanças, mas, demorou a continuar,<br />

elas, você sabe, como médico que é, são poucas; não deve esperar<br />

muito. Não faz muito tempo, sua respiração parou; tivemos que lutar<br />

muito; fizemos respiração artificial...Demos choques ... Injetamos... Só<br />

com muito custo ela voltou. Agora, houve uma melhora, uma pausa.<br />

Dr. Juarez, olhando para cima, examinou o monitor; ondas frágeis e<br />

lentas, enviadas pelo coração de Yeda, teimosamente, continuavam. Os<br />

batimentos cardíacos, transformados em pequenos riscos, ameaçavam a<br />

todo momento parar, para sempre. Dr. Juarez continuou:<br />

Mas, a qualquer momento, tudo pode reverter. A lesão no cérebro foi<br />

grave, entretanto, se recuperar, ela não terá movimentos do lado direito.<br />

Ela é canhota, não é? A bala entrou no ouvido esquerdo; possivelmente<br />

não mais irá falar... nem mais pensar como antes...<br />

Ao pronunciar isso, fitou-me; seus olhos se encheram de lágrimas, sua<br />

voz sumiu...<br />

Eu bati no seu ombro, com ternura. Observava esse jovem diante de<br />

mim. Tive vontade de abraçá-lo, como se faz com um filho, um filho que<br />

jamais tive. Timidamente, não fui além de um leve tapinha no seu om-<br />

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219


o. Esse cumprimento, terno e meigo, serviu como despedida. Nós dois<br />

estávamos abafados; precisava sair, andar. Ali, tudo era insuportável.<br />

Sentia que podia, caso não saísse, desmaiar. Tive vontade de chorar, de<br />

ser amparado por alguém, de me ajuntar com os que, como eu, sofriam<br />

amargamente naquele local difícil de perceber a vida.<br />

Minha mulher, indiferente a tudo, estava alcançando o que ela mais desejava,<br />

a paz, a ausência de sofrimento, o nirvana, uma vida diferente da<br />

experimentada por ela. Possivelmente, nesse momento da agonia final,<br />

ela estivesse sonhando com o outro mundo, um mundo que ela sempre<br />

desejou. Ele existe? Não sei. Sinto-me confuso. Como é difícil enfrentar<br />

tudo isso; tão próximo da morte. Sinto-me atordoado, às vezes atraído<br />

por aquele descanso. Como gostaria de sumir. Virava meu rosto para<br />

outro lado, olhava para cima, para os lados, para o crucifixo, principalmente<br />

em direção a janela, para a vida que lá fora continuava, corria,<br />

sem ligar para meus sofrimentos. Naquele salão, ao contrário do mundo<br />

externo, o fim rondava e impregnava todos os cantos, a morte estava em<br />

todos os corpos. A vida no CTI era percebida com mais lucidez, pois ela,<br />

todos sabiam, podia terminar a qualquer momento.<br />

Caminhei para o pequeno vestiário, colocado ao lado da entrada. Antes,<br />

dei um adeus a Yeda, com um olhar desesperado; pressentia que era essa<br />

a última vez que a veria viva, fitei-a, mais uma vez, despedindo-me dela;<br />

não tive resposta.<br />

Arranquei, lentamente, as botas brancas colocadas por cima dos sapatos;<br />

o largo e imenso avental foi retirado com a ajuda da moça séria da<br />

portaria. Despedi-me de todos, caminhei até à sala de espera, ao lado do<br />

CTI, onde decidira passar o resto da noite. Não havia intenção de retornar<br />

à minha casa. Para quê? No meu apartamento vazio a solidão seria<br />

mais penosa ainda; lá estaria só, diante da morte, diante de mim; aqui,<br />

ao lado da enfermaria, tinha companheiros, padecendo do mesmo mal<br />

que eu sofria. Todos, naquele instante, eram capazes de compreender a<br />

minha dor, como eu compreendia a deles. Na minha casa, aprisionado<br />

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220


ao meu silêncio, não teria rostos para olhar, para expressar minha solidariedade<br />

e compreensão.<br />

Assentei-me numa poltrona. Observava os pingos d’água que caíam<br />

vagarosamente nos vidros da janela; um a um; escorriam em direção<br />

à terra. Mas provocavam um som suave e acolhedor, que contrastava<br />

com o barulho angustiante do CTI. Sentia frio. Olhei para os lados, de<br />

soslaio; pude ver que eram poucos os meus companheiros. Esperávamos<br />

solidários a chegada da morte.<br />

De um lado, pude ver um rapaz, aparentando, no máximo vinte anos,<br />

que calçava chinelos de alças, vestia bermuda azulada e camiseta preta<br />

- parecia não sentir frio. Ao seu lado, dando-lhe as mãos, erguia-se uma<br />

moça, um pouco gorda, da mesma idade, que, constantemente, o abraçava<br />

e beijava. Pareciam estar amando, vivendo, enquanto esperavam o fim<br />

de alguém. Os dois, sem conversar, entrelaçados um ao outro, iam até à<br />

janela, paravam, olhavam para fora como se observassem atentamente<br />

alguma coisa e, voltavam para o mesmo lugar onde antes estiveram. Eles<br />

permaneciam calados; não olhavam para ninguém.<br />

Um velho assentado a minha frente, cabisbaixo, olhava com tristeza para<br />

a janela, perdido, distante. Parecendo frustrado, ele abaixava o rosto e<br />

desviava o olhar para o chão, para a cerâmica cinzenta do piso. Tossia,<br />

engasgado; uma tosse seca, nervosa, aborrecida. Todo barulho, ali, aborrecia.<br />

Tirava do bolso de trás da calça creme e bem talhada, um lenço<br />

branco amarrotado, com o qual limpava o rosto enrugado, salpicado de<br />

manchas pretas. Sua face cansada transmitia uma espera do pior. Ali,<br />

tudo exalava tristeza e desilusão.<br />

Tive vontade de me aproximar, transmitir um pouco do meu drama.<br />

Quem sabe isso poderia me aliviar? Mas fui o de sempre: escondi meus<br />

problemas, examinava o dos outros.<br />

Lembrei-me do casamento, do consultório, de minha vida como médico<br />

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e professor. Entrei nesse mundo para me aliviar; abandonava mentalmente<br />

e por instantes aquele lugar.<br />

Recordava as conversas que tivera com Yeda. Em lugar de ouvi-la e assimilar<br />

o conteúdo com naturalidade, examinava-a, para verificar em<br />

que ela acreditava; como ela deduzia suas idéias dos fundamentos e,<br />

principalmente, seus erros lógicos. Não concordava com a maneira dela<br />

pensar: “como pensava mal”, apesar de minhas críticas indiretas, que<br />

mais tarde se tornaram diretas; ela continuou a usar princípios falsos e<br />

inadequados para formular toda sua rede de raciocínio.<br />

Examinava, entre outras coisas, o modo pelo qual percebia a nossa<br />

relação: a maneira dela se vestir e se alimentar. O <strong>nosso</strong> amor já tinha<br />

terminado há muito tempo, muito antes de seu desespero final. Percebia<br />

que estávamos, há muito, afastados, mesmo quando <strong>nosso</strong>s corpos estavam<br />

bem colados, um abraçando o outro. Ficava a olhá-la, enquanto ela<br />

falava; queria dar-lhe a ilusão de que estava prestando atenção, interessado<br />

na sua conversa. De fato, criticava tudo.<br />

Eu me culpava por tratá-la desse modo; de despi-la, diante de mim, sem<br />

que ela notasse. Recriminava-me, também, por não mais amá-la e não<br />

ser capaz de contar-lhe a verdade; não mais estava ligado à vida de Yeda,<br />

uma mulher, que um dia, amei e lutei para ser minha. Estranhamente,<br />

depois de alguns anos de casados, torcia para que algum poder mágico,<br />

vindo de fora, a afastasse para bem longe, inclusive do meu pensamento.<br />

Tudo isso era enjoado.<br />

As discussões dos problemas do cliente, os temas discutidos milhares de<br />

vezes com os alunos. Como tudo aquilo me excitou numa certa época.<br />

Como tudo mudara! Aos poucos, o que me interessava, tornava-se, dia<br />

após dia, insuportável. Naquele momento, deprimido, cercado pelo<br />

sofrimento e pela morte pensava: “Até quando continuarei a ouvir as<br />

conversas dos clientes, a discutir com um jovem aluno que nada mais<br />

me acrescenta, meninotes ingênuos, que supõem saber o que não sabem,<br />

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que ainda não construíram uma critica acerca do que pensam.”<br />

Cada um se julgava mais importante do que o outro. O que leva certas<br />

pessoas inteligentes a apresentarem raciocínios tão infantis? Pensava na<br />

procura de todos da identidade perdida no tempo, o sonho de se apossar<br />

de uma teoria que pudesse explicar sua vida complexa, a eterna busca<br />

do homem de uma ideologia salvadora. Comparava a cabeça dos alunos<br />

com a minha: eu, também, na minha juventude, procurei compreender a<br />

mim mesmo e, depois, meus complicados clientes, através de uma teoria<br />

correta, que explicasse tudo e que fosse boa para todos. Como fui enganado<br />

pela Psicanálise freudiana! Depois, por outras e outras suposições<br />

teóricas. Sinto raiva de mim mesmo, de minha burrice. Agora sabia que<br />

uma teoria que explicasse tudo jamais existiu ou existirá. Perguntava-me<br />

como as teorias psicológicas são, na maioria das vezes, falhas, absurdas,<br />

anti-científicas e, por isso mesmo, altamente buscadas, defendidas e<br />

aceitas como explicações para todos os fatos da conduta humana.<br />

Sei que, ao ouvir as conversas desinteressantes dos alunos e dos pacientes,<br />

obrigo-me a esquecer minhas dores, abandono o que me aborrece.<br />

O cliente, postado à minha frente exigindo minha ação, forçavame<br />

a não mais pensar, nem mesmo refletir acerca dos meus problemas<br />

preferidos e idiossincráticos. Por momentos esquecia-me que estava<br />

sendo também ajudado...Irritava-me por estar ali, diante de pessoas<br />

que choravam desesperadas, relatando que haviam discutido com um<br />

transeunte na rua; que o filho não quis escovar os dentes, o que resultou<br />

numa briga; que a namorada não telefonou na hora marcada; que<br />

a viagem à cidade histórica, no fim da semana, não pôde ser realizada;<br />

que, naquela noite, o cliente sofrido só conseguiu dormir sete horas pois<br />

acordou com o som alto do vizinho. Fingia não perceber que o excesso<br />

de trabalho era minha terapia; ao ajudar os clientes, tratava-me: evitava<br />

pensar na vida que escolhi. Será que escolhi? Não seria isso o que a<br />

maioria das pessoas fazem?<br />

O que leva um problema a ser percebido como sendo mais grave do que<br />

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outro? Apenas por ser <strong>nosso</strong>? Do indivíduo? Os meus são mais graves?<br />

Ou existem outros fatores que podem servir de indicadores da gravidade<br />

deles? Jamais encontrei uma resposta para essas indagações. Eu mudava<br />

constantemente de opinião, não me apegava a nenhuma, por um longo<br />

tempo.<br />

Já fui religioso e, noutra época, comunista. Depois, tornei-me anticomunista<br />

e anti-religioso. Imaginava poder transformar o mundo,<br />

encontrar uma saída e um Messias para resolver o drama humano.<br />

Presentemente não mais sonhava, não era nem uma coisa nem outra;<br />

não se sentia capaz de ir a favor ou contra essas idéias. Não acreditava e<br />

nem lutava em defesa ou contra nenhuma. Sabia que, posteriormente, eu<br />

próprio a criticaria com o mesmo vigor com que a havia defendido.<br />

Mesmo quando tudo parecia certo e muito bem explicado, descobria,<br />

numa tarde cinzenta de tempestade e de ventos fortes, que, mais uma<br />

vez, as belas e sedutoras descrições do mundo não passavam de suposições<br />

falsas. Tinha sido, milhares de vezes, enganado pelas explicações<br />

acerca dos fatos dessa natureza, onde se inclui o Homem.<br />

Já caí demais nisso, espero não mais ser enganado. Quem sabe estou<br />

sendo enganado agora? O único mundo que posso entender, a cada momento,<br />

é o meu; jamais penetrarei no mundo do cliente.<br />

Hoje, sei que também os fatos vistos, ouvidos por <strong>nosso</strong>s órgãos dos sentidos,<br />

são percebidos de outro modo, pelos órgãos dos sentidos de outros<br />

animais: os olhos da águia vêem mais movimentos e cores do que os<br />

<strong>nosso</strong>s; o focinho do cão sente mais o cheiro do que o nariz humano; os<br />

órgãos sensoriais da formiga percebem movimentos de luz com maior<br />

sensibilidade que <strong>nosso</strong> pobre organismo. Pergunto-me: qual é o mundo<br />

verdadeiro, o meu ou o da águia? Tudo isso me leva a pensar que não<br />

somos animais superiores; somos, apenas, diferentes. Só temos acesso ao<br />

mundo humano e, por isso, o julgamos superior; talvez os pernilongos<br />

ou as bactérias, nas suas tertúlias, também pensem que seu mundo é<br />

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superior, mais evoluído do que o dos outros, como todos os clientes pensam.<br />

E quem, em sã consciência, poderá afirmar o contrário? Eu sei que<br />

uma simples e criticada barata seria capaz de correr mais rapidamente<br />

do que um homem, que um sujo besouro carrega, relativamente, muito<br />

mais peso do que um homem forte, uma pulga pula, percentualmente,<br />

dezenas de vezes, mais alto do que um campeão olímpico. Tudo isso me<br />

desanima, me emperra, impedindo-me de discutir comigo mesmo ou<br />

com clientes envaidecidos de suas descobertas, como Lucinho e outros<br />

jovens, com as mesmas disposições.”<br />

Dr. Erasmo foi despertado do seu devaneio pela atendente fria. Esta lhe<br />

pediu para entrar no CTI.<br />

O Dr. Juarez, chegando até à porta, veio lhe dizer, agora num tom de voz<br />

mais firme, que sua mulher acabara de falecer. Não houve susto nem<br />

decepções, como tudo que é esperado.<br />

Era preciso agir, preparar o velório, comunicar aos familiares e tudo o<br />

mais. Ainda bem que não tinha filhos, dizia a si mesmo, consolando-se.<br />

Sabia que era um consolo tolo. Não havia saídas, depois daquele dia tumultuado<br />

que o esgotara era encarregado de tomar as providências para<br />

a terrível missão.<br />

Partiu em direção a elas; na realidade, um pouco aliviado por entrar<br />

em contato, novamente, com o mundo externo, o mundo sensorial dos<br />

estímulos, dos fatos concretos, quase sempre mais fáceis de notar e resolver<br />

do que o das elucubrações filosóficas e éticas.<br />

Rapidamente abandonou aquele lugar; começou a cuidar do fim de Yeda<br />

e do novo começo para si. Como seria agora? Perguntava-se angustiado.<br />

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225


Consulta Libertadora<br />

Dr. Erasmo, após o sepultamento de Yeda, aprisionado em casa, não<br />

conseguiu ler nem ouvir suas músicas preferidas. Achou melhor voltar<br />

ao consultório três dias após a morte de sua mulher, retornar para sua<br />

“terapia” habitual. Era insuportável ficar em casa sozinho ou andando<br />

pelas ruas, sem se ligar a nada de concreto, de simples.<br />

Teria, no seu retorno, um grande número de clientes; isso era bom e<br />

ruim. Pretendia não conversar acerca da morte de sua mulher com os<br />

poucos clientes que ficaram sabendo do seu falecimento. Queria evitar,<br />

tanto quanto possível, tornar-se um cliente do cliente, um papel que ele<br />

sempre criticara; estava ciente disso. Não deixava de estar preocupado<br />

com as possíveis críticas, poderiam vê-lo como incompetente por não<br />

ter evitado o suicídio da esposa.<br />

Soprava uma brisa agradável, própria dos dias chuvosos, que tornavam<br />

a temperatura quase fria. O céu estava parcialmente escuro; viam-se<br />

fendas azuis no horizonte: tufos de nuvens, colorida pelo sol, formavam<br />

cachoeiras avermelhadas...Isso dava àquela tarde um colorido calmo.<br />

A tarde era boa para reflexões, que se desenrolariam naquela velha sala,<br />

palco de grandes e pequenas confissões, de momentos de profundas<br />

tristezas, mas também de alegres comemorações.<br />

A velha e cansada poltrona esperava pelos clientes. Ela, que já abrigou e<br />

protegeu velhos e crianças, pobres e ricos, inteligentes e débeis mentais,<br />

ainda estava vazia. Dr. Erasmo olhava-a e lembrava de alguns clientes<br />

que ali estiveram, principalmente os mais raros e estranhos; “São eles<br />

justamente os que mais nos marcam; os mais diferentes da gente. Os<br />

outros, a maioria deles, não nos incomoda, não nos chama atenção e é<br />

esquecida. Os jornais não dão notícias comuns: “Um homem atravessou<br />

a rua e não foi atropelado” ou “Foi ao banco e não foi assaltado.” As notícias<br />

são os fatos mais raros: “Matou a esposa que tanto amava; degolou o<br />

pai e a mãe para receber a herança mais cedo.”<br />

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226


Dr. Erasmo pega as fichas e reflete. “Hoje, parece que tudo trabalha para<br />

meu bem-estar; não está incluído, nenhum dos clientes que me aborrecem,<br />

que resistem e criticam qualquer fala... E Lucinho: como estará?<br />

Acredita tanto no modelo aprendido do Prof. Pinelli... Coitado...Será<br />

o primeiro a entrar... É um rapaz simpático, um pouco ansioso; busca<br />

interpretações milagrosas. Acredita ser importante por ter dado origem<br />

às teorias “certas”, acerca do comportamento e que, segundo o autor<br />

delas, já tinham sido defendidas em assembléias mundiais, congressos<br />

e revistas como a Psychological Review, famosa por relatar as teorias<br />

psicológicas mais sérias e respeitadas.”<br />

Lucinho entrou como sempre:<br />

- Boa tarde; como passou? Perguntou Erasmo.<br />

Esforçava-se para mostrar seu modo habitual, empostou a voz e tentou<br />

esconder seus problemas.<br />

- Mais ou menos... Saí daqui insatisfeito. Não falei o que queria, quase<br />

nada, ou melhor, nada! Não lhe expliquei como sinto agora, tentando<br />

me compreender após as interpretações do professor.<br />

- Mas você poderá me explicar isso hoje. Por que não?<br />

- Eu sei, mas o tempo aqui é tão pouco; acaba não dando para contar as<br />

coisas importantes. Além disso, às vezes penso que o senhor acha que é<br />

bobagem o que falo e não acredita em mim...Assim, fico em dúvida se<br />

devo ou não falar acerca de meus problemas, do que agora descobri a<br />

meu respeito... Essa última frase foi dita com ênfase e bem lentamente.<br />

- Pois, comece a contar, estou pronto, interessado em ouvi-lo.<br />

Dr. Erasmo, por mais que evitasse, comparava os fatos da vida de Lu-<br />

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cinho com a sua. Pensava antes dele entrar: “A gente sempre pensa que<br />

<strong>nosso</strong>s sofrimentos são maiores do que os dos outros, acho que todos<br />

têm razão, só podemos sentir o que nos acontece: as nossas emoções; as<br />

dos outros, não sentimos, somente pensamos acerca delas. Entretanto,<br />

temos certeza de que elas não são nossas, que elas não nos atingem. É<br />

fácil compreender e suportar a dor do outro... A nossa, ao contrário, é<br />

incompreensível, insuportável e destruidora.”<br />

- É penoso entrar direto onde quero. Preciso lhe dizer, antes, coisas importantes<br />

para que compreenda por que a teoria do professor se encaixa,<br />

melhor do que as outras - dezenas delas - no meu modo de ser.<br />

- Você é quem decide. Poderá primeiro relatar as interpretações e, depois,<br />

de onde elas nasceram ou, ao contrário, primeiro, os fatos e, posteriormente,<br />

as deduções ou teorias acerca dos fatos.<br />

- Você me interrompe e me atrapalha. Já esqueci onde estava, o que queria<br />

dizer. Seria melhor você não me cortar... ficar calado.<br />

- Como achar melhor. Pode começar...<br />

- Já me interrompeu de novo! Tornou a me confundir. Quando inicio<br />

um pensamento, tenho um objetivo, aonde quero chegar, o fim dele,<br />

entendeu?<br />

- Hum...<br />

- Hum, hum. Isso também não me agrada. Se começo e você faz um<br />

comentário, presto atenção, começo a pensar acerca dele...Assim, abandono<br />

minha meta, a conclusão que tinha em mente e fico confuso sem<br />

saber o que falar. Entendeu?<br />

- Sim.<br />

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- Eu fico chateado e ao, mesmo tempo, sentindo-me culpado por ter<br />

sido grosseiro, não gosto de ser mal-educado. Minha mãe me acusou<br />

disso a vida toda; colocou em minha cabeça os mais pesados e humilhantes<br />

adjetivos: burro, sem educação, desengonçado, desobediente, e<br />

muitos outros... O pior é que acredito nela, mesmo criticando-a. Jamais<br />

fui chamado de valoroso, bonito, elegante, inteligente. Somente o Prof.<br />

Pinelli me deu uma outra idéia, a que começo a ter de mim, agora. Daí,<br />

quando o senhor interrompe, fico preocupado. Não quero mais fazer<br />

mal, nem brigar com ninguém mas, ao mesmo tempo, quero.<br />

Após uns instantes, retorna:<br />

- Eu fugi do assunto, é sempre assim... quero falar uma coisa e falo outra.<br />

O que eu ia mesmo dizer? O senhor se lembra?<br />

- Você falou várias coisas: criticou-me e sentiu culpa; falou dos rótulos<br />

que adquiriu de sua mãe, lembrou que queria descrever alguns fatos de<br />

sua vida, os quais foram analisados pelo professor e deram origem às<br />

interpretações sobre você, das quais você tanto gosta...<br />

- Gosto não, elas são reais... elas mostram o que eu sou. O senhor fala:<br />

“que eu gosto”, como se fosse uma simpatia a uma teoria... mas, é uma<br />

realidade. As interpretações que agora tenho a meu respeito retratam<br />

o que sou. Elas são aceitas por todos, o único que parece discordar é o<br />

senhor. É uma teoria científica, ouviu?<br />

- Segundo me contou houve uma época em que você achava verdadeiras<br />

as interpretações dadas por sua mãe, a seu respeito. Não houve, também,<br />

um tempo, no qual você percebeu que as interpretações eram palpites,<br />

agressões à sua pessoa? Você não aceitou, em épocas sucessivas, interpretações<br />

diferentes, de coisas diferentes, talvez até opostas?<br />

- Não o entendo! Querer relacionar as bobagens ditas por minha mãe<br />

com as sábias teorias do professor, que foram observadas, enquanto<br />

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as idiotices de minha mãe eram palpites, opiniões retiradas do nada...<br />

”Serão mesmo?“ comentou, consigo próprio, Lucinho.<br />

- Você já fez consultas com outros psiquiatras ou psicólogos, não é?<br />

- Claro, você sabe disso: dezenas deles.<br />

- E cada um lhe falou coisas diversas; interpretaram sua conduta conforme<br />

um modelo ou um esquema de interpretações mais ao gosto<br />

deles. Você acreditou nelas, numa certa ocasião, não só pela autoridade<br />

de quem o disse, mas também pela aparente certeza com que eles a<br />

apresentaram, fazendo a partir delas deduções lógicas. Certo? Entretanto,<br />

você, tempos depois, duvidou delas, percebeu que outros terapeutas<br />

tinham modos diferentes de selecionar ou abandonar alguns fatos,<br />

de enfatizar aqueles que julgavam de maior relevância, e de agrupá-los<br />

teoricamente. Qual garantia você tem agora da veracidade da teoria do<br />

Prof. Pinelli ? Alguns de seus amigos ou inimigos sabem a seu respeito<br />

coisas que você jamais pensou sobre si mesmo. Isso indica que eles têm<br />

razão? Não! Apenas que cada um pensa ou interpreta as pessoas de um<br />

jeito próprio...<br />

- O que senhor está querendo dizer? Interrompeu Lucinho, preocupado<br />

e confuso. Pensa que eu estou errado? Que não há uma certeza para me<br />

apoiar? Você, em lugar de me ajudar, está me embaraçando com essas<br />

idéias. Eu vim aqui para ser socorrido, para ser protegido e receber um<br />

apoio. Entretanto, você me vem com essa conversa de relatividade, ou de<br />

probabilidades, não sei mais o que... Eu sei o que tenho, sei porque fiquei<br />

assim, o que devo fazer para viver bem...ele me esclareceu. Muito bem!<br />

Estou esperando um leve empurrão de sua parte para me tornar uma<br />

outra pessoa. E digo mais: o senhor deveria aprender um pouco com ele,<br />

ler mais o que ele escreveu. Ele conhece a realidade do comportamento<br />

e as causas dos problemas mentais e emocionais, coisas que o senhor<br />

desconhece.<br />

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- Somos diferentes...O que ele disse serão sempre suposições acerca de<br />

situações...<br />

- Não tem mesmo jeito...Estou vendo isso, claramente. Essa bobagem<br />

não precisava ser falada. Às vezes penso que estou perdendo meu tempo<br />

vindo aqui. Hoje, como há quinze dias, nada falei de valor. Já me perdi<br />

de novo... não sei bem o que desejava falar... Não quero ser cortado! Não<br />

quero saber de suas idéias ou de seus problemas! Já os tenho de sobra!<br />

Sei quem sou!<br />

Nesse instante, Dr. Erasmo lembrou-se de Yeda, do suicídio. Lucinho<br />

continuou:<br />

- Um dos primeiros psicólogos com quem me consultei...meio bobinho...<br />

até que acertou... em parte, meu problema. Ele me disse que eu tinha<br />

“carência afetiva”; que estava querendo alguém para me amparar, para<br />

me proteger dos traumas causados pela maneira como fui criado.<br />

Nesse instante, sem querer, ele lembra das noites que passou junto à<br />

mãe; dos abusos sofridos. Lembrava, com ódio, essas cenas. Pára e olha<br />

para Dr. Erasmo, perguntando-lhe, timidamente:<br />

- Já lhe contei os fatos referentes à minha mãe? Mostrando-se perturbado<br />

- lembra-se?<br />

- Sim.<br />

- Pois é. Fui educado erroneamente. Eu não recebi carinho de minha<br />

mãe, recebi aquilo que você sabe, que me dá nojo, só de lembrar. Recebi<br />

mensagens, muitas, por sinal, credos e mais credos, que não me largam.<br />

Essas cicatrizes atrozes não saem de minha alma. Não recebi amor de<br />

meu pai, que sempre esteve afastado. Por isso, por não ter introjetado ou<br />

assimilado uma boa mãe, estou ainda na idade adulta buscando a mãe<br />

que jamais tive. Minha irmã me critica por isso. Pior, ainda, procuro<br />

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sempre a pessoa que jamais pode me dar alguma coisa. Adquiri uma<br />

baixa auto-estima, por não crescer com naturalidade... nunca me senti<br />

bem... Como não me amo - me odeio - também não sou capaz de dar<br />

aos outros o amor que não encontro em mim. Não posso amar se não<br />

encontro amor dentro de mim. Entende? Você está me ouvindo? Parece<br />

estar longe!<br />

- Claro, pode continuar, estou entendendo.<br />

Dr. Erasmo estava realmente longe; rememorava seus problemas. Ao<br />

mesmo tempo, esforçava-se para manter-se atento - ou fingir - à fala do<br />

cliente.<br />

- Como o início foi quebrado - houve um defeito no desenvolvimento,<br />

ainda muito cedo - eu não evoluí de uma fase para as outras. Estagneime<br />

na fase infantil. Sei que estou preso à minha mãe, até hoje. Revoltome<br />

contra isto e critico-me. Não recebi o que penso que deveria ter<br />

recebido. Vivo procurando um amparo, não em mim, mas fora, aquilo<br />

que não tive nos meus primeiros anos de vida.<br />

- Sim, essa é uma das explicações acerca de certos comportamentos de<br />

adultos! Existem outras... Dr. Erasmo entrou na conversa para escapar<br />

das próprias reflexões que o atormentavam.<br />

- Não quero ouvi-las! Ouviu? Já as conheço! Andei por toda minha vida<br />

à procura de minha identidade; tentando escapar do labirinto onde<br />

entrei; busquei saídas usando idéias ora de um ora de outro... Sei que a<br />

explicação do professor também é falha. Sei disso, mas gostei dela. E daí?<br />

Tudo bem! Vejo, com claridade, que ela não revela tudo. Não mostra o<br />

que minha mãe fez comigo para que eu ficasse com pavor dela...Quais<br />

idéias tiveram maior peso, me dominaram e me paralisaram... ? Não<br />

consigo abandonar essas sujeiras... Elas me fazem tão mal...<br />

Dá um suspiro e continua:- O que faço e penso tem muito pouco daqui-<br />

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lo que quero mais internamente. Meu pensamento colabora mais para<br />

reforçar as minhas idéias negativas do que das positivas; são as ruins que<br />

impregnaram-se em minha mente doentia, lamentou Lucinho.<br />

- Podemos explicar uma conduta ou qualquer fato de vários modos<br />

diferentes, continua seu raciocínio o Dr. Erasmo, sem se importar com<br />

os desejos de Lucinho. Todos podem estar certos... Assim, posso explicar<br />

uma conduta, conforme os vários pontos de vista dos psicólogos,<br />

outro a explicará através da Sociologia, da Antropologia, do Direito,<br />

da Bioquímica, da Biologia, e até da Física. Assim, a compreensão do<br />

fato dependerá do ângulo, das suposições científicas, do ponto de vista<br />

existente na mente de quem examina e explica o acontecimento... Cada<br />

explicação se apoia em determinados fundamentos ...é tecida ou costurada<br />

em teorias diferentes, partindo de verdades diversas e parciais acerca<br />

do evento; assim é que, também, tira conclusões, cada uma a seu modo.<br />

O difícil, ou impossível, é trabalhar com todas as explicações em profundidade.<br />

Por isso, usamos as idéias simplificadas, naturalmente não<br />

muito adequadas. São mais fáceis... O que é uma explicação? Nada mais<br />

do que o relacionamento de um fato a outro ou a vários outros conhecidos.<br />

Ora, só podemos relacionar um fato a outro que temos na cabeça<br />

e, além disso, a própria visão é nossa. Os conhecimentos de outros, não<br />

podemos usar no seu original mas, apenas, sob nossa interpretação! Veja<br />

as doenças: sempre foram propostas ou inventadas várias explicações<br />

para elas; umas, mais rigorosas, chamadas de científicas, outras, mágicas,<br />

religiosas, etc. as não-científicas.<br />

- Quem está falando em doenças? Você agora quer me catalogar de<br />

doente?<br />

- Não se trata disso! Estou tentando lhe explicar, generalizando... Toda<br />

explicação médica se acha presa a princípios ou “medicinas” diferentes<br />

- emprestadas de outras teorias, que, por sua vez, provêm de outras e<br />

assim por diante. Todas elas examinam o mesmo problema, mas, cada<br />

uma, através de referenciais diversos. O que eu quero te dizer, em con-<br />

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clusão, é nunca há certeza, vivemos no mundo da probabilidade, da<br />

dúvida. Foi essa preocupação que deu nascimento ao que chamamos de<br />

cultura e nisso incluem-se as diversas explicações dos psicólogos.<br />

- Eu sei disso, cada um segue uma teoria diferente: um é psicanalista,<br />

outro jungiano, outro, gestaltista, neurolingüista, outro faz uso de hipnose;<br />

alguns usam a Teoria dos Sistemas; outros a Cognitiva. Não havia<br />

necessidade de ser dito. Eu sei disso! Tem de tudo. O senhor segue qual<br />

linha?<br />

- Como? É...bem... a “Erasmista”. Ela resume tudo que já li, vivi e pensei<br />

acerca da conduta humana. Procuro ser um pouco mais livre...<br />

- Ah...Ah...Nunca vi coisa igual. O senhor é esquisito mesmo! Atira para<br />

todos os lados.<br />

- Agora, por exemplo, posso lhe dar uma interpretação baseada na Teoria<br />

dos Sistemas! “Você precisa se manter doente para viver, para você<br />

seria perigoso sarar”. Ela é certa?<br />

- Isso, minha irmã, que é uma ignorante, já falou...Grande<br />

descoberta!...O senhor sabe o que é “sarar” ?<br />

Dr. Erasmo, sem se importar com o comentário insultuoso, continuou:<br />

- As teorias psicológicas que você tanto adora - sempre viveu atrás delas<br />

- são esboços grosseiros da conduta das pessoas em geral. O indivíduo<br />

particular não pode ser entendido por essas generalidades. Esse é o<br />

grande erro das interpretações.<br />

Contaminado pelo sofrimento, Dr. Erasmo falava emocionado, sem<br />

perceber. Aos poucos, abandonava o papel de terapeuta. Excitado - e,<br />

possivelmente, gostando desse estado - ele continuava:<br />

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- Jamais teremos uma idéia precisa do mundo com respeito às relações<br />

humanas. Os fatos dos psicólogos derivam das teorias adotadas por<br />

eles - suas “realidades” fictícias. Observe as análises a que se submeteu,<br />

principalmente as palavras usadas para designar o seu caráter: todas<br />

elas descrevem as transações, um acordo entre você e as pessoas, ou<br />

entre você e o meio-ambiente. Entretanto, erradamente, sempre falamos<br />

como se a característica pertencesse à pessoa. É um grave erro. Nenhum<br />

homem é “dependente”, “otimista”, “mau”, “bom”, num vazio... sem se<br />

estar relacionando com algo. Cada uma dessas palavras são abstrações -<br />

todas retiradas de relações - descrevem modos de trocas. Confundindo<br />

uma coisa com outra, confundimos a troca ou relação pelo seu nome...<br />

Alguns julgam a veracidade da teoria pela fé - uma espécie de conversão<br />

religiosa - e pelo número de seus seguidores; desse modo, a que tiver<br />

um maior número de crentes possuirá a verdade. Entretanto, a maioria<br />

das teorias que mais seguidores têm, partem de crenças, não comprovadas;<br />

sonhadas. Cada uma conclama os desorientados a fazerem<br />

parte do grupo, irmanados na mesma idiotice. Seu número é grande; os<br />

seguidores das mentiras. Você coleciona teorias psicológicas diversas e,<br />

presentemente, dá muita importância as obras do Prof. Pinelli.<br />

- Não é bem isso! - retruca Lucinho espantado: - Fiz análise com ele,<br />

aprendi muito; penso que o que ele me ensinou; ajudou-me mais do que<br />

essas interpretações desconexas. O senhor está me enlouquecendo...<br />

- Você fez tratamentos com vários especialistas, entretanto segue sendo<br />

o mesmo. Em que mudou? Nada! Talvez agora saiba, como ninguém,<br />

relatar as idéias de um e de outro, só isso. É muito pouco. As interpretações<br />

que você ouviu não foram diluídas em você, não se transformaram<br />

em condutas e mudanças no modo geral do pensar. Parece que<br />

se esforça para continuar sendo o mesmo, apesar de ser capaz de repetir,<br />

pois tem boa memória, as idéias dos terapeutas. Não sei se seria melhor<br />

você mudar; se “curasse” tornar-se-ia responsável, adulto...sua vida<br />

poderia ficar pior, mais vazia... toda sua família precisaria criar novos<br />

encantamentos para sobreviver, pois, em grande parte ela vive em torno<br />

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do seu problema...<br />

Geralmente durante as entrevistas ele falava apenas o essencial, comedidamente,<br />

sabendo representar seu papel de psiquiatra. Naquela tarde,<br />

ele transbordou; não suportou a pressão interna. Cada vez mais o Dr. Erasmo,<br />

transformado, deixava sair, sem notar, suas idéias desencontradas.<br />

Um outro Erasmo comandava seus pensamentos. Ele agora se expressava<br />

como um homem qualquer, angustiado, desesperado. Prosseguiu,<br />

contraindo todo o corpo e elevando o tom de voz:<br />

- A doença dá sentido à sua existência e à de sua família; através de suas<br />

crises todos escapam da vida monótona em que estão presos. É o medicamento,<br />

o seu lenitivo. Eles, sem um rumo interno, agarraram-se aos<br />

seus problemas; orientam-se por ele, por isso mesmo, você, doente, é<br />

importante para eles. Todas as famílias desajustadas têm seu “Lucinho”,<br />

como fonte de orientação e adoração.<br />

- Por que o senhor me ataca dessa maneira? Não estou entendendo...<br />

Não pretendo brigar... “Mas sempre acabo brigando...Não sei por que,<br />

arrependo-me, depois. Na verdade, não nasci para isso, não entendo a<br />

razão pela qual vivo provocando certas pessoas ou respondendo às suas<br />

provocações...Não são todas, apenas algumas... O que será que fiz para<br />

provocar o Dr. Erasmo dessa maneira?” perguntava-se Lucinho. Lembrava-se,<br />

nesse instante, de sua mãe.<br />

- Estou lhe ensinando... Vivemos num mundo cheio de armadilhas...<br />

Ignoramos quando seremos presos nas arapucas, continuou, tenso, Dr.<br />

Erasmo. Eis a desgraça do homem: ter consciência de sua impotência, de<br />

sua ignorância por não saber quando virá o desastre, a morte. E ela vem<br />

sempre. A vida humana é uma luta constante; uma busca para evitar as<br />

doenças, desastres, separações, a velhice e a morte, o fim. Buscamos, primordialmente,<br />

fontes de segurança para nos apoiar, para fugir do incerto.<br />

Todas as terapias, ideologias e religiões tentam isso. A sociedade está<br />

confusa; as pessoas fogem, sem saber pra onde, do perigo, do descon-<br />

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hecido. Há muitos caminhos disponíveis, entretanto ninguém sabe<br />

escolher o que quer. Estamos, a cada dia, mais desadaptados, aumentam<br />

o número e a complexidade dos problemas para todos, mas ninguém<br />

percebe e todos continuam a explicar os fatos com as mesmas idéias<br />

antigas, simples e míticas. Cada um usa sua droga particular para evitar<br />

encarar os dramas encenados diante deles. Os mais corajosos, tendo algum<br />

tempo para pensar, tentam, incessantemente, saídas mais honrosas,<br />

criando ou produzindo algo. Certamente, num futuro próximo, iremos<br />

desaparecer, como aconteceu e acontece com diversas espécies animais...<br />

Nosso dia chegará...<br />

- Na sua opinião, nós caminhamos para isso? Acredita mesmo nisso ou<br />

está debochando? O senhor parece mais deprimido do que eu...O que<br />

aconteceu? perguntou espantado, procurando ser solidário.<br />

- O Homem, desde que largou seus primos, os chimpanzés, tem guerreado<br />

e matado, sem parar, em busca do poder e da riqueza. A sociedade<br />

vive, inutilmente, tentando domesticar a fera existente dentro de cada<br />

homem. Estamos sendo enganados pelas ideologias. Quais são nossas<br />

metas? Acumular e acumular; destruir; destruir até a si mesmo - o que<br />

ele mais odeia: a espécie da qual faz parte. Nós somos o <strong>nosso</strong> maior<br />

inimigo, esforçamo-nos para fugir do que somos. Habituamos a tudo,<br />

acostumamos com a confusão constante, quando não as temos, as provocamos.<br />

Não mais suportamos a calmaria, o simples. Entediamo-nos,<br />

facilmente. O homem tem, através dos tempos, tentado o impossível,<br />

entender o incompreensível...a complexidade onde estamos incluídos -<br />

através da mente, uma outra complexidade, que, por sua vez, nunca foi<br />

nem jamais será entendida. Temos que prosseguir... continuar a viver.<br />

Entretanto, não sabemos ao certo de onde viemos, onde queremos chegar.<br />

Dr. Erasmo, cansado e abatido deixava fluir sua própria fala desordenada,<br />

perguntando-se: “Por que teria de ser diferente? Para que ser<br />

coerente? Tenho o direito de deixar, num dia desses, de ser o psiquiatra<br />

controlado, como o exigido pelas bobagens inventadas pelos sábios-<br />

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ignorantes, donos do poder da Psiquiatria”.<br />

- Conversei com muitos terapeutas - nesse instante Lucinho cortou,<br />

bruscamente, a verborréia do Dr. Erasmo. Demonstrava calma e solidariedade<br />

e prosseguiu: - Cada psiquiatra tem sua história; suas nódoas,<br />

como todos nós; eu pescava isso nas entrelinhas. Não é difícil perceber,<br />

estou acostumado, todos são contaminados pela sua vida, família, credos<br />

escondidos, todos têm suas marcas próprias, idéias gerais, filosofia e,<br />

naturalmente, terapia. Cada terapeuta me contou, sem o desejar, implicitamente,<br />

seus segredos escondidos; alguns interessantes, muitos até me<br />

ajudaram...Mas... suas idéias são mais estranhas ... Causam-me espanto!<br />

Tenho medo delas...chegam a me deprimir. Estou transtornado. Noto,<br />

ao mesmo tempo, estranhamente e sem o desejar, que sou atraído por<br />

este seu jeito de hoje, pois me parece natural, espontâneo; chego a gostar<br />

da forma...Admiro os que assim agem, tenho simpatia por esse modo,<br />

mesmo quando não concordo com o conteúdo que expressa...<br />

- Aprenda isso - Dr. Erasmo olha para Lucinho, sério e encurvado, à<br />

sua frente, como um pai olha para um filho, dando o conselho crucial.<br />

- Você se queixa de que é criticado; porém, ao o criticarem, todos estão<br />

imaginando algo, provisoriamente, sobre você, conforme a emoção e o<br />

desejo do momento, semelhantemente às interpretações terapêuticas.<br />

Mas, aprenda para sempre: eles estão dizendo muito, às vezes somente<br />

acerca deles próprios e, não, a seu respeito.<br />

Dr. Erasmo percebia que todo o seu pensamento estava contaminado<br />

pela tristeza e desespero, entretanto, sentia uma pressão interna para<br />

continuar:<br />

- Somos enganados pelas afirmações, pensamos que aquilo que ouvimos<br />

nos diz respeito. Nada disso! Podemos, devido às sugestões, até perder o<br />

sono ou chorar, ao imaginar que somos o que foi falado. Em lugar de examinar<br />

a si mesmo, diante das interpretações, das acusações dos outros,<br />

examine e interprete a pessoa que falou a seu respeito, tente descobrir<br />

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seu modo de pensar, como ela, e não você, está vivendo. Descubra quais<br />

são os princípios que estão servindo de base para seu raciocínio ou de<br />

que forma ela chegou àquelas conclusões. Assim você poderá conhecêla,<br />

enquanto ela crê, erroneamente, estar conhecendo-o profundamente.<br />

Entendeu? O que dizem a <strong>nosso</strong> respeito não deveria nos preocupar;<br />

quase sempre não tem nada a ver conosco... Pode até ter... Tudo tem um<br />

pouco a ver com todos nós, mas aquilo que alguém diz traduz muito<br />

mais, acerca daquele que emitiu a opinião. Nesse momento, Dr. Erasmo<br />

tinha consciência, confusamente, de que ele próprio se revelava ao<br />

emitir essas opiniões.<br />

- Mas, balbuciou Lucinho. - Como ir além das conclusões dessas opiniões<br />

dos outros? Como ir além desse verniz enganador? Se eu não<br />

enxergo nem meu interior, como irei descobrir o do outro? Fico num<br />

beco sem saída, caminhando de um lado para outro, sem chegar a lugar<br />

algum.<br />

- Por que se assustar? A maioria das coisas que encontramos é estranha<br />

à nossa vida. Isso é o normal. Deveríamos nos surpreender caso ocorresse<br />

o oposto. Devíamos ser humildes, saber que não conhecemos e<br />

que jamais conheceremos a maioria daquilo que ocorre conosco. Assim,<br />

deveríamos interromper as explicações que tentamos tecer a <strong>nosso</strong><br />

respeito. Viveríamos mais felizes...<br />

- A cada momento entendo menos...Vim aqui para entender-me melhor...<br />

o senhor fala o oposto... Essa conversa está jogando fora meus fundamentos,<br />

podres por sinal, como você sugere, mas que me serviam....<br />

Pior agora, quando começo a ver que não tenho mais nenhum firme,<br />

ao mesmo tempo que tenho muitos, assentados num brejo. Onde assentarei<br />

meus tijolos? Preciso de um apoio para erigir meu pensamento,<br />

qualquer um serve, sem ele desapareço, morro... Não é esse o trabalho<br />

dos psicólogos? Descobrir, descrever, compreender e esclarecer os<br />

princípios onde o cliente se apoia?<br />

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- Sim, mas isso é difícil, ou melhor, impossível. Alguns, por ignorância<br />

ou safadeza, prometem curas milagrosas. A toda hora surgem os charlatães<br />

de toda espécie, os vendedores de panacéias, que resolvem todos os<br />

problemas. Esses escrevem livros que são os mais vendidos, dão cursos<br />

nos quais a população briga para se inscrever, curam tudo facilmente,<br />

sabem tudo, inclusive, o que os profissionais honestos não sabem. Esses<br />

tipos humanos, trapaceiros de longa data, hoje são mais raros nas áreas<br />

de Física ou da Química, mas proliferam nos campos da Psicologia, Economia,<br />

Sociologia e etc. Na Psicologia eles crescem: são eles que mais<br />

atraem o público ávido por idéias ou curas milagrosas. A linguagem<br />

dos charlatães copia a fala popular, que, na verdade, é a mesma dos que<br />

desejam ser enganados; daí a facilidade que conseguem na comunicação.<br />

Os iguais se compreendem melhor. O charlatão fornece ao crédulo a<br />

comida que ele busca, falando de um modo vago, de um modo que<br />

abrange tudo, de forma simplificada, portanto, que sempre dá certo. Se<br />

prestarmos atenção, há pouca diferença - quando ela existe - entre o que<br />

muitos psicólogos afirmam - os chamados profissionais - e as interpretações<br />

populares, ou seja, as dos amadores.<br />

- O senhor está criticando tudo! Até sua própria profissão, seu trabalho!<br />

Onde quer chegar?<br />

- Estou lhe ensinando; quero ajudá-lo. Veja: uns e outros usam as mesmas<br />

palavras, os mesmos chavões, todos falam do mesmo modo, de<br />

acordo com a linguagem popular. Ouvimos sempre: “na minha opinião”,<br />

de um lado e de outro, onde cada um tira, do fundo da cartola, as<br />

crenças que defende, confundindo-as com a descrição da realidade que<br />

é muito mais complexa. O que diferencia, muitas vezes, o profissional do<br />

amador é que um afirma ter o título de psicólogo e o outro não chega a<br />

tanto; um se assenta na cadeira principal; o outro, na secundária. Ouço<br />

interpretações belíssimas acerca das condutas humanas, que me fascinam.<br />

Mas, é uma pena, pois, mais tarde, ouço outra, acerca do mesmo<br />

assunto, de outra escola mais bonita que a anterior; afirmando o contrário<br />

da primeira, mas que se diz, também, absolutamente certa.<br />

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- Oh! Entendi. Para o senhor, não existe uma idéia certa? Todas estão<br />

erradas? Nesse caso: só a sua é certa?<br />

- Sim e não!<br />

- Como?<br />

- Estou falando acerca das teorias e não acerca da validade das idéias de<br />

uma delas. Certas teorias se aproximam mais da realidade psicológica<br />

que tem sido aceita atualmente como razoável; outras se afastam mais<br />

dessa realidade. Nem uma nem outra descreve a “realidade” psíquica,<br />

esta é inalcançável, como ocorre nas descrições propostas no campo de<br />

qualquer ciência: Física, Química, etc. Umas descrevem melhor o seu<br />

campo e usam instrumentos teóricos mais viáveis; outras ainda não<br />

alcançaram este estágio. Não existe teoria verdadeira ou certa, pois não<br />

temos referenciais do que seja absolutamente correto. Por isso, é fácil<br />

e difícil ser psicólogo. Como é fácil e difícil viver. Vivem juntos sábios<br />

e imbecis e ninguém sabe quem é quem. Esse é um grande problema<br />

para os considerados sábios. Serão eles os inteligentes? Quais os critérios<br />

usados para afirmar isso? O critério usado é melhor do que outros,<br />

nos quais os sábios poderiam ser considerados imbecis? Portanto, quem<br />

ocupará a cadeira de juiz ou examinador? Ninguém, em sã consciência,<br />

poderá afirmar quem está mais próximo da verdade. Quem sabe,<br />

os mais desadaptados ao <strong>nosso</strong> mundo atual, os que mais se afastaram<br />

dele, são os mais ajustados à verdadeira natureza humana? Acredito que<br />

os homens mais adaptados seriam os que mais longe estão do homem<br />

moderno; aqueles que mais se parecem com as vespas, baratas ou formigas,<br />

animais altamente adaptados ao seu mundo, continuou, possesso,<br />

Dr. Erasmo.<br />

Naquele instante, ele vivia o que dizia. Próximo de enlouquecer, ele<br />

continuava: - Cuidado! Há uma tendência dos psicólogos, religiosos,<br />

advogados, políticos, pais, amigos, afinal, de nós todos, de dar palpites<br />

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em tudo, acreditando que sua crença é a verdadeira e que esta deve ser<br />

seguida. Jogue todas essas pregações fora!<br />

- Jogo fora, também, o que você está dizendo agora?<br />

- É possível, respondeu assustado e interrompendo, por segundos, sua<br />

fala. Mas, automaticamente, continuou: - Verifique se lhe serve...Se lhe<br />

serve para alguma coisa...Não sei, você decide...<br />

- O senhor está diferente! Às vezes, acho que me pareço com o senhor,<br />

neste estado de agora. Eu, de vez em quando, fico assim, momentos antes<br />

das crises. Tem certeza de que está se sentindo bem?<br />

- Sim, pigarreando e prosseguindo: - A consulta terminou, há muito.<br />

Falei mais do que desejava...<br />

- É uma pena, comentou, educadamente, - Gostaria que continuasse...<br />

essa consulta foi ótima...hoje gostei do senhor. Até à próxima.<br />

- Boa tarde.<br />

Após a despedida, Dr. Erasmo retorna a ser psiquiatra. Perturbado<br />

por momentos, ele se transformou num homem comum, com todas as<br />

emoções e idéias soltas, envolvido com os problemas pessoais, com as<br />

dúvidas, os sonhos e desilusões. Retornou, apenas por instantes, à seu<br />

estado humano, sentindo necessidade em infringir as regras do bom<br />

profissional, neutro...Estava aliviado por ter se libertado, em ter voltado<br />

a ser Erasmo, o antigo, um homem que tem também o direito de ficar<br />

“doente”, desorganizado e desadaptado. Largou, por instantes, a máscara<br />

de psiquiatra, abandonou o papel exigido para o geral, dilacerou a<br />

camisa-de-força imposta pelos órgãos de classe aos filiados a ela, a regra<br />

do “terapeuta exemplar”, em vigor e aceito sem discussões.<br />

Entretanto, lamentava sua pouca coragem; sabia que sua liberdade<br />

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duraria pouco; daqui a algumas semanas ou, poucas horas, ele entraria<br />

novamente para a “prisão”, passivamente voltaria a agir como classe de<br />

pessoas, a dos terapeutas, sujeito e obedecendo, sem reclamar, a todas<br />

as imposições dessa ordem; não mais agiria como ser individualizado,<br />

como ele próprio....Entraria, mais uma vez, para a família das térmitas.<br />

Descobriu, infelizmente, que ao agir como doente, na verdade, por uns<br />

poucos minutos, curou-se.<br />

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Dores do Envelhecimento<br />

Dr. Adamastor, ao se casar, foi obrigado a mudar sua maneira de viver,<br />

diante das pressões e dos chiliques continuados da mulher. “Como era,<br />

antes de começar a namorá-la; como ainda sou, diante de outros e como<br />

sou, agora, junto a Rosária? Não me reconheço. Aceito tudo, submetome<br />

aos seus caprichos mais idiotas... Para quê?”, dizia-se, enquanto<br />

caminhava para a geladeira para pegar uma garrafa de cerveja.<br />

- Vai beber cerveja a essas horas? São nove horas da manhã! Gritou<br />

Rosária.<br />

- Exatamente...Ouviu? Certo? não vejo nada melhor para fazer. Realmente,<br />

por que não beber? Sempre gostei de cervejas, como sempre<br />

gostei de trabalhar... Agora, estou me aposentando. Mereço uma boa<br />

velhice, de preferência regada a álcool, para obliterar minha obsessão<br />

pelos horários e pelas coisas certas e pela honestidade... “Preciso beber,<br />

beber, até ficar embriagado. Só assim posso agüentar essa mulher e essa<br />

maldita vida”, concluía para si mesmo Dr. Adamastor.<br />

- Honestidade! gritou. “Não sei qual! Como pode mentir assim? Ainda<br />

mais para mim, que o conheço totalmente”, ela dizia para si lembrandose<br />

de Silbene, a secretária com quem ele teve um caso. Continuou a falar<br />

para ele ouvir:<br />

- Você sabe que é mais velho do que eu. Nessa idade nossa - sua, principalmente<br />

- é preciso ter cuidado com a saúde. Olhava e examinava<br />

o marido: “Ele está mais velho; os cabelos já caíram, quase todos; os<br />

últimos existentes estão totalmente brancos. Está encurvado; antes, ele<br />

parecia ser mais alto, suas bochechas estão caídas, seu andar está, a cada<br />

dia, mais lento e desequilibrado, mesmo abrindo as pernas o mais que<br />

pode. E, ainda, bebendo desse jeito, todos os dias... Não vai viver muito...<br />

penso que o melhor, para mim e para ele, é morrer. Ele não mais faz<br />

falta. Para que quero um homem desse?” lamentava para si.<br />

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Dr. Adamastor se embriagava facilmente, não precisava mais tomar<br />

muitas garrafas de cerveja. Já na segunda, passava a falar com língua<br />

enrolada, repetia a mesma frase várias vezes. Estranhamente, quando a<br />

quantidade de cerveja excedia seu limite ele começava, em lugar de criticar,<br />

a elogiar Rosária; abraçava-a e beijava-a; principalmente confundia<br />

a Rosária atual com a antiga, a ex-namorada que era bonita e jovem,<br />

pela qual se apaixonou, no baile do carnaval. Para piorar, algumas vezes<br />

trocava-a também por outras mulheres, com as quais já tinha tido encontros.<br />

No dia seguinte, ele mal se lembrava das cenas por ele vividas.<br />

Naquela manhã, após ter tomado duas a três garrafas de cerveja, enquanto<br />

a mulher dirigia os trabalhos da casa, ele começou a persegui-la.<br />

Olhava para cima, com sua cabeça grande, examinando-a, cuidadosamente.<br />

Começava a imaginar estar conquistando uma bela jovem e<br />

para conseguir o que desejava, recitava frases açucaradas, decoradas no<br />

tempo de estudante. Alucinado pelo espectro, observava a moça bonita<br />

do diretório, dançando, cheia de vida, à sua frente; agora relacionava-se<br />

com a antiga mulher que se transformou numa outra, completamente<br />

diferente; velha, gorda e cheia de trejeitos desagradáveis. Através do<br />

físico desta, que ele detestava, ele conquistava, inebriado de amor, a<br />

atraente mulher que um dia ele adorara.<br />

Durante a conquista do fetiche, Dr. Adamastor arrumava os raríssimos<br />

cabelos que tinha; puxava-os para um só lado da cabeça, para disfarçar<br />

a calvície...Sua voz pastosa, quase incompreensível, era a mesma<br />

usada quando ele cantava as secretárias na empresa de construção civil.<br />

Alegremente, no seu delírio erotômano, regressava satisfeito ao passado<br />

longínquo; estava rodeado por uma jovem faceira, ou mais de uma,<br />

mistura confusa da antiga com as diversas secretárias. Ele olhava para<br />

sua distraída mulher e começava a elogiar seus belos cabelos anelados,<br />

os bonitos dentes, o corpo escultural, o perfume adocicado que se exalava<br />

de sua pele sedosa e muito branca; tudo isso o excitava. Tudo era<br />

ilusão, nada mais existia. A realidade amarga e triste era outra.<br />

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245


Rosária escutava, com pesar, a voz pastosa do Dr. Adamastor elogiando<br />

sua beleza. Lembrava do passado, comparava-se com a jovem que fora.<br />

Recordava, com grande sofrimento, que, agora, ela não tinha mais nada<br />

do que o marido dizia. Concordava que já teve tudo aquilo, que sua<br />

figura e simpatia fizeram muitos homens elegantes e bonitos se apaixonarem<br />

por ela. Se nunca tivesse sido bonita, o sofrimento seria menor. Incorporando<br />

a mocinha cobiçada, ela representava a fantasia do marido.<br />

Não era tão difícil assim, duraria apenas uns poucos minutos. Era mais<br />

penoso suportar os agarramentos, os beijos com mau hálito e os abraços,<br />

reais demais para serem encenados. Tolerava e se sentia envaidecida,<br />

com as declarações de amor repetidas quase diariamente. Impossibilitada,<br />

pelos anos, de viver um presente como o recitado na declaração<br />

de amor, esforçava-se, ao máximo, para se iludir. Por mais que se esforçasse,<br />

conscientemente, não mais conseguia viver a juventude plena da<br />

cena, o representado nos momentos da “folie a deux”: “eu sei que isso<br />

não mais existe, tenho consciência, mas como dói, sou uma mulher<br />

feia, sem atrativos, que só os mais humildes, velhos e feios, procuram,<br />

aceitam ou toleram. Estou sendo enganada, mas engano ele também. E<br />

daí? A vida é feita de enganos e ilusões, do nascimento à morte. Tudo<br />

é ilusão...Não é somente na velhice; antes, quando mocinha, era tão ou<br />

mais tapeada do que agora. Cada homem acredita naquilo que dá a ele<br />

felicidade, num certo momento. Mas, o que são nossas alegrias? Uma<br />

maneira falsa, quase sempre passageira, de enfrentar a realidade tola e<br />

chata. Os mais espertos depois percebem, quando não são muito burros,<br />

que tudo não passava de um erro, que o mundo era outro. Eu, também,<br />

como todo mundo, tenho o direito de fingir acreditar, por uns momentos,<br />

sem estar embriagada, de que sou uma mulher bonita, gostosa<br />

e desejada... Por que não? Quem nunca fez isso para agüentar a vida<br />

ruim que leva? Temos que mentir para nós mesmos... Precisamos dessas<br />

tapeações para continuarmos vivendo. Sem elas seria melhor morrer”.<br />

O físico do marido não mais a agradava: a grande barriga que, felizmente,<br />

quase o impedia de abraçá-la, o hálito e o bigode cheirando a<br />

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cigarro e a álcool, mais nos momentos mais encantadores da encenação<br />

da fraude. Ele, com suas mãos finas e grandes, a agarrava, desajeitadamente,<br />

na presença de Cândida, que achava tudo uma pouca-vergonha.<br />

Da camisa aberta, saíam fios de cabelos encaracolados, enormes, do seu<br />

tórax proeminente e largo, molhado de suor provocado pelo calor, álcool<br />

e excitação. Ao cantar Rosária, muitas vezes, trocando seu nome pelo<br />

de outras mulheres, ele falava com dificuldade, pois a bebida provocava<br />

um aumento da saliva que escorria pelos seus lábios semi-abertos. Ao<br />

relembrar as antigas frases, para causar impacto na presa, ele chupava<br />

os dentes de um lado da boca, provocando um barulho desagradável e<br />

um assobio agudo.<br />

Assentado à mesa da sala, bebendo sua cerveja, ele olhava, demorada<br />

e languidamente, para o traseiro da mulher, enquanto ela guardava as<br />

vasilhas. Ao vê-lo, murcho e melancólico, Dr. Adamastor parecia estar<br />

com o pensamento muito distante, como o médico que examina, pensativo,<br />

diante de um prognóstico sombrio, o tumor maligno, imaginando<br />

se fala ou não com o paciente à sua frente. Dominado pela embriaguez,<br />

fixado no passado, ele modificava o modo usual de falar; sóbrio e longe<br />

daquele teatro, falava baixo. Tinha um aspecto sombrio, quase nunca<br />

olhava diretamente para as pessoas. Geralmente falava uma a duas frases<br />

e interrompia a conversa, esperava o resultado do que havia dito, imaginando<br />

que sua idéia podia não ser aceita ou estaria sendo criticada. Mas<br />

durante as manhãs em que ele se embriagava, se transformava:<br />

- Minha linda garota! Minha Flor de Lis! Bela e exuberante! - exclamava,<br />

num tom alto; palavras geralmente não usadas.<br />

Olhava para os olhos azuis da mulher, enquanto parecia se esticar e<br />

quase alcançar a sua altura. Suas mãos passavam, vagarosamente e sem<br />

medo, pelo pescoço e ombros de Rosária, arrastavam-se por seus cabelos,<br />

sempre desarrumados principalmente àquela hora da manhã.<br />

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247


- Deixe-me. Que chatura! Agora? Isso é todo dia! Não agüento mais...<br />

reclamava Rosária.<br />

Mas, de fato, ela gostava. Gostava, principalmente, dos símbolos<br />

mais abrangentes, usados pelo marido: garota, bela, flor. Eles tinham<br />

maior poder de penetração: forneciam ilusões, despertavam emoções<br />

agradáveis, todas antigas, de uma existência, onde, a cada dia, elas se<br />

escasseavam, ou já tinham desaparecido. Percebia com clareza, que, à<br />

medida que envelhecia, só recebia carinhos dos seus pretendentes, enquanto<br />

embriagados.<br />

Mas Rosária não vivia só ilusões durante esse ritual. Ela percebeu que o<br />

marido, embriagado e apaixonado, igual à maioria dos homens, tornavase<br />

menos preocupado com o dinheiro. Assim, ela passou a usar esses<br />

momentos para conseguir mais dinheiro para as despesas pessoais e<br />

da casa, que ficava em poder do Dr. Adamastor. Ele, não embriagado,<br />

reclamava dos gastos exagerados, entretanto, não se sabe se por preguiça<br />

ou fraqueza, evitava tomar iniciativas para diminuir as despesas, que ele<br />

afirmava serem altas.<br />

- Meu bem...<br />

Nesse momento, a voz de Rosária tornava-se meiga, doce, macia, muito<br />

diferente do tom costumeiro:<br />

- Benzinho: precisa de ajuda? O quê deseja, benzinho? Um abraço, um<br />

beijo, o quê mais?<br />

De quem seria aquela voz? Ele confuso, imaginava estar, naquele momento,<br />

num prostíbulo, frente a uma prostituta que finge amar seu<br />

freguês.<br />

- Abraça-me, minha bonequinha dengosa. Estava com saudade de você.<br />

Há quanto tempo nós não nos vemos. Sou louco por você. Te amo<br />

muito! Hoje você está linda. Semana que vem voltarei para te ver...<br />

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- Eu te amo, meu queridinho, sussurrava, com voz de falsete, rouca e<br />

quente, ao pé do ouvido do marido.<br />

Ela envergonhava-se, por momentos, do papel ridículo que representava,<br />

baixando a voz quando Cândida passava por perto.<br />

- Dê-me meu pagamento benzinho, continuava, - Pode ser um cheque...<br />

caso não tenha dinheiro vivo… Quinhentos reais para minhas despesas,<br />

queridinho. Para que eu fique bonitinha e cheirosa, só para você. Farei o<br />

que desejar, pode pedir. Venha me visitar sempre... Sou tua, meu amor...<br />

A conversa continuava fluindo nesse pé. Rosária, amargurada pensava:<br />

“Eu sei que, nesse estado, ele daqui a pouco estará deitado e dormindo.<br />

Não custa nada sofrer um pouco. Também mereço alguma recompensa,<br />

por agüentar esse traste. A cada dia tenho mais asco por ele. Está<br />

acabado. Deve morrer em breve... está desnutrido e barrigudo...Próximo<br />

do fim... Mas continua apegado a mim, adorando-me. Hum...Péssimo<br />

gosto, gostar de mim. Que bela escolha! Preso para sempre...Tenho<br />

dó dele, às vezes raiva, por nada ter feito para impedir-me agir como<br />

eu quis. Nunca tomou conta de mim ou me mandou pra valer, como<br />

fizeram outros homens que conheci. Foi um inútil, um fraco. Continua<br />

pedindo amor, sem nunca ter dado...Só dinheiro, que devo tomar enquanto<br />

estiver assim, quando melhorar então voltará a ser o usurário de<br />

sempre. Tantos anos juntos!… Como pude agüentar? Sinto vontade de<br />

vomitar diante desse relacionamento a dois, que me levou a fazer quase<br />

tudo o que não queria... Procurei um homem para me casar e encontrei<br />

um trabalhador apaixonado, exageradamente apaixonado...mas incapaz<br />

na arte de amar. Nada mais sabe fazer do que levar a vida a sério. Também<br />

já me desacostumei do sexo. Minha vontade é gritar; gritar o mais<br />

alto possível para todos, para mostrar como é nossa vida... Mas tenho<br />

que fingir, como sempre fiz em toda a minha vida... Aprendi cedo, com<br />

a professora que me pôs no mundo, minha mãe, “Nós, mulheres, temos<br />

que fingir. Aprenda isso, minha filha. Tudo é aparência; só verniz.” Para<br />

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os de fora, formamos um belo casal - o casal vinte... Que idiotice! Como<br />

serão os outros casais? Iguais a nós?“<br />

- Deixe-me tirar o cheque. Onde está?<br />

O Dr. Adamastor procurou nos bolsos do pijama, imaginando estar vestido<br />

com o paletó gasto que usa quando vai aos bancos ou repartições.<br />

Ela, prontamente, corre ao quarto, tira da gaveta do criado-mudo, bem<br />

no fundo, o talão de cheque, que ela mesma preenche rapidamente antes<br />

que ele recobre a consciência, ou desmaie e entrega-lhe para assinar. Enquanto<br />

isso, beija-o, com nojo, limpa, com as costas dos braços a saliva<br />

fétida, que escorreu da boca do marido e passou para seus lábios. Entretanto,<br />

fingia uma grande ternura, da qual até ela, às vezes, duvidava.<br />

- Só quinhentos? Quero lhe dar uma jóia, um anel... ou uma aliança,<br />

representando nossa união. Quanto custa? disse, dando gargalhadas<br />

enquanto assinava o cheque, já quase sem força.<br />

Rosária guardou o talão rapidamente no mesmo lugar de onde fora<br />

tirado. Cantarolou alegremente, pela sala, o “Beijinho Doce”. Cuspia, de<br />

tempos em tempos, no lavabo da cozinha e bochechava com água e sal.<br />

Cândida assistia a tudo. Não entendia essa cena freqüente.<br />

Aos poucos, ele foi levado até seu quarto, amparado por Rosária e<br />

Cândida, para dormir um sono reparador, após o qual, tomaria bastante<br />

sopa para cortar a ressaca da bebedeira daquela manhã. Depois, a vida<br />

normal do casal recomeçaria a ser o que sempre foi. Ele seria tratado por<br />

ela como um cão e escorraçado de sua presença.<br />

Como é comum entre os idosos, Dr. Adamastor passou a se preocupar<br />

exageradamente com os fatos triviais, as pequenas tolices do seu mundinho,<br />

onde, a cada dia mais, tudo parecia não mais ter valor algum,<br />

deixando de lado os acontecimentos importantes.<br />

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- Rosária! gritou, ao acordar, ainda um pouco tonto, depois de ficar<br />

algumas horas dormindo. Onde estão minha calça jeans e minha camisa<br />

grená?<br />

- Coloquei sua roupa aí perto de você. Olhe em cima da cadeira, gritou<br />

da cozinha, com a boca cheia de batatas tiradas da geladeira.<br />

- Não é essa que eu quero. É nova e aperta. Quero aquela velha que ando<br />

sempre com ela.<br />

- Ela está sendo lavada... Você, ontem, emporcalhou ela de cerveja.<br />

Ainda não foi passada, completou Rosária engolindo.<br />

- Vá passar prá mim. Não gosto de roupas modernas! gritou do quarto,<br />

sem se levantar. Ele sabia que, daqui a pouco, a calça estaria diante dele,<br />

arrumada como queria. Examinou o chão do quarto para verificar se o<br />

velho sapato marrom estaria colocado no lugar de sempre. “Vou tomar<br />

um banho frio. Isso vai me despertar e melhorar meu estado. Faz bem<br />

à saúde. Eu não mando em todos mas na minha mulher eu mando.<br />

Ela, como eu, tem que tomar banho frio, em qualquer época. Com isso,<br />

economiza-se energia, massageia-se o corpo e, também, é bom para a<br />

saúde.”<br />

- Onde estão o sabão e a toalha? gritou do banheiro.<br />

- Devem estar na gaveta. Olhe aí. Vou levar a toalha. Espere! Não demoro.<br />

- Que merda! É sempre assim. Nunca acho as coisas que desejo nos lugares<br />

certos, resmunga, enquanto deixa um filete de água fria cair sobre<br />

o corpo, que ainda conserva os últimos traços de beleza, que teima em<br />

continuar, como o nariz bem feito. Sai do banho andando nas pontas<br />

dos pés, muito levemente, elegante, andar que passa a ter quando está<br />

terminando a embriaguez. “Não me lembro de nada que fiz...vou per-<br />

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guntar a ela...Não adianta; ela nunca fala a verdade.”<br />

Rosária, após ter almoçado e descansado, preparava-se para assistir à<br />

novela da tarde, a que ele, obrigatoriamente, mesmo sem gostar, assistia<br />

antes de ir para o serviço. A cada dia isso se tornava mais penoso e mais<br />

raro. Os dois, assentados diante da TV, mãos dadas, procuravam conversar.<br />

Nos seus rodeios, ele buscava sempre a opinião da mulher, antes de<br />

dar a sua própria:<br />

- O que você está achando dessa novela, Adamastor?<br />

- Realmente. Ouviu? Entendeu? Bem... Ela me parece interessante…<br />

exatamente… é... Penso que ela vai agradar...<br />

- Também penso assim. Ela é muito boa. Prende a atenção da gente...<br />

- Exato. Temos as mesmas opiniões - entendeu? A gente fica interessado<br />

no que vai acontecer...Fico muito curioso...<br />

- Sim, mas tem hora que aborrece... Como, curioso? Ela é repetida! Eu,<br />

até você, já sei como terminará...<br />

- Isso mesmo. É... é o que eu ia falar. Chateia; muitas vezes cansa... mas<br />

a gente finge, por dentro, sabe? Finge que não sabe. Sabe? Aí, é que está,<br />

como ia dizendo...entra a curiosidade. Exatamente...Nesse instante ele<br />

dá um longo suspiro, para mostrar que estava pensando e para reforçar<br />

mais sua opinião.<br />

- Nesse ponto, sempre tivemos opiniões iguais...Somos muito parecidos...meu<br />

benzinho, afirmou desanimada.<br />

- Como? Assustado: - Sim, realmente…É ... Como eu sempre te falei.<br />

Acho que concordamos na maiorias das coisas. Nossas divergências são<br />

pequenas...coisas sem nenhuma importância...enfatizou Dr. Adamastor.<br />

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- Às vezes, chego a imaginar que você não gosta de ver novelas. Fica<br />

vendo para me agradar.<br />

- Não! respondeu, amedrontado. - Isso não! Sim, realmente, ou melhor,<br />

não exatamente, eu gosto de sua presença ao meu lado… Só isso...<br />

bastaria...mas, também, gosto das fotografias, dos cenários, até dos<br />

comerciais...É... Tem uns ótimos; aquele da cerveja, por exemplo...<br />

Uma maravilha. Gosto demais também dos papéis dos personagens.<br />

São grandes atores: Lima Duarte, Tarciso Meira... como é mesmo o<br />

nome daquela que gosto...É... Nós sempre nos demos bem... As pessoas<br />

parecem ter inveja do <strong>nosso</strong> modo de viver… exatamente…da maneira<br />

como nós combinamos...Entendeu?<br />

- Não sei bem, tenho dúvidas...<br />

- Dúvidas? Sim, exatamente... Você tem razões que a razão desconhece.<br />

Por sinal, uma bela frase. Mas há dúvidas que são comuns a nós dois.<br />

Por isso mesmo, nós somos parecidos: duvidamos e discordamos de<br />

coisas parecidas, às vezes das mesmas coisas. Entramos até em atrito.<br />

Mas, é nossa discordância que nos une. Eu gosto muito de ouvir você<br />

falar acerca das novelas. Pronto. Era o que queria dizer! Você entende<br />

muito delas. Essa, por exemplo, é muito boa. Estou percebendo que você<br />

a aprecia...<br />

- Que isso! Não acho tão boa assim. Sinto sono...como lhe falei.<br />

- Sim, realmente, esqueci...mas agora lembrei-me. É o que eu imaginava.<br />

Preparava-me para lhe falar isso. Vi você bocejando... há pouco.<br />

Também, depois de almoçar...Eu, na verdade, acho que existem novelas<br />

melhores...Não é também sua opinião?<br />

- Claro, seu bobo...<br />

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253


Essas conversas eram freqüentes, após as brigas ou bebedeiras, quando<br />

ocorriam as pseudo-relações. Ele evitava se expressar abertamente diante<br />

de Rosária. Sempre representava o personagem que ele julgava ser o<br />

da preferência dela; com isso evitava brigas e ser abandonado. Imaginava<br />

que ela não mais gostaria dele e o largaria, caso o conhecesse melhor,<br />

se soubesse como ele pensa. Daí, o seu cuidado ao conversar com ela,<br />

evitando falar acerca dos seus gostos e idiossincrasias. Os cuidados para<br />

conviver com a mulher aumentavam, mais ainda quando ela estava<br />

irada. No início do namoro ele bem que tentou; corajosamente mostrou<br />

seu modo de pensar indo contra os desejos de Rosária. Foi um fracasso,<br />

não conseguiu o que queria - não ir assistir ao filme desejado por ela -<br />

além disso, teve que se defender de vários sopapos.<br />

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Dias Amargos<br />

Dr. Adamastor envelhecia. Não mais conseguia sair de casa para trabalhar.<br />

O que era fácil de ser feito, passou a ser difícil: uma simples troca<br />

de lâmpada, o conserto da torneira que pingava ou dar um telefonema,<br />

eram adiados para o mês ou ano seguinte; às vezes, para sempre. Aos<br />

poucos tinha certeza de que a maioria dos seus planos jamais realizarse-iam,<br />

faltava-lhe energia; sua vida não mais era administrada pela sua<br />

vontade.<br />

Lembrava, com saudade, de um tempo distante, quando controlava,<br />

ainda, uma boa parte dos fatos à sua volta. Hoje, continua a percebê-los<br />

como durante sua juventude, mas, dentro dele, não mais existe o jovem<br />

do passado, capaz de provocar ou evitar os acontecimentos; ”Sou um<br />

velho: entretanto, continuo pensando, muitas vezes, com minha cabeça<br />

de jovem, esta não me larga. Vejo uma moça de vinte anos e a desejo,<br />

como se eu também tivesse sua idade.”<br />

Ele vivia, como todo velho, de recordações, de um passado que jamais<br />

retornaria. Quanto mais sentia as forças se extinguindo, a débil vontade<br />

diante dos fatos incontroláveis, mais ele abrigava-se no passado. Lá, na<br />

sua toca, ele se resguardava da tirania do presente, bem como da insensibilidade<br />

do futuro. No passado, bonito e forte, tinha sonhos; imaginava<br />

poder controlar seu destino; hoje, derrotado e alquebrado, dominado<br />

pelo ambiente, sente-se empurrado para um futuro cada dia mais estreito,<br />

afunilado, com uma única saída.<br />

Consciente de tudo, desesperado por conhecer sua incapacidade crescente,<br />

ele aguardava, a qualquer momento, sua última ancoragem. Não<br />

sabia quando e nem onde. Tinha pavor da chegada. Sua mente maldita<br />

mostrava-lhe, com clareza, o que temia e evitava: a perda do controle do<br />

barco; comandado, há muito, pelo leve sopro de um vento caprichoso,<br />

oscilante e sem rumo.<br />

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As recordações agradáveis ocorridas durante a infância e juventude,<br />

transformam-se, pela sua mente envelhecida, em lembranças nostálgicas.<br />

Sua mente, por mais que ele quisesse ludibriá-lo, o alertava de que<br />

era somente uma sombra do antigo Dr. Adamastor, um espectro horripilante.<br />

Do passado, restam a saudade e a tristeza. No presente se dissipava<br />

ao submeter-se à natureza que o consumia sem importar com sua<br />

dor ; servia, como escravo, ao indiferente senhor alheio ao sofrimento<br />

do servo.<br />

Nos seus devaneios, retornava à antiga solidão do passado; infeliz, sem<br />

dúvida, mas melhor do que agora. Hoje, ligado a Rosária, tinha que<br />

falar e discutir todos os dias com ela, pela qual não sentia mais nada;<br />

entretanto, assustava-se pela possibilidade de ficar só. Estava preso para<br />

sempre a um relacionamento formado pelos desencontros e não pelas<br />

alianças. Fugia dela como podia; evitava olhá-la, escondia-se dentro de<br />

sua clausura; ficava mais tempo no banheiro; na cama - fingindo dormir;<br />

ligava a TV, mesmo quando nada desejava ver. Mas precisava dela. Durante<br />

o namoro, ao contrário, fazia tudo para vê-la: a esperança tornava<br />

seu mundo diferente; viajava centenas de quilômetros para se encontrar<br />

com ela, alegre, principalmente otimista.<br />

Olhando para ela, Dr. Adamastor refletia com pesar: “á medida que o<br />

tempo passou, o meu esforço para viver bem com Rosária foi em vão. A<br />

relação amorosa, que antes imaginei existir, transformou-se em brigas e<br />

mais brigas, discussões inúteis, pirraças, desencontros, traições de ambos<br />

os lados; tudo do que antes eu tinha pavor. Como somos outros!”<br />

Naquela manhã, ele demorou a sair da cama, como vinha acontecendo.<br />

Com muito custo, lentamente, sentou-se à mesa para tomar o lanche.<br />

Ele emagrecia; a cada dia seu apetite era menor. Sem ter tomado o café<br />

da manhã, maquinalmente, foi à geladeira pegar uma garrafa de cerveja,<br />

observado pelos olhares curiosos e críticos de Rosária. Entretanto, nem<br />

mesmo a cerveja o atraía mais, tudo para ele era aborrecido e difícil de<br />

terminar.<br />

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256


Nuvens escuras cobriam quase todo o céu; um vento úmido e frio, seguido<br />

de trovoadas e relâmpagos, anunciavam a pesada chuva que cairia<br />

daqui a pouco. Os dias chuvosos e escuros sempre lhe fizeram mal; sua<br />

bronquite e reumatismo pioravam, aumentavam as dores nas costas e<br />

nas mãos, dores, a cada dia mais insuportáveis, principalmente as do<br />

calcanhar, terríveis, logo ao se levantar.<br />

Ela buscou um cobertor e o colocou sobre os pés esqueléticos e fracos;<br />

pôs o café forte e grosso, coado na hora, na xícara preferida, com carinho,<br />

mas sem deixar de esbravejar:<br />

- Não vai ficar aí, parado o dia todo! Ontem ficou o dia todo deitado,<br />

hoje, depois que saiu da cama, encostou na cadeira-do-papai. Que<br />

preguiça! É isso. Aposenta; não quer fazer mais nada. Fica deitado como<br />

morto.<br />

- Sim, exatamente, você acertou: estou me sentindo assim, balbuciou<br />

com dificuldade, - Não estou bem... De uns dias para cá, comecei a pensar<br />

se vale ou não a pena continuar a viver...não consigo fazer mais nada!<br />

- Vire essa boca prá lá. Que idéia idiota. Você, de vez em quando, tem<br />

essa mania de ficar pensando acerca da vida... do significado... A vida<br />

foi feita para ser vivida, quanto mais sem sentido melhor; não para<br />

ser pensada. Se filosofarmos muito, não agiríamos, pois cada ato seria<br />

criticado antes de sua realização, já dizia um filósofo. Faça como eu: em<br />

vez de pensar, mexo em coisas; arrumo uma mesa, lavo um copo, dou<br />

um telefonema, assisto a uma novela, vou à loja. Não sigo uma linha<br />

invisível que coordena tudo; tudo para mim tem o mesmo valor. Se não<br />

tenho nada para fazer, nada mesmo, discuto sobre qualquer coisa. Fico<br />

boa logo.<br />

Mas, Rosária, enquanto se expressava, conversava também consigo<br />

mesma. Nesse instante ela olhava para ele e o examinava: “Há bastante<br />

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tempo perdi o meu interesse por você. O que há agora que me atrai?<br />

Nada, nada mesmo. Parece mais morto do que vivo; velho, feio, doente e<br />

bêbado. Nunca foi lá essas coisas, não é e nunca foi carinhoso... Foi, até<br />

anos atrás, trabalhador, hoje só sabe queixar de tudo... Sinto vergonha<br />

desses pensamentos, mas eles são meus, não posso me enganar. Tapeio<br />

os outros, a mim não...”<br />

- Vamos, tome seu café antes que esfrie e eu tenha que arrumar outro.<br />

Tenho muito que fazer! voltou a reclamar.<br />

- Eu sei disso, você se anima com qualquer coisa, com qualquer<br />

bobagem, como lavar uma roupa, passar uma calça ou com suas novelas...gemeu,<br />

examinando-se, comparando-se com o que era: “Estou cada<br />

vez pior, com essa dentadura que parece estar sempre saindo da boca,<br />

careca, deixando tudo cair das mãos sempre tremendo. Repetindo as<br />

mesmas histórias contadas. Os que me vêem sabem que não estou bem,<br />

alguns chegam a evitar me encarar, de dó. Tenho sono durante o dia<br />

e, muitas vezes, cochilo quando não desejo. Quando me deito, durmo<br />

rapidamente, mas acordo logo, várias vezes. Nesses momentos, levantome<br />

e vou ao banheiro. Depois, sem sono, caminho pela sala, olhando<br />

os móveis tristes e solitários como eu, velhos conhecidos meus. Dialogo<br />

com eles acerca de nossas ligações, de acontecimentos que eles testemunharam...dos<br />

segredos que eles guardam.<br />

Como invejo seu silêncio e imponência. Não gosto desses pensamentos<br />

estranhos. Esmagado pelo silêncio da casa, vou até à janela na esperança<br />

de ver algo interessante na madrugada vazia. Fico na expectativa de<br />

presenciar um roubo ou crime. Quem sabe será hoje? Nunca observo<br />

nada, só o vazio, a quietude escura, dormindo. Nem os gatos aparecem<br />

para me estimular, para que sinta, pelo menos um pouco, da vida que se<br />

esvai. Diante da indiferença daquele mundo, automaticamente dirijome<br />

à geladeira, não tenho fome nem sede, verifico se a porta está bem<br />

fechada; examino se não vaza gás, se as janelas estão bem fechadas. Retorno<br />

ao banheiro, acendo a luz e conto os azulejos da parede, tentando<br />

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descobrir qual deles foi colocado erradamente...amolado com essas imposições<br />

tolas, perco totalmente o sono. Espero o demorado nascer do<br />

dia. Imagino que, daqui a pouco, terei que encontrar minha mulher. Ela,<br />

como eu, está cada dia mais feia. Que bom ela dormir no outro quarto,<br />

fico longe dela, pelo menos à noite. Entretanto, apreensivo, espero a<br />

repetição, pela manhã, de sua conduta, sempre a mesma. Sei que após<br />

acordar ela irá ao banheiro fazer seu demorado xixi, cantarolando “ com<br />

minha mãe estarei/ na santa glória um dia...” e outras modinhas das procissões.<br />

Depois dá, com raiva, demoradamente, a barulhenta descarga.<br />

Mais leve, vem procurar-me para conversar: despenteada, dentro de sua<br />

camisola de cetim azul, engraçada, larga e velha. Entra no quarto nas<br />

pontas dos pés mas, ao mesmo tempo, esbarrando em tudo, fazendo um<br />

barulho incrível para verificar se já estou acordado. Para isso, perguntame<br />

se já acordei. Respondo que não, que falta muito ainda para que isso<br />

ocorra. Diante de mim, ela lambuza os braços e pernas com um creme<br />

branco e uma colônia malcheirosa de alfazema. A conversa, sem direção,<br />

começa: “Desculpe, benzinho... não sabia que estava dormindo.” Detesto<br />

essa palavra: “benzinho”; ela me lembra as prostitutas da zona boêmia<br />

da cidade. Todas elas, todas mesmo, chamavam seus clientes desse<br />

modo. Fui chamado várias vezes, por diversas delas, com esse mesmo<br />

termo usada por Rosária. Não sei com quem ela aprendeu esse som que<br />

nunca me largou. Depois desse “benzinho” fingido, com o mesmo timbre<br />

e tonalidade ela continua ” Vim saber se está tudo bem como você”.<br />

Sem mais nem menos, começa a recitar a poesia: “Bom dia amigo Sol...”:<br />

onde ela declama o frescor da manhã, a beleza do céu azul e claro, o sol<br />

ardente. Esta poesia, a única que ela conhece, foi decorada no tempo em<br />

que ela estudava no Colégio Santa Maria. Nessa ocasião coube a Rosária<br />

recitá-la para suas colegas no início da primavera. Ela repete sempre essa<br />

chatura, mesmo quando o céu está escuro e chovendo como hoje. Depois<br />

me pergunta se não tive nada durante a noite, isso é, se não morri,<br />

o que ela mais quer. O que ela espera é, numa bela manhã de sol anil,<br />

como descreve a poesia, me encontrar já frio. Sei que gritará ao me ver<br />

esticado na cama. Comentará chorando, durante o velório, que fui o seu<br />

grande amor, a pessoa mais importante na sua vida. Mas, após o enterro,<br />

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estará cantando, rindo e recitando “Bom dia amigo Sol”, um pouco mais<br />

alegre e entusiasmada do que nos outros dias. Mas não fica só nisso, logo<br />

em seguida começa a comentar:<br />

“Você reparou ontem como Lucinho estava nervoso? Penso que os<br />

tratamentos estão errados. Que crise! Terrível! Esse novo psiquiatra, tão<br />

bem recomendado, ainda não mostrou serviço. Roberta não dormiu<br />

em casa, nem deu notícias, nem um telefonema; deve ter dormido na<br />

casa daquele seu amigo travesti. Não tem jeito com ela, não. Agostinho<br />

tossiu a noite inteira. Você ouviu? É aquela maldita tosse que ele tem<br />

desde pequeno; acho que é alergia, minha mãe também sempre teve;<br />

já falei com ele para ir ao médico, ele não vai... Pode ser pneumonia,<br />

ou pior ainda, uma tuberculose, acaba morrendo! Ai, como eu sofro<br />

com essas coisas!” Terminada toda essa logorréia chata, ela passa a<br />

falar acerca de Cândida, a empregada: “Cândida ainda não acordou,<br />

fica rezando até tarde em vez de dormir. Quando não está rezando,<br />

está ouvindo o radinho que demos a ela. Eu falei para você: não dê esse<br />

tipo de presente. Você não quis me ouvir. Essa gente não pode ter essas<br />

coisas, não. Ao ouvir rádio, fica à-toa, além disso gasta muita energia.<br />

Não entendo para que tantas orações! Será que ela tem muitos pecados<br />

que não sabemos? Acho que ela rouba, não muita coisa: um pouco de<br />

farinha de trigo e de arroz, também uns panos de prato. Eu sei que ela<br />

leva essas coisas para o barracão da irmã, a que ficou viúva. Lá não tem<br />

nada; você não conhece o lugar, mas eu já fui lá por duas vezes. Nossa<br />

casa está cheia de poeira. Ela limpa muito mal. Penso em mandá-la<br />

embora, mas depois, quem vamos arrumar? Você não acha?” Falava e falava...<br />

Sem esperar qualquer comentário meu ela continua: “É tão difícil<br />

uma boa empregada... Antigamente era mais fácil, era só ir ao interior<br />

e trazer uma, todas boas e trabalhadeiras e não pediam um salário alto.<br />

Hoje, tudo mudou, o mundo é outro. Essa gentinha manda na gente, se<br />

a gente bobear - você é que não entra na cozinha, e não observa essas<br />

coisas - ela nos passa para trás. Homem nenhum olha isso, eles só<br />

sabem reclamar. Por isso, benzinho, é que todo homem sem mulher<br />

fica pobre. As empregadas desperdiçam tudo, não têm dó da gente. Os<br />

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homens não enxergam, quando vêem, nada falam. Nós, mulheres, não,<br />

ficamos ali, olhando, vigiando. Elas não gostam, ficam com raiva. Que<br />

me importa, eu gosto de tudo certo, no seu lugar. Comigo é assim, tudo<br />

como eu gosto. Se não fosse eu, que sou econômica, seu dinheiro já<br />

teria desaparecido. Às vezes, tenho pena de você e penso: como irá se<br />

arrumar se eu morrer antes? Os filhos, você sabe, não ligam para nós,<br />

só pensam neles mesmos. É cada um pra si”. Eu ficava parado fingindo<br />

estar ouvindo, continuava Dr. Adamastor, nas suas reflexões. Ela sempre<br />

tentou mudar os fatos fazendo comentários, principalmente queixas,<br />

a respeito deles. “Ela falava a respeito de tudo; da conversa acerca da<br />

empregada, passava, com facilidade, para as queixas sobre as dores nas<br />

costas, nos joelhos, nas pernas, nos dedos ou para as doenças da mãe de<br />

Cândida, do filho do vizinho. Tudo tinha a mesma importância para ela,<br />

seus valores nunca obedeciam a uma hierarquia de preferências. Para<br />

alegrar-me, ela fingia, por segundos, estar interessada nas minhas dores,<br />

mas mudava rapidamente de assunto, logo que pensava que já tinha<br />

gasto tempo bastante longo com problemas insignificantes. Sabia que<br />

no fim do ano ela piorava. Tornava-se mais falante, animada, raivosa e<br />

pintava os cabelos de cores brilhantes, ficando mais feia ainda. Era um<br />

tormento vê-la tendo os olhos esbugalhados, constantemente, falando<br />

com a boca espumando, sobre qualquer coisa. Depois, lentamente, ficava<br />

quieta, com o cenho triste, balbuciando poucas palavras. O seu guardaroupa<br />

era mudado. Passava a usar vestidos cinza e deixava de pintar os<br />

cabelos, ficando grande parte do seu tempo na cama. Suas conversas,<br />

nessas ocasiões, eram queixas acerca de tudo, principalmente de sua<br />

saúde; imaginava estar com câncer, tuberculose, hepatite e toda a gama<br />

de doenças graves que porventura existam. Começava a ir aos médicos,<br />

quase diariamente, fazia exames e mais exames, ficando aborrecida<br />

quando lhe afirmavam que ela não tinha nenhuma doença e que tudo<br />

era “psicológico”. Olho-a, numa fase ou outra, com uma grande tristeza e<br />

desanimado, ora acusando alguém, ora com suas queixas intermináveis.<br />

Consigo, com muito custo, lembrar-me da mulher que encontrei, há<br />

muito, no baile do DCE, de como fiquei encantado com ela, com imenso<br />

desejo de abraçá-la e beijá-la. Agora, por essa que se encontra na minha<br />

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frente, sinto aversão. Não mais residem nela os encantos que existiam<br />

naquela bela e faceira moça que conheci. Pergunto-me: onde andam<br />

seus lábios avermelhados, grossos, sedutores, hoje, murchos; seus olhos<br />

azulados, vivos e brilhantes, hoje, opacos, quase mortos; seu corpo<br />

sedutor, seu busto firme, sua cintura delgada? Tudo isso não existe mais.<br />

Ela transformou-se. Sei que o mesmo aconteceu em relação a mim. Eu<br />

também era outro, um jovem apreciável, que não precisava ter vergonha<br />

de se mostrar, como tenho agora. Até meu nariz, que era o meu charme,<br />

parece ter crescido e abaixado, mais nada tenho de apresentável. Não<br />

atraio mais ninguém, nem mesmo minhas antigas namoradas, que,<br />

também não estão lá essas coisas...Até elas, se puderem, escapam de<br />

mim...Também pudera! Só mesmo fugindo. As mulheres desconhecidas,<br />

estas, nem me notam. Para elas não existo como homem, sou olhado<br />

como um velho que necessita de piedade. Seria aquela ali, encurvada<br />

na cadeira, com suas grossas pernas abertas, a mesma mulher na qual<br />

eu percebera existir uma grande inteligência, ter alma boa, ser pura e<br />

atraente? Procurava de todos os modos enxergar algum resto da moça<br />

que encontrei, embriagado, no DCE, naquele baile de carnaval. Fechei os<br />

olhos, tentando, em desespero. Tudo em vão. Nada! Visualizava vestígios,<br />

disformes. A antiga desaparecera no tempo, não restava mais nada,<br />

morrera. O que pensaria de mim minha querida Silbene, se me visse<br />

agora? Será o mesmo que Rosária pensa? Creio que sim! O que Rosária<br />

pensa de mim? Ela ainda desconfia de minhas saídas, quando vou ao<br />

médico tratar de minha hepatite crônica. Imagina que vou à procura de<br />

alguma mulher. Que bom seria se assim fosse...Mas, o que adiantaria?<br />

Nesse estado, eu não seria aceito. Do mesmo modo, eu também escondo<br />

o que penso dela e dos filhos. Sou obrigado, pelas circunstâncias da vida,<br />

velhice, hábito , estupidez e muitas outras coisas que não compreendo,<br />

a viver com uma mulher que nada tem a ver com a desejada por mim.<br />

Melhor teria sido se a tivesse largado. Rosária é desajeitada, corpulenta,<br />

desarrumada, até sem higiene, porca mesmo, envelhecida, tudo o que<br />

não queria, principalmente no fim da vida. Ela, da antiga, tem o nome,<br />

este ainda não mudou, e o tom de voz esganiçado...Ela não pára de falar,<br />

só se cala quando descobre que não estou mais junto dela. Eu, em lugar<br />

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de escutá-la, observo-a negativamente, como age o médico diante do<br />

cliente, diagnosticando uma doença ruim. Num certo momento ela se<br />

levanta e caminha para a cozinha, resmungando por ter que lavar os<br />

talheres que Cândida não lavou. Infalivelmente, sempre repete: “Minha<br />

vida é tão ruim! Não sei por que me casei...Você precisa conversar com<br />

sua filha, já que ela não me obedece. E uma vergonha para nós, principalmente<br />

para você, ter uma filha desmiolada como Roberta, uma<br />

vagabunda é o que é, para não falar outros nomes.” Nomes que ela fala a<br />

toda hora... Eu continuo a olhá-la e a procurar a Rosária que sumiu, que<br />

conheci há anos. Não a encontro, só vejo imagens nebulosas. Todas as<br />

minhas manhãs começam assim...”<br />

Até esse momento, o Dr. Adamastor estava parado, assentado na cadeira,<br />

diante de seu café que Rosária lhe havia servido, sem tomá-lo, quando<br />

Roberta chega em casa.<br />

- Bom dia, pai, dormiu bem?<br />

- Sim e você? “Ela sabia que estava mentindo. Perguntou já sabendo da<br />

verdade: tinha certeza de que eu havia dormido mal. Como dormir bem<br />

naquele inferno? Ela também fazia parte da farsa, da peça teatral familiar,<br />

exibida diariamente e na qual, nós éramos autores, atores e platéia.<br />

Tínhamos que continuar a representação até a morte. Nunca ninguém<br />

perguntou para quê e por quê encenar aquela tragicomédia. Parar,<br />

nesse momento, quebraria o sistema construído há anos. Todos estávamos<br />

acostumados com essa peça, nossa vida fluía e dependia de sua<br />

representação. O teatro da vida familiar tinha vários atos: festinhas de<br />

aniversário, de casamento, as comemorações do Natal, o dias das Mães.<br />

Essas atividades foram incorporadas à rotina familiar; eram necessárias<br />

para dar os significados à vida. Ninguém duvidava ou ousava quebrar<br />

essa tradição. Iríamos repetir o ritual até à morte; era preciso seguir essa<br />

rotina; caso agíssemos diferentemente ninguém mais saberia como e o<br />

que conversar; o que e quando fazer; como e para que viver... Éramos<br />

reconhecidos, assimilados e aceitos agindo do modo esperado, conforme<br />

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o “ script” decorado pela mente conformada de cada um dos personagens<br />

obstinados. A família se acostumara com tudo isso, estava bem<br />

adaptada. Vivia nessa harmonia conhecida, ao trocar mensagens falsas.<br />

O expressado era muito mais para esconder o pensado do que para<br />

mostrar o imaginado. Se alguém ousasse quebrar a estratégia doentia,<br />

onde o saudável era o doentio, todos estranhariam a nova tática usada.<br />

Estávamos habituados às falsidades de cada um, como regras de um<br />

jogo. Todos, implicitamente, aliaram-se para encenar a farsa, não havia<br />

mais criatividade para provocar mudanças. Se alguém, mais ousado,<br />

tentasse questionar as leis e os dogmas ali adotados, seria excomungado<br />

do grupo familiar. Como cada um foi gerado por essas regras e se identificava<br />

com elas, caso ocorresse uma transformação, eu não mais seria eu;<br />

seria visto como outro, um completo desconhecido. Do mesmo modo,<br />

cada um dos membros da família ficaria irreconhecível, pois acostumamos<br />

a nos ver através dos reflexos desse espelho partido, estreito e<br />

fechado, que nos aprisionou para sempre. Todos na família se conheciam,<br />

reconheciam e se relacionavam ajustados, pelas máscaras usadas<br />

no papel designado para cada um, determinadas pelo comando abstrato.<br />

Penso em perguntar a Roberta por que não dormiu em casa, não me<br />

atrevo a tanto, poderia ser agredido. Essa indagação, há muito, não pode<br />

ser mais cogitada.”<br />

Chega à mesa Agostinho, que ainda não lavou o rosto.<br />

- Bom dia para todos, dormi demais; tive sonhos estranhos. Sonhei que<br />

estava num lugar diferente daqui, parecia um grande e poderoso mar.<br />

Tentava realizar um trabalho e não sabia como era nem como fazêlo.<br />

Não podia pensar sobre minha atividade pois não tinha conceitos,<br />

símbolos, para denominar cada fato e os processos do trabalho. As ações<br />

eram feitas ao acaso; como um cego eu não sabia que caminho deveria<br />

tomar. Vocês já imaginaram um mundo diferente, no qual teríamos que<br />

agir sem essas bússolas: as idéias que aprendemos; um mundo onde só<br />

existissem imagens não interligadas, que ainda não receberam nomes<br />

ou classes e estão soltas no tempo e espaço, precisando ser organizadas<br />

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e ninguém sabe como? Acho que os outros animais são assim e, nos<br />

sonhos, nós também perdemos boa parte de nossa capacidade para classificar<br />

os atos e o mundo à nossa frente.<br />

- Tá muito difícil, para mim, compreendê-lo, replicou, com displicência,<br />

Roberta.<br />

- Não tem importância, o sonho é meu e deve ser entendido por mim.<br />

Seria arriscado reconstruir o já construído, o conhecido. Já nos acostumamos<br />

com esse modo de organizar os acontecimentos. A maioria não<br />

suportaria a confusão de um mundo diferente.<br />

Dr. Adamastor continua suas reflexões: “Estranhamente, noto muito<br />

contrariado que nos últimos anos, quando ia visitar minha amiga, uma<br />

vez por semana, não mais conseguia ficar entusiasmado como antigamente.<br />

Antes falávamos amenidades, brincávamos, nos amávamos, agora,<br />

quanto mais me aproximava de Silbene, por mais que eu desejasse,<br />

começava a me queixar de Rosária, da velhice, das dores. Passei a falar<br />

apenas das coisas ruins. Por isso, quase não a procuro mais. Também<br />

para que, para queixar-me? Não vejo saída para meus males, sinto-me<br />

perdido! Deve ser o fim que está próximo...”.<br />

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Deixem-me Viver<br />

Naquela tarde, após a discussão com os irmãos, Lucinho, a cada momento<br />

mais confuso, recordava as conversas tidas com Virgínia e as terapias<br />

a que se submeteu. Começava a duvidar de tudo: “A verdade não era<br />

nada mais nada menos do que um modo de ver o mundo particular de<br />

cada um num certo momento!” Devia desistir de encontrá-la?<br />

Sentia raiva de Roberta mas, ao mesmo tempo, tinha por ela simpatia;<br />

via seu esforço para esconder a tristeza, a dificuldade de encontrar<br />

seu próprio caminho. Ela se parecia muito com ele, todos se pareciam,<br />

concluía. Pensava nas saídas possíveis para escapar do labirinto onde<br />

se aprisionara. Algumas vezes pensou em se matar, acabar com o tormento<br />

que o dominava, outras em abandonar a busca. Refletia acerca<br />

do conselho de sua irmã: “ através da fé, poderia, como muitos, se sentir<br />

em paz, ficar imune às amolações do dia-a-dia.” Mas, as terapias às quais<br />

se submeteu, todas foram assimiladas com muita fé, entretanto nenhum<br />

resultado tiveram. Sua vida talvez tenha piorado.<br />

“Como me examinar com mais profundidade?” Chegava também à<br />

conclusão de que isso não era possível; era um sonho transmitido pelos<br />

analistas. Foi nesse estado em que Lucinho se encontrava, ao se assentar<br />

para o jantar, mesmo não sentindo nenhum apetite.<br />

Estava atormentado, tomado por idéias contraditórias; não conseguia<br />

organizá-las harmonicamente. Percebia que uma coisa é ter boas idéias,<br />

outra é assimilá-las e segui-las, sem pensar, nos momentos de emoção.<br />

“O que fazer?” Ele continuava a discutir consigo mesmo:<br />

“Será que sempre terei que usar idéias dos outros? Ando cheio delas...<br />

Mas não consigo ter as minhas. Aceito as idéias dos outros como se elas<br />

fossem melhores do que as minhas. Eu não tenho capacidade para fazer<br />

boas escolhas, minha mente está cheia de idéias negativas a meu respeito!<br />

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Cada um dos terapeutas que procurei acreditava possuir a verdade.<br />

Demorei para encontrar um que parecia saber mais que os outros, caio<br />

no Dr. Erasmo, que imagina saber mais do que todos juntos. Ao mesmo<br />

tempo que não quero ser comandado por ninguém, mas, lamentavelmente,<br />

não acredito no meu próprio comando. Ora, continuadamente<br />

endeusando raciocínios que seus donos não seguem e nem mesmo neles<br />

acreditam! Como saber qual será o melhor para mim? Sei que a clareira<br />

que abri não tem me levado aonde quero. Essa é uma certeza, uma das<br />

poucas que tenho.<br />

Para complicar, penso que, se tenho direito à liberdade de escolha, posso<br />

não querer ser Eu próprio e buscar ser um outro Eu, o alheio, o que segue<br />

e imita os outros. Por que não? A maioria imita. Todos vivem a vida<br />

que lhes foi imposta pelos que os educaram. Educação não é exatamente<br />

impor normas e valores? Obrigar-nos, sem que percebamos, a pensar<br />

de um modo? Os educadores inocularam a vacina nas nossas mentes<br />

antes que tivéssemos meios de refutá-las. São essas marcas alheias e<br />

antigas que me dominaram. Muitas dessas, nem sei quais, dissolveramse,<br />

suavemente, na minha água cerebral, aparentemente sumiram, mas<br />

marcaram-me para sempre. Não mais distingo as idéias úteis das nocivas,<br />

as alimentadoras das destruidoras.<br />

Critico os terapeutas com as idéias do professor. O Dr. Erasmo critica<br />

as idéias dele... Todos criticam todos. Como saber se as idéias que tenho<br />

vão me levar a ficar mais perto ou mais afastado de mim? Escutei conversas<br />

e palpites, tudo transmitido como se fossem ensinamentos corretos<br />

e profundos. Entretanto, a maioria, me confundiu. Não mais sei onde<br />

me apoiar...<br />

Não sei se foi bom aprender ou se seria melhor ignorar o que vai pelo<br />

mundo; continuar a ser, eternamente, criança. Por que fui crescer? Que<br />

saudades da irresponsabilidade! Que lembranças ternas e saborosas do<br />

tempo de menino. Lembro-me do calor do leite sugado da mamadeira,<br />

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inocente, deitado no colo acolhedor de minha mãe, ouvindo canções<br />

cheias de sonhos românticos. Tudo isso me confortava, me trazia a paz<br />

que hoje não mais tenho. É difícil viver como adulto... isso me obriga a<br />

estar sempre de olhos abertos... Seria tão bom se pudesse não pensar em<br />

nada, agir sem refletir... Sonho com a liberdade mais elevada, livre de todas<br />

as obrigações impostas pelas crenças assimiladas. Sei que isso é impossível<br />

mas posso desejar. Estou acorrentado para sempre às pressões<br />

impostas pela sociedade. Tenho que decidir, escolher uma profissão e<br />

trabalho, casar ou não, ter filhos ou não, comprar o oferecido e usado<br />

por todos, pagar as contas, respeitar os outros. Tenho que administrar<br />

minha vida aprisionado aos desejos que não são meus. Para tudo há<br />

regras e mais regras; vivemos cercados pelos deveres diversos, absurdos<br />

e conflitantes; tudo para que nos tornemos bem adaptados socialmente...<br />

Pior ainda, estou cada dia mais aprisionado às doutrinas que foram ensinadas<br />

para me libertar.<br />

Estou plantado no lamaçal que deu origem ao que sou. Deste nasceram<br />

muitos espinhos, poucas flores. Em certa época, aparecem espinhos,<br />

noutra, flores...Todos brotaram das mesmas sementes...Por que uma<br />

produz mais espinhos, outra mais flores, mais idéias saudáveis do que<br />

doentias? Seria, como no alfabeto, conforme a distribuição das letras? As<br />

letras do alfabeto são poucas em número...mas com elas formamos todas<br />

as palavras, feias e bonitas, boas e más, frias e quentes. Mas o que dirige<br />

ou determina essa distribuição? Ela acontece aleatoriamente? Talvez o<br />

número de idéias armazenadas seja, mais ou menos, semelhante para<br />

todos nós... Mas sua coordenação, numa certa ordem, é que faz a diferença...<br />

Meu azar foi estar organizado defeituosamente. No meu cérebro<br />

as letras criaram mais pesares do que alegrias.<br />

Percebo que posso tomar vários caminhos...Entretanto, um mais poderoso<br />

me domina atrapalhando o exame dos outros, dificultando o<br />

exame de novas idéias.<br />

Para o professor, sou um homem de valor; tenho tudo de bom. Mas ess-<br />

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es instrumentos para me examinar pertencem a ele, que me vê assim. Eu<br />

não! Antes, tinha outras medidas para me avaliar. Só agora as percebo<br />

como erradas. O que eu pensava de mim era mentira. E agora concluo o<br />

quê? Sou uma pessoa bonita e feliz, para as explicações do professor... E<br />

para mim? Ou tudo não passa de outra mentira, na qual passei a acreditar<br />

provisoriamente? Nunca sei se sou uma coisa ou outra... É a ordem<br />

na desordem, já era tempo...Mas já fui tapeado tantas vezes; tenho medo<br />

de estar entrando em outra enganação. Não sei se lucidez é irracionalidade<br />

ou racionalidade...<br />

Todos afirmam que a verdade tem que vir de mim. Mas essa afirmação<br />

não é uma verdade dos outros? Devo segui-la? Gostaria de ser outro.<br />

Quem garante que com algumas de minhas idéias eu conseguirei examinar<br />

as outras? Ninguém! Sempre busquei certezas... A cada dia mais<br />

percebo que estas, de fato, não existem. Ou existem? Tudo está escuro...<br />

Estou mal...Acho que vou ter uma crise...Não me controlo”.<br />

Lucinho se levanta da cadeira, caminha pela sala e, por onde passa, joga<br />

ao chão tudo que está à sua frente, tudo muito rápido. Não se altera<br />

diante do olhar crítico da irmã, que chega apressada da cozinha ao ouvir<br />

o barulho. Agostinho tenta agarrá-lo. Roberta sai da sala, rindo, desanimada.<br />

Ele, correndo, enfia as mãos onde estão guardadas as louças usadas para<br />

as visitas e joga-as longe, quebrando tudo num só tempo. Entra Dr.<br />

Adamastor, xingando e ordenando-lhe parar; Lucinho não dá importância.<br />

Diante do barulho, Rosária sai do banheiro, arrumando, desajeitadamente,<br />

suas roupas mal colocadas. Pára diante dele, séria e sem nada<br />

dizer. Olha fixamente em sua direção. Neste instante, como por milagre,<br />

seus olhos, até então, furiosos, tornam-se dóceis. Há uma pausa, um<br />

momento de silêncio; magicamente, Lucinho se transforma; paralisa-se,<br />

abaixa a cabeça diante dos olhos azuis brilhantes de sua mãe, como se<br />

examinasse os cacos de vidros de cores, formas e tamanhos diferentes,<br />

que se espalharam. Mostra uma mistura confusa de emoções, ira, amor,<br />

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pavor e obediência. Aprisionado ao domínio e proteção, ele começa a<br />

soluçar como uma criança impotente diante da mãe poderosa. Regride,<br />

enfraquece-se, dobra-se, docilmente. Seus músculos, antes tensos,<br />

amolecem como geléias; lágrimas escorrem pelo seu rosto pálido. Sua<br />

boca se abre como que pedindo o leite materno. Lucinho caminha a passos<br />

lentos, em direção a sua mãe, sua segurança e fonte de energia, que<br />

o recebe com braços abertos. Ele passa de violento e forte a dócil e fraco.<br />

É, nesse estado, que ele abraça a mãe, suplicando:<br />

- Ajude-me, preciso de você, tenho vontade de morrer. Não me abandone!<br />

Volta-se para o pai e protesta com raiva, interrompendo o choro convulsivo:<br />

- Você é o culpado! Você é o culpado!<br />

O silêncio retorna; ouvem-se apenas os soluços de Lucinho, que caminha<br />

trôpego para o quarto, amparado pelos braços da mãe, segura de sua<br />

força. Prontamente, deita-se, respira fundo, serenamente dominado<br />

pela sua presença... Agora, ele é outro. Logo depois já está dormindo.<br />

Deitado no colo da mãe, mostra um sorriso dúbio: misto de felicidade e<br />

desesperança. Descansa, por instantes, aprisionado nos braços flácidos e<br />

fracos, mas protetores e poderosos, de Rosária.<br />

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270


O Desespero<br />

Lucinho, ainda sonolento, tentava compreender as razões de sua crise e<br />

o que o levava a ficar tão controlado pela mãe. Ao sair do quarto cruzou<br />

no corredor com Roberta, que, como sempre, comentou, em voz alta,<br />

para ele ouvir:<br />

- Está com uma cara de mau! Parece furioso... Hoje, está mais encurvado...<br />

fungando; até seu cheiro mudou...Pelo que vejo, a terapia não está<br />

funcionando...somente a dela dá resultados...<br />

Ele retornou desorientado ao quarto, caminhou até à janela; ali ficou<br />

parado; olhava para o horizonte ensolarado, muito distante... Não sabia<br />

onde fixar seu olhar oscilante... na rua, nas montanhas azuladas e fortes,<br />

nas pessoas que passavam, ou nele próprio...<br />

“Estariam preocupados como eu?” perguntou-se. “Ao ouvir Roberta,<br />

percebi, com nitidez, que as pessoas têm acesso fácil à intimidade dos<br />

outros. Imaginava que meus segredos, bem como meu modo de ser,<br />

eram coisas minhas, não públicas; que ninguém nem se preocupava com<br />

minha intimidade. Entretanto, percebo, mais uma vez, que estava enganado.<br />

Como vivo iludido! Minha mente, para me proteger ou enganar,<br />

esconde ou deforma a realidade que me é apresentada.<br />

Que pistas eu dou? Que sinais brotam do meu corpo, dando origem às<br />

conclusões que cada um forma a meu respeito? Notava que uns selecionavam<br />

trechos da fala, outros isolavam aspectos visíveis da conduta.<br />

Alguns iam mais longe, descobriam os “traços” por trás da conduta,<br />

o motor gerador de várias condutas, “ele é dependente”; “ ele procura<br />

riscos e novidade”. Através desses traços - abstrações, puras abstrações,<br />

jamais percebidas, meu interlocutor e observador atento ia mais longe,<br />

imaginava outras possíveis condutas não observadas: “se é dependente<br />

ele procura seguir as opiniões a respeito das roupas que deve usar, dos<br />

lugares onde se divertir...” Do mesmo modo como os fatos eram sele-<br />

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cionados aleatoriamente, as interpretações também o eram, seguiam a<br />

mesma desordem lógica. Mas todos acreditavam nas suas profecias, com<br />

muita fé...<br />

Tornava-se claro para mim que fornecia pistas às pessoas, sinais que<br />

lhes indicavam meus objetivos, emoções, até minhas idéias, tudo que<br />

julgava estar bem escondido. Mostrava, ora um corpo mais encurvado,<br />

ora a testa franzida, também um tom de voz mais alto, uma mudança na<br />

cor da pele, uma inquietação nas pernas, uma tosse seca, um suor que<br />

escorria. Tudo me exibia, escancaradamente, para os olhares e mentes<br />

atentas. As pessoas me conheciam mais do que eu imaginava. Não eram<br />

apenas os psicólogos que faziam interpretações acerca da conduta ou<br />

do modo de pensar e reagir, eram todos... Todos me interpretavam, de<br />

vários modos...<br />

Notei que eles, como eu, possuíam e eram possuídos por algumas teorias<br />

leigas vulgares, o que permitia o entendimento e a comunicação delirantes<br />

ou alucinatórias, entre elas. Nós éramos capazes de decifrar e<br />

interpretar, as pistas exibidas, usando as mesmas idéias e palavras, que<br />

faziam parte do corpo do esquema delirante comum. As noções falsas,<br />

os óculos embaçados de cada um, serviam de fundamentos para decifrar<br />

os fatos ocorridos. Não foi difícil descobrir que ser mineiro, belo-horizontino,<br />

andar encurvado significava, conforme essas suposições: medo,<br />

reserva e timidez. Todos concordavam, pois todos tinham a mesma<br />

teoria, a mesma lógica; tudo sustentado nas mesmas crenças infundadas.<br />

Mas fungar e cheirar mal? Nunca havia prestado atenção a isso, também<br />

nunca havia sentido odores diferentes no meu corpo, quando fico<br />

nervoso. Sua interpretação era um enigma para mim. Roberta devia ter<br />

maior sensibilidade, ou a dedução dela poderia ser singular e falsa? Já<br />

me falaram que as mulheres têm olfato mais apurado do que os homens,<br />

um maior número de receptores no nariz. Seria verdade?<br />

Mas nada podia fazer contra essa invasão da privacidade. Desvairado,<br />

percebia minha impotência diante das interpretações de cada pessoa que<br />

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272


encontro. Nada podia fazer! Aquele homem que passou, do outro lado<br />

da rua, me olhou por segundos, observou-me à vontade mas nada disse.<br />

Eu, sem querer, fiz o mesmo. Que idéias ele teve de mim? O que ele me<br />

sugeriu? O outro, de calção e camisa rasgada, parecia pedinte. Bela mulher;<br />

de saias curtas, parece “piranha”. Mas, como tirei essas conclusões?<br />

Serão preconceitos meus, escondidos? Existe nessas idéias alguma realidade?<br />

Posso acreditar nessas conclusões, nessas generalizações, a partir<br />

de um ou dois sinais?<br />

Como reunir fatos tão separados, possivelmente não associados, e deles<br />

tirar conclusões - formar um conjunto - com tanta segurança? E o pior,<br />

posso tomar decisões, às vezes, importantes, a partir das suposições<br />

geradas devido a um vestido mais curto ou um tipo de corte de cabelo?<br />

Ou todas essas conclusões são falsas, idiotas, fruto de minha mente distorcida,<br />

arbitrária e doentia? Ajo como se a reunião de sinais, bem como<br />

as deduções tiradas desse conglomerado, fossem verdadeiras. Como<br />

acreditar no que observo ? Posso estar enganado. Se penso que a moça<br />

é piranha, poderei tratá-la como tal. E se ela não for? Cismei que todo<br />

homem bem educado, que anda elegantemente vestido e que usa bigode<br />

e cavanhaque, bem aparados, de olhar distante, é gay. Será? Também não<br />

sei como cheguei a essa conclusão maluca. Roberta já me chamou de<br />

bicha. Por quê? Agora me classificou de outras coisas, mas imagino que<br />

ela tenha outras idéias a meu respeito que não foram verbalizadas. Por<br />

que não? Seriam piores ainda de se ouvir? É possível que ela tenha percebido<br />

minha raiva, que custo a notar. Tenho sido analisado por profissionais<br />

competentes, mas continuo a não me conhecer; entretanto, sou<br />

“conhecido” facilmente, por todas as pessoas. Para os não profissionais,<br />

é fácil me compreender e me interpretar. Seriam eles, uma vez livres das<br />

teorias sofisticadas dos terapeutas, mais capazes de interpretar a conduta<br />

humana? Tudo é possível. Bastava um simples olhar meu, um rápido e<br />

superficial bate-papo ou, até mesmo, uma saudação, para que tivessem<br />

certeza de me conhecer. Alguns interpretadores iam mais longe: davam<br />

diagnósticos clínicos. Em virtude de minha magreza, uns afirmaram que<br />

eu tinha diabetes; outros acharam que devia tomar lombrigueiros...<br />

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273


Desde criança fui bombardeado pelos diagnósticos dados pelos diversos<br />

psiquiatras; agora, percebia que cada pessoa com a qual convivia davame<br />

também diagnósticos não-médicos; mais grosseiros e perniciosos do<br />

que os dos médicos. Sei que para um clínico fazer um diagnóstico deve<br />

testar suas hipóteses, confirmá-las ou refutá-las, examinando os fatos<br />

encontrados de acordo com princípios aceitos. O leigo, diferentemente,<br />

não precisa disso. Era bobo, por nada; por devolver o troco recebido a<br />

mais. Os diagnósticos dos leigos são, principalmente, morais; colocamme<br />

como errado, raramente como certo. Para não ser criticado e escapar<br />

dessas interpretações, preciso fazer tudo o que as pessoas pensam?<br />

Essas avaliações parecem variar conforme o instante e o aspecto da<br />

conduta selecionado, geralmente um. O atributo isolado pelo observador,<br />

mostra a sua maneira de organizar os acontecimentos e as condutas.<br />

Cada modo - dependendo da organização - me coloca numa ordem ou<br />

classe diferente; cada um valoriza ou desvaloriza determinados aspectos<br />

do comportamento e não examina outros: vagabundo, sério, trabalhador,<br />

bom estudante, feio, desonesto, confiável... A maioria dos rotuladores,<br />

ao me enquadrar nessas taxionomias rígidas, do que é certo ou<br />

errado, não comenta, nem descreve que suposições usou para me aprisionar<br />

numa ou noutra classe. Possivelmente, nem ele sabe. Entretanto,<br />

para minha desgraça, cada espião age, inconsciente e automaticamente,<br />

conforme essas interpretações.<br />

Para esses observadores apressados, a denominação dada é fácil e simples.<br />

Qualquer sinal é uma evidência indiscutível e basta, para ele, supor<br />

ou imaginar a existência de uma realidade em meu organismo, nascida<br />

de suas crenças. A conjetura, ela própria, surge como uma iluminação<br />

ou revelação; para ele, uma garantia de certeza: “Pedro é bandido”; Maria<br />

é bonita”.<br />

Lucinho lembrava dos rótulos recebidos... “O que fiz para ser tachado<br />

de tímido? Que fiz para ser xingado de burro? E aquela moça que foi à<br />

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loja? Ela me olhou várias vezes. Surdina, empregado do meu pai, foi logo<br />

me falando, com absoluta certeza:<br />

- Vá em frente, parece bobo; ela está dando um bolão para você.<br />

Fiquei em pânico. Tachou-me de bobo, sem que eu soubesse por quê.<br />

Mas foi mais longe, concluiu, com segurança, que a moça me desejava.<br />

Não descobri como ele chegou a essa conclusão, de modo tão fácil e<br />

rápido. O que a moça estaria pensando a meu respeito? Seria o mesmo<br />

que Surdina observou? Isso era notável, extraordinário - caso houvesse<br />

essa identidade.<br />

Ao classificar a bola dada pela moça, que aspecto julgado excitou e ofuscou<br />

a mente de Surdina? O que o levou a não examinar outros atributos<br />

exibidos por ela? Que poder teve essa cor forte para predominar e dominar<br />

sua mente predisposta. Seria o mesmo que ocorre quando muitos<br />

dizem: “é uma negra, formada em Engenharia”; focalizando, primeiramente,<br />

o que mais lhe chamou a atenção - a cor da pele - e só depois<br />

completou, com o segundo aspecto; “que se formou em Engenharia”.<br />

Num outro caso, poderia ter dito: “é uma engenheira”, quando sua cor é<br />

branca; a cor “natural”, não é notada nem enfatizada. Nesse último caso,<br />

o que chamou a atenção foi a profissão. Mas o que estou a fazer? Classificando<br />

Surdina e outros, do mesmo modo como os estou criticando.<br />

Há certeza nas suas afirmações, certeza de que me falta...os atributos se<br />

manifestam por eles mesmos...Todos sabem...A realidade percebida por<br />

Roberta, por Surdina, não precisa ser testada, ela é verdadeira, aceita<br />

sem críticas, sem as imposições ou chatices de outras possíveis “realidades”,<br />

nascida do desejo ou tendência momentânea dela. As interpretações<br />

dos médicos e psicólogos não seriam também assim? Quem<br />

poderá saber? Para bem viver devo me enquadrar nas interpretações de<br />

todos os classificadores?<br />

Aprofundei-me nesse ponto tentando descobrir as pistas ou estímulos<br />

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275


que têm maior poder de penetração levando a pessoa a chegar às suas<br />

conclusões. Para isso isolei certas interpretações comuns feitas por<br />

todos: ” este é um homem gentil”, ‘’burro”’ , “educado”, “confiável”, etc.<br />

Examinei quais pistas atraíam mais o classificador e o impediam de<br />

examinar as restantes. Anotei-as com cuidado. A partir daí comecei a<br />

transmitir às pessoas o comportamento que eu queria que elas imaginassem<br />

que eu possuía; inteligente, burro, gentil, conforme meus objetivos.<br />

Tornei-me um perito nisso. Representei tão bem esse papel que, após algum<br />

tempo, nem eu mesmo sabia se era ou não aquilo que representava.<br />

Com o uso perdi meu referencial e não mais sei se estou representando<br />

ou se tornei-me o que represento. Eu, que desejava controlar a conduta<br />

das pessoas com a minha representação, passei a ser manipulado pelo<br />

papel decorado e exibido.<br />

Para ser “reconhecido” como “inteligente”, mostrava, diante de determinadas<br />

pessoas - só dessas - certas condutas esperadas: ao contar um fato,<br />

franzia a testa de um certo modo, fingia entender do assunto, elevando<br />

o rosto para cima, olhando demoradamente para longe. Mas não era<br />

só isso, precisava ainda modular o tom de voz, falar num ritmo que<br />

fornecesse a impressão de estar pensando profundamente; de quando<br />

em quando, soltava frases de efeito, criava, em certos momentos, certas<br />

expressões faciais dignas do inteligente, comentava, com entusiasmo<br />

comedido, filmes, peças teatrais, esculturas e livros, tidos e estabelecidos<br />

como dignos do grupo dos “inteligentes”. Com a teoria na cabeça, não<br />

havia erro, era aplaudido e admirado por todos como inteligente, por<br />

encaixar-me, adequadamente, no modelo esperado. É lógico que sabia<br />

fazer também o oposto.<br />

Deveria ainda para continuar a receber esse diagnóstico, assistir e<br />

comentar certos programas de TV, assistidos somente pelos “inteligentes”;<br />

jamais falar que assistia a outros, os apropriados aos débeis<br />

mentais. Após alguma luta, consegui entrar numa associação, que só os<br />

intelectuais freqüentavam. Nas nossas reuniões, eu, como todos, falava,<br />

usando certas palavras, gesticulava e fazia comentários da maneira<br />

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esperada pelo seleto grupo. Devia, sistematicamente, ler certos jornais,<br />

não outros, passear em determinados locais, gostar de certos autores e,<br />

além disso - pasmem - precisava freqüentar certos restaurantes, apreciar<br />

certas iguarias, morar em determinados bairros e vestir as roupas<br />

esperadas. Consegui, por uns tempos, pertencer a essa elite. Entrei e fui<br />

aceito no clube dos inteligentes.<br />

Burramente, ainda aprisionado ao meu padrão antigo, duvidei da escolha.<br />

Achei o empreendimento difícil e, sobretudo, enfadonho. Depois<br />

de muito pensar, ou melhor, de não pensar, decidi continuar a ser<br />

idiota; estava mais acostumado a essa denominação, além disso ela não<br />

me assustava como a outra. Tinha mais receio de ser “inteligente”, de<br />

saber tudo, do que de ser burro. O meu grupo, o de imbecis - tratava-se<br />

de um pequeno grupo em extinção - fazia também suas classificações,<br />

eles próprios se denominavam ignorantes e viviam contentes com esse<br />

rótulo. Não sei se fiz uma boa escolha.<br />

O que mais Roberta sabia a meu respeito? E Agostinho, minha mãe,<br />

meus amigos e colegas? Muitas vezes, nas nossas conversas, percebia que<br />

Agostinho falava para mim, suas mensagens tinham um alvo certo, eu!<br />

Todos, talvez, imaginavam me conhecer mais do que eu próprio. Que<br />

ignorância! Se não sei se me conheço ou não, como eles poderiam me<br />

avaliar?<br />

Começava a não mais acreditar na veracidade da teoria do Prof. Pinelli,<br />

ao confrontá-la com as idéias escutadas nos últimos dias. Para que fui<br />

procurar o Dr. Erasmo? Só para me perturbar? Uma teoria não bastava<br />

para me conhecer; era preciso conhecer outras a meu respeito: a de Roberta,<br />

a de Agostinho, a do meu pai, a teoria esquisita de minha mãe, que<br />

me classificava de tudo o que é ruim? Que dados eu havia fornecido para<br />

que ela me visse dessa maneira? Não sabia.<br />

Pensava no niilismo do Dr. Erasmo, imaginava que sua teoria poderia<br />

estar certa. E eu, que tanto o critiquei, agora começava a lhe dar razão.<br />

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Não gostava desse meu pensamento; preferia não tê-lo tido. Até meus<br />

pensamentos parecem não ser mais meus, não me obedecem, emergem,<br />

espontaneamente, sem esforço. Eram idéias intrusas, que se rebelaram<br />

contra o comando central, dando palpites indesejáveis em questões<br />

íntimas. Não queria ter pensado: “Gostei da consulta com Dr. Erasmo”;<br />

gostaria de ter imaginado: ”ele é um chato; só fala besteira”.<br />

Como posso avaliar uma afirmação dos outros, ou mesmo, minha,<br />

usando minha mente? Minha cabeça está cheia de hipóteses contraditórias,<br />

sem fundamentos; uma mistura confusa de idéias, muitas delas<br />

estranhas, que nascem sem meu desejo. Perguntas, não respondidas<br />

por mim, muitas e muitas, acumulavam-se... Afinal, quem sou eu? Um<br />

lençol de pobre, remendado, feito com sobras de retalhos velhos e manchados?<br />

Como costurar, com um fio único, tecidos tão variados, onde<br />

cada um tem uma cor diferente? Os pedaços de tecidos que entraram<br />

na minha formação estão mal costurados e desorganizados. Ora era<br />

mostrado um trapo, ora outro. Do mesmo modo, como o caixeiro exibe,<br />

ora um tecido mais barato, ora um mais caro e bonito, dependendo do<br />

que ele imagina ser a intenção e disposição do comprador.<br />

Mas, oh, Que lástima! Eu tomava consciência de que minha conduta<br />

dependia das idéias que eu próprio tinha a meu respeito e das que<br />

imaginava ter do outro. Portanto, se essas estivessem confusas e contraditórias,<br />

necessariamente meu comportamento seria, também, confuso e<br />

contraditório. Se trabalho com idéias erradas, falsas ou semi-falsas, para<br />

fabricar as outras, jamais chegarei a conclusões adequadas acerca dos<br />

acontecimentos ou da conduta dos outros.”<br />

O pensamento de Lucinho vai ficando desordenado, desagregado, transtornado.<br />

O conhecimento de si e dos outros o vai enlouquecendo.<br />

“Se minha irmã tem suas idéias acerca do meu modo de ser, cada um<br />

deve ter outras diferentes das dela, observando algumas coisas, não<br />

percebendo outras. Ouvi muito frases como: ”Os paulistas são trabal-<br />

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hadores”; “ O brasileiro gosta de levar vantagem em tudo” ou “o mineiro<br />

é desconfiado”. Como essas conclusões, imaginadas e seguidas como<br />

verdades, foram construídas? Não tinha a menor idéia.<br />

Seria eu desconfiado e reservado, como todo bom mineiro? Mas ouvi<br />

o contrário; muitas afirmações, ditas com a mesma segurança e ênfase,<br />

classificaram-me como desinibido. Já fui categorizado como gordo, em<br />

seguida, um me perguntou espantado: “O que aconteceu com você que<br />

emagreceu tanto assim?” Estava engordando ou emagrecendo? Por um<br />

longo período, imaginei-me como obsessivo, perfeccionista, mas fui<br />

também denominado desmazelado e bagunceiro. Como construir uma<br />

idéia bem ordenada de mim, se eu, bem como as pessoas com as quais<br />

me relacionava me rotulavam de modos tão diferentes? Para uns eu<br />

era um santo, para outros, um demônio. Afinal, quem seria ? Santo ou<br />

demônio, bonito ou feio?<br />

Comecei a me isolar para fugir à classificação continuada. Queria me<br />

proteger. Sem a presença dos rotuladores, não teria ninguém para me<br />

avaliar. Mas fui enganado, pelo menos em parte, por mais que fugisse<br />

de todos, na ilusão de deixar as avaliações distantes, não consegui. Em<br />

todos os lugares onde me escondia, continuava a ser seguido pelas idéias<br />

que eu próprio tinha dos pensamentos das pessoas das quais tentava<br />

fugir. Minhas idéias antigas, contaminadas pelas dos outros, seguiramme,<br />

sempre coladas a mim. Minha mãe não me abandonava; estava<br />

lá, no fundo de minha alma, sempre presente. Tiranicamente, ela me<br />

perseguia, me vigiava, em todos os lugares, principalmente nos pesadelos.<br />

Eu fui seguido, como um criminoso, em todos os cantos, por todos<br />

os que me marcaram com seus estigmas.<br />

Verifiquei, desalentado, que quase todos os classificadores estavam<br />

certos. Eu me transformava numa outra pessoa, diante de cada um dos<br />

interlocutores. Conforme a pessoa com a qual me relacionava, alguns<br />

aspectos meus escondiam-se, outros acentuavam-se. Em certos lugares,<br />

diante de uma pessoa, eu era alegre e falante mas, diante de outra, ficava<br />

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triste e calado, como um doente. Também minhas conversas variavam<br />

conforme as pessoas com as quais dialogava. Com um, falava acerca de<br />

futebol, com outro, de “putaria”, com a namorada, transformava-me no<br />

amante apaixonado e usava palavras e voz mais adocicada. Diante de<br />

certos amigos, ficava sério, discutia num tom de voz alto e firme. Falava<br />

sempre num tom queixoso na presença dos psicólogos, lamentava, às<br />

vezes, chorava, tornava-me um paciente. Com os amigos bagunceiros,<br />

dava gargalhadas, contava anedotas, fazia planos atraentes, alegres e<br />

juvenis. Tornava-me, sem querer, educado e respeitador diante de Agostinho.<br />

Com Roberta, era grosseiro e ‘burro”. Bastava a presença de um<br />

deles para ocorrer a metamorfose. Diante de minha mãe, eu regredia,<br />

transformava-me numa criança. Ficava preso ao tom de voz dela, dominado<br />

pelos seus gestos, olhares e palavras: “Venha cá, meu filhinho; deita<br />

no colo de sua mãezinha; ela te ama tanto”. Nesses momentos, paralisava-me,<br />

encolhia-me, desmanchava-me nos seus braços.<br />

Fui mais a fundo, percebi que possivelmente todas as pessoas, há muito,<br />

haviam notado o que descobri. Ah! Seria eu o último a saber? O que<br />

as levava a jamais serem espontâneas e sempre fornecerem pistas falsas<br />

a seu respeito? Essa conduta se repetiria, também, nos consultórios<br />

psiquiátricos? Possivelmente. Verifiquei que vivemos unidos às pessoas<br />

que jamais conhecemos - elas não se mostram - exibem os disfarces<br />

possíveis de serem representados; pistas falsas, informações usadas para<br />

tapear. Todos fingem? Como ter certeza ao decifrar seus enigmas? Por<br />

isso cada um pensa acerca do outro milhares de coisas. As máscaras usadas<br />

são diversas, pois temos várias delas à nossa disposição - usâmo-las<br />

conforme a pessoa à nossa frente, num certo momento. Agora percebo<br />

que, até mesmo para mim, eu mudo, conforme o dia e a hora. Deixo vir<br />

à consciência, sem querer, informações falsas; tudo para ficar coerente<br />

com o papel representado para mim mesmo no momento; assim evito a<br />

incongruência interna, fico calmo. Como tapeamos e somos tapeados!<br />

E as teorias? Munidos delas, explicamos o que não sabemos. Abandonamos<br />

o indivíduo chato e singular - que jamais iremos compreender; o<br />

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impossível de ser enquadrado. Mas com a teoria construída para o geral<br />

- que muitas vezes pouco tem a ver com o particular - vestimos o indivíduo<br />

examinado; tranqüilamente passamos a afirmar que a vestimenta<br />

se adequou a ele, portanto, é correta, digna de crédito. Esquecemos que<br />

a pessoa pode ter exibido o desejado pelo enfermeiro encarregado de<br />

colocar a camisa de força.<br />

Na minha casa, se mostrasse o que sou, se me desnudasse, seria expulso.<br />

A Justiça me prenderia se soubesse o que fiz e penso. Para a Igreja, eu<br />

seria excomungado e tido como o maior dos pecadores. Para o povo<br />

hipócrita, que faz o que faço e vive igual a mim - os que não percebem<br />

isso - eu seria linchado como monstro de várias faces, por pensar coisas<br />

tão estranhas e não dignas dos homens bons. Como eu reagiria a mim<br />

mesmo caso me mostrasse despojado das defesas? Sou um ser estranho<br />

para todos e eles para mim. Mas continuamos a pensar que conhecemos<br />

todos...<br />

Percebia que o meu conhecimento pouco ou nada adiantava para prever<br />

minhas ações na sociedade e na família onde vivia. Além disso dependia<br />

dos conhecimentos que os outros possuíam a meu respeito. Os<br />

julgamentos meus e deles, feitos apressada e irrefletidamente chegavam<br />

prontamente ao diagnóstico, quase sempre sombrio. Essas sentenças<br />

tinham o poder de lei e, portanto, funcionavam. Não adiantava eu pensar<br />

que era honesto se, diante do gerente do banco, ele me imaginava<br />

caloteiro. Com essa decisão, ele jamais me faria empréstimo algum; era<br />

sua resolução que prevaleceria. Fui, certa vez, acusado de estar colando<br />

numa prova, que foi anulada; de fato, eu estava distraído, olhando para<br />

dentro de mim, como sempre fiz. O professor não teve dúvida: estava<br />

colando do colega. Tentei conquistar uma mulher, usando toda minha<br />

habilidade de conquistador: gentileza, simpatia, afetividade, entretanto<br />

a moça cobiçada “teve certeza” de que eu não era nada do que representava;<br />

diagnosticou-me como um aproveitador. Perdi uma grande mulher.<br />

Mas ela podia estar certa...Quem sabe, se, quando eu imagino-me<br />

estar sendo gentil e simpático, na realidade dela estou sendo grosseiro<br />

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e antipático?<br />

Como conviver com as pessoas se não temos instrumentos confiáveis<br />

para conhecê-las e, ao mesmo tempo, nem sabemos como nos criticar?<br />

Acabaram-se as amarras que me ligavam aos outros. Aumentaram as<br />

desconfianças e tensões. Desconectado, submeto-me a uma conversa<br />

padronizada, arrumada e forçada, tudo para criar um falso diálogo; falar<br />

por falar. Seu objetivo é fingir existir uma comunicação mas, na verdade,<br />

ela a esconde, servindo para impedir o silêncio desconfortável, indicador<br />

da ausência de ligação e de amor. Seria de tudo? Sinto medo...<br />

Diante das pessoas, as conversas não prosseguiam, não encontrava<br />

pontos comuns. Sei que estou isolado. Mas é preciso fingir que existe o<br />

elo inexistente. Torço e desejo que o falso encontro se acabe logo, que<br />

surja algo para que ele termine. Sou cercado de pessoas que têm valores<br />

opostos aos meus, que têm objetivos e preferências, que para mim são<br />

aversões das quais fujo. Porque não sou como elas? Aceitando tudo<br />

como normal...Esse desencontro motivou muitas brigas; recebi críticas:<br />

“você está agindo errado”. Eu, por minha parte, não notava nenhum<br />

erro.<br />

Fiz outra descoberta, esta não mais me surpreendeu : era percebido e<br />

avaliado, diferentemente, pelas pessoas, conforme elas estivessem bem<br />

ou mal comigo. Assim, caso encontrasse uma moça que estivesse interessada<br />

em me conquistar, sua percepção era verbalizada com informações<br />

muito mais positivas a meu respeito, e não era fingimento<br />

de minha amiga. Nesse caso, ela selecionava e acentuava os aspectos<br />

favoráveis sobre mim. Ao contrário, quando brigávamos, minha exadmiradora<br />

e amiga tornava-se inimiga feroz: só extraia as características<br />

denominadas negativas do meu comportamento. Para piorar ela os<br />

acentuava, os generalizava e, pior, negligenciava ou nem notava o que eu<br />

tinha de positivo e que antes ela havia percebido.<br />

Fui tendo algumas “certezas”: uma delas é que não havia certezas e nem<br />

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objetividade, como me ensinaram. Descobri, também, que todos nós<br />

agimos e reagimos conforme as representações nascidas no <strong>nosso</strong> cérebro,<br />

aleatoriamente, no momento; de acordo com os estímulos do meio<br />

ou de nossa própria cabeça que as despertam. Fiquei triste por perceber<br />

que eu não amei a mulher “real”, sensorialmente percebida com “objetividade”:<br />

amei , sim, a “Sefira” existente em minha representação. Convivi<br />

com um espectro, a mulher sonhada, desejada e fabricada pela minha<br />

mente sedenta! Esta mulher representada na minha cabeça explodiu de<br />

repente, transformando a agradável quimera num pesadelo aborrecido.<br />

Também tive outra certeza: nós só nos apoiamos nesses “espectros” -<br />

nada mais temos para fundamentar nossa razão - reagimos, apenas, às<br />

fantasias - ou fantasmas - que temos, construídos com a ajuda de certos<br />

fatos selecionados pelos <strong>nosso</strong>s desejos momentâneos através de nossa<br />

mente tendenciosa. Estamos, continuamente, encarcerados nas representações<br />

detonadas no instante; jamais alcançamos o de fora, o externo.<br />

Ligamo-nos à realidade com a ajuda dos pensamentos; este é fabricado<br />

com material próprio, muito e muito diferente do material que compõe<br />

os fatos e as coisas.<br />

Que orientação interna teria que usar para chegar onde desejava? Onde<br />

encontrar a verdade verdadeira? Começava a me desanimar, pensava<br />

que era chegado o momento de parar a procura... Cada um tinha a sua<br />

verdade, provisoriamente, por instantes e ela mudava rapidamente. A<br />

mentira tornava-se verdade e a verdade mentira. Começava a duvidar de<br />

minha dúvida...<br />

Minhas incertezas cresciam; devo procurar outros psiquiatras e psicólogos?<br />

O que eles dizem a meu respeito possui alguma validade? Ouvindo-os,<br />

irei conhecer-me mais? Ou chegou a hora de encerrar a busca,<br />

jamais encontrarei segurança alguma?<br />

Notava, em pânico, que minha maldita cabeça, ao receber os sons emitidos<br />

pelos psicólogos, traduzia seus belos ensinamentos para minhas<br />

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próprias teorias e palavras, noções erradas e idiotas, enterradas profundamente<br />

na minha cabeça, desde criança. Era terrível o poder dessa “estrutura<br />

interna e profunda” que dominava, gerava e direcionava todos<br />

os outros pensamentos - sem minha vontade - que formulava ou recebia<br />

dos outros. Minha mente transformava tudo; funcionava como um<br />

liqüidificador onde colocamos uma bela laranja, uma maçã mais bonita<br />

ainda e um mamão vermelho e perfumado; uma vez trituradas, as frutas<br />

se transformam numa massa gosmenta, avermelhada, semelhante ao<br />

vômito; uma composição que pouco tinha a ver com a maçã, o mamão<br />

e a laranja entrados na mistura. Quem viu as frutas separadas e depois<br />

misturadas, não reconhecerá, no produto final, os ingredientes do início.<br />

Assim também era minha cabeça. As lâminas cortantes de minha mente,<br />

impulsionadas pelas idéias decodificadoras, esfacelavam as informações<br />

fornecidas pelos psiquiatras em peças deformadas antes de assimilá-las.<br />

Era minha fôrma que dava forma ao recebido, contendo sempre meu<br />

sentido particular, minha cor acinzentada, muito diferente das recebidas<br />

dos mestres. Desse modo, em lugar de armazenar as informações transmitidas<br />

por estes profissionais eu, inocentemente, reforçava os conhecimentos,<br />

ou a falta deles, acumulados em minha mente obtusa. Mantinha<br />

bem preservada minha estrutura rígida, restos poderosos de idéias antiquadas,<br />

armazenadas com extremo cuidado pela minha cabeça tacanha,<br />

que não permitia a entrada de belas e promissoras idéias.<br />

Alienado, eu selecionava, não o que me foi comunicado, mas sim, o<br />

discurso modificado e estruturado pelo “caldeirão de idéias” já existente.<br />

Eram estas minhas idéias tácitas, conceitos intuitivos totalmente impenetráveis,<br />

mas, sobretudo, imperialistas, que me dominavam, que<br />

modificavam tudo que escutava ou observava; sem que eu percebesse a<br />

diferença entre a informação original e o produto final. Acreditava, com<br />

segurança, que o lixo impuro que guardava eram as conversas sábias dos<br />

psiquiatras, as elegantes palavras dos conferencistas, que escutara, encantado.<br />

Sempre ficava, na minha mente, após ouvir as pérolas pronunciadas,<br />

um líquido sujo, de mau cheiro, contaminando os pensamentos<br />

restantes.<br />

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Foi nessa confusão crescente que erigi minha personalidade: de um lado,<br />

estavam os diversos aspectos impostos e verbalizados pela minha mãe,<br />

quase todos negativos, que me davam uma idéia ruim de mim mesmo,<br />

gerando uma auto-estima baixa. De outro lado, recebia algumas denominações<br />

elogiosas através dos diversos tratamentos de namoradas e<br />

amigos; com esses, fui formando, ao contrário, uma auto-estima alta. O<br />

resultado final foi trágico; criou-se uma desconfiança, uma sensibilidade<br />

e irritabilidade exagerada. Não sabia, ao certo, se tinha ou não algum<br />

valor; se minhas ações eram ou não bem recebidas e elogiadas. Ora uma<br />

parte de minha mente me depreciava e meus atos eram percebidos como<br />

de causar vergonha, ora a outra parte me elogiava e minha conduta era<br />

valorizada e digna de orgulho.<br />

Fiquei aprisionado às contradições; um indivíduo extraordinariamente<br />

sensível, tanto para os pequenos elogios, quanto para insignificantes<br />

críticas. Quando recebia aplausos, sentia-me orgulhoso em excesso;<br />

quando falhava, nas menores questões, sentia-me altamente envergonhado<br />

e deprimido. Qualquer fato me depreciava e me ofendia, me<br />

derrubava: um conhecido que não me olhou, um troco recebido errado,<br />

um olhar de mulher, um pequeno elogio do freguês na loja. As duas<br />

mentes se digladiam, constantemente, sem existir um vencedor. Ia, de<br />

um lado a outro, a cada instante.<br />

Também, nesse ponto, os tratamentos foram negativos. Antes, munido<br />

predominantemente com as idéias negativas, eu quase não tinha lutas<br />

internas; sabia que eu nada, ou quase nada valia, nem para mim, nem<br />

para os outros. Tinha certeza dessa afirmação, isso dava-me segurança,<br />

tranqüilidade e, principalmente, direção. Agora nem mais isso tenho.<br />

Passei a sentir-me mal quando sou bem tratado, imagino ficar devendo<br />

um grande favor à pessoa, sinto-me culpado em não poder recompensála.<br />

Sou um homem solitário e sem rumo.<br />

Desconfio de tudo; até diante de pequenos problemas: imagino que<br />

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alguém poderia pensar que participei de ações com as quais nada tinha<br />

a ver: roubaram um caminhão na minha rua, quando recebi a notícia<br />

através de um vizinho, imaginei que ele poderia estar insinuando, ou<br />

tendo certeza, de que roubei o veículo. Ao andar pelas ruas passei a<br />

tomar todos os cuidados possíveis para não criar problemas com os<br />

transeuntes. Construo, para mim mesmo, explicações para serem dadas<br />

ao motorista que possa imaginar que eu o fechei por querer. Tenho<br />

sempre prontas diversas respostas para acalmar o raivoso inimigo, que<br />

só existe na minha mente esquisita. Para completar as contradições que<br />

me assustam, jamais fujo a uma briga; nos raros momentos em que isso<br />

aconteceu, não me importei com o resultado. Posso perder tudo, mas<br />

não devo perder a disputa.<br />

Deito-me na cama, olho as marcas do teto, uma pequena mancha escura<br />

que lá estava há mais de um ano; passo em revista os sofrimentos e os<br />

diversos rótulos que recebi desde criança. Meus pensamentos ficaram<br />

distantes... Estava na sala de aula, tinha sete anos; era o primeiro dia de<br />

aula, no Grupo Escolar Barão do Rio Branco. Medrosamente, assenteime<br />

numa das últimas filas. Na frente, estava a velha professora: gorda, de<br />

cabelos pretos, suando, falando alto, num tom de voz rouco e cavernoso.<br />

Ela me amedrontava...Era D. Edina, minha primeira professora. Eu,<br />

sozinho, tremendo e apavorado, olhava os rostos desconhecidos dos colegas.<br />

Não tinha onde me apoiar. Eles, como eu, tinham medo. Não sabia<br />

o que fazer naquela prisão sem grades, da qual não ousava fugir. Não<br />

era capaz de me levantar, caminhar, falar, pedir ou, até mesmo, implorar.<br />

Meu corpo estava rígido, não conseguia mexer-me. Respirava, tentando<br />

não expandir por demais meu tórax, para não fazer barulho e não ser<br />

notado, minha vontade era desaparecer...<br />

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O Retorno: Sombras do Passado<br />

A vida de Antônio, o primeiro filho de Rosária, adotado por um casal de<br />

alagoanos, sem filhos: Dr. Marcelo Alves Durães e Ruth Oliveira Durães,<br />

ambos médicos de Maceió, inicialmente, ocorreu sem novidades. A situação<br />

financeira dos pais adotivos de Antônio sendo estável, ele cresceu<br />

sem problemas de ordem material, teve o que quis, quando criança.<br />

Antes de completar cinco anos, a conselho de uma psicóloga, Antônio<br />

foi informado de que não era filho biológico do casal com o qual vivia.<br />

Isso não o assustou; talvez nem compreendeu o significado de adoção.<br />

Assim, o que foi imaginado como um estresse, nada causou à sua mente<br />

infantil; sua vida continuou serena e feliz como sempre fora.<br />

Sendo um menino inteligente e esperto, ele concluiu o primeiro grau<br />

facilmente aos quinze anos. Até essa data, Antônio foi, além de um bom<br />

aluno, um excelente e promissor atleta. Sendo muito forte, tornou-se um<br />

bom jogador de futebol e lutador de karatê. Mas, no primeiro ano do segundo<br />

grau, começou a ter problemas que preocuparam seus pais: falhas<br />

às aulas, notas ruins, distúrbios disciplinares na escola e em casa, uma<br />

conduta muito diferente da que era esperada. Começou a chegar em casa<br />

de madrugada, demonstrando haver ingerido bebidas alcoólicas. Seus<br />

pais a princípio não se preocuparam com seu comportamento e imaginaram<br />

tratar-se de um problema próprio da idade. Por isso mesmo,<br />

não tomaram nenhuma providência. Mas, em lugar de melhoras, houve<br />

pioras; ele aumentou a ingestão das bebidas e abandonou a escola, onde<br />

cursava o segundo ano. Seus pais bem que tentaram, inutilmente, seu<br />

retorno aos estudos. Percebendo que não seria apenas o tempo o fator<br />

necessário às mudanças, Dr. Marcelo começou a repreendê-lo, a cada dia<br />

mais. Tudo continuou sem mudanças. As discussões em casa aumentaram,<br />

cada vez mais alteradas e, a cada dia que passava, notava-se um<br />

afastamento maior entre os pais e filho.<br />

Certa noite, após sua chegada em casa completamente bêbado, ampara-<br />

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do por um amigo de farras, houve uma discussão pesada com seu pai,<br />

que o esperava. Dr. Marcelo, cansado de tolerá-lo, decidiu por um ponto<br />

final naquela conduta que se arrastava. Nesse dia, as altercações foram<br />

mais intensas do que as habituais; os ânimos se exaltaram, chegando<br />

quase às agressões físicas. Pela primeira vez, Antônio argumentou, em<br />

sua defesa, que ele não era seu pai e, portanto, não tinha o direito de<br />

lhe falar como estava falando. Terminada a discussão, Antônio decidiu<br />

abandoná-los e ir morar em outro lugar. Houve, da parte dos pais, um<br />

certo susto com a decisão, mas também, um alívio. Ultimamente, o casal<br />

vivia em torno desse problema, sem ter conseguido nenhuma solução.<br />

Sem lugar para se alojar, Antônio procurou o abrigo que mais conhecia:<br />

o bar que freqüentava. Ali, com ajuda do proprietário, conseguiu<br />

um lugar para dormir e seu primeiro e provisório emprego. Sua função<br />

seria limpar o restaurante, após a saída do último freguês, geralmente<br />

de madrugada. Essa limpeza diária, cansativa e desagradável, só terminava<br />

quase pela manhã. Nessa hora, Antônio ia se deitar no seu pequeno<br />

quarto onde se acumulavam engradados vazios de cerveja e material de<br />

limpeza. Às dez horas, ele se levantava; nesse horário, o restaurante já se<br />

preparava para servir o almoço popular que começava às onze.<br />

Apesar das dificuldades, ele a princípio não abandonou seu vício de beber,<br />

apenas o diminuiu, nos primeiros dias. Dormindo e alimentando-se<br />

mal, emagreceu e enfraqueceu. Durante esse tempo, passou a se queixar<br />

de dores gerais, gripes e outros sintomas, próprios das pessoas desnutridas<br />

e maldormidas.<br />

Sem forças, abandonou a prática do karatê e do futebol, pois não conseguia<br />

fazer nenhum esforço mais pronunciado. Continuava, apesar das<br />

dificuldades, a dançar e a beber como anteriormente. Sendo inteligente,<br />

não lhe foi difícil arrumar, no próprio restaurante, um emprego de<br />

garçom. Empregado, ele viu melhorar sua vida, além da possibilidade de<br />

sair do quarto mal cheiroso e desconfortável do fundo do restaurante.<br />

Mas não ficou nesse emprego por muito tempo. Logo depois, a partir de<br />

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uma conversa que teve com um dos fregueses, conseguiu o que desejava:<br />

mudar de emprego. Passou a trabalhar num dos bancos da cidade, onde<br />

o freguês era gerente. Antônio era um amante da natureza, das belas<br />

coisas, das mulheres bonitas, dos prazeres da boa mesa, do bom vinho,<br />

de passeios e, principalmente, de acampamentos com grupos jovens;<br />

detestava compromissos com hora marcada. Era um vegetariano, não<br />

muito rígido, inspirava-se nas idéias orientais, principalmente as indianas.<br />

Dizia-se místico e defensor das teorias acerca de Xamãs, Karmas<br />

e outras, sobre as quais discutia com extrema facilidade. Freqüentador<br />

desses grupos, bem acolhido entre seus companheiros, era ali que mais<br />

conquistava as mulheres, suas paixões constantes. Não tinha dificuldades<br />

nessa atividade prazerosa: quase não tinha ansiedade ao se aproximar<br />

das suas candidatas. Após o emprego no banco, comendo melhor,<br />

voltou a ter sua cor morena e o belo porte atlético. Era um galanteador,<br />

bem como, também, bom dançarino, e, sobretudo, sedutor. Do emprego<br />

do banco, passou a ser corretor de seguros e, à noite, nas horas vagas,<br />

trombonista em restaurantes, onde completava seu salário. Foi nessa<br />

época, quando mais ganhava dinheiro, que resolveu, a convite de amigos<br />

viciados, experimentar cocaína. Não acostumado, logo nas primeiras<br />

doses ele exagerou a quantidade inalada, além de usá-la misturada ao álcool.<br />

Após ter ficado muito falante e excitado, sentiu-se mal e desmaiou<br />

depois de ter sofrido uma convulsão. Os companheiros, apavorados,<br />

imaginando sua morte próxima, levaram-no, às pressas, ao hospital. Foi<br />

salvo graças aos esforços médicos, a boa saúde anterior e a juventude.<br />

Devido a gravidade, foi obrigado a ficar internado por uma semana para<br />

observações e exames complementares.<br />

Desintoxicado da cocaína e do álcool, sem o que fazer, o que não lhe<br />

acontecia há muito tempo, pôde refletir sobre sua vida, acerca de suas<br />

origens e começou a pensar: “Onde estariam meus pais? Será que tenho<br />

irmãos? Como serão eles? Como descobri-los?”<br />

Com essas idéias em mente, decidiu, após a alta, teimosamente, procurar<br />

os pais biológicos. Fez uma visita, o que não fazia há tempos, aos pais<br />

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adotivos, que o receberam bem, imaginando, com alegria, que ele<br />

decidira voltar para casa. Ficaram decepcionados com sua intenção;<br />

entretanto, mostraram-se receptivos com a idéia de descobrir seus pais e<br />

ajudá-lo.<br />

Não foi fácil localizar a família do médico obstetra, Dr. Paulo César<br />

Bezerra, que fizera o parto. Lamentavelmente, ele havia morrido há<br />

anos. Entretanto, através de telefonemas diversos, foi possível localizar<br />

e falar com seu filho, também médico em Maceió, que sabia que seu pai<br />

trabalhara, durante toda a vida, no Hospital Previdência de Alagoas,<br />

onde fizera a maioria dos partos. Os pedidos e as pressões foram muitas,<br />

o trabalho grande. Com ajuda de advogados e, principalmente, de<br />

funcionários do hospital, foi feita uma busca nas antigas anotações do<br />

ano de nascimento de Antônio. Após mais de seis meses de procura, finalmente,<br />

descobriu-se que os pais dele eram Adamastor e Rosária e que<br />

eles moravam em Belo Horizonte.<br />

Fez-se nova procura para localizar a residência e o telefone deles. Agora,<br />

já eram várias as pessoas empenhadas em ajudar Antônio a realizar<br />

seu sonho. Esse desejo, a cada dia mais se tornava realidade. Antônio,<br />

preocupado com o acontecimento esperado, passou a beber novamente,<br />

para, segundo ele, acalmar-se da apreensão de encontrar seus pais, pois<br />

vivia um momento de alta tensão. A cada nova descoberta, novo passo<br />

dado, novas emoções e fantasias surgiam. “Estariam vivos?” perguntavase,<br />

curioso.<br />

Afinal, quem seriam seus pais? Teriam posses? Finalmente a última<br />

descoberta: o endereço e telefone de Dr. Adamastor e Rosária. Naqueles<br />

últimos dias, Antônio não mais conseguia dormir. Imaginava sua mãe<br />

e, estranhamente, começava a se apaixonar, romanticamente, por ela, a<br />

mulher que o pôs no mundo.<br />

Chegou o dia de entrar em contato com sua família; sua respiração<br />

estava rápida e curta, sentiu medo de desmaiar, quando ouvisse a voz de<br />

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sua mãe.<br />

De posse do número, assentou-se diante da mãe, Dra. Ruth, que o ajudava<br />

e que lhe trouxe um pouco de uísque; nesse momento, ele precisava<br />

disso e até ela, aflita, tomou uma pequena dose, apesar de detestar<br />

bebidas alcoólicas. Marcelo, o pai, mais prudente, explicou-lhe que eles<br />

poderiam lhe tratar mal e até não querer vê-lo; que devia ter cuidado.<br />

Além disso, poderiam ter morrido; fez outras considerações próprias<br />

dos homens experimentados e práticos. Mas, de fato, essas conversas<br />

tinham um outro objetivo: o seu medo de perder, em definitivo, o filho.<br />

O momento havia chegado, depois da longa pesquisa. Antônio demorou,<br />

ainda um pouco, para começar a discar, tomou mais uma dose<br />

da bebida, colocada ao seu lado. Do outro lado da linha, uma voz feminina<br />

atendeu:<br />

- Alô!<br />

- Mora aí uma senhora chamada Rosária?<br />

- Sim. É aqui mesmo, respondeu.<br />

- É ela quem está falando?<br />

- Não. É Cândida, a cozinheira dela. D. Rosária tá na sala, tá vendo televisão;<br />

tá na hora da novela.<br />

- Eu desejava falar com ela.<br />

- Ela, quando tá vendo novela, já te falei, quando tá vendo novela ela não<br />

atende o telefone, não. Telefone mais tarde. Nesse momento, sem esperar,<br />

Cândida desligou o telefone. Antônio ficou decepcionado e furioso.<br />

Tornou a ligar.<br />

- Sou eu, novamente. Eu preciso muito falar com ela. Chame-a, por<br />

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favor, implorou à Cândida, segurando a emoção violenta que invadiu o<br />

corpo ao saber que sua mãe estava viva.<br />

- Como é seu nome? É a respeito de quê?<br />

Ele, nesse instante, quase despejou em cima de Cândida tudo que tinha<br />

na garganta. Respirou fundo, segurou um pouco e tentou falar, fingindo<br />

calma:<br />

- É um filho dela; moro em Maceió...<br />

- Filho dela? Os filhos dela moram aqui. O senhor tá doido. Agora, estão<br />

todos em casa...Por causa da chuva que cai; ninguém saiu hoje; Agostinho<br />

tá no quarto lendo, como sempre faz; Roberta, ouvindo música; Lucinho,<br />

deitado na cama, pensando; ele gosta de ficar sozinho. Eu acho<br />

que você está passando um trote, ou discou errado.<br />

- Não. Não, por favor. Fale com ela. Sou filho dela e de Sô Adamastor.<br />

- Diabo. Tá brincando comigo. Eu estava rezando, quase dormindo; é<br />

muita maldade debochar de uma pessoa que nunca fez mal a ninguém...<br />

Eu sei que é trote; todo dia tem dessas coisas...<br />

- Não é, não. Estou falando sério! Falou firme: Fale com ela, pelo amor<br />

que você tem à sua mãe, implorou novamente Antônio, desesperado, e<br />

conclui, quase chorando: Pelo amor a Deus.<br />

Ao ouvir essas palavras, Cândida se assustou; “amor à sua mãe e a Deus,<br />

devia ser alguma coisa séria; ninguém brinca com o nome de Deus e da<br />

mãe.” Mesmo sem entender, foi até à sala onde os dois assistiam, emocionados,<br />

à novela da noite.<br />

- D. Rosária. Aconteceu uma coisa esquisita...Tem um homem estranho<br />

no telefone, querendo falar com a senhora, de qualquer jeito.<br />

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- Não atendo nessa hora, já te falei; fale que não estou...ou, que não<br />

posso...<br />

- Mas, D. Rosária, isso eu falei. Ele pediu até pelo amor de Deus e pelo<br />

amor à minha mãe...<br />

- Quem é ele? Perguntou ela, mais interessada, largando, por momentos,<br />

a novela. Nesse momento, Dr. Adamastor quis se levantar para ir ao<br />

telefone para escapar de ficar ali preso...<br />

- Ele disse que é... Cândida custou a falar; - tenho vergonha de te dizer;<br />

acho que ele é doido...<br />

- Quem ele é? gritou Rosária, voltando a falar como sempre o fazia,<br />

quando estava com raiva. Fale de uma vez, Cândida de uma figa, gritou.<br />

- Ele disse...é, falou que é seu filho... A senhora me desculpe, mas foi o<br />

que ele falou.<br />

- Filho! Assustou-se.<br />

Rapidamente lembrou-se, aterrorizada, de todos os casos que tivera. Sabia<br />

que jamais tivera um filho com seus amantes; isso ela tinha certeza,<br />

já falara com muitos que estava grávida, para assustá-los... Era tudo<br />

mentira, a não ser que....sim, a não ser que, antes de se casar... Nesse<br />

momento, deu um pulo da poltrona e correu ao telefone, esforçandose,<br />

como podia, para demonstrar uma calma que nunca teve e gritando<br />

para Cândida:<br />

- Por que você não me chamou logo? Um assunto sério desses! Falando<br />

com a voz embargada pela emoção e medo, quase chorando, correu ao<br />

telefone acompanhada do marido:<br />

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.- Quem é?<br />

- A senhora não me conhece não, ou melhor, só me conheceu quando<br />

nasci, sou seu filho; naci aqui em Maceió e fui doado... criado por meus<br />

pais adotivos, Dr. Marcelo e Dra. Ruth; eles estão aqui, ao meu lado.<br />

Quem fez o parto, segundo fiquei sabendo, foi Dr. Paulo César Bezerra;<br />

ele já morreu, mas o filho dele, Anselmo...<br />

Antônio não parava de falar, explicava tudo o que sabia a respeito de sua<br />

origem. Do outro lado, Rosária chorava, amparada por Cândida e Dr.<br />

Adamastor, que ainda não tinham entendido o que estava acontecendo<br />

e, a todo momento, perguntavam, sem obter uma resposta satisfatória.<br />

- Meu filho! Que alegria! Você está em BH? Vem para nossa casa... Penso<br />

sem parar em você. Como você é? Bonito? Como são seus olhos? Claros<br />

como os meus?<br />

E continuou com uma série de perguntas, quase sempre, sem esperar<br />

pela resposta. Chorava, limpava as lágrimas com uma toalha, o primeiro<br />

recurso que Cândida achou, pois era o que estava mais perto. Rosária falava<br />

agitada. Do outro lado da linha, o mesmo ocorria, Antônio conversava<br />

sem parar. Cada um queria explicar mais ao outro, como estava sua<br />

vida. Quando um começava a falar não permitia ao outro comentar ou<br />

responder. A conversa continuou nesse pé, com extrema emoção, semelhante<br />

a uma paixão de dois namorados que não se vêem há muitos anos<br />

e que se reencontram. Estavam em êxtase, diante do possível reencontro,<br />

desejado com toda a intensidade por ambos. Rosária passou o telefone<br />

para Dr. Adamastor, mas o tomava, novamente, à força. Muito do que<br />

era falado já o fora antes e, novamente, era repetido, diversas vezes. A<br />

emoção vivida e expressada pelos pais e filho foi maior do que a troca de<br />

informações entre eles.<br />

O telefone só foi desligado duas horas mais tarde, com o encontro<br />

marcado para que Antônio retornasse à casa de seus pais, para visitá-<br />

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los e, como era o desejo de Rosária, para morar. Antes da despedida,<br />

ela conversou e agradeceu, emocionada, à Dra. Ruth e a seu marido por<br />

terem criado seu filho com carinho e muito amor, como ela o criaria,<br />

caso estivesse residindo na sua casa.<br />

O encontro foi finalmente marcado e também, um passeio a Maceió,<br />

para conhecer o casal que criara Antônio, nome de que Rosária não gostou;<br />

gostaria que ele se chamasse Genaro, o mesmo nome da tia Genara,<br />

irmã de D. Gertrudes e que a hospedou durante a gravidez em Maceió.<br />

A chegada de Antônio, um dia depois do telefonema, foi esperada com<br />

grande ansiedade por Rosária. Dr. Adamastor parecia não ser sido tocado<br />

pela vinda do filho desconhecido. Os irmãos, avisados na manhã,<br />

olharam aquilo com desconfiança. Nenhum deles tinha conhecimento<br />

da existência desse irmão, nascido antes do casamento. Coube ao pai<br />

explicar aos filhos os acontecimentos, na presença dos executores da<br />

ação, Gertrudes e Clarimundo, atualmente morando com Rosária; estes<br />

preferiram nada falar, nem se desculpar. Depois da velhice e do fracasso<br />

como comerciantes, parecia que tudo lhes era indiferente. Como bodes<br />

expiatórios, eles não se defenderam.<br />

Havia no ar uma apreensão: como seria a vida familiar com a presença<br />

de um estranho, principalmente se ele decidisse morar, em definitivo,<br />

com a família?<br />

No aeroporto, no dia da chegada, apenas Lucinho não compareceu. Ao<br />

ser informado da existência do irmão, ele, ao contrário dos irmãos, que<br />

fizeram perguntas e argumentaram a respeito do ato dos pais, sem nada<br />

dizer abaixou a cabeça, o mais que pôde e caminhou, desanimado, para<br />

o quarto onde, após trancar a porta, deitou-se. Agostinho, preocupado,<br />

bateu à porta, perguntando-lhe se desejava alguma ajuda, entretanto<br />

desistiu pois foi grosseiramente mandado embora.<br />

Logo que Antônio apareceu, ainda dentro do saguão do aeroporto, todos<br />

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perceberam, pelo seu tamanho e envergadura, que se tratava dele; não<br />

havia dúvida de que aquele era filho de Dr. Adamastor e Rosária. Houve,<br />

durante as apresentações, muito choro, sorrisos e abraços, principalmente<br />

por parte da mãe que teve de ser socorrida, por ter passado mal,<br />

após permanecer, alguns minutos, abraçada a Antônio soluçando convulsivamente.<br />

Roberta e Agostinho foram mais comedidos e menos<br />

efusivos; procuraram não demonstrar hostilidade nem exagerado amor<br />

a um irmão que eles desconheciam e que jamais tinham imaginado existir.<br />

Dr. Adamastor, indiferente, pensando mais na morte, parecia mais<br />

preocupado com a mulher, imaginando que ela poderia ter uma recaída<br />

com essa volta, e as complicações que adviriam disso.<br />

Chegaram em casa, cansados da espera no aeroporto e das emoções<br />

daquele dia tumultuado. Lucinho continuava deitado. Não quis sair do<br />

quarto para conhecer o novo irmão. Antônio, que fisicamente parecia<br />

muito com o pai, no temperamento, era extremamente semelhante à<br />

mãe: desinibido, alegre, falante e brincalhão. Desse modo, após tomar<br />

uma dose de uísque oferecido pelo pai, entrou no quarto do irmão,<br />

fazendo brincadeiras:<br />

- Acorde! gritou. Está na hora de se levantar; venha dar um abraço no<br />

irmão que você não conhece...<br />

- Saia! gritou, Lucinho. Meus irmãos são os que viveram comigo; saia,<br />

vamos, rápido.<br />

Antônio tentou brincar e ficar mais um pouco mas, aconselhado pela<br />

mãe, decidiu sair, decidido a se vingar daquele de cujos modos e tratamento<br />

não gostou.<br />

A partir desse e de outros incidentes iniciais, diversos atritos foram acontecendo<br />

entre Antônio e Lucinho. Quanto mais o irmão recém-chegado<br />

tentava se aproximar, mais ele se afastava e mostrava um inexplicável<br />

ódio ao novo irmão. Mas, ao restante da família, Antônio, rapidamente,<br />

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adaptou-se.<br />

Suas ligações com sua mãe, ao contrário do imaginado, tornaram-se estreitas,<br />

íntimas, cordiais; até em excesso. Rapidamente, ficaram amigos,<br />

como compensação, devido ao isolamento e afastamento de Lucinho.<br />

Rosária, sem se importar com o estado do filho mais novo, passou a<br />

dedicar todo seu tempo e afeto a Antônio, ficando horas conversando e<br />

brincando com ele.<br />

Antônio aceitou a estreita amizade com sua mãe e compartilhou de<br />

todos os seus jogos, gentilezas e amabilidades, bem como do carinho,<br />

muitas vezes, extremado. Mãe e filho passaram a ter um relacionamento<br />

próprio de namorados apaixonados: abraçavam-se e, até mesmo,<br />

beijavam-se na face, diante de todos. Era comum ver Rosária e Antônio,<br />

assentados e, algumas vezes, deitados no sofá diante da televisão, ligada,<br />

trocando carícias.<br />

A partir da chegada de Antônio, Rosária passou a assistir televisão com<br />

o novo filho. Este algumas vezes deitava-se no colo morno da mãe,<br />

enquanto ela, carinhosamente, passava as mãos nos seus cabelos longos,<br />

pretos e ligeiramente ondulados. Nesse idílio, sussurrando, trocavam<br />

segredinhos, mostravam sorrisos escondidos. Os afagos eram mostrados<br />

diante de todos que, a princípio, acharam aquilo estranho. Com o passar<br />

dos dias, acostumaram-se e nem mais observavam o que acontecia entre<br />

eles, apesar de não aprovarem essa conduta.<br />

Enquanto Rosária vivia em função do filho recém-chegado, apaixonada<br />

por ele, Dr. Adamastor, isolado, passou a tomar sua cerveja matinal, na<br />

varanda da casa, ao lado dos sogros, cada vez mais indiferentes a tudo.<br />

As únicas coisas que ainda animavam Clarimundo era contar seus antigos<br />

e repetidos casos.<br />

- A gente trabalhava mais, dizia Clarimundo pronto para iniciar um<br />

longo e enfadonho caso...<br />

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- Mas éramos mais honestos, interrompia a narração Dr. Adamastor e<br />

continuava com a voz pastosa: - Eu me lembro, quando era estudante de<br />

Engenharia e conheci Rosária; naquela época... exatamente. Não, errei;<br />

foi antes de conhecê-la... exatamente... Um ano antes, certa vez, fui<br />

comprar...<br />

- Agora, não existem mais homens; homens mesmo; a maioria é maricas,<br />

diferente dos de lá de Maceió, retrucava Gertrudes, com sua voz<br />

esganiçada igual à da filha. - Uma vez, eu namorei um homem, bem antes<br />

de conhecer Clarimundo; depois que o conheci, nunca mais olhei prá<br />

homem nenhum; sou uma mulher séria; não como muitas que andam<br />

por aí...<br />

- Tudo está diferente hoje em dia; no meu tempo os homens eram mesmo<br />

homens, Gertrudes tem razão, concluía Clarimundo, após dar uma<br />

bebericada na cerveja gelada. - Uma vez, um cabra lá de Alagoas veio<br />

tomar satisfação comigo, por causa dumas telhas que ele comprou no<br />

meu depósito. As telhas estavam boas, umas poucas estavam quebradas<br />

e tortas, defeito de fabricação e não fui eu que as fabricou; ele queria que<br />

eu trocasse todas, a maioria boa; eu falei grosso para ele: “ num tenho<br />

medo de bicho como você não; pra um desvalido de sua marca, tenho<br />

aqui o 38, pronto... e querendo ser usado” Ah, ah! o homem deu uma<br />

olhada por debaixo da minha blusa e viu o bichão lá; foi saindo de<br />

mansinho, feito um cordeirinho, sem falar mais nada. Tenho, até hoje,<br />

essa arma...<br />

Levantou-se um pouco trôpego e foi até o quarto onde dormia, tirando,<br />

de dentro de uma das gavetas do criado, a antiga relíquia, o Smith Wesson,<br />

fazendo, como sempre, questão de mostrar que, no seu tambor,<br />

havia cinco balas:<br />

- Deixo sempre faltando uma bala, se cair o primeiro disparo não sai.<br />

Eta, revólver bom!<br />

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A conversa continuava assim, por horas, enquanto dentro de casa,<br />

Rosária ria junto a Antônio, que bebia cerveja, fumava, sem que ela nada<br />

reclamasse.<br />

Lucinho, afastado da mãe, quase não saía do quarto. Não mais conversava<br />

com ninguém, a não ser com Cândida, para pedir-lhe o necessário.<br />

Emagrecera, desde a chegada do irmão, vários quilos. Roberta, fazendo<br />

agora desenhos, quando passou a trabalhar com modas, não tomava<br />

conhecimento do que ali ocorria. Agostinho, preocupado com suas aulas<br />

e preparando sua tese de mestrado, estava absorto e cada dia mais ocupado<br />

com seus problemas.<br />

A partir da chegada de Antônio, que nunca falava em voltar para Maceió,<br />

Dr. Adamastor foi aumentando a sua dosagem habitual de cerveja.<br />

Passou a beber durante todo o dia, já que não mais recebia as críticas<br />

de Rosária, mas até um incentivo disfarçado. Uma vez embriagado ele<br />

deitava-se cedo. Com esse comportamento do pai, Antônio foi tomando<br />

seu lugar junto à Rosária. Passou a ser seu companheiro durante as<br />

novelas, às quais, ambos fingiam assistir.<br />

Pouco a pouco, um relacionamento não esperado e bastante estranho foi<br />

desenvolvendo-se entre mãe e filho. Os contatos físicos entre eles foram<br />

se acentuando cada vez mais, sob os olhares complacentes ou indiferentes<br />

de todos. Instalara-se uma forte e violenta paixão entre mãe e filho,<br />

já iniciada antes do encontro.<br />

Rosária, conforme previra Dr. Adamastor, se tornava mais animada,<br />

falante, excitada. Suas conversas só versavam sobre sexo e compras;<br />

começou a fazer brincadeiras pouco comuns. Sem demostrar nenhum<br />

pudor, arrumou um motivo para que Antônio fosse dormir, de vez em<br />

quando, no seu quarto. Ele, conversador e animado, igual à mãe, prontamente,<br />

aceitou o convite, sem demonstrar inibições ou repúdio. A<br />

partir de um primeiro encontro, que não teve obstáculo em nenhum dos<br />

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familiares, todas as vezes que chovia mais forte, ela declarava que estava<br />

tendo crises de nervos, que tinha pavor de relâmpagos e de trovoadas.<br />

Por tudo isso, conforme a lógica de Rosária, depois de uma conversa<br />

com Antônio, ele concordou, com muito prazer e orgulho, em dormir<br />

com a mãe, nessas noites de terror, para ajudá-la, se tivesse uma crise.<br />

A partir dessa explicação, a todo e qualquer sinal no céu de tempestade,<br />

ainda que mínimo, os dois se preparavam para dormir no mesmo quarto<br />

e na única cama que ali existia. Dr. Adamastor, há muito tempo, afastado,<br />

dormia em outro quarto, longe do dela.<br />

Lucinho espreitava-os, constantemente, sem ser notado por eles. Ambos<br />

estavam totalmente despreocupados e desinibidos e cada dia mais<br />

indiferentes a tudo. Percebia-se, claramente, que Rosária entrara numa<br />

crise de agitação; mudou seu modo de falar e até os cabelos. Cortou-os<br />

muito curtos e mudou a cor para acaju, com total aprovação de Antônio,<br />

que a acompanhou até o salão e lá ficou esperando, dando palpites como<br />

deveria cortá-los, qual a cor que mais se adaptava a ela. Ela voltou a<br />

sair muito de casa, trocou as roupas de cama, as camisolas: escolhendo<br />

as mais excitantes e ”sexy” possíveis. Sem se preocupar com os outros,<br />

andava pela casa mostrando suas grossas e brancas pernas, cheias de<br />

estrias e dobras, exibia, também, escondidos atrás do minúsculo sutiã<br />

preto, seus seios flácidos. Nas horas das refeições abraçava o filho querido,<br />

contava piadas picantes, ria às gargalhadas e xingava, usando todos<br />

os nomes feios conhecidos; os familiares que ousassem ir contra seus desejos<br />

ou que os criticassem. Conhecedor de suas crises, Dr. Adamastor,<br />

apático, aceitava tudo, esperando o fim de tudo aquilo, como acontecera<br />

em outras ocasiões.<br />

Antônio, diante daquela mãe, antes desconhecida, tendo tomado o lugar<br />

de Lucinho, aceitava tudo, passivamente. Ele bebia a maior parte do dia;<br />

fazendo, também, às vezes, uso de cocaína e LSD. Essas drogas e mais o<br />

álcool, ajudado pela agitação de Rosária, o punham tanto ou mais excitado<br />

do que a própria mãe.<br />

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Assim, corria a vida da família, sem ordem e sem chefe, sem que ninguém<br />

fizesse nada para interromper esses acontecimentos dolorosos.<br />

Tudo caminhava para a decomposição. A única pessoa a notar aquela<br />

mudança e a chamar a atenção do comportamento de Rosária foi Cândida;<br />

mas, de nada adiantaram suas preocupações e ações, tudo continuou<br />

como antes. Todos ali já haviam se acostumados à desordem daquela<br />

casa e a irresponsabilidade de Rosária. As outras crises foram parecidas,<br />

quando ela saiu com o pintor, o marceneiro, o encanador, o açougueiro<br />

e o vizinho aposentado. Agora, era o próprio filho o seduzido por ela.<br />

Esse, devido à carência, à bebida e às drogas, talvez, devido à precoce<br />

separação e por isso mesmo, sem a conhecer desde que nascera, encontrava<br />

agora um amor materno que se transformara em carnal.<br />

Lucinho, cada dia mais distante se perturbava com tudo a que assistia.<br />

Sentia ódio dele, dela e, também, de si próprio. Lembrava-se dos abusos<br />

sofridos por ele quando criança, mas, ao mesmo tempo e desgraçadamente,<br />

sentia inveja do irmão e sentia-se culpado por sentir inveja.<br />

Percebia que poderia ter uma nova crise e sentia medo dela, mais do<br />

que das outras vezes. Ensimesmado, sem outra coisa a fazer a não ser<br />

pensar sobre o que observava, via aumentar sua desconfiança. Cada dia<br />

tornava-se mais sensível a qualquer olhar ou som que escutasse. Estava<br />

sempre pronto a reagir a qualquer provocação. Para piorar, ele se afastou<br />

de quem ele mais amava em casa, que era Agostinho, acusando-o de<br />

estar sendo omisso, pois deveria fazer alguma coisa para impedir aquela<br />

catástrofe. Começou a sentir falta dos xingamentos de Roberta; era<br />

com ela que ele constantemente brigava, mas na realidade essas brigas<br />

o excitavam. Tentou provocá-la várias vezes, para discutir sobre o assunto,<br />

mas, ela, como os outros, desanimada, não reagiu às provocações,<br />

apenas sorriu para ele, afastando-se.<br />

Por último, desesperado, decidiu ir atrás de Virgínia, sua amiga do hospital,<br />

que, há muito não via. Entretanto, não a encontrou, Virgínia tinha<br />

sido internada novamente. Foi até ao hospital para vê-la e desabafar-se<br />

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diante dela, mas as visitas estavam proibidas. Lucinho foi percebendo<br />

que estava só; não havia mais ninguém a recorrer. Pensou nos psiquiatras,<br />

Dr. Erasmo, o Prof. Pinelli, mas sua desesperança acentuara-se,<br />

não o deixando antever nenhuma saída para o novo problema que enfrentava,<br />

jamais imaginado e discutido com os analistas conhecidos.<br />

As teorias com as quais ele anteriormente acreditava poder explicar<br />

tudo, e que lhe haviam proporcionado algum conforto mental e espiritual,<br />

não mais valiam, não funcionavam diante do que assistia.<br />

Numa noite de dezembro, próximo das festas comemorativos do dia de<br />

Natal, Lucinho não conseguiu dormir. Levantou-se, tendo a garganta<br />

seca. Caminhou até a cozinha para tomar um copo d’água. Como ele<br />

havia ido para cama cedo, imaginou ser bastante tarde, mas na realidade<br />

ainda não passava da meia-noite.<br />

Todos na casa pareciam dormir. Um pouco tonto, devido à confusão e<br />

à falta de sono, Lucinho caminhou em busca do copo. Ao passar defronte<br />

do quarto de Rosária, escutou risos. Na cozinha, viu em cima da<br />

pia, dois copos usados e com restos de bebida. Cheirou-os e percebeu<br />

o cheiro de vinho, a única bebida que sua mãe tolerava. Observou que<br />

ainda restava meia garrafa, jogada no lixo. Examinou o cesto descobrindo<br />

dentro dele mais duas garrafas vazias. Em cima da mesa havia pratinhos<br />

com restos de queijo, azeitonas e salaminho. Imaginou, horrorizado<br />

e enojado a cena possível que o martirizou e o impediu de voltar para o<br />

quarto.<br />

Postou-se diante do quarto e ficou ouvindo, amargurado, os sons que<br />

de tempos em tempos saíam de lá: sussurros, risinhos, movimentos de<br />

corpos, novos sons de conversas, respirações ofegantes. Do aparelho de<br />

som, colocado muito baixo, podia-se ouvir, ao longe, a música “Plaisir<br />

D’Amour”, que jamais saíra de sua cabeça! Ao ouvir a música conhecida,<br />

o barulho dos corpos na cama, vieram-lhe à mente, com todo o ódio<br />

guardado, durante anos, as cenas vividas nas penosas noites. Reviveu<br />

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sentimentos conflitantes: prazer, por estar recebendo carinho daquela<br />

que pouco lhe dava, e sofrimento, por ser usado por uma mãe doentia,<br />

que provocara em sua alma uma dor terrível, que deformara, para o<br />

resto da vida, sua mente.<br />

Ao ouvir o relógio bater demoradamente doze badaladas, se assustou.<br />

Sua cabeça fervia, ouvia os sons macabros e adivinhava a cena representada<br />

naquele quarto, ali, bem a sua frente. Todos em casa continuavam a<br />

dormir. Voltou à geladeira, bebeu um pouco d’água; em seguida, bebeu<br />

o vinho restante pelo gargalo da garrafa, cuspindo, no chão, o gosto amargo.<br />

Continuou sua vigília, por minutos, até sentir um ligeiro efeito do<br />

vinho, que o colocou mais desinibido.<br />

Desesperado, tendo sua mente inundada por pensamentos desencontrados,<br />

Lucinho, sofrendo, engendrou um plano ousado para aliviá-lo.<br />

Sorrateiramente, entrou no quarto dos avós, onde Clarimundo e Gertrudes<br />

dormiam profundamente. Andando com todo o cuidado, para<br />

não fazer barulho, aproximou-se do criado mudo, ao lado da cama do<br />

casal, para tirar o antigo Smith Wesson. Nesse momento, Clarimundo,<br />

automaticamente, girou o braço direito para dentro da gaveta aberta,<br />

para certificar-se que a arma estava no lugar, mas, sem ao menos abrir<br />

os olhos, retornou à posição anterior e roncou, provocando um grande<br />

barulho. Lucinho levou as mãos à gaveta, desta vez pegando o velho<br />

revólver conhecido, que levara à escola. Saiu do quarto já empunhando<br />

a arma, segurando-a com a mão direita. Fechou com cuidado a porta<br />

e respirou aliviado por estar de posse da arma. Foi até à sala de jantar<br />

junto ao quarto onde Rosária e Antônio estavam. Ali, tristemente, mais<br />

uma vez recordou como num filme todas as cenas por ele vividas com<br />

a mãe. Com lágrimas nos olhos, ele lembrava de tudo; as imagens não<br />

o abandonavam. Repentinamente, enquanto pensava e chorava, a porta<br />

se abriu; Rosária e Antônio saíram cambaleando, alegres, abraçados<br />

um ao outro. Ela vestia um pegnoir azul, da cor de seus olhos. Estava<br />

totalmente desarrumada, de tal forma que todo seu corpo se punha à<br />

mostra, Antônio parecia estar nu.<br />

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Como tinham acendido a luz do quarto e, também por estarem eufóricos<br />

e embriagados, nem perceberam a presença de Lucinho, portando<br />

a arma diante deles e que nesse momento já estava engatilhada e pronta<br />

para disparar.<br />

Lucinho, imaginando que eles tivessem notado sua presença na sala,<br />

ficou confuso. Perturbado e apavorado com tudo que presenciava diante<br />

dele: o casal embriagado e vestido daquela maneira, indiferente a tudo.<br />

Seu ódio ia aumentando; ajudado por ele, caminhou firme em direção<br />

aos dois. Não mais controlava suas ações; não mais raciocinava, agia<br />

como um animal pronto para eliminar o inimigo de sempre. Precisava<br />

terminar com aquela tortura, o mais depressa possível.<br />

Nesse instante, Rosária percebeu a presença de Lucinho diante dela,<br />

bem como sua fisionomia estranha e pronta para a agressão. Apavorada,<br />

como um animal acuado, sem refletir, deu o costumeiro grito estridente<br />

e dominador:<br />

- Pare meu filho! Largue isso! Depressa! Obedeça sua mãe!<br />

Ao contrário de sempre, desta vez, Lucinho não obedeceu. Apertou o<br />

gatilho a primeira vez, quando nenhuma bala saiu; mas não demorou<br />

mais do que um segundo, ou menos ainda, para apertar o gatilho pela<br />

segunda vez, apontando para a boca de Rosária. Desta vez a bala saiu,<br />

atravessou a bochecha, ao lado do nariz; um segundo tiro acertou seu<br />

belo olho azul. Em seguida ouviu-se um terceiro, quarto e quinto tiro,<br />

que ecoaram fazendo um barulho seco por toda a casa que dormia. Os<br />

cinco tiros foram dados à queima-roupa. Antônio amedrontado, quase<br />

caindo, correu para o quarto. Todos os tiros acertaram o corpo quase nu<br />

e balofo de Rosária, que caiu, de uma só vez, no assoalho da casa, provocando<br />

um barulho semelhante à queda de um pesado saco cheio de<br />

água.<br />

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Do corpo de Rosária, atravessado no peito e na face pelas cinco balas<br />

disparadas, nasceram filetes de sangue, que escorreram, preguiçosamente,<br />

pela sua pele branca formando desenhos vermelhos e sinuosos<br />

na sua face ainda espantada. Sua respiração foi-se tornando mais difícil<br />

e lenta. Lucinho abatido, agachou-se ao lado de sua mãe, abraçando-a<br />

enquanto chorava convulsivamente. Suas lágrimas cristalinas caíam no<br />

corpo da mãe, misturando-se, aos poucos, com alguma dificuldade, ao<br />

sangue vermelho que brotava de suas feridas. Agostinho, atordoado,<br />

tentava afastá-lo, sem o conseguir. Lucinho ali ficou, preso a ela, até<br />

à chegada da ambulância e dos policiais. Rosária, com seu rosto ensangüentado,<br />

virado em direção ao filho, parecia usar o resto das forças<br />

que lhe restavam, para se despedir e abençoá-lo.<br />

Só com muito esforço os familiares conseguiram afastar Lucinho abraçado<br />

ao cadáver de Rosária estirado na poça de sangue, que inundava toda<br />

a sala e escorria em direção à cozinha.<br />

Ninguém fez um comentário. Um terrível silêncio se instalou, enquanto<br />

os policiais conduziam Lucinho, sem resistência, para a prisão.<br />

Não houve necessidade de algemá-lo ou de forçá-lo a caminhar para o<br />

camburão, que o esperava. O que mais ele queria, naquele momento,<br />

era escapar daquela casa; o que ele devia ter feito desde que nasceu. Os<br />

policiais que o acompanharam não deixaram de ter seus olhos umedecidos<br />

ao presenciar o quadro trágico que poucas vezes, em seu trabalho,<br />

assistiram.<br />

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Epílogo<br />

A história de Lucinho continuou. Não terminou após essa tragédia.<br />

Através de exames psiquiátricos, realizados pelos médicos que o acompanharam,<br />

a pedido dos advogados, foi cumprir pena no Manicômio<br />

Judiciário em lugar de ser preso numa penitenciária; talvez, na minha<br />

opinião, local muito pior do que a própria prisão. Depois de dois anos<br />

ali, no meio de loucos de toda natureza, essa alma sensível e sofrida<br />

suicidou-se com uma corda na própria cama onde dormia. Os que retiraram<br />

seu corpo afirmaram:<br />

- Ele devia estar querendo mesmo morrer, pois é quase impossível enforcar-se<br />

numa cama, sem a altura necessária para tal.<br />

O que ele fez parecia mentira... Como foi toda a sua existência: uma constante<br />

busca da identidade; uma luta constante para escapar do labirinto<br />

onde fora aprisionado.<br />

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306


Fim<br />

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