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A BUSCA PELO SAGRADO: O mito do herói e os ritos de ... - ABHR

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A <strong>BUSCA</strong> <strong>PELO</strong> <strong>SAGRADO</strong>: O <strong>mito</strong> <strong>do</strong> <strong>herói</strong> e <strong>os</strong> rit<strong>os</strong> <strong>de</strong> passagem<br />

GP 07 Mística e Iluminação<br />

Coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ra: Cecília Cintra Cavaleiro <strong>de</strong> Mace<strong>do</strong> (Centro Universitário São Camilo-SP)<br />

André Miele Ama<strong>do</strong><br />

mieleama<strong>do</strong>@gmail.com<br />

Eu sai da minha terra Me <strong>de</strong>u lição verda<strong>de</strong>ira<br />

Por ter sina viageira Coragem num tá no grito<br />

Com <strong>do</strong>is meses <strong>de</strong> viagem E nem riqueza na algibeira<br />

Eu vivi uma vida inteira E <strong>os</strong> peca<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>do</strong>mingo<br />

Sai bravo, cheguei manso Quem paga é segunda-feira<br />

Macho da mesma maneira<br />

Estrada foi boa mestra Capoeira <strong>do</strong> Arnal<strong>do</strong><br />

Paulo Vanzolini<br />

O rito <strong>de</strong> passagem ou <strong>de</strong> iniciação é um rito que marca a transição <strong>de</strong> um status social<br />

ou sexual a outro. Ritualmente reproduz o nascimento, a saída <strong>do</strong> bebê da barriga da mãe e a<br />

entrada para uma nova realida<strong>de</strong>. Assim como no nascimento, o rito <strong>de</strong> passagem exige o<br />

<strong>de</strong>sprendimento, esforço, sacrifício. Em algumas culturas tais rit<strong>os</strong> são acompanha<strong>do</strong>s <strong>de</strong><br />

escarificações e privações 1 .<br />

Em 1909, Otto Rank(1884-1939) pesquisa<strong>do</strong>r, psicanalista, colabora<strong>do</strong>r e colega <strong>de</strong><br />

Sigmund Freud, em sua obra Der Mythus von <strong>de</strong>r Geburt <strong>de</strong>s Hel<strong>de</strong>n (O <strong>mito</strong> <strong>do</strong> nascimento<br />

<strong>do</strong> Herói) analisa <strong>os</strong> <strong>mito</strong>s <strong>de</strong> Sargon, Moisés, Karna, Édipo, Paris, Telephus, Perseu,<br />

Gilgamesh, Cyrus, Tristan, Romulus, Hercules, Jesus, Siegfried e Lohengrin. Em sua análise<br />

ele <strong>de</strong>staca símbol<strong>os</strong> recorrentes, a to<strong>do</strong>s esses <strong>mito</strong>s, tais como a água, a luta para nascer,<br />

mesmo contra toda adversida<strong>de</strong>, e a vitória <strong>do</strong> <strong>herói</strong>.<br />

Otto Rank ressalta que para compreen<strong>de</strong>r <strong>os</strong> <strong>mito</strong>s é necessário a<strong>de</strong>ntrar no reino da<br />

imaginação. “Numer<strong>os</strong><strong>os</strong> investiga<strong>do</strong>res têm enfatiza<strong>do</strong> que a compreensão da formação <strong>do</strong><br />

<strong>mito</strong> requer o retorno para a sua <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira fonte, a faculda<strong>de</strong> da imaginação individual”. 2 A<br />

compreensão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> imagético é essencial para compreen<strong>de</strong>r o <strong>mito</strong> e para Otto, a fonte <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong> imagético é a criança.<br />

Licencia<strong>do</strong> em Física pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral da Paraíba e mestran<strong>do</strong> pelo Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em<br />

Ciências das Religiões da mesma universida<strong>de</strong>.<br />

1<br />

Como retratam em suas obras <strong>os</strong> pesquisa<strong>do</strong>res Arnold Van Gennep, Victor Tuner, Jacques le Goff, Philippe<br />

Laburthe-Tolra e Jean-Pierre Warnier<br />

2<br />

RANK, Otto. The myth of the birth of the hero, pg. 66<br />

1


Comentan<strong>do</strong> sobre o livro <strong>de</strong> Otto Rank, O <strong>mito</strong> <strong>do</strong> nascimento <strong>do</strong> Herói, concorda<br />

que to<strong>do</strong>s nós som<strong>os</strong> <strong>herói</strong>s ao nascer, quan<strong>do</strong> enfrentam<strong>os</strong> uma tremenda transformação,<br />

tanto psicológica quanto física, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> a condição <strong>de</strong> criaturas aquáticas, viven<strong>do</strong> no flui<strong>do</strong><br />

amniótico, para assumirm<strong>os</strong>, daí por diante, a condição <strong>de</strong> mamífer<strong>os</strong> que respiram o oxigênio<br />

<strong>do</strong> ar, e que, mais tar<strong>de</strong>, precisarão erguer-se sobre <strong>os</strong> própri<strong>os</strong> pés. Esta é uma enorme<br />

transformação, e certamente, um ato <strong>herói</strong>co, caso f<strong>os</strong>se pratica<strong>do</strong> conscientemente. 3<br />

Os <strong>mito</strong>s são frut<strong>os</strong> <strong>do</strong>s dramas infantis, segun<strong>do</strong> Otto Rank. No caso <strong>do</strong> <strong>mito</strong> <strong>do</strong><br />

<strong>herói</strong>, este <strong>de</strong>corre <strong>do</strong> drama <strong>do</strong> incesto. O filho se rebela contra o pai para conquistar o amor<br />

da mãe. Esta é a tese <strong>do</strong> seu mentor, Sigmund Freud, que irá chamar <strong>de</strong> complexo <strong>de</strong> Édipo.<br />

A rebelião <strong>do</strong> filho contra o pai po<strong>de</strong> não ser apenas para conquistar a mãe, po<strong>de</strong> ser<br />

também para conquistar a sua in<strong>de</strong>pendência. A eliminação <strong>do</strong> ego infantil é a maior das lutas<br />

na passagem <strong>do</strong> jovem para o adulto. Os embates intern<strong>os</strong> são muito mais difíceis e<br />

complica<strong>do</strong>s <strong>do</strong> que combater outro ser humano.<br />

“Os rituais das primitivas cerimônias <strong>de</strong> iniciação têm sempre uma base <strong>mito</strong>lógica e<br />

se relacionam à eliminação <strong>do</strong> ego infantil, quan<strong>do</strong> vem à tona o adulto, seja menina ou<br />

menino”. 4<br />

Tanto <strong>os</strong> menin<strong>os</strong> quanto as meninas experimentam mudanças fisiológicas tão intensas<br />

a ponto <strong>de</strong> provocarem uma mudança psicológica transfigura<strong>do</strong>ra, ou seja, a passagem não é<br />

apenas fisiológica, é sobretu<strong>do</strong> mental. O embate mental in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>do</strong> sexo, ou seja, é tão<br />

difícil para o menino quanto para a menina fazer a transição para o adulto. Os rit<strong>os</strong> <strong>de</strong><br />

passagem seriam uma forma <strong>de</strong> resolver <strong>os</strong> conflit<strong>os</strong> entre a mente e o corpo.<br />

A in<strong>de</strong>pendência é conquistada quan<strong>do</strong> o jovem se <strong>de</strong>spren<strong>de</strong> da <strong>de</strong>pendência <strong>do</strong>s pais.<br />

O primeiro passo para a in<strong>de</strong>pendência é à op<strong>os</strong>ição a or<strong>de</strong>m vigente e to<strong>do</strong> <strong>herói</strong> começa<br />

como um rebel<strong>de</strong>.<br />

“O próprio <strong>herói</strong>, como <strong>de</strong>monstra<strong>do</strong> pelo <strong>de</strong>sprendimento <strong>do</strong>s pais, começa sua<br />

careira em op<strong>os</strong>ição à geração mais velha. Ele é ao mesmo tempo um rebel<strong>de</strong>, um renova<strong>do</strong>r e<br />

um revolucionário. Entretanto, to<strong>do</strong> revolucionário é originalmente um filho <strong>de</strong>sobediente, um<br />

rebel<strong>de</strong> contra o pai.” 5<br />

3 CAMPBELL, J<strong>os</strong>eph. O Po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> Mito, pg.132<br />

4 CAMPBELL, J<strong>os</strong>eph. O Po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> Mito, pg. 147<br />

5 RANK, Otto. The myth of the birth of the hero, pg. 95<br />

2


A op<strong>os</strong>ição é um <strong>do</strong>s pass<strong>os</strong> para encontrar a individualida<strong>de</strong>, mas não é o fim. Apesar<br />

da redundância, a auto-superação faz parte <strong>do</strong> “heroísmo <strong>do</strong> <strong>herói</strong>”. Isso nem sempre<br />

acontece, mas c<strong>os</strong>tuma fazer parte <strong>do</strong> processo<br />

A jornada <strong>do</strong> <strong>herói</strong> é mais profunda <strong>do</strong> que qualquer rebeldia, vai até o âmago <strong>do</strong><br />

espírito humano, para <strong>de</strong>pois retornar trazen<strong>do</strong> essa essência <strong>de</strong> vida e <strong>do</strong>á-la para a<br />

humanida<strong>de</strong>.<br />

Para Campbell, a façanha <strong>do</strong> <strong>herói</strong> começa com alguém a quem foi usurpada alguma<br />

coisa ou que sente <strong>de</strong>sloca<strong>do</strong> entre as experiências normais <strong>do</strong>s membr<strong>os</strong> da socieda<strong>de</strong>. Essa<br />

pessoa então parte numa jornada que ultrapassa o usual, quer para recuperar o que tinha si<strong>do</strong><br />

perdi<strong>do</strong>, quer para <strong>de</strong>scobrir seu lugar na socieda<strong>de</strong>. Normalmente, o <strong>herói</strong> perfaz-se um<br />

círculo que inicia com a partida e termina com o retorno. Essa jornada tem algo <strong>de</strong> um busca<br />

espiritual, pois o jovem evolui <strong>de</strong> uma p<strong>os</strong>ição <strong>de</strong> imaturida<strong>de</strong> psicológica para a coragem da<br />

auto-responsabilida<strong>de</strong>, na passagem se morre e renasce. Esse é o motivo básico <strong>do</strong> périplo<br />

universal <strong>do</strong> <strong>herói</strong>. 6<br />

Arnold Van Gennep(1873-1975) é um <strong>do</strong>s mais importantes folclorista e etnógrafo<br />

francês. Ele cunhou o termo “ritual <strong>de</strong> passagem”. Fez um estu<strong>do</strong> sistemático <strong>de</strong>ssas<br />

cerimônias e <strong>de</strong>dicou uma obra a elas, “Les Rites <strong>de</strong> passage” (Os Rit<strong>os</strong> <strong>de</strong> passagem - 1909).<br />

Van Gennep i<strong>de</strong>ntificou três fazes n<strong>os</strong> rit<strong>os</strong> <strong>de</strong> passagem. Primeiro A separação, o<br />

<strong>de</strong>sprendimento <strong>do</strong>s pais e <strong>do</strong> ego infantil; A margem, seria a busca da autonomia, ou seja,<br />

buscar <strong>de</strong>spertar as qualida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> adulto; Agregação, a aquisição <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio <strong>de</strong> si, quan<strong>do</strong> o<br />

jovem retorna não mais como criança, mas como adulto. Essa mesma estrutura está presente<br />

n<strong>os</strong> <strong>mito</strong>s <strong>de</strong> <strong>herói</strong>s e não é por acaso. Segun<strong>do</strong> Campbell, to<strong>do</strong> rito é uma encenação mítica. 7<br />

A epopéia mítica é reproduzida no rito, som<strong>os</strong> transporta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> profano para o<br />

sagra<strong>do</strong>, <strong>do</strong> sobrenatural.<br />

Para Durkheim, o sobrenatural é uma noção tida geralmente como característica <strong>de</strong><br />

tu<strong>do</strong> que é religi<strong>os</strong>o. Enten<strong>de</strong>-se por isso toda a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> coisas que ultrapassa o alcance <strong>de</strong><br />

n<strong>os</strong>so entendimento; o sobrenatural é o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> mistério, <strong>do</strong> incogn<strong>os</strong>cível, <strong>do</strong><br />

incompreensível. A religião seria, portanto, uma espécie <strong>de</strong> especulação sobre tu<strong>do</strong> o que<br />

escapa à ciência e, <strong>de</strong> maneira mais geral, ao pensamento claro. 8 Ora seguin<strong>do</strong> essa idéia <strong>de</strong><br />

6 CAMPBELL, J<strong>os</strong>eph. O Po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> Mito, pg.131, 132<br />

7 CAMPBELL, J<strong>os</strong>eph. O Po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> <strong>mito</strong>, pg113<br />

8 DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religi<strong>os</strong>a: o sistema totêmico na Austrália, pg. 5<br />

3


Durkheim, o mun<strong>do</strong> imagético <strong>do</strong> ser humano faria parte <strong>do</strong> sobrenatural, pois escapa a<br />

ciência e também não faz parte <strong>do</strong> pensamento claro e sen<strong>do</strong> parte <strong>do</strong> sobrenatural seria objeto<br />

<strong>de</strong> estu<strong>do</strong> das religiões.<br />

Durkheim afirma que a única forma segura e confiável <strong>de</strong> aquisição <strong>do</strong> conhecimento<br />

é a razão, quanto a isso, Bachelard discorre que o raciocínio não é a única forma <strong>de</strong> aquisição<br />

<strong>do</strong> conhecimento e fará a sua Fenomenologia Poética que abarca também a sensibilida<strong>de</strong>. O<br />

que escapa a Durkheim é que o racícionio permite sem dúvida analisar <strong>os</strong> fat<strong>os</strong>, compreen<strong>de</strong>r<br />

a relação existente entre eles, mas não cria significa<strong>do</strong>. Para que a criação ocorra, é necessário<br />

imaginar. 9 Os <strong>mito</strong>s têm um aspecto pedagógico, mas, sobretu<strong>do</strong>, eles atuam no mun<strong>do</strong><br />

imagético, dan<strong>do</strong> um senti<strong>do</strong> à vida.<br />

O próprio Durkheim percebe a necessida<strong>de</strong> humana <strong>de</strong> criar senti<strong>do</strong> à vida, remeten<strong>do</strong><br />

ao aspecto simbólico, imagético <strong>do</strong> ser humano, ainda que com certo <strong>de</strong>sdém e que <strong>de</strong>ve ser<br />

manti<strong>do</strong> à distância:<br />

Os homens foram obriga<strong>do</strong>s a criar para si uma noção <strong>do</strong> que é religião, bem antes<br />

que a ciência das religiões pu<strong>de</strong>sse instituir suas comparações metódicas. As<br />

necessida<strong>de</strong>s da existência n<strong>os</strong> obrigam a to<strong>do</strong>s, crentes e incrédul<strong>os</strong>, a representar <strong>de</strong><br />

alguma maneira as coisas no meio das quais vivem<strong>os</strong>, sobre as quais a to<strong>do</strong> momento<br />

emitim<strong>os</strong> juíz<strong>os</strong> e que precisam<strong>os</strong> levar em conta em n<strong>os</strong>sa conduta. Mas como essas<br />

pré-noções se formaram sem méto<strong>do</strong>, segun<strong>do</strong> <strong>os</strong> acas<strong>os</strong> e as circunstâncias da vida,<br />

elas não têm direito a crédito e <strong>de</strong>vem ser mantidas rigor<strong>os</strong>amente à distância <strong>do</strong><br />

exame que irem<strong>os</strong> empreen<strong>de</strong>r. Não são <strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong> preconceit<strong>os</strong>, a n<strong>os</strong>sas paixões, a<br />

n<strong>os</strong>s<strong>os</strong> hábit<strong>os</strong> que <strong>de</strong>vem ser solicita<strong>do</strong>s <strong>os</strong> element<strong>os</strong> da <strong>de</strong>finição que necessitam<strong>os</strong>;<br />

é a realida<strong>de</strong> mesma que se trata <strong>de</strong> <strong>de</strong>finir. 10<br />

A p<strong>os</strong>ição <strong>de</strong> Durkheim <strong>de</strong> reprimir o aspecto imagético <strong>do</strong> ser humano para alcançar a<br />

“verda<strong>de</strong> pura” é um <strong>do</strong>s pressup<strong>os</strong>t<strong>os</strong> <strong>do</strong> pensamento científico, nasci<strong>do</strong> da Revolução<br />

Científica, movimento <strong>do</strong> século XVII, que separou a Ciência da religião, especificamente das<br />

interpretações Teocêntricas da Igreja Católica. O problema é que o cientificismo foi<br />

pre<strong>do</strong>minante na socieda<strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntal e “rotulou” <strong>os</strong> <strong>mito</strong>s, chaman<strong>do</strong>-<strong>os</strong> <strong>de</strong> “mentiras” que se<br />

contam para crianças. A razão foi dissociada da sua verda<strong>de</strong>ira fonte, o <strong>mito</strong>. Nessa busca<br />

pelo racional o sentimento foi abafa<strong>do</strong> e o ser humano ficou dividi<strong>do</strong>. As conseqüências <strong>de</strong>sse<br />

9 PITTA, Danielle Perin Rocha. Iniciação a Teoria <strong>do</strong> Imaginário, pg.12<br />

10 Ibid, pg.4<br />

4


movimento darão origem à diversas crises contemporâneas, tanto individuais, quanto sociais.<br />

Em n<strong>os</strong>sa socieda<strong>de</strong> <strong>os</strong> rit<strong>os</strong> per<strong>de</strong>m importância, porque são vivências profundamente<br />

emotivas e na maioria <strong>do</strong>s cas<strong>os</strong>, pouco ou nada lógic<strong>os</strong>.<br />

Segun<strong>do</strong> Gilbert Durand em sua obra L’Imagination Symbolique a p<strong>os</strong>tura Científica<br />

<strong>de</strong> negar o mun<strong>do</strong> Imagético é reducionista, não contempla o ser humano <strong>de</strong> forma integral,<br />

razão e sensibilida<strong>de</strong>. Não percebe que a razão nasce <strong>do</strong> Imaginário. A própria Ciência é uma<br />

Hermenêutica, uma construção mítica, que Durand irá chamar <strong>de</strong> hermenêutica redutora em<br />

contraste com as hermenêuticas instaurativas.<br />

A mais evi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>preciação <strong>do</strong>s símbol<strong>os</strong> que n<strong>os</strong> apresentam a história <strong>de</strong> n<strong>os</strong>sa<br />

civilização é certamente aquela que se manifesta <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong>s atuais cientistas <strong>do</strong><br />

cartesianismo. Cert<strong>os</strong>, como escreveu excelentemente um cartesianista<br />

contemporâneo, não é porque Descartes recusa <strong>de</strong> fazer uso da noção <strong>de</strong> símbolo.<br />

Mas que o único símbolo para o Descartes da terceira meditação, é a consciência, ela<br />

mesma a imagem e semelhança <strong>de</strong> Deus. 11<br />

A vida imagética tem um senti<strong>do</strong> próprio, mais abrangente <strong>do</strong> que a razão e quan<strong>do</strong><br />

tenta reduzi-la ao ato concreto em si, parte <strong>de</strong> seu senti<strong>do</strong> se per<strong>de</strong>.<br />

“...na linguagem, se a escolha <strong>do</strong> signo é insignificante porque este último é arbitrário,<br />

já não acontece o mesmo com o <strong>do</strong>mínio da imaginação em que a imagem – por mais<br />

<strong>de</strong>gradada que p<strong>os</strong>sa ser concebida – é ela mesma porta<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> um senti<strong>do</strong> que não <strong>de</strong>ve ser<br />

procura<strong>do</strong> fora da significação imaginária.” 12<br />

De to<strong>do</strong>s <strong>os</strong> cientistas <strong>os</strong> Físic<strong>os</strong> são <strong>os</strong> que mais buscaram explicar a realida<strong>de</strong> ten<strong>do</strong><br />

por base o pensamento científico. A Física Newtoniana afirmou que a realida<strong>de</strong> era concreta,<br />

absoluta e permanente. Esse pensamento perdurou durante sécul<strong>os</strong>, até o aparecimento <strong>de</strong><br />

Einstein e sua Teoria da Relativida<strong>de</strong>, quan<strong>do</strong> <strong>de</strong>monstrou que o espaço e o tempo não são<br />

absolut<strong>os</strong>, eles po<strong>de</strong>m ser contraí<strong>do</strong>s ou expandi<strong>do</strong>s, contrarian<strong>do</strong> a lógica <strong>de</strong> espaço e tempo<br />

absolut<strong>os</strong> <strong>de</strong> Newton.<br />

N<strong>os</strong>sa noção <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> foi ainda mais afetada com as <strong>de</strong>scobertas <strong>do</strong>s físic<strong>os</strong><br />

quântic<strong>os</strong>. Estes <strong>de</strong>scobriram que a matéria, aparentemente tão sólida, é constituída em seu<br />

âmago por átom<strong>os</strong>, que por sua vez são em sua maior parte enormes espaç<strong>os</strong> vazi<strong>os</strong>. Os<br />

11 DURAND, Gilbert. L’Imagination Symbolique Pg.23<br />

12 DURAND, Gilbert. Estruturas Antropológicas <strong>do</strong> Imaginário, pg.28<br />

5


element<strong>os</strong> constitutiv<strong>os</strong> <strong>do</strong> átomo têm proprieda<strong>de</strong>s que contradizem a razão: têm<br />

comportamento dual onda-matéria, efeit<strong>os</strong> <strong>de</strong> tunelamento, são regi<strong>do</strong>s por uma incerteza<br />

intrínseca que obriga a representá-l<strong>os</strong> em term<strong>os</strong> <strong>de</strong> probabilida<strong>de</strong>s, entre outr<strong>os</strong> efeit<strong>os</strong> que<br />

ferem o bom senso. Na frase célebre <strong>do</strong> físico quântico Niels Bohr: “Se a mecânica Quântica<br />

não lhe chocou, é porque você ainda não a enten<strong>de</strong>u.” Os físic<strong>os</strong> quântic<strong>os</strong> estão <strong>de</strong>monstran<strong>do</strong><br />

que a realida<strong>de</strong> em sua essência não é nem lógica, nem sólida, não existin<strong>do</strong> essa concretu<strong>de</strong><br />

sonhada pelo cientificismo, pensamento que será retoma<strong>do</strong> pel<strong>os</strong> cientistas <strong>do</strong> imaginário.<br />

Na teoria <strong>do</strong> Imaginário, a realida<strong>de</strong> é interpretada, criada a partir <strong>do</strong>s <strong>mito</strong>s, ou seja, é<br />

imagética. Segun<strong>do</strong> Juremir Silva, to<strong>do</strong> imaginário é real. To<strong>do</strong> real é imagina<strong>do</strong>. O homem<br />

só existe na realida<strong>de</strong> imagética. Não há vida simbólica fora <strong>do</strong> imaginário. O mesmo já tinha<br />

si<strong>do</strong> percebi<strong>do</strong> por Jacques Lacan no que se refere à sexualida<strong>de</strong>. Tu<strong>do</strong> acontece no<br />

imaginário: sexo, preconceit<strong>os</strong>.... O concreto é empurra<strong>do</strong>, impulsiona<strong>do</strong> e catalisa<strong>do</strong> por<br />

forças imagéticas. Nisso não se escon<strong>de</strong> um velho i<strong>de</strong>alismo, travesti<strong>do</strong> <strong>de</strong> novo, em função<br />

<strong>de</strong> uma renovação <strong>de</strong> terminologia, mas transparece uma constatação antropológica: o ser<br />

humano é movi<strong>do</strong> pel<strong>os</strong> imaginári<strong>os</strong> que engendra. O homem só existe no imaginário. 13<br />

A frase célebre <strong>do</strong> Buda Sidarta Gautama <strong>de</strong> que nós fazem<strong>os</strong> a n<strong>os</strong>sa própria<br />

realida<strong>de</strong> será amplamente aceita na teoria <strong>do</strong> Imaginário. A realida<strong>de</strong> não é fruto <strong>do</strong>s fat<strong>os</strong>,<br />

mas das interpretações que dam<strong>os</strong> a estes. Da mesma forma a eficácia <strong>do</strong> ritual, não está no<br />

ato em si, mas <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> que dam<strong>os</strong> a ele, sua força vem da crença no transcen<strong>de</strong>nte. O que<br />

n<strong>os</strong> remete a noção <strong>de</strong> sagra<strong>do</strong> e profano.<br />

Para Durkheim, o sagra<strong>do</strong> e o profano são <strong>do</strong>is mun<strong>do</strong>s que nada têm em comum.<br />

Não existe na história <strong>do</strong> pensamento humano um outro exemplo <strong>de</strong> duas categorias<br />

<strong>de</strong> coisas tão profundamente diferenciadas, tão radicalmente op<strong>os</strong>tas uma à outra. A<br />

op<strong>os</strong>ição tradicional entre o bem e o mal não é nada ao la<strong>do</strong> <strong>de</strong>sta; pois o bem e o<br />

mal são duas espécies contrárias <strong>de</strong> um mesmo gênero, a moral, assim como a saú<strong>de</strong><br />

e a <strong>do</strong>ença são apenas <strong>do</strong>is aspect<strong>os</strong> diferentes <strong>de</strong> uma mesma or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> fat<strong>os</strong>, a vida,<br />

ao passo que o sagra<strong>do</strong> e o profano foram sempre e em toda parte concebi<strong>do</strong>s pelo<br />

espírito humano como gêner<strong>os</strong> separa<strong>do</strong>s, como <strong>do</strong>is mun<strong>do</strong>s entre <strong>os</strong> quais nada<br />

existe em comum. 14<br />

13 SILVA, Juremir Macha<strong>do</strong> da. Tecnologias <strong>do</strong> Imaginário, pg.1<br />

14 DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religi<strong>os</strong>a: o sistema totêmico na Austrália, pg.22<br />

6


Durkheim explana que o homem nasce no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> profano e a sua passagem para o<br />

mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> sagra<strong>do</strong> se dá por meio <strong>do</strong> ritual <strong>de</strong> passagem. Em que ele irá morrer no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

profano para renascer no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> sagra<strong>do</strong>. É o <strong>mito</strong> da morte e ressurreição <strong>do</strong> <strong>herói</strong>. A<br />

passagem para ele implica numa completa metamorf<strong>os</strong>e.<br />

Ora, essa mudança <strong>de</strong> esta<strong>do</strong> é concebida, não como o simples regular<br />

<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> germes preexistentes, mas como uma transformação totius<br />

substantiae. Diz-se que, naquele momento, o jovem morre, que a pessoa <strong>de</strong>terminada<br />

que ele era cessa <strong>de</strong> existir e que uma outra, instantaneamente, substitui a prece<strong>de</strong>nte.<br />

Ele renasce sob uma nova forma. Consi<strong>de</strong>ra-se que cerimônias apropriadas realizam<br />

essa morte e esse renascimento, entendi<strong>do</strong>s não num senti<strong>do</strong> simplesmente simbólico,<br />

mas toma<strong>do</strong>s ao pé da letra. 15<br />

O sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002) retoma a idéia <strong>de</strong> divisão no rito <strong>de</strong><br />

passagem, mas <strong>de</strong>scarta a idéia <strong>do</strong> transcen<strong>de</strong>nte ou <strong>do</strong> sagra<strong>do</strong> e analisa sob uma ótica<br />

prática, social. Os rit<strong>os</strong> <strong>de</strong> passagem teriam uma função social, a <strong>de</strong> separar <strong>os</strong> inicia<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s<br />

não-inicia<strong>do</strong>s. Bourdieu propõe que <strong>os</strong> rit<strong>os</strong> <strong>de</strong> passagem <strong>de</strong>veriam ser chama<strong>do</strong>s <strong>de</strong> rit<strong>os</strong> <strong>de</strong><br />

legitimação, ou rit<strong>os</strong> <strong>de</strong> consagração ou rit<strong>os</strong> <strong>de</strong> instituição. Porque não é a passagem que<br />

importa, mas sim, a instituição da or<strong>de</strong>m estabelecida, que obriga o indivíduo a viver segun<strong>do</strong><br />

as expectativas sociais ligadas à sua categoria. 16<br />

Os rit<strong>os</strong> têm uma função social liga<strong>do</strong>s a praticida<strong>de</strong> da vida, mas tentar explicar a<br />

socieda<strong>de</strong> apenas pela praticida<strong>de</strong> ou função social é esquecer que a socieda<strong>de</strong> é fruto <strong>do</strong>s<br />

<strong>mito</strong>s que engendra. Como já tinha observa<strong>do</strong> Max Weber.<br />

Cada tentativa <strong>de</strong> explicação [<strong>do</strong> racionalismo oci<strong>de</strong>ntal] <strong>de</strong>ve, reconhecen<strong>do</strong> a<br />

importância fundamental <strong>do</strong> fator econômico, levar em consi<strong>de</strong>ração, acima <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>,<br />

as condições econômicas. Mas, ao mesmo tempo, não se <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar a<br />

correlação op<strong>os</strong>ta... As forças mágicas e religi<strong>os</strong>as e as idéias éticas <strong>de</strong> <strong>de</strong>ver nelas<br />

baseadas têm sempre, no passa<strong>do</strong>, entre as mais importantes influências formativas <strong>de</strong><br />

conduta. 17<br />

Weber <strong>de</strong>dicará sua obra “A ética protestante e o espírito <strong>do</strong> capitalismo” para<br />

<strong>de</strong>monstrar como a influência <strong>de</strong> certas idéias religi<strong>os</strong>as afetou o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> um<br />

15 Ibid, pg.23<br />

16 SEGALEN, Martine. Rit<strong>os</strong> e Rituais Contemporâne<strong>os</strong>, pg.50<br />

17 WEBER, Max. A ética protestante e o espírito <strong>do</strong> capitalismo, pg.32<br />

7


espírito econômico. 18 As idéias religi<strong>os</strong>as que Weber se refere, são <strong>os</strong> <strong>mito</strong>s que aquele grupo<br />

criou e a que seguem. A razão, <strong>os</strong> at<strong>os</strong> conscientes são <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>do</strong>s <strong>mito</strong>s que a norteiam.<br />

O <strong>mito</strong> nasce <strong>do</strong> Imaginário, e este tem uma significação própria, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da razão.<br />

O Desencantamento <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, conceito <strong>de</strong> Max Weber, aborda<strong>do</strong> em sua obra A<br />

Ética Protestante e o Espírito <strong>do</strong> Capitalismo também contribuiu para o enfraquecimento <strong>do</strong>s<br />

rit<strong>os</strong> <strong>de</strong> passagem. O <strong>de</strong>sencantamento <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> é a perda da crença no sobrenatural e na<br />

magia. Os rit<strong>os</strong> <strong>de</strong> passagem tornaram-se mais um mero reconhecimento <strong>do</strong> esforço<br />

<strong>de</strong>sprendi<strong>do</strong> pelo indivíduo <strong>do</strong> que o veículo <strong>de</strong> transformação interior.<br />

“Tão gran<strong>de</strong> processo histórico no <strong>de</strong>senvolvimento das religiões – a eliminação da<br />

magia <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, que começara com <strong>os</strong> antig<strong>os</strong> profetas hebreus e, juntamente com o<br />

pensamento científico helenístico, repudiou to<strong>do</strong>s <strong>os</strong> mei<strong>os</strong> mágic<strong>os</strong> para a salvação como<br />

sen<strong>do</strong> superstição e peca<strong>do</strong>, atingin<strong>do</strong> aqui [n<strong>os</strong> Calvinistas] a sua conclusão lógica.” 19<br />

A salvação não virá por milagre, ação <strong>do</strong> sobrenatural, mas pelo esforço próprio, o<br />

ascetismo protestante, que prioriza as obras materiais em op<strong>os</strong>ição ao metafísico.<br />

Para o católico, a absolvição <strong>de</strong> sua Igreja era a compensação para as suas próprias<br />

imperfeições. O sacer<strong>do</strong>te era um mágico que fazia o milagre da transubstanciação e<br />

que tinha em suas mã<strong>os</strong> as chaves da vida eterna... Ele distribuía re<strong>de</strong>nção, esperança<br />

<strong>de</strong> graça, certeza <strong>de</strong> perdão, garantin<strong>do</strong> assim o relaxamento daquela tremenda<br />

tensão à qual o calvinista estava con<strong>de</strong>na<strong>do</strong> por um <strong>de</strong>stino inexorável, que não<br />

admitia mitigação. Ele não po<strong>de</strong>ria esperar o perdão pelas horas <strong>de</strong> fraqueza... 20<br />

As perdas da crença no sobrenatural e na magia mudaram não apenas a n<strong>os</strong>sa<br />

percepção <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, mas também a forma como lidam<strong>os</strong> com ele, com o outro e com nós<br />

mesmo. Mu<strong>do</strong>u as n<strong>os</strong>sas concepções míticas.<br />

“Uma vez que o ascetismo se encarregou <strong>de</strong> remo<strong>de</strong>lar o mun<strong>do</strong> e nele <strong>de</strong>senvolver<br />

seus i<strong>de</strong>ais, <strong>os</strong> bens materiais adquiriram um po<strong>de</strong>r crescente e, por fim, inexorável sobre a<br />

vida <strong>do</strong> homem, como em nenhum outro perío<strong>do</strong> histórico.” 21<br />

18 Ibid, pg. 32<br />

19 WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito <strong>do</strong> Capitalismo, Pg. 83<br />

20 Ibid, Pg. 91<br />

21 Ibid, Pg.135<br />

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A perda da função imagética <strong>de</strong> n<strong>os</strong>sa socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssacralizou <strong>os</strong> rit<strong>os</strong> <strong>de</strong><br />

passagem, <strong>do</strong>s quais, <strong>de</strong>sembuí<strong>do</strong>s <strong>do</strong> seu senti<strong>do</strong> primordial, restam apenas à forma ou<br />

formalida<strong>de</strong>.<br />

A perda <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> rito <strong>de</strong> passagem po<strong>de</strong> estar no fato <strong>de</strong> não haver marcas<br />

<strong>de</strong>finidas da transição <strong>do</strong> jovem para o adulto, como assinala Martine Segalen:<br />

A razão profunda <strong>do</strong> <strong>de</strong>saparecimento <strong>de</strong>sses rituais também diz respeito ao fato <strong>de</strong> a<br />

ida<strong>de</strong> da juventu<strong>de</strong> não ser mais conquistada <strong>de</strong> repente, como outrora. A passagem<br />

se esten<strong>de</strong> in<strong>de</strong>finidamente, sem que seja p<strong>os</strong>sível marcar com clareza um ‘antes’ e um<br />

‘<strong>de</strong>pois’, uma vez que <strong>os</strong> moment<strong>os</strong> <strong>de</strong> se adquirir o direito à sexualida<strong>de</strong>, à<br />

in<strong>de</strong>pendência econômica e resi<strong>de</strong>ncial e, mais amplamente, ao estatuto <strong>de</strong> adulto não<br />

coinci<strong>de</strong>m mais. 22<br />

Mircea Elia<strong>de</strong>, em sua obra O Sagra<strong>do</strong> e o Profano, fala que para o homem mo<strong>de</strong>rno o<br />

nascimento, o casamento e a morte não passam <strong>de</strong> aconteciment<strong>os</strong> <strong>de</strong> âmbito individual ou<br />

familiar, com a exceção <strong>de</strong> celebrida<strong>de</strong>s ou chefes <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong>. Numa perspectiva a-religi<strong>os</strong>a da<br />

existência, todas as passagens per<strong>de</strong>ram seu caráter ritual, quer dizer, nada mais significam<br />

além <strong>do</strong> que m<strong>os</strong>tra o ato concreto <strong>de</strong> um nascimento, <strong>de</strong> um óbito ou <strong>de</strong> uma união sexual<br />

oficialmente reconhecida. 23<br />

Nas socieda<strong>de</strong>s antigas <strong>os</strong> rit<strong>os</strong> <strong>de</strong> passagem eram um gran<strong>de</strong> evento. Por exemplo, a<br />

união sexual era sagrada. A iniciação sexual <strong>do</strong>s greg<strong>os</strong> se dava n<strong>os</strong> templ<strong>os</strong> e eles chamavam<br />

o casamento <strong>de</strong> tél<strong>os</strong>, a consagração, e o ritual nupcial assemelhava-se ao <strong>do</strong>s mistéri<strong>os</strong> n<strong>os</strong><br />

templ<strong>os</strong>. Os egípci<strong>os</strong> e o maias eram inicia<strong>do</strong>s n<strong>os</strong> templ<strong>os</strong> através das sacer<strong>do</strong>tisas, que na<br />

Grécia se chamavam Hieródulas e em Roma, Vestais. Nessas socieda<strong>de</strong>s <strong>os</strong> jovens eram<br />

conduzi<strong>do</strong>s a<strong>os</strong> templ<strong>os</strong> para sua iniciação sexual.<br />

As iniciações <strong>do</strong>s n<strong>os</strong>s<strong>os</strong> índi<strong>os</strong> Tupinambás se constituíam <strong>de</strong> rituais <strong>do</strong>lor<strong>os</strong><strong>os</strong> <strong>de</strong><br />

iniciação em que toda a tribo participava. Este é um ponto importante, mesmo que as provas<br />

n<strong>os</strong> rituais sejam difíceis e <strong>do</strong>lor<strong>os</strong>as a tribo (no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> grupo) e inclusive entida<strong>de</strong>s<br />

sobrenaturais acompanham o neófito, que é assisti<strong>do</strong> em sua passagem. A participação da<br />

tribo significa: “Você não é o primeiro, nem será o último, essa passagem é difícil e estam<strong>os</strong><br />

22 SEGALEN, Martine. Rit<strong>os</strong> e Rituais Contemporâne<strong>os</strong>, pg. 67<br />

23 ELIADE, Mircea. O Sagra<strong>do</strong> e o Profano pg. 151<br />

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aqui para lhe ajudar, agora você terá que ser forte”. Se o neófito conseguir vencer as provas<br />

<strong>do</strong> ritual, significa que ele está pronto para assumir as suas novas responsabilida<strong>de</strong>s.<br />

No passa<strong>do</strong> a iniciação sexual era acompanhada por toda a comunida<strong>de</strong> através <strong>do</strong>s<br />

rituais. Há décadas atrás, era c<strong>os</strong>tume o pai levar seu filho para o pr<strong>os</strong>tíbulo e ficar <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

fora esperan<strong>do</strong> o resulta<strong>do</strong>. Talvez essa não seja a melhor forma <strong>de</strong> fazer a passagem, mas o<br />

fato é que a figura paterna estava presente e acompanhava o jovem nessa iniciação. Após o<br />

seu primeiro encontro com a meretriz o jovem tornava-se adulto, mas não é o ato sexual em si<br />

que importa e sim as transformações psicológicas trazidas por ele e que, <strong>de</strong> certa forma,<br />

remonta ao mun<strong>do</strong> imagético, à criação mítica da imagem que cada um tem <strong>do</strong> que é ser<br />

jovem e <strong>do</strong> que é ser adulto. Afinal o que diferencia um jovem <strong>de</strong> um adulto? A partir daquele<br />

momento o jovem <strong>de</strong>ixava o seu mun<strong>do</strong> infantil e a<strong>de</strong>ntrava no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s adult<strong>os</strong>.<br />

Em n<strong>os</strong>so tempo atual, não um momento <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> em que o jovem <strong>de</strong>ixa o seu mun<strong>do</strong><br />

a<strong>do</strong>lescente para assumir o adulto. É p<strong>os</strong>sível manter apeg<strong>os</strong> infantis mesmo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> casa<strong>do</strong><br />

e com filh<strong>os</strong>. Em n<strong>os</strong>sa socieda<strong>de</strong> contemporânea <strong>os</strong> jovens são <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong>s à mercê <strong>de</strong> si<br />

própri<strong>os</strong> para fazerem seu ritual <strong>de</strong> passagem sozinh<strong>os</strong>, quan<strong>do</strong> quiserem, como se f<strong>os</strong>se algo<br />

natural. O peso psicológico <strong>de</strong>ssa passagem é gran<strong>de</strong>, as migrações <strong>de</strong> uma fase a outra não<br />

acontecem <strong>de</strong> forma natural. O resulta<strong>do</strong> é que o a passagem acontece <strong>de</strong> forma banal e sem<br />

assistência. N<strong>os</strong>so <strong>herói</strong> está sozinho e o sagra<strong>do</strong> foi banaliza<strong>do</strong>.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

DURAND, Gilbert. “As Estruturas Antropológicas <strong>do</strong> Imaginário”. SP: Martins Fontes, 3°<br />

edição, 2002.<br />

DURAND, Gilbert. “L’imagination symbolique”. França: Presses Universitaires <strong>de</strong> France, 3<br />

edição, 1976.<br />

PITTA, Danielle Perin Rocha. “Iniciação à teoria <strong>do</strong> imaginário <strong>de</strong> Gilbert Durand”. RJ:<br />

Atlântica Editora, 2005.<br />

DURKHEIM, Émile. “As formas elementares da vida religi<strong>os</strong>a: o sistema totêmico na<br />

Austrália”. SP: Martins Fontes, 3° edição, 2003.<br />

WEBER, Max. “A ética protestante e o espírito <strong>do</strong> capitalismo”. SP: Martin Claret, 2006.<br />

CAMPBELL, J<strong>os</strong>eph. Bill Moyers. “O po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> <strong>mito</strong>”. SP: Palas Athena, 21° edição, 2003.<br />

SEGALEN, Martine. “Rit<strong>os</strong> e rituais contemporâne<strong>os</strong>”. RJ: FGV, 2002.<br />

SILVA, Juremir Macha<strong>do</strong> da. “Tecnologias <strong>do</strong> imaginário: esboç<strong>os</strong> para um conceito”. Texto<br />

integrante da pesquisa em <strong>de</strong>senvolvimento “Re<strong>de</strong> <strong>de</strong> idéias: tecnologias <strong>do</strong> imaginário e<br />

comunicação.”<br />

RANK, Otto. “The myth of the birth of the hero: a psychological interpretation of<br />

mythology”. Publica<strong>do</strong> no Nervous and Mental Disease Monograph Series No. 18, The<br />

Journal of Nervous and Mental Disease Publishing Company, New York,1914.<br />

ELIADE, Mircea. O Sagra<strong>do</strong> e o Profano; trad. Rogério Fernan<strong>de</strong>s. São Paulo: Martins<br />

Fontes, 1992.<br />

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