Romanização e territorialidade religiosa: a construção de ... - ABHR
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<strong>Romanização</strong> e <strong>territorialida<strong>de</strong></strong> <strong>religiosa</strong>: a <strong>construção</strong> <strong>de</strong> um território religioso na diocese <strong>de</strong><br />
Botucatu (1908-1923).<br />
Maurício <strong>de</strong> Aquino ∗<br />
mauriaquino12@bol.com.br<br />
Introdução<br />
O <strong>de</strong>senvolvimento dos estudos acadêmicos das religiões tem possibilitado novas leituras e<br />
<strong>de</strong>sdobramentos analíticos <strong>de</strong> conceitos estabelecidos na análise do catolicismo tal como o <strong>de</strong><br />
romanização. Favorecido pelas obras dos brasilianistas, o termo romanização foi bem aceito nas<br />
ciências sociais, ainda que entendido por alguns como um vocábulo um tanto quanto agressivo, e nas<br />
últimas décadas ele tem sido problematizado e explorado a partir <strong>de</strong> exames oriundos das<br />
aproximações entre a História e os Estudos Culturais e a Nova Geografia Cultural.<br />
Nessa direção, preten<strong>de</strong>-se apresentar algumas reflexões da incipiente pesquisa que vem<br />
sendo <strong>de</strong>senvolvida sobre a romanização e a <strong>territorialida<strong>de</strong></strong> católica nas primeiras décadas do século<br />
XX na circunscrição da diocese <strong>de</strong> Botucatu entre 1908 e 1923. A romanização do catolicismo<br />
brasileiro em interface com uma socieda<strong>de</strong> que se mo<strong>de</strong>rnizava e secularizava, apresentava-se,<br />
também, como uma nova <strong>territorialida<strong>de</strong></strong>, isto é, como uma ação orientada para a produção e o controle<br />
<strong>de</strong> um território religioso. Para isso, nessa perspectiva, os agentes romanizadores procuraram criar e<br />
controlar uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> lugares (templos, colégios, seminários, santuários) e ativar um conjunto <strong>de</strong><br />
estratégias, na concepção certeauniana, que <strong>de</strong>ssem visibilida<strong>de</strong> à Igreja, inscrevendo no espaço o<br />
discurso católico ultramontano.<br />
Historiografia e romanização do catolicismo no Brasil.<br />
Há mais <strong>de</strong> três décadas o respeitado historiador José Oscar Beozzo (1977, p.745) afirmou:<br />
“Já se tornou clássico chamar-se <strong>de</strong> “romanização” o processo a que foi submetida a Igreja do Brasil<br />
entre 1880 e 1920”. De fato, esse é um conceito vencedor e estabelecido nas análises acerca das<br />
vicissitu<strong>de</strong>s do catolicismo no Brasil. Por essa razão, o exame, ainda que breve, <strong>de</strong>sse conceito po<strong>de</strong><br />
contribuir no entendimento dos usos e das perspectivas, dos alcances e das limitações, das<br />
especificida<strong>de</strong>s e dos significados relativos à romanização a partir <strong>de</strong> diferentes contextos e sujeitos,<br />
∗ Mestre em História e Socieda<strong>de</strong> pela UNESP/Assis. Docente do curso <strong>de</strong> História da Universida<strong>de</strong> Estadual do<br />
Norte do Paraná, campus Jacarezinho, on<strong>de</strong> também é pesquisador do Núcleo <strong>de</strong> Pesquisa em História das<br />
Religiões. É membro da Associação Brasileira <strong>de</strong> História das Religiões.
expressando os percursos <strong>de</strong> análise do catolicismo e os cuidados teórico-metodológicos que <strong>de</strong>vem<br />
ser observados na pesquisa.<br />
Segundo Augustin Wernet (1987, p.180-182), o termo romanização foi criado pelo padre e<br />
historiador “alemão” Johann Joseph Ignatz Von Döllinger (1799-1890). A obra em que usa o conceito<br />
em análise foi traduzida e prefaciada por Rui Barbosa sob o título <strong>de</strong> O Papa e o Concílio, em 1900.<br />
Von Döllinger, que escreveu o livro com o pseudônimo Janus, opunha-se ao processo <strong>de</strong> expansão do<br />
po<strong>de</strong>r centralizador da Cúria Romana e do dogma da infalibilida<strong>de</strong> papal: eis aí, provavelmente, a razão<br />
para a tradução do livro da parte <strong>de</strong> Rui Barbosa que também <strong>de</strong>sconfiava das novas articulações da<br />
Santa Sé. No que nos interessa aqui, urge salientar que o termo romanização surge, assim, em meio a<br />
um conflito envolvendo ultramontanos e “liberais”, para <strong>de</strong>signar, na perspectiva dos “liberais”, o projeto<br />
ultramontano <strong>de</strong> “romanizar todas as igrejas”.<br />
Nos anos 1950 o conceito foi retomado por Roger Basti<strong>de</strong> e, mais tar<strong>de</strong>, na passagem dos<br />
anos 1960 para os anos 1970, <strong>de</strong>senvolvido e difundida por Ralph Della Cava. Em Milagre em<br />
Joazeiro, Della Cava (1976, p.43) escreveu:<br />
Para Basti<strong>de</strong>, o conceito <strong>de</strong> “romanização” (embora use a expressão “igreja<br />
romanizada”) consiste em: 1) a afirmação <strong>de</strong> uma autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma Igreja<br />
institucional e hierárquica (episcopal), esten<strong>de</strong>ndo-se sobre todas as variações<br />
populares do catolicismo folk; 2) o levante reformista, em meados do século XIX,<br />
por parte dos bispos, para controlar a doutrina, a fé, as instituições e a educação do<br />
clero e do laicato; 3) a <strong>de</strong>pendência cada vez maior, por parte da Igreja brasileira,<br />
<strong>de</strong> padres estrangeiros (europeus) principalmente or<strong>de</strong>ns e das congregações<br />
missionárias, para realizar “a transição do catolicismo tradicional e colonial ao<br />
catolicismo universalista, com absoluta rigi<strong>de</strong>z doutrinária e moral”; 4) a busca<br />
<strong>de</strong>stes objetivos, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente ou mesmo contra os interesses políticos<br />
locais. A essas dimensões do processo <strong>de</strong> “romanização”, importa acrescentar um<br />
quinto item: 5) a integração sistemática da Igreja brasileira, no plano quer<br />
institucional quer i<strong>de</strong>ológico, nas estruturas altamente centralizadas da Igreja<br />
Católica Romana, dirigida <strong>de</strong> Roma.<br />
De fato, foi ao longo dos anos 1970 que o conceito se tornou “clássico”. Esse período<br />
caracterizou-se pela aproximação da História da Igreja às Ciências Sociais e à Teologia da Libertação.<br />
No Brasil, uma leitura conciliar e libertadora da História, ante um governo ditatorial, levou a uma revisão<br />
historiográfica expressiva com os trabalhos <strong>de</strong> Eduardo Hoornaert, Riolando Azzi, Pedro A. Ribeiro <strong>de</strong><br />
Oliveira, Oscar F. Lustosa, Francisco Cartaxo Rolim, José Oscar Beozzo, entre outros. Uma história<br />
renovada que mereceu a atenção <strong>de</strong> Peter Burke (1992, p.13) na introdução do livro A Escrita da<br />
História.
Com a criação <strong>de</strong> centros <strong>de</strong> pesquisas em História da Igreja houve uma multiplicação das<br />
produções e dos simpósios sobre o tema. O conceito <strong>de</strong> romanização aparecia amiú<strong>de</strong>, nos anos 1970,<br />
ao lado <strong>de</strong> outro conceito incensado na época: catolicismo popular. O processo romanizador é<br />
analisado em correlação com os ataques ao catolicismo popular, entendido, na historiografia renovada<br />
do CEHILA e do CEPEHIB, como núcleo <strong>de</strong> fé original e <strong>de</strong> potência <strong>de</strong> transformação social. Uma<br />
“interpretação a partir dos pobres” a que se propuseram os membros do CEHILA e o exame das<br />
relações entre Estado e Igreja, levaram a percepção da implantação do catolicismo romanizado como<br />
movimento que favoreceu o capitalismo, a mo<strong>de</strong>rnização e domínio religioso e social das elites.<br />
Por essa razão, para Pedro Ribeiro <strong>de</strong> Oliveira (1976, p. 132) o processo <strong>de</strong> romanização<br />
transformou a Igreja no sentido <strong>de</strong> adaptá-la como “aparelho <strong>de</strong> hegemonia” da burguesia agrária. Foi<br />
um processo correlato <strong>de</strong> unificação nacional e estruturação social com base no sistema agrário-<br />
exportador. Ainda segundo Oliveira (1976, p.141), a principal estratégia <strong>de</strong>sse movimento foi a<br />
<strong>de</strong>stituição do po<strong>de</strong>r do leigo o que, em contrapartida, verda<strong>de</strong>ira resistência, teria gerado uma<br />
reapropriação dos símbolos difundidos pela igreja romanizada que consistiria em uma nova forma <strong>de</strong><br />
catolicismo: o catolicismo privatizado. Já Hoornaert (1973, p.119) e Beozzo (1977, p.742) usam a<br />
categoria “pacto colonial” para <strong>de</strong>signar a estrutura histórica <strong>de</strong> dominação estrangeira do Brasil e os<br />
seus corolários para a evangelização e a libertação. Para eles, a romanização ocorreu no contexto do<br />
segundo pacto colonial correspon<strong>de</strong>nte a europeização do catolicismo brasileiro que estabeleceu uma<br />
nova repressão aos movimentos populares. Já Riolando Azzi afirma que esse movimento ultramontano<br />
data dos anos 1840 quando a Igreja contribuiu para a pacificação e a legitimação do Golpe da<br />
Maiorida<strong>de</strong> (AZZI, 1974, p.646-662). Ele <strong>de</strong>talha esse processo apresentando, a partir das fontes, dois<br />
gran<strong>de</strong>s períodos: o da reforma institucional ou reorganização eclesiástica e o da restauração católica.<br />
Destaca, ainda, três linhas <strong>de</strong> orientação <strong>de</strong>ssa reforma católica <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XIX: a tradicionalista<br />
(AZZI, 1994, p. 72-3), a tri<strong>de</strong>ntina (AZZI, 1992, p. 57) e a ultramontana (AZZI, 1996, p. 226).<br />
Nos anos 1980, a aproximação entre romanização e autocompreensão do catolicismo, noção<br />
da “nova história da Igreja” <strong>de</strong> Poulat, Alberigo, Aubert e outros, ensejou uma nova perspectiva<br />
interpretativa representada pelo trabalho do historiador Augustin Wernet. A noção <strong>de</strong> auto-<br />
entendimento da Igreja tornou-se o princípio organizador das várias faces do catolicismo no Brasil,<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o tradicional até o ultramontano ou renovado. Em sua tese, ele se propôs analisar as<br />
transformações do catolicismo a partir das reformas implementadas por D. Antônio Joaquim <strong>de</strong> Melo<br />
(WERNET, 1987, p.02). E fez escola. Wernet orientou vários trabalhos sobre a romanização ou<br />
implantação do catolicismo ultramontano ou renovado em diferentes estados brasileiros ao longo das<br />
décadas em que atuou na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo. Nesse período também foram produzidas novas<br />
histórias da igreja a partir do uso da micro-análise <strong>de</strong> caráter antropológica. Os estudos <strong>de</strong> caso e a
preocupação com os símbolos paulatinamente forma ganhando <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> no contexto <strong>de</strong> acolhida<br />
brasileira das novas experiências historiográficas em curso na Europa e nos Estados Unidos.<br />
Nessa direção, os temas da feitiçaria, da hibridização cultural, das negociações simbólicas<br />
ganhavam lugar na escrita da história da Igreja Católica no Brasil propiciando novas leituras e<br />
<strong>de</strong>sdobramentos analíticos. A análise do catolicismo ganhou ainda mais relevância quando pensado<br />
em interface com alguma esfera da vida social, como fez recentemente Kenneth Serbin, a partir <strong>de</strong> Azzi<br />
e <strong>de</strong> Thomas Bruneau, em Padres, Celibato e Conflito Social, ao enten<strong>de</strong>r a romanização no contexto<br />
da mo<strong>de</strong>rnização conservadora da socieda<strong>de</strong> brasileira (SERBIN, 2008, p.78-81). O eixo das relações<br />
entre Estado e Igreja, por conta mesmo do fim da ditadura militar no Brasil, per<strong>de</strong>u o monopólio e <strong>de</strong>u<br />
vazão a outras possibilida<strong>de</strong>s interpretativas, sobretudo em contato com as chamadas Nova História<br />
Cultural e Nova História Política.<br />
Com efeito, no limiar do século XXI, resultado <strong>de</strong>sse percurso historiográfico, apenas esboçado<br />
aqui, a romanização passa a ser entendida também fenômeno cultural, como produto e produtora <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>terminadas representações e práticas criadas historicamente. Essa abordagem é exemplificada<br />
pelos trabalhos <strong>de</strong> André Luiz Caes (2002, p. 15), sobre a espiritualida<strong>de</strong> ultramontana como estratégia<br />
política, e Pedro Rigolo Filho (2006, p. 09), que aborda as motivações <strong>religiosa</strong>s <strong>de</strong> D. Nery e a<br />
romanização como cultura <strong>religiosa</strong>.<br />
Em artigo publicado no final <strong>de</strong> 2001, o historiador Jérri Roberto Marin propôs uma<br />
sistematização da história e da historiografia da romanização. Para Marin, a romanização aponta para<br />
a reeuropeização conservadora do catolicismo brasileiro ao centralizar a gestão do sagrado na Santa<br />
Sé e propor uma reforma em três áreas complementares e simultâneas: a da formação intelectual e<br />
espiritual do clero; a da disciplina eclesiástica; e, a da intensificação da pastoral junto aos fiéis para<br />
purificar a religiosida<strong>de</strong> popular. (MARIN, 2001, p. 323-4) Na seqüência, Marin discorre sobre a<br />
existência <strong>de</strong> duas amplas vertentes historiográficas da romanização: <strong>de</strong> um lado, aqueles que a<br />
concebem <strong>de</strong> um modo linear e homogêneo, “reafirmando e privilegiando ao limite a idéia <strong>de</strong> que a<br />
ofensiva romanizadora teria sido coesa, a partir <strong>de</strong> uma ação política e pastoral uniforme do<br />
episcopado” (MARIN, 2001, p. 324); e, <strong>de</strong> outro, aqueles que enten<strong>de</strong>m o movimento da romanização<br />
como um processo <strong>de</strong>scontínuo e heterogêneo, afinal, “no Brasil, a romanização aconteceu <strong>de</strong> modo<br />
<strong>de</strong>sigual” (MARIN, 2001, p. 324).<br />
De fato, na primeira vertente, percebemos a <strong>construção</strong> historiográfica da romanização como<br />
um processo avassalador, uniforme, que divulgou a imagem dos bispos romanizadores como sujeitos<br />
heróicos, empreen<strong>de</strong>dores e santos. E isso, <strong>de</strong> um lado, para fazer uma história “cripto-apologética”, e,<br />
<strong>de</strong> outro, no caso dos “progressistas”, para agigantar a fisionomia do “inimigo” que impunha<br />
violentamente seus valores, <strong>de</strong>stituindo o “Povo” <strong>de</strong> seus santos, <strong>de</strong> seus santuários, <strong>de</strong> suas práticas,
enfim, <strong>de</strong> sua fé. Ainda nessa direção, urge consi<strong>de</strong>rar as reflexões <strong>de</strong> Antônio Lindvaldo Sousa. Para<br />
esse historiador, a romanização, atrelada aos conceitos <strong>de</strong> ultramontanismo e autocompreensão do<br />
catolicismo <strong>de</strong>senvolvidos por Augustin Wernet nos rastros <strong>de</strong> Weber, conduziria o pesquisador<br />
inevitavelmente a um caminho que ele já conhece <strong>de</strong> antemão: o bispo romanizador segue um<br />
protocolo institucional romano (SOUSA, 2008, p. 115). Basta encontrar na documentação oficial os<br />
indícios <strong>de</strong>ssa afirmação. Com efeito, a ênfase nos padrões e sujeitos romanizadores tradicionais<br />
ocultaria, como Lindvaldo Sousa verificou em sua tese (SOUSA, 2005, p.193-6), os conflitos e as<br />
contradições dos clérigos e <strong>de</strong> outros agentes envolvidos na implantação das práticas ultramontanas<br />
na socieda<strong>de</strong> brasileira. É preciso complicar o simples. Urge problematizar os gran<strong>de</strong>s mo<strong>de</strong>los, como<br />
fez a historiadora Mabel Salgado Pereira (2002, p. 164) na análise da romanização e da reforma<br />
ultramontana em Juiz <strong>de</strong> Fora, pretensa região <strong>de</strong> abrangência da ação romanizadora <strong>de</strong> D. Viçoso,<br />
célebre bispo reformador do século XIX, <strong>de</strong>monstrando que só a partir <strong>de</strong> 1890 é que se estabelece,<br />
com limites, o catolicismo romanizado na cida<strong>de</strong>.<br />
Essas posturas teórico-metodológicas e os engajamentos políticos que as acompanham<br />
apontam para a riqueza, a complexida<strong>de</strong> e a relevância social e acadêmica da produção sobre a<br />
romanização do catolicismo brasileiro em suas mudanças e permanências, alterações e coexistência<br />
<strong>de</strong> perspectivas, como se percebe no recente livro Faces do Catolicismo organizado pelos professores<br />
da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa Catarina, Rogério Luiz <strong>de</strong> Souza e Clarícia Otto, com textos<br />
inaugurais <strong>de</strong> Riolando Azzi e Ivan Aparecido Manoel, reconhecidos historiadores da Igreja Católica no<br />
Brasil.<br />
<strong>Romanização</strong> e <strong>territorialida<strong>de</strong></strong> católica em São Paulo no início do século XX.<br />
A relevância interpretativa dos estudos acadêmicos das religiões atraiu também os geógrafos.<br />
Nos anos 1960 e 1970, as análises geográficas da religião estavam ancoradas ainda nos conceitos<br />
políticos <strong>de</strong> território e espaço. Nos anos 1980, em meio às inflexões <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>adas pelos estudos<br />
culturais, a Geografia repensou essas noções e estabeleceu concepções “culturais” <strong>de</strong> região, lugar,<br />
território, espaço etc. No Brasil, pesquisadores como Roberto Lobato Correa, Zeny Rosendhal e Sylvio<br />
Fausto Gil Filho <strong>de</strong>stacaram-se nas últimas décadas por suas criativas análises do catolicismo a partir<br />
da chamada Nova Geografia Cultural. (USARSKI, 2007, p.176)<br />
Para os historiadores, o empréstimo <strong>de</strong> instrumentais analíticos não é nenhuma novida<strong>de</strong>,<br />
muito menos a aproximação com a geografia. È lugar comum também a operação que se <strong>de</strong>ve realizar<br />
no sentido <strong>de</strong> se apropriar historicamente <strong>de</strong>sses referenciais. Examiná-los à luz das regras do ofício<br />
<strong>de</strong> historiador e i<strong>de</strong>ntificar as potencialida<strong>de</strong>s analíticas <strong>de</strong>sses instrumentos teórico-metodológicos
ante o objeto construído pelo pesquisador através <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadas fontes históricas. Nesse sentido,<br />
enten<strong>de</strong>-se que a preocupação com o espaço e a <strong>de</strong>finição do território cultural, típicos da nova<br />
geografia, po<strong>de</strong>m, em uma perspectiva histórica, contribuir para os <strong>de</strong>sdobramentos do conceito <strong>de</strong><br />
romanização e para o conhecimento dos projetos regionais <strong>de</strong> romanização que implicam noções<br />
geográficas. Tratar da ereção <strong>de</strong> dioceses como estratégia da romanização enseja pensar nos<br />
processos <strong>de</strong> <strong>construção</strong>, com projetos, conflitos, crises, tensões, <strong>de</strong> um território religioso. O próprio<br />
Código <strong>de</strong> Direito Canônico <strong>de</strong> 1917, como documentação histórica do período, corrobora o caráter<br />
territorial da diocese e por extensão do governo episcopal e da ação romanizadora através <strong>de</strong> seus<br />
agentes.<br />
A reforma ultramontana do catolicismo exigia a ereção <strong>de</strong> dioceses e paróquias (com a<br />
respectiva presença gestora <strong>de</strong> bispos e <strong>de</strong> padres) (MANOEL, 2008, p. 57), <strong>de</strong>mandava, assim, a<br />
criação <strong>de</strong> uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> templos, <strong>de</strong> colégios, <strong>de</strong> conventos, <strong>de</strong> santuários, <strong>de</strong> oratórios, <strong>de</strong> palácios,<br />
enfim, que efetivassem a produção e o domínio <strong>de</strong> um espaço ou território religioso: na nova geografia<br />
cultural, o território religioso é entendido como território <strong>de</strong>marcado, no qual o acesso é controlado e<br />
<strong>de</strong>ntro do qual a autorida<strong>de</strong> é exercida por um profissional religioso. É dotado <strong>de</strong> estruturas específicas,<br />
incluindo um modo <strong>de</strong> distribuição espacial e <strong>de</strong> gestão do sagrado, implicando conflitos, crises e<br />
tensões (CORREA; ROSENDHAL, 2006, p. 03). Para isso, era condição sine qua non “uma ocupação<br />
estreita e estruturada da topografia”, antiga estratégia 1 da Igreja, conforme ensina Jacques Le Goff<br />
(2007, p. 24). Antes <strong>de</strong> 1890, a criação <strong>de</strong>ssas circunscrições eclesiásticas <strong>de</strong>pendia do Estado que<br />
não as erigia, sobretudo, por razões <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m econômica. Mas, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> 1890, a Sé Romana<br />
assumiu a responsabilida<strong>de</strong> pela fundação <strong>de</strong> novas dioceses e “os bispos brasileiros julgaram ter<br />
chegado o momento para expandir esses organismos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r eclesiástico” (AZZI, 2008, p. 18).<br />
Com efeito, a formação da Província Eclesiástica <strong>de</strong> São Paulo, através da Bula Diocesium<br />
Nimiam Amplitudinem, <strong>de</strong> 07 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1908, insere-se nesse amplo e complexo contexto <strong>de</strong> (re)<br />
<strong>construção</strong> institucional da Igreja Católica no Brasil. Pela Diocesium foram criadas as novas dioceses<br />
paulistas <strong>de</strong> Botucatu, Campinas, Ribeirão Preto, São Carlos e Taubaté. Essa Bula elevou, outrossim,<br />
a Diocese <strong>de</strong> São Paulo à condição <strong>de</strong> Arquidiocese. O Estado <strong>de</strong> São Paulo foi a frente mais dinâmica<br />
<strong>de</strong>ssa expansão eclesiástica, afinal, <strong>de</strong>senvolvia-se com suas ferrovias e cafezais, <strong>de</strong>mandava e atraía<br />
estrangeiros, ensejava o fluxo <strong>de</strong> novas idéias e costumes. Sendo assim, era fundamental para a Igreja<br />
fazer-se presente nas diferentes regiões <strong>de</strong>sse centro <strong>de</strong>cisório nacional, em “turbulento crescimento”,<br />
1 Para Michel <strong>de</strong> Certeau (2005, p. 99 e 102), a noção <strong>de</strong> estratégia po<strong>de</strong> ser concebida como um conjunto <strong>de</strong><br />
intervenções a partir <strong>de</strong> um lugar <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, a produção, mapeamento e imposição <strong>de</strong> espaços. Ela realiza um<br />
ato cartesiano <strong>de</strong> tentar circunscrever um próprio num mundo enfeitiçado pelos po<strong>de</strong>res invisíveis do “Outro”.
para acompanhar suas vicissitu<strong>de</strong>s; controlar o clero e os fiéis; combater as novas crenças e as<br />
doutrinas anticlericais ; expandir o patrimônio e a cultura da Igreja; influenciar, ainda que nos<br />
bastidores, as escolhas e as <strong>de</strong>cisões sócio-políticas. (ALMEIDA, 2003, p. 180)<br />
A instalação da Diocese <strong>de</strong> Botucatu aconteceu em 19 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1908. A cerimônia<br />
realizou-se no dia 28 do mesmo mês. O documento do Sacri Consistorii caracteriza a nova diocese<br />
como <strong>de</strong> ambitus latissime patet, et centumquinquaginta sub se complectitur incolarum millia cum<br />
circiter 40 parociis. De fato, era, em extensão, a maior diocese do Estado <strong>de</strong> São Paulo, abrangendo<br />
cerca <strong>de</strong> 50% do território paulista, limitando-se, ao norte, com o Rio Tietê, ao sul, com o Rio<br />
Paranapanema, a leste, com o Oceano Atlântico, e, a oeste, com o Rio Paraná. Era composta,<br />
precisamente, por 53 paróquias. (ZIONI, 2006, p. 08) Assim, ao tornar-se se<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma diocese,<br />
recru<strong>de</strong>scia em Botucatu o projeto <strong>de</strong> civilizar o “sertão <strong>de</strong>sconhecido”, afinal, nesse contexto a cida<strong>de</strong><br />
tornara-se se<strong>de</strong> administrativa da polícia, da educação e da saú<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ssas regiões ainda não<br />
alcançadas pela racionalida<strong>de</strong> do Estado mo<strong>de</strong>rno. (PUPO, 2002, p. 236-307)<br />
O primeiro bispo <strong>de</strong> Botucatu foi D. Lúcio Antunes <strong>de</strong> Sousa. O documento <strong>de</strong> instalação da<br />
diocese o cumula <strong>de</strong> adjetivos: “Vir doctrina, gravitate, pru<strong>de</strong>ntia, morum honestate rerumque usu<br />
praeditus; dignus eapropter habitus qui memoratae Botucatuensi Ecclesiae in Episcopum praeficeretur”.<br />
O texto apresenta o tipo-i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> bispo do discurso ultramontano. Em 02 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1909, D. Lúcio<br />
concluiu e enviou a Botucatu sua, primeira e única, Carta Pastoral, intitulada Da União dos Catholicos.<br />
Dias <strong>de</strong>pois, em 20 <strong>de</strong> fevereiro, tomava posse da nova diocese. Segundo o historiador botucatuense<br />
Hernani Donato, o novo prelado foi recebido por quatro dos seis mil habitantes da cida<strong>de</strong>, em clima <strong>de</strong><br />
muita festa e calorosos discursos das autorida<strong>de</strong>s locais. (DONATO, 1985, p. 308) Mas, passados<br />
alguns dias, o “bispo do sertão paulista” percebeu a precarieda<strong>de</strong> estrutural e patrimonial <strong>de</strong> sua<br />
diocese. Em carta <strong>de</strong> 24 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1909 a D. Duarte, apenas quatro dias <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> sua posse, D.<br />
Lúcio pediu dispensa da contribuição para as <strong>de</strong>spesas <strong>de</strong> viagem do arcebispo a Roma, por ocasião<br />
da criação das novas dioceses, argumentando objetivamente que estas <strong>de</strong>spesas não haviam sido<br />
feitas em sua gerência, e por isso não tinha o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> saldá-las.<br />
Mas não é só isso. D. Lúcio afirmou ter <strong>de</strong> esmolar para manter as ativida<strong>de</strong>s do bispado, e<br />
continuou: “V. Excia. bem me po<strong>de</strong>ria fazer a primeira esmola, mandando <strong>de</strong>volver a esta diocese o<br />
preço do prédio que o ven<strong>de</strong>u da Mitra”. Até a posse <strong>de</strong> D. Lúcio, o arcebispo <strong>de</strong> São Paulo foi o<br />
Administrador Apostólico <strong>de</strong> Botucatu, e nesse período ele ven<strong>de</strong>u um prédio do patrimônio da Mitra<br />
Botucatuense, cujo valor D. Lúcio reivindicava. Pediu, ainda, “a carida<strong>de</strong> <strong>de</strong> comensalar por um anno<br />
por conta do santuário [<strong>de</strong> Pirapora], on<strong>de</strong>, aliás, não param também esmolas <strong>de</strong>sta diocese, mas não<br />
ouso fazela, <strong>de</strong>ixando à pru<strong>de</strong>nte generosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> V.Excia. fazer o que julgar bem”. Ao finalizar esta
carta <strong>de</strong>ixou transparecer, <strong>de</strong>liberadamente ou não, seu estado <strong>de</strong> ânimo: “Digne-se V. Excia. confortar<br />
com sua benção o triste e humil<strong>de</strong> servo <strong>de</strong> V. Excia. + Lúcio, Bispo <strong>de</strong> Botucatu.<br />
Urge lembrar que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> 1890 a Igreja se viu sem os recursos regulares do Estado que se<br />
responsabilizava pela administração eclesiástica. Muitas dioceses nos anos 1890 ficaram em<br />
verda<strong>de</strong>ira situação <strong>de</strong> miséria, como as <strong>de</strong> Goiás e Niterói. Além disso, o padroado régio engendrou<br />
uma confusão na <strong>de</strong>finição dos bens das Irmanda<strong>de</strong>s, da Igreja e do Estado, o que ensejou vários<br />
conflitos. Para agudizar o problema econômico da Igreja, a maioria da população não estava<br />
acostumada a pagar o dízimo diretamente para a Igreja, ou a doar periodicamente, afinal, ela já pagava<br />
o dízimo, como imposto régio, a Coroa. Toda uma nova prática <strong>de</strong>veria ser construída.<br />
O conflito <strong>de</strong> D. Lúcio com D. Duarte consistia, outrossim, pelo que observamos nas fontes<br />
coletadas e cotejadas até o momento, na <strong>de</strong>finição do território da diocese <strong>de</strong> Botucatu que excluía o<br />
importante santuário <strong>de</strong> Bom Jesus <strong>de</strong> Pirapora, para on<strong>de</strong> acorriam vários fiéis <strong>de</strong> Botucatu, e com<br />
eles, várias esmolas e doações, como se <strong>de</strong>preen<strong>de</strong> da leitura da carta <strong>de</strong> D. Lúcio para D. Duarte<br />
apresentada acima. O santuário foi confiado à administração da Arquidiocese <strong>de</strong> São Paulo que se<br />
responsabilizou pelo acompanhamento dos seminaristas da Província Eclesiástica no instituto dirigido<br />
pelos padres belgas premonstratenses em Pirapora. D. Lúcio acusava D. Duarte <strong>de</strong> se beneficiar da<br />
divisão territorial das novas dioceses que ele próprio havia efetuado, garantindo rentáveis santuários<br />
para si.<br />
A renhida relação com as irmanda<strong>de</strong>s, por sua vez, apresenta-se como objeto clássico da ação<br />
romanizadora na história da Igreja Católica no Brasil, principalmente, com as irmanda<strong>de</strong>s responsáveis<br />
por atraentes espaços do sagrado, como os santuários. As irmanda<strong>de</strong>s foram fundamentais para a<br />
difusão e a reprodução do catolicismo brasileiro até o início do século XX. No contexto “colonial” elas<br />
tiveram expressão <strong>religiosa</strong> e social, com conotações políticas das classes em que se dividia a<br />
socieda<strong>de</strong>. No catolicismo tradicional, luso-brasileiro, caracterizado por sua índole leiga, penitencial,<br />
<strong>de</strong>vocional, familiar e festeira, resumida no adágio “muita reza, pouca missa, muito santo, pouco<br />
padre”, as irmanda<strong>de</strong>s, enquanto organizações <strong>de</strong> leigos dirigidas por leigos, sob uma jurisdição<br />
própria, os compromissos, tinham um papel <strong>de</strong> relevo. Inseridas na or<strong>de</strong>m pública e social, as<br />
irmanda<strong>de</strong>s reuniam maçons e “liberais”, intervindo nos <strong>de</strong>bates seculares. (BEOZZO, 1977, p. 741)<br />
A convencionalmente <strong>de</strong>nominada “Questão Religiosa”, envolvendo os bispos D. Vital e D.<br />
Macedo, iniciou-se a partir <strong>de</strong> conflitos entre bispos ultramontanos e irmanda<strong>de</strong>s constituídas por<br />
maçons. Assim, o controle do patrimônio e da gestão do sagrado exigia, na ótica romanizadora, a<br />
substituição do leigo pelo clérigo junto aos santuários e associações <strong>de</strong> pieda<strong>de</strong>. Na diocese <strong>de</strong><br />
Botucatu, o interesse da Igreja voltava-se, pelas razões já mencionadas, para o santuário <strong>de</strong> Bom<br />
Jesus <strong>de</strong> Iguape, no litoral sul paulista, on<strong>de</strong> foi travada uma disputa pelo controle daquele espaço
sagrado. De fato, alguns meses <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> sua posse, D. Lúcio escreve a D. Duarte: “<strong>de</strong>sejo por em<br />
or<strong>de</strong>m as cousas do Santuário <strong>de</strong> Iguape”. O primeiro bispo <strong>de</strong> Botucatu continua a missiva afirmando<br />
que remeteu os donativos locais para o banco em São Paulo, mas que recebeu muitas reclamações<br />
dos membros das irmanda<strong>de</strong>s ao colocar o vigário local a frente <strong>de</strong> tudo. Há <strong>de</strong> se mapear e explorar<br />
as razões específicas e gerais, bem como as condições, os processos e as conseqüências <strong>de</strong>sses<br />
conflitos com as irmanda<strong>de</strong>s pela gestão do espaço sagrado na diocese <strong>de</strong> Botucatu, comparando<br />
esses embates com os ocorridos em outras regiões do Brasil.<br />
Em Bauru, a Igreja Católica <strong>de</strong>frontou-se também com a prefeitura que chegou mesmo a<br />
<strong>de</strong>struir o templo que fora construído em um terreno pertencente ao governo municipal no bojo das<br />
reformas urbanas por que passava a cida<strong>de</strong>. Jornais anticlericais e católicos <strong>de</strong>scontentes com o<br />
afastamento do antigo pároco padre Francisco Elias Vartolo, simpatizante da maçonaria, envolvido na<br />
política local, pai <strong>de</strong> família reconhecida pela comunida<strong>de</strong> e que não aceitou viver segundo os padrões<br />
impostos pelo ultramontanismo aos clérigos, iniciaram uma série <strong>de</strong> movimentos para resistir às<br />
diretrizes estabelecidas por D. Lúcio que chegou mesmo a interditar a paróquia, proibindo, assim, a<br />
realização <strong>de</strong> atos litúrgicos, como missas e batizados. (PRIMOLAN, 1993, p. 53)<br />
Aliás, D. Lúcio enfrentou vários problemas na correção dos clérigos, sobretudo, os brasileiros<br />
que não compartilhavam dos novos i<strong>de</strong>ais ultramontanos que imputavam ao padre o celibato e a<br />
reclusão na casa paroquial. Por essa razão, a criação <strong>de</strong> seminários era fundamental na ação<br />
romanizadora. No seminário, o candidato ao sacerdócio apren<strong>de</strong>ria as práticas convenientes e<br />
a<strong>de</strong>quadas a nova cultura católica ultramontana. No livro Diretório do Padre, escrito pelo jesuíta Bento<br />
Valuy, e traduzido no Brasil na virada dos séculos em estudo, encontram-se as diretrizes gerais para o<br />
comportamento do “bom padre” na visão romanizada. O livro em questão divi<strong>de</strong>-se em duas partes: a<br />
primeira trata da vida particular do presbítero, enfatizando a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma vida espiritual<br />
alicerçada nos exercícios <strong>de</strong> pieda<strong>de</strong>, na <strong>de</strong>voção aos santos incensados pela Igreja ultramontana, na<br />
confissão periódica, no retiro do clero, nas virtu<strong>de</strong>s, nos hábitos <strong>de</strong> higiene e na mortificação do corpo;<br />
a segunda aborda o padre na vida pública, isto é, na comunida<strong>de</strong> paroquial que lhe foi confiada,<br />
exortando a que o sacerdote respeite a hierarquia eclesiástica e social, agindo com prudência e<br />
cortesia, evitando sempre “manias <strong>de</strong> inovações” e “confidências indiscretas”. Seguindo os padrões<br />
romanizadores da época, a Igreja <strong>de</strong> Botucatu fundou o seu seminário em 1911. O primeiro reitor foi<br />
monsenhor Ferrari, substituído pelos padres da Congregação dos Missionários do Sagrado Coração <strong>de</strong><br />
Jesus que o administraram até 1913, quando os padres Lazaristas franceses, especialistas em<br />
seminários na concepção ultramontana, assumiram a gestão <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muita negociação em Roma e<br />
Paris para trazê-los a Botucatu. (PRIMOLAN, 1993, p. 53-55)
Além dos padres <strong>de</strong>ssas congregações <strong>religiosa</strong>s, D. Lúcio trouxe para a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Botucatu<br />
os padres capuchinhos (LIVRO DO TOMBO N.S.L., 1909, p. 05-15) e as Irmãs Marcelinas. Estas<br />
fundaram, em 1912, o colégio dos Anjos <strong>de</strong>dicado a educação feminina (MARCELINAS, 1992, p. 15)<br />
em um contexto <strong>de</strong> mudanças no papel social das freiras no Brasil ao assumirem efetivamente o<br />
apostolado em lugar da restrita contemplação. (NUNES, 1997, p. 485) De fato, ao longo <strong>de</strong> seu<br />
episcopado, D. Lúcio criou, ainda, um Ginásio Diocesano para a educação masculina e um Instituto<br />
Comercial. Essa re<strong>de</strong> escolar trazia compensações econômicas e viabilizava, como nenhuma outra<br />
estratégia, o projeto <strong>de</strong> recatolização da socieda<strong>de</strong>. A educação mediou, por vezes, o embate da Igreja<br />
com os grupos sociais que assumiam a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Mediação que indica a ambígua recepção da<br />
mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> no país. A elite que combatia a intervenção da Igreja na or<strong>de</strong>m política financiava a<br />
mencionada re<strong>de</strong> escolar católica, matriculando seus filhos e filhas em colégios <strong>de</strong> “europeus”, padres,<br />
freiras e professores italianos, franceses, belgas etc., no espírito da Belle Époque, e, <strong>de</strong>sprezava a<br />
criação <strong>de</strong> escolas públicas. O historiador Ivan Aparecido Manoel (1996, p. 102) consi<strong>de</strong>ra que<br />
(...) se a Igreja ia buscar apoio financeiro e político junto à oligarquia, a oligarquia<br />
lhe amparou <strong>de</strong>cididamente porque sabia que o seu projeto educacional, e mesmo<br />
o conjunto da política ultramontana, lhe era duplamente favorável: primeiro, porque<br />
lhe reservava a função <strong>de</strong> dirigente da socieda<strong>de</strong>, cabendo-lhe, assim, a produção<br />
das idéias norteadoras do conjunto social. Segundo, porque o discurso antimo<strong>de</strong>rno<br />
do catolicismo ultramontano tanto lhe garantia a execução <strong>de</strong> um projeto<br />
educacional não comprometedor e uma doutrinação <strong>de</strong> passivida<strong>de</strong>, quanto, <strong>de</strong><br />
fato, não obstava os necessários avanços e mo<strong>de</strong>rnizações no âmbito das forças<br />
produtivas.<br />
Portanto, a Igreja Católica em Botucatu, enquanto um segundo nível hierárquico na gestão<br />
territorial do sagrado, subordinado ao Vaticano, e superior ao nível paroquial, <strong>de</strong>veria, a partir da<br />
concepção ultramontana do catolicismo, ativar estratégias no sentido <strong>de</strong> estabelecer práticas <strong>religiosa</strong>s<br />
mais condizentes com o discurso romanizador da época. A Igreja ultramontana se consi<strong>de</strong>rava um<br />
baluarte da civilização e por isso, tal como o Estado, <strong>de</strong>veria estabelecer o domínio da civilização cristã<br />
sobre um espaço consi<strong>de</strong>rado incivilizado. Como consi<strong>de</strong>ra o historiador Gilmar Arruda, “há na<br />
cartografia um sentido claro <strong>de</strong> apropriação, a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> domínio dos terrenos <strong>de</strong>sconhecidos”.<br />
(ARRUDA, 2000, p. 187) Para controlar o território religioso diocesano ela enfatizou a visibilida<strong>de</strong> da<br />
Igreja em liturgias, procissões, manifestações públicas etc.; envidou esforços na constituição <strong>de</strong> uma<br />
re<strong>de</strong> <strong>de</strong> lugares sagrados, como templos, santuários, capelas, conventos, casas <strong>religiosa</strong>s, seminários<br />
– locais <strong>de</strong> formação dos agentes especializados do sagrado; bem como <strong>de</strong> uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> colégios e<br />
institutos educacionais, marcando a presença da Igreja na socieda<strong>de</strong>. A <strong>construção</strong> <strong>de</strong>sse território, no<br />
entanto, não aconteceu, como apontam as fontes analisadas até o momento, segundo o script
<strong>de</strong>sejado e i<strong>de</strong>alizado pela instituição eclesial, mas em tensa e intensa relação com os outros sujeitos e<br />
projetos, condições e dinâmicas inerentes ao processo histórico <strong>de</strong> colonização e mo<strong>de</strong>rnização do<br />
interior do Estado <strong>de</strong> São Paulo nas primeiras décadas do século XX.<br />
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