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VÁRIAS HISTÓRIAS Machado de Assis - a casa do espiritismo

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as gaivotas, que faziam gran<strong>de</strong>s giros no ar, ou pairavam em cima<br />

d'água, ou avoaçavam somente. O dia estava lindíssimo. Não era só<br />

um <strong>do</strong>mingo cristão; era um imenso <strong>do</strong>mingo universal.<br />

Inácio passava-os to<strong>do</strong>s ali no quarto ou à janela, ou relen<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s<br />

três folhetos que trouxera consigo, contos <strong>de</strong> outros tempos,<br />

compra<strong>do</strong>s a tostão, <strong>de</strong>baixo <strong>do</strong> passadiço <strong>do</strong> Largo <strong>do</strong> Paço. Eram<br />

duas horas da tar<strong>de</strong>. Estava cansa<strong>do</strong>, <strong>do</strong>rmira mal a noite, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

haver anda<strong>do</strong> muito na véspera; estirou-se na re<strong>de</strong>, pegou em um<br />

<strong>do</strong>s folhetos, a Princesa Magalona, e começou a ler. Nunca pô<strong>de</strong><br />

enten<strong>de</strong>r por que é que todas as heroínas <strong>de</strong>ssas velhas histórias<br />

tinham a mesma cara e talhe <strong>de</strong> D. Severina, mas a verda<strong>de</strong> é que os<br />

tinham. Ao cabo <strong>de</strong> meia hora, <strong>de</strong>ixou cair o folheto e pôs os olhos na<br />

pare<strong>de</strong>, <strong>do</strong>n<strong>de</strong>, cinco minutos <strong>de</strong>pois, viu sair a dama <strong>do</strong>s seus<br />

cuida<strong>do</strong>s. O natural era que se espantasse; mas não se espantou.<br />

Embora com as pálpebras cerradas viu-a <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>r-se <strong>de</strong> to<strong>do</strong>,<br />

parar, sorrir e andar para a re<strong>de</strong>. Era ela mesma, eram os seus<br />

mesmos braços.<br />

É certo, porém, que D. Severina, tanto não podia sair da pare<strong>de</strong>,<br />

da<strong>do</strong> que houvesse ali porta ou rasgão, que estava justamente na<br />

sala da frente ouvin<strong>do</strong> os passos <strong>do</strong> solicita<strong>do</strong>r que <strong>de</strong>scia as escadas.<br />

Ouviu-o <strong>de</strong>scer; foi à janela vê-lo sair e só se recolheu quan<strong>do</strong> ele se<br />

per<strong>de</strong>u ao longe, no caminho da Rua das Mangueiras. Então entrou e<br />

foi sentar-se no canapé. Parecia fora <strong>do</strong> natural, inquieta, quase<br />

maluca; levantan<strong>do</strong>-se, foi pegar na jarra que estava em cima <strong>do</strong><br />

apara<strong>do</strong>r e <strong>de</strong>ixou-a no mesmo lugar; <strong>de</strong>pois caminhou até à porta,<br />

<strong>de</strong>teve-se e voltou, ao que parece, sem plano. Sentou-se outra vez<br />

cinco ou <strong>de</strong>z minutos. De repente, lembrou-se que Inácio comera<br />

pouco ao almoço e tinha o ar abati<strong>do</strong>, e advertiu que podia estar<br />

<strong>do</strong>ente; podia ser até que estivesse muito mal.<br />

Saiu da sala, atravessou rasgadamente o corre<strong>do</strong>r e foi até o quarto<br />

<strong>do</strong> mocinho, cuja porta achou escancarada. D. Severina parou,<br />

espiou, <strong>de</strong>u com ele na re<strong>de</strong>, <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>, com o braço para fora e o<br />

folheto caí<strong>do</strong> no chão. A cabeça inclinava-se um pouco <strong>do</strong> la<strong>do</strong> da<br />

porta, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> ver os olhos fecha<strong>do</strong>s, os cabelos revoltos e um<br />

gran<strong>de</strong> ar <strong>de</strong> riso e <strong>de</strong> beatitu<strong>de</strong>.<br />

D. Severina sentiu bater-lhe o coração com veemência e recuou.<br />

Sonhara <strong>de</strong> noite com ele; po<strong>de</strong> ser que ele estivesse sonhan<strong>do</strong> com<br />

ela. Des<strong>de</strong> madrugada que a figura <strong>do</strong> mocinho andava-lhe diante<br />

<strong>do</strong>s olhos como uma tentação diabólica. Recuou ainda, <strong>de</strong>pois voltou,<br />

olhou <strong>do</strong>us, três, cinco minutos, ou mais. Parece que o sono dava à<br />

a<strong>do</strong>lescência <strong>de</strong> Inácio uma expressão mais acentuada, quase<br />

feminina, quase pueril. "Uma criança!" disse ela a si mesma, naquela<br />

língua sem palavras que to<strong>do</strong>s trazemos conosco. E esta idéia<br />

abateu-lhe o alvoroço <strong>do</strong> sangue e dissipou-lhe em parte a turvação<br />

<strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s.<br />

"Uma criança!"<br />

E mirou-o lentamente, fartou-se <strong>de</strong> vê-lo, com a cabeça inclinada, o<br />

braço caí<strong>do</strong>; mas, ao mesmo tempo que o achava criança, achava-o<br />

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