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VÁRIAS HISTÓRIAS Machado de Assis - a casa do espiritismo

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onito, muito mais bonito que acorda<strong>do</strong>, e uma <strong>de</strong>ssas idéias corrigia<br />

ou corrompia a outra. De repente estremeceu e recuou assustada:<br />

ouvira um ruí<strong>do</strong> ao pé, na saleta <strong>do</strong> engoma<strong>do</strong>; foi ver, era um gato<br />

que <strong>de</strong>itara uma tigela ao chão. Voltan<strong>do</strong> <strong>de</strong>vagarinho a espiá-lo, viu<br />

que <strong>do</strong>rmia profundamente. Tinha o sono duro a criança! O rumor<br />

que a abalara tanto, não o fez sequer mudar <strong>de</strong> posição. E ela<br />

continuou a vê-lo <strong>do</strong>rmir, — <strong>do</strong>rmir e talvez sonhar.<br />

Que não possamos ver os sonhos uns <strong>do</strong>s outros! D. Severina ter-seia<br />

visto a si mesma na imaginação <strong>do</strong> rapaz; ter-se-ia visto diante da<br />

re<strong>de</strong>, risonha e parada; <strong>de</strong>pois inclinar-se, pegar-lhe nas mãos, leválas<br />

ao peito, cruzan<strong>do</strong> ali os braços, os famosos braços. Inácio,<br />

namora<strong>do</strong> <strong>de</strong>les, ainda assim ouvia as palavras <strong>de</strong>la, que eram lindas<br />

cálidas, principalmente novas, — ou, pelo menos, pertenciam a<br />

algum idioma que ele não conhecia, posto que o enten<strong>de</strong>sse. Duas<br />

três e quatro vezes a figura esvaía-se, para tornar logo, vin<strong>do</strong> <strong>do</strong> mar<br />

ou <strong>de</strong> outra parte, entre gaivotas, ou atravessan<strong>do</strong> o corre<strong>do</strong>r com<br />

toda a graça robusta <strong>de</strong> que era capaz. E tornan<strong>do</strong>, inclinava-se,<br />

pegava-lhe outra vez das mãos e cruzava ao peito os braços, até que<br />

inclinan<strong>do</strong>-se, ainda mais, muito mais, abrochou os lábios e <strong>de</strong>ixoulhe<br />

um beijo na boca.<br />

Aqui o sonho coincidiu com a realida<strong>de</strong>, e as mesmas bocas uniramse<br />

na imaginação e fora <strong>de</strong>la. A diferença é que a visão não recuou, e<br />

a pessoa real tão <strong>de</strong>pressa cumprira o gesto, como fugiu até à porta,<br />

vexada e medrosa. Dali passou à sala da frente, aturdida <strong>do</strong> que<br />

fizera, sem olhar fixamente para nada. Afiava o ouvi<strong>do</strong>, ia até o fim<br />

<strong>do</strong> corre<strong>do</strong>r, a ver se escutava algum rumor que lhe dissesse que ele<br />

acordara, e só <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muito tempo é que o me<strong>do</strong> foi passan<strong>do</strong>. Na<br />

verda<strong>de</strong>, a criança tinha o sono duro; nada lhe abria os olhos, nem os<br />

fracassos contíguos, nem os beijos <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>. Mas, se o me<strong>do</strong> foi<br />

passan<strong>do</strong>, o vexame ficou e cresceu. D. Severina não acabava <strong>de</strong> crer<br />

que fizesse aquilo; parece que embrulhara os seus <strong>de</strong>sejos na idéia<br />

<strong>de</strong> que era uma criança namorada que ali estava sem consciência<br />

nem imputação; e, meia mãe, meia amiga, inclinara-se e beijara-o.<br />

Fosse como fosse, estava confusa, irritada, aborrecida mal consigo e<br />

mal com ele. O me<strong>do</strong> <strong>de</strong> que ele podia estar fingin<strong>do</strong> que <strong>do</strong>rmia<br />

apontou-lhe na alma e <strong>de</strong>u-lhe um calefrio.<br />

Mas a verda<strong>de</strong> é que <strong>do</strong>rmiu ainda muito, e só acor<strong>do</strong>u para jantar.<br />

Sentou-se à mesa lépi<strong>do</strong>. Conquanto achasse D. Severina calada e<br />

severa e o solicita<strong>do</strong>r tão ríspi<strong>do</strong> como nos outros dias, nem a<br />

rispi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> um, nem a severida<strong>de</strong> da outra podiam dissipar-lhe a<br />

visão graciosa que ainda trazia consigo, ou amortecer-lhe a sensação<br />

<strong>do</strong> beijo. Não reparou que D. Severina tinha um xale que lhe cobria<br />

os braços; reparou <strong>de</strong>pois, na segunda-feira, e na terça-feira,<br />

também, e até sába<strong>do</strong>, que foi o dia em que Borges man<strong>do</strong>u dizer ao<br />

pai que não podia ficar com ele; e não o fez zanga<strong>do</strong>, porque o tratou<br />

relativamente bem e ainda lhe disse à saída:<br />

— Quan<strong>do</strong> precisar <strong>de</strong> mim para alguma cousa, procure-me.<br />

— Sim, senhor. A Sra. D. Severina. . .<br />

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