programas - Gulbenkian Música - Fundação Calouste Gulbenkian
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a primeira página da primeira edição da missa em dó maior, op. 86, de beethoven © dr<br />
Geralmente, o génio de Beethoven gosta<br />
de jogar com as alavancas do espanto, do<br />
assombramento. Pensávamos, assim, que<br />
a contemplação do supra-terrestre iria encher<br />
a sua alma de um temor íntimo, que ele iria,<br />
depois, exprimir em música. Nada feito; toda<br />
a missa exprime a alegria ingénua de uma<br />
alma que, confiante da sua pureza, se abandona,<br />
cheia de fé, à graça de Deus, e o implora como<br />
o Pai que quer o bem para os seus filhos e que<br />
responde às suas preces.”.<br />
No que toca à receção da obra, esta não<br />
poderia ter sido pior. A Missa em Dó maior<br />
esteve na origem daquela que foi provavelmente<br />
a maior humilhação pública de Beethoven.<br />
Sabe-se que, na estreia, a orquestra estava<br />
mal preparada, já que tinha tido poucos<br />
ensaios, mas o descontentamento esteve<br />
essencialmente relacionado com a linguagem<br />
808<br />
musical e com a conceção estética de Beethoven<br />
que, diferente da de Haydn, não agradou<br />
de todo ao príncipe. Parafraseando o relato<br />
de uma condessa presente na estreia, ficamos<br />
a perceber a real dimensão do falhanço<br />
do compositor: “A Missa de Beethoven<br />
é insuportavelmente ridícula e vil. Não estou<br />
convencida de que possa mesmo, honestamente,<br />
ser publicada. Deixa-me zangada<br />
e envergonhada.”…<br />
Não deixa de ser curioso, lendo este testemunho,<br />
que a fervorosa espiritualidade da Missa,<br />
a sua serenidade contemplativa e, também,<br />
a força expressiva da música de Beethoven<br />
(sobretudo da escrita para o coro), que tanto<br />
e tão profundo impacto pode ter no ouvinte,<br />
tenha deixado o público da época tão indiferente<br />
e mesmo contrariado!<br />
* Refira-se aqui uma hipótese curiosa: será que, no Kyrie, precisamente nas palavras Christe eleison!,<br />
Beethoven cita a prodigiosa melodia com que a Condessa de As bodas de Fígaro, de W. A. Mozart, no<br />
final do quarto ato, perdoa o Conde – melodia essa que é logo depois entoada por todos os presentes,<br />
num comovente coral redentor –? É difícil afirmar se esta é, ou não, uma apropriação propositada,<br />
mas não é descabido pensar que, com este “piscar de olho” de apenas oito compassos, escritos vinte<br />
anos depois, Beethoven tenha tido a intenção, se não de homenagear o autor de As Bodas, ao menos<br />
de invocar essa mesma espiritualidade renovadora. Verdade ou não, a hipótese é, no mínimo,<br />
aliciante!