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0 - Gulbenkian Música - Fundação Calouste Gulbenkian

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<strong>Fundação</strong> <strong>Calouste</strong> <strong>Gulbenkian</strong> Serviço de Mús ica


<strong>Fundação</strong> <strong>Calouste</strong> <strong>Gulbenkian</strong><br />

Serviço de <strong>Música</strong><br />

Luís Pereira Leal D i r e c t o r<br />

Carlos de Pontes Leça, Rui Vieira Nery, Directores Adjuntos<br />

Miguel Sobral Cid A s s e s s o r<br />

A g r a d e c i m e n t o s<br />

Palácio de Queluz<br />

Academia das Ciências de Lisboa<br />

Patriarcado de Lisboa<br />

Sociedade de Geografia de Lisboa<br />

Divisão de Cena (Ser viços Centrais)<br />

João Leitão Director de Cena<br />

Christine de Roo e Jorge Freire Assistentes de Direcção de Cena


T e r ç a 6<br />

Q u a r t a 7<br />

Q u i n t a 8<br />

S e x t a 9<br />

S á b a d o 10<br />

D o m i n g o 1 1<br />

S e g u n d a 12<br />

T e r ç a 13<br />

Q u a r t a 14<br />

Í n d i c e<br />

C o n f e r ê n c i a p o r<br />

RUI VIEIRA N E R Y .<br />

HESPERION XX.&<br />

LA C A P E LLA R E I A L<br />

D E CATALU N Y A .<br />

C A P ELA R E A L .<br />

HE S P E R I O N XX. &<br />

LA C A P E LLA R E I A L<br />

D E CATALU N Y A .<br />

C o n f e r ê n c i a p o r<br />

ALEXANDRA TRINDADE<br />

GAGO DA CÂMARA.<br />

LE CONCERT DES NATIONS.<br />

SEGRÉIS DE LISBOA. &<br />

CORO GUL B ENK I A N .<br />

THE KING’S CONSORT.<br />

A K A D E M I E F Ü R ALT E M U S I K .<br />

P á g i n a<br />

6<br />

[ 3 ] Lisbo a, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.<br />

8<br />

2 0<br />

3 0<br />

4 6<br />

4 8<br />

5 4<br />

8 4<br />

9 6<br />

1 0 8<br />

1 2 0


XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 4 ]


I n t r o d u ç ã o<br />

Em 1998 comemora-se o quarto centenário<br />

da representação, em Florença, da primeira ópera<br />

– a D a f n e de Jacopo Peri, espécie de preâmbulo<br />

experimental, cuja <strong>Música</strong> entretanto se perdeu, às<br />

duas aventuras operáticas imediatamente posteriores<br />

(1600) do mesmo Peri e de Giulio Caccini<br />

sobre a E u r i d i c e do poeta Rinuccini, essas sim<br />

preservadas até aos nossos dias.<br />

Entramos, por isso, num triénio em que os<br />

grandes Teatros e Festivais de Ópera de todo o<br />

mundo não deixarão por certo de dedicar uma<br />

parte significativa da sua programação à abordagem<br />

dos grandes monumentos do novo género,<br />

recriando-os com o esplendor desse cruzamento<br />

deslumbrante de todas as linguagens artísticas que<br />

constituiu desde a origem a essência e o fascínio<br />

da Ópera. Ao conhecimento considerável de que<br />

dispomos hoje sobre o repertório e as práticas<br />

interpretativas da <strong>Música</strong> teatral dos séculos XVII<br />

e XVIII juntar-se-á então um trabalho fundamental<br />

de estudo e recriação sobre a integração do discurso<br />

musical com a cenografia, a maquinaria de<br />

cena, as técnicas de encenação, a géstica e a dança<br />

maneiristas e barrocas.<br />

As<br />

XIX Jornadas<br />

<strong>Gulbenkian</strong><br />

de <strong>Música</strong> Antiga<br />

preferem associar-se às comemorações do quarto<br />

centenário da Ópera propondo uma reflexão breve<br />

sobre as potencialidades de sugestão dramática da<br />

própria linguagem musical nos seus vários contextos<br />

teatrais ou para-teatrais: da <strong>Música</strong> de Cena<br />

para o Teatro renascentista de Juan del Encina à<br />

componente musical do drama shakespeareano;<br />

das pequenas representações musico-teatrais sacras<br />

dos vilancicos barrocos ibero-americanos aos<br />

géneros de concerto que procuram recriar em<br />

miniatura a atmosfera operática e aos géneros<br />

instrumentais concebidos para o palco cénico,<br />

como as aberturas, danças e intermezzi; de duas<br />

das primeiras obras primas da Ópera maneirista,<br />

como La Dafne de Marco da Gagliano ou o<br />

C o m b a t t i m e n t o de Monteverdi, à síntese händeliana<br />

das várias linguagens operáticas do Barroco e, por<br />

último, ao repertório inovador da Ópera de<br />

Hamburgo, símbolo do orgulho cívico da sua<br />

cidade, em pleno período do racionalismo clássico<br />

e iluminista.<br />

Por último, as Jornadas prestam homenagem<br />

a dois dos seus colaboradores mais constantes,<br />

Jordi Savall e Montserrat Figueras, celebrando os<br />

vinte anos da sua primeira apresentação em<br />

Portugal, com três concertos assegurados pelos<br />

seus três agrupamentos permanentes: o Hesperion<br />

XX, a Capella Reial de Catalunya e a orquestra Le<br />

Concert des Nations.<br />

Rui Vieira Nery<br />

[ 5 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCV III.


Terça-Feira, Dia 6<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga<br />

6


Auditório Dois,<br />

1 8 . 3 0<br />

DO DRAMA COM MÚSICA<br />

AO DRAMA POR MÚSICA<br />

Conferência por<br />

RUI VIEIRA NERY<br />

(Universidade Nova de Lisboa)<br />

Rui Vieira Nery<br />

Rui Vieira Nery nasceu em Lisboa em 1957.<br />

Iniciou os seus estudos de <strong>Música</strong> na<br />

Academia de <strong>Música</strong> de Santa Cecília e<br />

prosseguiu-os no Conservatório Nacional de<br />

Lisboa onde foi aluno de Melina Rebelo (Piano),<br />

Constança Capdeville (Composição) e Macario<br />

Santiago Kastner (Musicologia e Interpretação de<br />

<strong>Música</strong> Antiga).<br />

É Licenciado em História pela Faculdade de<br />

Letras da Universidade de Lisboa e Doutorado em<br />

Musicologia pela Universidade do Texas em<br />

Austin, que frequentou como Fullbright Scholar e<br />

como bolseiro da <strong>Fundação</strong> <strong>Calouste</strong> <strong>Gulbenkian</strong>.<br />

É Professor Auxiliar do Departamento de<br />

Ciências Musicais da Universidade Nova de<br />

Lisboa, onde ensina desde 1985 e Director-<br />

Adjunto do Serviço de <strong>Música</strong> da <strong>Fundação</strong><br />

<strong>Calouste</strong> <strong>Gulbenkian</strong>.<br />

Como musicólogo, é autor de diversos estudos<br />

sobre História da <strong>Música</strong> Portuguesa, dois<br />

dos quais receberam o Prémio de Ensaísmo<br />

Musical do Conselho Português da <strong>Música</strong> (1984<br />

e 1992), bem como de largo número de artigos<br />

científicos publicados em revistas especializadas,<br />

portuguesas e internacionais. Exerce também uma<br />

actividade intensa como conferencista, na Europa,<br />

nos Estados Unidos e no Brasil. Os seus temas de<br />

investigação incluem a problemática do Maneirismo<br />

e do Barroco na música ibérica, e as formas<br />

de inter-penetração cultural na <strong>Música</strong> Portuguesa:<br />

do Vilancico à Modinha e ao Fado. Trabalha<br />

presentemente num estudo de fundo sobre a<br />

vida musical luso-brasileira, na óptica dos viajantes<br />

estrangeiros do final do antigo regime (1750-<br />

1834).<br />

Como crítico e colunista musical foi colaborador<br />

dos semanários E x p r e s s o e O Independente.<br />

Produziu para a Antena Dois da RDP o programa<br />

“Sons Intemporais”.<br />

Foi Consultor Musical da Comissão Nacional<br />

para as Comemorações dos Descobrimentos<br />

Portugueses e da Régie Cooperativa Sinfonia e<br />

entre Novembro de 1991 e Junho de 1992, foi<br />

nomeado responsável pelo projecto artístico do<br />

Centro de Espectáculos do Centro Cultural de<br />

Belém.<br />

Entre Outubro de 1995 e Outubro de 1997<br />

ocupou o cargo de Secretário de Estado da<br />

Cultura do XIII Governo Constitucional.<br />

[ 7 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCV III.


Academia das Ciências de Lisboa, 2 1 . 3 0<br />

LUZES E SOMBRAS NO TEATRO MUSICAL ESPANHOL<br />

DO SÉCULO DE OURO<br />

De Juan del Encina a Lope de Vega<br />

JUAN DE LEYVA<br />

Romance a la muerte de Don Manrique de Lara<br />

ENRÍQUEZ DE VALDERRÁBANO (fl. séc. XVI)<br />

Pavana Real<br />

JUAN DEL ENCINA (1468 - 15 2 9/3 0)<br />

Amor con fortuna<br />

Si abrá en este baldrés<br />

VENEGAS DE HENESTROSA ( f l. 15 5 7)<br />

Diferencias sobre “las Vacas”<br />

A N Ó N I M O<br />

Si avéis dicho marido<br />

JUAN DEL ENCINA<br />

Fata la parte<br />

Cucú, cucú, cucucú<br />

A N Ó N I M O<br />

Diferencias sobre “la Folia”<br />

PERE JOAN ALMODAR<br />

Ah, Pelayo que desmayo<br />

JUAN DEL ENCINA<br />

Mas vale trocar<br />

A N Ó N I M O<br />

Seguidillas em eco: De tu vista celoso<br />

I n t e r v a l o<br />

SEBASTIAN AGUILERA DE HEREDIA (ca. 1565 - 16 2 7)<br />

Tiento de Batalla<br />

MANUEL MACHADO (ca. 1590 - 16 4 6)<br />

Afuera, afuera que sale<br />

A N Ó N I M O<br />

Ya es tiempo de recoger<br />

Oh que bien que baila Gil<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 8 ]


A N Ó N I M O<br />

Danza del Hacha e Canarios<br />

PEDRO RUIMONTE (ca. 1570 - p . 16 1 8)<br />

Madre la mi madre<br />

JUAN BLAS DE CASTRO ( c a . 1530 - 16 3 1)<br />

Desde las torres del alma<br />

ANÓNIMO / ANTÓNIO VALENTE ( f l . 1565 - 80)<br />

El Villano / Gallarda Napolitana<br />

JUAN BLAS DE CASTRO<br />

Entre dos àlamos verdes<br />

A N Ó N I M O<br />

Jácaras: No hay que decirle el primor<br />

LA CAPELLA REIAL DE CATALUNYA<br />

Montserrat Figueras S o p r a n o<br />

Pilar Jurado S o p r a n o<br />

Pilar Esteban M e i o - S o p r a n o<br />

Carlos Mena C o n t r a t e n o r<br />

Lambert Climent T e n o r<br />

Francesc Garrigosa T e n o r<br />

Daniele Carnovich B a i x o<br />

HESPERION XX<br />

Jordi Savall e Sergi Casademunt Violas da gamba<br />

Sophie Wattilon e Juan Manuel Quintana Violas da gamba<br />

Pedro Memelsdorff F l a u t a<br />

Jean-Pierre Canihac C o r n e t a<br />

Beatrice Delpierre C h a r a m e l a<br />

Daniel Lassalle S a c a b u x a<br />

Josep Borràs D u l ç a i n a<br />

Xavier Diaz Vihuela e Guitarra<br />

Edin Karamazov Alaúde e Guitarra<br />

Michael Behringer Cravo e Órgão<br />

Pedro Estevan P e r c u s s ã o<br />

Jordi Savall D i r e c ç ã o<br />

A Capella Reial de Catalunya tem o patrocínio da Generalitat da Catalunya e<br />

a Colaboração de IBERIA – Líneas Aéreas<br />

[ 9 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


LUZES E SOMBRAS NO TEATRO MUSICAL ESPANHOL<br />

Nas últimas décadas do século XV o Teatro<br />

converteu-se numa das mais importantes vertentes<br />

da Cultura cortesã na Península Ibérica, sobretudo<br />

graças à acção de dois grandes nomes: Gil Vicente<br />

em Portugal e Juan del Encina em Espanha. A<br />

tradição teatral peninsular tinha já então, claro está,<br />

largos séculos, mas manifestara-se sobretudo sob<br />

formas improvisadas de raiz popular,p r e d o m i n a n t emente<br />

sobre temática religiosa, quer através de mistérios<br />

e representações sacras exteriores à instituiç ã o<br />

eclesiástica quer através dos dramas litúrgicos admitidos<br />

no seio da própria liturgia oficial da Igreja.<br />

O novo Teatro de corte tinha características<br />

diferentes. Não enjeitava os temas sacros, e tendia<br />

mesmo a adoptar com alguma frequência, mesmo<br />

fora daqueles, um cariz moralizante; mas preferia<br />

concentrar-se na esfera profana, ora tratando de<br />

assuntos amorosos, muitas vezes enquadrados em<br />

contextos idealizados de natureza bucólica e pastoril,<br />

ora entrando abertamente pelos domínios da<br />

sátira política e da crítica de costumes, ora ficando-se<br />

pela simples comédia de entretenimento.<br />

Também não recusava a memória das suas origens<br />

populares remotas, bem presente nos seus<br />

inúmeros personagens de camponeses e mesteirais,<br />

representados com uma linguagem chã e por vezes<br />

mesmo a roçar o registo escabroso; mas partilhava<br />

inequivocamente, mesmo que disfarçando-o sob<br />

uma aparência construída de ingenuidade, das<br />

referências culturais do humanismo renascentista<br />

do seu tempo. Por último, não abandonava a<br />

tradição medieval da sátira social e da denúncia<br />

dos abusos dos poderosos; mas – vivendo no<br />

período da institucionalização de um novo poder<br />

régio centralizado, levada a cabo em Espanha pelos<br />

Reis Católicos e em Portugal por D. João II e D.<br />

Manuel I - colocava-a agora ao serviço desse novo<br />

ideal da autoridade absoluta do monarca como<br />

garante último da justiça no seu Reino e, por conseguinte,<br />

da própria correcção e castigo dos desmandos<br />

e excessos assim denunciados.<br />

XIX Jo rnadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 10 ]<br />

Se não é este, naturalmente, o espaço adequado<br />

para uma abordagem, mesmo que sumária, das<br />

características intrinsecamente dramatúrgicas deste<br />

repertório, o que importa, isso sim, sublinhar é que<br />

a <strong>Música</strong> ocupava nela uma função absolutamente<br />

essencial. Desde logo, ao nível da caracterização<br />

social dos personagens, que com frequência entravam<br />

em cena cantando uma canção emblemática<br />

do seu estatuto de classe: os pastores e camponeses<br />

entoando ou tocando melodias e danças rústicas,<br />

os escudeiros e cavaleiros preferindo vilancetes e<br />

cantigas galantes acompanhados à vihuela ou à<br />

guitarra, os eclesiásticos optando por melodias de<br />

cantochão ou até mesmo, em casos excepcionais,<br />

por pequenas peças polifónicas. Depois, no plano<br />

da própria caracterização psicológica desses personagens,<br />

traduzindo-lhes os sentimentos e emoções<br />

por meio da temática e do carácter expressivo<br />

das obras musicais escolhidas. Finalmente, como<br />

instrumento de marcação do ritmo interno e da<br />

estrutura dramática da própria peça, separando<br />

cenas, sublinhando pontos de clímax, celebrando o<br />

desenlace final do enredo ou sustentando, ocasionalmente,<br />

um epílogo de reflexão moralizante<br />

sobre a história narrada.<br />

Uma função de semelhante importância da<br />

componente musical do espectáculo implicava que<br />

esta fosse pensada logo à partida como veículo<br />

privilegiado do fio condutor da peça, pelo que o<br />

próprio dramaturgo tinha de estar, ele mesmo,<br />

suficientemente familiarizado com a linguagem<br />

técnica e o potencial expressivo da <strong>Música</strong> da<br />

época. Não admira, pois, que tanto no caso de Gil<br />

Vicente como no de Juan del Encina a precisão<br />

das referências musicais e a justeza dramática e<br />

funcional da inserção destas nos respectivos textos<br />

evidenciem profunda formação musical da parte<br />

dos autores. E se quanto a Mestre Gil não dispomos<br />

de dados concretos que nos permitam identificá-lo<br />

com segurança como compositor de pelo<br />

menos uma parte das obras de <strong>Música</strong> que utiliza


DO SÉCULO DE OURO por Rui Vieira Nery<br />

o mesmo não sucede com Encina, compositor<br />

consagrado e um dos autores de <strong>Música</strong> profana<br />

mais representados nos cancioneiros polifónicos<br />

ibéricos entre finais do século XV e meados do<br />

XVI.<br />

Não é de admirar este facto, se considerarmos<br />

o percurso pessoal de Juan del Encina. Nascido em<br />

1468 em Salamanca, viria a frequentar a prestigiada<br />

Universidade da sua terra natal, onde seu irmão<br />

Diego era Lente de <strong>Música</strong>, nela recebendo o<br />

Bacharelato em Leis. Mas já entretanto em 1484,<br />

aos dezasseis anos, o encontramos como cantor no<br />

coro da catedral salamantina, cargo muito competitivo<br />

que pressupõe que tenha recebido desde criança<br />

uma sólida formação musical nos domínios<br />

do cantochão e do contraponto. Nestas funções e<br />

– a partir de 1490, depois de ter tomado ordens<br />

menores – nas de Capelão da mesma catedral terá<br />

permanecido até 1492, data em que entrou ao<br />

serviço de Don Fradique Álvarez de Toledo,<br />

Duque de Alba, como poeta e dramaturgo residente,<br />

encarregue de promover o entretenimento<br />

poético e teatral do paço ducal de Alba de<br />

Tormes.<br />

A sua acção durante os seis anos que passou<br />

na corte da Casa de Alba foi extremamente intensa,<br />

datando desse período a quase totalidade da sua<br />

obra que chegou aos nossos dias, de que ele<br />

próprio compilou uma grande parte numa colectânea<br />

que ofereceu em 1495, ainda em manuscrito,<br />

ao Duque, e que fez imprimir no ano seguinte:<br />

nela se continham, designadamente, cerca de<br />

sessenta poemas para serem cantados, incluindo<br />

oito peças teatrais, e uma Arte de poesía castellana que<br />

constitui uma importante referência teórica para a<br />

caracterização do repertório poético do tempo e<br />

atesta bem, pelo seu carácter erudito de influência<br />

italiana, a vertente cosmopolita e cortesã do autor.<br />

Dos dois anos posteriores à publicação datam<br />

ainda mais cinco peças que viriam a ser incluídas<br />

nas sucessivas reedições da obra.<br />

Curiosamente, a carreira de dramaturgo e<br />

compositor de Juan del Encina pode assim considerar-se<br />

quase terminada por alturas do seu trigésimo<br />

aniversário, em 1498, quando abandona o serv<br />

i ç o do Duque de Alba. Candidata-se então ao<br />

cargo de Cantor-Mor da catedral de Salamanca,<br />

mas sem sucesso, visto que a escolha do cabido<br />

acaba por recair no compositor Lucas Fernández,<br />

após um processo de selecção complexo e algo<br />

irregular que Encina impugnará em tribunal, num<br />

pleito que se arrastará por vários anos. Entretanto<br />

parte para Roma, onde o Papa espanhol Alexandre<br />

VI o recebe generosamente, concedendo-lhe vários<br />

rendimentos eclesiásticos em dioceses da Espanha.<br />

Entra ao serviço de um outro compatriota, o<br />

Cardeal Francisco de Lorris, e em 1508 o Papa<br />

Júlio II concede-lhe o cargo de Arcediago da catedral<br />

de Málaga. Passará agora a dividir a sua vida<br />

entre esta última cidade e Roma, e é ainda no palácio<br />

romano do Cardeal valenciano Jacobo Serra<br />

que faz representar em 1513 a sua última peça<br />

conhecida, a Écloga de Plácida e Victoriano. Depois virá<br />

um período de verdadeira crise mística. Juan del<br />

Encina parte em 1519 em peregrinação à Terra<br />

Santa, e ao regressar a Roma é nomeado Prior da<br />

catedral de León, para onde partirá em seguida, aí<br />

permanecendo até à sua morte, em finais de 1529<br />

ou inícios de 1530.<br />

Muito embora Encina, como dramaturgo,<br />

tenha também utilizado nas suas peças obras musicais<br />

de outros compositores, ficaram-nos de sua<br />

autoria confirmada 61 peças musicais cuja fonte<br />

principal é o célebre Cancionero del Palácio, a mais<br />

extensa colectânea de <strong>Música</strong> vocal profana da<br />

Espanha das primeiras décadas do século XVI,<br />

assim designada por se preservar na biblioteca do<br />

Palácio Real de Madrid. Trata-se, em geral, de formas<br />

de estribilho e coplas (vilancetes ou cantigas)<br />

ou de peças estróficas de carácter narrativo<br />

(romances). Os romances tendem, com frequência,<br />

a ser de natureza mais grave e expressiva,<br />

[ 11 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


enquanto as cantigas e os vilancetes são quase sempre<br />

mais ritmados e ligeiros. A temática oscila<br />

entre a comédia picaresca, por vezes de sabor<br />

satírico e sensual, e o enredo amoroso. Algumas<br />

das peças vêm expressamente referidas nas obras<br />

teatrais do autor, sendo de admitir, no entanto,<br />

que mesmo as restantes que não são directamente<br />

indicadas possam na prática ter sido livremente<br />

inseridas nas representações.<br />

A tradição teatral espanhola prossegue, como<br />

se sabe, com um esplendor crescente a partir de<br />

Juan del Encina, para atingir o seu auge ao longo<br />

da primeira metade do século XVII, pela pena de<br />

autores como Calderón de la Barca, Tirso de<br />

Molina ou Lope de Vega. E a componente musical<br />

manteve no seio desse repertório um peso fundamental,<br />

com funções muito semelhantes às que<br />

já desempenhava nas obras do século anterior e<br />

limitando-se a acompanhar a evolução natural do<br />

estilo de composição profana praticado na<br />

Espanha do Século de Ouro.<br />

Destes autores foi precisamente Lope de<br />

Vega aquele que de forma mais constante reservou<br />

um lugar de destaque à <strong>Música</strong> nas suas obras, ao<br />

ponto de vir a ser o autor do texto e o promotor<br />

mais importante da primeira Ópera espanhola, L a<br />

Selva sin Amor, de que infelizmente se perdeu o<br />

registo da <strong>Música</strong>. Conhecemos pouco da sua<br />

infância, para lá do que ele próprio nos descreve<br />

na sua obra-prima autobiográfica, La Dorotea, m a s<br />

sabe-se que nasceu em Madrid em 1562 e admite-<br />

-se que terá estudado na Universidade de Alcalá de<br />

Henares, desconhecendo-se se terá recebido alguma<br />

formação musical. Ao contrário de Encina,<br />

contudo, nada parece indicar que tal tenha sucedido,<br />

visto que apesar da constante presença de<br />

referências musicais nas suas peças nenhuma fonte<br />

o aponta como compositor das obras de <strong>Música</strong><br />

que circulam sobre textos seus.<br />

A vida de Lope de Vega é ela própria um verdadeiro<br />

folhetim, a que não faltam alguns episódios<br />

militares – como o seu alistamento em 1583<br />

na esquadra espanhola que vai defender os Açores<br />

da ameaça de desembarque das forças leais ao<br />

Prior do Crato e 1588 na tristemente célebre<br />

Invencível Armada – e sobretudo um percurso<br />

amoroso sobressaltado e donjuanesco, com um<br />

primeiro envolvimento, aos dezassete anos, com<br />

uma mulher casada, Elena Osorio, dois casamentos<br />

sucessivos com Isabel de Urbina e Juana de<br />

Guardo, uma ligação ilegítima com Antonia Trillo<br />

que o leva a tribunal por crime de mancebia, e uma<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 12 ]<br />

longa relação paralela com Micaela de Luján, mãe<br />

de quatro dos seus seis filhos. Incapaz de fazer<br />

frente aos seus encargos pessoais apenas com os<br />

rendimentos da sua obra literária e dramatúrgica,<br />

torna-se em 1607 secretário do Duque de Sessa,<br />

seu grande amigo e protector até à morte, depois<br />

de ter estado, também ele, de 1590 a 1595, como<br />

um século antes o fizera Juan del Encina, ao<br />

serviço do Duque de Alba, em Toledo e Alba de<br />

Tormes. Em 1614, contudo, entra numa fase de<br />

intenso misticismo, tomando ordens menores na<br />

sequência da morte da sua segunda mulher e publicando<br />

em seguida um volume belíssimo de<br />

Rimas Sacras, o que não o impedirá de dois anos<br />

mais tarde vir a embarcar numa última grande ligação<br />

amorosa, desta vez com Marta de Nevares.<br />

Morreu em 1635, em Madrid.<br />

Todas estas amadas, por sinal, lhe inspirarão<br />

versos magníficos e lhe terão servido, muito<br />

provavelmente, de modelo aos personagens femininos<br />

que tão bem soube criar na sua obra<br />

dramática. Esta é, de resto, extensíssima, havendo<br />

ainda hoje debate entre os investigadores para o<br />

estabelecimento de um corpus inequívoco das<br />

composições teatrais de sua autoria para lá das<br />

vinte colecções de peças que publicou em sua vida,<br />

mas avultando entre estas El Alcalde de Zalamea<br />

(1600), Peribañez y el Comendador de Ocaña ( 1 6 1 4 ) ,<br />

Fuenteovejuna (1618), ou El Caballero de Olmedo<br />

(1641). De cerca de 340 comédias que lhe são<br />

atribuídas pelo menos metade contém referências<br />

a obras musicais específicas, para lá de mesmo nas<br />

restantes surgirem alusões genéricas como “aquí<br />

cantan y bailan”, “cantan con guitarra” ou “suena<br />

música”. A toda esta presença constante da <strong>Música</strong><br />

corresponde bem, aliás, a informação de que dispomos<br />

sobre a constituição das companhias de<br />

teatro espanholas da época, cujos actores e actrizes<br />

eram descritos como sendo, na sua maioria,<br />

capazes não só de declamar como de cantar, de<br />

dançar e, em alguns casos, de tocar algum instrumento.<br />

Não sendo ele mesmo músico, Lope de Vega<br />

soube atrair a si alguns dos maiores compositores<br />

activos na Corte de Madrid para escreverem a<br />

<strong>Música</strong> das suas peças. É o caso de Juan Blas de<br />

Castro (†1631), que servira com o dramaturgo ao<br />

Duque de Alba e ao qual Lope daria o epíteto<br />

poético de “dos veces divino maestro”, do português<br />

Manuel Machado (ca. 1490-1646), discípulo<br />

de Duarte Lobo e filho do harpista da<br />

Capela Real espanhola, ou de Pedro Ruimonte


(ca. 1570-p. 1618), autor de uma célebre colecção<br />

de madrigais espanhóis, El Parnaso Español, impressa<br />

em 1614 em Antuérpia. As obras destes e de<br />

outros compositores da época encontram-se dispersas<br />

pelos principais cancioneiros da primeira<br />

metade do século XVII, do Libro de Tonos Humanos<br />

e dos Romances y Letras a Tres Voces, da Biblioteca<br />

Nacional de Madrid, aos Cancioneiros de Claudio<br />

de la Sablonara, da Biblioteca Casanatense, de<br />

Olot, etc.. Aos vilancetes de tradição quinhentista<br />

junta-se aqui uma panóplia de novas formas, por<br />

vezes com forte componente de dança, com uma<br />

presença significativa das canções e danças populares<br />

espanholas, como a “seguidilla”, a “jácara”<br />

ou a “chacona”.<br />

A par com as obras especificamente escritas<br />

sobre textos integrantes das peças teatrais em<br />

causa, a componente musical das éclogas, comédias,<br />

tragicomédias, tagédias e demais géneros<br />

dramáticos da escola espanhola, de Encina a Lope,<br />

incluía, naturalmente, a execução frequente de<br />

<strong>Música</strong> instrumental durante as representações.<br />

Em alguns casos é no próprio texto ou nas respectivas<br />

verificar que encontramos indicações concretas<br />

sobre estas inserções. É de supor, no entanto,<br />

que a maioria destas passagens instrumentais<br />

ficaria à discrição dos responsáveis pela produção<br />

e sujeita à disponibilidade de músicos e instrumentos<br />

ali existentes, podendo ser escolhida de entre<br />

as várias categorias do repertório instrumental<br />

ibérico dos séculos XVI e XVII.<br />

No presente programa incluem-se, por isso<br />

mesmo, seis exemplos de géneros instrumentais<br />

diversos que poderiam ter estado representados<br />

nessa prática. O primeiro é uma das danças de<br />

Corte mais cultivadas no século XVI, a Pavana,<br />

dança lenta de passos, de que é aqui incluído um<br />

exemplo extraído do Libro de <strong>Música</strong> de Vihuela, intitulado<br />

Silva de Sirenas (Valladolid, 1547), do vihuelista<br />

Enríquez de Valderrábano. O segundo é uma série<br />

de variações sobre uma das mais populares canções<br />

espanholas da mesma época, Guárdame las vacas,<br />

extraída de uma importante colecção impressa de<br />

obras ibéricas para tecla coligidas por Luis<br />

Venegas de Henestrosa sob o título de Libro de<br />

Cifra Nueva para Tecla (Alcalá de Henares, 1557). A<br />

Folia, por sua vez, era uma dança medieval de<br />

origem portuguesa que durante mais de três séculos<br />

gozou de imensa popularidade, primeiro em<br />

toda a Península, depois pela Europa fora, até<br />

finais do século XVIII, ao ponto de Corelli e<br />

Vivaldi ainda comporem sobre ela conhecidas<br />

variações instrumentais. O repertório de órgão,<br />

frequentemente objecto de adaptações para conjuntos<br />

instrumentais que eram executadas nos mais<br />

diversos contextos, está aqui representado por uma<br />

obra do aragonês Sebastián Aguilera de Heredia<br />

(ca. 1565-1627), um “Tiento de Batalla” que<br />

procura descrever por efeitos musicais onomatopaicos,<br />

como era típico do género no século<br />

XVII, o combate místico entre as forças do Bem e<br />

do Mal. Por último encontraremos duas séries de<br />

improvisações sobre danças populares ibéricas<br />

deste período: antes de mais a “Danza del Hacha”<br />

e os “Canarios”, de que conhecemos registos importantes<br />

nas antologias para órgão organizadas<br />

pelo catalão Antonio Matin i Coll em finais do<br />

século XVII, e depois o conjunto formado pela<br />

dança popular “El Vilano”, de registo anónimo, e<br />

por mais uma dança cortesã, a “Gallarda Napolitana”,<br />

apresentada originalmente numa versão<br />

para cravo pelo compositor italiano Antonio<br />

Valente, na sua Intavolatura di Cimbalo ( N á p o l e s ,<br />

1575).<br />

[ 13 ] Lisbo a, 6 a 1 4 Outub ro MCMXCVIII.


De Juan del Encina<br />

a Lope de Vega<br />

Romance a la muerte de<br />

Don Manrique de Lara<br />

A veynte y siete de março<br />

la media noche sería<br />

en Barcelona la grande<br />

muy grandes llantos se hazía.<br />

los gritos llegan al cielo,<br />

la gente se amortecía<br />

por don Manrique de Lara<br />

que deste mundo partía.<br />

Muerto lo traen a su tierra<br />

donde bivo sucedía;<br />

su bulto lleva cubierto<br />

de muy rica pedrería,<br />

cercado d’escudos d’armas,<br />

de real genalogía,<br />

de aquellos altos linages<br />

donde aquel señor venía,<br />

de los Manriíquez y Castros<br />

el mejor era que avía,<br />

de los infantes de Lara<br />

derechamente venía.<br />

Con él salen arçobispos<br />

con toda la clerezía.<br />

Cavalleros traen sus andas,<br />

duques son su compañía,<br />

llóralo el rey y la reyna,<br />

como aquel que les dolía,<br />

y llora toda la corte,<br />

cada qual quien más podía.<br />

Quedaron todas las damas<br />

sin consuelo ni alegría;<br />

cada uno de los galanes<br />

con sus lágrimas dezía:<br />

“El mejor de los mejores<br />

oy nos dexa en este día;<br />

hizo honra a los menores,<br />

a los grandes demasía,<br />

XIX Jorn adas Gulb en kian de <strong>Música</strong> An tiga [ 14 ]<br />

parecía al duque su padre<br />

en toda cavallería;<br />

sólo un consuelo le queda<br />

A el que más le quería,<br />

que aunque la vida muriese<br />

su memoria quedaría.<br />

Parecióme Barcelona<br />

A Troya quando se ardía.”<br />

Amor con fortuna<br />

Amor con fortuna<br />

Me muestra enemiga.<br />

No sé qué me diga.<br />

No sé lo que quiero,<br />

Pues busqué mi daño.<br />

Yo mismo m’engaño,<br />

Me meto do muero<br />

Y, muerto, no espero<br />

Salir de fatiga.<br />

No sé qué me diga.<br />

Amor me persigue<br />

Con muy cruda guerra.<br />

Por mar y por tierra<br />

Fortuna me sigue.<br />

Quién hay que desligue<br />

Amor donde liga?<br />

No sé qué me diga.<br />

Fortuna traidora<br />

Me haze mudança,<br />

Y amor, esperança<br />

Que siempre empeora.<br />

Jamás no mejora<br />

Mi suerte enemiga.<br />

No sé qué me diga.


Si abrá en este baldrés<br />

Si abrá en este baldrés<br />

Mangas apra todas tres?<br />

Tres moças d’aquesta villa,<br />

Tres mozas d’aquesta villa<br />

Desollavan una pija<br />

Para mangas a todas tres.<br />

Tres moças d’aqueste barrio,<br />

Tres moças d’aqueste barrio<br />

Desollavan un carajo<br />

Para mangas a todas tres.<br />

Desollavan una pija,<br />

Desollavan una pija<br />

Y faltóles una tira<br />

Para mangas a todas tres.<br />

Y faltóles una tira,<br />

Y faltóles una tira.<br />

La una a buscalla iva<br />

Para mangas a todas tres.<br />

Y faltóles un pedaço,<br />

Y faltóles un pedaço.<br />

La una iva a buscallo<br />

Para mangas a todas tres<br />

Si avéis dicho marido<br />

Si avéis dicho marido,<br />

Esperá, diré yo lo mío.<br />

¡Si se cunpliese, marido,<br />

Lo qu’esta noch’ é soñado<br />

Qu’ estuviésedes subido<br />

En la picota, emplumado!<br />

Yo, con un moço garrido,<br />

En la cama, a mi costado,<br />

Y, tomando quel plazer<br />

Del qual vos sois ya cansado,<br />

Hiziésemos un alnado<br />

Que vos fuese a desçender.<br />

Fata la parte<br />

Fata la parte<br />

Tutt’ogni cal,<br />

Qu’es morta la muller<br />

De micer Cotal.<br />

Porque l’hai trovato<br />

Con un españolo<br />

En su casa solo,<br />

Luego l’hai macato.<br />

Lui se l’ha escapato<br />

Por forsa y por arte.<br />

Restava dicendo<br />

Porque l’hovo visto.<br />

- O válasme Cristo!,<br />

El dedo mordiendo,<br />

Griudando y piangendo:<br />

Españoleto, guarte!<br />

Guarda si te pillo,<br />

Don españoleto!<br />

Supra dal mio leto<br />

Te faró un martillo,<br />

Tal que en escrevillo<br />

Piangeran le carte.<br />

- Micer mi compare,<br />

Gracia della e de ti.<br />

- Lasa fare a mi<br />

Y non te curare.<br />

- Assai mal me pare<br />

Lui encornudarte.<br />

Cucú, cucú, cucucú!<br />

Cucú, cucú, cucucú!<br />

Guarda no lo seas tú.<br />

Compadre debes saber<br />

Que la más buena mujer<br />

Rabia sempre por hoder.<br />

Harta bien la tuya tú.<br />

Compadre, has de guardar<br />

Para nunca encornudar;<br />

Si tu mujer sale a mear<br />

Sal junto con ella tú.<br />

Ah, Pelayo que desmayo<br />

Ah, Pelayo que desmayo!<br />

- ¿De què, dí?<br />

- D’una zagala que ví.<br />

- Ah Pelayo si la vieras,<br />

Tanta es su hermosura,<br />

No bastara tu cordura,<br />

Qu’en verla tu te perdieras,<br />

Y penaras y murieras.<br />

- ¿Tal es dí?<br />

- Mas linda que nunca ví.<br />

Más vale trocar<br />

Más vale trocar<br />

Plazer por dolores<br />

Que estar sin amores.<br />

Donde es gradecido<br />

Es dulce el morir:<br />

Bivir en olvido.<br />

Aquél no es bivur.<br />

Mejor es sufrir<br />

Passión y dolores<br />

Que estar sin amores.<br />

Es vida perdida<br />

Bivir sin amar,<br />

Y más es que vida<br />

Saberla emplear.<br />

Mejor es penar<br />

Sufriendo dolores<br />

Ques estar sin amores.<br />

La muerte es vitoria<br />

Do bive afición,<br />

Que espera haver gloria<br />

Quien sufre passión.<br />

Más vale presión<br />

De tales dolores<br />

Que estar sin amores.<br />

El qu’es más penado<br />

Más goza de amor,<br />

Qu’el mucho cuidado<br />

Le quita el temor.<br />

Assí qu’es mejor<br />

Amar con dolores<br />

Que estar sin amores.<br />

No teme tormento<br />

Quiem ama con fe<br />

Sí su pensamiento<br />

Sin causa no fué.<br />

Haviendo por qué,<br />

Más valen dolores<br />

Que estar sin amores.<br />

Amor que no pena<br />

No pida plazer<br />

Pues ya le condena<br />

Su poco querer.<br />

Mejor es perder<br />

Plazer por dolores<br />

Que estar sin amores.<br />

[ 15 ] Li sboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


De tu vista celoso<br />

De tu vista celoso<br />

Paso mi vida<br />

Que me da mil enojos<br />

… ojos<br />

Que a tantos miran.<br />

Miras poco y robas<br />

Mil coraçones<br />

Y aunque mas te retiras<br />

… tiras<br />

Flechas de amores<br />

Para qué no nos falte<br />

Plata y vestidos<br />

Las mujeres hagamos<br />

… gamos<br />

Nuestros maridos.<br />

Para qué quieres galas<br />

Si honor pretendes<br />

Mira que son las galas<br />

… alas<br />

Para perderte.<br />

Afuera, afuera<br />

Afuera, afuera que sale<br />

Con ejercitos de flores<br />

La arrogancia del Abril<br />

A la campaña de un bosque.<br />

A sus fuerzas la nieve<br />

No se le oponga:<br />

Mire, no quede<br />

Sin la victoria.<br />

Ya es tiempo de recoger<br />

Ya es tiempo de recoger<br />

Soldados de mi memoria.<br />

Escapados y vencidos<br />

De una batalla tan loca.<br />

Toca, toca a recoger,<br />

Toca, toca que marcha.<br />

Que marcha el tiempo,<br />

Y la jornada es corta.<br />

Oh que bien que baila Gil<br />

Oh que bien que baila Gil<br />

Con las mozas de Barajas<br />

La chacona a las sonajas<br />

Y el villano al tamburil.<br />

¡Oh! Que bien cierto galán<br />

Baila Gil, tañendo Andrés!<br />

O pon fuego en los pies<br />

O al aire volando van;<br />

No hay mozo que tan gentil<br />

Agora baile en Barajas<br />

La chacona a las sonajas<br />

Y el villano al tamburil.<br />

¿Qué moza desecharía<br />

Un mozo de tal donaire<br />

Que de coces en el aire<br />

Y a volar le desafía?<br />

A lo menos más sutil<br />

Cuando baila, se hace rajas<br />

La chacona a las sonajas<br />

Y el villano al tamburil.<br />

Madre, la mi madre<br />

Madre, la mi madre<br />

Guardarme queréis;<br />

Mas si yo no me guardo<br />

Mal me guardaréis.<br />

Como es el amor<br />

Un fuerte guerrero,<br />

Quiso en mil el primero<br />

Mostrar su rigor,<br />

Gusté de su ardor<br />

Y abrile la puerta<br />

Si él la deja abierta,<br />

Mal la cerraréis,<br />

Que si yo no me guardo<br />

Mal me guardaréis.<br />

Desde las torres del alma<br />

Desde las torres del alma,<br />

Cercadas de mil engaños,<br />

Al dormido entendimiento<br />

La rasón está llamando.<br />

Alarma, alarma, guerra, desengaños,<br />

Que me lleva el amor mis verdes años.<br />

Dicen que le ha dado sueño<br />

La voluntad de Belardo<br />

Con la yerva de unos ojos<br />

Tan hermosos como falsos.<br />

Alarma, alarma, guerra, desengaños,<br />

Que me lleva el amor mis verdes años.<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 16 ]<br />

Entre dos àlamos verdes<br />

Entre dos àlamos verdes,<br />

Que forman juntos un arco,<br />

Por no despertar las aves<br />

Pasava callando el Tajo.<br />

Juntar los troncos querían<br />

Los enamorados braços;<br />

Pero el imbidioso río<br />

No dexa llegar los ramos.<br />

Juntaréis vuestras ramas,<br />

Àlamos altos,<br />

En menguando las aguas<br />

Del claro Tajo;<br />

Pero si ay desdichas<br />

Que vencen años.<br />

Creceràn con los tiempos<br />

Penas y agravios.<br />

Aunque en las crecientes<br />

Mientras que duran<br />

Las soberbias puentes<br />

No estàn siguras,<br />

A pesar de su furia<br />

Podréis juntaros<br />

En menguando las aguas<br />

Del claro Tajo.<br />

No hay que decirle el primor<br />

No hay que decirle el primor<br />

Ni con el valor que sale,<br />

Que yo se que esta zagala<br />

De las que rompen el aire.<br />

Tan bizarra y presumida<br />

Tan valiente es y arrogante<br />

Que ha jurado que ella sola<br />

Ha de vencer al Dios Marte.<br />

Si sale, que la festejan<br />

Las florecillas y aves,<br />

Juzgara que son temores<br />

Lo que haceis por agradables.<br />

Muera con la confusion<br />

De su arrogancia pues trae<br />

Por blason la victoria,<br />

Rayos con que ha de abrasarse.


Jordi Savall<br />

Nasceu em Igualada (Barcelona) em 1941. A<br />

sua trajectória musical começa aos seis anos de<br />

idade, tendo adquirido experiência prática e formação<br />

musical num coro infantil da sua terra<br />

natal. Prosseguiu estudos de <strong>Música</strong> e Violoncelo<br />

no Conservatório Superior de <strong>Música</strong> de<br />

Barcelona até 1965. Pioneiro ávido de novos horizontes,<br />

rapidamente se apercebeu da importância<br />

da <strong>Música</strong> Antiga, redescobrindo a viola da gamba<br />

e o rico património musical antigo da Península<br />

Ibérica. Em 1968 completou a sua formação na<br />

Schola Cantorum de Basileia onde, em 1973,<br />

sucedeu ao seu mestre August Wenzinger.<br />

A partir de 1970 grava e dá a conhecer, como<br />

solista, as obras primas do repertório para viola da<br />

gamba, sendo rapidamente reconhecido pela crítica<br />

internacional como um dos melhores intérpretes<br />

deste instrumento. Infatigável descobridor<br />

de obras esquecidas, entre 1974 e 1989 funda<br />

várias formações instrumentais que lhe permitem<br />

interpretar um amplo repertório, que se estende da<br />

Idade Média aos primeiros anos do século XIX.<br />

Em 1974 fundou o Hesperion XX com o soprano<br />

Montserrat Figueras, Hopkinson Smith e Lorenzo<br />

Alpert; em 1987 La Capella Reial de Catalunya e<br />

em 1989 a orquestra Le Concert des Nations,<br />

situando-se rapidamente, com cada um destes três<br />

agrupamentos, na vanguarda da interpretação, graças<br />

a uma nova concepção caracterizada por uma<br />

grande intensidade musical e por uma escrupulosa<br />

fidelidade histórica. A sua notável actividade de<br />

concertos (cerca de 100 por ano) em todo o mundo,<br />

permite-lhe visitar regularmente os principais<br />

festivais de <strong>Música</strong> Antiga de mais de 25 países da<br />

Europa, Estados Unidos, América Latina, Médio e<br />

Extremo Oriente, Austrália e Nova Zelândia.<br />

Unanimemente reconhecido como um dos<br />

principais intérpretes actuais de <strong>Música</strong> Antiga,<br />

Jordi Savall é uma das personalidades musicais<br />

mais polivalentes da sua geração: violista, director<br />

e fundador de um estilo próprio, as suas acti-<br />

vidades de concertista, de pedagogo e de investigador<br />

situam-no entre os principais agentes do<br />

processo de revalorização da <strong>Música</strong> Antiga. Com<br />

a sua decisiva participação no filme de Alain<br />

Corneau Tous les matins du monde (o qual recebeu sete<br />

Césares, incluindo o de melhor banda sonora),<br />

demonstrou que o gosto pela <strong>Música</strong> Antiga não é<br />

necessariamente elitista ou minoritário e que pode<br />

interessar a um público cada vez mais jovem e<br />

numeroso. Jordi Savall realizou também as bandas<br />

sonoras dos filmes Jeanne la Pucelle (1993) de<br />

Jacques Rivette, O Pássaro da Felicidade (1993) de<br />

Pilar Miró e M a r q u i s e (1997) de Vera Belmont,<br />

nomeada para os Césares de 1998.<br />

Durante trinta anos de intensa actividade<br />

Jordi Savall recebeu várias distinções. Em 1988 foi<br />

nomeado Oficial da Ordem das Artes e das Letras<br />

do Ministério Francês da Cultura, em 1990 recebeu<br />

a Cruz de Sant Jordi do Governo Regional da<br />

Catalunha, em 1992 foi eleito “Músico do Ano”<br />

pela revista Monde de la Musique e em 1993 “Solista<br />

do Ano” nas 8. as Victoires de la Musique.<br />

No ano de 1998 Jordi Savall começou a editar<br />

em exclusivo as suas próprias gravações e as dos<br />

grupos que lidera, com a criação de uma nova etiqueta<br />

discográfica intitulada ALIA VOX. A sua<br />

importante discografia, que inclui mais de uma<br />

centena de gravações para a EMI e Astrée /<br />

Auvidis, recebeu numerosos galardões:<br />

Grand Prix de l’Académie du Disque Français<br />

(1988, 1989); Edisson Klassic (1989); Grand<br />

Prix de l’Académie Charles Cros (1989), Prix de<br />

l’Académie du Disque Lyrique (1990); Orphée<br />

d’Or (1990); Grand Prix du Disque Classique da<br />

FNAC (1990); Diapason d’Or (1991); Prémio<br />

CD Compact (1992, 1995, 1996, 1997); Grand<br />

Prix de la Nouvelle Académie du Disque (1992);<br />

Disc d’Or RTL (1992, 1994); Croissete d’Or<br />

(1992); Grand Prix de la Ville de Cannes, do<br />

Festival Internacional do Audiovisual Musical<br />

(1992); César para a Melhor Banda Sonora (T o u s<br />

les Matins du Monde, 1992); Grande Prémio da<br />

Academia do Disco japonesa (1993); Prémio da<br />

<strong>Fundação</strong> Giorgio Gini (Veneza, 1995); Prémio<br />

Cecilia (1996); MIDEM ’97 (Cannes Classic<br />

Awards, por La Lira d’Esperia); MIDEM’98 (E l<br />

Cançoner de Calabria); nomeação para os Césares<br />

1998, pela banda sonora do filme Marquise.<br />

Colaborador regular das “Jornadas <strong>Gulbenkian</strong><br />

de <strong>Música</strong> Antiga”, completam-se no corrente<br />

ano de 1998 vinte anos sobre a sua primeira<br />

apresentação em Portugal.<br />

[ 17 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


Montserrat Figueras<br />

Nascida em Barcelona, no seio de uma família<br />

de melómanos, desde a mais tenra idade estudou<br />

canto com Jordi Albareda e frequentou, simultaneamente,<br />

cursos de arte dramática.<br />

O seu encontro com Jordi Savall, com quem<br />

casou em 1968, assinala o início de uma associação<br />

artística e pessoal que os marcará mútua e<br />

reciprocamente. Nesse mesmo ano Montserrat<br />

Figueras ingressa na Schola Cantorum e na Academia<br />

de <strong>Música</strong> de Basileia, onde trabalha com<br />

Kurt Widmer, Thomas Binkley, Andrea von<br />

Rahm e Eva Krasznai. No ano de 1974, em<br />

Basileia, com Jordi Savall, Hopkinson Smith,<br />

Lorenzo Alpert e outros músicos interessados nas<br />

mesmas pesquisas, Montserrat Figueras participa<br />

na formação do grupo Hesperion XX. Mais tarde,<br />

em Barcelona, colabora igualmente na criação da<br />

Capella Reial de Catalunya, em 1987.<br />

O estudo das técnicas de canto originais,<br />

desde a era dos Trovadores até finais do século<br />

XVII, o conhecimento do estilo do canto tradicional<br />

catalão, ibérico e mediterrânico e a polifonia<br />

religiosa espanhola são os três elementos que a<br />

tocam mais profundamente. É a alquimia entre<br />

este elementos que lhe proporciona uma concepção<br />

musical muito pessoal, à margem da<br />

influência do modelo pós-romântico.<br />

Montserrat Figueras aborda um largo universo<br />

musical que abrange a música espanhola da<br />

Idade Média até ao século XVIII e se estende aos<br />

repertórios italiano e francês. Gravou mais de<br />

cinquenta discos, dos quais alguns foram premiados:<br />

Prémio Edisson Klassick; Grand Prix de<br />

l’Académie du Disque e Grand Prix de l’Académie<br />

Charles Cros.<br />

Montserrat Figueras grava actualmente, em<br />

exclusivo, para a ALIA VOX, uma nova editora<br />

criada pelos artistas ligados a Jordi Savall, tendo<br />

recebido um estusiástico acolhimento da crítica e<br />

do público pela sua gravação das obras de José<br />

Marin.<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 18 ]<br />

La Capella Reial de Catalunya<br />

A Capella Reial de Catalunya foi criada em<br />

1987 por Jordi Savall e é um formada por um<br />

conjunto de cantores solistas e músicos especialistas<br />

em instrumentos de época, cujo objectivo é o<br />

de divulgar universalmente o repertório da música<br />

catalã, hispânica e europeia dos séculos IX a XIX.<br />

Esta formação leva a cabo um intensa actividade<br />

de concertos na Catalunha, Espanha,<br />

Portugal, Itália, França, Inglaterra, Hungria,<br />

Áustria, Alemanha, Holanda, Canadá, Estados<br />

Unidos, México, Austrália, Nova Zelândia,<br />

Filipinas, Japão, Formosa e Hong Kong, entre outros<br />

países.<br />

Realizou uma importante série de gravações,<br />

entre as quais se destacam: El cant de la Sibilla, Missa<br />

de Batalla e Missa pro Defunctis de Cererols; Vespro della<br />

Beata Virgine e Madrigali Guerrieri et Amorosi d e<br />

Monteverdi; El cançoner del Duc de Calabria e C a n t i c a<br />

Beatae Virginis de Victoria e o Requiem de Mozart.<br />

De assinalar também a sua participação no<br />

Gran Teatro del Liceo de Barcelona com a ópera<br />

Orfeo de Monteverdi e ainda a presença do agrupamento<br />

na banda sonora do filme de Jacques<br />

Rivette Jeanne La Pucelle.<br />

A Capella Reial de Catalunya recebeu diversos<br />

prémios durante os últimos anos, nomedamente:<br />

os Grandes Prémios da Académie du<br />

Disque Français, da Académie Charles Cross e da<br />

Nouvelle Académie du Disque; Diapason d’Or;<br />

Prémio da Académie du Disque Lyrique; Orphée<br />

d’Or; Grande Prémio do Disco Clássico da<br />

FNAC; Prémio da <strong>Fundação</strong> Giorgio Cini<br />

(Veneza) e Prémio CD Compact.<br />

Desde 1990 que o agrupamento é patrocinado<br />

pelo Governo Regional da Catalunha e recebe<br />

actualmente também o apoio da companhia de<br />

aviação Iberia.


Na Antiguidade, às duas penínsulas mais a<br />

ocidente da Europa – as Penínsulas Itálica e<br />

Ibérica – era dado o nome de Hesperia (em grego,<br />

Hesperio designa um indivíduo originário de uma<br />

destas penínsulas). Hesperio era também o nome<br />

dado ao planeta Vénus que, ao anoitecer, aparece<br />

no céu a Ocidente.<br />

Unidos por uma ideia comum – o estudo e a<br />

interpretação da <strong>Música</strong> Antiga a partir de premissas<br />

novas e actuais – Jordi Savall (instrumentos de<br />

arco), Montserrat Figueras (canto), Hopkinson<br />

Smith (instrumentos de corda dedilhada) e<br />

Lorenzo Alpert (instrumentos de sopro e percussões)<br />

fundaram em 1974 o agrupamento<br />

Hesperion XX, o qual se dedica à revalorização de<br />

determinados aspectos essenciais do repertório<br />

musical europeu (especialmente hispânico) anterior<br />

a 1800. No decorrer de duas décadas de<br />

existência, o Hesperion XX tem sido fiel a este<br />

ideal ao realizar um grande número de programas<br />

inéditos, através de diferentes produções de rádio,<br />

televisão e disco (contando mais de trinta<br />

gravações para a EMI, a Astrée/Auvidis, a Philips<br />

e a DG-Archiv) e de digressões por toda a Europa,<br />

Estados Unidos, Japão, México e Venezuela. O<br />

Hesperion XX participa regularmente em diversos<br />

festivais internacionais, especialmente nos de<br />

<strong>Música</strong> Antiga.<br />

Programas como <strong>Música</strong> no tempo de Cervantes,<br />

<strong>Música</strong> Napolitana da Renascença, Libre Vermell de<br />

Montserrat, Romances Sefarditas, Cansós de Trobairitz o u<br />

O Barroco Espanhol, e ainda produções monográficas<br />

de obras de compositores tão diferentes como<br />

Cabezón, G. Gabrielli, Frescobaldi, du Carroy,<br />

Scheidt, Hume, Gibbons, Couperin ou J. S. Bach,<br />

testemunham a riqueza de possibilidades que este<br />

agrupamento oferece. Podemos referir ainda A Arte<br />

da Fuga de J. S. Bach, Lachrimae or Seaven Teares d e<br />

Dowland, Laudes Deo de Tye (estreia mundial da<br />

Consort Musicke completa), Recercadas do Trattado de<br />

G l o s a s de Diego Ortiz, Romances e Vilancicos de<br />

Hesperion XX<br />

Juan del Encina, as sinfonias e as sonatas de J.<br />

Rosenmüller, ou as obras de J. Jenkins, para além<br />

de uma selecção de música do século de ouro<br />

espanhol: Cancioneiro do Palácio, Cancioneiro da<br />

Colombina, Cancioneiro de Medinacelli, Folias y<br />

Canarios e obras religiosas de Cristobal de Morales,<br />

Francisco Guerrero e Tomás Luís de Victoria.<br />

Entre os recentes êxitos do Hesperion XX<br />

destacam-se: as Fantasias de Purcell para conjuntos<br />

de viola da gamba, editado em 1995 para assinalar<br />

os trezentos anos da morte do compositor<br />

inglês; Fantasias, Pavanas e Galhardas de Luís de<br />

Milán; Ludi Musici de Scheidt e o quadro Moyen Âge<br />

& Renaissance, sendo todas estas edições Astrée /<br />

Auvidis. Os novos discos do Hesperion XX são<br />

editados pela ALIA VOX, nomeadamente: Batalles,<br />

Tientos & Passacalles de Joan Cabanilles e <strong>Música</strong> no<br />

Tempo de Isabel I, para conjunto de violas da gamba.<br />

Um repertório tão vasto requer formações<br />

variadas e exige dos intérpretes, para além de um<br />

grande virtuosismo, um conhecimento profundo<br />

dos diferente estilos e épocas. Assim, o Hesperion<br />

XX possui um formação internacional, abrigando<br />

alguns dos melhores solistas em cada domínio,<br />

variando segundo o repertório a interpretar, mas<br />

mantendo sempre o mesmo núcleo. Na actual<br />

problemática da interpretação de <strong>Música</strong> Antiga, a<br />

originalidade do Hesperion XX reside na intrepidez<br />

das suas opções: a criatividade individual no<br />

âmbito de um trabalho de grupo (onde a improvisação<br />

encontra o seu lugar) e a procura de uma<br />

síntese dinâmica da expressão musical, aliadas ao<br />

conhecimento estilístico e histórico e à imaginação<br />

criativa de um músico do século XX.<br />

[ 19 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


XIX Jorn adas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> An tiga<br />

Q u a r t a - F e i r a ,<br />

Dia 7<br />

20


Palácio de Queluz, 2 1 . 3 0<br />

EM TORNO DA ÓPERA BARROCA ITALIANA<br />

PIETRO ANTONIO LOCATELLI (1695 - 17 6 4)<br />

Concerto a quattro, Op. 7, N.º 6 em Mi Bemol Maior - Il Pianto d’Ariana<br />

(Andante, Allegro - Largo - Largo, Andante - Grave - Allegro - Largo)<br />

CARL PHILIPP EMANUEL BACH (1714 - 17 8 8)<br />

Sinfonia para Cordas em Si bemol Maior<br />

(Allegro di molto - Poco adagio - Presto)<br />

GIOVANNI BATTISTA PERGOLESI (1710 - 17 3 6)<br />

O r f e o , Cantata para Soprano, Cordas e Baixo Contínuo<br />

(Recitativo - Ária Amoroso - Recitativo - Ária Presto)<br />

I n t e r v a l o<br />

ANTONIO VIVALDI (1678 - 17 4 1)<br />

Concerto Op. 3, N.º 8, para dois Violinos, em Lá menor<br />

(Allegro - Larghetto spirituoso - Allegro)<br />

JOHANN SEBASTIAN BACH (1685 - 17 5 0)<br />

Non sa che sia dolore, C a n t a t a<br />

(Sinfonia - Recitativo - Ária - Recitativo - Ária)<br />

CAPELA REAL<br />

Pedro Couto Soares F l a u t a<br />

Stephen Bull e Philip Yeeles V i o l i n o s<br />

Álvaro Pinto e Tera Shimizu V i o l i n o s<br />

Luís Santos e Margareta Sandros V i o l i n o s<br />

Teresa Fernandes e Margarida Araújo V i o l a s<br />

Luís Sá Pessoa e Miguel Ivo Cruz V i o l o n c e l o s<br />

Pedro Wallenstein C o n t r a b a i x o<br />

Ana Mafalda Castro Cravo e Orgão<br />

Em colaboração com o<br />

Goethe-Institut Lissabon (Instituto Alemão)<br />

Barbara Schlick S o p r a n o<br />

Stephen Bull V i o l i n o<br />

Anton Steck Violino e Direcção<br />

[ 21 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


EM TORNO DA ÓPERA<br />

BARROCA ITALIANA<br />

por Stephen Bull<br />

O Alargamento da esfera de influência da<br />

música italiana, e em particular da ópera italiana,<br />

foi uma das características da vida musical na<br />

Europa do século XVIII. As viagens de virtuosi italianos,<br />

cantores e instrumentistas, bem como o<br />

desenvolvimento de modernos métodos de<br />

impressão e distribuição de música, contribuíram<br />

para tornar a Europa um espaço mais inter-dependente<br />

e cada vez mais aberto aos diversos estilos<br />

nacionais, bem como ao trabalho de diferentes<br />

compositores. A própria definição de ópera encontrava-se<br />

em mudança, afastando-se da associação<br />

com o entretenimento do drama grego para<br />

receber a inclusão de formas como a comedie musicale<br />

ou o drama sacro.<br />

Pietro Antonio Locatelli, nascido em<br />

Bergamo em 1695, foi um dos primeiros v i r t u o s i<br />

italianos que, após ter estudado em Roma, desenvolveu<br />

uma carreira bem sucedida na Europa do<br />

Norte. Na data da sua morte em Amesterdão, em<br />

1764, tinha-se tornado num editor de música,<br />

negociante de instrumentos musicais, professor de<br />

um elevado número de amadores de música provenientes<br />

de famílias abastadas, e ainda, segundo o<br />

inventário feito na sua biblioteca, num homem de<br />

posses pouco comuns e com um largo espectro de<br />

interesses culturais. Foi considerado como o sucessor<br />

do grande Arcangelo Corelli, embora seja mais<br />

provável que tenha feito a sua aprendizagem com<br />

o seu rival Valentini. Contudo o estilo de Locatelli<br />

como compositor demonstra que este absorveu<br />

influências de numerosos compositores, incluindo<br />

Vivaldi. A experiência obtida por Locatelli em<br />

Amesterdão, fazendo a leitura de provas para o<br />

editor Le Cene, ter-lhe-ia proporcionado amplas<br />

oportunidades de estudo do trabalho de outros<br />

compositores.<br />

Como instrumentista, segundo os seus contemporâneos,<br />

Locatelli era uma figura controversa.<br />

Relatos de “doçura e virtuosismo em partes de<br />

canto” contrastam com outros que referem que ele<br />

tocava com tal fúria que provavelmente destruiria<br />

dezenas de violinos por ano. As sua composições<br />

são também vistas de modos diversos pelos seus<br />

contemporâneos. Por um lado, era apreciado pela<br />

naturalidade dos seus temas e por outro, como<br />

XIX Jorn adas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> An tiga [ 22 ]<br />

apresentando “mais surpresa do que prazer”, como<br />

refere Burney, o viajante musical inglês, no seu<br />

diário. Após trabalhos iniciais de um estilo semelhante<br />

a Corelli, mais tarde escreveu composições<br />

com alusões a ideias programáticas, como cenas de<br />

caça em Il imitazione del corno de caccia. No concerto<br />

Op. 7 N.º 6 , um trabalho relativamente tardio,<br />

faz uma clara alusão à ópera. Com o título Il pianto<br />

di Arianna, Locatelli toma como referência a ópera<br />

no seu sentido mais antigo, recreando o drama da<br />

Grécia Antiga, e, com o uso de recitativo no<br />

primeiro andamento, utilizando o estilo operático<br />

num concerto grosso (este procedimento tinha já<br />

sido realizado algum tempo antes por Bonporti,<br />

mas não se pode ter a certeza se Locatelli teria ou<br />

não ouvido o concerto de Bonporti, embora a<br />

experiência que detinha na publicação de música o<br />

possa ter posto em contacto com o seu trabalho).<br />

Carl Philipp Emanuel Bach, o segundo filho<br />

sobrevivente de Johann Sebastian Bach, nasceu em<br />

Weimar em 1714. Contrariamente a Locatelli<br />

nunca lhe foram conhecidas grandes viagens, pelo<br />

menos fora da Alemanha. No entanto, manteve-se<br />

permeável a variadas influências musicais. Criado<br />

no seio de uma família de músicos, teve Georg<br />

Philipp Telemann como padrinho e durante a sua<br />

infância inúmeros músicos visitavam a casa de seus<br />

pais. Os seus estudos iniciais (exclusivamente com<br />

o seu pai) deram-lhe um conhecimento alargado<br />

de muitos estilos musicais (por exemplo, compôs<br />

umas variações sobre um dos minuetes de<br />

Locatelli), embora tenha apenas ouvido ópera em<br />

Dresden e estando, até então, provavelmente<br />

restringido a obras de Hasse.<br />

A sua carreira como compositor sofreu atrasos<br />

devido aos anos em que estudou Direito em<br />

Frankfurt, estudos que efectuou com o fim de<br />

ampliar os seus conhecimentos e adquirir um<br />

maior prestígio social do que aquele que era atingível<br />

na época por um jovem aspirante a compositor.<br />

Enquanto estudante compôs e tocou como cravista,<br />

fazendo-se notado pelo príncipe Frederico<br />

da Prússia, mais tarde Frederico, o Grande.<br />

Durante 30 anos, com início em 1738, o<br />

jovem Bach foi cravista na corte de Frederico o<br />

Grande, tocando essencialmente música de câmara<br />

como acompanhador do rei e de outros músicos<br />

da corte. Nessa altura, Frederico inaugurou a<br />

Ópera de Berlim onde Bach teve oportunidade de<br />

contactar com os grandes intérpretes italianos e<br />

franceses, bem como com as obras de Hasse e<br />

Graun. As suas próprias composições tornaram-se


mais dramáticas, contudo nunca compôs uma<br />

ópera, mesmo após a saída da corte de Frederico o<br />

Grande. Segundo relatos da época, o jovem Bach<br />

nunca conseguiu obter o estatuto que desejava na<br />

corte e as relações com o rei eram difíceis. Em<br />

1758 sucedeu ao seu padrinho Telemann, como<br />

K a n t o r em Hamburgo, com a tarefa de ensinar e<br />

compor música para a igreja. Havia também<br />

tempo para outras actividades, incluindo a<br />

direcção de concertos públicos cujos programas<br />

incluíram obras dos compositores mais modernos:<br />

Jommelli, Haydn, Händel e Gluck. A Sinfonia em<br />

Si bemol Maior data provavelmente desta época.<br />

O nome de Giovanni Battista Pergolesi é<br />

conhecido sobretudo devido a duas obras, o S t a b a t<br />

M a t e r e La Serva Padrona, facto que não facilita a<br />

divulgação da sua variada obra. Durante uma vida<br />

breve (tinha apenas 26 anos quando faleceu em<br />

1736), compôs peças instrumentais, obras religiosas<br />

e muitas formas de música secular dramática:<br />

ópera seria, intermezzi (por exemplo La Serva<br />

P a d r o n a , escrita como i n t e r m e z z o para a mesmo<br />

ocasião que uma das suas opere serie), comedie musicali<br />

(escritas em dialecto napolitano) e cantatas, estas<br />

últimas provavelmente compostas para um público<br />

nobre. Salvo uma visita a Roma, Pergolesi nunca<br />

saiu de Nápoles, a sua cidade natal, mas ainda em<br />

vida a sua música tornou-se muito popular, até em<br />

países geograficamente muito afastados, como a<br />

Inglaterra. A fama após a sua morte foi enorme,<br />

especialmente em França onde o seu trabalho foi<br />

copiado incessantemente e onde foi considerado o<br />

exponente máximo da ópera buffa italiana. A cantata<br />

O r f e o foi composta quase no fim da sua vida,<br />

talvez mesmo durante a fase final da sua doença.<br />

Antonio Vivaldi nunca tinha saído da cidade<br />

de Veneza quando as suas obras foram publicadas<br />

pela primeira vez em Amesterdão. A influência de<br />

L'Estro Armonico, publicado em 1711, espalhou-se<br />

rapidamente por toda a Europa e permaneceu<br />

muito depois da sua morte em 1741. O editor,<br />

Estienne Roger, tinha inventado uma técnica nova<br />

de impressão de música, muito mais legível que as<br />

até então utilizadas e que tinha a grande vantagem<br />

de não precisar da repetição de todos os passos de<br />

cada vez que se necessitava de proceder a uma<br />

reimpressão. Vivaldi foi o primeiro compositor<br />

italiano a beneficiar desta nova tecnologia. Mesmo<br />

o grande Arcangelo Corelli, na altura mais importante<br />

que Vivaldi, apenas iniciou a utilização desta<br />

técnica alguns anos após Vivaldi quando publicou<br />

os seus Concerti grossi, na mesma editora, em 1714.<br />

A transcrição de Johann Sebastian Bach de um<br />

destes concertos demonstra a ampla divulgação da<br />

obra. Sabemos que Joseph Haydn estudou outras<br />

obras de Vivaldi, que lhe foram vendidas por<br />

Roger, muitos anos mais tarde. Michel-Charles le<br />

Cene, o genro de Roger, foi inclusivamente o editor<br />

com quem Locatelli trabalhou em Amesterdão.<br />

O livro de 12 concertos que Vivaldi intitulou<br />

L'Estro Armonico contem obras para várias combinações<br />

de instrumentos de cordas. Muito provavelmente,<br />

foram compostas para o Ospedale della<br />

Pietà, o orfanato onde Vivaldi era maestro de' concerti,<br />

padre e professor de música. A variedade das composições<br />

e o título sugerem uma função pedagógica,<br />

enquanto que claramente os vários agrupamentos<br />

de instrumentos implicam a existência de um<br />

razoável número de instrumentistas com uma<br />

mesma escola. Talvez o seu envolvimento nas casas<br />

de ópera, ou talvez a intriga veneziana, o tenham<br />

colocado na lista negra da direcção do Ospedale<br />

em 1709, o ano em que Georg Friedrich Händel<br />

chegou a Veneza. O facto surpreendente é que em<br />

1711, quando L'Estro Armonico foi publicado,<br />

Vivaldi não detinha posição oficial no Ospedale,<br />

sendo readmitido apenas no fim desse ano.<br />

Talvez a obra de Johann Sebastian Bach<br />

mais parecida com ópera italiana seja a cantata Non<br />

sa che sia dolore. O seu conhecimento da música italiana,<br />

instrumental e vocal, deve ter origem em<br />

várias fontes. Um exemplo já mencionado é a sua<br />

transcrição do Concerto para Quatro Violinos de<br />

Vivaldi, da obra L'Estro Armonico, mas mais frequentemente<br />

reformulava composições de mestres<br />

italianos, sobretudo obras com textos em latim. O<br />

italiano Torelli foi empregado em Anspach (vila<br />

mencionada no texto de Non sa che sia dolore) no<br />

princípio do século, e outros compositores italianos<br />

de cantatas e óperas eram bem conhecidos em<br />

Dresden e Leipzig. Esta obra é, porém, uma mistura<br />

estranha de ingredientes musicais e linguísticos,<br />

sendo possível que não sejam todos do mesmo<br />

autor. O texto, aparentemente escrito por um alemão<br />

(com passagens frequentemente sem qualquer<br />

sentido em italiano), contém, na ária final, quatro<br />

linhas compostas pelo poeta Pietro Metastasio. A<br />

combinação desastrada de palavras com a música<br />

sugere que esta poderia ter sido originalmente<br />

composta para um outro texto. Provavelmente<br />

estas observações apoiam a explicação tradicional<br />

de que Bach preparou a obra apressadamente para<br />

celebrar a partida do seu pupilo Christoph Mizler,<br />

de Leipzig para Itália em 1734.<br />

[ 23 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


O r f e o<br />

GIOVANNI BATTISTA PERGOLESI<br />

Recitativo<br />

Nel chiuso centro, ove ogni luce assonna,<br />

all’or che pianse in compagnia d’amore,<br />

della smarita donna seguendo l’orme per<br />

ignota via,<br />

giunse di Tracia il vate.<br />

Al suo dolore qui sciolse il freno<br />

a rintracciar pietate,<br />

e qui nel muto orrore,<br />

in dolce accenti all’alme sventurate,<br />

sulla cetra narrando i suoi tormenti;<br />

temprò la pena e debelò lo sdegno<br />

del barbaro signor del cieco regno.<br />

Aria<br />

Euridice, e dove sei?<br />

Chi m’ascolta, chi m’addita,<br />

dov’è il sol degl’occhi miei?<br />

Chi farà che torni in vita?<br />

Chi al mio cor la renderà?<br />

Cor mio, mia vita,<br />

chi m’ascolta, chi m’addita,<br />

Euridice dov’è, dov’è?<br />

Preda fu d’ingiusta morte.<br />

Io dirò se tra voi resta<br />

l’adorata mia consorte,<br />

che pietà più non si desta,<br />

che giustizia più non v’ ha.<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 24 ]<br />

Recitativo<br />

No fechado centro, onde toda a luz esmorece,<br />

agora chora em companhia do amor,<br />

da perdida senhora, seguindo-lhe o rasto por<br />

obscuro caminho,<br />

encontrou o poeta a pista.<br />

Solta as rédeas da sua dor<br />

ao procurar pegadas,<br />

e quem no mudo horror,<br />

em doces inflexões às almas infelizes,<br />

na cítara narra os seus tormentos;<br />

suavizou a pena e debelou o desdém<br />

do bárbaro senhor do cego reino.<br />

Ária<br />

Eurídice, onde estás?<br />

Quem me ouve, quem me mostra,<br />

onde está o sol dos olhos meus?<br />

Quem lhe dará de novo a vida?<br />

Quem ao meu coração a devolverá?<br />

Coração meu, minha vida,<br />

quem me escuta, quem me mostra,<br />

Eurídice onde está, onde está ?<br />

Presa foi de injusta morte.<br />

Dizei-me se entre vós jaz<br />

a minha bem amada,<br />

piedade já não há,<br />

justiça já não existe.


Recitativo<br />

Si, che pietà non v’è,<br />

se a me non lice piegar del fato il braccio,<br />

onde risane la cruda piaga d’Euridice in seno.<br />

Non v’è pietà, no, non s’intende amore;<br />

se invano sospiro, invan mi crucio e piango.<br />

Ma che dissi, che finsi?<br />

Un tanto affetto chi non provò?<br />

Chi non intese ancora<br />

di natura e d’amor le voci i moti?<br />

Angue tra spine sia,<br />

tra ircane selve feroce tigre,<br />

o tra numide arene sieno indomite belve?<br />

Ditelo voi, cui trasse amore tra l’ombre,<br />

palida amica turba, Euadne, Fedra,<br />

e tu prole d’Accasto e voi compagne,<br />

si può tra rai del sole tornar così?<br />

Chi può, senza il suo bene, trarre i giorni<br />

odiosi,<br />

e disperando vivere per amare penando?<br />

Aria<br />

O d’Euridice n’andrò fastoso,<br />

o d’Acheronte sul nero fonte,<br />

disciolto in lagrime, spirto infelice,<br />

si, si, io resterò.<br />

Non ha terrore per me la morte.<br />

Presso al mio amore, ogni aspra sorte,<br />

ogni sventura, soffrir si può.<br />

Recitativo<br />

Sim, piedade já não há,<br />

se não me é lícito torcer o braço do destino,<br />

onde se cura a crua chaga do seio de Eurídice.<br />

Não há piedade, não, de amor nada sabe;<br />

se em vão suspiro, em vão me lamento e choro.<br />

Mas que disse eu, que imaginei?<br />

Um tal afecto quem não experimentou?<br />

Quem nunca ouviu<br />

as vozes suplicantes da natureza e do amor ?<br />

Seja serpente entre espinhos,<br />

feroz tigre na impenetrável selva,<br />

ou indómita fera na arena?<br />

Dizei-me vós, que o amor trazeis entre as sombras,<br />

pálida multidão amiga, Euadne, Fedra,<br />

e tu prole de Acasto e vós companheiras,<br />

se se pode assim voltar aos raios de Sol?<br />

Quem pode, sem o seu amor, percorrer os dias<br />

odiosos,<br />

e desesperado viver pelo amor sofrendo?<br />

Ária<br />

Oh, de Eurídice não me afastarei,<br />

assim mergulho nas negras águas de Acheronte<br />

desfeito em lágrimas, espírito infeliz,<br />

sim, sim, aqui ficarei.<br />

Não tem para mim terror a morte.<br />

Junto ao meu amor, o pior destino,<br />

a pior desdita, posso suportar.<br />

[ 25 ] Li sboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


Non<br />

JOHANN SEBASTIAN<br />

sa<br />

BACH<br />

che sia dolore<br />

Recitativo<br />

Non sa che sia dolore<br />

chi dall’ amico suo parte e non more.<br />

Il fanciullin’, che plora e geme<br />

ed allor che più ei teme,<br />

vien la madre a consolar.<br />

Va dunque a cenni del cielo,<br />

adempi or di Minerva il zelo.<br />

Aria<br />

Parti pur e con dolore<br />

lasci a noi dolente il cuore.<br />

La patria goderai,<br />

a dover la servirai;<br />

varchi or di sponda in sponda,<br />

propizi vedi el vento e l’onda.<br />

Recitativo<br />

Tuo saver al tempo e l’età contrasta,<br />

virtù e valor sol a vincer basta,<br />

ma chi gran ti farà più che non fusti<br />

Ansbaca piena di tanti Augusti.<br />

Aria<br />

Ricetti gramezza e pavento<br />

qual nocchier placato il vento.<br />

Più non teme o si scolora,<br />

ma contento in su la prora<br />

va cantando in faccia al mar.<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 26 ]<br />

Recitativo<br />

Não sabe o que seja a dor<br />

quem do seu amigo se separa e não morre.<br />

O bebé, que chora e geme<br />

e que quando tudo teme,<br />

vem a mãe para o consolar.<br />

Eis assim os sinais do céu,<br />

cumpra-se agora de Minerva o zelo.<br />

Aria<br />

Parte, pois, e com dor<br />

deixas a nós pesaroso o coração.<br />

A pátria desfrutarás,<br />

com dever a servirás;<br />

passa agora de praia em praia,<br />

propícios são o vento e o mar.<br />

Recitativo<br />

O teu saber com o tempo e a idade contrasta,<br />

virtude e valor para vencer bastam,<br />

mas quem grande te fará como nunca foste<br />

Ansbaca cheia de tantos Augustos.<br />

Aria<br />

Preparas-te e não temes,<br />

qual navegante que aplaca o vento.<br />

Não está pálido nem receia,<br />

mas contente sobre a proa<br />

vai cantando face ao mar.<br />

Traduções de Dinorah Mealha


Após ter concluído o curso de violino com o<br />

Prof. Jörg-Wolfgang Jahn, na Escola Superior de<br />

<strong>Música</strong> de Karlsruhe, Anton Steck estudou ainda<br />

violino barroco e técnicas de interpretação com<br />

Reinhard Goebel na Escola Superior de Belas-<br />

Artes de Amesterdão.<br />

Em 1991, assumiu a função de 1º violino no<br />

Ensemble Musica Antiqua Köln. Com este agrupamento<br />

participou em digressões a nível mundial<br />

e em inúmeros discos que foram premiados por<br />

várias vezes. Em 1995, Anton Steck acompanhou<br />

a orquestra barroca Les Musiciens du Louvre<br />

(Marc Minkowski), em Paris, como 1º violino<br />

solo. Na mesma altura, assumiu também a posição<br />

de 1º violino do grupo holandês Ensemble Musica<br />

ad Rhenum (Jed Wentz). Além disso, é solista da<br />

Orquestra do Bach-Verein de Colónia.<br />

Em 1998, trabalhou pela primeira vez como<br />

maestro com a Orquestra da Ópera de Halle/Saale.<br />

Apesar de a sua actividade abranger a orquestra<br />

e a ópera, Anton Steck dedica-se principalmente<br />

à música de câmara, muito especialmente<br />

aos géneros sonata para violino e quarteto de cordas.<br />

Em conjunto com Robert Hill (pianoforte) e<br />

s o b a etiqueta Dadringhaus & Grimm, tocou toda<br />

a obra para duo de Franz Schubert e gravou um<br />

CD com sonatas desconhecidas de Mozart.<br />

Anton Steck<br />

O seu Quarteto Schuppanzigh, fundado em<br />

1996, distingue-se na interpretação das obras clássicas<br />

e do pré-romantismo (altura que se caracteriza<br />

pelo desabrochar do quarteto de cordas), com<br />

utilização de instrumentos originais. Na temporada<br />

de 1998/99 tem programados concertos em<br />

Grenoble, Essen, Lubliana, Hamburgo, Karlsruhe,<br />

Bad Irsee e Bona (Sala de <strong>Música</strong> de Câmara).<br />

Anton Steck é professor na Escola Superior<br />

de <strong>Música</strong> de Karlsruhe e no Conservatório de<br />

Hamburgo, e orienta cursos na Escola Superior de<br />

<strong>Música</strong> de Wuppertal e na Academia Händel de<br />

Karlsruhe. Toca num violino de David Tecchler<br />

(Roma, 1720), posto à sua disposição pela<br />

<strong>Fundação</strong> Arte e Cultura.<br />

[ 27 ] Li sboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


O soprano Barbara Schlick nasceu em<br />

Würzburg na Alemanha. Nesta cidade estudou na<br />

Escola Superior de <strong>Música</strong> com Henriette Klink-<br />

Schneider e em Essen estudou canto com Hilde<br />

Wesselmann. Iniciou a sua carreira de concerto no<br />

Barockensemble Adolf Scherbaum.<br />

Barbara Schlick é requisitada internacionalmente<br />

como intérprete de música barroca e clássica<br />

e já pisou os palcos de quase todos os importantes<br />

centros musicais da Europa, Israel, Japão,<br />

Canadá, América e Rússia. Participa nos mais<br />

conhecidos festivais europeus de <strong>Música</strong> Antiga<br />

como Ansbach, Berlim, Brügge, Göttingen, Lisboa,<br />

Londres, Paris, Estugarda e Utrecht e com maestros<br />

de prestígio como Frans Brüggen, William<br />

Christie, Michel Corboz, Reinhard Goebel,<br />

Philippe Herreweghe, René Jacobs, Jürgen<br />

Jürgens, Ton Koopman, Sigiswald Kuijken e<br />

Michael Schneider, entre outros.<br />

As suas interpretações, que desde 1979 também<br />

incluem representações de óperas barrocas, estão<br />

em grande parte gravadas pela Rádio, Televisão e<br />

em disco. Entre elas a cantata Ino de Georg Philipp<br />

Telemann, com o Musica Antiqua Köln, para a<br />

Archiv Produktion, as missas de Mozart, sob a<br />

batuta de Peter Neumann, para a EMI, a P a i x ã o<br />

Segundo S. João, Paixão Segundo S. Mateus, a Missa em Si<br />

m e n o r e a Oratória de Natal de Johann Sebastian<br />

Bach, sob a regência de Philippe Herreweghe,<br />

assim como a ópera Júlio César de Georg Friedrich<br />

Händel, sob a direcção de René Jacobs, para a<br />

Harmonia Mundi France, a Paixão Segundo S. Mateus<br />

de Johann Sebastian Bach e 16 Cantatas de<br />

Dietrich Buxtehude dirigidas por Ton Koopman,<br />

assim como o R e q u i e m e canções de Wolfgang<br />

Amadeus Mozart, com Tini Mathot, para a Erato.<br />

Ultimamente, Barbara Schlick tem-se dedicado<br />

principalmente à interpretação de L i e d e r e tem-<br />

-se apresentado em inúmeros recitais de canto com<br />

a pianista Elzbieta Kalvelage, tanto na Alemanha<br />

como no resto do mundo. O programa deste duo<br />

Barbara Schlick<br />

XIX Jorn adas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> An tiga [ 28 ]<br />

com os grandes ciclos de Schubert tem sido recebido<br />

com júbilo na Alemanha Ocidental. As<br />

canções de Fanny Hensel e Felix Mendelssohn-<br />

Bartholdy estão gravadas em CD pelas mesmas<br />

intérpretes.<br />

A par da sua grande actividade concertística,<br />

Barbara Schlick ensinou canto durante onze anos<br />

na Escola Superior de <strong>Música</strong> de Würzburg e, em<br />

colaboração com vários centros, orientou canto<br />

barroco em cursos de <strong>Música</strong> Antiga (Bremen,<br />

Brügge, Frankfurt am Main, Forum Artium<br />

Georgsmarienhütte, Internationale Bach-Akadem<br />

i e, Estugarda, Festival de <strong>Música</strong> Antiga de<br />

York).<br />

No primeiro semestre de 1997/98, Barbara<br />

Schlick foi convidada para professora na Escola<br />

Superior de <strong>Música</strong> de Colónia (Wuppertal).


Stephen Bull Capela Real<br />

Após ter terminado os seus estudos de violino<br />

e de direcção de orquestra, Stephen Bull especializou-se<br />

em violino barroco. Realizou concertos<br />

e gravações com grande parte dos grupos britânicos<br />

que tocam em instrumentos de época, incluindo<br />

The Hanover Band, Academy of Ancient<br />

Music, London Classical Players e a Orchestra of<br />

the Age of Enlightenment.<br />

A sua mais recente actividade à frente de<br />

orquestras de ópera barroca tem sido recebida com<br />

muito entusiasmo. Entre outras, trabalhou com a<br />

Midsummer Opera (Il Combattimento di Tancredi e<br />

C l o r i n d a) e The London Baroque Sinfonia. Em<br />

1997 tocou no Festival de Halle, numa produção<br />

de A t a l a n t a de Händel, com a Midsummer Opera,<br />

e no Festival de Melbourne, onde dirigiu um programa<br />

de música italiana com a London Baroque<br />

Sinfonia e tocou em duas óperas de Händel com a<br />

Opera Theatre Company.<br />

Com a orquestra de câmara Capela Real<br />

dirigiu vários programas, maioritariamente preenchidos<br />

por música portuguesa, com destaque<br />

para o Te Deum de António Teixeira. Além do seu<br />

trabalho em Portugal, foi director convidado da<br />

London Händel Orchestra em vários concertos no<br />

London Händel Festival de 1998.<br />

Actua ocasionalmente como solista (mais<br />

recentemente no Festival de Melbourne), e interessa-se<br />

particularmente pelo ensino, sendo presentemente<br />

professor de violino no Golsmiths’ College,<br />

na Universidade de Londres e na Academia de<br />

Santa Cecília em Lisboa. Recentemente organizou<br />

dois cursos de música barroca para a Associação<br />

Portuguesa de Educação Musical.<br />

Vivendo parte do tempo em Portugal, é seu<br />

desejo, ao trabalhar com a Capela Real, dar voz ao<br />

riquíssimo reportório português da época barroca.<br />

A formação da orquestra Capela Real deveuse<br />

à vontade e determinação de um grupo de<br />

músicos portugueses e estrangeiros residentes em<br />

Portugal, com experiência no campo da <strong>Música</strong><br />

Antiga, sobretudo barroca, tocada em instrumentos<br />

originais.<br />

Desde o primeiro concerto da Capela Real<br />

em 1996, na sua constituição actual, o agrupamento<br />

realizou concertos de música portuguesa<br />

anterior ao terramoto de 1755 no Mosteiro dos<br />

Jerónimos, programas de música de dança no<br />

Festival de <strong>Música</strong> Antiga de Óbidos e no Palácio<br />

de Queluz e interpretou o Te Deum de António<br />

Teixeira, com o qual inaugurou o novo Festival<br />

de <strong>Música</strong> de Mafra. A orquestra tocou também<br />

com a Opera Theatre Company de Dublin, numa<br />

produção de Amadigi de Händel e num programa<br />

de música de cinco países europeus no Festival de<br />

Leiria.<br />

No Festival dos Cem Dias da EXPO’ 98,<br />

participou nas produções do Gloria de Vivaldi e<br />

de madrigais de Monteverdi com o Mark Morris<br />

Dance Group de Nova Iorque e na ópera<br />

T a m e r l a n o de Händel com a Opera Theatre<br />

Company de Dublin.<br />

[ 29 ] Lisbo a, 6 a 1 4 Outub ro MCMXCVIII.


XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 30 ]<br />

Q u i n t a<br />

F e i r a ,<br />

Dia 8


Sé Patriarcal de Lisboa, 2 1 . 3 0<br />

MÚSICAS ESPIRITUAIS REPRESENTADAS<br />

EM ESPANHA, CANARIAS E MÉXICO<br />

A N Ó N I M O S (ca. 1400 - 1600)<br />

O Mistério de Elx<br />

(Drama sacro que se representa na insigne Basílica de Santa Maria de Elx)<br />

1.º Acto: La Vespra<br />

Maria: Germanes mies<br />

Maria e Cortejo: Verge i Mare de Déu<br />

Maria: Ai, trista vida corporal<br />

Maria: Grand desig m’ha vengut al cor<br />

Anjo: Déu vos salve Verge imperial<br />

São João: Saluts, honor e salvament<br />

Maria: Ai, fill Joan, si a vós plau<br />

São João: Ai, trista vida corporal<br />

São Pedro: Verge humil flor d’honor<br />

Apóstolos: Oh, poder de l’Alt Imperi<br />

Apóstolos: Salve Regina princesa<br />

São Pedro: Oh, Déu valeu!<br />

Maria: Los meus cars fills<br />

Apóstolos: Oh, cos sant glorificat<br />

Araceli: Esposa e Mare de Déu<br />

BARTOLOMÉ RAMOS DE PAREJA (ca. 1440 - 1491)<br />

Mundus et Musica et totus concentus (Canon perpetuum)<br />

MATEU FLETXA (1 4 8 1? - 1553)<br />

Ensalada a 4: El Fuego (Praga 1 5 8 1)<br />

Corred, corred, pecadores<br />

Oh, como el mundo se abrasa<br />

Este mundo, donde andamos<br />

Mira Nero, de Tarpeya<br />

No os tardéis, traed agua ya<br />

Toca Joan, con tu gaytilla<br />

D i n d i r i n d í n<br />

Qui biberit ex hac aqua<br />

I n t e r v a l o<br />

[ 31 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


JOAN CABANILLES (1 6 4 4 - 1 7 1 2)<br />

F a n t a s i a<br />

LOPE DE VEGA (1 5 6 2 - 1 6 3 5) – FRANCISCO GUERRERO (1 4 2 8 - 1 5 9 9)<br />

Solilóquios amorosos de un alma a Dios:<br />

Si tus penas no pruebo, Jesus mío<br />

JUAN GUTIÉRREZ DE PADILLA (ca. 1 5 9 0 - 1 6 6 4)<br />

(Natal do ano de 1 6 5 7 em Puebla - México)<br />

Introdução: Ay que chacota<br />

Vilancico a 6: Lágrimas de un niño<br />

Negrilla a 6: T á b a l a g u m b a<br />

Calenda a 6: Ha de la tierra y del monte<br />

Motete: Christus natus est nobis<br />

SEBASTIÁN AGUILERA DE HEREDIA (ca. 1 5 6 5 - 1 6 2 7)<br />

E n s a l a d a<br />

DIEGO DURÓN (ca. 1 6 5 8 - 1 7 3 1)<br />

(Vilancicos de Natal em Palma de Gran Canaria)<br />

Vilancico a 6: Ah, de las gitanillas!<br />

Xácara a 8: Oygan, tengan, paren, miren<br />

LA CAPELLA REIAL DE CATALUNYA<br />

Montserrat Figueras S o p r a n o<br />

Pilar Jurado S o p r a n o<br />

Pilar Esteban M e i o - S o p r a n o<br />

Carlos Mena C o n t r a t e n o r<br />

Lambert Climent T e n o r<br />

Francesc Garrigosa T e n o r<br />

Daniele Carnovich B a i x o<br />

HESPERION XX<br />

Jordi Savall e Sergi Casademunt Violas da gamba<br />

Sophie Wattilon e Juan Manuel Quintana Violas da gamba<br />

Jean-Pierre Canihac C o r n e t a<br />

Beatrice Delpierre C h a r a m e l a<br />

Daniel Lassalle S a c a b u x a<br />

Josep Borràs D u l ç a i n a<br />

Xavier Díaz Vihuela e Guitarra<br />

Edin Karamazov Alaúde e Guitarra<br />

Michael Behringer Cravo e Órgão<br />

Andrew Lawrence-King Harpa dupla<br />

Pedro Estevan P e r c u s s ã o<br />

Jordi Savall D i r e c ç ã o<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 32 ]


MÚSICAS ESPIRITUAIS REPRESENTADAS<br />

EM ESPANHA, CANARIAS E MÉXICO<br />

A liturgia cristã utilizou, desde muito cedo,<br />

um elemento teatral como parte da sua própria<br />

eficácia enquanto veículo de comunicação com os<br />

fiéis, instrumento da respectiva formação doutrinal<br />

e verdadeiro ritual agregador de toda a comunidade.<br />

Em última análise, de resto, a própria celebração<br />

da Missa como repetição ritualizada da<br />

Última Ceia – com a recolha das ofertas, a sua<br />

consagração e a sua partilha sob a forma da<br />

Comunhão – contém ela mesma, na sua essência,<br />

esse elemento dramático, que não existiria se a<br />

liturgia se limitasse, por exemplo, a uma série de<br />

leituras de textos sagrados ou de orações genéricas,<br />

sem a presença permanente do drama concreto da<br />

Paixão de Cristo.<br />

Na verdade, numa sociedade como a<br />

medieval, em que não havia lugar para qualquer<br />

fronteira entre as vertentes sagrada e profana da<br />

existência humana e em que a cosmovisão religiosa<br />

era o único quadro concebível para a compreensão<br />

da realidade, a participação na liturgia desempenhava<br />

múltiplas funções. Ao acto de culto, propriamente<br />

dito, juntava-se a afirmação de uma identidade<br />

cultural colectiva (incluindo a reiteração simbólica,<br />

sob múltiplas formas, da hierarquia social<br />

vigente) e a própria dimensão mágica de um espectáculo<br />

dirigido a todos os sentidos, associando o<br />

texto e a música, a luz e a cor, a géstica e o movimento,<br />

e até mesmo, graças ao incenso e às velas<br />

perfumadas, o olfacto.<br />

Não é pois de admirar que em torno da liturgia<br />

formal tenham surgido desde a Alta Idade<br />

Média representações teatrais populares de carácter<br />

devocional, sob a forma de mistérios e autos<br />

sacramentais, executadas em geral no adro das<br />

igrejas e catedrais e nem sempre, por sinal, de<br />

absoluta ortodoxia teológica, para algum desconforto<br />

das autoridades eclesiásticas que por vezes se<br />

viam confrontadas com verdadeiras sobrevivências<br />

de tradições culturais pré-cristãs sob pretextos<br />

doutrinais mais ou menos ténues. E até a própria<br />

por Rui Vieira Nery<br />

liturgia romana oficial logo a partir do século IX,<br />

se começou a abrir a práticas de teatralização adicional<br />

de certas passagens das Escrituras que a isso<br />

se prestavam. Era o caso, por exemplo, da pergunta<br />

do Anjo às Santas Mulheres, Quem quaeritis in<br />

s e p u l c h r o (“a quem procurais no sepulcro”), em<br />

torno da qual se construía, agregando-o ao<br />

Intróito do Domingo de Páscoa, um pequeno diálogo<br />

cantado de natureza didáctica sobre o significado<br />

da Morte e Ressurreição de Cristo. E pouco<br />

depois surgia um diálogo semelhante, Quem quaeritis<br />

in paesebre (“a quem procurais no presépio”), em<br />

que a pergunta era dirigida aos pastores vindos a<br />

Belém para adorar o Deus menino, ao que gradualmente<br />

se foram seguindo outros excertos de<br />

acção dramática, cada vez de dimensões e complexidade<br />

maiores, sob a designação genérica de<br />

“dramas litúrgicos”.<br />

No século XV, o surgimento de movimentos<br />

pietistas como a Devotio Moderna conduziria em<br />

toda a Europa a um importante surto de produção<br />

artística de carácter religioso mas de natureza<br />

devocional privada, assente num tratamento emocional<br />

intenso dos mistérios da doutrina cristã<br />

através das diversas linguagens da Arte. Surgiram<br />

novas devoções, como a Adoração da Cruz, e deuse<br />

um aprofundamento do culto mariano, através<br />

quer de novas festas dedicadas à Virgem no calendário<br />

litúrgico quer do reforço de outras já existentes.<br />

Algumas das manifestações da religiosidade<br />

popular tradicional foram agora objecto de um<br />

tratamento erudito e de uma crescente aceitação,<br />

nessa sua nova forma mais elaborada, no seio da<br />

liturgia.<br />

Todas estas tendências se fizeram sentir<br />

igualmente na Península Ibérica, e nela foram<br />

ainda reforçadas pelo impacto da Contra-<br />

Reforma. Respondendo à aproximação entre a<br />

liturgia e os fiéis que os protestantes propunham<br />

através do uso do vernáculo em substituição do<br />

Latim, a Igreja tridentina optou por reforçar pre-<br />

[ 33 ] Lisbo a, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


cisamente o elemento espectacular das cerimónias<br />

litúrgicas, tornando-as cada vez mais fascinantes<br />

para o público presente nas grandes solenidades,<br />

não só pelo reforço da magnificência própria<br />

do ritual como também pela procura de novas<br />

componentes artísticas performativas para este,<br />

incluindo algumas de tradição popular. E como<br />

esta atitude contra-reformista se prolongou em<br />

Espanha e Portugal praticamente até à eclosão do<br />

Liberalismo, pelo menos, sem dar lugar nas práticas<br />

culturais ibéricas mais enraizadas a uma<br />

influência significativa do laicismo iluminista,<br />

muitas das tradições de teatro musical sacro se perpetuaram<br />

nestes dois países até ao pleno século<br />

XIX.<br />

Uma das tradições sacro-dramáticas que<br />

ainda hoje se fazem sentir na Península é a da representação<br />

do célebre Mistério de Elx, que se executa<br />

anualmente naquela cidade, perto de Alicante,<br />

nos dias 14 e 15 de Agosto. Trata-se de uma celebração<br />

dramática da festa da Assunção da Virgem,<br />

cuja origem parece remontar a meados do século<br />

XIII, embora nem toda a <strong>Música</strong> que hoje nela se<br />

canta date do mesmo período. A representação<br />

está descrita pormenorizadamente nos livros de<br />

C o n s u e t a da catedral de Elx de 1625 e 1709, e a<br />

cópia integral mais antiga da <strong>Música</strong> de que hoje<br />

temos conhecimento está datada de 1639,<br />

admitindo-se que as secções polifónicas da obra<br />

actualmente interpretadas datem desse mesmo<br />

período de inícios do século XVII, até pelo seu<br />

forte carácter homorrítmico e quase “pré-harmónico”,<br />

por assim dizer. Estas passagens em<br />

polifonia correspondem, contudo, apenas às partes<br />

do coro, enquanto os personagens individuais,<br />

como a Virgem e os Santos, cantam melodias de<br />

cantochão. Destas, algumas foram já identificadas<br />

como versões com texto novo sobre melodias gregorianas<br />

litúrgicas (caso de diversas versões do<br />

hino Vexilla regis prodeunt, por exemplo) mas outras<br />

parecem remontar, pela sua ornamentação melismática<br />

e pelo seu desenho interválico característicos,<br />

ao velho repertório de cantochão moçárabe,<br />

que se cantava em toda a Península antes da introdução<br />

oficial do rito romano, já no século XI.<br />

A Espanha da segunda metade do século XV,<br />

dividida ainda nos Reinos de Castela e de Aragão,<br />

por sinal com fortes divisões culturais e linguísticas<br />

entre si, será toda ela, no entanto, um parceiro<br />

muito activo da evolução musical erudita da<br />

Europa ocidental, em especial no que respeita à<br />

<strong>Música</strong> sacra polifónica, assente na base institu-<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 34 ]<br />

cional muito sólida das Capelas ao serviço das<br />

Casas Reais de ambas as monarquias e da rede de<br />

grandes catedrais castelhanas e aragonesas,<br />

dotadas, de um modo geral, de vastos rendimentos<br />

capazes de suportarem financeiramente uma liturgia<br />

musical de grande sofisticação. A espinha dorsal<br />

teórica dessa prática polifónica litúrgica será<br />

uma importante produção tratadística de autores<br />

espanhóis de grande peso na evolução da Teoria<br />

Musical europeia da época, com destaque para<br />

Bartolomé Ramos de Pareja (ca. 1440-1491), um<br />

dos autores especulativos mais relevantes de todo<br />

o século XV europeu e cuja <strong>Música</strong> prática<br />

reflecte essa mesma preocupação com a procura do<br />

mais extremo rigor na ciência do Contraponto.<br />

Mesmo depois da união formal das coroas<br />

castelhana e aragonesa, através do casamento dos<br />

herdeiros de ambos os tronos, Fernando e Isabel,<br />

os “Reis Católicos”, a personalidade própria das<br />

duas matrizes culturais permanecerá viva na obras<br />

dos seus representantes musicais mais importantes,<br />

tanto mais quanto se vivia precisamente o período<br />

a que acima nos referimos de incorporação crescente<br />

na liturgia musical oficial de tradições artísticas<br />

locais. Nestas tradições, como seria de esperar,<br />

e apesar dos traços comuns ibéricos que são<br />

válidos tanto para estas duas grandes escolas<br />

espanholas como até para a portuguesa, estão bem<br />

patentes, por vezes, os traços autonómicos. É o<br />

caso da obra de Mateu Fletxa, o Velho(1481?-<br />

1553), compositor catalão nascido em Prades e<br />

formado na catedral de Barcelona, que depois viria<br />

a desempenhar funções de Mestre de Capela sucessivamente<br />

na Sé de Lérida, ao serviço do Duque<br />

do Infantado, em Sevilha, e por fim na corte do<br />

Duque de Calabria, em Valência.<br />

Ferdinando, Duque de Calabria (1488-<br />

1550), príncipe do ramo da Casa Real aragonesa<br />

que governava o Reino de Nápoles, casaria em<br />

1526 com a viúva do Rei Católico Fernando de<br />

Aragão, Germaine de Foix, sendo ele e sua mulher<br />

nomeados pelo novo soberano, Carlos V, Vice-<br />

Reis de Valência. Nesta cidade, durante cerca de<br />

três décadas, se estabeleceria assim uma Corte de<br />

enorme brilho cultural, onde as tradições artísticas<br />

e literárias da antiga monarquia catalano-aragonesa<br />

encontrariam um espaço de desenvolvimento<br />

ideal, mesmo no seio da nova Espanha. Entre<br />

os vários músicos de enorme prestígio que<br />

Ferdinando e Germaine chamaram a si contar-se-<br />

-ia, por conseguinte, Mateu Fletxa. E este, no seio<br />

da tendência do seu tempo para a inserção no


culto de novos elementos musicais e músicodramáticos,<br />

ficaria ligado um novo género sacro<br />

cujo primeiro cultor parece ter sido o nosso Gil<br />

Vicente: a “Ensalada”.<br />

Tratava-se, antes de mais, de introduzir nas<br />

cerimónias litúrgicas de certas festas de carácter<br />

mais alegre do calendário sacro algumas obras<br />

vocais de sabor semi-profano e de texto em língua<br />

vernácula, versando um tema de natureza espiritual<br />

mas convertendo muitas vezes esse tema num<br />

mero pretexto para a admissão, no seio das cerimónias<br />

da Igreja, de temáticas paralelas e de processos<br />

de escrita poético-musical característicos do<br />

repertório secular. A designação genérica destas<br />

obras era a de “Vilancicos” (em português também<br />

“Vilancetes”), ou simplesmente de “Chansonetas”,<br />

mas no seio delas havia um sub-género, a<br />

“Ensalada”, caracterizado por uma estrutura narrativa<br />

mais longa, agrupando numa sequência<br />

dramática diversas peças mais pequenas e com o<br />

traço particular de em geral incluir textos em várias<br />

línguas, do Castelhano ao Catalão, do Português<br />

ao Latim, do Galego aos primeiros crioulos negros<br />

de Português ou Castelhano.<br />

Mateu Fletxa parece ter sido um dos<br />

primeiros autores eruditos a compor neste novo<br />

género músico-litúrgico, sendo as suas obras altamente<br />

apreciadas tanto pela Corte valenciana<br />

como mais tarde pelo círculo das Infantas Maria e<br />

Juana de Espanha, filhas de Carlos V, de cuja<br />

Capela Fletxa passaria a ser Mestre a partir de<br />

1543. Dispondo ambas as Cortes de importantes<br />

ligações internacionais, o compositor veria, logo<br />

em 1544, uma das suas ensaladas, La Justa, s e r<br />

incluída pelo célebre impressor musical de Lyon,<br />

Jacques Moderne, numa das suas antologias<br />

polifónicas. Contudo, uma colecção mais substancial<br />

dessas suas ensaladas só viria a ser editada<br />

muito depois da sua morte, sob os auspícios do<br />

seu sobrinho, Mateu Fletxa, o Jovem, já em 1581,<br />

o que diz bem do prestígio de que ainda gozava a<br />

memória do velho autor catalão mesmo nos finais<br />

do século XVI.<br />

É desta colecção de 1581 que é extraída a<br />

ensalada El fuego, obra moralizante cujo tema é simples:<br />

a Espanha está em fogo, devido aos muitos<br />

pecados dos seus naturais, mas a Virgem ofereceu<br />

aos crentes a água necessária para apagar as<br />

chamas: seu filho Jesus Cristo. Segundo esta lógica<br />

temática sucedem-se na obra secções em formas<br />

diferentes, alguma com ritmo de dança popular,<br />

outras de uma polifonia mais cuidada, cujos textos<br />

são bem indicativos da mensagem moralizante que<br />

se pretende passar: o fogo do pecado é semelhante<br />

ao do grande incêndio ateado por Nero a Roma,<br />

no ano de 64 (“Mira Nero de Tarpeya”), mas<br />

Nossa Senhora dá-nos a água purificadora (“De la<br />

Virgen sin mancilla / ha manado el agua pura”) e<br />

quem a beber não sofrerá sede na vida eterna<br />

(“Qui biberit ex hoc aqua / Non sitiet in aeternum”).<br />

Compreende-se bem o impacto extraordinário<br />

que uma peça como esta, com todos os<br />

seus “efeitos especiais” músico-dramáticos, deverá<br />

ter tido junto dos fiéis presentes no culto, e como<br />

esta combinação de <strong>Música</strong> de inspiração popular<br />

e de tratamento polifónico erudito, associada<br />

provavelmente a efeitos cénicos sugestivos, deverá<br />

ter agradado a um auditório habituado à extrema<br />

solenidade da liturgia tradicional mais austera.<br />

Este território misto de criação musical, juntando<br />

técnicas e géneros tradicionalmente profanos<br />

a um contexto temático e cerimonial religioso,<br />

atraiu cada vez mais polifonistas sacros ao<br />

longo da segunda metade do século XVI. O<br />

próprio Francisco Guerrero (1528-1599), o<br />

príncipe da polifonia sacra espanhola do<br />

Maneirismo, aclamado internacionalmente pelas<br />

suas obras contrapontísticas sobre textos litúrgicos<br />

latinos, dedicaria a sua penúltima publicação em<br />

vida a uma colecção de Canciones y Villanescas<br />

Espirituales (Veneza, 1589), apresentando nela uma<br />

série de peças de sabor quase madrigalesco mas<br />

sobre poemas de temática religiosa. O que é<br />

curiosíssimo de verificar, contudo, é que Guerrero,<br />

ao fazê-lo, parece ter tido de tal modo noção do<br />

carácter híbrido do género que se permitiu inclusive<br />

reutilizar neste novo contexto para-litúrgico a<br />

<strong>Música</strong> de algumas das suas obras profanas anteriores.<br />

Foi assim que o poema galante de uma<br />

canção a 3 vozes que publicara em 1582, Tu dorado<br />

c a b e l l o , deu lugar a um belíssimo texto religioso<br />

extraído das Rimas Sacras de Lope de Vega, Si tus<br />

penas no pruebo, Jesús mío, limitando-se o autor a retocar<br />

(de resto com mão de Mestre) algumas passagens<br />

pontuais da obras musical anterior para a<br />

adaptar às novas nuances expressivas do seu texto<br />

sacro.<br />

Os observadores mais conservadores não cessaram<br />

de se insurgir contra o uso de vilancicos e<br />

ensaladas na liturgia das igrejas ibéricas, protestando<br />

contra uma prática em que viam um verdadeiro<br />

sacrilégio, responsável pela transformação<br />

da Igreja num Teatro, a que o público acorria para<br />

ver um espectáculo de cariz cada vez mais profano,<br />

[ 35 ] Lisbo a, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


em vez de comparecer para zelar pela sua salvação<br />

eterna. Mas as autoridades eclesiásticas portuguesas<br />

e espanholas eram acima de tudo muito pragmáticas,<br />

e o sucesso estrondoso desta liturgia festiva<br />

que enchia as igrejas, garantindo a presença regular<br />

dos fiéis na Missa e nas grandes celebrações do<br />

Ofício, parecia-lhes a melhor das defesas contra a<br />

penetração de quaisquer vislumbres de missionação<br />

filo-protestante na Península que porventura<br />

conseguisse passar pelas malhas da repressão<br />

inquisitorial.<br />

O vilancico religioso tornou-se, por conseguinte,<br />

numa componente quase indispensável<br />

da liturgia nas festas jubilatórias do ano, em especial<br />

no Natal, no dia de Reis, nas grandes festas<br />

marianas, como a Conceição ou a Assunção, e nos<br />

dias dos Santos de maior devoção, como São João<br />

Baptista, São João Evangelista ou São Pedro. Na<br />

quadra natalícia, muito em especial, era frequente<br />

que, em cada catedral, o Mestre de Capela fosse<br />

dispensado de quase todas as suas demais funções<br />

durante algum tempo para escrever os novos vilancicos<br />

que seriam cantados nas Matinas do Natal, e<br />

a preparação da sua execução era feita com enorme<br />

cuidado e despesa. Os vilancicos eram inseridos<br />

nas Matinas em séries de oito ou nove, alternando<br />

com os Responsórios latinos previstos na liturgia<br />

oficial, ou podiam igualmente surgir na própria<br />

Missa, durante a Elevação da Hóstia. Muitas<br />

vezes, como sucedia com as ensaladas de Fletxa, os<br />

sucessivos vilancicos encadeavam-se como elos de<br />

uma única narrativa dramática, e – embora este<br />

aspecto não tenha sido ainda devidamente estudado<br />

em profundidade – tudo parece sugerir que<br />

haveria recurso a algum esboço de encenação e<br />

mesmo a alguns adereços e figurinos especiais para<br />

a representação deste repertório, em que os cantores<br />

do coro desempenhavam agora os mais diversos<br />

papéis em pequenos enredos dramáticos geralmente<br />

relacionados com a ida a Belém para a<br />

Adoração ao Deus menino.<br />

Esta prática prolongou-se por todo o século<br />

XVII, abrangendo tanto o território peninsular<br />

como o espaço colonial português e espanhol, da<br />

Índia à América Latina. Juan Gutiérrez de Padilla<br />

(ca. 1590-1664), Mestre de Capela da opulenta<br />

catedral de Puebla, no México, a partir de 1629,<br />

ficaria precisamente como um relevante cultor do<br />

género. Para tal contou a partir de 1640 com o<br />

apoio decisivo do Bispo Palafox y Mendoza,<br />

melómano entusiástico que não se poupava a<br />

despesas para que as celebrações litúrgicas na sua<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 36 ]<br />

catedral se fizessem com um máximo de esplendor.<br />

Em 1645, por exemplo, Gutiérrez de Padilla<br />

dispunha para executar as suas obras de um conjunto<br />

de 14 meninos do coro e de 28 cantores<br />

adultos, muitos dos quais também instrumentistas,<br />

para lá de um harpista e de um organista notáveis.<br />

Podia assim permitir-se uma escrita complexa para<br />

dois ou mais coros combinados, por vezes mesmo<br />

com partes instrumentais desenvolvidas, jogando<br />

com todos os efeitos de contraste concertante<br />

entre solistas e tutti e com a variedade das formas<br />

poético-musicais de raiz popular tradicional à sua<br />

disposição. É assim que encontramos entre as suas<br />

obras para as Matinas de Natal de 1657, hoje executadas,<br />

formas curiosas como uma “Negrilla”,<br />

vilancico em crioulo de castelhano que descreve<br />

cenas pitorescas de um grupo de negros que quer<br />

ir também adorar o Menino no presépio de Belém.<br />

Já no final do século XVII, na catedral de Las<br />

Palmas, importantíssimo entreposto na rota para<br />

as colónias espanholas da América do Sul, encontramos<br />

o último compositor do presente programa,<br />

Diego Durón (ca. 1658-1731). Irmão do<br />

grande compositor Sebastián Durón, que chegaria,<br />

nesse mesmo período a organista – e depois<br />

Mestre – da Capela Real de Madrid, Diego radicou-se<br />

nas Canárias como responsável da Capela<br />

da Sé de Las Palmas, dedicando-se aí a uma intensa<br />

produção de vilancicos: o arquivo da sua catedral<br />

preserva ainda hoje nada mais nada menos do<br />

que 422 da sua autoria. São obras em que os modelos<br />

formais herdados dos finais do século anterior,<br />

como a “Xácara”, por exemplo (uma dança<br />

popular espanhola grandemente cultivada pelos<br />

compositores instrumentais seiscentistas na<br />

Península), se combinam agora cada vez mais com<br />

a influência formal da cantata barroca italiana,<br />

com a sua típica sequência de recitativos e árias.<br />

Mantêm, contudo, bem viva a sua função de animação<br />

músico-teatral de um quadro litúrgico que<br />

– justamente pela continuidade da sua presença no<br />

contexto ibérico através dos séculos – constituiu<br />

uma das mais originais determinantes específicas<br />

da escrita da <strong>Música</strong> religiosa ibérica.


O Mistério de Elx<br />

Primeiro Acto – La Vespra<br />

Maria<br />

Germanes mies, jo voldria<br />

fer certa petició aquest dia:<br />

prec-vos no em vullau deixar<br />

puix tant me mostrau amar.<br />

Maria y Cortejo<br />

Verge i Mare de Déu,<br />

on Vós voldreu anar<br />

vos irem a acompanyar<br />

Maria<br />

Ai, trista vida corporal!<br />

Oh, món cruel, tan desigual!<br />

Trista de mi! Jo qué faré?<br />

Lo meu car Fill, quan lo veuré?<br />

Maria<br />

Gran desig m’ha vengut al cor<br />

del meu car Fill ple d’amor,<br />

tan gran que no ho podria dir<br />

on, per remei, desig morir.<br />

Maria<br />

Irmãs minhas, eu queria<br />

Fazer uma certa petição neste dia:<br />

Peço-vos que não me queirais deixar<br />

Pois tanto me mostrais amar.<br />

(Os membros do cortejo mariano manifestam a sua absoluta<br />

fidelidade à Virgem:)<br />

Maria e Cortejo<br />

Virgem e Mãe de Deus,<br />

Para onde vos quiseres dirigir<br />

Nós vos acompanharemos<br />

(Maria Mayor – assim se chama em Elx ao menino que<br />

interpreta a Virgem – avança uns passos e expressa a dor<br />

que sente na ausência de Jesus:)<br />

Maria<br />

Ai, triste vida corporal!<br />

Oh, mundo cruel tão desigual!<br />

Triste de mim! Que farei?<br />

Meu caro Filho, quando o verei?<br />

(O cortejo mariano começa a sua lenta subida até ao<br />

cadafal, enquanto que recorda três momentos da Paixão e<br />

Morte de Jesus Cristo: a sua oração no Horto das Oliveiras,<br />

a sua crucificação no Monte Calvário e o seu enterro no<br />

Santo Sepulcro. Entretanto, a Virgem ajoelha-se num leito<br />

improvisado no cadafal e manifesta as sua ânsia de reunião<br />

com o seu Filho:)<br />

Maria<br />

Grande desejo encheu meu coração<br />

De meu querido Filho cheio de amor,<br />

Tão grande que não poderia exprimi-lo<br />

E, como remédio, desejo morrer.<br />

(Acabada esta petição, abrem-se as portas do ciclo que se representa<br />

por intermédio de uma grande lona, pintada com<br />

nuvens e anjos e que cobre totalmente o anel principal da<br />

cúpula do templo. Do céu desce um objecto esférico, em cujo<br />

interior – uma vez abertas as suas oito asas – se descobre<br />

um menino que aparenta ser um anjo. Este saúda a Virgem<br />

e, depois de anunciar a sua morte próxima, entrega-lhe uma<br />

palma dourada como presente celestial:)<br />

[ 37 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCV III.


Angel<br />

Déu vos salve Verge imperial,<br />

Mare del Rei celestial…<br />

San Juan<br />

Saluts, honor e salvament<br />

sia a Vós, Mare excel.lent<br />

e lo Senyor, qui és del tro,<br />

vos done consolació<br />

Maria<br />

Ai, fill Joan, si a vós plau,<br />

aquesta palma vós prengau<br />

e la’m façau davant portar<br />

quan me porten a soterrar.<br />

San Juan<br />

Ai , trista vida corporal!<br />

Oh, món cruel, tan desigual!<br />

Oh, trist de mí! Jo on iré?<br />

Oh, llas, mesquí! Jo qué faré?<br />

Oh, Verge, Reina imperial!<br />

Mare del Rei celestial!<br />

Com nos deixau ah gran dolor,<br />

sens ningun cap ne regidor?<br />

San Juan<br />

Oh, Apòstols e germans meus!<br />

Veniu, plorem ab tristes veus,<br />

car hui perdem tot nostre hé.<br />

Lo clar govern de nostra fe.<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 38 ]<br />

Anjo<br />

Deus vos salve Virgem imperial,<br />

Mãe do Rei celestial…<br />

(Maria Mayor recebe a simbólica palma e expressa ao anjo o<br />

seu desejo de ver reunidos, em seu redor, os Apóstolos.<br />

Quando o mensageiro celeste sobe à cúpula da igreja começam<br />

a chegar os discípulos de Cristo, conduzidos por uma misteriosa<br />

força que os conduz a Jerusalém. O primeiro de entre<br />

eles é São João, que saúda a sua Mãe:)<br />

São João<br />

Saudações, virtude e salvação<br />

Sejam convosco, magnífica Mãe<br />

E o senhor que está no trono,<br />

Vos conceda consolação<br />

(A Virgem entrega ao amado discípulo a palma dourada e<br />

pede-lhe que a leve no seu funeral:)<br />

Maria<br />

Ai, filho João, se vos apraz,<br />

Pegai nesta palma<br />

E fazei com que a levem<br />

Quando me forem sepultar.<br />

(O Apóstolo manifesta a sua tristeza, perante a morte<br />

próxima de Maria:)<br />

São João<br />

Ai, triste vida corporal<br />

Oh, mundo cruel tão desigual!<br />

Oh, triste de mim, para onde irei?<br />

Oh, cansado, infeliz! O que farei?<br />

Oh, Virgem, Rainha imperial!<br />

Mãe do Rei celestial!<br />

Como nos deixais com grande dor,<br />

Sem nenhum chefe nem regedor?<br />

(Seguidamente, São João dirige-se à porta do cadafal e<br />

convoca os seus companheiros no apostolado:)<br />

São João<br />

Oh, Apóstolos e irmãos meus!<br />

Vinde, choremos com tristes vozes,<br />

Pois hoje perdemos todo o nosso bem.<br />

O lúcido governo da nossa fé.<br />

(O Apóstolo preferido volta a dirigir-se à Virgem,<br />

expressando-lhe a sua tristeza e desamparo:)


San Juan<br />

Sens Vós, Senyora, qué farem?<br />

E ab qui ens aconsolarem?<br />

D’ulls e de cor devem plorar<br />

mentres viurem e sospirar.<br />

San Pedro<br />

Verge humil, flor d’honor,<br />

Mare del nostre Redemptor,<br />

saluts, honor e salvament<br />

vos done Déu omnipotent.<br />

Apostoles<br />

Oh, poder de l’Alt Imperi.<br />

Senyor de tots los creats!<br />

Cert és aquest gran misteri<br />

ser ací tots ajustats.<br />

De les parts d’ací estranyes<br />

som venguts molt prestament<br />

passant viles i muntanyes<br />

en menys temps d’un moment.<br />

Apostoles<br />

Salve Regina, princesa,<br />

Mater Regis angelorum,<br />

advocata pecatorum,<br />

consolatrix aflictorum.<br />

L’omnipotent Déu, Fill vostre,<br />

per nostra consolació,<br />

fa la tal congregació,<br />

en lo sant conspecte vostre.<br />

Vós, molt pura e defesa,<br />

reatus patrum nostrorum,<br />

advocata pecatorum,<br />

consolatrix aflicorum<br />

São João<br />

Sem vós, Senhora, que faremos?<br />

E com quem nos consolaremos?<br />

Com olhos e coração devemos chorar<br />

enquanto formos vivos, e suspirar.<br />

(O discípulo seguinte a entrar no cadafal é são Pedro –<br />

sempre representado por um sacerdote – que depois de abraçar<br />

São João, saúda a Virgem:)<br />

São Pedro<br />

Virgem humilde, flor de virtude,<br />

Mãe do nosso Redentor,<br />

Saudações, virtude e salvação<br />

Vos conceda Deus omnipotente.<br />

(Seguidamente entram em cena seis discípulos de Cristo que<br />

beijam as mãos de Maria e abraçam Pedro e João. Outros<br />

três Apóstolos – um dos quais é Santiago – chegam por três<br />

caminhos diferentes. No seu canto manifestam a sua surpresa<br />

por se terem deslocado desde os seus respectivos locais de pregação<br />

até à casa da Mãe de Deus:)<br />

Apóstolos<br />

Oh, poder do Alto Império,<br />

Senhor de todas as criaturas!<br />

Certo é este grande mistério<br />

De sermos aqui todos reunidos.<br />

Dos lugares mais distantes<br />

Viemos apressadamente<br />

Passando cidades e montes<br />

Em menos tempo que um momento.<br />

(Reunidos todos os Apóstolos em torno do leito da Virgem –<br />

com a ressalva de São Tomás – saúdam-na e louvam a sua<br />

figura como intercessora da humanidade aflita:)<br />

Apóstolos<br />

Salve Rainha, princesa,<br />

Mãe do Rei dos anjos,<br />

Advogada dos pecadores,<br />

Consolo dos aflitos.<br />

O Deus omnipotente, vosso Filho,<br />

Para nosso consolo,<br />

Fez esta congregação,<br />

Em vossa santa presença.<br />

Vós, muito pura e defendida,<br />

Da culpa dos nosso pais,<br />

Advogada dos pecadores,<br />

Consolo dos aflitos.<br />

[ 39 ] Li sboa, 6 a 1 4 Outub ro MCMXCVIII.


San Pedro<br />

Oh, Déu, valeu! E qué és açò<br />

d’aquesta congregació?<br />

Algun misteri amagat<br />

vol Déu nos sia revelat.<br />

Maria<br />

Los meus cars fills, puix sou venguts<br />

i lo Senyor vos haja duts,<br />

mon cos vos sia acomanat<br />

lo soterreu en Josafat.<br />

Apostoles<br />

Oh, cos sant glorificat<br />

de la Verge santa i pura,<br />

bui serás tu sepultat<br />

i reinaràs en l’altura.<br />

Araceli<br />

Esposa e Mare de Déu<br />

a nós, àngels, seguireu.<br />

Seureu en cadira real<br />

en lo regne celestial<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 40 ]<br />

(São Pedro, em nome de todos os Apóstolos, expressa a sua<br />

estranheza ante a misteriosa reunião dos discípulos:)<br />

São Pedro<br />

Oh, Deus valei-nos! E para que serve<br />

esta congregação?<br />

Algum mistério oculto<br />

Quer Deus que nos seja revelado.<br />

(Maria, sentindo eminente a sua morte, recomenda aos<br />

Apóstolos que enterrem o seu corpo no Vale de Josafat:)<br />

Maria<br />

Meus caros filhos, pois que vieram<br />

e o Senhor os trouxe,<br />

o meu corpo vos seja entregue<br />

e em Josafat sepultado.<br />

(A Mãe de Deus morre e nesse instante o jovem que a representa<br />

é substituído, por intermédio de uma manobra oculta<br />

por baixo do cadafal, pela imagem da Virgem da Ascensão,<br />

padroeira de Elx, em postura de defunta. Perante ela, os<br />

Apóstolos ajoelhados e com velas acesas entoam um cântico<br />

fúnebre em que expressam a esperança da sua futura ressurreição:)<br />

Apóstolos<br />

Oh, corpo santo glorificado<br />

Da Virgem santa e pura,<br />

Hoje serás sepultado<br />

E reinarás nas alturas.<br />

(Concluído o canto emocionado dos discípulos de Cristo,<br />

abrem-se de novo as portas do céu e inicia-se a descida do<br />

artefacto aéreo, denominado Araceli. Este dispositivo cénico<br />

está ocupado por três homens e duas crianças que representam<br />

anjos e que acompanham o seu canto – a quatro vozes, uma<br />

vez que o anjo central permanece mudo – com uma guitarra<br />

e uma harpa. O Araceli chega ao cadafal com a finalidade<br />

de que o mencionado anjo – também representado por um<br />

sacerdote – recolha a alma da Virgem, simbolizada por uma<br />

pequena imagem mariana:)<br />

Araceli<br />

Esposa e Mãe de Deus<br />

A nós, anjos, seguireis.<br />

Sentareis em cadeira Real<br />

No reino celestial.<br />

(Com a entrada da alma da Mãe de Deus no céu da<br />

Basílica, conclui-se o primeiro acto do Mistério.)


MATEU FLETXA<br />

El Fuego<br />

¡Corred, corred, peccadores!<br />

No os tardéis en traer luego<br />

agua al fuego, agua al fuego!<br />

¡Fuego, fuego, fuego… !<br />

Este fuego que se enciende<br />

es el maldito peccado,<br />

que al que no halla occupado<br />

siempre para sí lo prende.<br />

Qualquier que de Dios pretende<br />

salvación procure luego<br />

agua al fuego, agua al fuego.<br />

¡Fuego, fuego, fuego… !<br />

Venid presto, peccadores,<br />

a matar aqueste fuego;<br />

haced penitencia luego<br />

de todos vuestros errores.<br />

Reclamen essas campanas<br />

dentro en vuestros coraçones.<br />

Dandán, dandán, dandán,…<br />

Poné en Dios las aficiones,<br />

Todas las gentes humanas.<br />

Dandán, dandán, dandán,…<br />

¡Llamad essos aguadores,<br />

Luego, luego, sin tardar!<br />

Y ayúdennos a matar<br />

este fuego.<br />

No os tardéis en traer luego<br />

dentro de vuestra conciencia<br />

mil cargos de penitencia<br />

de buen'agua,<br />

y ansí mataréis la fragua<br />

de vuestros malos deseos,<br />

y los enemigos feos<br />

huyrán.<br />

¡Oh cómo el mundo se abrassa<br />

no teniendo a Dios temor,<br />

teniendo siempre su amor<br />

con lo que el demonio amassa!<br />

Por cualquiera que traspassa<br />

los mandamientos de Dios,<br />

cantaremos entre nos,<br />

dándole siempre baldones:<br />

“Cadent super eos carbones,<br />

in ignem dejicies eos:<br />

in miseriis non subsistent”,<br />

Este mundo donde andamos<br />

es una herviente fragua,<br />

donde no á lugar el agua,<br />

si por ventura tardamos.<br />

¡Oh cómo nos abrassamos<br />

en el mundo y su hervor!<br />

Por qualquiera peccador<br />

que lo que da Dios no toma,<br />

se dirá lo que de Roma<br />

quando ardía sin favor:<br />

“Mira Nero, de Trapeya,<br />

a Roma cómo se ardía;<br />

gritos dan niños y viejos<br />

y él de nada se dolía”.<br />

¡No os tardéis!<br />

¡Traed, traed agua ya!<br />

¡Y vosotros atajad!<br />

¡Corred! ¡Presto socorred!<br />

¡Sed prestos y muy lijeros<br />

en dar golpes a los pechos!<br />

¡Atajad aquessos techos!<br />

Dandán, dandán, dandán,…<br />

¡Corred, corred!<br />

¡Cortad presto essos maderos!<br />

Tras, tras, tras, tras, traas,…<br />

Dandán, dandán, dandán,…<br />

¡Tañed, tañed, más apriessa,<br />

que vamos sin redención!<br />

¡Tañed presto, que ya cessa<br />

con agua nuestra passión.<br />

Y ansí, con justa razón<br />

dirán la gentes humanas:<br />

“¿Dónde las hay, dónde las hay<br />

las tales aguas soberanas?”<br />

Toca, Joan, con tu gaitilla,<br />

Pues ha cessado el pesar.<br />

Yo te diré un cantar<br />

muy polido a maravilla.<br />

Veslo aquí,<br />

ea pues, todos decir:<br />

Zon, zon, zon, zon, zon,…<br />

Dindirindín, dindin.<br />

“De la Virgen sin mancilla<br />

ha manado el agua pura”.<br />

Y es que á hecho crïatura<br />

al Hijo de Dios eterno,<br />

para que diesse govierno<br />

al mundo que se perdió;<br />

y una Virgen lo parió,<br />

según havemos sabido,<br />

por reparar lo perdido<br />

de nuestros padres primeros:<br />

¡Alegría, cavalleros!<br />

que nos vino en este día<br />

que parió sancta María<br />

al pastor de los corderos.<br />

Zon, zon, zon, zon, zon,…<br />

Dindiridín, dindiridin…<br />

Y con este nascimiento,<br />

que es de agua dulce y buena,<br />

se repara nuestra pena<br />

para darnos a entender<br />

que tenemos de beber<br />

desta agua los sedientos,<br />

guardando los mandamientos<br />

a que nos obliga Dios,<br />

porque se diga por nos:<br />

“Qui biberit ex hac aqua,<br />

non sitiet in aeternum”.<br />

[ 41 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


L O P E D E VEGA – FRANCISCOGUERRERO<br />

Soliloquios amorosos<br />

de un alma a dios<br />

Si tus penas non pruebo, Jesus mío,<br />

vivo triste y penado:<br />

damelas por el alma que te he dado,<br />

que si este bien me hicieres,<br />

ay Dios, como veré lo que me quieres!<br />

Quiéreme bien, y en darmelas lo<br />

muestra,<br />

que es ley entre amadores<br />

partir como los gustos los dolores,<br />

que non es partir al justo<br />

tener tu los dolores y yo el gusto.<br />

Mas qué te pido yo que tu me quieras,<br />

si tu, mi bien, me quieres,<br />

de suerte que por darme vida mueres?<br />

Yo soy quien no te quiero,<br />

pues viéndote a la muerte non me<br />

muero.<br />

No quiero vida yo sin ti, mi vida,<br />

si tu mi vida eres,<br />

en ti mismo estaras, cuando quisires,<br />

que yo siempre querria<br />

estar en ti, pues eres vida mia.<br />

Ay, si estuviese un hora yo contigo,<br />

y que esta hora fuese tan grande<br />

que mayor que el tiempo fuese,<br />

y que tanto durase<br />

que tus eternos anos igualase!<br />

Bien sé que soy de pobres labradores<br />

y grosera aldeana<br />

y que tu majestad es soberana:<br />

mas tu, que te apocaste,<br />

subiste mi valor cuando bajaste.<br />

XIX Jorn adas Gulb en kian de <strong>Música</strong> An tiga [ 42 ]<br />

En la cuenta no vale nada el cero:<br />

mas tu, numero santo,<br />

puesto al principio, vengo a subir tanto,<br />

que vienes a ensalzarme,<br />

porque te humanas tu para endiosarme.<br />

Dame, señor, tu Cruz, dame tus<br />

clavos,<br />

para que no me huya:<br />

traspasen las espinas de la tuya<br />

mi cabeza dichosa,<br />

corona de tus flores a tu Esposa.<br />

Descansa un poco, dulce vida mia,<br />

de tu Cruz en mis brazos,<br />

tercero sea tu Cruz destos abrazos,<br />

y asi pareceremos<br />

Dios hombre, el hombre Dios, de amor<br />

extremos.


JUAN GUTÉRREZ DE PADILLA<br />

Ay que chacota<br />

Vilancico de Natal<br />

Ay que chacota que haçe in noche<br />

porque el sol de acarrea con ella;<br />

cada tachuela que pone en su coche,<br />

ay que chacota, parece una estrella.<br />

Coplas<br />

I. La noche, que todo el año<br />

es enemiga del dia<br />

a prevenir nuevas paçes<br />

con todo el sol viene a vistas.<br />

II. De Belén, en la campaña,<br />

donde la aurora Maria,<br />

la luz y la aurora a un tiempo<br />

quieren quedar muy amigas.<br />

III. De todo el llanto del cielo<br />

la nochebuena se atina<br />

Luceros son quanto arrastra<br />

y planetas quanto pisa.<br />

Lágrimas de un niño<br />

Lágrimas de un niño<br />

ternesas de un dios,<br />

si por mí las llora<br />

que dulçes que son.<br />

El rigor las causa<br />

si las busca amor<br />

que lo ingrato siempre<br />

duplica el dolor.<br />

Romance<br />

Mas, si el daño que padeçe<br />

lo ostenta por mí ocasión,<br />

llore yo, pues a tantos exçesos<br />

obliga la fuerza de mí sinrazón.<br />

Coplas<br />

I. Sentir por mí la pena<br />

sufrir por mí el dolor,<br />

hermoso niño mio,<br />

muchas finesas son.<br />

II. Por mí tendresa de amante<br />

el crédito mayor,<br />

que son buenas finesas<br />

de mi satisfaçion.<br />

III. Antes que os mereciera,<br />

mi bien, tanto favor,<br />

erays un dios terrible,<br />

mas ya otra cosa soys.<br />

IV. Decime, niño hermoso,<br />

Qué fuerça os obligó<br />

a que pagueis la fruta,<br />

pues, no comisteis vos.<br />

Tábalagumba<br />

Negrilla<br />

Tábalagumba<br />

que ya no gorioso naçiro ya<br />

Tábalagumba turu<br />

en plosisione vamo a bele.<br />

Aya huuchiha<br />

que téne candela<br />

la nubalà.<br />

Y ya, y ya, y ya,<br />

titilitando lo niño, ya<br />

Coplas<br />

I. A la porta de Beléne<br />

venimo neglo cuntenta<br />

a haçé una plosisione<br />

delante la naçimenta.<br />

Aya huuchia<br />

Titilitando lo niño sá<br />

y ya, y ya, y ya,<br />

Su made vindita le cayenta<br />

II. A lo neglo don Jorgiyo<br />

que dice tené opinio<br />

a ese avemo de rogá,<br />

que nos yeve la pendó.<br />

III. A lo neglo de vicalio,<br />

que diçe somos [h]onraro<br />

a ese avemo de rogá,<br />

que nos yeve lo sensario.<br />

IV. A lo neglo don Biafra<br />

pues que tené bonacala<br />

a ese avemo de rogá<br />

La clus de la combaca<br />

V. A lo neglo don Pelico<br />

que tené glande balona<br />

a ese avemo de rogá,<br />

que nos yeve a nosa giñola.<br />

VI. A lo neglo Monicongo<br />

que tené glande barriga<br />

a ese avemo de rogá<br />

que yeve la campaniya.<br />

Ha de la tierra y del monte<br />

Calenda<br />

Ha de la tierra y del monte,<br />

a quien puebla tanta flor<br />

de cuyo hermoso verdor<br />

se rie aquel horizonte<br />

Quién llama?<br />

[ 43 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


Yo, que en novedad tamaña<br />

pregunto, Por qué esto día,<br />

aborta tanta alegria<br />

en tan áspera montaña?<br />

Esta noche verdad quedó<br />

reducida a corta esphera,<br />

la maravilla primera<br />

que supo haçer el çielo.<br />

Celebrad pastores!<br />

Alégrense las aves<br />

y las flores y en el viento,<br />

con primoroso açento<br />

canton los Ruyseñores.<br />

Campanillas del alva<br />

de este sol que naçe<br />

toquen en la salva<br />

Y digan jilgueros con pico,<br />

parleros en dulce primor,<br />

fuentecilla que al alvor<br />

quebrais mil perlas de riza.<br />

No corrais, no tan aprisa,<br />

vels al que naçe,<br />

que es luz y que es flor.<br />

Coplas<br />

Al gozo que ha publicado,<br />

el que al alva en tal alto empleo<br />

aviva nuestro deseo,<br />

acaba nuestro cuydado.<br />

No corrais, no tan aprisa,<br />

vels al que naçe,<br />

que es luz y que es flor.<br />

Lineas çeñira estrellas<br />

a este sol siendo prisión,<br />

a su hermoso coraçón,<br />

con lágrimas en ves de flechas.<br />

Por él veremos logrado<br />

en los braços de la aurora<br />

un sol que naçe a deshora<br />

entre rayos y primores.<br />

Campanillas del alva,<br />

de este sol que naçe<br />

toque en la salva.<br />

Perlas al brotar las flechas,<br />

como al alva, aljofar llora,<br />

ganando a su precursora<br />

en grandesas y favores<br />

Christus natus est nobis<br />

Christus natus est nobis,<br />

Venite adoremus.<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 44 ]<br />

DIEGO DURÓN<br />

Ah, de las gitanillas<br />

Vilancico de Natal<br />

¡Ah, de las gitanillas!<br />

¡Hala! ¡Hala! ¡Hala que hala!<br />

¡Contentas venid gitanas<br />

que un niño de oro roba las almas!<br />

que amante nos da las pasquas<br />

¡Hala! ¡Hala! ¡Hala que hala!<br />

¡A bailar, a bailar gitanicas!<br />

¡Hala! ¡Hala!, Vamos en ala,<br />

Ya mi pulidico, bello gitanico<br />

que está entre unas paxas<br />

haciendonos raxas<br />

¡Vamos le alegrar!<br />

¡Ay, andar a Belén!<br />

¡Ay, andar al portal!<br />

¡Ay, andar, que la buena fortuna<br />

nos aguarda gitanas, allá!<br />

Repique el pandero<br />

Y las castañuelas<br />

lleven el compás<br />

Trás, trás, trás, trás!<br />

¡Andar, andar, andar!<br />

Coplas<br />

I. Carita de rosa polido zagal,<br />

mira como bailamos<br />

mira a tu magestad<br />

¡Ay, andar, andar!<br />

II. Oye a las gitanas,<br />

que cantando van<br />

sin dexar las mudanças<br />

oye de tu humanidad<br />

¡Ay, andar, andar!<br />

III. Bien te conocemos<br />

y sabemos ya<br />

que tu ser aunque niño<br />

tiene una eternidad<br />

¡Ay, andar, andar!


IV. Enamoradico<br />

lloras sin cesar<br />

de una dama que tienes<br />

llora el mas grave mal<br />

¡Ay, andar, andar!<br />

V. Quisiste curarla<br />

de tu voluntad<br />

y tu sabiduría<br />

viene médico a un portal<br />

¡Ay, andar, andar!<br />

VI. Por aquesta cura<br />

aunque te ves ya,<br />

hecho muy hombre el serio<br />

sabe que lo has de pagar<br />

¡Ay, andar, andar!<br />

VII. Con tus medicinas<br />

ella sanará<br />

pero con este açierto<br />

çierto tu te morirás<br />

¡Ay, andar, andar!<br />

VIII. Y pues te hemos dicho,<br />

toda la verdad,<br />

alguna limosnica<br />

niño danos liberdad<br />

¡Ay, andar, andar!<br />

Oygan, tengan, paren, miren<br />

Vilancico de Natal<br />

Oygan, tengan, paren, miren,<br />

oygan, de un valentón que atendella,<br />

tengan, tengan<br />

de un valentón que atendella<br />

viene de los varrios altos<br />

Vaya, vaya, tengan, tengan, vaya,<br />

escuchen, miren<br />

Qué es esto que voi mirando<br />

miren esto que voi mirando<br />

Qué es esto que voi mirando<br />

quien es el que echo de un boleo<br />

quien es el que echo de un boleo<br />

Los demonios derrivando<br />

Lindo, bune, bueno, bravo, bueno,<br />

bravo, bravo.<br />

Xácara<br />

I. Vaya de xácara y sea el hijo de Dios<br />

loado, Aquel que lo sabe todo<br />

Ya me entiende con quien hablo.<br />

II. El, que antes que hubiera mundo,<br />

se mostro mañoso y sabio y hacía todas<br />

las cosas como quien dice jugando.<br />

III. Con el, estrellarse quiso, un<br />

sobervio y otros brancos, pero los hizo<br />

tortilla, no sinó guevos asados.<br />

IV. De un alferez de gran perso, el<br />

espíritu a lentado haciendo nombre de<br />

Dios los hechó a rodar, ahi diablos.<br />

V. No les dolió la caída, pero rabiosos<br />

sembraron en la evedad del valiente, la<br />

cizaña, malos años.<br />

VI. Como no sabe de burlas, dando des<br />

del cielo un salto, a ponerlo todo en paz,<br />

llego a un portal, ver buen caro.<br />

VII. A los tristes hijos de Eva, que<br />

estan gimiendo y llorando, viene a<br />

librar y le cuesta la vida, ese es el<br />

reparo.<br />

VIII. Entre doce camaradas, tiene un<br />

pariente bizarro que por los ayres sen<br />

atenta, hijo del trueno, Santiago.<br />

IX. Aunque un saulo le persigue con<br />

las armas y caballo, sera después en su<br />

ayuda, Rayo de luz guarda Pablo.<br />

X. Temen los valientes todos, que aun<br />

que al frio está temblando se hace<br />

respetar y valerse para que seamos<br />

santos.<br />

XI. Cuentan los evangelistas, toda su<br />

vida y milagros y esta la historia cabal<br />

como dos y dos son quatro.<br />

Jordi Savall<br />

(ver página 17)<br />

M o n t s e r r a t<br />

F i g u e r a s<br />

(ver página 18)<br />

Hesperion XX<br />

(ver página 19)<br />

La Capella<br />

Reial de<br />

C a t a l u n y a<br />

(ver página 18)<br />

[ 45 ] Lisbo a, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga<br />

S e x t a -<br />

Feira,<br />

Dia 9<br />

46


Auditório Dois,<br />

1 8 . 3 0<br />

OS LUGARES DA ÓPERA:<br />

ESPAÇOS TEATRAIS NA<br />

LISBOA SETECENTISTA.<br />

Conferência por<br />

ALEXANDRA TRINDADE<br />

GAGO DA CÂMARA<br />

(Universidade Aberta)<br />

47<br />

Maria Alexandra Trindade<br />

Gago da Câmara<br />

Maria Alexandra Trindade Gago da Câmara<br />

nasceu a 21 de Julho de 1962 em Lisboa. Licenciou-se<br />

em História (variante de História de Arte)<br />

pela Universidade Nova de Lisboa, em Junho de<br />

1984. Obteve o grau de Mestre em História de<br />

Arte Moderna Portuguesa, na mesma universidade,<br />

em 1991.<br />

Exerce desde 1992 as funções de assistente<br />

na Universidade Aberta e integra também o<br />

Centro de estudos Históricos e Interdisciplinares.<br />

É colaboradora no Centro de História de Arte da<br />

Universidade de Évora.<br />

No âmbito da sua investigação debruçou-se<br />

sobre questões ligadas à espacialidade teatral do<br />

século XVIII, tendo publicado diversos estudos:<br />

“Um percurso de Italianização: Os desenhos dos<br />

Galli-Bibiena”, na Revista de Estudos Italianos em<br />

P o r t u g a l , (Lisboa, 1993); “A Teatralidade do<br />

Barroco e a Representação de Espaços Efémeros -<br />

Proposta de Leitura do Espaço Cénico na Ópera<br />

Setecentista”, na Revista Portuguesa de Musicologia<br />

(Lisboa, 1993); “A Encenação e Representação do<br />

Espaço da Azulejaria Setecentista”, em Actas do<br />

Encontro sobre Barroco e Rocócó no Palácio Fronteira<br />

(Junho, 1994); Lisboa: Espaços Teatrais Setecentistas<br />

(Livros Horizonte, Lisboa, 1996); entre outros.<br />

Actualmente prepara a sua tese de Doutoramento<br />

na área da azulejaria portuguesa da segunda<br />

metade do século XVIII.<br />

Li sboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


Grande Auditório <strong>Gulbenkian</strong>, 2 1 . 3 0<br />

ABERTURAS, INTERMEZZI E DANÇAS TEATRAIS<br />

DO BARROCO FRANCÊS E ITALIANO<br />

De CHRISTOFANO MALVEZZI a CLAUDIO MONTEVERDI<br />

Sinfonias e Intermezzi (Florença 1 5 8 9 - Mântua 1 6 0 7)<br />

Christofano Malvezzi (b. 1 5 4 7 - 1599) - Prólogo<br />

Anónimo - Galharda: La Traditora<br />

Giulio Abondante (fl. 1 5 4 6 - 87) - Pavana: La forza d’Ercole<br />

Jacomo de Gorzanis (ca. 1 5 2 0 - ? 1 5 7 5/9) - Galharda: La Barca d’amore<br />

Luca Marenzio (? 1 5 5 3/4 - 1599) - Sinfonia<br />

Luigi Rossi (1 5 9 8 - 1653) - Fantasia: Les pleurs d’Orphée ayant perdu sa femme<br />

Claudio Monteverdi (1 5 6 7 - 1643) - Sinfonia: M o r e s c a<br />

WILLIAM BRADE (1 5 6 0 - 1630)<br />

Intraden, Mascheraden, Aufzüge und Fremde Tänze (Lübeck, 1 6 1 7)<br />

Abertura Turca: Der Satyrn Tanz<br />

Dança Escocesa: Der Hexen Tanz<br />

GUILLAUME DUMANOIR (1 6 1 5 - 1697)<br />

Ballet dansé a Stockholm (1 6 4 0)<br />

Intrada - Sarabande - Allegro - Libertas - Marche - Bourrée<br />

Air - Gavotte - Bransle - Hungaresca - Marche - Tambourin - Sarabande<br />

I n t e r v a l o<br />

JOHANN ROSENMÜLLER (ca. 1 6 1 9 - 1684)<br />

Sinfonia Quarta (Veneza 1 6 6 7)<br />

Sinfonia - Alemanda - Correnta - Ballo - Sarabanda<br />

JEAN-BAPTISTE LULLY (1 6 3 2 - 1687)<br />

Alceste: Suite d’Airs a Joüer (Paris 1 6 7 4)<br />

Marche des Combattans<br />

Bourrée I - C a n a r i e<br />

Bourrée II - E c h o s<br />

La Fête Infernale - Les Démons<br />

Pompe Funèbre<br />

Les Hommes et Femmes armès<br />

Prélude des Trompettes et autres Instruments pour Mars<br />

Menuet pour les Trompettes<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 48 ]


HESPERION XX<br />

Jordi Savall e Sergi Casademunt Violas da gamba<br />

Eunice Brandão, Juan Manuel Quintana Violas da gamba<br />

Jean-Pierre Canihac e Jean Imbert C o r n e t a s<br />

Beatrice Delpierre C h a r a m e l a<br />

Daniel Lassalle S a c a b u x a<br />

Josep Borràs D u l ç a i n a<br />

Xavier Diaz Vihuela e Guitarra<br />

Edin Karamazov Alaúde e Guitarra<br />

Michael Behringer Cravo e Órgão<br />

Pedro Estevan P e r c u s s ã o<br />

LE CONCERT DES NATIONS<br />

Manfredo Kraemer C o n c e r t i n o<br />

Davide Amodio e Santi Aubert V i o l i n o s<br />

Lydia Cevidalli e Pablo Valetti V i o l i n o s<br />

Angelo Bartoletti e Judit Foldes V i o l a s<br />

Bruno Coeset e Gaetano Nasillo Baixo de Violino<br />

Alberto Rassi V i o l o n e<br />

Charles Zebley F l a u t a<br />

Robert Vanryne e Christoph Pigram T r o m p e t e s<br />

Alfredo Bernardini O b o é<br />

Stephan Légée Trombone Alto<br />

Jordi Savall D i r e c ç ã o<br />

Com a Colaboração de IBERIA – Líneas Aéreas<br />

[ 49 ] Lisbo a, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


ABERTURAS, INTERMEZZI E DANÇAS TEATRAIS<br />

DO BARROCO FRANCÊS<br />

O dealbar do século XVII trouxe consigo o<br />

nascimento da Ópera, indelevelmente marcado<br />

pela fértil tradição italiana dos interlúdios músicodramáticos<br />

de temática pastoral, alegórica ou<br />

mitológica, que desempenhavam uma função de<br />

entretenimento no decurso das peças teatrais.<br />

Usufruindo de uma grande popularidade desde a<br />

Renascença, os intermezzi incorporavam, a par<br />

com o discurso falado, o canto e a música instrumental,<br />

o que esteve na origem da constituição de<br />

uma vasta produção musical, associada à esfera<br />

teatral e constituída por madrigais, motetes, ballets,<br />

aberturas e danças instrumentais, a qual é, em<br />

parte, objecto do presente programa. Os exemplos<br />

mais antigos são da autoria de Giulio Abondante<br />

(fl. 1546-1587) e Jacomo de Gorzanis (ca.1520ca.1579),<br />

dois destacados representantes da literatura<br />

para o alaúde em Itália nos meados do século<br />

XVI.<br />

Muito embora a música desempenhasse um<br />

papel autónomo e desligado da acção dramática,<br />

no seio dos intermezzi, foi a sua convivência<br />

estreita com a palavra e com a representação de<br />

emoções o fundamento embrionário da Ópera.<br />

Contando-se entre os mais célebres intermezzi,<br />

encontram-se os seis que foram apresentados em<br />

Florença no ano de 1589, por ocasião do casamento<br />

do Duque Ferdinando de Medici com D.<br />

Cristina de Lorena. Para a realização do espectáculo,<br />

emoldurado por cenários sumptuosos e dispendiosa<br />

maquinaria de palco, contribuíram algumas<br />

das personalidades mais destacadas do<br />

panorama literário e artístico da época, como o<br />

mecenas Giovanni Bardi (1534-1612), responsável<br />

pela elaboração dos textos, em conjunto com<br />

Ottavio Rinuccini e Laura Guidiccioni, e os compositores<br />

Christofano Malvezzi (†1599), e Luca<br />

Marenzio (ca. 1553-1599). Estes últimos, distintos<br />

representantes do Madrigal maneirista, escreveram<br />

a maior parte da música que contou ainda<br />

com colaborações pontuais de Jacopo Peri (1561-<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 50 ]<br />

1633), Antonio Archilei (ca. 1550-1612),<br />

Giovanni Bardi, Giulio Caccini (ca. 1548-1618) e<br />

do supervisor musical do evento, Emilio Cavalieri<br />

(ca.1550-1602). Do vasto leque de géneros abordados<br />

ao longo dos seis intermezzi, que vão desde<br />

a canção solística de contornos ornamentados,<br />

acompanhada pelo chitarrone, aos imponentes<br />

madrigais policorais, em que participam sessenta<br />

cantores e pelo menos vinte e quatro instrumentos,<br />

fazem parte as sinfonias instrumentais, das<br />

quais serão ouvidos exemplos da autoria de<br />

Malvezzi e Marenzio. Estas obras destinavam-se a<br />

introduzir um intermedio ou a acompanhar a<br />

mudança de cenário, sendo executadas por conjuntos<br />

extremamente diversificados, constituídos,<br />

entre outros instrumentos, por flautas, cornetas,<br />

sacabuxas, violinos, violas da gamba, mandoras,<br />

alaúdes, guitarras e saltérios, segundo a prática<br />

renascentista. O uso desta instrumentária viria<br />

ainda a reflectir-se nas primeiras óperas, muito<br />

particularmente no O r f e o de Claudio Monteverdi<br />

(1567-1643), estreado em Mântua, a 24 de<br />

Fevereiro de 1607, de onde provém a Sinfonia<br />

M o r e s c a . Ao longo das mais de três décadas que<br />

decorreram entre a composição das primeiras<br />

óperas de Monteverdi e do que constitui o<br />

corolário da sua produção dramática, surgido a<br />

partir de 1640, a corrente impulsionadora do<br />

“dramma per musica” deslocou-se de Florença<br />

para Roma, com o protagonismo crescente de<br />

compositores como Domenico Mazzocchi (1592-<br />

1665), Stefano Landi (ca. 1586-1639) e Luigi<br />

Rossi (1598-1653), ao mesmo tempo que as inovações<br />

estilísticas italianas se estendiam a toda a<br />

Europa. Rossi contribuiu significativamente para a<br />

projecção do idioma italiano fora de Itália, e a sua<br />

ópera O r f e o (1647), foi apresentada com grande<br />

sucesso na corte francesa a convite do primeiroministro<br />

Jules Mazarin. Apesar de contestada<br />

pelos racionalistas da tradição clássica francesa, a<br />

música italiana teve reflexos duradouros na pro-


E ITALIANO<br />

por Rui Cabral<br />

dução de óperas e de numerosos géneros de dança,<br />

como os “ballets de court”, cultivados extensivamente<br />

por compositores como Pierre Guédron<br />

(†1621), Jean de Cambefort (1605-1661) e<br />

Guillaume Dumanoir (1615-1697). A sua<br />

influência perdurou mesmo para além da afirmação<br />

absolutista de uma estética marcadamente<br />

francesa, sob o vulto de Jean-Baptiste Lully (1632-<br />

1687). Tal convivência de culturas musicais veio a<br />

ocupar um lugar preferencial na discussão teórica<br />

contemporânea, em especial na promovida por<br />

Marin Mersenne (Harmonie Universelle, 1636).<br />

Correspondendo à tendência que se fazia sentir<br />

em Itália e França, a música de dança conheceu<br />

uma crescente afirmação no espaço germânico, na<br />

primeira metade do século XVII. O violinista<br />

inglês William Brade (1560-1630), passou a<br />

maior parte da sua vida criativa na Alemanha e foi<br />

um dos principais cultores da suite barroca naquele<br />

país. Exímio executante, Brade destacou-se,<br />

sobretudo, pelo engenho com que elaborava variações<br />

sobre baixos de dança, um exercício de<br />

improvisação de que se tornou pioneiro. A par<br />

com as mais convencionais Pavana, Galharda ou<br />

Alemanda, Brade divulgou danças menos conhecidas<br />

que vieram alargar a estrutura formal da suite,<br />

como a Maschera, inspirada pelas festividades carnavalescas,<br />

e a Intrada, de carácter processional.<br />

A expansão da música instrumental de<br />

câmara durante o barroco médio germânico devese,<br />

sobretudo, à acção de três compositores:<br />

Johann Rosenmüller (ca. 1619-1684) Johann<br />

Schmelzer (ca. 1620-1680) e Heinrich Ignaz von<br />

Biber (1644-1704). Rosenmüller nasceu na<br />

Saxónia mas desenvolveu o essencial da sua actividade<br />

em Itália, onde ocupou o cargo de trombonista<br />

na Basílica de São Marcos, em Veneza. As<br />

suites e as sonatas do compositor veiculam um discurso<br />

elaborado, caracterizado pela inventiva da<br />

concepção harmónica. No final da sua vida,<br />

Rosenmüller regressou ao seu país natal, tornan-<br />

do-se Mestre de Capela em Wolfenbüttel, e as<br />

suas composições instrumentais vieram a estabelecer<br />

um canal privilegiado para a transmissão do<br />

estilo italiano às regiões do Norte da Alemanha.<br />

[ 51 ] Lisbo a, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


A Orquestra Le Concert des Nations foi fundada<br />

em 1989, em torno da Capella Reial de<br />

Catalunya e é a mais recente das formações dirigidas<br />

por Jordi Savall. “Les Nations”, referência à<br />

obra de François Couperin, simbolizam a reunião<br />

dos “gostos” e também a premonição de uma arte<br />

europeia que não foi inventada hoje e que exibe a<br />

marca do Século da Luzes.<br />

Este agrupamento responde à necessidade<br />

actual de uma orquestra com instrumentos de<br />

época, capaz de interpretar o repertório orquestral<br />

e sinfónico, desde o Barroco até ao romantismo:<br />

1600-1850. Os músicos que integram a orquestra<br />

são, na sua maioria, originários de países latinos e<br />

todos especialistas de alto nível na interpretação<br />

de instrumentos antigos.<br />

As primeiras obras gravadas pela Concert des<br />

Nations foram: Canticum ad Beatam Virginem Mariam<br />

de Marc Antoine Charpentier; as Suites para<br />

Orquestra e os Concertos Brandeburgueses de Johann<br />

Sebastian Bach e as Sete Últimas Palavras de Cristo na<br />

Cruz de Joseph Haydn. Com Una Cosa Rara, ópera<br />

de Martin e Soler, o Concert des Nations e a<br />

Capella Reial de Catalunya fizeram a sua estreia<br />

no domínio da ópera. Esta obra foi representada<br />

no Teatro del Liceo de Barcelona em 1991, a que<br />

se seguiu o Orfeo de Monteverdi, em 1993. A última<br />

produção no género, Il Burbero di Buon Cuore de<br />

Martin e Soler, realizou-se em Montpellier em<br />

1995.<br />

Le Concert des Nations<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 52 ]<br />

Le Concert des Nations gravou também o<br />

R e q u i e m de Mozart com a Capella Reial de<br />

Catalunya, para além de Music for the Royal Fire Works<br />

e Water Music de Händel (Prémio RTL, 1994),<br />

Alcione e Suites des airs à jouer de Marin Marais,<br />

Sinfonia para Grande Orquestra e a Obra Orquestal<br />

de Arriaga, Sinfonia Eroica de Beethoven e<br />

Suites de Orquestra de Dumanoir. O repertório<br />

que a orquestra abordou ultimamente inclui a<br />

Abertura E g m o n t de Beethoven, as Suites de Bach,<br />

The Fairy Queen de Purcell e obras de Lully, Dumanoir<br />

e Rameau.<br />

Le Concert de Nations tem o patrocínio hon<br />

orífico da Comissão das Comunidades Europeias.<br />

Jordi Savall<br />

(ver página 17)<br />

Hesperion XX<br />

(ver página 19)


53<br />

Li sboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 54 ]<br />

Sábado,<br />

Dia 1 0


Sociedade de Geografia de Lisboa, 1 8 . 3 0<br />

CLAUDIO MONTEVERDI (1567 - 16 4 3)<br />

Il Combattimento di Tancredi e Clorinda<br />

I n t e r v a l o<br />

MARCO DA GAGLIANO (1582 - 16 4 3)<br />

La Dafne<br />

SEGRÉIS DE LISBOA<br />

Jennifer Smith Soprano (Narrador; Dafne)<br />

Ana Ferraz S o p r a n o (Clorinda; Vénus)<br />

Alexandra do Ó M e i o - S o p r a n o ( A m o r )<br />

Nicolau Domingues A l t o ( T i r s i )<br />

Rui Taveira Tenor (Ovídio; Pastor I)<br />

Mário José Alves T e n o r (Pastor II)<br />

António Wagner Diniz B a r í t o n o (Tancredi; Apolo)<br />

Pedro Couto Soares F l a u t a s<br />

Pedro Gandia, Iñaki Lagos V i o l i n o s<br />

Miguel Ivo Cruz Viola da gamba tenor<br />

Itziar Atutcha Viola da gamba baixo<br />

Paulo Galvão Alaúde e Viola de cinco ordens<br />

Manuel Morais Teorba e Alaúde<br />

Rui Paiva Orgão e Cravo<br />

CORO GULBENKIAN<br />

Sopranos:<br />

Sandra Lourenço (Ninfa I), Joana Seara (Ninfa II), Ana Caramelo, Rosário<br />

Azevedo, Myriam Madzalik, Sérgio Fontão<br />

C o n t r a l t o s :<br />

Elisabeth Silveira, Maria João Carmo, Mariana Portas,<br />

Sofia de Mendia<br />

T e n o r e s :<br />

Fernando Ferreira, Jorge Alves, José Damas, Manuel Lisboa<br />

B a i x o s :<br />

Rui Baeta (Pastor III), Horário Santos, João Valeriano,<br />

Hugo Oliveira<br />

Manuel Morais D i r e c ç ã o<br />

[ 55 ] Li sboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


NO BERÇO DO “DRAMMA<br />

PER MUSICA”<br />

por Rui Cabral<br />

A concepção da música como meio de<br />

expressão privilegiado de sentimentos e afectos<br />

humanos exerceu, desde cedo, uma influência decisiva<br />

no percurso criativo de Claudio Monteverdi<br />

(1567-1643). Em 1590, o compositor foi nomeado<br />

para o cargo de “suonatore di vivuola”, ao<br />

serviço do Duque Vincenzo I de Gonzaga, em<br />

Mântua, cargo esse que podia designar tanto o executante<br />

de Viola da Gamba como o de Violino.<br />

Estes instrumentistas eram habitualmente integrados<br />

em Quintetos de Cordas que tinham como<br />

função acompanhar elegantes danças de corte, em<br />

tudo idênticas aos ballets de court da tradição francesa,<br />

protagonizadas pelos membros da nobreza.<br />

Neste contexto – e porque os ballets i l u s t r a v a m ,<br />

regra geral, uma breve representação dramática,<br />

Monteverdi terá, desde logo, desenvolvido um<br />

particular interesse pela relação entre a música e o<br />

teatro, o qual se viria a materializar, em grande<br />

medida, embora não exclusivamente, no domínio<br />

da ópera. Foram, apesar de tudo, relativamente<br />

esparsas as oportunidades para a composição de<br />

óperas, ao longo da vida do compositor. Depois<br />

do célebre O r f e o (1607), Monteverdi escreveu,<br />

ainda em Mântua, uma outra ópera entretanto perdida,<br />

A r i a n n a (1608). Já em Veneza, foram-lhe<br />

dirigidas algumas encomendas de obras dramáticas,<br />

mas o essencial da sua produção tardia neste<br />

domínio viria a surgir a partir de 1640, coincidindo<br />

com a abertura dos primeiros teatros públicos<br />

de ópera em Veneza: Il ritorno d' Ulisse in Patria<br />

(1640), Le nozze d' Enea com Lavinia (1641) e<br />

L' incoronazione di Poppea (1642). Em contrapartida,<br />

tornaram-se muito mais frequentes as solicitações<br />

para a composição de b a l l e t s e de i n t e r m e d i , u m<br />

género músico-dramático tornado comum desde o<br />

século XVI, que desempenhava uma função de<br />

entretenimento entre os actos das peças teatrais. O<br />

cultivo intensivo destes géneros teve uma influência<br />

determinante, tanto no amadurecimento de<br />

conceitos operáticos então inovadores – por exem-<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 56 ]<br />

plo o do recitativo enquanto motor da história<br />

(cultivado pela C a m e r a t a florentina) – como também<br />

na estruturação formal do discurso músicodramático<br />

de Monteverdi: os ballets exigiam<br />

padrões de organização rigorosos e dos i n t e r m e d i<br />

faziam parte obrigatória as árias e os coros. Mais<br />

importante do que estes elementos é porém, o<br />

papel desempenhado pela “imitação” na filosofia<br />

de Monteverdi, conceito alicerçado nas doutrinas<br />

de Platão e na interpretação que delas fizeram os<br />

teóricos renascentistas. Apesar de haver uma diversidade<br />

de interpretações quanto ao seu significado,<br />

a acepção do compositor traduziu-se por duas<br />

medidas práticas: a imitação dos sons da natureza,<br />

tais como o canto dos pássaros e o murmúrio das<br />

águas ou do vento, e a procura de expedientes<br />

musicais que representassem as emoções humanas.<br />

A primeira delas é ilustrada de um modo notável<br />

no Combattimento di Tancredi e Clorinda que faz parte<br />

do presente programa. Composta em 1624, a obra<br />

foi publicada, catorze anos mais tarde, no seio do<br />

oitavo Livro de Madrigais (Madrigali guerrieri et<br />

a m o r o s i). A sua primeira audição teve lugar em<br />

Veneza, no Palácio de Girolamo Mocenigo,<br />

patrono do compositor. O texto, inspirado num<br />

conto medieval, provém do poema épico G e r usalemme<br />

liberata (1575) de Torquato Tasso, o qual<br />

relata a luta entre o cruzado Tancredi e a muçulmana<br />

Clorinda, amada por Tancredi, mas que ele<br />

não reconhece em virtude da mesma se encontrar<br />

dissimulada por uma armadura. Tancredi vence o<br />

combate, ferindo de morte a sua adversária, a qual<br />

acaba por reconhecer assim que lhe desvenda a<br />

face. Movido pela dor e pelo remorso, Tancredi é,<br />

por fim, perdoado por Clorinda, cuja morte é precedida<br />

pelo baptismo cristão. É muito significativo<br />

que ainda hoje subsistam reflexos deste conto<br />

medieval na nossa tradição musical, bem representados<br />

no filme de João César Monteiro, S i l v e s t r e<br />

(1978).<br />

O Combattimento di Tancredi e Clorinda coloca em<br />

cena, além dos personagens Clorinda (Soprano) e<br />

Tancredi (Barítono), a figura do testo ou narrador<br />

(Soprano), de cujo discurso vocal deviam estar<br />

ausentes, segundo o compositor, a coloratura e o<br />

trilo: “la voce del testo dover à essere chiara, ferma<br />

et di bona pronuntia”. As vozes são acompanhadas<br />

por um grupo instrumental constituído por dois<br />

violinos, violeta e baixo contínuo (órgão, cravo,<br />

alaúde, teorba e viola de cinco ordens), o qual<br />

devia, segundo o compositor, traduzir todas as<br />

subtilezas do texto. Particularmente relevante na


escrita para as cordas é a demonstração das potencialidades<br />

do stile concitato, ou “estilo agitado”, com<br />

a subdivisão de valores rítmicos longos em sequências<br />

de notas repetidas. A ausência na obra de uma<br />

perspectiva teatral de “ilusão pelo natural” – invalidada<br />

pelo recurso ao narrador – deixa um amplo<br />

espaço para a expressão de efeitos realistas pela<br />

orquestra, como, por exemplo, a imitação, em<br />

métrica ternária do trotar dos cavalos, ou o uso do<br />

pizzicato para evocar o entrechocar das espadas. À<br />

agonia final de Clorinda juntam-se as cordas, num<br />

lamento gradualmente menos intenso conseguido<br />

através do prolongamento das arcadas. O génio<br />

dramático de Monteverdi emana, a todo o<br />

momento, da extraordinária atmosfera deste<br />

madrigal guerreiro, dominada pela eloquência do<br />

fraseado melódico, pelas harmonias audaciosamente<br />

expressivas e pelo elevado poder sugestivo<br />

dos efeitos rítmicos.<br />

Uma das figuras mais destacadas da vida<br />

musical em Itália, na transição para o século XVII,<br />

Marco da Gagliano (1582-1643) foi autor de<br />

uma importante produção de madrigais seculares,<br />

monodias e obras sacras que teveram uma divulgação<br />

bastante significativa na primeira metade do<br />

século XVII. Seria, contudo, a composição da<br />

fábula La Dafne, estreada em Mântua em 1608 –<br />

um ano depois da apresentação na mesma cidade<br />

do O r f e o de Monteverdi – que viria a estabelecer<br />

definitivamente a reputação de Gagliano como<br />

compositor pioneiro, na história do que se considerava<br />

então como o novo género do melodrama.<br />

Composta sobre o libreto de Ottavio Rinuccini<br />

(1563-1621), que se reporta, por sua vez, a um<br />

texto das Metamorfoses de Ovídeo, a obra relata o<br />

mito clássico de Dafne que, querendo escapar ao<br />

ímpeto amoroso do deus Apolo, se transforma<br />

num loureiro. O mesmo libreto havia já sido<br />

objecto de versões musicais por Jacopo Peri,<br />

Jacopo Corsi (1594) e por Giulio Caccini (1602).<br />

A D a f n e de Gagliano, cuja apresentação fez parte<br />

das festividades carnavalescas comemoradas no<br />

Palácio do Duque de Mântua, Vincenzo I de<br />

Gonzaga, recolheu um entusiasmo generalizado,<br />

não apenas por parte do público contemporâneo,<br />

como também junto dos compositores que haviam<br />

anteriormente musicado o mesmo libreto. Jacopo<br />

Peri, numa carta que dirigiu ao Cardeal Ferdinando<br />

Gonzaga, considerou ser a versão de Gagliano<br />

superior a qualquer outra (referindo-se à sua própria<br />

e de Corsi) e sublinhou ainda a semelhança<br />

notável entre o idioma vocal do compositor e o<br />

discurso falado. A obra de Gagliano confere, com<br />

efeito, continuidade à tradição estética e estilística<br />

da C a m e r a t a florentina, fazendo recurso constante<br />

a um “recitar cantando”, de grande qualidade na<br />

relação entre o texto e a música, a árias de curta<br />

duração e a grupos instrumentais que detêm, por<br />

vezes, uma conotação com os personagens. À<br />

semelhança do que acontecia nas primeiras óperas,<br />

La Dafne tem por base um modelo de organização<br />

inspirado na tragédia grega, com coros de ninfas e<br />

pastores que, no palco, comentam a acção e contribuem,<br />

deste modo, para adensar a atmosfera<br />

dramática. Para a Sinfonia instrumental que precede<br />

o Prólogo, os Segréis de Lisboa seleccionaram<br />

a música de Gagliano (sinfonia a tre e ballo a tre),<br />

publicada no Ballo di donne turche (1615).<br />

O poeta Ovídeo (Tenor) domina o Prólogo<br />

evocando a metamorfose da ninfa Dafne, o poder<br />

do Amor sobre os Homens, e o destino de Apolo<br />

que, apesar da sua divindade, foi vítima do Amor e<br />

por isso chora a perda da sua amada Dafne. O<br />

coro de ninfas e pastores invoca o auxílio de<br />

Apolo para os libertar do jugo do terrível dragão<br />

Pitão, que dizimava os rebanhos. Apolo corresponde<br />

ao pedido lutando contra o dragão e vencendo-o.<br />

Na cena seguinte, Vénus (Soprano) surge<br />

acompanhada pelo seu filho, Amor (Meio-<br />

Soprano) e ambos encontram Apolo, que vagueia<br />

no bosque. Apolo escarnece de Amor lamentando<br />

a falta de precisão na escolha dos alvos a que dirige<br />

os seus dardos. Vénus previne Apolo do perigo<br />

que tal atitude implica e Amor, por sua vez, jura<br />

que só descansará quando vir Apolo sofrer, depois<br />

de o atingir com uma das suas setas. Na terceira<br />

cena, a ninfa da caça Dafne (Soprano) encontra-se<br />

com Apolo que se sente imediatamente atraído<br />

pela sua beleza. Dafne recusa, porém, a corte de<br />

Apolo, invocando uma lei inviolável que a proíbe<br />

de ter um deus como companheiro. Ante o desgosto<br />

amoroso de Apolo, Amor exalta a sua alegria.<br />

Vénus convida o filho a regressar com ela à companhia<br />

dos deuses. Com o intuito de se afastar<br />

definitivamente de Apolo, Dafne cumpre o seu<br />

destino, transformando-se num loureiro. As ninfas<br />

e os pastores ficam a par do sucedido através de<br />

Tirsi (Contralto), o mensageiro do triste evento.<br />

Apolo encerra a fábula, juntando-se às ninfas e<br />

pastores para exprimir a sua dor pelo desaparecimento<br />

da sua amada Dafne.<br />

[ 57 ] Li sboa, 6 a 1 4 Outub ro MCMXCVIII.


Testo<br />

Tancredi, che Clorinda un uomo stima,<br />

vuol nel’armi provarla al paragone.<br />

Va girando colei l’alpestre cima<br />

verso altra porta, ove<br />

d’entrar dispone.<br />

Segue egli impetuoso; onde, assai prima<br />

che giunga, guisa avvien che<br />

d’armi suone,<br />

ch’ella si volge, e grida:<br />

Clorinda<br />

O tu, che porte, che corri si?<br />

Testo<br />

Risponde:<br />

Tancredi<br />

E guerra, e morte!<br />

Clorinda<br />

Guerra e morte avrai,<br />

Testo<br />

Disse;<br />

CLAUDIO MONTEVERDI<br />

Il Combattimento di<br />

Tancredi e Clorinda<br />

Clorinda<br />

Io non rifiuto dàrlati, se la cerchi - e ferma attende.<br />

Testo<br />

Non vuol Tancredi, che<br />

pedon veduto<br />

ha il suo nemico, usar cavallo,<br />

e scende.<br />

E impugna l’una e l’altro il ferro acuto,<br />

ed aguzza l’orgoglio, e l’ire accende;<br />

e vansi incontro a passi<br />

tardi e lenti<br />

che duo tori gelosi e d’ira ardenti.<br />

Notte, che nel profondo oscuro seno<br />

chiudesti e ne l’oblio fatto si<br />

grande,<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 58 ]<br />

Narrador<br />

Tancredi, que julga que Clorinda é um homem,<br />

quer pô-la à prova como guerreira.<br />

Ela contorna o monte íngreme<br />

em direcção ao outro portão, por onde espera<br />

entrar.<br />

Ele segue-a impetuosamente, de tal modo<br />

que, ainda antes de a alcançar, o som da sua<br />

armadura<br />

fá-la virar-se e exclamar:<br />

Clorinda<br />

Que te tráz com tanta pressa?<br />

Narrador<br />

Ele responde:<br />

Tancredi<br />

Guerra e morte!<br />

Clorinda<br />

Pois terás guerra e morte,<br />

Narrador<br />

diz ela;<br />

Clorinda<br />

Não te recusarei o que tanto procuras e esperas.<br />

Narrador<br />

Tancredi, que tinha visto que o seu adversário<br />

e s t a v a a pé,<br />

não quer aproveitar-se dessa vantagem e<br />

desmonta.<br />

Ambos empunham espadas afiadas,<br />

como o orgulho acerado e ira acesa;<br />

avançam um para o outro com passos<br />

lentos e pesados,<br />

como dois touros ciumentos fervendo de raiva.<br />

Noite, que no seu seio de escuridão profunda<br />

e n c e rraste no esquecimento um acto tão<br />

grandioso,


degne d’un chiaro sol, degne d’un pieno teatro,<br />

opre sarìan sì memorande.<br />

Piacciati ch’io ne ‘l tragga, e ‘n bel sereno<br />

a le future età lo spieghi e mande.<br />

Viva la fama loro; et tra<br />

lor gloria<br />

splenda del fosco tuo l’alta memoria.<br />

Non schivar, non parar,<br />

non pur ritrarsi;<br />

voglion costor, né qui destrezza ha parte.<br />

Non dànno i colpi or finti, or pieni<br />

or scarsi;<br />

toglie l’ombra e’l furor l’uso de l’arte.<br />

Odi le spade<br />

orribilmente utarsi<br />

a mezzo il ferro; il piè d’orma non parte:<br />

sempre è il piè fermo, e la man<br />

sempre in moto;<br />

né scende taglio in van, né<br />

punta a vòto.<br />

L’onta irrita lo sdegno a la vendetta,<br />

e la vendetta poi l’onta rinova;<br />

onde sempre al ferir, sempre a la fretta,<br />

stimol nuovo s’aggiunge e piaga nova.<br />

D’or in or più si mesce, e<br />

più ristretta<br />

si fa la pugna: e spada oprar non giova;<br />

dansi con pomi, e, infelloniti<br />

e crudi,<br />

cozzan con gli elmi e con gli scudi.<br />

Tre volte il cavalier la donna stringe<br />

con le robuste braccia; ed altrettante poi<br />

da quei nodi tenaci ella scinge,<br />

nodi di fier nemico, e non<br />

d’amante.<br />

Tornano al ferro,<br />

e l’uno e l’altro il tinge.<br />

Con molte piaghe: e stanco ed anelante<br />

e questi e quegli al fin pur ritira,<br />

e dopo lungo faticar respira.<br />

L’un l’altro guarda, e del suo corpo essangue<br />

su ‘l pomo de la spada appoggia il peso.<br />

Già de l’ultima stella il raggio langue<br />

al primo albor ch’è in oriente acceso.<br />

Vede Tancredi<br />

in maggior copia il sangue<br />

del suo nemico, e sé non tanto offeso.<br />

Ne gode e superbisce. Oh nostra<br />

folle<br />

mente, ch’ogn’aura di fortuna estolle!<br />

Misero, di che godi? oh quanto mesti<br />

fiano e trionfi, ed infelice il vanto!<br />

digno do claro sol, digno de um teatro cheio,<br />

um feito que ficará memorável,<br />

permite-me que aqui o traga à luz do dia,<br />

que o exponha e o ofereça às épocas futuras.<br />

Que a sua fama viva, e que juntamente com a<br />

sua glória<br />

brilhe também a memória das suas trevas.<br />

Eles não se esquivam, não aparam os golpes nem<br />

pensam sequer em retirar-se;<br />

aqui a destreza não tem qualquer papel.<br />

Não desferem golpes ora simulados, ora pesados,<br />

ora leves;<br />

a escuridão e a raiva impedem o uso da arte.<br />

Escutai as espadas, a entrechocarem-se<br />

horrorosamente<br />

a meio das lâminas; os pés não se movem,<br />

firmes, mas as mãos estão<br />

em contínuo movimento;<br />

não há golpe que se abata em vão, não há<br />

estocada que encontre o vácuo.<br />

O rancor incita o desdém à vingança,<br />

e depois a vingança renova o rancor.<br />

Por isso, ao ferir sempre, sempre apressadamente,<br />

um novo estímulo, uma nova ferida, se junta.<br />

Agora lutam mais duramente e combatem tão<br />

perto um do outro<br />

que as espadas de nada lhes servem;<br />

usam os punhos das espadas, violenta e<br />

maldosamente,<br />

e chocam com os elmos e os escudos.<br />

Por três vezes o cavaleiro estreita a mulher<br />

nos seus braços poderosos, e outras tantas vezes<br />

ela se liberta desse abraço,<br />

que é o de um bravo inimigo e não o<br />

de um amante.<br />

Retomam as espadas e ambos se cobrem,<br />

um ao outro, de sangue.<br />

exaustos e ofegantes,<br />

recuam por fim<br />

e após o combate longo e duro respiram.<br />

Olham-se entre si, apoiando os corpos exaustos<br />

nos punhos das espadas.<br />

Já a luz da última estrela se vai extinguindo<br />

com o nascer da aurora a oriente.<br />

Tancredi vê que o sangue do seu inimigo escorreu<br />

em maior quantidade<br />

e que ele próprio não está tão ferido,<br />

o que o alegra e o orgulha. Oh, nosso louco<br />

espírito<br />

que se entusiasma com qualquer sopro de fortuna!<br />

Miserável, de que te alegras? Oh! Sejam as vitórias<br />

sempre tão tristes e o seu elogio tão infeliz!<br />

[ 59 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


Gli occhi tuoi pagheran (se in vita resti)<br />

di quel sangue ogni stilla un mar di pianto.<br />

Cosi tacendo e rimirando, questi<br />

sanguinosi guerrier cessaro<br />

alquanto.<br />

Ruppe il silenzio al fin Tancredi e disse,<br />

perchè suo nome a lui l’altro scoprisse:<br />

Tancredi<br />

Nostra sventura è ben che qui s’impieghi<br />

tanto valor, dove silenzio il copra.<br />

Ma, poi che sorte rea vien che ci neghi<br />

e lode e testimon degno de l’opra,<br />

pregoti (se fra l’arme han loco i preghi)<br />

che ‘l tuo nome e ‘l stato a me tu scopra,<br />

acciò ch’io sappia, o vinto o vincitore,<br />

chi la mia morte o la vittoria onore.<br />

Testo<br />

Risponde la feroce:<br />

Clorinda<br />

Indarno chiedi quel c’ ho per uso di<br />

non far palese.<br />

Ma chiunque io mi sia, tu inanzi vedi<br />

un di quei due che la gran torre accese.<br />

Testo<br />

Arse di sdegno a quel parlar Tancredi e:<br />

Tancredi<br />

In mal punto il dicesti;<br />

il tuo dir e ‘l tacer di par m’alletta,<br />

barbaro discortese, a la vendetta.<br />

Testo<br />

Torna l’ira ne’ cori, e li transporta,<br />

benché deboli, in guerra. Ah fera pugna!<br />

U’l’arte in bando, u’ già la forza è morta,<br />

ove, in vece, d’entrambi il furor pugna!<br />

Oh che sanguigna e spaziosa porta<br />

fa l’una e l’altra spada, ovunque giugna,<br />

ne l’arme e ne le carni! e se la vita<br />

non esce, sdegno tienla al petto unita.<br />

Ma ecco ommai l’ora fatale è giunta,<br />

che ‘l viver di Clorinda al suo fin deve.<br />

Spinge egli il ferro nel bel sen di punta,<br />

che vi s’immerge, e’ sangue<br />

avido beve;<br />

e la veste, che d’or vago trapunta<br />

XIX Jo rnadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 60 ]<br />

Os teus olhos derramarão (se sobreviveres)<br />

um mar de lágrimas por cada gota deste sangue.<br />

Assim, silenciosos e entreolhando-se,<br />

os sangrentos guerreiros permaneceram por<br />

momentos.<br />

Por fim, Tancredi rompeu o silêncio e disse,<br />

para que cada um pudesse saber o nome do outro:<br />

Tancredi<br />

Dura é a nossa sorte, que tanta bravura<br />

mostramos encobertos pelo silêncio.<br />

Mas já que a má sorte nos nega a ambos<br />

o testemunho e o elogio dos nossos feitos,<br />

peço-te, se tal é permitido numa batalha,<br />

que me reveles o teu nome e a tua condição,<br />

para que saiba, vencedor ou vencido,<br />

quem assim honrou a minha vida ou a minha<br />

morte.<br />

Narrador<br />

Ela respondeu orgulhosamente:<br />

Clorinda<br />

Em vão procuras saber o que por hábito<br />

não revelo.<br />

Mas, quem quer que eu seja, tens perante ti<br />

um dos responsáveis pelo fogo da grande torre.<br />

Narrador<br />

Ardendo de indignação perante esta resposta,<br />

Tancredi exclamou:<br />

Tancredi<br />

Falaste incorrectamente; as tuas palavras,<br />

tanto como o teu silêncio, me obrigam<br />

– rude descortesia – à vingança!.<br />

Narrador<br />

A raiva regressa aos seus corações e leva-os,<br />

embora fracos, para a guerra, ao combate heróico!<br />

A arte de esgrima desapareceu, a força desfaleceu,<br />

e é a raiva que em vez delas combate.<br />

Oh, que feridas sangrentas e abertas<br />

causam as espadas onde quer que rasguem<br />

as armaduras e a carne, e se a vida se não esvai<br />

é porque o desdém a mantém presa ao coração.<br />

Mas eis que chegou a hora fatal<br />

em que deve terminar a vida de Clorinda.<br />

Ele atravessa-lhe o peito com a espada,<br />

que se afunda sedenta de um sangue que cobre,<br />

como um rio quente,<br />

a veste bordada a ouro que se lhe cola ao peito.


Le mammelle stringea tenera e leve,<br />

l’empie d’un caldo fiume. Ella già sente<br />

morirsi, e ‘l piè le manca egro e languente.<br />

Segue egli la vittoria, e la trafitta<br />

vergine minacciando incalza e preme.<br />

Ella, mentre cadea, la voce afflitta<br />

movendo, disse le parole estreme;<br />

parole ch’a lei nuovo un spirto ditta,<br />

Spirto di fé, di carità, di speme;<br />

virtù ch’or Dio le infonde,<br />

e se rubella<br />

in vita fu, la vuole in morte ancella.<br />

Clorinda<br />

Amico hai vinto: io ti perdon… perdona<br />

tu ancora, al corpo no, che nulla pave,<br />

a l’alma si; deh! per lei prega, e dona<br />

battesmo a me ch’ogni mia colpa lave.<br />

Testo<br />

In queste voci languide risuona<br />

un non so che di flebile e soave<br />

ch’al cor gli scende, ed ogni sdegno ammorza<br />

e gli occhi a lagrimar gli invoglia e sforza.<br />

Poco quindi lontan nel sen del<br />

monte,<br />

scaturìa mormorando un picciol rio.<br />

Egli v’accorse, e l’elmo empié nel fonte,<br />

e tornò mesto al<br />

grande ufficio e pio.<br />

Tremar senti la man, mentre<br />

la fronte<br />

non conosciuta ancor, sciolse<br />

e scoprio.<br />

La vide, la connobbe; e restò senza<br />

e voce e moto. Ahi vista! ahi conoscenza!<br />

Non morì già;<br />

ché sue virtuti accolse<br />

tutte in quel punto, e in guardia al cor le mise,<br />

e premendo il suo affano,<br />

a dar si volse<br />

vita con l’acqua a chi col ferro uccise.<br />

Mentre egli il suon de’ sacri detti<br />

sciolse,<br />

colei di gioia trasmutossi, e rise;<br />

e in atto di morir lieto e vivace,<br />

dir parea:<br />

Clorinda<br />

S’apre il ciel; io vado in pace.<br />

Ela sente-se moribunda,<br />

os pés falham-lhe, fracos e exaustos.<br />

Ele acompanha a vitória<br />

e aproxima-se ameaçadoramente da donzela ferida.<br />

Enquanto cai, ela profere com voz aflita<br />

as suas últimas palavras, que um novo espírito lhe<br />

revelou.<br />

Espírito de fé, de caridade, de esperança,<br />

uma virtude que Deus lhe infundiu,<br />

E embora ela tenha sido durante a vida uma<br />

rebelde<br />

Ele quere-a ao seu serviço na morte.<br />

Clorinda<br />

Amigo, venceste: perdoo-te! Perdoa também<br />

tu, não ao corpo, que nada teme,<br />

mas sim à alma. Oh, reza por ela, e dá-me<br />

o baptismo que leva todos os pecados.<br />

Narrador<br />

Nestas palavras lentas<br />

soou qualquer coisa de tão dolente e doce<br />

que no coração dele se extinguiu todo o<br />

desdém e as lágrimas lhe vieram aos olhos.<br />

A pouca distância dali, na encosta de uma<br />

elevação,<br />

corria murmurando um pequeno riacho.<br />

Correu para ele e encheu o elmo na nascente,<br />

voltando tristemente para a sua<br />

grandiosa e solene missão.<br />

Sentiu as mãos a tremerem-lhe e libertou aquele<br />

rosto<br />

ainda desconhecido. Descobriu-o, olhou-o e<br />

reconheceu-o.<br />

Ficou silencioso e quedo.<br />

Ai, ver! Ai saber!<br />

Não morreu naquele momento porque reuniu<br />

todas as suas virtudes,<br />

confiando-as à guarda do coração<br />

e amordaçando a sua dor entregou-se<br />

a dar vida pela água àquela que matara<br />

pela espada.<br />

À medida que o som das palavras sagradas a<br />

envolvia,<br />

a alegria transformou-a e ela riu-se;<br />

e ao morrer feliz e alegre,<br />

parecia dizer:<br />

Clorinda<br />

O Céu abre-se, eu vou em paz.<br />

Tradução de Rui Vieira Nery<br />

[ 61 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


La Dafne<br />

MARCO DA GAGLIANO<br />

Prologo<br />

Un paesaggio greco ai piedi dell’Olimpo. Il poeta<br />

Ovidio parla nel suo prologo del dio Apollo che<br />

piange la metamorfosi della sua amata.<br />

Ovidio<br />

Da’ fortunati campi, ove immortali<br />

godonsi a l’ombra de’ frondosi mirti<br />

i graditi dal Ciel felici spirti,<br />

mostromi in questa notte a voi, mortali.<br />

Quel mi son io, che su la dotta lira<br />

cantai le fiamme de’ celesti<br />

amanti,<br />

e i trasformati lor vari sembianti<br />

soave sì, ch’il mondo ancor m’ammira.<br />

Indi l’arte insegnai come si deste<br />

in un gelato sen fiamma d’amore,<br />

e come in libertà ritorni un core<br />

cui son d’amor le fiamme aspre emoleste.<br />

Ma quel par, che tra l’ombra, il ciel rischiari<br />

nuova luce, e splendor di rai celesti?<br />

Qual Mestà vegg’io? Son forse questi<br />

gl’eccelsi Augusti miei felici, e chiari.<br />

De gran sembianti a lo splendor altero<br />

Vicentio io ben conosco, e Leonora;<br />

incliti Eroi, ch’ogni bell’alma adora<br />

e del Mincio, e del Arno honor primiero.<br />

Coppia Real, ch’alto destino scelse<br />

per serenar, per far beato il mondo,<br />

al cui senno e valor d’Atlante il pondo<br />

farà soma non grave, anime eccelse.<br />

Seguendo di giovar l’antico stile,<br />

con chiaro esempio a dimostrarvi piglio,<br />

quanto sia, Donne e Cavalier, periglio<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 62 ]<br />

Prologo 1<br />

Uma paisagem grega no sopé do Olimpo. No seu<br />

prólogo, o poeta Ovídio fala do deus Apolo que<br />

chora a metamorfose da sua amada.<br />

Ovídio<br />

Dos elísios campos, onde os benquistos do Céu<br />

gozam dos espíritos felizes e imortais,<br />

à sombra dos frondosos mirtos,<br />

a vós me mostro esta noite, ó mortais.<br />

Eu sou aquele que com sábia lira<br />

tão suavemente cantei o ardor dos celestes<br />

amantes<br />

e as várias transformações dos seus semblantes,<br />

que o mundo ainda me admira.<br />

Então ensinei a arte de despertar<br />

num gélido peito a chama do amor,<br />

e como devolver a um coração a liberdade<br />

para quem a chama do amor era moléstia.<br />

Mas que esplendor de raios celestes,<br />

que nova luz vencendo a sombra o céu ilumina?<br />

Que Majestades vejo? Serão estes<br />

os meus felizes, excelsos, preclaros Augustos<br />

Soberanos?<br />

Do nobre semblante e do esplendor altivo,<br />

Vicentio eu bem conheço, e Leonora;<br />

ínclitos Heróis, que toda a grande alma adora,<br />

do Mincio e do Arno honra primeira.<br />

Casal Real, que alto destino escolheu<br />

para serenar, para fazer feliz o mundo,<br />

que assim, à força e ao valor de Atlas,<br />

pouco pedirá, almas excelsas.<br />

Mantendo-me fiel ao antigo estilo,<br />

com um claro exemplo vos quero demonstrar<br />

que é, Senhoras e Senhores, um perigo


la potenza d’Amor recarsi a vile.<br />

Vedrete lagrimar quel Dio, ch’in Cielo<br />

reca in bel carro d’or la luce e ‘l giorno,<br />

e de l’amata Ninfa il lume adorno<br />

adorar dentro al trasformato stelo.<br />

Scena Prima<br />

Le ninfe e i pastori pregano gli dei di liberarli dal terribile<br />

mostro, che distrugge le loro greggi e<br />

avvelena i loro campi e i loro prati. Apollo appare<br />

ed uccide il drago col suo arco invencibile.<br />

Pastore del Coro (1)<br />

Tra queste ombre segrete<br />

s’inselva e si nasconde<br />

l’orrida belva: cauti i piè muovete,<br />

Ninfe e Pastori; ah, non scotete fronde.<br />

Altro Pastore<br />

Dunque senza timor, senza spavento,<br />

pe’ nostri dolci campi<br />

non guiderem mai più gregge od armento?<br />

Ninfa del Coro (1)<br />

E quando mai per queste piagge e quelle<br />

fronda corrêmo o fiore,<br />

misere verginelle,<br />

che di terror non ci si agghiacci ‘l core?<br />

Tirsi<br />

Giove immortal, che tra baleni e lampi<br />

scoti la terra e ‘l Cielo,<br />

màndane fiamma o telo<br />

che da mostro sì rio n’affidi e scampi.<br />

Pastore del Coro (III)<br />

Mira dal Ciel, deh mira:<br />

nudi di frondi omai questi arboscelli,<br />

pallide l’erbe e torbidi i ruscelli;<br />

mira dal Ciel, deh mira:<br />

a força do Amor menosprezar.<br />

Vereis chorar aquele Deus que pelo Céu<br />

leva num belo carro dourado a luz e o dia,<br />

e da amada ninfa o brilho cintilante<br />

adorar dentro da planta transformada.<br />

Primeira Cena<br />

As ninfas e os pastores suplicam aos deuses que<br />

os liberte do terrível monstro que dizima os seus<br />

rebanhos e envenena os seus campos e prados.<br />

Apolo aparece e mata o dragão com o seu arco<br />

invencível.<br />

Pastor do Coro (I)<br />

Por estas sombras secretas<br />

rasteja e se esconde<br />

a horrível fera: movei-vos com cautela,<br />

Ninfas e Pastores; ah, não agiteis a ramagem.<br />

Outro Pastor<br />

Então, sem temor, sem medo,<br />

pelos nossos doces pastos<br />

não mais conduziremos o gado e os rebanhos?<br />

Ninfa do Coro (I)<br />

E quando poderemos, nestas encostas,<br />

voltar a colher folhas e flores,<br />

pobres virgens,<br />

sem que se nos gele de terror o coração?<br />

Tirsi<br />

Júpiter imortal, que por entre raios e trovões<br />

fazes tremer a terra e o Céu,<br />

manda um relâmpago flamejante<br />

que de monstro tão terrível nos proteja.<br />

Pastor do Coro (III)<br />

Vê, lá do Céu, oh vê:<br />

despojados de folhas estão agora estes arbustos,<br />

pálidas as ervas e turvos os riachos;<br />

vê, lá do Céu, oh vê:<br />

[ 63 ] Lisbo a, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


tra lagrime e lamenti<br />

tender le palme al Cielo<br />

sconsolati Pastor, Ninfe innocenti.<br />

Pastore del Coro (1)<br />

Se lassù tra gli aurei chiostri<br />

puote un cor trovar mercè,<br />

odi il pianto e i pregui nostri,<br />

o del Ciel Monarca e Re.<br />

Coro<br />

Odi il pianto, e preghi nostri,<br />

o del Ciel Monarca e Re.<br />

Due Pastori<br />

Se a ferir la turba altera<br />

che sovr’Óssa Olimpo alzò,<br />

d’atro foco ira severa<br />

tra le Nubi il Cielo armò.<br />

Coro<br />

Odi il pianto, e preghi nostri,<br />

o del Ciel Monarca e Re.<br />

Due Ninfe<br />

De la destra onnipotente<br />

non vil pregio ancor sarà<br />

sterminar crudo serpente<br />

che struggendo il mondo va.<br />

Coro<br />

Odi il pianto, e preghi nostri,<br />

o del Ciel Monarca e Re.<br />

Pastore del Coro (III)<br />

Pera, pera il rio veleno,<br />

non attoschi il mondo più;<br />

verde il prato e ‘l Ciel sereno<br />

torni omai, torni qual fu.<br />

Coro<br />

Odi il pianto, e preghi nostri,<br />

o del Ciel Monarca e Re.<br />

Altro Pastore (II)<br />

Ma dove oggi trarrem tranquilla un’ora<br />

senza temer l’abominevol tosco?<br />

Pastore del Coro (1)<br />

Ebra di sangue in questo oscuro bosco<br />

giacea pur dinanzi la terribil fera.<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 64 ]<br />

entre lágrimas e lamentos<br />

estendem as mãos para o Céu<br />

desolados Pastores, Ninfas inocentes.<br />

Pastor do Coro (I)<br />

Se lá no alto, nos áureos claustros,<br />

pode um coração encontrar piedade,<br />

ouve o pranto e as nossas preces,<br />

ó Rei e Monarca do Céu.<br />

Coro<br />

Escuta o pranto e as nossas preces,<br />

ó Rei e Monarca do Céu.<br />

Dois Pastores<br />

Se para punir a turba altiva 2<br />

que usou o Ossa para escalar o Olimpo,<br />

o Céu entre as nuvens armou<br />

a sua impiedosa ira de um fogo funesto...<br />

Coro<br />

Ouve o pranto e as nossas preces,<br />

ó Rei e Monarca do Céu.<br />

Duas Ninfas<br />

Menor mérito não terá<br />

se com a destra omnipotente<br />

exterminar a cruel serpente<br />

que anda a afligir o mundo.<br />

Coro<br />

Ouve o pranto e as nossas preces,<br />

ó Rei e Monarca do Céu.<br />

Pastor do Coro (III)<br />

Morra, morra esse terrível veneno,<br />

e não empeste mais o mundo;<br />

verdes os prados e sereno o Céu<br />

voltem agora, voltem a ser como foram.<br />

Coro<br />

Ouve o pranto e as nossas preces,<br />

ó Rei e Monarca do Céu.<br />

Outro Pastor (II)<br />

Mas onde passaremos agora uma hora tranquila<br />

sem temer a abominável peste?<br />

Pastor do Coro (I)<br />

Ébria de sangue, neste obscuro bosque,<br />

rastejava há pouco a terrível fera.


Altro Pastore<br />

Dunque più non attosca<br />

nostre belle campagne? altrove è gita?<br />

Pastore del Coro (1)<br />

Farà ritorno più per questi poggi?<br />

Altro Pastore<br />

Ohimè! chi n’assecura<br />

s’oggi tornar pur deve il mostro rio?<br />

Tirsi<br />

Che sei tu, che n’affidi e ne console?<br />

Pastore del Coro (1)<br />

Il Sol tu sei? tu sei di Delo il Dio?<br />

Hai l’arco teco per ferirlo, Apollo?<br />

Tirsi<br />

S’hai l’arco tuo, saetta infin che mora<br />

questo mostro crudel, che ne divora.<br />

Coro<br />

Ohimè che vegg’io? O Divo, O Nume eterno,<br />

ecco l’orribil angue:<br />

spenga forza del Ciel mostro d’inferno.<br />

O benedeto stral! mirate il sangue!<br />

O glorioso arciero!<br />

Ah, mostro fero, ancor non cadi esangue?<br />

Arma di nuovo stral l’arco possente.<br />

Vola, vola pungente;<br />

spezza l’orrido tergo,<br />

giungilo al cor dove ha la vita albergo.<br />

Apollo<br />

Pur giacque estinto al fine<br />

in su ‘l terren sanguineo<br />

da l’invitt’arco mio l’angue maligno.<br />

Securi itene al bosco,<br />

Ninfe e Pastori, ite securi al prato:<br />

non più di fiamma e tosco<br />

infetta ‘l puro Ciel l’orribil fiato.<br />

Tornin le belle rose<br />

ne le guancie amorose;<br />

torni tranquillo il cor; sereno ‘l volto:<br />

io l’alma e ‘l fiato al crudo serpe ho tolto.<br />

Outro Pastor<br />

Então já não empesta<br />

os nossos belos campos? Mudou de paragens?<br />

Pastor do Coro (I)<br />

Algum dia voltará a estas colinas?<br />

Outro Pastor<br />

Ah! Quem nos garante<br />

que não volte hoje o terrível monstro?<br />

Tirsi<br />

Quem és tu, que nos consolas e confortas?<br />

Pastor do Coro (I)<br />

Tu és o Sol? És tu o Deus de Delos?<br />

Trazes contigo o arco para o ferir, Apolo?<br />

Tirsi<br />

Se trazes o arco, atira até que morra<br />

este monstro cruel que nos devora.<br />

Coro<br />

Ah! Que vejo eu? Ó Divindade, ó Deus eterno,<br />

eis a horrível serpente:<br />

que a força do Céu aniquile o monstro do inferno.<br />

Ó bendita flecha! Vejam o sangue!<br />

Ó glorioso archeiro!<br />

Ah, monstro feroz, não tombaste ainda exangue?<br />

Arma de nova seta o teu arco potente.<br />

Voa, voa pungente;<br />

trespassa o horrível dorso,<br />

atinge-o no coração, onde se abriga a vida.<br />

Apolo<br />

Finalmente jaz, extinto,<br />

sobre chão ensanguentado,<br />

pelo meu invicto arco a serpente maligna.<br />

Ide sem medo ao bosque,<br />

Ninfas e Pastores, ide sem medo ao prado:<br />

de veneno e fogo já não infecta mais<br />

o puro Céu aquele horrível bafo.<br />

Volte o belo rubor<br />

às faces graciosas;<br />

Volte a ser tranquilo o coração; sereno o rosto:<br />

Eu a alma e o bafo à cruel serpente já tirei.<br />

[ 65 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


Coro<br />

Almo Dio, che ‘l carro ardente<br />

per lo ciel volgendo intorno<br />

vesti ‘l dì d’un aureo manto,<br />

se tra l’ombra orrida algente<br />

splende il Ciel di lume adorno,<br />

pur tua la gloria e ‘l vanto.<br />

Se germoglian frondi e fiori,<br />

selve e prati, e rinovella<br />

l’ampia terra il suo bel manto,<br />

se de’ suoi dolci tesori<br />

ogni pianta si fa bella,<br />

pur tua la gloria e ‘l vanto.<br />

Per te vive e per te gode<br />

quanto scerne occhio mortale<br />

o Rettor del carro eterno:<br />

Ma si taccia ogn’altra lode;<br />

Sol de l’arco e de lo strale<br />

Voli il grido al Ciel superno.<br />

Nobil vanto! il fier dragone<br />

di velen, di fiamme armato<br />

su ‘l terren versat’ha l’alma:<br />

per trecciar fregi e corone<br />

al bel crin di raggi ornato<br />

qual fia degno edera o palma?<br />

Scena Seconda<br />

Apollo incontra Venere con Amore, il suo figlio cieco. Questi<br />

decide che la sua prossima vittima sarà Apollo, che lo deride, e<br />

di non riposare prima di aver colpito con la sua freccia anche<br />

il cuore di lui.<br />

Amore<br />

Che tu vadia cercando o giglio o rosa<br />

per infiorarti i crini,<br />

non ti vo’ creder, no, madre vezzosa.<br />

Venere<br />

Che cerco dunque, o figlio?<br />

Amore<br />

Rosa non già, né giglio:<br />

cerchi d’Adone, o d’altro vie più bello<br />

leggiadro pastorello.<br />

Venere<br />

Ah tristo, tristo! Ecco ‘l signor di Delo:<br />

pe’ boschi oggi se ‘n van gli Dèi del Cielo.<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 66 ]<br />

Coro<br />

Deus Supremo, que o carro ardente<br />

à volta do Céu levando<br />

vestes o dia de um áureo manto,<br />

se, rompendo a sombra hórrida e algente,<br />

brilha o Céu de esplêndida luz,<br />

são teus o mérito e a glória.<br />

Se rebentam folhas e flores<br />

e selvas e prados, e renova<br />

a vasta terra o seu belo manto;<br />

se dos seus doces tesouros<br />

cada planta se embeleza,<br />

são teus o mérito e a glória.<br />

Por ti vive e por ti goza<br />

quanto distingua olho mortal,<br />

ó Senhor do carro eterno:<br />

que eu cale outros louvores;<br />

só do arco e do dardo<br />

chegue o grito ao Céu superno.<br />

Nobre mérito! O feroz dragão<br />

de veneno e chamas armado<br />

sobre o chão derramou a alma:<br />

para cingir de festões e coroas<br />

a bela cabeleira dos raios dourados<br />

qual é mais digna: a hera ou a palma?<br />

Segunda Cena<br />

Apolo encontra Vénus com Cupido, o seu filho<br />

cego. Este decide que a sua próxima vítima será<br />

Apolo, que troça dele, e que não descansará<br />

enquanto não tiver atingido também aquele<br />

coração com a sua flecha.<br />

Cupido<br />

Que tu procures lírios ou rosas<br />

para enfeitar os teus cabelos,<br />

não acredito, não, mãe vaidosa.<br />

Vénus<br />

Que procuro então, ó filho?<br />

Cupido<br />

Rosas não, nem lírios:<br />

procuras Adónis, ou outro ainda mais belo<br />

e gracioso pastorinho.<br />

Vénus<br />

Ai que mau, que mau! Eis o Senhor de Delos:<br />

pelos bosques hoje se passeiam os Deuses do Céu.


Apollo<br />

Dimmi, possente arciero,<br />

qual fera attendi o qual serpente al varco<br />

c’hai la faretra e l’arco?<br />

Amore<br />

Se da quest’arco mio<br />

non fu Fitone ucciso,<br />

arcier non son peró degno di riso,<br />

e son del Cielo, Apollo, un Nume anch’io.<br />

Apollo<br />

Sollo; ma quando scocchi<br />

l’arco, sbendi tu gli occhi<br />

o ferisci a l’oscuro, arciero esperto?<br />

Amore<br />

S’hai di saper desio<br />

d’un cieco arcier le prove,<br />

chiedilo a Re de l’onde,<br />

chiedilo in Cielo a Giove.<br />

E tra l’ombre profonde<br />

dal Regno orrido oscuro<br />

chiedi, chiedi a Pluton, s’ei fu sicuro!<br />

Apollo<br />

Se in Cielo, in mare, in terra<br />

Amor trionfi in guerra<br />

dove, dove m’ascondo?<br />

Chi novo Ciel m’insegna, o novo mondo?<br />

Amore<br />

So ben, che non paventi<br />

la forza d’un fanciullo,<br />

saettator di mostri e di serpenti;<br />

ma, prendi pur di me giuoco e trastullo!<br />

Apollo<br />

Ah, tu t’adiri a torto:<br />

o mi perdona, Amore,<br />

o, se mi vuoi ferir, risparmia ‘l core.<br />

Venere (mentre parte Apollo)<br />

Vedrai, che grave risco è scherzar seco,<br />

bench’ei sia pargoletto, ignudo e cieco.<br />

Amore<br />

S’in quel superbo core<br />

non fo piaga mortale,<br />

più tuo figlio non son, non sono Amore.<br />

Apolo<br />

Diz-me, poderoso archeiro,<br />

que fera ou que serpente esperas,<br />

que vens de aljava e arco?<br />

Cupido<br />

Se por este meu arco<br />

não foi Pitão abatido,<br />

não sou porém archeiro que mereça o riso,<br />

e também eu, Apolo, sou um Deus do Céu.<br />

Apolo<br />

Sei-o, mas quando apontas<br />

o arco, desvendas os teus olhos<br />

ou atiras às cegas, archeiro exímio?<br />

Cupido<br />

Se quiseres saber<br />

as proezas de um archeiro cego,<br />

pergunta ao Rei das ondas 3 ,<br />

pergunta no Céu a Júpiter.<br />

E nas sombras profundas<br />

do Reino hórrido e obscuro<br />

pergunta, pergunta a Plutão, se ele estava seguro!<br />

Apolo<br />

Se no Céu, no mar, na terra<br />

triunfas, Cupido, na guerra<br />

onde, onde me escondo?<br />

Quem me ensina um novo Céu, um novo mundo?<br />

Cupido<br />

Sei bem que não receias<br />

a força de uma criança,<br />

caçador de monstros e de serpentes;<br />

mas, brinca comigo, faz troça de mim!<br />

Apolo<br />

Ah, fazes mal em te zangar:<br />

ou me perdoas, Cupido,<br />

ou, se me queres ferir, guarda as forças.<br />

Vénus (entretanto sai Apolo)<br />

Verás que arriscado é troçar dele,<br />

ainda que seja um rapazinho, nu e cego.<br />

Cupido<br />

Se naquele soberbo coração<br />

não fizer ferida mortal,<br />

não sou mais teu filho, nem sou Cupido.<br />

[ 67 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outub ro MCMXCVIII.


Venere<br />

Amato pargoletto,<br />

come giust’ira e sdegno<br />

oggi t’infiamma il petto,<br />

sì spero al nostro regno<br />

veder l’altero Dio servo e suggetto.<br />

Amore<br />

Non avrò posa mai, non avrò pace<br />

fin ch’io no’l vegga lagrimar ferito<br />

da quest’arco schernito.<br />

Madre, ben mi dispiace<br />

di lasciarti soletta,<br />

ma toglie assai d’onor tarda vendetta.<br />

Venere<br />

Vanne pur lieto, o figlio;<br />

lieta rimango anch’io,<br />

che troppo è gran periglio<br />

averti irato a canto:<br />

per queste selve intanto<br />

farò dolce soggiorno;<br />

poscia faremo insieme al Ciel ritorno.<br />

Chi da’ lacci d’amor vive disciolto<br />

de la sua libertà goda pur lieto,<br />

superbo no: d’oscura nube involto<br />

stassi per noi del Ciel l’alto decreto;<br />

S’hor non senti d’amor poco né molto,<br />

avrai dimani il cor turbato e ‘nqueto.<br />

E signor proverai crudo e severo<br />

Amor, che dianzi disprezzasti altero.<br />

Coro<br />

Nudo Arcier, che l’arco tendi<br />

che velat’ambe le ciglia,<br />

ammirabil meraviglia!<br />

Mortalmente i cori offendi,<br />

se così t’infiammi e ‘ncendi<br />

verso un Dio, quai saran poi<br />

sovra noi gli sdegni tuoi?<br />

D’un leggiadro giovinetto<br />

già de’ boschi onore e gloria<br />

suona ancor fresca memoria<br />

che m’agghiaccia ‘l cor nel petto,<br />

qual per entro un ruscelletto<br />

sé mirando, arse d’amore,<br />

e tornò piangendo in fiore.<br />

Ogni Ninfa in doglie e ‘n pianti<br />

posto avea per sua bellezza,<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 68 ]<br />

Vénus<br />

Amado rapazinho,<br />

tão justa ira e desdém<br />

hoje te inflama o peito,<br />

que espero ao nosso reino<br />

ver o altivo Deus rendido e submetido.<br />

Cupido<br />

Não terei descanso, não terei paz<br />

enquanto não o vir chorar, ferido<br />

por este arco escarnecido.<br />

Mãe, muito me custa<br />

deixar-te sozinha,<br />

mas diminui muito a honra tarda vingança.<br />

Vénus<br />

Vai descansado, ó filho;<br />

descansada também eu fico,<br />

porque é um grande perigo<br />

ter-te irado por perto:<br />

Nestas selvas, entretanto,<br />

farei doce pausa;<br />

Depois juntos ao Céu faremos o retorno.<br />

Quem dos laços do amor vive solto<br />

da sua liberdade goze, mas feliz,<br />

soberbo não: de obscura nuvem envolto<br />

há para nós do Céu uma lei suprema;<br />

Se agora amor não sentes, nem muito nem pouco,<br />

amanhã terás o coração perturbado e inquieto.<br />

E terás em Cupido, que, altivo, antes desprezaste,<br />

um senhor cruel e severo.<br />

Coro<br />

Desnudo archeiro, que o arco estiras<br />

e velados tens ambos os olhos,<br />

admirável maravilha!<br />

Tu, que mortalmente os corações atinges,<br />

se assim te irritas e enfureces<br />

com um Deus, como não serão<br />

contra nós as tuas fúrias?<br />

De um gracioso jovem 4 ,<br />

antes dos bosques a honra e a glória,<br />

paira ainda uma fresca memória<br />

que no peito me gela o coração,<br />

ele que, vendo num riacho<br />

o seu reflexo, se perdeu de amores,<br />

e chorando foi transformado em flor.<br />

Todas as Ninfas em dor e em pranto<br />

tinha deixado a sua beleza,


ma del cor l’aspra durezza<br />

non piegâr l’afflitte amanti:<br />

quelle voci e quei sembianti<br />

ch’avrian mosso un cor di fera,<br />

schernia pur quell’alma altera.<br />

Una al pianto in abbandono<br />

lagrimando uscì di vita,<br />

che fu poi per gli antri udita<br />

ribombar, nud’ombra e suono:<br />

or qui più non ha perdono,<br />

più non soffre Amor irato<br />

l’impietà del core ingrato.<br />

Punto ‘l sen di piaga acerba<br />

da quell’armi ond’altri ancise,<br />

non pria fine al pianto ei mise<br />

che un bel fior si fe’ sull’erba.<br />

O beltà cruda e superba,<br />

non fia già ch’invan m’insegni<br />

come irato Amor si sdegni.<br />

Scena Terza<br />

Dafne, che si trova a caccia, viene a sapere dai pastori come<br />

Apollo ha ucciso il drago. Apollo appare e tenta inutilmente<br />

di conquistare la bella ninfa. Mentre Dafne fugge nel bosco,<br />

il vendicativo Amor trionfa su Apollo, sua vittima.<br />

Dafne<br />

Per queste piante ombrose<br />

scorgimi, Cintia, tu selvaggio Nume;<br />

dove fuggì la fera, ove s’ascose?<br />

Pastore del Coro (III)<br />

Ecco il pregio, ecco il sol di queste selve,<br />

ecco la bella Dafne<br />

che al suon de l’arco fa tremar le belve.<br />

Altro Pastore (II)<br />

Cacciatrice gentil, che col bel ciglio<br />

splendor raddoppi a questo dì sereno,<br />

spento è il crudo Fiton, mira il terreno<br />

de l’empio sangue ancor caldo e vermiglio.<br />

Dafne<br />

Dolcissima novella! E qual sì forte<br />

avventurosa mano<br />

lasciato ha il mostro rio preda di morte?<br />

Pastore del Coro (1)<br />

Febo, che su ne l’alto<br />

mas a áspera dureza daquele coração<br />

não foi tocada pelas aflitas amantes:<br />

dos seus lamentos e dos seus semblantes,<br />

que teriam comovido um coração de fera,<br />

escarnecia aquela alma altiva.<br />

Uma delas 5 partiu deste mundo<br />

chorando lágrimas de abandono,<br />

e foi depois nas cavernas ouvida<br />

ecoar, privada de sombra e de som:<br />

para ele agora já não há perdão,<br />

mais não tolera Cupido irado<br />

a impiedade daquele coração ingrato.<br />

Atingido pelas mesmas armas<br />

com que outros antes feria,<br />

não teve fim o seu pranto<br />

sem que uma bela flor crescesse na erva.<br />

Ó beleza cruel e soberba,<br />

não seja em vão que alguém me ensine<br />

como é de Cupido irado o desdém.<br />

Terceira Cena<br />

Dafne, que está a caçar, fica a saber pelos pastores<br />

que Apolo matou o dragão. Apolo aparece e tenta<br />

inutilmente conquistar a bela ninfa. Enquanto<br />

Dafne foge para o bosque, o vingativo Cupido<br />

vence Apolo, sua vítima.<br />

Dafne<br />

Por entre estas árvores sombrias<br />

descobre-me, Diana, Deusa do mundo selvagem;<br />

para onde fugiu a fera, onde se esconde?<br />

Pastor do Coro (III)<br />

Eis o dote, eis o sol destas florestas,<br />

eis a bela Dafne<br />

que ao som do seu arco faz tremer as feras.<br />

Outro Pastor (II)<br />

Caçadora gentil, que com os teus belos olhos<br />

redobras de esplendor este dia sereno,<br />

morto foi o cruel Dragão, olha para o chão<br />

do ímpio sangue ainda tingido e quente.<br />

Dafne<br />

Que doce notícia! E qual tão forte<br />

e venturosa mão<br />

fez do malvado monstro presa da morte?<br />

Pastor do Coro (I)<br />

Febo, que lá no alto<br />

[ 69 ] Li sboa, 6 a 1 4 Outub ro MCMXCVIII.


ota la face onde s’aggiorna il mondo,<br />

spènselo alfin dopo un mortale assalto.<br />

Deh, come fu giocondo<br />

mirar quel Divo in un feroce e vago<br />

moversi incontro al formidabil drago!<br />

Or minaccioso a fronte<br />

stàvagli ardito, or sovra il piè leggiero<br />

de l’immenso animal schernia la rabbia<br />

che da l’accese labbia<br />

fremendo invan spargea fiamma e veleno.<br />

Sovra la belva atroce<br />

fermo tenea talor lo sguardo intento,<br />

hor movea tardo e lento,<br />

or rapido, or veloce<br />

pur come avesse ne le piante il vento.<br />

Né mai felice arciero<br />

spinse da l’arco strale<br />

che di piaga mortale<br />

non lasciasse trafitto il mostro fero,<br />

tal che a fuggir si diè tutto tremante:<br />

ma da l’alate piante<br />

del gran saettator fuggissi invano,<br />

ch’ei pur lo giunse; o memorabil palma!<br />

E privo d’alma lo lasciò su ‘l piano.<br />

Dafne<br />

O di celeste Eroe ben degni vanti!<br />

Felicissimo giorno! al suono, a’ balli<br />

tornate omai, Pastor,<br />

tornate a’ canti.<br />

Vie più sicura anch’io per monti e valli<br />

saettando n’andrò le fere erranti.<br />

Coro<br />

Ogni ninfa in doglie e ‘n pianti<br />

posto avea per sua bellezza,<br />

ma del cor l’aspra durezza<br />

non piegâr l’afflitte amanti:<br />

quelle voci e quei sembianti<br />

ch’avrian mosso un cor di fera,<br />

schernia pur quell’alma altera.<br />

Apollo<br />

Deh come lieto in queste piagge io torno,<br />

piagge dilette e care<br />

ove colsi d’amor palme sì chiare!<br />

Ma, deh, che miro! e qual d’un ciglio adorno<br />

spira lume gentil che al cor mi giunge!<br />

XIX Jornadas Gulb en kian de <strong>Música</strong> Antiga [ 70 ]<br />

roda a luz que cada dia renova o mundo,<br />

abateu-o após uma luta mortal.<br />

Ah, que alegria<br />

ver aquele Deus num feroz mas gracioso<br />

movimento ir ao encontro do formidável dragão!<br />

Ora ameaçador, de frente<br />

o atacava ousado, ora com pé ligeiro<br />

do imenso animal escarnecia a raiva<br />

que dos lábios em brasa,<br />

fremindo, em vão lançava chama e veneno.<br />

Sobre a fera atroz<br />

firme mantinha por vezes o olhar atento,<br />

e ora se movia vagaroso e lento,<br />

ora rápido e veloz<br />

como se tivesse nos pés o vento.<br />

Nunca tão feliz um outro archeiro<br />

do seu arco atirou flecha<br />

que de ferida mortal<br />

deixasse trespassado o monstro feroz<br />

e a tremer todo o pusesse em fuga:<br />

mas dos pés alados<br />

do grande atirador fugia em vão,<br />

que ele logo o alcançou; ó memorável feito!<br />

E privado da alma o deixou por terra.<br />

Dafne<br />

Oh, proezas dignas de um celeste Herói!<br />

Felicíssima jornada! À música, à dança<br />

voltai agora, Pastores,<br />

voltai aos cânticos.<br />

Mais segura também eu irei, por montes e vales,<br />

atirando sobre a feras errantes.<br />

Coro 6<br />

Todas as Ninfas em dor e em pranto<br />

tinha deixado a sua beleza,<br />

mas a áspera dureza daquele coração<br />

não foi tocada pelas aflitas amantes:<br />

dos seus lamentos e dos seus semblantes,<br />

que teriam comovido um coração de fera,<br />

escarnecia aquela alma altiva.<br />

Apolo<br />

Ah, como feliz a estas colinas volto,<br />

colinas dilectas e caras<br />

onde colhi do amor tão claras vitórias!<br />

Mas, ah, que vejo! De que olhos tão belos<br />

parte o gentil brilho que o coração me atinge!


Dafne<br />

Certo non molto lunge,<br />

se non m’ingannan l’orme, è damma o<br />

cervo.<br />

Or vedrò se ‘l mio stral va dritto e punge.<br />

Apollo<br />

Ah, ben sent’io se son pungenti i dardi<br />

de’ tuoi soavi sguardi!<br />

Pastore del Coro (III)<br />

Ben a ragion s’apprezza,<br />

se ne sospira un Dio, l’alta bellezza.<br />

Apollo<br />

Dimmi, qual tu ti sei,<br />

o Ninfa o Dèa, chè tale<br />

rassembri a gli occhi miei,<br />

che cerchi armata di faretra e strale?<br />

Dafne<br />

Seguendo io me ne giva,<br />

si come è l’uso mio, fugace fera;<br />

e son donna mortal, non del ciel diva.<br />

Apollo<br />

Se cotal luce splende<br />

in bellezza mortale,<br />

del Ciel più non mi cale.<br />

Dafne<br />

Dove mi volgo? dove<br />

moverò ‘l passo che la fera trove?<br />

Apollo<br />

Senza che dardo avventi o l’arco scocchi<br />

valli cercando o monti,<br />

far nobil preda puoi co’ tuoi begli occhi.<br />

Dafne<br />

Altra preda non bramo, altro diletto<br />

che fere e selve; e son contenta e lieta<br />

se damma errante o fer cignal saetto.<br />

Apollo<br />

Ah, che non sol di fere<br />

saettatrice sei,<br />

ma contro a gli alti Iddei<br />

saette aventi da le luci altere.<br />

Dafne<br />

Del Ciel gli eterni Numi<br />

Dafne<br />

Por certo não muito longe,<br />

se não me enganam as pegadas, anda gamo ou<br />

veado.<br />

Vejamos se o meu dardo vai direito e o atinge.<br />

Apolo<br />

Ah, bem sinto eu como são pungentes os dardos<br />

do teu doce olhar!<br />

Pastor do Coro (III)<br />

Com razão se admira<br />

tal beleza, se por ela um Deus suspira.<br />

Apolo<br />

Diz-me, quem és tu,<br />

Ninfa ou Deusa, que tal<br />

pareces aos meus olhos,<br />

que procuras, armada de aljava e flecha?<br />

Dafne<br />

Perseguindo andava,<br />

como é meu uso, fera fugaz;<br />

e sou ser mortal, não dos céus diva.<br />

Apolo<br />

Se tal luz brilha<br />

em beleza mortal,<br />

do Céu ninguém mais me fale.<br />

Dafne<br />

Para onde ir? Para onde<br />

encaminhar meus passos que a fera encontre?<br />

Apolo<br />

Sem que o dardo desfeches ou o arco armes,<br />

por vales e montes procurando,<br />

nobre presa podes fazer com os teus belos olhos.<br />

Dafne<br />

Por outra presa não anseio, nem outro prazer,<br />

senão feras e selvas; e fico feliz e contente<br />

se gamo errante ou feroz javali caço.<br />

Apolo<br />

Ah, que não só de feras<br />

és caçadora,<br />

também contra os Deuses supremos<br />

desferem setas os teus altivos olhos.<br />

Dafne<br />

Do Céu os eternos Deuses<br />

[ 71 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


umile onoro e colò,<br />

e per le selve solo<br />

pongo su l’arco i dardi:<br />

ma tu per giuoco il mio cammin ritardi.<br />

Apollo<br />

Deh non sdegnar che teco<br />

prenda ne’ boschi anch’io dolce diletto;<br />

anch’io so tender l’arco, anch’io saetto.<br />

E qui pur dianzi insanguinato ha l’erba,<br />

trofeo di questa man, belva superba.<br />

Dafne<br />

Serva di Cintia, altri che l’arco mio<br />

meco non voglio. Inviolabil legge<br />

vuol ch’io recusi per compagno un Dio.<br />

Apollo<br />

Ohimè! non tanta fretta:<br />

aspetta, Ninfa, aspetta.<br />

Tirsi<br />

Oh come ratta fugge! ed è già lunge:<br />

veder vo’ s’ei la giunge.<br />

Amore<br />

Ve’ che ti giunsi al varco:<br />

Oh impara a disprezzar l’etate e l’arco!<br />

Pastore del Coro (III)<br />

Qui Fiton giacque estinto,<br />

trofeo d’Apollo; e qui trafitto il cuore<br />

pianse il gran vincitor, trofeo d’Amore.<br />

Amore<br />

Or su de l’alto Cielo<br />

mirin gli eterni Dei<br />

le glorie e i vanti miei;<br />

e voi quaggiù, mortali,<br />

celebrate il valor de gli aurei strali.<br />

Pastore del Coro (1)<br />

Altri celebri e canti,<br />

trofei del sommo Giove,<br />

le fulminate moli e i rei Giganti:<br />

io canterò d’Amor l’inclite prove.<br />

Coro<br />

Una al pianto in abbandono<br />

lagrimando uscì di vita,<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 72 ]<br />

humilde honro e venero,<br />

e só para as selvas<br />

ponho os dardos no arco:<br />

mas tu divertes-te a atrasar o meu caminho.<br />

Apolo<br />

Ah, não desdenhes que contigo<br />

aprecie também eu o doce prazer dos bosques;<br />

também eu sei esticar o arco, também eu atiro.<br />

E ainda há pouco aqui ensanguentou a erva,<br />

troféu desta mão, uma fera soberba.<br />

Dafne<br />

Serva de Diana, além do meu arco<br />

nada mais quero comigo. Inviolável lei<br />

manda que eu recuse um Deus por companhia.<br />

Apolo<br />

Ah, não! Não tenhas tanta pressa:<br />

espera, Ninfa, espera.<br />

Tirsi<br />

Oh, como veloz foge! E já vai longe:<br />

vou ver se ele a alcança.<br />

Cupido<br />

Vês como te atingi:<br />

Oh, aprende a respeitar a minha idade e o meu<br />

arco!<br />

Pastor do Coro (III)<br />

Aqui jaz Pitão extinto,<br />

troféu de Apolo; e ali, com o coração trespassado<br />

chora o grande vencedor, troféu de Cupido.<br />

Cupido<br />

Que agora do alto Céu<br />

vejam os eternos Deuses<br />

as glórias e os meus feitos;<br />

e vós, cá em baixo, mortais,<br />

exaltai o valor dos áureos dardos.<br />

Pastor do Coro (I)<br />

Outros exaltem e cantem,<br />

os troféus do sumo Júpiter,<br />

os corpos fulminados e os réus Gigantes:<br />

eu cantarei de Cupido as ínclitas proezas.<br />

Coro 7<br />

Uma delas partiu deste mundo<br />

chorando lágrimas de abandono,


che fu poi per gli antri udita<br />

ribombar, nud’ombra e suono:<br />

or qui più non ha perdono,<br />

più non soffre Amor irato<br />

l’impietà del core ingrato.<br />

Punto ‘l sen di piaga acerba<br />

da quell’armi ond’altri ancise,<br />

non pria fine al pianto ei mise<br />

che un bel fior si fe’ sull’erba.<br />

O beltà cruda e superba,<br />

non fia già ch’invan m’insegni<br />

come irato Amor si sdegni.<br />

Scena Quarta<br />

Amor trionfa della sua vittoria e si propone come prossima<br />

vittima la superba Dafne fuggente, che non vuole sentir parlare<br />

d’amore. Venere appare e viene a sapere dal figlio che<br />

ormai anche Apollo è stato colpito dalla sua freccia.<br />

Amore<br />

Qual de’ mortali o de’ celesti a scherno<br />

più recherassi Amore? Ah bella, ah fera,<br />

benchè fasciato gli occhi, io ben ti scerno.<br />

Ridi, ridi pur lieta, anima altera,<br />

vanne fastosa pur, vanne superba<br />

de le lagrime altrui, di tua bellezza.<br />

Ma quest’armi pungenti,<br />

quest’arco e queste piume<br />

rimira, e ti rammenta<br />

che fatto ho suspirar del cielo un Nume.<br />

Venere<br />

Figlio, dolce diletto<br />

del cor, de gli occhi miei,<br />

come sì lieto e baldanzoso sei?<br />

Dillo, bel pargoletto,<br />

dimmelo, Amor, che anch’io<br />

senta le gioie tue dentro’al cor mio.<br />

Amore<br />

Madre, di gemme e d’oro<br />

un bel carro m’appresta;<br />

ponmi su l’aurea testa<br />

nobil fregio d’onor, cerchio frondoso;<br />

vegganmi oggi gli Dei de l’alto cielo<br />

trionfar pomposo.<br />

Quel Dio, ch’intorno gira<br />

il carro luminoso,<br />

vinto da l’arco mio piange e sospira.<br />

e foi depois nas cavernas ouvida<br />

ecoar, privada de sombra e de som:<br />

para ele agora já não há perdão,<br />

mais não tolera Cupido irado<br />

a impiedade daquele coração ingrato.<br />

Atingido pelas mesmas armas<br />

com que outros antes feria,<br />

não teve fim o seu pranto<br />

sem que uma bela flor crescesse na erva.<br />

Ó beleza cruel e soberba,<br />

não seja em vão que alguém me ensine<br />

como é de Cupido irado o desdém.<br />

Quarta Cena<br />

Cupido festeja a sua vitória e propôe-se fazer sua<br />

próxima vítima a soberba Dafne fugitiva, que não<br />

quer ouvir falar de amor. Vénus aparece e fica<br />

saber pelo filho que também Apolo foi atingido<br />

pela sua flecha.<br />

Cupido<br />

Qual dos mortais ou das divindades quererá<br />

ainda escarnecer Cupido? Ah, bela, ah, orgulhosa,<br />

mesmo com os olhos vendados, eu bem te vejo.<br />

Ri, ri contente, alma altiva,<br />

ostenta ainda, insensível<br />

às lágrimas dos outros, a tua beleza.<br />

Mas estas armas pungentes,<br />

este arco e estas plumas 8<br />

contempla, e lembra-te<br />

que um Deus do Céu fiz suspirar.<br />

Vénus<br />

Filho, doce predilecto<br />

do coração, dos olhos meus,<br />

porque tão contente e orgulhoso estás?<br />

Diz-me, bela criança,<br />

diz-me, Cupido; que também eu<br />

sinta as tuas alegrias no meu coração.<br />

Cupido<br />

Mãe, de gemas e de ouro<br />

um belo carro me apresta;<br />

coloca na minha áurea cabeça<br />

nobre festão de honra, coroa frondosa;<br />

vejam-me hoje os Deuses do alto Céu<br />

triunfar com pompa.<br />

Aquele Deus, que à volta leva<br />

o carro luminoso,<br />

vencido pelo meu arco chora e suspira.<br />

[ 73 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCV III.


Venere<br />

Qual degl’Iddei del cielo<br />

de la faretra invitta<br />

non sentì dentr’al cor pungente telo?<br />

Io, che madre ti sono, ahi quanto, ahi quanto<br />

il molle sen traffita,<br />

e ‘n ciel e in terra ho lagrimato e pianto!<br />

Amore<br />

S’hai lagrimato e pianto, hai riso ancora.<br />

Dimmi, piangevi allora<br />

che del Fabro geloso<br />

non potesti schivar l’inganno ascoso?<br />

Venere<br />

Taci, taci, bel figlio;<br />

pur troppo, e tu lo sai,<br />

il mio bel viso allor si fe’ vermiglio:<br />

ma di tornare al Cielo è tempo ormai.<br />

Coro<br />

Non si nasconde in selva<br />

sì dispietata belva,<br />

nè su per l’alto polo<br />

spiega le penne a volo augel solingo,<br />

nè per le piagge ondose,<br />

tra le fere squamose alberga core<br />

che non senta d’amore.<br />

Arder miriam le piante<br />

l’una de l’altra amante,<br />

e gli elementi ancora<br />

bel foco arde e innamora, e’nsieme accorda:<br />

sol contro gli aurei strali<br />

i semplici mortali armano il core<br />

che non senta d’amore.<br />

Questi l’albe e le sere<br />

perde cacciando fere,<br />

e quei, s’al ciel ribomba<br />

di Marte altera tromba, a l’armi corre;<br />

altri la mente vaga<br />

di mortal fasto appaga e ‘ndura il core<br />

che non senta d’amore.<br />

Ma se d’un ciglio adorno<br />

mira le fiamme un giorno,<br />

o, pregio d’un bel volto,<br />

scherzar con l’aure sciolto un capel d’oro,<br />

già vinto ogni altro affetto.<br />

Prova ch’in uman petto non è core<br />

che non senta d’amore.<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 74 ]<br />

Vénus<br />

Qual dos Deuses do Céu<br />

da aljava invicta<br />

não sentiu já no coração pungente flecha?<br />

Eu, que sou tua mãe, ah, quanto, ah quanto,<br />

com o macio peito trespassado,<br />

no Céu e na terra não verti lágrimas e chorei!<br />

Cupido<br />

Se verteste lágrimas e choraste, ainda mais riste.<br />

Diz-me, choravas quando<br />

do Ferreiro 9 ciumento<br />

não conseguiste evitar a armadilha escondida?<br />

Vénus<br />

Cala-te, cala-te, querido filho;<br />

infelizmente, tu bem sabes<br />

como o meu belo rosto então enrubesceu.<br />

Mas agora é tempo de voltar ao Céu.<br />

Coro<br />

Não se esconde na selva<br />

tão insensível fera;<br />

nem no alto Céu<br />

estende as asas para o voo pássaro solitário;<br />

nem nas águas ondulosas,<br />

entre as feras escamosas, se alberga um coração<br />

que não sinta amor.<br />

Vemos plantas arder<br />

umas das outras amantes,<br />

e até os elementos<br />

o belo fogo une, e faz arder e enamorar:<br />

só os simples mortais<br />

armam contra os dardos dourados um coração<br />

que não sinta amor.<br />

Uns, as noites e as madrugadas<br />

perdem caçando feras;<br />

aqueles, se no céu ribomba<br />

de Marte a imperiosa trompa, às armas correm;<br />

outros, a mente concupiscente<br />

de mortal fausto sacia e endurece um coração<br />

que não sinta amor.<br />

Mas se de uns belos olhos<br />

vêem a chama um dia,<br />

ou, dote de um belo rosto,<br />

um louro cabelo solto brincar com a brisa,<br />

vencida já foi qualquer outra atracção.<br />

Prova de que num peito humano não há coração<br />

que não sinta amor.


Scena Quinta<br />

Il messaggero Tirsi annuncia alle ninfe ed ai pastori come<br />

Dafne in fugga, per non essere raggiunta da Apollo, si è<br />

trasformata davanti ai suoi occhi in un albero di alloro.<br />

Insieme deprecano il destino della bella ninfa.<br />

Tirsi<br />

Qual nuova meraviglia<br />

veduto han gli occhi miei?<br />

O sempiterni Dei,<br />

che per lo Ciel volgeste<br />

nostre sorti mortali o triste o liete,<br />

fu castigo o pietate<br />

cangiar l’alma beltate?<br />

Pastore del Coro (III)<br />

Pastor, deh narra a noi<br />

le nove meraviglie,<br />

che visto han gli occhi tuoi.<br />

Tirsi<br />

Non senza trar core<br />

lagrime di dolore<br />

udirete, Pastori,<br />

il destin de la bella cacciatrice<br />

purtroppo miserabile e ‘nfelice.<br />

Pastore del Coro (III)<br />

Di’ pur saggio Pastore,<br />

che non senza dolcezza<br />

lagrima per pietate un gentil core.<br />

Tirsi<br />

Quando la bella Ninfa,<br />

sprezzando i preghi del celeste amante,<br />

vidi che per fuggir movea le piante,<br />

da voi mi tolsi anch’io<br />

l’orme seguendo de l’acceso Dio.<br />

Ella, quasi cervetta<br />

che innanzi a crudo veltro il passo affretta,<br />

fuggia veloce, e spesso<br />

si volgeva a mirar se lungi o presso<br />

avea l’odiato amante;<br />

Ma, fatt’accorda omai<br />

ch’era ogni fuga in vano,<br />

i lagrimosi rai<br />

al ciel rivolse e l’una e l’altra mano,<br />

e ‘n lamentevol suono,<br />

ch’io non udii, ché troppo era lontano,<br />

sciolse la lingua: et ecco in un momento<br />

Quinta Cena<br />

O mensageiro Tirsi anuncia como viu Dafne, em<br />

fuga para não ser alcançada por Apolo, ser transformada<br />

em árvore de loureiro. Todos lamentam<br />

o destino da bela ninfa.<br />

Tirsi<br />

Que novo prodígio<br />

viram os meus olhos?<br />

Ó sempiternos Deuses,<br />

que no Céu decidis<br />

nosso mortal destino, triste ou alegre,<br />

foi por castigo ou piedade<br />

que transformastes a sublime beldade?<br />

Pastor do Coro (III)<br />

Pastor, ah, conta-nos<br />

os novos prodígios,<br />

que viram os teus olhos.<br />

Tirsi<br />

Não sem que ao coração<br />

assomem lágrimas de dor<br />

ouvireis, Pastores,<br />

o destino da bela caçadora<br />

infelizmente lastimável e infeliz.<br />

Pastor do Coro (III)<br />

Conta, mesmo assim, sábio Pastor,<br />

que não é sem sofrimento<br />

que chora por piedade um coração sensível.<br />

Tirsi<br />

Quando vi a bela Ninfa,<br />

desprezando as cortesias do celeste amante,<br />

empreender a fuga,<br />

de vós também eu me separei<br />

seguindo a sombra do inflamado Deus.<br />

Ela, qual corça,<br />

que fugindo a cruel galgo o passo acelera,<br />

fugia veloz, e muitas vezes<br />

se virava para ver se longe ou perto<br />

vinha o odiado amante;<br />

Mas, percebendo então<br />

que em vão fugia,<br />

os olhos chorosos<br />

e as mãos juntas ao céu levou,<br />

e um triste lamento,<br />

que estando muito longe não ouvi,<br />

soltou dos lábios: e eis que num momento<br />

[ 75 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


che l’uno e l’altro leggiadretto piede,<br />

che pur dianzi al fuggir parve aura o vento,<br />

fatto immobil si vede<br />

di salvatica scorza insieme avvinto.<br />

E le braccia e le palme al Ciel distese<br />

veste selvaggia fronde:<br />

le crespe chiome e bionde<br />

più non riveggo e ‘l volto e ‘l bianco petto;<br />

ma del gentile aspetto<br />

ogni sembianza si dilegua e perde;<br />

sol miro un arboscel fiorito e verde.<br />

Pastore del Coro (III)<br />

O miserabil caso, o destin rio!<br />

Che fe’, che disse allora<br />

l’innamorato Dio?<br />

Tirsi<br />

A l’alta novitate<br />

fermò repente il passo,<br />

e, confuso d’orrore e di pietate,<br />

restò per lungo spazio immobil sasso.<br />

Poscia a le fronde amate,<br />

levando gli occhi sospirosi e molli,<br />

stese le braccia e ‘l nobil tronco avvinse<br />

e mille volte ribaciollo e strinse.<br />

Piangean d’intorno le campagne e i colli,<br />

sospiravan pietosi e l’aure e i venti;<br />

et ei nel gran dolore<br />

sciogliea sì mesti accenti,<br />

ch’io sentii per pietà mancarmi il core.<br />

Pastore del Coro (III)<br />

Ahi dura, ahi ria novella!<br />

Mira, deh, Tirsi mio, che il Ciel ne piange,<br />

senti gli aurei lagnar tra’ secchi rami<br />

e le fere ulular per le campagne:<br />

odi, come piangendo ognun la chiami.<br />

Ninfa del Coro (II)<br />

Piangete, o Ninfe, e con voi pianga Amore;<br />

raccogliete le penne, aure celesti,<br />

e voi pietosi e mesti<br />

fermate il piè d’argento, o fonti, o fiumi;<br />

lagrimate ne l’alto eterni Numi.<br />

Due Pastori del Coro<br />

Sparse più non vedrem di quel fin oro<br />

le bionde chiome al vento;<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 76 ]<br />

os seus graciosos pés,<br />

que pouco antes pareciam brisa ou vento,<br />

imóveis se tornam,<br />

por selvagem casca envolvidos.<br />

Os braços e as mãos para o Céu estendidos<br />

vestem-se de bravia ramagem:<br />

a dourada cabeleira, o rosto<br />

e o branco seio deixo de ver;<br />

do seu belo aspecto<br />

toda a semelhança se dilui e perde;<br />

só distingo um arbusto florido e verde.<br />

Pastor do Coro (III)<br />

Ó lamentável caso, ó destino cruel!<br />

Que fez, que disse então<br />

o Deus enamorado?<br />

Tirsi<br />

Perante tal prodígio<br />

abrandou de repente o passo,<br />

e, confuso de horror e piedade,<br />

ficou por muito tempo imóvel como uma pedra.<br />

Depois, para o amado arbusto<br />

levantando os olhos suspirosos e humedecidos,<br />

estendeu os braços e o nobre tronco abraçou,<br />

e mil vezes o beijou e contra si apertou.<br />

A toda a volta choravam os campos e as colinas,<br />

suspiravam de piedade as brisas e os ventos;<br />

e ele, na sua grande dor,<br />

gemia tão tristes lamentos,<br />

que eu senti por piedade partir-se-me o coração.<br />

Pastor do Coro (III)<br />

Ai, que dura, ai, que terrível história!<br />

Ah, meu Tirsi, vê como o Céu por ela chora,<br />

ouve os pássaros piar nos ramos secos<br />

e as feras a uivar pelos campos:<br />

ouve como, chorando, todos a chamam.<br />

Ninfa do Coro (II) 10<br />

Chorai, ó Ninfas, e convosco chore Cupido;<br />

recolhei as asas, brisas celestes,<br />

e vós, ó fontes, ó rios,<br />

piedosos e tristes, detende o pé prateado;<br />

chorai lá no alto, eternos Deuses.<br />

Dois Pastores do Coro<br />

Ondular não mais veremos daquele fino ouro<br />

a loura cabeleira ao vento;


ahi! nè più s’udirà tra ‘l bel tesoro<br />

di perle e di rubin l’alto concento.<br />

Ahi! ch’ecclissato e spento<br />

È del ciglio seren l’almo splendore.<br />

Piangete, Ninfe, e con voi pianga Amore.<br />

Coro<br />

Piangete, Ninfe, e con voi pianga Amore.<br />

Dov’è il bel viso? Dov’è le bella man?<br />

Dov’è il bel seno? E dov’è il dolce riso,<br />

Dov’è del guardo il lampeggiar,<br />

Dov’è del guardo il lampeggiar sereno?<br />

Pastore del Coro (III)<br />

Ahi lagrime, ahi dolor!<br />

Piangete, Ninfe, e con voi pianga Amore.<br />

Coro<br />

Piangete, Ninfe, e con voi pianga Amore.<br />

Scena Sesta<br />

Apollo appare ai pastori e alle ninfe piangenti e compiange la<br />

metamorfosi dell’amata ninfa. Le ninfe e iI pastori pregano<br />

Amor di preservarli da un destino simile.<br />

Tirsi<br />

Ma, vedete lui stesso<br />

che verso noi se ‘n viene<br />

tutto carco di penne:<br />

deh, come fuor del luminoso volto<br />

traspare il duol c’ha dentr’al petto accolto!<br />

Apollo<br />

Dunque ruvida scorza<br />

chiuderà sempre la beltà celeste?<br />

Lumi, voi che vedeste<br />

l’alta beltà, che a lagrimar vi sforza,<br />

affisatevi pure in questa fronde:<br />

qui posa, e qui s’asconde<br />

il mio bene, il mio core, il mio tesoro,<br />

per cui, ben ch’immortal, languisco e moro.<br />

Tirsi<br />

Deh come invan s’affigge, invan si duole!<br />

Odilo, bella Dafne, e godi almeno,<br />

che le sventure tue lagrimi il Sole!<br />

Apollo<br />

Un guardo, un guardo appena,<br />

Un guardo appena, ahi lasso!<br />

ai!, nunca mais se ouvirá, qual belo tesouro<br />

de pérolas de de rubis, o canto divino.<br />

Ai! Que eclipsado, se apagou<br />

dos olhos serenos o gentil esplendor.<br />

Chorai, ó Ninfas, e convosco chore Cupido.<br />

Coro<br />

Chorai, ó Ninfas, e convosco chore Cupido.<br />

Onde está o belo rosto? Onde está a bela mão?<br />

Onde está o belo seio? E onde está o doce riso,<br />

Onde está daquele olhar o brilho,<br />

Onde está daquele olhar o brilho sereno?<br />

Pastor do Coro (III)<br />

Ai, lágrimas; ai dor!<br />

Chorai, ó Ninfas, e convosco chore Cupido.<br />

Coro<br />

Chorai, ó Ninfas, e convosco chore Cupido.<br />

Sexta Cena<br />

Apolo aparece aos pastores e às ninfas chorosos e<br />

lamenta a metamorfose da ninfa amada. As ninfas<br />

e os pastores suplicam a Cupido que os preserve<br />

de igual destino.<br />

Tirsi<br />

Mas, vede que ele mesmo<br />

para nós se dirige<br />

carregado de desgosto:<br />

ah, como daquele luminoso rosto<br />

transparece a dor que se aninhou no peito!<br />

Apolo<br />

Então uma casca grosseira<br />

encerrará para sempre a beldade celeste?<br />

Olhos, vós que vistes<br />

a divina beldade, que a chorar vos força,<br />

fixai-vos nesta folhagem:<br />

aqui jaz, e aqui se esconde<br />

o meu amor, o meu coração, o meu tesouro,<br />

por quem, sendo imortal, definho e morro.<br />

Tirsi<br />

Ah, como em vão se aflige; em vão se martiriza!<br />

Ouve-o, bela Dafne, e aprecia ao menos<br />

que as tuas desventuras chore o Sol!<br />

Apolo<br />

Um olhar, um só olhar,<br />

um só olhar, ai de mim,<br />

[ 77 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


Affissai ne la fronte alma e serena<br />

che disdegnosa, ohimè! Volgesti il passo.<br />

Semplicetta beltà, qual tema avesti!<br />

Ah, non sapevi ancora<br />

che offesa non pon far gli Dei celesti?<br />

Non mai nell’alto polo<br />

volgerò della luce il carro ardente,<br />

che misero e dolente<br />

gli occhi girando alle frondose chiome,<br />

non chiami mille volte il tuo bel nome.<br />

Ninfa sdegnosa e schiva,<br />

che fuggendo l’amor d’un Dio del Cielo,<br />

cangiasti in verde lauro il tuo bel velo,<br />

non fia però ch’io non t’onori et ami,<br />

ma sempre al mio crin d’oro<br />

faran ghirlanda le tue fronde e’ rami.<br />

Ma deh! se in questa fronde odi il mio pianto,<br />

senti la nobil cetra,<br />

quai doni a te dal Ciel cantando impetra:<br />

Non curi la mia pianta o fiamma o gelo,<br />

sian del vivo smeraldo eterni i pregi,<br />

nè l’offenda già mai l’ira del Cielo.<br />

I bei cigni di Dirce e i sommi Regi<br />

di verdeggianti rami al crin famoso<br />

portin, segno d’onor, ghirlande e fregi.<br />

Gregge mai nè Pastor fia che noioso<br />

del verde manto suo la spogli e prive:<br />

a la grat’ombra il dì lieto e gioioso<br />

traggan dolce cantando e Ninfe e Dive.<br />

Coro<br />

Bella Ninfa fuggitiva,<br />

sciolta e priva<br />

del mortal tuo nobil velo,<br />

godi pur pianta novela,<br />

casta e bella,<br />

cara al mondo, e cara al Cielo.<br />

Tu non curi e nembi, e tuoni;<br />

tu coroni<br />

cigni, Regi, e Dei celesti:<br />

geli il cielo o ‘nfiammi e scaldi,<br />

di smeraldi<br />

lieta ogn’or t’adorni e vesti.<br />

Godi pur de’ doni egregi;<br />

i tuoi pregi<br />

XIX Jorn adas Gulb en kian de <strong>Música</strong> An tiga [ 78 ]<br />

fixei na tua divina e serena fronte,<br />

que desdenhosa, ai de mim, te afastaste.<br />

Singela beleza, o que temeste?<br />

Ah, não sabias ainda<br />

que nenhum mal te podiam fazer os Deuses<br />

celestes?<br />

Nunca mais pelo alto Céu<br />

levarei da luz o carro luminoso,<br />

sem que, mísero e dolente,<br />

com os olhos percorrendo a tua farta cabeleira<br />

mil vezes invoque o teu belo nome.<br />

Ninfa desdenhosa e esquiva,<br />

que fugindo ao amor de um Deus do Céu,<br />

transformaste em verde louro o teu belo semblante,<br />

nem por isso deixarei de te honrar e amar,<br />

e para sempre no meu cabelo louro<br />

farão guirlanda a tua fronde e os teus ramos.<br />

Mas, ah! Se nesta fronde soar o meu pranto,<br />

ouve quais dádivas a minha nobre lira<br />

para ti cantando ao Céu exige:<br />

Não receie a minha planta o calor nem o frio,<br />

do verde esmeralda eternos sejam os seus dotes,<br />

nem jamais a atinja a ira do Céu.<br />

Que os belos cisnes de Dirce 11 e os sumos Reis<br />

tragam, sinal de honra, nos famosos cabelos<br />

guirlandas e festões de verdejantes ramos.<br />

Quem nem rebanho nem Pastor a importune,<br />

nem do seu verde manto a dispa e prive:<br />

na sua grata sombra o dia alegre e feliz<br />

passem as Ninfas e as Deusas,cantando docemente.<br />

Coro<br />

Bela Ninfa fugitiva,<br />

despojada e liberta<br />

do teu mortal e nobre véu;<br />

exulta, jovem planta,<br />

casta e bela,<br />

cara ao mundo e cara ao Céu.<br />

Não te importam nuvens nem trovões;<br />

tu coroas<br />

cisnes, Reis e Deuses celestes:<br />

gele o céu ou arda escaldante,<br />

de esmeraldas<br />

alegre te adornas sempre e vestes.<br />

Goza dessas excelsas dádivas;<br />

os teus dotes


non t’invidio e non desio:<br />

io se mai d’amor m’assale<br />

aureo strale,<br />

non vo’ guerra con un Dio.<br />

Se a fuggir movo le piante<br />

vero amante,<br />

contra amor cruda e superba,<br />

venir possa il mio crin d’auro<br />

non pur lauro,<br />

ma qual è più miser’erba.<br />

Sia vil canna mio crin biondo<br />

che l’immondo<br />

gregge ogn’or schianti e dirame;<br />

sia vil fien, ch’a i crudi denti<br />

de gli armenti<br />

tragga ogn’or l’avida fame.<br />

Ma s’a’ preghi sospirosi,<br />

amorosi,<br />

di pietà sfavillo ed ardo,<br />

s’io prometto a l’altrui pene<br />

dolce spene<br />

con un riso e con un guardo,<br />

Non soffrir, cortese Amore,<br />

che ‘l mio ardore<br />

prenda a scherno alma gelata,<br />

non soffrir ch’in piaggia o ‘n lido<br />

cor infido<br />

m’abbandoni innamorata.<br />

Fa’ ch’al foco de’ miei lumi<br />

si consumi<br />

ogni gelo, ogni durezza,<br />

ardi poi quest’alma allora<br />

ch’altra adora,<br />

qual si sia la mia bellezza.<br />

1 O Prólogo era habitualmente adaptado às circunstâncias da representação.<br />

A versão da representação em Mântua, que celebra as bodas de Francesco<br />

Gonzaga e Margarida de Savoia, contém referências (recados?) aos noivos,<br />

ao Duque Vincenzo Gonzaga e sua mulher, bem como aos rios Mincio e<br />

Arno que banham Mântua e Florença.<br />

2 Refere-se ao mito dos Titãs que, para escalar o Olimpo, sobrepuseram o<br />

monte Ossa ao Pelio.<br />

3 Refere-se a Neptuno.<br />

4 Refere-se a Narciso.<br />

5 Refere-se à ninfa Eco.<br />

6 É estranha a repetição deste coro, cujo sujeito era Narciso, quando se<br />

celebram as proezas de Apolo.<br />

não te invejo nem desejo:<br />

se do amor me atingisse<br />

o dardo dourado,<br />

não ia querer guerra com um Deus.<br />

Se para fugir de um vero amante<br />

os meus pés eu mover,<br />

cruel e soberba, repelindo o amor,<br />

possa a minha cabeleira dourada<br />

transformar-se, não em louro,<br />

mas na mais miserável erva.<br />

Seja vil planta o meu cabelo louro<br />

que o mais imundo<br />

rebanho desfolhe e espezinhe;<br />

seja vil feno, que aos cruéis dentes<br />

das manadas<br />

tire sempre a ávida fome.<br />

Mas se às súplicas suspirantes,<br />

amorosas,<br />

com piedade correspondo e ardo,<br />

se, com um sorriso e um olhar,<br />

doces esperanças prometo<br />

ao sofrimento de alguém,<br />

Não permitas, gentil Cupido,<br />

que do meu ardor<br />

troce alma gelada;<br />

não permitas que na margem ou na colina<br />

um coração infiel<br />

me abandone enamorada.<br />

Faz com que ao fogo dos meus olhos<br />

se dissipe<br />

da alma adorada<br />

o gelo e a dureza,<br />

e que esta por mim arda,<br />

qualquer que seja a minha beleza.<br />

Ottavio Rinuccini (trad. de António Jorge Pacheco)<br />

7 Também aqui se estranha a repetição de um coro que invoca Narciso e a<br />

ninfa Eco.<br />

8 Cupido usava dois tipos de setas: douradas, com plumas de pombo, para<br />

despertar a paixão; de chumbo, com plumas de coruja, para a indiferença.<br />

9 Refere-se a Vulcano. Este, sabendo que Vénus, sua mulher, o atraiçoava<br />

com Marte, apanhou-os no leito onde eles se deitavam com uma rede que<br />

ele mesmo fabricou.<br />

10 As “asas das brisas celestes” e “o pé prateado das fontes e dos rios”,<br />

parecem-nos metáforas demasiado improváveis para um poeta como<br />

Rinuccini, indício de mão estranha. De facto, na edição da “Ricciardi”, não<br />

consta este nem outros trechos do libreto utilizado por Gagliano.<br />

11 Os poetas. A fonte de Rinuccini é certamente Horácio, que chama a<br />

Píndaro “cisne de Dirce”.<br />

[ 79 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


Nasceu em Lisboa em 1943. Tangedor de<br />

instrumentos antigos de corda dedilhada e<br />

musicólogo. Estudou no Conservatório Nacional<br />

de Lisboa com Mestre Emílio Pujol e com o<br />

Professor Macario Santiago Kastner. Como bolseiro<br />

da <strong>Fundação</strong> <strong>Calouste</strong> <strong>Gulbenkian</strong>, especializou-se<br />

em Espanha e, de1968 a 1972, na Schola<br />

Cantorum de Basileia, com o Professor Eugen M.<br />

Dombois. Estudou também Musicologia com o<br />

Professor Raymond Meylan, da Universidade de<br />

Zurique.<br />

É colaborador regular da Comissão de<br />

Musicologia da <strong>Fundação</strong> <strong>Calouste</strong> <strong>Gulbenkian</strong>,<br />

tendo nessa qualidade participado na investigação,<br />

inventariação, catalogação e publicação de música<br />

portuguesa dos séculos XVI a XIX. Publicou todo<br />

o corpus actualmente conhecido dos nossos cancioneiros<br />

poético-musicais quinhentistas, nomeadamente<br />

os Cancioneiros de Elvas (Biblioteca<br />

Pública, fundo Públia Hortênsia), de Lisboa<br />

(Biblioteca Nacional, fundo Ivo Cruz), de Paris<br />

(Biblioteca da Escola Nacional Superior de Belas<br />

Artes, fundo Masson) e de Belém (Museu de<br />

Etnologia).<br />

É fundador e director dos Segréis de Lisboa,<br />

agrupamento especializado na interpretação da<br />

<strong>Música</strong> Antiga, particularmente na recuperação do<br />

reportório português e espanhol dos séculos XIII<br />

ao XIX. Em 1991 este grupo foi agraciado com a<br />

Medalha de Mérito Cultural da Secretaria de<br />

Estado da Cultura.<br />

Tem realizado inúmeros concertos em<br />

Portugal e no estrangeiro, tendo-se já apresentado<br />

em quase todos os países da Europa, nos Estados<br />

Unidos, no Brasil, na República Popular da China<br />

e na Índia. Gravou para a RTP, RDP, Radio<br />

France, Radiodifusion Belge e para as companhias<br />

discográficas Philips, Erato, EMI/Valentim de<br />

Carvalho, Polygram e Movieplay.<br />

Manuel Morais<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 80 ]<br />

Desde 1972 é professor no Conservatório<br />

Nacional de Lisboa e tem ainda participado como<br />

docente nos Cursos de <strong>Música</strong> Barroca e Rocócó<br />

do Escorial (Espanha), nas Semanas de <strong>Música</strong><br />

Antiga Ibérica e nos Cursos Internacionais de<br />

<strong>Música</strong> Portuguesa. O seu reportório abrange: no<br />

Alaúde e instrumentos similares, o Renascimento<br />

e o Maneirismo, na Viola de Cinco Ordens, o<br />

Barroco; e na Viola Romântica (ou Francesa) os<br />

séculos XVIII e XIX.<br />

Manuel Morais tem desenvolvido em<br />

Portugal uma actividade pioneira na expansão da<br />

<strong>Música</strong> Antiga, particularmente do reportório dos<br />

séculos XIII ao XIX, bem como na prática dos<br />

instrumentos antigos de corda dedilhada. A sua<br />

acção tem-se dividido entre a pedagogia, a execução,<br />

a investigação e a publicação no domínio<br />

da Musicologia.


Segréis de Lisboa<br />

Fundado em 1972 pelo alaudista e musicólogo<br />

Manuel Morais, o grupo Segréis de Lisboa é<br />

constituído por uma formação variável de cantores<br />

e instrumentistas cuja preocupação essencial se<br />

traduz em fazer reviver a <strong>Música</strong> Antiga com a<br />

maior autenticidade, fundamentando-se nos conhecimentos<br />

musicológicos, históricos e estilísticos<br />

presentemente disponíveis e recorrendo a instrumentos<br />

originais ou a cópias modernas destes últimos.<br />

O exaustivo trabalho de investigação desenvolvido<br />

pelo agrupamento compreende o estudo e<br />

prática das notações e ornamentações de cada<br />

período, bem como das respectivas técnicas<br />

históricas de execução, baseando-se nos tratados<br />

originais e, nalguns casos, no resultado do estudo<br />

da música tradicional ibérica, num esforço de permanente<br />

criatividade. Ainda que com um<br />

reportório muito diversificado, os Segréis de<br />

Lisboa visam, principalmente, com o seu trabalho,<br />

a recuperação da música portuguesa e espanhola<br />

dos séculos XIII ao XIX.<br />

O grupo realizou inúmeros concertos e<br />

gravações radiofónicas e televisivas, tanto em<br />

Portugal como noutros países da Europa. As suas<br />

digressões internacionais levaram-no igualmente<br />

aos Estados Unidos, ao Extremo oriente e à Índia.<br />

Tem participado em Festivais de <strong>Música</strong> Antiga<br />

como o de Saints (França), o Musica Antiqua<br />

Europae Orientalis (Bydgoszcz, Polónia) e as<br />

Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga, nas quais<br />

colabora regularmente. Nas suas mais recentes<br />

digressões internacionais a qualidade dos Segréis<br />

de Lisboa tem sido unanimemente reconhecida<br />

pelo público e pela crítica especializada, sendo de<br />

destacar as referências elogiosas do New York<br />

Times à apresentação do agrupamento na<br />

Columbia University (The Kathryn Bache Miller<br />

Theater) de Nova Iorque e o sucesso alcançado<br />

nos concertos realizados no âmbito da Europália e<br />

do Festival de Utrecht.<br />

Em 1991 o grupo foi agraciado com a Medalha<br />

de Mérito Cultural da Secretaria de Estado da<br />

Cultura.<br />

A qualidade dos Segréis de Lisboa tem sido<br />

alvo de distinção também pela atribuição de um<br />

C h o c da Revista Le Monde de la Musique (N.º 201,<br />

Julho-Agosto de 1996) ao disco <strong>Música</strong> Maneirista<br />

Portuguesa - Cancioneiro Musical de Belém. Na sua<br />

discografia destacam-se ainda os CDs: M ú s i c a<br />

Ibérica da Idade Média e do Renascimento (EMI /<br />

Valentim de Carvalho), A <strong>Música</strong> no Tempo de Camões<br />

(EMI/Valentim de Carvalho), La Portingaloise:<br />

<strong>Música</strong> no Tempo dos Descobrimentos ( M o v i e p l a y ) ,<br />

<strong>Música</strong> de Salão no Tempo de D. Maria I ( M o v i e p l a y ) ,<br />

Modinhas e Lunduns dos Séculos XVIII e XIX<br />

(Movieplay), Saudade, Amor e Morte nos Cancioneiros<br />

dos Séculos XV ao XVIII (Polygram), <strong>Música</strong> Sacra de<br />

João de Sousa Carvalho, José Joaquim dos Santos e Luciano<br />

Xavier dos Santos (Com o Coro de Câmara da<br />

Universidade de Salamanca; Movieplay) e M ú s i c a<br />

no Tempo de D. João V: Cantatas Humanas a Solo e a Duo<br />

(Movieplay).<br />

[ 81 ] Li sboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


Coro <strong>Gulbenkian</strong><br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 82 ]<br />

Fundado em 1964, o Coro <strong>Gulbenkian</strong> conta<br />

presentemente com uma formação sinfónica de<br />

cerca de 100 cantores, actuando igualmente em<br />

grupos vocais reduzidos, conforme a natureza das<br />

obras a executar. Assim, o Coro <strong>Gulbenkian</strong> tanto<br />

pode apresentar-se como grupo a cappella, o que<br />

tem acontecido regularmente para a interpretação<br />

de polifonia portuguesa dos séculos XVI e XVII,<br />

como colaborar com a Orquestra <strong>Gulbenkian</strong> para<br />

a execução de obras coral-sinfónicas do repertório<br />

clássico e romântico. Na música do século XX,<br />

campo em que é particularmente conhecido, tem<br />

interpretado, e frequentemente estreado, inúmeras<br />

obras contemporâneas de compositores portugueses<br />

e estrangeiros. Tem sido igualmente convidado<br />

para colaborar com as mais prestigiadas orquestras<br />

mundiais, na execução de grandes obras como A<br />

Criação de Haydn e a Nona Sinfonia de Beethoven<br />

(Orquestra do Século XVIII / Frans Brüggen), a<br />

Missa Solemnis de Beethoven (Orquestra Sinfónica<br />

de Baden-Baden / Michael Gielen), as Segunda,<br />

Terceira e Oitava Sinfonias de Mahler (Filarmónica<br />

de Berlim / Claudio Abbado; Filarmónica<br />

de Londres / Franz Welser-Möst; Sinfónica de<br />

Viena / Rafael Frübeck de Burgos; Filarmónica<br />

Checa / Gerd Albrecht), A Danação de Fausto d e<br />

Berlioz (Filarmónica de Strasburgo / Theodor<br />

Guschlbauer e Concertgebouw de Amesterdão /<br />

Colin Davis), ou Daphnis et Chloé de Ravel<br />

(Filarmónica de Monte-Carlo / Emmanuel<br />

Krivine).<br />

Para além da sua apresentação na temporada<br />

de concertos da <strong>Fundação</strong>, em Lisboa, e das suas<br />

digressões pelo país, o Coro <strong>Gulbenkian</strong> tem actuado<br />

em numerosas cidades de Espanha, França,<br />

Itália, Hungria, Canadá, Iraque, Índia, Macau e<br />

Japão. Em 1991, apresentou-se em várias cidades<br />

da Bélgica, no quadro do Festival Europália, e<br />

deslocou-se a Israel para uma série de actuações<br />

com a Orquestra de Câmara de Israel (Tel Aviv,<br />

Carmiel, Haifa e Jerusalém). Em 1992, uma


digressão em várias cidades da Holanda e da<br />

Alemanha com a Orquestra do Século XVIII deu<br />

origem à gravação ao vivo da Nona Sinfonia de<br />

Beethoven, que foi incluída na edição integral das<br />

sinfonias de Beethoven que Frans Brüggen realizou<br />

para a Philips. Em 1993, o Coro <strong>Gulbenkian</strong><br />

teve a honra de acompanhar o então Presidente da<br />

República, Doutor Mário Soares, numa visita oficial<br />

ao Reino Unido. Deslocou-se em seguida ao<br />

Brasil, e foi convidado pela Orquestra Filarmónica<br />

de Monte-Carlo para a realização de um concerto,<br />

a convite de S.A.R. o Príncipe Rainier do<br />

Mónaco. Nesse mesmo ano, actuou ainda em<br />

Lyon, Estrasburgo e Mulhouse, com a Orquestra<br />

Nacional de Lyon (A Transfiguração de Messiaen).<br />

Em 1994, deslocou-se a Budapeste com a<br />

Orquestra <strong>Gulbenkian</strong>, e efectuou uma segunda<br />

digressão com Frans Brüggen e a Orquestra do<br />

Século XVIII, actuando em Itália, França,<br />

Holanda e Portugal (A Criação de Haydn). No ano<br />

seguinte, apresentou-se na Índia com quatro concertos<br />

a cappella, realizando uma digressão no Brasil,<br />

Argentina e Uruguai, com a Orquestra <strong>Gulbenkian</strong>,<br />

sob a direcção de Michel Corboz (E l i a s<br />

de Mendelssohn). Ainda em 1995, nove concertos,<br />

com a Orquestra do Século XVIII (Nona<br />

Sinfonia de Beethoven) levaram o Coro <strong>Gulbenkian</strong><br />

a oito cidades do Japão. Em Junho de 1997,<br />

apresentou-se com esta mesma orquestra dirigida<br />

por Frans Brüggen em concertos realizados em<br />

diversas cidades europeias, incluindo uma participação<br />

no Festival Eurotop de Amesterdão (Sonho de<br />

Uma Noite de Verão de Mendelssohn). Ainda em<br />

Novembro de 1997, teve o privilégio de acompanhar<br />

Sua Excelência o Presidente da República,<br />

Doutor Jorge Sampaio, na visita oficial à Holanda<br />

a convite de Sua Majestade a Rainha Beatriz da<br />

Holanda, tendo actuado na cidade de Leiden. Para<br />

a temporada de 1998-1999, para além de dois<br />

concertos realizados no âmbito do Festival Veneto<br />

com a Orquestra I Solisti Veneti, em Pádua e<br />

Verona, estão previstas várias actuações, em Israel,<br />

na Holanda e em vários festivais da Europa.<br />

O Coro <strong>Gulbenkian</strong> tem gravado para as editoras<br />

Philips, Archiv-Deutsche Grammophon,<br />

Erato, Cascavelle, Musifrance, FNAC-Music e<br />

Aria-Music, interpretando um repertório diversificado<br />

que inclui música portuguesa do século XVI<br />

aos nossos dias, Beethoven e Xenakis, entre outros.<br />

Algumas destas gravações receberam prémios<br />

internacionais, tais como o Prémio Berlioz, da<br />

Academia Nacional Francesa do Disco Lírico, o<br />

Grande Prémio Internacional do Disco, da<br />

Academia Charles Cros, ou o Orfeu de Ouro,<br />

entre outros.<br />

Desde 1969 Michel Corboz é o Maestro Titular<br />

do Coro, sendo as funções de Maestro Adjunto e<br />

as de Maestro Assistente desempenhadas, respectivamente,<br />

por Fernando Eldoro e Jorge Matta.<br />

[ 83 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


Domingo, Dia 1 1<br />

XIX Jornadas Gulben kian de <strong>Música</strong> Antiga [ 84 ]


Academia das Ciências de Lisboa, 2 1 . 3 0<br />

ÁRIAS, CANÇÕES E DANÇAS TEATRAIS<br />

DE HENRY PURCELL (1659 - 1695)<br />

Be welcome then, great Sir<br />

How long, great God<br />

With him he brings<br />

Suite de A b d e l a z e r (Rondeau - Air - Air - Hornpipe - Air)<br />

What shall I do to show how much I love her?<br />

Since from my dear Astrea’s sight<br />

Sonata em Sol menor (Adagio - Allegro - Largo - Vivace)<br />

Here the deities approve<br />

I n t e r v a l o<br />

Love’s Goddess sure was blind<br />

Chaconne em Sol menor<br />

The fatal hour comes on<br />

The pale and the purple rose<br />

Suite de The Fairy Queen (Prelude - Hornpipe - Rondeau - Chaconne)<br />

Not all my torments<br />

Britain, thou now art great<br />

Fairest Isle<br />

THE KING’S CONSORT<br />

Pavlo Beznosiuk V i o l i n o<br />

Lucy Howard V i o l i n o<br />

Rachel Byrt V i o l a<br />

Katherine Sharman Baixo de Violino<br />

Richard Campbell Baixo de Violino<br />

Paula Chateauneuf T e o r b a<br />

James Bowman C o n t r a t e n o r<br />

Robert King Órgão, Cravo e Direcção<br />

[ 85 ] Li sboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


A História da música dramática em<br />

Inglaterra, vista no seu conjunto, está marcada pela<br />

irregularidade e pela inexistência de escolas, mas<br />

paradoxalmente foi de lá que vieram algumas das<br />

referências incontornáveis para o género. Esta<br />

História teve o seu primeiro capítulo com Henry<br />

Purcell (1659-1695), depois com Georg Friedrich<br />

Händel (1685-1759) compositor de origem<br />

alemã que se naturaliza inglês e se torna num dos<br />

principais responsáveis pela importação dos modelos<br />

operáticos italianos para Inglaterra. Já no<br />

Século XX, Benjamin Britten (1913-1976) representa<br />

um capítulo final da ópera britânica. Os factores<br />

que à partida terão determinado este quadro<br />

relacionaram-se porventura com a ligação privilegiada<br />

do público inglês ao teatro, a sua relutância<br />

em importar produtos culturais estrangeiros (no<br />

caso a ópera italiana), e ainda as vagas de puritanismo<br />

cultural impostas pela política de<br />

Cromwell, que obrigariam ao encerramento dos<br />

teatros.<br />

XIX Jorn adas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> An tiga [ 86 ]<br />

ÁRIAS, CANÇÕES E DANÇAS TEATRAIS<br />

Em concreto, a produção de música de cena<br />

por parte de Henry Purcell foi fortemente condicionada<br />

por circunstâncias conjunturais, nomeadamente<br />

a reabertura dos teatros em Londres com a<br />

Restauração de Carlos II no trono de Inglaterra<br />

em 1660. Como se pode imaginar, verificou-se<br />

uma espécie de reflorescimento da actividade<br />

teatral para corresponder às expectativas de um<br />

público sedento de voltar ao teatro num país com<br />

tão fortes tradições neste domínio. Tal como se<br />

tornara prática desde o séc. XVI, podia introduzir-se<br />

música vocal e instrumental em quantidade<br />

muito significativa ao longo das peças<br />

teatrais, já que a verdade é que a ópera, tal como<br />

era concebida no continente – definindo-se como<br />

drama exclusivamente cantado –, não era bem<br />

aceite em Inglaterra. Por volta de 1660 houve<br />

vários planos para introduzir a ópera italiana em<br />

Londres, mas estes não foram bem sucedidos.<br />

Desta feita, é compreensível que um compositor<br />

particularmente dotado para a exploração do sentido<br />

dramático da música, como é o caso de<br />

Purcell, se tenha dedicado à produção de música<br />

para teatro. É mesmo muito provável que tenha<br />

sido sobretudo graças a esta vertente da sua produção<br />

que o seu nome se foi tornando popular<br />

para um público que pouco sabia de música sacra,<br />

ou que não tinha acesso às suas odes para a Corte.<br />

Considere-se ou não a conjuntura política e<br />

cultural, a verdade é que o processo de transição<br />

de Purcell do teatro para a ópera decorreu de<br />

forma natural, alheia a teorizações ou planos de<br />

intenções e motivada, apenas e somente, por um<br />

aprofundamento da comunicação de emoções, da<br />

sua dramatização em música. Com um enorme<br />

grau de liberdade – porventura só comparável a<br />

um Claudio Monteverdi ou a um Heinrich Schütz<br />

– Henry Purcell usou indiferenciadamente procedimentos<br />

composicionais antigos e modernos, e<br />

sobretudo ousou experimentar, orientando-se apenas<br />

pelo seu apurado sentido dramático. É certo


DE HENRY PURCELL<br />

por Vanda de Sá<br />

que escreveu apenas uma ópera, Dido and Aeneas<br />

(1689), sobre um libreto pouco conseguido da<br />

autoria de Nahum Tate e ainda por cima de curta<br />

extensão, mas ninguém negará que se trata de uma<br />

verdadeira obra-prima na história da música<br />

dramática. Após esta incursão isolada pelo teatro<br />

cantado, que enquanto género estava longe de conhecer<br />

uma plena aceitação em Inglaterra, Purcell<br />

dedicou-se sobretudo a um género híbrido, a semiópera.<br />

Aqui a acção associada às personagens principais<br />

era apresentada por meio de representação<br />

teatral, dando-se espaço ao teatro cantado através<br />

das personagens secundárias que protagonizam<br />

cenas musicais de extensão considerável, podendo<br />

detectar-se o cruzamento das mais recentes inovações<br />

italianas neste domínio com a herança da<br />

masque inglesa. Este tipo de produções conheceram<br />

um considerável investimento em termos de<br />

cenografia e figurinos, cultivando-se sobretudo em<br />

finais do século XVII, embora em número limitado.<br />

Henry Purcell deixou-nos um total de cinco<br />

semi-óperas: The Dioclesian ( 1 6 9 0 ), The Fairy Queen<br />

( 1 6 9 2 ), The Tempest ( c a . 1 6 9 5 ), The Indian Queen<br />

(1695) e King Arthur (1691) a única com um libreto<br />

especificamente escrito para o efeito da autoria<br />

de John Dryden, já que as restantes quatro foram<br />

adaptações de peças já existentes. A verdade é que<br />

até praticamente ao início do século XVIII quase<br />

todas as ditas “óperas” montadas em Inglaterra se<br />

baseavam em peças de teatro já existentes, às quais<br />

se adicionavam episódios musicais e efeitos cénicos<br />

muito elaborados. Este compromisso de uma<br />

peça teatral com cenas musicais espectaculares era<br />

no fundo a ideia de ópera apreciada pelo público<br />

inglês.<br />

Apesar de Henry Purcell ser hoje um compositor<br />

justamente reconhecido como um dos<br />

maiores génios do período barroco, o facto é que a<br />

sua música ainda não se impôs totalmente no<br />

reportório consagrado, excepção feita à sua ópera<br />

Dido and Aeneas, à Ode para o Dia de Santa Cecília<br />

(1683) ou à <strong>Música</strong> Fúnebre para a Rainha D. Maria.<br />

Demasiado esquecida é a sua música instrumental,<br />

sobretudo para viola da gamba, que se constitui<br />

como uma das mais geniais súmulas do pensamento<br />

musical do seu tempo. O aspecto mais fascinante<br />

do conjunto da produção de Henry Purcell<br />

reside decerto na sinceridade e investimento com<br />

que aborda os mais diferentes géneros. Dele ficounos<br />

alguma da mais pungente música sacra do seu<br />

tempo, mas também algumas das páginas mais<br />

sérias no domínio do fausto protocolar das obras<br />

de circunstância para a Corte. Mas foi ainda<br />

Purcell quem desbravou o caminho para a afirmação<br />

da ópera em língua inglesa, devendo-se-lhe<br />

também aquele que constitui o derradeiro testemunho<br />

da tradição da “Consort Music” britânica<br />

para violas da gamba, nomeadamente, as suas<br />

Fantasias. Em qualquer uma das facetas desta variada<br />

produção podem encontrar-se elementos de<br />

uma escrita verdadeiramente pessoal e original, que<br />

reside numa singular aliança entre um registo popular,<br />

uma tradição inglesa anterior ao seu tempo,<br />

mas sobretudo uma veia de expressão nostálgica.<br />

[ 87 ] Li sboa, 6 a 1 4 Outub ro MCMXCVIII.


HENRY PURCELL<br />

Be welcome then, great Sir<br />

Be welcome then great Sir, to constant<br />

vows<br />

of loyalty never to vary more.<br />

Welcome to all that obedience owes<br />

to a Prince so mild and gentle in pow’ r.<br />

How long, great God<br />

How long, great God, must I<br />

immured in this dark prison lie?<br />

Where, at the gates and avenues of sense,<br />

my soul must watch to have intelligence,<br />

where but faint gleams<br />

of thee salute my sight,<br />

like doubtful moonshine in a cloudy night.<br />

When shall I leave this magic sphere,<br />

and be all mind, all eye, all ear?<br />

How cold this clime! And yet my sense<br />

perceives ev’ n here thy influence,<br />

ev’ n here thy strong magnetic charms I feel,<br />

and pant and tremble like the amorous steel;<br />

To lower good, and beauties<br />

not divine,<br />

sometimes my erroneous needle does decline;<br />

but yet, so strong the sympathy,<br />

it turns and points again to thee.<br />

I long to see this excellence<br />

which at such distance stricks my sense;<br />

My impatient soul struggles to disengage<br />

her wings from the confinement of her cage.<br />

Would’ st thou, great love,<br />

this pris’ ner once set free,<br />

how would she hasten to be link’ d to thee.<br />

She’ d for no angel’ s conduct stay,<br />

but fly, and love on all the way.<br />

XIX Jo rnadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 88 ]<br />

Árias, canções<br />

Sede pois bem vindo, Grande Senhor<br />

Sede pois bem vindo, grande Senhor, aos votos<br />

constantes<br />

de lealdade que nunca esmorecerão.<br />

Bem vindo a todos os que devem obediência<br />

a um Príncipe de poder tão ameno e doce.<br />

Por quanto tempo, Senhor<br />

Por quanto tempo, Senhor, terei eu<br />

de jazer emparedado nesta escura prisão?<br />

Aqui onde, nas grades e avenidas da razão,<br />

a minha alma tem de estar atenta para discernir,<br />

onde a minha visão só consegue saudar<br />

imagens esbatidas da tua presença<br />

como o luar incerto numa noite enevoada.<br />

Quando poderei deixar esta esfera mágica,<br />

e ser todo eu espírito, olhos e ouvidos?<br />

Quão frio é este clima! E, no entanto,<br />

consigo mesmo aqui sentir a vossa influência,<br />

os vossos poderosos encantos magnéticos,<br />

e fico ofegante e tremo como a lâmina<br />

enamorada.<br />

Para a bondade menor menores e para belezas<br />

não divinas,<br />

por vezes se vira a minha errante agulha;<br />

mas no entanto, tão grande é a empatia,<br />

que se volta e aponta, de novo, para vós.<br />

Anseio por ver a excelência<br />

que, a tanta distância, me atinge a razão;<br />

A minha alma impaciente debate-se para libertar<br />

as suas asas da prisão da sua gaiola.<br />

Se alguma vez, grande amor, libertasses este<br />

prisioneiro,<br />

ele apressar-se-ia a prender-se de novo a ti.<br />

Nem uma escolta de anjos o faria ficar,<br />

mas fugiria, e amaria para sempre.


e danças teatrais<br />

With him he brings<br />

With him he brings the partner of his throne,<br />

that brighter jewel than a crown,<br />

in whom does triumph each commanding grace<br />

an angel mien and matchless face.<br />

There beauty its whole artillery tries<br />

whilst he who ever kept the<br />

field<br />

gladly submits, is proved to yield<br />

and fall the captive of her conquering eyes.<br />

What shall I do to show<br />

how much I love her?<br />

What shall I do to show how much I love her?<br />

How many millions of sighs can suffice?<br />

That which wins others’ hearts<br />

never can move her:<br />

those common methods of love she’ ll despise.<br />

I will love more than man e’ er<br />

loved before me,<br />

gaze on her all the day and melt all the<br />

night,<br />

till for her own sake at last she’ ll<br />

implore me<br />

to love her less to preserve our delight.<br />

Since gods themselves could not ever<br />

be loving,<br />

men must have breathing recruits for new<br />

joys;<br />

I wish my love could be ever improving,<br />

though eager love, more than<br />

sorrow destroys.<br />

In fair Aurelia’ s arms leave me expiring,<br />

to be embalm’ d by the sweets of her breath;<br />

to the last moment I’ ll still be desiring;<br />

never had hero so glorious a death.<br />

Ele traz consigo<br />

Ele traz consigo a companheira do seu trono,<br />

aquela jóia mais cintilante que uma coroa,<br />

em quem cada encanto imperial triunfa<br />

um porte de anjo e face sem igual.<br />

Nela a beleza usa todas as suas armas<br />

enquanto que aquele que sempre cuidou<br />

do seu campo<br />

alegremente se submete, e é certo que cederá<br />

e cairá, cativo dos seus olhos conquistadores.<br />

Que devo fazer para mostrar<br />

quanto a amo?<br />

Que devo fazer para mostrar quanto a amo?<br />

Quantos milhões de suspiros bastarão?<br />

O que conquista outros corações<br />

nunca a comoverá:<br />

Ela desprezará os métodos comuns do amor .<br />

Eu amarei mais do que qualquer homem jamais<br />

amou,<br />

olharei para ela todo o dia e derreter-me-ei toda<br />

a noite,<br />

até que, para seu próprio bem, ela me há-de<br />

implorar,<br />

que a ame menos para manter o nosso deleite.<br />

Uma vez que os próprios deuses nunca poderão<br />

amar,<br />

os homens só podem ter novas alegrias com<br />

outros mortais;<br />

Desejava que o meu amor fosse cada vez maior,<br />

apesar do amor ávido destruir mais do que os<br />

sofrimentos.<br />

Deixai-me expirar nos belos braços de Aurelia,<br />

e ser perfumado pela doçura do seu hálito;<br />

desejá-la-ei até ao último momento;<br />

e nunca um herói terá tido morte tão gloriosa.<br />

[ 89 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


Since from my dear Astrea’ s sight<br />

Since from my dear Astrea’ s sight<br />

I was so rudely torn,<br />

my soul has never known<br />

delight,<br />

unless it were to mourn.<br />

But oh! alas, with weeping eyes,<br />

and bleeding heart I lie;<br />

Thinking on her whose absence ‘ tis,<br />

that makes me wish to die.<br />

Here the deities approve<br />

Here the deities approve<br />

the God of Music and of Love;<br />

All the talents they have lent you,<br />

all the blessings they have sent you,<br />

pleas’ d to see what they bestow,<br />

live and thrive so well below.<br />

Love’ s Goddess sure was blind this day<br />

Love’ s Goddess sure was blind this day,<br />

thus to adorn her greatest foe,<br />

and Love’ s artillery betray<br />

to one that would her realm o’ erthrow.<br />

The fatal hour comes on<br />

The fatal hour comes on apace,<br />

which I had rather die than see,<br />

for when fate calls you from this place,<br />

you go to certain misery.<br />

The thought does stab me to the heart,<br />

and gives me pangs no word<br />

can speak,<br />

it wracks me in each vital part,<br />

sure when you go, my heart<br />

will break.<br />

Since I for you so much endure,<br />

may I not hope you will believe,<br />

that you alone these wounds can cure,<br />

which are the fountains of my grief.<br />

The pale and the purple rose<br />

The pale and the purple rose,<br />

that after cost so many blows<br />

when English Barons fought,<br />

a prize so dearly bought<br />

by the fam’ d worthies of that shire,<br />

still best by sword and shield defended were.<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 90 ]<br />

Desde que fui espulso<br />

Desde que fui tão rudemente expulso<br />

da companhia da minha querida Astreia<br />

que a minha alma nunca mais conheceu<br />

a felicidade,<br />

a não ser a felicidade da lamentação.<br />

Mas, oh!, eis que, de olhos chorosos,<br />

e coração sangrando jazo;<br />

Pensando naquela cuja ausência<br />

me faz querer morrer.<br />

Aqui as divindades aprovam<br />

Aqui as divindades aprovam<br />

o Deus da <strong>Música</strong> e do Amor;<br />

Emprestaram-te todos os talentos,<br />

e todas as bênçãos te enviaram,<br />

agradados de ver que as suas dádivas,<br />

vivem e medram tão bem cá em baixo.<br />

A Deusa do Amor era decerto cega<br />

A Deusa do Amor era decerto cega,<br />

para assim adornar o seu pior inimigo,<br />

e as armas do Amor entregar<br />

àquele que lhe destruiria o reino.<br />

A hora fatal chega<br />

A hora fatal chega, expedita,<br />

e eu antes queria morrer do que vê-la chegar,<br />

pois quando o destino te chama deste lugar,<br />

certa é a desgraça que vais encontrar.<br />

Este pensamento apunhala-me o coração,<br />

e causa-me tormentos que as palavras não<br />

conseguem descrever<br />

despedaça-me todos os órgãos vitais<br />

e decerto que, quando partires, o meu coração se<br />

quebrará.<br />

Uma vez que, por ti, eu tanto aguento,<br />

poderei esperar que acredites,<br />

que apenas tu poderás estas curar estas feridas,<br />

que são a fonte do meu sofrimento.<br />

A rosa branca e a vermelha<br />

A rosa branca e a vermelha,<br />

que custaram tantos ferimentos,<br />

quando os Barões Ingleses combateram entre si,<br />

um preço pago tão caro<br />

pelas famosas riquezas daquele condado<br />

pela espada e pelo escudo melhor foram<br />

defendidas.


Not all my torments<br />

Not all my torments can your<br />

pity move,<br />

your scorn increases with my love.<br />

Yet to the grave I will my<br />

sorrow bear;<br />

I love, tho’ I despair.<br />

Britain, thou now art great<br />

Britain, thou now art great indeed,<br />

arise! and proud of Caesar’ s godlike sway,<br />

above the neighbour nations lift thy head,<br />

command the world while Caesar you obey.<br />

Fairest isle<br />

Fairest isle, all isles excelling,<br />

seat of pleasure and of love.<br />

Venus here will choose her dwelling,<br />

and forsake her Cyprian grove.<br />

Cupid from his fav’ rite nation<br />

care and envy will remove;<br />

Jealousy that poisons passion,<br />

and despair that dies for love.<br />

Gentle murmurs, sweet complaining,<br />

sighs that blow the fire of love<br />

soft repulses, kind disdaining,<br />

shall be all the pains you prove.<br />

Ev’ ry swain shall pay his duty,<br />

grateful ev’ ry man shall prove;<br />

And as these excel in beauty,<br />

those shall be renown’ d for love.<br />

Nem todos os meus tormentos<br />

Nem todos os meus tormentos podem ser<br />

afastados pela tua piedade,<br />

o teu desprezo aumenta o meu amor.<br />

Ainda hei-de levar o meu sofrimento para o<br />

t ú m u l o ;<br />

Amo, apesar de desesperar.<br />

Bretanha, és agora grande<br />

Bretanha, és agora grande, na verdade,<br />

Ergue-te! E altiva do poderio divino de César,<br />

ergue a tua cabeça acima das nações vizinhas,<br />

e comanda o mundo enquanto a César obedeces.<br />

Ilha mais bela<br />

Ilha mais bela, todas as ilhas excedendo,<br />

lugar de prazer e de amor.<br />

Aqui Vénus vai escolher a sua morada,<br />

e abandonar o seu bosque em Chipre.<br />

Da sua nação favorita<br />

Cúpido afastará toda a apreensão e inveja;<br />

o ciúme, que envenena a paixão,<br />

e o desespero, que morre por amor.<br />

Suaves murmúrios, doces lamentações,<br />

suspiros que sopram o fogo do amor<br />

brando desfavor, gentil desdém,<br />

serão estas as dores que provarás.<br />

Todo o amante cumpirá o seu dever,<br />

todos os homens ficarão cheios de gratidão;<br />

E enquanto uns excedem em beleza,<br />

outros serão conhecidos pelo seu amor.<br />

Tradução de Cláudia Mealha<br />

[ 91 ] Li sboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


Robert King é hoje um dos principais chefes<br />

de orquestra britânicos. Nascido em 1960 fez a<br />

iniciação musical como coralista do famoso Coro<br />

do St. John’s College de Cambridge, tendo as suas<br />

actuações a solo incluído uma muito apreciada<br />

gravação do Requiem de Maurice Duruflé. Regressou<br />

mais tarde à Universidade de Cambridge para<br />

se doutorar em música e em 1980 fundou a<br />

orquestra barroca The King’s Consort. Dirigiu já<br />

em quase todos os países da Europa, deslocandose<br />

frequentemente a Espanha, Holanda, França,<br />

Bélgica e Itália. Fora da Europa efectuou digressões<br />

ao Japão, Formosa, Canadá, Brasil, Israel, Argentina<br />

e Hong-Kong. Em 1991 estreou-se como<br />

maestro nos Proms da BBC (com transmissão em<br />

directo para a rádio e para a televisão) tendo<br />

regressado, desde então, por mais duas vezes.<br />

Para além da direcção da sua própria orquestra,<br />

Robert King desenvolve um trabalho intenso<br />

como maestro. Recentemente dirigiu as Orquestras<br />

Sinfónicas de Atlanta, de Norrköping, da RTL e<br />

de Euskadi, as Orquestras de Câmara de Örebro,<br />

de Uppsala, Holandesa e Inglesa (incluíndo a sua<br />

estreia no Royal Festival Hall com o R e q u i e m d e<br />

Mozart), a Orquestra Filarmónica de Vlaanderen,<br />

a Orquestra de Cadaqués, a Israel Camerata e a<br />

Orquestra Italiana Il Giardino Armonico. Trabalha<br />

também regularmente com agrupamentos corais,<br />

tendo as suas recentes apresentações incluido a<br />

direcção do Coro de Câmara da Holanda, do<br />

Orféon Donostiarra, do Coro do New College<br />

Oxford, do Tölzer Knabenchor e do Collegium<br />

Vocale Ghent. As produções de ópera que dirigiu<br />

incluíram as obras de Händel O t t o n e, em Tóquio,<br />

Osaka e Londres, E z i o , no Théatre des Champs-<br />

Elysées, e ainda The Indian Queen, de Purcell, em<br />

Londres e no Festival de Schwetzingen. Entre<br />

muitos concertos de prestígio conta-se o transmitido<br />

a partir de Praga, para a rádio e para a televisão,<br />

por ocasião da visita da Rainha Isabel II à<br />

República Checa.<br />

Robert King<br />

XIX Jornadas Gulben kian de <strong>Música</strong> Antiga [ 92 ]<br />

Robert King é particularmente conhecido<br />

pelas suas interpretações das obras-primas de<br />

Händel, J. S. Bach, Vivaldi e Purcell, tendo interpretado<br />

e gravado muitas das respectivas composições.<br />

Para além da música barroca, o seu<br />

reportório inclui regularmente obras corais e<br />

instrumentais do período clássico e do primeiro<br />

romantismo, incluindo obras de Mozart, Haydn,<br />

Schubert e Mendelssohn. Com o King’s Consort<br />

realizou mais de sessenta gravações para a editora<br />

Hyperion, ganhando vários prémios internacionais.<br />

Foi recentemente nomeado Director<br />

Artístico do Festival de Páscoa de Aldeburgh.<br />

Reconhecido como um especialista na música<br />

de Henry Purcell, realizou ambiciosos projectos<br />

de gravação, nomeadamente a integral das odes,<br />

das canções gratulatórias, das canções a solo e da<br />

música sacra. Foi Director Artístico do Wigmore<br />

Hall’s 1995 Purcell Tricentenary Festival e editou<br />

uma grande parte da música deste compositor<br />

inglês. O seu livro sobre Purcell, publicado pela<br />

Thames and Hudson, foi considerado como<br />

“a biografia definitiva” do compositor.


Ao longo de quase trinta anos, James<br />

Bowman tem sido considerado como um dos principais<br />

contratenores mundiais. A sua carreira inclui<br />

a ópera, a oratória, música contemporânea e<br />

recitais a solo. Fez a sua estreia londrina em 1967,<br />

quando foi convidado por Benjamin Britten para<br />

cantar no concerto de inauguração do novo Queen<br />

Elisabeth Hall. De imediato começou a ser solicitado<br />

para produções de ópera e apresentações em<br />

concerto, estreando-se no Sadlers Wells em 1967,<br />

em Glyndebourne em 1970, na English Nacional<br />

Opera em 1971 e na Royal Opera House em<br />

1971. As suas numerosas participações operáticas<br />

fora de Inglaterra incluiram Paris (Ópera de Paris,<br />

Théatre des Champs-Elysées e Opéra Comique),<br />

Scala de Milão, Teatro La Fenice em Veneza e o<br />

Festival de Aix-en-Provence. Na Austrália apresentou-se<br />

na Ópera de Sydney e nos Estado<br />

Unidos em São Francisco, Dallas e Santa Fé. Na<br />

sala de concertos é reconhecido pelos seus recitais,<br />

com digressões por todo o mundo. Fez mais de<br />

cento cinquenta gravações com as maiores editoras<br />

discográficas, sob a direcção de maestros como<br />

Harnoncourt, Mackerras, Leppard, Hogwood,<br />

Brüggen, Dorati e Pinnock.<br />

A maioria das suas mais recentes gravações e<br />

muitos dos seus concertos foram realizados com o<br />

King’s Consort, agrupamento com o qual se apresentou<br />

no Japão, em Hong-Kong e por toda a<br />

Europa. Fez mais de trinta gravações com o King’s<br />

Consort, incluindo os projectos de gravação integral<br />

das Odes, Musica Sacra e Canções Seculares<br />

de Purcell. Gravou também as oratórias de Händel<br />

J o s h u a, Judas Macchabaeus, D e b o r a h, The Occasional<br />

O r a t o r i o e Joseph and his Brethren, a ópera O t t o n e, dois<br />

discos de árias das óperas de Händel e os duetos<br />

italianos do mesmo autor, assim como Trois Leçons<br />

de Ténèbres de Couperin, música de Schütz e de<br />

Gabrieli, canções com alaúde de Dowland e um<br />

disco com música de Scarlatti e de Hasse.<br />

James Bowman<br />

James Bowman estreou muitas obras contemporâneas<br />

importantes, incluindo composições de<br />

Benjamin Britten, Michael Tippett, Peter Maxwell<br />

Davies, Richard Rodney Bennett, Robin Holloway,<br />

Geoffrey Burgon, Michel Nyman e Alan<br />

Ridout. Em Maio de 1996 recebeu o Grau<br />

Honorário de Doutor em <strong>Música</strong> pela Universidade<br />

de Newcastle e em Junho de 1997 foi galardoado<br />

pelos seus serviços em prol da música.<br />

[ 93 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCV III.


The King’s Consort é um dos principais grupos<br />

instrumentais de época britânicos, podendo<br />

apresentar-se como agrupamento de câmara ou<br />

como orquestra barroca. Efectuou já digressões<br />

pelos cinco continentes e é uma das orquestras de<br />

instrumentos originais que mais gravações realizou.<br />

Ao longo deste último ano, o King’s Consort<br />

interpretou uma grande variedade de reportório<br />

barroco e clássico em concertos realizados na<br />

Áustria, Bélgica, França, Holanda, Noruega,<br />

Portugal, Espanha, Suiça e República Checa,<br />

incluindo também um espectáculo, transmitido em<br />

directo pela televisão e pela rádio, por ocasião da<br />

visita de estado da Rainha Isabel II a Praga. O<br />

King’s Consort fez uma aclamada estreia no Royal<br />

Albert Hall em 1991, nos Proms da BBC, apresentando-se<br />

aí por mais duas vezes, desde essa<br />

altura. Em 1995 inaugurou as celebrações Purcell<br />

da BBC, com um Concerto de Ano Novo, transmitido<br />

em directo pela televisão. Considerados<br />

como intérpretes de referência da música de<br />

Purcell, no ano do tricentenário da morte do compositor<br />

britânico realizaram digressões a Hong-<br />

Kong, Argentina, Brasil e a quase todos os países<br />

europeus. As produções de ópera que contaram<br />

com a sua participação incluem Ottone, de Händel,<br />

no Japão e na Inglaterra, E z i o , também de Händel,<br />

no Théatre des Champs-Elysées (Paris), e T h e<br />

Indian Queen, de Purcell, no teatro histórico alemão<br />

de Schwetzingen.<br />

As sessenta aclamadas gravações que o King’s<br />

Consort realizou para a Hyperion receberam<br />

muitos prémios internacionais. A orquestra é mais<br />

conhecida pelas suas interpretações da música<br />

instrumental de Händel e de Purcell, mas o seu<br />

reportório gravado inclui também obras de Johann<br />

Sebastian Bach (cantatas, Missa em Si menor e as<br />

Sonatas em trio); dois discos de árias de Händel<br />

com James Bowman; a História da Natividade d e<br />

Heinrich Schütz; motetos de Gabrieli; Stabat Mater<br />

The King’s Consort<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 94 ]<br />

de Pergolesi; música vocal de Dowland, Scarlatti,<br />

Hasse e Couperin e música de câmara, concertos e<br />

música instrumental de Telemann, Albinoni e<br />

Vivaldi. Os projectos de gravação de obras de<br />

Purcell como a integral das odes, canções gratulatórias<br />

e canções a solo. (8 CDs) e a da música<br />

sacra (11 volumes) consagraram o King’s Consort<br />

como a principal referência interpretativa da música<br />

deste compositor. O King’s Consort gravou<br />

também doze CDs dedicados à música de Händel,<br />

incluindo as obras Acis and Galatea, Ottone, Joshua,<br />

Deborah, Judas Macchabaeus, Occasional Oratorio, Joseph<br />

and his Brethren e mais recentemente, Alexander Balus,<br />

assim como os duetos italianos, os C o r o n a t i o n<br />

Anthems, Music for Royal Occasions e uma notável<br />

primeira gravação de Music for the Royal Fireworks, na<br />

versão original do compositor para um grande<br />

agrupamento de sopros. Foi recentemente lançada<br />

um extravagante gravação de Water Music d e<br />

Händel, juntamente com uma igualmente colorida<br />

versão de W a s s e r m u s i k de Telemann. Os primeiros<br />

três volumes do grande projecto de gravação de<br />

uma integral da música sacra de Vivaldi, receberam<br />

já um série de prémios.<br />

Os projectos mais importantes agendados<br />

para as próximas temporadas incluem interpretações<br />

das obras de Händel B e l s h a z z a r e Acis and<br />

Galatea, massivas produções de Lo Spozalizio e da<br />

Tragédia Romântica de Filipe o Belo, uma exploração em<br />

grande escala da música de Johann Sebastian Bach<br />

e dos seus contemporâneos (culminando num festival<br />

com um ano de duração no Wigmore Hall,<br />

em Londres), os volumes seguintes do projecto<br />

Vivaldi e um novo projecto dedicado às Quatro<br />

Suites Orquestrais de Bach.


95<br />

Li sboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 96 ]<br />

S e g u n d a ,<br />

Dia<br />

1 2


Academia das Ciências de Lisboa, 2 1 . 3 0<br />

MÚSICA PARA O TEATRO DE SHAKESPEARE<br />

De The Tempest:<br />

MATTHEW LOCKE (? 16 2 1/22 - 16 7 7)<br />

Introdução - Galharda - Gavotte<br />

ROBERT JOHNSON (ca. 1583 - 16 3 3)<br />

Hark, hark, the l ark<br />

De Measure for Measure:<br />

JOHN WILSON (1595 - 16 7 4)<br />

Take, O take those lips a way<br />

De The Tempest:<br />

MATTHEW LOCKE<br />

Melodia de Abertura<br />

De Twelfth Night:<br />

THOMAS MORLEY (? 15 5 7/58 - 16 0 2)<br />

O mistress mine<br />

ROBERT JOHNSON<br />

When that I was<br />

De Timon of Athens:<br />

HENRY PURCELL (1659 - 16 9 5) E JAMES PAISIBLE (? - 17 2 1)<br />

Suite<br />

De Winter’s Tale:<br />

JOHN WILSON<br />

Lawn as white as driven snow<br />

De Romeo and Juliet:<br />

RICHARD EDWARDS (1524 - 15 6 6)<br />

When griping grief<br />

De The Tempest:<br />

MATTHEW LOCKE<br />

Ária Rústica - Corant - Conclusão<br />

De Otello:<br />

A N Ó N I M O<br />

The Willow Song<br />

•<br />

EDWARD JOHNSON (1572 - 16 0 1)<br />

Eliza is th e fairest Queen<br />

[ 97 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCV III.


I n t e r v a l o<br />

HENRY PURCELL<br />

Canções e música instrumental de The Fairy Queen<br />

Thus, thus the gloomy world<br />

Dança de Abertura e Ária<br />

Sin fonia para a entrada dos cisnes<br />

One charming nig ht<br />

Dança para os seguidores da noite<br />

See even night herself is here<br />

Dança das Fadas<br />

Dança dos Homens verde s<br />

Thrice happy lovers<br />

The Pla int<br />

Melodia do Segundo Acto<br />

If lov e’s a sweet passion<br />

THE KING’S CONSORT<br />

Pavlo Beznosiuk V i o l i n o<br />

Lucy Howard V i o l i n o<br />

Rachel Byrt V i o l a<br />

Katherine Sharman Baixo de Violino<br />

Richard Campbell Baixo de Violino<br />

Paula Chateauneuf T e o r b a<br />

James Bowman C o n t r a t e n o r<br />

Robert King Órgão, Cravo e Direcção<br />

XIX Jorn adas Gulb enkian de <strong>Música</strong> An tiga [ 98 ]


MÚSICA PARA O TEATRO DE SHAKESPEARE<br />

Estabelecer o teatro como ponto de partida<br />

para uma aproximação à produção musical revestese<br />

de particular significado num país como a<br />

Inglaterra que conheceu, desde cedo, nas artes do<br />

palco uma das suas manifestações culturais mais<br />

ricas e valiosas. Se as questões levantadas pela associação<br />

do texto à música constituíram, desde sempre,<br />

uma das pedras de toque da composição musical,<br />

quando se começou a pensar na dramatização<br />

do texto a história do pensamento musical conheceu<br />

uma das suas mais importantes inflexões com<br />

a criação do género operático. Ao circunscrever-se<br />

um programa de concerto ao tema de “<strong>Música</strong><br />

para o Teatro de Shakespeare”, em última análise,<br />

seríamos levados a dar resposta à velha questão “o<br />

que está primeiro, a palavra ou a música ?” Neste<br />

caso a resposta cabal é: a palavra! A palavra em<br />

todo a sua dimensão coloquial, com toda a naturalidade<br />

da “spoken word”, cruzada com uma teia<br />

de duplos sentidos e uma transcendência poética<br />

secreta. A poesia une-se ao drama, a frase simples e<br />

directa contém todas as nuances da emoção, mas é<br />

também analítica. Enfim uma espécie de melodia<br />

de palavras com os acentos e respirações próprios<br />

ao pensamento do poeta, mas que poderia ser<br />

intercalada por canções ou alguma música instrumental.<br />

William Shakespeare (1564-1616) foi<br />

porventura um dos autores cuja obra mais estimulou<br />

a controvérsia, a reflexão e a investigação. É<br />

consensual o reconhecimento da sua grandiosidade,<br />

da sua profundidade, enfim da sua universalidade.<br />

O Homem, em todas as suas contradições<br />

e matizes emocionais, em todos os seus defeitos e<br />

qualidades, aparece retratado na sua dramaturgia.<br />

Cada época se reviu de forma diferente, mas a verdade<br />

é que a reputação de Shakespeare não pára de<br />

crescer, sendo agora a vez do cinema, a mais “glob<br />

a l i z a n t e ”das artes, que depois das visões de Orson<br />

Wells se tem vindo a apropriar desta obra. No<br />

Século XVIII procedeu-se ao estabelecimento do<br />

texto com base no Folio de 1623, e sua divulgação<br />

por Vanda de Sá<br />

em versões por vezes emendadas, adocicadas e<br />

livres de rugosidades. Os Românticos mitificaramno<br />

e idolatraram-no e em seu nome proclamaram<br />

a revolução, o novo, ou a sublimação (Stendhal,<br />

Berlioz ou Verdi). O Século XX exalta agora a<br />

violência e a paixão das personagens, identifica-as<br />

com o Homem comum, transfere-as para a rua.<br />

Shakespeare transformou-se num clássico que,<br />

pela sua universalidade, permite todas as liberdades,<br />

mas não há dúvida que é também no século<br />

XX que maior atracção se sente pelo retorno à<br />

origem, através da recente reconstrução do<br />

pequeno teatro circular de madeira em que<br />

Shakespeare trabalhou (The Globe), a recuperação<br />

da música original para as suas peças, enfim o<br />

respeito máximo pelo texto original.<br />

Em finais do Século XVI, a Inglaterra era um<br />

pequeno reino que se encontrava em plena expansão<br />

política, económica e artística, decorrente de<br />

um processo de tomada de consciência da sua<br />

existência nacional e dos seus valores humanos.<br />

No plano literário e musical verificou-se um florescimento<br />

de raro fôlego que pôs o país a par das<br />

tendências do Renascimento no continente. Desta<br />

feita, a obra de William Shakespeare não se constituiu<br />

propriamente como um fenómeno isolado<br />

pois integrou-se numa época de intensa expressão<br />

literária, sobretudo teatral, mas também poética.<br />

Em Londres abundavam os poetas refinados ou<br />

eróticos, sábios ou simplesmente apaixonados, cultivava-se<br />

a elegia, a lenda, o mito, o soneto e a sátira.<br />

Aprofundava-se o engenho, a reinvenção da língua.<br />

Como aliás aparece reflectido na sua obra<br />

dramática, Shakespeare também não resistiu a este<br />

domínio da criação, tão admirado entre a sociedade<br />

cultivada e aristocrata que ele próprio frequentava.<br />

Ficaram-nos dentro do género poético V e n u s<br />

and Adonis (1593), Rape of Lucrece (1594) e ainda os<br />

seus sonetos editados em 1609, embora sem a<br />

autorização do autor, que seguem a moda do<br />

poema amoroso que idolatrava a beleza feminina –<br />

[ 99 ] Li sboa, 6 a 1 4 Outub ro MCMXCVIII.


a sua singularidade residiu simplesmente no facto<br />

de se dirigirem a um jovem rapaz. Aqui Shakespeare,<br />

com raro fôlego poético, exprime a melancolia,<br />

o desgosto e a nostalgia em relação à morte,<br />

enfim os demónios do envelhecimento e dos<br />

amores interditos. Com esta edição estamos, de<br />

facto, perante a melhor e mais grandiosa produção<br />

de sonetos (154) do período Isabelino, tratandose<br />

como que de uma condensação, uma síntese dos<br />

seus trabalhos dramáticos de 20 anos.<br />

A vida musical na Inglaterra do tempo de<br />

Shakespeare floresceu sobretudo entre os compositores<br />

que trabalhavam para a corte real de Isabel<br />

I (1558-1603). Os géneros cultivados passavam<br />

pela música instrumental de tecla, sobretudo para<br />

o virginal, mas também para agrupamentos<br />

(“Consorts”). A música vocal era sacra, ou cantava<br />

a arte dos poetas contemporâneos, sendo que<br />

grande parte deste tipo de produção servia as representações<br />

teatrais. A maioria dos compositores<br />

hoje em programa dedicou precisamente parte da<br />

sua produção musical ao teatro, em concreto, a um<br />

dos seus maiores autores, Shakespeare. Os compositores<br />

apresentados permitem, em larga medida,<br />

ficar com uma ideia clara da evolução da música<br />

vocal enquanto estrutura limitada tipo canção,<br />

com a função de intercalar uma narrativa teatral<br />

longa. A partir daí, pode acompanhar-se o processo<br />

de crescente dramatização, através da assimilação<br />

de uma escrita tipo declamatório e das<br />

influências italianas que naturalmente se farão sentir<br />

na tradição da Masque – um género de entretenimento<br />

dramático que floresceu em Inglaterra<br />

nos Séculos XVI e XVII, envolvendo poesia,<br />

música e sequências dramáticas relativamente elaboradas<br />

– mas sobretudo nas semi-óperas de<br />

Henry Purcell.<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 100]<br />

Robert Johnson (ca. 1583-1633), esteve ao<br />

serviço de Lord Chamberlain e foi alaudista da<br />

Corte, de 1604 até à data de sua morte. Foi um<br />

compositor dotado que conheceu alguma consagração<br />

na sua época tendo escrito canções para<br />

várias peças teatrais, incluindo as de Shakespeare.<br />

Com um estilo que acompanhou as tendências da<br />

sua época, escreveu também música para Masques,<br />

danças para alaúde com uma escrita muito refinada,<br />

mas também alguma música sacra e instrumental.<br />

John Wilson (1595-1674), desenvolveu a<br />

sua actividade de músico sobretudo como compositor<br />

e alaudista. Foi na condição de músico<br />

prático que se reuniu em 1635 ao “King’s<br />

Musick” (como alaudista e cantor), mudando-se<br />

mais tarde com a Corte para Oxford, onde se<br />

tornou professor de música na Universidade<br />

(1656-61). A maior parte da sua produção é constituída<br />

por canções, que podem ser, desde longas e<br />

melodiosas baladas até uma escrita vocal mais do<br />

tipo declamatório e dramático, tendo sido algumas<br />

delas escritas para peças teatrais.<br />

Matthew Locke (1621/22-1677), começou<br />

a sua actividade musical integrando o Coro da<br />

Exeter Cathedral. Após a Restauração, em 1660,<br />

Locke passou a ocupar três cargos na Corte, aos<br />

quais adicionou em 1662 o de organista da rainha.<br />

A produção de música para o teatro foi uma constante<br />

ao longo da sua vida e de facto a sua reputação<br />

associa-se sobretudo à música para conjuntos<br />

instrumentais e dramática, sendo que neste<br />

último domínio se constituiu como uma influência<br />

inegável para Henry Purcell. Escreveu música<br />

para cerca de dez representações teatrais, revelando<br />

normalmente um apurado sentido dramático,<br />

sobretudo na escrita dos recitativos e entreactos.


A transição e estabilização para o período<br />

barroco, desde logo marcado pelo advento da<br />

ópera em Itália em 1600, é protagonizada por um<br />

dos grandes nomes da música de todos os tempos,<br />

Henry Purcell (1659-1695). Entre as suas principais<br />

influências musicais encontram-se Matthew<br />

Locke, Pelham Humfrey ou John Blow, para além<br />

do conhecimento e cada vez maior familiaridade<br />

com a música italiana do seu tempo. A maior parte<br />

da música dramática de Purcell consiste em aberturas,<br />

entreactos, danças e canções que eram introduzidas<br />

ao longo das peças teatrais, na linha do<br />

que acontecia com os compositores de gerações<br />

anteriores. Desenvolveram-se no entanto, em finais<br />

do século XVII, algumas produções, embora de<br />

número limitado, que permitiam a inclusão de<br />

uma muito maior quantidade de música, incluindo<br />

cenas inteiras. Purcell escreveu música para cinco<br />

produções deste tipo que ficariam conhecidas<br />

como semi-óperas. Quatro delas: The Dioclesian<br />

( 1 6 9 0 ), The Fairy Queen ( 1 6 9 2 ), The Tempest<br />

( c a . 1 6 9 5 ) e The Indian Queen (1695), foram adapatações<br />

de peças já existentes. Apenas King Arthur<br />

(1691) foi escrita por John Dryden especificamente<br />

para o efeito de servir a música de Purcell.<br />

The Fairy Queen é baseada na peça A Midsummer<br />

Night’s Dream de Shakespeare, segundo um libreto<br />

de provável autoria de Elkanah Settle. Constitui-se<br />

como uma semi-ópera de um prólogo e cinco<br />

actos na qual, de acordo com o género, podem<br />

encontrar-se cenas musicais de significativa extensão,<br />

que revelam a herança da masque, e que são<br />

apresentadas pelas personagens secundárias, uma<br />

vez que a acção central era apresentada por meio<br />

de representação teatral. Na época The Fairy Queen<br />

foi um espectáculo particularmente dispendioso,<br />

ao ponto da United Company se ver obrigada a<br />

apresentá-la em 1692 e novamente em 1693,<br />

numa versão com mais momentos musicais, para<br />

cobrir a despesa. Mas a verdade é que esta semiópera<br />

foi também um dos maiores sucessos de<br />

Henry Purcell em vida. Para o seu êxito terá contribuído<br />

o carácter onírico da peça de Shakespeare,<br />

já que o teatro inglês, por tradição, associava a<br />

música sobretudo a cenas relativas à representação<br />

de cerimónias religiosas, intervindo deuses pagãos<br />

da Antiguidade greco-latina, ou então a cenas em<br />

que interviessem personagens sobrenaturais como<br />

fantasmas, feiticeiras ou fadas.<br />

Robert King<br />

(ver página 92)<br />

James Bowman<br />

(ver página 93)<br />

The Kings’<br />

C o n s o r t<br />

(ver página 94)<br />

[ 101 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


<strong>Música</strong> para o Teatro<br />

de William Shakespeare<br />

Hark, hark, the lark<br />

Hark, hark, the lark at<br />

heaven’s gate sings,<br />

And Phoebus ‘gins arise,<br />

His steeds to water at those springs<br />

On chaliced flowers that<br />

lies;<br />

The winking marybuds begin<br />

To ope’ their golden eyes:<br />

With everything that pretty is,<br />

My lady sweet, arise!<br />

Arise, arise!<br />

Take, O take those Lips Away<br />

Take, O take those lips away,<br />

That so sweetly were forsworn:<br />

And those eyes, the break of day,<br />

Lights that do mislead the morn:<br />

But my kisses bring again,<br />

Seals o f love, but sealed in vain.<br />

Hide, O hide those Hills of Snow<br />

That thy frozen bosom bears,<br />

On whose tops, the pinks that grow.<br />

Are of those that April wears.<br />

But first set my poor heart free,<br />

Bound in ivy chains by thee.<br />

O Mistress mine<br />

O Mistress mine! Where are you roaming?<br />

O stay and hear; your true love’s coming,<br />

That can sing both high and low.<br />

Trip no further, pretty sweeting;<br />

Journeys end in lovers meeting,<br />

Every wise man’s son doth know.<br />

What is love? ‘tis not hereafter;<br />

Present mirth hath<br />

present laughter;<br />

What’s to come is still unsure:<br />

In delay there lies no plenty;<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 102]<br />

Escutai, escutai a cotovia<br />

Escutai, escutai a cotovia que canta às portas<br />

do céu,<br />

e já Febo se apressa a erguer-se,<br />

os seus corcéis refrescam-se<br />

nas águas da nascente onde se deitam os<br />

nenúfares;<br />

os botões de malmequer<br />

começam a abrir seus olhos doirados:<br />

como tantas outras coisas bonitas,<br />

minha querida senhora, despertai!<br />

Despertai, despertai!<br />

Afasta esses lábios<br />

Afasta, afasta esses lábios,<br />

que tão docemente mentiram:<br />

e esses olhos, alvores da manhã,<br />

luzes que iludem a aurora:<br />

mas traz os meus beijos de volta,<br />

selos de amor, que selados foram em vão.<br />

Esconde, esconde esses montes de neve<br />

que o teu frio colo abriga.<br />

As rosáceas que florescem nos seus cumes,<br />

são das cores que Abril se cobre.<br />

Mas antes liberta o meu pobre coração,<br />

preso, por ti, em correntes de hera.<br />

Minha Senhora<br />

Minha Senhora! Onde is?<br />

Ficai e ouvi, que chega o vosso fiel amante,<br />

que pode alto e baixo cantar.<br />

Não viajeis mais, meu lindo amor;<br />

as viagens acabam em encontros de amantes,<br />

e isso todo o filho de um homem sensato o sabe.<br />

O que é o amor? Não é o que há-de vir;<br />

O regozijo do presente é feito de risos do<br />

presente;<br />

O que há-de vir é ainda incerto;<br />

o protelamento não traz abundância;


Then come kiss me, sweet and twenty,<br />

Youth’s a stuff will not endure<br />

When that I was<br />

When that I was and a little tiny boy<br />

With hey-ho the wind and the rain,<br />

A foolish thing was but a toy,<br />

For the rain it raineth every day.<br />

But when I came to man’s estate,<br />

With hey-ho the wind and the rain,<br />

‘Gainst knaves and thieves men shut<br />

their gate,<br />

For the rain it raineth every day.<br />

But when I came alas to wive,<br />

With hey-ho the wind and the rain,<br />

By swaggering I could never thrive,<br />

For the rain it raineth every day.<br />

A great while ago the world began<br />

With hey-ho the wind and the rain,<br />

But that’s all one, our play is done,<br />

And we’ll strive to please you every day.<br />

Lawn as white as driven snow<br />

Lawn as white as driven snow,<br />

Cyprus black as e’er was crow;<br />

Gloves as sweet as damask roses;<br />

Masks for faces and for noses;<br />

Bugle-bracelet,<br />

necklace-amber,<br />

Perfume for a lady’s chamber;<br />

Golden quoifs and stomachers,<br />

For my lads to give their dears;<br />

Pins and poking sticks of steel;<br />

What maids lack from head to heel:<br />

Come buy of me, come; come buy, come buy;<br />

Buy lads, or else your lasses cry:<br />

Come buy.<br />

Where griping grief<br />

Where griping grief the heart would wound,<br />

And doleful dumps the mind oppress;<br />

Then music with her silver sound,<br />

Is wont with speed to give redress;<br />

Of troubled minds for every sore,<br />

Sweet music hath a salve therefore.<br />

In joy it makes our mirth abound,<br />

In grief it cheers our heavy sprites.<br />

assim vem e beija-me, jovem donzela,<br />

pois o encanto da juventude não durará<br />

para sempre.<br />

Quando eu era<br />

Quando eu era pequenino<br />

e andava ao vento e à chuva,<br />

todas as coisas tolas não passavam de brinquedos,<br />

pois a chuva caía todos os dias.<br />

Mas quando cheguei ao estado adulto,<br />

e andava ao vento e à chuva,<br />

contra velhacos e ladrões os homens se fechavam<br />

em casa,<br />

pois a chuva caía todos os dias.<br />

Mas quando, finalmente, me casei,<br />

e andava ao vento e à chuva,<br />

com fanfarronadas nunca consegui triunfar,<br />

pois a chuva caía todos os dias.<br />

O mundo começou há muito, muito tempo,<br />

sempre com vento e chuva,<br />

mas isso é tudo o mesmo, e a nossa peça acabou,<br />

e nós procuraremos sempre agradar-vos.<br />

Cambraias brancas de neve<br />

Cambraias brancas de neve,<br />

crepes mais negros que corvos,<br />

luvas tão suaves como rosas adamascadas;<br />

disfarces para o rosto e nariz;<br />

braceletes de negras missangas, âmbar para o<br />

pescoço,<br />

perfumes de toucador;<br />

coifas e espartilhos doirados<br />

para vós, rapazes, oferecerem às vossas amadas;<br />

alfinetes, e ferros de engomar colarinhos,<br />

tudo o que as donzelas precisam dos pés à cabeça:<br />

vinde comprar-me, vinde: vinde comprar-me;<br />

comprai, rapazes, se não as quereis ver chorar,<br />

vinde comprar.<br />

Onde a mágoa profunda<br />

Onde a mágoa profunda atinge o coração,<br />

e nostálgicas tristezas oprimem a mente;<br />

a música, com o seu som argentino,<br />

com veloz auxílio trará consolo;<br />

às mentes perturbadas por cada ferida,<br />

a doce música é um bálsamo.<br />

Na alegria aumenta-nos o deleite,<br />

na aflição anima-nos o espírito pesaroso.<br />

[ 103 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCV III.


The careful head release hath found,<br />

By music’s pleasant sweet delights.<br />

Our senses, what should I say more,<br />

Are subject unto music’s lore.<br />

O heavenly gift that turns the mind,<br />

Like as the stern doth rule the ship:<br />

O music, whom the gods assigned,<br />

To comfort man, whom cares would nip.<br />

Since thou both man and beast dost move,<br />

What wise man, then, will thee reprove?<br />

The willow song<br />

The poor soul sat sighing by a<br />

sycamore tree,<br />

Sing willow, willow, willow.<br />

With his hand on his bosom,<br />

And his head upon his knee.<br />

O willow, willow, willow, willow<br />

Shall be my garland.<br />

Sing all a green willow.<br />

Aye, me, the green willow must be my<br />

garland.<br />

He sighed in his singing and made a great moan.<br />

Sing willow, willow, willow.<br />

I am dead to all pleasure,<br />

my true love he is gone.<br />

The mute bird sat by him,<br />

was made tame by his moans.<br />

Sing willow, willow, willow.<br />

The true tears fell from him,<br />

would have melted the stones.<br />

Let love no more boast her<br />

in palace nor bower.<br />

Sing willow, willow, willow.<br />

It buds but it blasteth ere<br />

it be a flower.<br />

Let nobody chide her, her scorns I approve.<br />

Sing willow, willow, willow.<br />

She was born to be false, and I to die<br />

for love.<br />

Take this for my farewell, and<br />

latest adieu.<br />

Sing willow, willow, willow.<br />

Write this on my tomb, that in love I was true.<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 104]<br />

o mais apreensivo encontrou alívio,<br />

nos aprazíveis e doces prazeres da música.<br />

Os nossos sentidos - que mais poderei acrescentar,<br />

estão subjugados ao saber da música.<br />

Ó dádiva celeste que orientas a mente,<br />

tal como a popa norteia o navio:<br />

música, a quem os deuses confiaram,<br />

a tarefa de aliviar o Homem das suas preocupações.<br />

Uma vez que tu comoves ambos homens e bestas,<br />

que homem sábio alguma vez te reprovará?<br />

A canção do salgueiro<br />

A pobre alma sentou-se, suspirando, junto ao<br />

sicômoro:<br />

“Oh, o salgueiro, o salgueiro, o salgueiro.”<br />

com a mão sobre o peito,<br />

e a cabeça nos joelhos.<br />

“Oh, o salgueiro, o salgueiro, o salgueiro,<br />

Cantai todos que o verde salgueiro,<br />

será a minha coroa fúnebre.<br />

Ai de mim, o verde salgueiro será a minha coroa<br />

fúnebre.”<br />

Ele cantava, e suspirava, e muito se lamentava.<br />

“Cantai, o salgueiro, o salgueiro, o salgueiro.”<br />

Estou morto para todo o prazer,<br />

O meu verdadeiro amor foi-se embora.”<br />

O cisne branco pousou a seu lado,<br />

domado pelos seus gemidos.<br />

“Cantai, o salgueiro, o salgueiro, o salgueiro.”<br />

As amargas lágrimas caiam-lhe dos olhos,<br />

e amoleciam as pedras.<br />

“Que o amor nunca mais dela se gabe<br />

em palácios ou camaranchões<br />

Cantai, o salgueiro, o salgueiro, o salgueiro.<br />

O amor brotou mas quebrou-se antes<br />

de florescer.”<br />

“Que ninguém a censure, eu aprovo-lhe o desdém.<br />

Cantai o salgueiro, o salgueiro, o salgueiro,<br />

ela nasceu para ser falsa, e eu para morrer<br />

de amor.”<br />

“Tomai isto como a minha despedida e o meu<br />

último adeus.<br />

Cantai o salgueiro, o salgueiro, o salgueiro.<br />

Escrevei isto no meu túmulo: que no amor fui<br />

verdadeiro.”


Eliza is the fairest Queen<br />

Eliza is the fairest Queen<br />

That ever trod upon the green.<br />

Eliza’s eyes are blessed stars,<br />

Inducing peace, subduing wars.<br />

O blessed be each day and hour<br />

Where sweet Eliza builds her bower.<br />

Eliza’s hand is crystal bright,<br />

Her words are balm, her looks<br />

are light.<br />

Eliza’s breast is that fair hill<br />

Where virtue dwells, and sacred still.<br />

O blessed be each day and hour<br />

Where sweet Eliza builds her bower.<br />

Eliza é a Rainha mais bela<br />

Eliza é a Rainha mais bela<br />

que jamais andou por estes pastos.<br />

Os olhos de Eliza são estrelas abençoadas,<br />

que induzem a paz, e subjugam as guerras.<br />

Oh, que sejam abençoados cada dia e hora<br />

em que a doce Eliza construir o seu retiro.<br />

A mão de Eliza é cintilante como o cristal,<br />

as suas palavras são um bálsamo, a sua aparência<br />

é de luz.<br />

O seio de Eliza é aquele belo monte<br />

onde a virtude habita, ainda sagrada.<br />

Oh, que sejam abençoados cada dia e hora<br />

em que a doce Eliza construir o seu retiro.<br />

Tradução de Cláudia Mealha<br />

[ 105 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


The Fairy Queen<br />

HENRY PURCELL<br />

Thus, thus the gloomy world<br />

Thus the gloomy world<br />

At first began to shine,<br />

And from the power divine<br />

A glory round it hurled;<br />

Which made it bright,<br />

And gave it birth in light.<br />

Then were all minds as pure<br />

As those ethereal streams;<br />

In innocence secure,<br />

Not subject to extremes.<br />

There was no room for empty Fame,<br />

No cause for Pride,<br />

Ambition wanted aim.<br />

One charming night<br />

One charming night<br />

Gives more delight<br />

Than a hundred lucky days.<br />

Night and I improve the taste,<br />

Make the pleasure longer last,<br />

A thousand several ways.<br />

See, even Night herself is here<br />

See, even Night herself is here,<br />

To favour your design;<br />

And all here peaceful train is near,<br />

That men to sleep incline.<br />

Let noise and care,<br />

Doubts and despair,<br />

Envy and Spite<br />

(The Fiends delight)<br />

Be ever banished hence,<br />

Let soft repose<br />

Her eyelids close;<br />

And murm’ring streams<br />

Bring pleasing dreams;<br />

Let nothing stay to give offence<br />

XIX Jornadas Gulb en kian de <strong>Música</strong> An tiga [ 106 ]<br />

Foi assim que o mundo sombrio<br />

Foi assim que o mundo sombrio<br />

começou primeiro a brilhar,<br />

e lá do poder divino<br />

lançou uma carga de glória;<br />

que o fez brilhar,<br />

e nascer na luz.<br />

Nesse tempo todas as mentes eram puras<br />

como esses fluxos etéreos;<br />

em inocência resguardados,<br />

longe de todos os extremos.<br />

Não havia espaço para a vazia Fama,<br />

nem razão para o Orgulho,<br />

nem para os desígnios permeados de Ambição.<br />

Uma noite de sedução<br />

Uma noite de sedução<br />

dá mais prazer<br />

que um cento de dias de sorte.<br />

Eu e a noite melhoramos o sabor,<br />

e fazemos o prazer durar,<br />

de mil diferentes maneiras.<br />

Vede, que até a noite chegou<br />

Vede, que até a noite chegou<br />

para favorecer o teu desígnio<br />

e o de todos; o tranquilo séquito aproxima-se<br />

para que os homens resvalem para o sono.<br />

Que o ruído e a preocupação,<br />

as dúvidas e o desespero,<br />

a Inveja e a Maldade<br />

(que são os deleites do Demónio)<br />

sejam daqui banidas para sempre,<br />

que o suave repouso<br />

cerre as suas pálpebras;<br />

e riachos murmurantes<br />

tragam bons sonhos;<br />

que nada que possa ofender<br />

aqui possa permanecer.


Thrice happy lovers<br />

Thrice happy lovers, may you be<br />

For ever, ever free,<br />

From that tormenting devil Jealousy.<br />

From all that anxious care and strife,<br />

That attends a married life:<br />

Be to one another true,<br />

Kind to her as she to you,<br />

And since the errors of the night are past,<br />

May he be ever constant, she for ever chaste.<br />

The plaint<br />

O let me ever, ever weep,<br />

My eyes no more shall welcome<br />

sleep;<br />

I’ll hide me from the sight of day,<br />

And sigh, and sigh my soul away.<br />

He’s gone, he’s gone, his loss deplore;<br />

For I shall never see him more.<br />

If love’s a sweet passion<br />

If love’s a sweet passion, why does it torment?<br />

If a bitter, oh tell me whence comes my<br />

content?<br />

Since I suffer with pleasure, why should I complain,<br />

Or grieve at my fate, when I know ‘tis<br />

in vain?<br />

Yet so pleasing the pain is, so soft is the dart,<br />

That at once it both wounds me and tickles my heart.<br />

I press her hand gently,<br />

look languishing down,<br />

And by passionate silence I make<br />

my love known.<br />

But oh! how I’m blest when so kind<br />

she does prove,<br />

By some willing mistake to discover her love.<br />

When in striving to hide, she reveals all her<br />

flame,<br />

And our eyes tell each other what neither<br />

dares name.<br />

Três vezes amantes felizes<br />

Três vezes amantes felizes possais vós ser<br />

livres para todo o sempre,<br />

dos Ciúmes diabólicos e atormentadores.<br />

E de todos as discórdias e ansiosos cuidados,<br />

que esperam a vida de casados:<br />

sede francos um com o outro,<br />

sede bom para ela como ela para ti,<br />

e uma vez que os erros da noite já passaram,<br />

possa ele ser sempre constante e ela sempre casta.<br />

O lamento<br />

Deixai-me chorar sempre, sempre,<br />

os meus olhos nunca mais darão as boas vindas<br />

ao sono;<br />

esconder-me-ei da vista do Dia,<br />

e fenecerei a minha alma em suspiros.<br />

Ele partiu, foi-se embora, a sua partida choro;<br />

porque nunca mais o verei.<br />

Se o amor é uma doce paixão<br />

Se o amor é uma doce paixão, porque atormenta?<br />

se também amarga, diz-me de onde me vem a<br />

felicidade?<br />

se sofro de prazer, porque me queixo,<br />

ou lamento o meu destino, quando sei que o faço<br />

em vão?<br />

Mas a dor é tão agradável, tão suave é o dardo,<br />

que tanto me fere como me afaga o coração.<br />

Aperto a sua mão com delicadeza, baixando os<br />

olhos ternamente,<br />

e pelo silêncio apaixonado dou a conhecer<br />

o meu amor.<br />

Mas oh! Como me sinto abençoado quando<br />

ela revela,<br />

por algum erro propositado, o seu amor.<br />

Lutando para o esconder ela revela todo o seu<br />

arrebatamento,<br />

e os nosso olhos dizem aquilo que nenhum de nós<br />

se atreve a nomear.<br />

Tradução de Cláudia Mealha<br />

[ 107 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga<br />

108<br />

T e r ç a -<br />

Feira,<br />

Dia<br />

1 3


Sociedade de Geografia de Lisboa, 2 1 . 3 0<br />

OMBRA MAI FÙ:<br />

ÁRIAS, ABERTURAS E SINFONIAS DE ÓPERAS DE HÄNDEL<br />

GEORG FRIEDRICH HÄNDEL (1685 - 17 5 9 )<br />

Da ópera Admeto, Rè di Tessaglia:<br />

Abertura e Introdução<br />

Accompagnato: Orride larve<br />

Arioso: Chiudetevi, miei lumi<br />

Da ópera R a d a m i s t o :<br />

Passacaille - Giga - Passepied/Rigaudon<br />

Da ópera Rodelinda, Regina de’ Longobardi:<br />

S i n f o n i a<br />

Acompagnato: Pompe varne di morte<br />

Ária: Dove sei<br />

Acompagnato: Si l’infida<br />

Ária: C o n f u s a<br />

I n t e r v a l o<br />

Da ópera Giulio Cesare in Egitto:<br />

Ária: Se in fiorito<br />

Ária: Va tacito<br />

Da ode Alexander’s Feast:<br />

Concerto grosso em Dó Maior,<br />

(Allegro - Largo - Allegro - Andante non presto)<br />

Da ópera S e r s e :<br />

S i n f o n i a<br />

Recitativo: Frondi tenere<br />

Arioso: Ombra mai fù<br />

AKADEMIE FÜR ALTE MUSIK<br />

Andreas Scholl C o n t r a t e n o r<br />

[ 109 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


UMA CARREIRA OPERÁTICA<br />

CONTURBADA<br />

por Cristina Fernandes<br />

Considerado como um dos expoentes máximos<br />

do Barroco musical, Georg Friedrich Händel<br />

(1685-1759) foi durante muito tempo reconhecido<br />

pela maioria dos melómanos apenas como<br />

compositor de oratórias ou, simplesmente, como o<br />

autor do Messias, o que acabaria por originar uma<br />

visão redutora do seu génio. Efectivamente,<br />

durante cerca de trinta e cinco anos, a sua principal<br />

actividade foi a de compor e dirigir ópera.<br />

Numa época em que esta constituía a principal<br />

ambição dos músicos que aspiravam à celebridade,<br />

Händel converteu-se, apesar de todas as vicissitudes,<br />

no principal compositor operático em<br />

Inglaterra e num dos mais destacados representantes<br />

deste género musical entre os seus contemporâneos.<br />

Cosmopolita e eclético, Händel foi, por<br />

formação e inclinação, um compositor teatral que<br />

soube incorporar habilmente na sua obra as principais<br />

tradições musicais do seu tempo.<br />

Ao contrário de Johann Sebastian Bach,<br />

Händel nasceu numa família desprovida de<br />

tradições musicais. O seu pai era cirugião-barbeiro<br />

em Halle, na Saxónia, e desejava que o filho se tornasse<br />

advogado. Todavia, confrontado com o brilhante<br />

talento musical que Händel demonstrou<br />

desde a infância, acabaria por consentir que este<br />

tivesse lições com o compositor e organista<br />

Friedrich Zachow (1663-1712). Sob a sua orientação,<br />

Händel converteu-se num hábil cravista e<br />

organista, estudou violino e oboé e recebeu uma<br />

sólida preparação contrapontística. Ao mesmo<br />

tempo familiarizou-se com a música dos principais<br />

compositores alemães e italianos seus contemporâneos,<br />

através da cópia das suas partituras,<br />

como era prática habitual na época.<br />

Correspondendo aos desígnios de seu pai,<br />

Händel matriculou-se em 1702 na Universidade<br />

de Halle a fim estudar direito e um ano mais tarde<br />

(quando contava 18 anos) foi nomeado organista<br />

da catedral. Contudo, a vida rotineira de mestre de<br />

capela (para a qual havia sido preparado por<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 110 ]<br />

Zachow) não satisfazia o seu espírito inquieto.<br />

A ópera era um apelo muito forte e Händel<br />

dirigiu-se para Hamburgo, em 1703, a primeira<br />

cidade alemã a dispor de um teatro público de<br />

ópera desde 1678. Händel tornou-se violinista e<br />

depois cravista da orquestra da ópera do Theater<br />

am Gänsemarkt, e estabeleceu relações com o reputado<br />

teórico Johann Matheson (1691-1764) e<br />

com Reinhard Keiser (1674-1739), então director<br />

da Ópera de Hamburgo e o principal compositor<br />

alemão neste domínio. Foi para teatro de<br />

Hamburgo que Händel compôs as suas primeiras<br />

óperas, das quais sobreviveu apenas A l m i r a , e s t r e ada<br />

a 8 de Janeiro de 1705.<br />

Entre 1706 e 1710 Händel viveu em Itália,<br />

berço da ópera e ponto de passagem obrigatório<br />

para a formação dos compositores da época, onde<br />

foi reconhecido como um dos talentos mais<br />

promissores da sua geração e onde se vinculou aos<br />

principais mecenas e músicos de Roma, Florença,<br />

Nápoles e Veneza. Conheceu Corelli, Caldara,<br />

Alessandro e Domenico Scarlatti e também<br />

Agostino Stefanni, o que exerceu uma forte<br />

influência no seu estilo musical. Este período, que<br />

seria decisivo para a sua carreira posterior, permitiu-lhe<br />

assimilar de forma mais profunda o rico<br />

idioma musical italiano e o brilhantismo do seu<br />

estilo melódico. Para além de outras composições<br />

(salmos, cantatas, oratórias, etc.), Händel conseguiu<br />

também nesta altura o ansiado sucesso no<br />

âmbito da ópera, que se verificou com A g r i p p i n a ,<br />

representada em Veneza em 1709.<br />

No ano seguinte, Händel recebeu uma proposta<br />

para ocupar o lugar de mestre de capela na<br />

corte de Hannover. Deixou então a Itália, mas o<br />

seu novo cargo não seria mais do que um episódio<br />

passageiro. Pouco tempo depois, o compositor<br />

ausentou-se de Hannover com uma licença de 12<br />

meses e dirigiu-se a Londres onde causou sensação<br />

com a sua ópera R i n a l d o , estreada no Queen’ s<br />

Theatre na temporada de 1710-11. De regresso a<br />

Hannover, foi-lhe concedida uma segunda licença<br />

em 1712 para se deslocar novamente à capital<br />

britânica, com a condição de que regressasse num<br />

“espaço de tempo razoável”. Quando dois anos<br />

mais tarde Georg-Ludwig de Hannover foi proclamado<br />

Rei de Inglaterra (Jorge I), Händel ainda<br />

não tinha regressado, acabando por se fixar definitivamente<br />

em Londres, onde empreendeu uma<br />

intensa, mas conturbada carreira.<br />

Durante os primeiros anos na capital britânica,<br />

Händel compôs apenas quatro óperas (Il Pastor


fido, Teseo, Lucio Silla e Amadigi), mas após um interregno<br />

de cinco anos, retomou a sua actividade<br />

operática com grande fulgor, motivado pela criação<br />

da Royal Academy of Music. Fundada em<br />

1719, com o patrocínio do rei, tratava-se de uma<br />

sociedade por acções destinada à realização de representações<br />

operáticas no King’ s T h e a t r e . L o g o<br />

n o seu primeiro ano de existência, Händel ocupou<br />

o cargo de director musical desta instituição e<br />

deslocou-se ao continente com a missão de contratar<br />

cantores. Após o seu regresso, já em 1720,<br />

alcançou um êxito sem precedentes com a ópera<br />

Radamisto que marca o início de um dos seus períodos<br />

criativos mais brilhantes. Pouco tempo depois,<br />

os italianos Filippo Amadei (c.1690-1730) e<br />

Giovanni Bononcini (1670-1755) foram contratados<br />

para completar as temporadas. Este último,<br />

que havia estreado muitas óperas em Roma,<br />

Berlim e Viena, converteu-se no rival mais directo<br />

de Händel.<br />

Graças à energia que Händel colocou ao<br />

serviço deste empreendimento a Academia foi um<br />

êxito artístico, ainda que tivesse sido um fracasso<br />

do ponto de vista económico. Para ela Händel<br />

compôs algumas das suas melhores óperas: além<br />

de Radamisto (1720), O t t o n e (1723), Giulio Cesare<br />

(1724), T a m e r l a n o (1724), R o d e l i n d a (1725) e<br />

A d m e t o (1727) obtiveram êxitos clamorosos.<br />

Porém, o sucesso de The Beggar’ s Opera, de John<br />

Gay e Johann Christoph Peppush – sátira cruel da<br />

s i t u ação político-social londrina e uma dura crítica<br />

ópera à italiana – contribuiria para agravar a<br />

decadência económica que se foi progressivamente<br />

instalando na Royal Academy, que teve de ser dissolvida<br />

em 1728.<br />

Estes acontecimentos não dissuadiram<br />

Händel dos seus intuitos. Logo no ano seguinte,<br />

retoma juntamente com Johann Jakob Heidegger,<br />

empresário do King’ s Theatre, uma sociedade<br />

musical com o mesmo nome da anterior, obtendo<br />

a autorização do rei para utilizar o material da<br />

antiga. Händel assumiu as funções de compositor<br />

e empresário e partiu para Itália à procura de vozes<br />

competentes.<br />

Contudo, a actividade da segunda Royal<br />

Academy foi ainda mais difícil e saldou-se por<br />

vários insucessos que obrigaram Händel a repor<br />

êxitos anteriores. As dificuldades foram agravadas<br />

pelo surgimento em 1733 da Nobility Opera, criada<br />

por um grupo de nobres, com o apoio do<br />

Príncipe de Gales e que passou a exercer uma forte<br />

rivalidade com a companhia de Händel. A<br />

Nobility Opera contava com a colaboração de<br />

Nicola Porpora (1686-1768) – e mais tarde com<br />

a de Johann Adolf Hasse (1699-1783) – para<br />

além dos cantores virtuosos mais reputados da<br />

Europa, entre os quais o célebre c a s t r a t o C a r l o<br />

Broschi (Farinelli) e Francesca Cuzzoni, a qual<br />

tinha trabalhado para a Royal Academy.<br />

Antevendo maiores lucros e mais prestígio na nova<br />

instituição, o sócio de Händel (Heidegger) ofereceu<br />

o King’ s Theatre à Nobility Opera no ano<br />

seguinte.<br />

Na sequência destes acontecimentos, Händel<br />

passou a apresentar as suas óperas no Covent<br />

Garden, a partir de 1734, vendo-se obrigado a<br />

compor, a refazer obras antigas e a incluir nos seus<br />

programas oratórias, concertos para orgão e concerti<br />

g r o s s i . A batalha era desigual e o público estava<br />

dividido, daí que nem a apresentação de óperas da<br />

estatura de Ariodante (1735), Alcina (1735), Atalanta<br />

(1736) e G i u s t i n a (1737), ou da oratória profana<br />

Alexander’ s Feast – cuja apresentação incluía simultaneamente<br />

o célebre Concerto Grosso em Dó<br />

Maior, que ouviremos no concerto de hoje –, conseguiriam<br />

impedir o fracasso financeiro da companhia.<br />

Em 1737 e apesar do êxito da Nobility<br />

Ópera, ambas as companhias acabariam por encerrar<br />

as portas, em consequência da morte da Rainha<br />

Carolina. No curto espaço de tempo que separa o<br />

malogro da terceira companhia de ópera de Händel<br />

e a sua definitiva ruptura com o género operático,<br />

em 1741, compôs ainda F a r a m o n d o ( 1 7 3 8 ) ,<br />

S e r s e (1738) e Deidamia (1741). Nenhuma delas<br />

teve sucesso, mas Serse celebrizou-se nos séculos<br />

posteriores, devido ao famoso arioso Ombra mai fu.<br />

Dotadas de um elevado teor artístico, as<br />

óperas de Händel viram-se confrontadas com o<br />

insucesso, mais por razões sociais do que musicais.<br />

A nobreza londrina era demasiado pobre para<br />

apoiar uma companhia de ópera (duas era impensável!)<br />

e a corte não tinha uma relação de mecenato<br />

directo com a ópera, como acontecia noutros<br />

centros europeus. Por outro lado, a classe média<br />

não se interessava por um entretenimento musical<br />

pensado para a nobreza e apresentado numa língua<br />

estrangeira. A partir de 1741 os esforços criativos<br />

de Händel seriam especialmente canalizados para<br />

a música religiosa, transpondo o seu génio<br />

dramático para a oratória. Mais do que uma opção<br />

estética, esta viragem reflecte antes uma mudança<br />

social no contexto que envolvia a arte de Händel.<br />

[ 111 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCV III.


Em torno da Ópera Séria<br />

Quando Händel se deslocou pela primeira<br />

vez a Inglaterra, com a finalidade de levar Rinaldo à<br />

cena, o público inglês tinha já alguma familiaridade<br />

com o estilo operático italiano, devido às<br />

diversas imitações e importações que se fizeram<br />

durante os primeiros anos de setecentos. Em 1705<br />

foi representado no Teatro de Drury Lane um<br />

libreto italiano traduzido em inglês, Arsinoe, Queen<br />

of Cyprus, com música de Thomas Clayton, Nicola<br />

Haym e Charles Dieuparyt. Realizaram-se também<br />

adaptações de óperas italianas, como C a m i l l a ,<br />

de Bononcini (traduzida para inglês em 1706) e<br />

Pirro e Demetrio, de Alessandro Scarlatti (1708) –<br />

parte em inglês, parte em italiano. A primeira<br />

ópera cantada integralmente em italiano foi<br />

A l m a h i d e de Bononcini (1710), mesmo assim com<br />

i n t e r m e z z i em inglês. Paralelamente processaram-se<br />

tentativas de estabelecer uma ópera em língua<br />

inglesa, mas estas foram em geral mal sucedidas. A<br />

única ópera originalmente em inglês foi R o s a m o n d<br />

(1707), com libreto de Joseph Addison e música<br />

de Thomas Clayton, mas estava condenada ao fracasso<br />

por incompetência do compositor. Deste<br />

modo, o êxito de Rinaldo (1711) marca simultaneamente<br />

o início da série de quarenta óperas que<br />

Händel compôs (ao longo de trinta anos) para os<br />

palcos londrinos e o início do reinado da ópera<br />

italiana na capital britânica.<br />

Ao contrário do que se poderia pensar, a<br />

colossal produção operática de Händel não apresenta<br />

uma linha de orientação ou de desenvolvimento<br />

interno claro, seguindo com maior ou<br />

menor genialidade os ideais da ópera séria. As<br />

temáticas utilizadas são as habituais na época:<br />

lendas e aventuras maravilhosas, baseadas nas<br />

obras de Ariosto e Tasso ou, com mais frequência,<br />

em episódios da vida dos heróis da antiguidade,<br />

livremente adaptados para lograr o máximo de<br />

situações dramáticas intensas. O esquema musical<br />

é similar ao utilizado nos inícios do século XVIII<br />

e recorre às tipologias básicas da ópera séria:<br />

recitativo (s e c c o e a c o m p a g n i a t o), arioso, ária (com<br />

predomínio da ária da capo), duetos e, mais raramente,<br />

grandes conjuntos de solistas. Os dois tipos<br />

de recitativos combinam-se de vez em quando com<br />

árias e a r i o s i breves, convertendo as grandes cenas<br />

dramáticas em complexos que recordam a liberdade<br />

da ópera veneziana do século XVII, ao<br />

mesmo tempo que anunciam (no que diz respeito<br />

à coerência e continuidade dramática) os métodos<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 112 ]<br />

de Gluck e de outros compositores da segunda<br />

metade do século. A acção é reservada aos recitativos<br />

– o recitativo acompanhado adquire com<br />

Händel uma elaboração e intensidade expressiva<br />

sem precedentes – ou às cenas acima descritas,<br />

enquanto as árias se limitam a reflectir ou expressar<br />

uma atmosfera ou sentimento específico, de<br />

acordo com a Teoria dos Afectos.<br />

As partituras de Händel constituem uma<br />

espécie de compêndio da ária no barroco tardio,<br />

pela variedade de exemplos que apresentam, não<br />

obstante a sua estreita ligação com as convenções<br />

da ópera séria. Entre os brilhantes efeitos virtuosísticos<br />

e de agilidade das árias di bravura e a expressividade<br />

patética ou sublime das árias c a n t a b i l e ,<br />

abre-se um mundo de incontáveis riquezas musicais.<br />

Algumas ilustram a grandiloquência barroca,<br />

através dos seus ricos acompanhamentos contrapontísticos,<br />

ou de carácter concertante, enquanto<br />

outras recorrem simplesmente a melodias de estilo<br />

popular, com acompanhamentos de feição galante.<br />

A influência da dança é mais um aspecto singular<br />

das árias de Händel. Tal como J. S. Bach,<br />

Händel estilizava os padrões da dança de acordo<br />

com os afectos a transmitir. Entre os mais utilizados,<br />

encontram-se: a siciliana; a sarabanda, quase<br />

sempre relacionada com a ária c a n t a b i l e (o exemplo<br />

mais famoso é Lascia ch’ io pianga de Rinaldo); a<br />

bourrée; a gavotte, ou mesmo a allemande, nas<br />

árias destinadas a descrever sentimentos de triunfo<br />

e agitação; e ainda a courante e o minueto, no caso<br />

da arietta simples com melodia de sabor popular.<br />

A ária da capo é a principal configuração formal<br />

subjacente a estas categorias, embora possam<br />

aparecer outros padrões. A partir de 1730 Händel<br />

passa a recorrer com mais frequência a formas<br />

abreviadas e simples de ária. Os conjuntos maiores<br />

que os duos são raros, assim como os coros.<br />

Quando estes últimos aparecem, são geralmente<br />

destinados a um cantor por cada parte.<br />

Para além da Abertura, a música puramente<br />

instrumental surge geralmente como música de<br />

dança ou então para assinalar momentos-chave do<br />

argumento, como batalhas, cerimónias ou a evocação<br />

do sobrenatural. Neste último caso é frequente<br />

a designação S i n f o n i a . As Aberturas têm em<br />

geral duas grandes secções: a primeira corresponde<br />

ao carácter solene da abertura à francesa, enquanto<br />

que a segunda é uma dança ou uma série de danças.<br />

A genialidade de Händel está em ter sabido<br />

transcender este conjunto de receitas, através de<br />

uma invenção musical singular.


Obras-primas para grandes virtuosos<br />

As óperas representadas no concerto de hoje<br />

pertencem todas, com a excepção de S e r s e , a o<br />

primeiro período da Royal Academy of Music<br />

(1720-28). Durante este lapso de tempo, Händel<br />

teve o privilégio de ver os principais papéis das<br />

suas óperas serem interpretados por alguns dos<br />

cantores mais célebres da Europa. Apesar dos seus<br />

caprichos e rivalidades (documentadas em<br />

inúmeros relatos setecentistas) e da teimosia de<br />

Händel (que não se submetia aos desejos dos cantores<br />

com a mesma facilidade que os seus colegas),<br />

os seus dotes vocais e interpretativos foram certamente<br />

uma forte fonte de inspiração. Os compositores<br />

desta época eram frequentemente obrigados<br />

a submeter-se às exigências dos cantores, escrevendo<br />

uma música que fizesse brilhar ao máximo os<br />

seus recursos vocais e teatrais. Além disso, as árias<br />

tinham de ser distribuídas de acordo com a<br />

importância de cada membro do elenco.<br />

Os três cantores virtuosos mais importantes<br />

que deram corpo à música de Händel durante este<br />

período foram o castrato Senesio (Francesco<br />

Bernardi), Francesca Cuzzoni e Faustina Bordoni.<br />

O primeiro estreou-se em Londres em 1720, a<br />

segunda em 1723 e a terceira em 1726. Actuaram<br />

pela primeira vez juntos em Alessandro – a primeira<br />

das cinco óperas que Händel escreveu para as duas<br />

cantoras rivais (que chegaram a agredir-se fisicamente<br />

em cena na representação de uma ópera de<br />

Bononcini) e pela segunda em Admeto (1727), uma<br />

das partituras mais subtis de Händel e o último<br />

grande triunfo da Royal Academy (19 representações),<br />

antes do seu encerramento em 1728.<br />

Como já vinha sendo habitual a rivalidade<br />

entre as duas prime donne tinha de vir ao de cima:<br />

“A violência dos partidários das duas cantoras era<br />

tão grande que, quando os admiradores de uma<br />

começavam a aplaudir, os da outra assobiavam”,<br />

conta-nos Quantz na sua A u t o b i o g r a f i a . Por outro<br />

lado, o célebre flautista não poupa elogios à música<br />

e à interpretação: “ (…) tinha uma música magnífica.<br />

Faustina, Cuzzoni e Senesio, três virtuosos,<br />

de primeiro nível, foram os intérpretes fundamentais.<br />

Os restantes eram medianos… A orquestra<br />

estava integrada na sua maior parte por alemães,<br />

vários italianos e poucos ingleses. Castrucci, violinista<br />

italiano era o concertino. Todos juntos, sob<br />

a direcção de Händel, conseguiram resultados<br />

excelentes”. Admeto coroa assim um período áureo<br />

da produção de Händel que se tinha iniciado com<br />

R a d a m i s t o (1720), o primeiro grande sucesso da<br />

Royal Academy of Music, descrito por Charles<br />

Burney como: “mais sólido, engenhoso e cheio de<br />

fogo que qualquer outro drama produzido por<br />

Händel”.<br />

Giulio Cesare (1724) e R o d e l i n d a (1725) constituem<br />

outros dois exemplos da mestria e invenção<br />

dramática de Händel. Se o primeiro representa o<br />

exemplo mais profundo e acabado do ideal heróico,<br />

pela sua exótica magnificência e refinado colorido<br />

orquestral, o segundo constitui um comovente<br />

relato onde a ternura e a dor se exprimem<br />

intensamente<br />

Finalmente, S e r s e (1738) inclui-se na última<br />

fase operática de Händel, depois do malogro das<br />

três companhias com que colaborou. Apesar de<br />

um elenco de prestígio e da inclusão (pela primeira<br />

vez em Händel) de cenas de carácter cómico, teve<br />

pouco sucesso, mantendo-se em cena apenas<br />

durante cinco representações. Não deixa de ser<br />

curioso que uma obra que se inicia com Ombra mai<br />

fu, talvez a melodia mais célebre de Händel (juntamente<br />

com o A l l e l u i a do M e s s i a s e a H o r n p i p e d a<br />

<strong>Música</strong> Aquática), tivesse despertado tão pouco<br />

interesse junto do público da época. Por outro<br />

lado, é ainda mais curioso que esta ária sensual,<br />

cantada por Serse em louvor de uma árvore<br />

(“Jamais houve uma sombra tão querida e<br />

amada…”) se tenha celebrizado no século XIX<br />

como o “Largo de Händel”. Originalmente um<br />

L a r g h e t t o , foi alterada intencionalmente pelos editores<br />

até se converter num lentíssimo L a r g o , o que<br />

lhe retira a sua peculiar força expressiva, ao mesmo<br />

tempo que lhe dá um sabor pseudo-religioso.<br />

Esperamos reencontrar neste concerto o seu espírito<br />

original.<br />

[ 113 ] Lisbo a, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


GEORG FRIEDRICH HÄNDELÁrias<br />

Admeto, Rè di Tessaglia<br />

Recitativo<br />

Orride larve! E che da me volete?<br />

Perchè Admeto fuggite? Ah! Si voi siete, che turbate la mente,<br />

e da voi non risente che un affanno penoso: crude! Non avrò<br />

mai dunquo riposo? Se volete, ch’io muora, io morirò; ma che!<br />

Voi non potete farmi morir senza turbar la quiete? Si, si: di<br />

ferro armate, sanguinolenti, o crude tornate, omai tornate.<br />

Ma! Oh Dio! Ch’io già vi sento che di pietate ignude non<br />

volete che cessi il mio tormento. L’etra si scuota, e con<br />

fulminea fiamma fenda la terra, e nel suo cupo letto ov’è de<br />

sogni il regno, là vi ritrovi, e là vi sguarci il petto. Così<br />

almeno potrò, se il cor si sface già che morir degg’io, morir in<br />

pace.<br />

Arioso<br />

Chiudetevi, miei lumi,<br />

in un perpetuo oblio,<br />

Così col morir mio<br />

Toglietemi alle pene, eterni Numi.<br />

Rodelinda, Regina de’ Longobardi<br />

Recitativo<br />

Pompe vane di morte!<br />

menzogne di dolor.<br />

Che riserbate il mio volto e ‘l mio nome,<br />

ed adulate del vincitor superbo il genio altiero!<br />

voidite, ch’io son morto; mà risponde il mio duol<br />

che non è vero.<br />

Bertarido fù Rè; da Grimoaldo vinto fuggi<br />

presso degli Unni giace.<br />

Abbia l’alma riposo e ‘l cener pace.<br />

L’ace al cener mio?<br />

Astritiranni! dunque fin ch’avrò vita,<br />

guerra avrò con glistenti<br />

e congli affanni.<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 114 ]<br />

Admeto, Rei da Tessália<br />

Recitativo<br />

Horrendas larvas! E que quereis de mim?<br />

Porque foges Admeto? Ah, sois vós que perturbais<br />

a mente, e de vós só surgem ânsias penosas: cruéis!<br />

Nunca terei repouso? Se quereis que eu morra,<br />

morrerei; mas quê! Vós não podeis fazer-me morrer<br />

sem perturbar a quietude? Sim, sim: de ferro<br />

armadas, sanguinolentas, oh cruéis voltais, agora<br />

voltais. Mas! Oh Deus! Que eu já vos oiço e que,<br />

despidas de piedade, não quereis que cesse o meu<br />

tormento. O céu se inflame, e com fulmínea chama<br />

rasgue a terra, e no seu escuro leito onde é o<br />

reino dos sonhos, aí vos encontrarei, e aí se trespassará<br />

o peito. Assim poderei ao menos, – se o coração<br />

se desfez, já que devo morrer –, morrer em<br />

paz.<br />

Arioso<br />

Fechai-vos, olhos meus,<br />

num perpétuo esquecimento,<br />

assim como a minha morte<br />

Livrai-me das penas, eternos Deuses.<br />

Rodelinda, Rainha dos Lombardos<br />

Recitativo<br />

Pompas vãs de morte!<br />

Mentiras de dor.<br />

Que guardais o meu rosto e o meu nome,<br />

e adulais do vencedor soberbo o génio altaneiro!<br />

Dizeis que morri; mas responde o meu lamento<br />

que não é verdade.<br />

Bertarido foi Rei; vencido por Grimoaldo fugiu,<br />

junto aos Unni jaz.<br />

Tenha a alma repouso e as cinzas paz.<br />

Quereis as minhas cinzas?<br />

Cruéis tiranos! Pois enquanto viver,<br />

guerra farei aos padecimentos<br />

e às ânsias.


Aria<br />

Dove sei? Amato bene! Vieni l’alma a consolar!<br />

Sono oppresso da’ tormenti, ed i crudi miei<br />

lamenti sol conte posso bear.<br />

Accompagnato<br />

Si, l’infida consorte mi creda estinto ancora,<br />

porga al novello sposo la fè,<br />

che a me serbò; lieta qual fronda,<br />

e sappia allor ch’io vivo,<br />

e si confronda.<br />

Aria<br />

Confusa si miri, l’infida consorte,<br />

che in faccia di morte così mi deride.<br />

Confinti sospiri e s’agita e s’ange,<br />

e morto mi piange e vivo m’uoido.<br />

Giulio Cesare in Egitto<br />

Aria<br />

Se infiorito ameno prato<br />

l’augellin trà fiori fronde si nasconde,<br />

fa più grato il suo cantar.<br />

Se cosi Lidia vezzosa spiega ancor notti<br />

canore,<br />

più graziosa fà ogni core innamorar.<br />

Aria<br />

Va tacito e nascosto, quand’avido è<br />

preda,<br />

l’astuto cacciator.<br />

E chi è mal far disposto, non brama<br />

che si veda<br />

l’inganno del suo cor<br />

Serse<br />

Recitativo<br />

Frondi tenere, e belle del mio platano amato,<br />

per voi risplenda il Fato.<br />

Tuoni, lampi, e procelle non<br />

v’oltraggino mai<br />

la cara pace<br />

nè giunga a profanarvi austro repace.<br />

Arioso<br />

Ombra mai fù, di vegetabile cara<br />

ed amabile soave più<br />

Ária<br />

Onde estás? Bem amado! Vem a alma consolar!<br />

Eis-me oprimido por tormentos, e os meus cruéis<br />

lamentos só contigo posso enlevar.<br />

Recitativo Acompanhado<br />

Sim, a infiel consorte crê-me ainda morto,<br />

que ofereça ao novo esposo a fidelidade,<br />

que me era reservada; feliz como arbusto,<br />

saiba então que eu vivo,<br />

e se confunda.<br />

Ária<br />

Confusa se olha, a infiel consorte,<br />

que em face da morte assim de mim escarnece.<br />

Com fingidos suspiros se agita e estremece,<br />

e morto chora-me, e vivo me mato.<br />

Júlio César no Egipto<br />

Ária<br />

Se num florido e ameno prado<br />

o passarinho entre flores e ramos se esconde,<br />

mais alegre se torna o seu cantar.<br />

Se assim Lídia graciosa desdobra ainda notas<br />

canoras,<br />

mais bela faz todo o coração enamorar-se<br />

Ária<br />

Vai calado e escondido, quando ávido está da<br />

presa,<br />

o astuto caçador.<br />

E quem a fazer o mal está disposto, não anseia<br />

que se veja<br />

o engano do seu coração<br />

Xerxes<br />

Recitativo<br />

Ramos tenros, e belos do meu plátano amado,<br />

para vós brilha o Fado.<br />

Trovões, relâmpagos e tempestades não<br />

vos ultragem nunca<br />

a cara paz<br />

nem venha a profanar-vos ave de rapina.<br />

Arioso<br />

Nunca houve sombra vegetal mais amada,<br />

terna e suave.<br />

Tradução de Dinorah Mealha<br />

[ 115 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


Nascido na Alemanha, Andreas Scholl iniciou<br />

os estudos musicais nos Kiedricher<br />

Chorbuben. Entre 1987 e 1993 estudou com<br />

Richard Levitt e René Jacobs na Schola Cantorum<br />

de Basileia, onde obteve o diploma em <strong>Música</strong><br />

Antiga. Em 1992 foi bolseiro do Conselho da<br />

Europa e da <strong>Fundação</strong> Claude Nicolas Ledoux.<br />

Vencedor do Prémio Gramophone de 1996,<br />

na categoria de <strong>Música</strong> Vocal Barroca, pela sua<br />

gravação (Harmonia Mundi) do Stabat Mater d e<br />

Vivaldi, com o Ensemble 415, Andreas Scholl é<br />

considerado como o grande contratenor da sua<br />

geração.<br />

Andreas Scholl completou também um série<br />

de gravações a solo, largamente aplaudidas pela<br />

crítica, que incluiram um disco de canções barrocas<br />

alemãs e outro de canções com alaúde e<br />

canções populares inglesas. Outros projectos para<br />

a Harmonia Mundi incluem a Oratória de Natal d e<br />

J. S. Bach, Orfeo de Monteverdi, as Vésperas de 1610<br />

e a gravação de Maddalena ai piedi di Cristo d e<br />

Antonio Caldara (vencedor do Prémio Gramophone<br />

1997), todos sob a direcção de René<br />

Jacobs. Com Les arts Florissants e William Christie<br />

gravou o M e s s i a s e com o Collegium Vocale e<br />

Philip Herreweghe a Missa em Si menor de J. S.<br />

Bach.<br />

Em concerto, Andreas Scholl trabalha regularmente<br />

com os principais especialistas de <strong>Música</strong><br />

Barroca, tendo-se apresentado com William<br />

Christie e Les arts Florissants no Festival de Aixen-Provence<br />

(M e s s i a s); com Philipe Herreweghe e<br />

o Collegium Vocale (em digressão: Missa em Si<br />

menor, Oratória de Natal e Cantatas de J. S. Bach);<br />

com La Petite Bande (em digressão: Paixão segundo<br />

São João e Cantatas de J. S. Bach); com o Coro de<br />

Câmara de Estugarda (Missa em Si menor de J. S.<br />

Bach); com a Orchestra do Período do Iluminismo,<br />

em Oxford e Frankfurt (Árias de<br />

Händel); com o Coro Bach Holandês (em<br />

digressão: Paixão segundo São Mateus e Paixão segundo<br />

Andreas Scholl<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 116 ]<br />

São João de J. S. Bach); e com o Ensemble 415<br />

(Stabat Mater de Vivaldi). Nos Concertos Promenade<br />

da BBC cantou em Julio César e no<br />

Magnificat de J. S. Bach com a Orchestra do Período<br />

do Iluminismo, sob a direcção de René Jacobs<br />

e na Missa em Sol Maior de J. S. Bach<br />

com o Collegium Vocale, dirigido por Philip<br />

Herreweghe. Em recital apresentou-se no Théatre<br />

Grévin, na Ópera de Tel-Aviv, no Purcell Room e<br />

ainda em Beaune e Turim. Participou em diversos<br />

festivais, incluindo os de Versailles, Ambronay,<br />

Saintes, Santiago e Lucerna.<br />

Na temporada de 1997/98 Andreas Scholl<br />

estreou-se na ópera, com grande êxito, interpretando<br />

o papel de Bertarido em Rodelinda, com a Ópera<br />

do Festival de Glyndebourne sob a direcção de<br />

William Christie. Os seus mais importantes papéis<br />

em versão de concerto incluem: o papel principal<br />

no Salomão de Händel, em digressão com o Gabrieli<br />

Consort e Paul MacCreesh (em gravação para a<br />

Deutsche Grammophon); árias de Händel, com a<br />

St. Paul Chamber Orchestra e Christopher<br />

Hogwood; a Missa em Si menor e a Paixão segundo<br />

São Mateus de J. S. Bach, em digressão com o<br />

Collegium Vocale e Philip Herreweghe; a P a i x ã o<br />

segundo São João de J. S. Bach, com a Orquestra Real<br />

do Concertgebouw e Ton Koopman e ainda<br />

recitais no Wigmore Hall, na Filarmonia de<br />

Colónia, no Concertgebouw e no Festival de<br />

Sidney.


Em 1736, Johann Gottlieb Janitsch intitulou<br />

o seu círculo privado de música de câmara T h e<br />

Musical Academy. Janitsch, que tinha sido recrutado<br />

como gambista para a residência do príncipe prussiano<br />

Frederico em Rheinsberg, perto de Berlim,<br />

escolheu o nome no espírito da antiga tradição.<br />

Quatro anos mais tarde, Frederico era já Rei da<br />

Prússia e a Academia de Janitsch tinha-se tornado<br />

numa instituição de prestígio em Berlim. Os<br />

encontros realizavam-se todas as sextas-feiras na<br />

residência privada de Janitsch na Jaegerstrasse. A<br />

interacção entre os músicos, na forma de uma<br />

intensa troca de ideias musicais, definiu o conceito<br />

de “música de conjunto” tal como os músicos de<br />

Berlim entendiam naqueles tempos – e ainda hoje.<br />

A Akademie für Alte Musik foi fundada em<br />

1982. Jovens músicos de várias orquestras profissionais<br />

de Berlim – a Orquestra Sinfónica da<br />

Rádio, a Orquestra Sinfónica de Berlim e a<br />

Staatskapelle – juntaram forças para a formação<br />

de um novo agrupamento formado por instrumentos<br />

de época. Assim, um novo impulso foi dado às<br />

até então tímidas tentativas no sentido da interpretação<br />

autêntica da <strong>Música</strong> Antiga na República<br />

Democrática Alemã. A Akademie fez a sua estreia<br />

com uma muito notada série de concertos na<br />

Universidade Humboldt, intitulados “<strong>Música</strong><br />

Antiga – hoje”. Desde 1984 a orquestra possui a<br />

sua própria série de concertos no Schauspielhaus<br />

am Gendarmenmarkt de Berlim.<br />

A reputação da orquestra cresceu rapidamente,<br />

tanto local como internacionalmente. Em<br />

1998 a orquestra apresentou-se no Tage der Alten<br />

Musik Herne, um festival dirigido pela Radiodifusão<br />

da Alemanha Ocidental em Colónia. Desde essa<br />

altura o agrupamento realizou digressões pela<br />

Suiça, Áustria, Holanda, Bélgica, Inglaterra,<br />

França, Itália, Grécia, Chipre, Egipto, Síria, Israel,<br />

Jordânia, Rússia e pelos Estados Bálticos. Gravou<br />

para as editoras Capriccio e Deutsche Schall-<br />

Akademie Für Alte Musik<br />

platten Berlin (Berlin Classics), assim como para<br />

numerosas estações de rádio e televisão. Desde o<br />

Outono de 1994 a Akademie für alte Musik grava<br />

em exclusivo para a Harmonia Mundi France. A<br />

gravação da Missa em Si menor de Johann<br />

Sebastian Bach com o maestro René Jacobs foi<br />

premiada com o Prémio Alemão do Disco de<br />

1994.<br />

A Akademie für Alte Musik tem uma estrutura<br />

democrática e trabalha sem um director permanente.<br />

As decisões artísticas, incluindo a sua<br />

programação e os aspectos interpretativos e estéticos<br />

em geral, são tomadas colectivamente. O seu<br />

carácter é tanto influenciado por esta vitalidade<br />

regeneradora e pela abertura intelectual dos seus<br />

membros, como pelo trabalho desenvolvido com<br />

artistas como René Jacobs, Philippe Herreweghe,<br />

Ton Koopman, Reinhard Goebel, Andreas Staier<br />

e Monica Huggett. Desde a queda do muro de<br />

Berlim, a orquestra tem estado associada ao Coro<br />

de Câmara da RIAS, dirigido por Marcus Creed;<br />

por outro lado, a presente colaboração com Andreas<br />

Scholl reveste-se de particular importância.<br />

A Akademie für Alte Musik domina um<br />

largo e invulgar reportório de música de câmara e<br />

orquestral. No entanto, dedica particular atenção<br />

à música composta para a corte de Berlim durante<br />

o século XVIII. Um CD recente, produzido pela<br />

Berlim Classics, inclui uma selecção destas obras.<br />

Para além das obras de Carl Philipp Emanuel<br />

Bach, a orquestra tem a intenção de trazer para o<br />

domínio público composições longamente negligenciadas<br />

de compositores como Johann Friedrich<br />

Agricola, Christoph Nichelmann, Johann Philipp<br />

Kirnberger, Johann Joachim Quantz e Christoph<br />

Schaffrath. Este trabalho tem por base um levantamento<br />

de manuscritos do extenso arquivo da<br />

Biblioteca Estadual de Berlim. Por outro lado a<br />

orquestra interpreta regularmente as grande obras<br />

do reportório europeu, incluindo a pertencente à<br />

tradição vienense clássica e pré-romântica, até<br />

[ 117 ] Li sboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


Schubert, Mendelssohn ou Brahms. Compositores<br />

como Händel, Telemann, Rameau, Purcell,<br />

Corelli, Vivaldi e os membros da família Bach, são<br />

regularmente incluídos nos programas de concerto,<br />

assim outros compositores como Georg Benda,<br />

Biber, Boccherini, Campra, Graun, Homilius,<br />

Pepusch, Pisendel, Wassenaer, Zelenka, ou Jan<br />

Václav Voriek, boémio contemporâneo de<br />

Schubert.<br />

No trabalho com o Coro de Câmara da RIAS,<br />

a orquestra apresentou várias interpretações de<br />

música coral sacra e profana dos séculos XVII e<br />

XVIII. Uma particular atenção é dedicada à interpretação<br />

das oratórias de Händel. Embora a<br />

orquestra inclua no seu reportório obras de<br />

primeira linha, como os R e q u i e m de Mozart ou<br />

Brahms, ou a Missa em Si menor de Johann<br />

Sebastian Bach, mostra particular entusiasmo na<br />

descoberta e interpretação de composições esquecidas.<br />

A primeira gravação do oratório L a<br />

Conversione di Sant’Agostino de Johann Adolph Hasse,<br />

sublinha este objectivo.<br />

O O r f e o de Telemann ou S e m e l e de Händel,<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 118 ]<br />

são os resultados, largamente reconhecidos, de<br />

uma cooperação contínua com a Staatsoper,<br />

enriquecendo o largo espectro do trabalho artístico<br />

do agrupamento. Vários projectos de ópera<br />

dedicados a Haydn e a Mozart tiveram lugar no<br />

teatro histórico do Palácio de Frederico II em<br />

Postdam, Sanssouci. Em 1998 a Akademie für<br />

Alte Musik regressa ao Festival de <strong>Música</strong> Antiga<br />

de Innsbruck para participar em duas óperas<br />

como Orquestra Residente.


119<br />

Li sboa, 6 a 1 4 Outub ro MCMXCVIII.


Quarta-Feira, Dia 1 4<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 120 ]


Sociedade de Geografia de Lisboa, 2 1 . 3 0<br />

MÚSICA PARA A ÓPERA DE HAMBURGO<br />

JOHANN CHRISTIAN SCHIEFFERDECKER (1679 - 1732)<br />

Suite em Dó Maior (Hamburgo 1 7 1 1)<br />

(Ouverture - Passepied - Entrée - Chaconne - Gigue)<br />

CARL PHILIPP EMANUEL BACH (1714 - 1788)<br />

Sinfonia para cordas e contínuo, em Si menor, Wq 1 8 2/5 (Hamburgo 1 7 7 3)<br />

(Allegretto - Larghetto - Presto)<br />

GEORG PHILIPP TELEMANN (1681 - 1767)<br />

Suite La Bizarre (Hamburgo ca. 1 7 3 0)<br />

(Ouverture - Courante - Gavotte Rondeau - Branle - Sarabande -<br />

Fantaisie - Menuet I - Menuet II - Rossignol)<br />

I n t e r v a l o<br />

GEORG PHILIPP TELEMANN (1681 - 1767)<br />

Abertura e cenas da ópera O r p h e u s (Hamburgo 1 7 2 6)<br />

A b e r t u r a<br />

1.º Acto, Cena 2:<br />

Ária: Einsamkeit ist mein Vergnügen<br />

Coro das Ninfas - Polonaise - Niais<br />

Cena 9:<br />

Recitativo: Wie ist mir? – Ária: Ach Tod, ach süßer Tod<br />

2.º Acto, Cena 3:<br />

Sinfonia de Orfeu – Ária: Trà speranza<br />

Cena 8:<br />

Coro dos espíritos (instrumental) – Recitativo: Ihr Götter, ach!<br />

Ária: Vezzosi lumi – Sinfonia das Fúrias<br />

3.º Acto, Cena 4:<br />

Recitativo: Hier sitze ich in der Einsamkeit<br />

Ária: Fließt ihr Zeugen meiner Schmerzen!<br />

Recitativo: Nun alle Hoffnung ist vorbei!<br />

S i n f o n i a<br />

AKADEMIE FÜR ALTE MUSIK<br />

Roman Trekel B a r í t o n o<br />

[ 121 ] Li sboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


MÚSICA PARA A ÓPERA<br />

DE HAMBURGO<br />

por Cristina Fernandes<br />

Ao longo da primeira metade do século<br />

XVIII, a ópera italiana invadiu os principais centros<br />

europeus, sobrepondo-se com frequência às<br />

tradições autóctones no âmbito do teatro musical.<br />

A Alemanha e outras regiões de língua alemã,<br />

como a Áustria, não foram alheias a esta influência.<br />

Os principais compositores de ópera italiana<br />

trabalharam nesta época em território germânico<br />

(Hasse em Dresden, Jomelli em Stuttgart, Caldara<br />

em Viena, etc.), enquanto o maior libretista do<br />

género, Pietro Metastasio, foi poeta da corte<br />

vienense.<br />

Ainda durante o século XVII, as tentativas de<br />

estabelecer na Alemanha uma ópera em língua<br />

vernácula tiveram em geral pouco sucesso e curta<br />

duração. É o caso das cortes de Brunswick-<br />

Wolfenbüttel e de Weissenfals, esta última o<br />

único local onde a habitual mescla de árias em italiano<br />

e em alemão não era tolerada. A única<br />

excepção consistente a este panorama verificou-se<br />

à margem do circuito cortesão, no primeiro teatro<br />

público que surgiu em solo alemão, a Ópera de<br />

Hamburgo, onde a burguesia conseguiu estabelecer<br />

alguma tradição na interpretação de espectáculos<br />

operáticos em língua alemã, apesar da violenta<br />

oposição das autoridades eclesiásticas e de várias<br />

crises financeiras. Ainda que a ópera italiana fosse<br />

admitida nas suas programações e que a maioria<br />

dos libretos fossem traduções ou adaptações de<br />

textos importados de outros centros europeus, esta<br />

funcionou como um importante baluarte de defesa<br />

contra o prepotente alastrar da ópera italiana<br />

“alla moda”, acabando por se converter na principal<br />

e mais influente instituição operática da<br />

Alemanha.<br />

Fundada em 1678, a Ópera de Hamburgo<br />

estava sediada no famoso Theater am Gänsemarkt<br />

(nome que advinha do facto de se encontrar junto<br />

ao Mercado dos Gansos) e constituiu uma espécie<br />

de paralelo germânico da ópera comercial<br />

veneziana. Após a sua inauguração, com o<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 122 ]<br />

Singspiel de Johann Theile, Adam und Eva, os compositores<br />

mais promissores de ópera alemã viram<br />

as suas obras representadas em Hamburgo: além<br />

de Theile (aluno de Schütz), Strungk, Franck,<br />

Förtsch, Kusser, Krieger, Keiser, Telemann e o<br />

próprio Händel. Os libretistas eram quase sempre<br />

poetas de origem local (Lucas von Bostel,<br />

Christian Heinrich Postel, Christian Hunold, conhecido<br />

como Menantes, e Barthold Feind) assim<br />

como os intérpretes. Hamburgo viveu sem a contratação<br />

de grandes estrelas e sem sucumbir ao<br />

fascínio dos castrati.<br />

Todavia, não se pense que a ópera alemã<br />

como género musical consistia numa proposta<br />

inteiramente autónoma e desprovida de outras<br />

influências. Desde os finais do século XVII que<br />

esta se baseava numa espécie de receita, cujos três<br />

principais ingredientes eram o lied alemão, a ária<br />

italiana e a dança francesa. Cada qual era interpretado<br />

na sua própria língua: os recitativos em<br />

alemão, as árias em italiano (ou, mais raramente,<br />

noutra língua estrangeira), enquanto as descrições<br />

do cenário e as cenas de dança continham com frequência<br />

indicações em francês. A maior parte dos<br />

argumentos eram históricos ou mitológicos, com<br />

cenas de violência e espectáculo enfatizados pelo<br />

gosto alemão e moderado por sub-argumentos de<br />

comédia local. Tal como nos teatros públicos<br />

venezianos de meados do séc. XVII, a introdução<br />

de personagens cómicas (especialmente criados e<br />

camponeses) tornou-se cada vez mais importante e<br />

popular, acabando por dar origem a intermezzi independentes.<br />

Na Ópera de Hamburgo a coexistência de<br />

línguas diferentes era habitual, pelo menos desde<br />

1703 (Die verdammte Staat-Sucht de Hinsch/Keiser)<br />

e estendeu-se ao longo do século. Em 1711 Hoe e<br />

Matheson incluíram em Die geheimen Begebenheiten<br />

Henrico IV, para além de árias italianas, coros em<br />

espanhol. Por vezes, apareciam também canções<br />

em dialecto. A multiplicidade linguística, a convivência<br />

pacífica entre o repertório alemão, francês<br />

e italiano e a utilização de vários géneros (sério,<br />

cómico e misto) fizeram da Ópera de Hamburgo<br />

um caso único em toda a Europa.<br />

O período mais brilhante deu-se sob a égide<br />

de Reinhard Keiser (1674-1739), que se mudou<br />

para Hamburgo em 1695. Keiser escreveu mais de<br />

50 óperas para a companhia e durante a sua<br />

direcção (1703-1707), houve um forte incremento<br />

de sucessos, interrompidos por divergências<br />

internas e dificuldades financeiras.


A fama da nova ópera e a possibilidade de<br />

contactar com Keiser e Matheson, figuras destacadas<br />

na vida musical de Hamburgo, levou Händel<br />

a esta cidade em 1703, onde permaneceu durante<br />

três anos, primeiro como violinista e depois como<br />

cravista na orquestra da ópera. Esse período viu<br />

nascer as suas primeiras óperas (Almira, Nero,<br />

F l o r i n d o e D a p h n e), das quais apenas se conserva a<br />

música de Almira.<br />

Esta primeira fase da Ópera de Hamburgo<br />

culminou com uma série de obras de Telemann<br />

(nomeado director do teatro em 1722), que<br />

alcançaram grande sucesso e que vieram suspender<br />

por algum tempo o declínio do empreendimento,<br />

que começava a dar sinais de desgaste e a causar<br />

crescentes problemas financeiros. Apesar dos<br />

promissores avanços da ópera alemã, a partir de<br />

1738 passaram a dominar as companhias itinerantes,<br />

que faziam primordialmente repertório italiano.<br />

A crise era geral: no início da década de<br />

1730, os teatros alemães deixaram de montar<br />

óperas e os que não fecharam as portas passaram<br />

para as mãos de italianos. A ópera alemã voltou ao<br />

que tinha sido inicialmente, um produto cortesão<br />

importado.<br />

Johann Christian Schiefferdecker (1679-1732)<br />

Suite em Dó Maior (Hamburgo, 1711)<br />

O organista e compositor Johann Christian<br />

Schiefferdecker(1679-1732) nasceu em Teuchern,<br />

próximo de Weissenfels. Filho de Christian<br />

Schieferdecker (Kantor, organista e professor em<br />

Teuchern), a sua família contava, desde meados do<br />

século XVII, com uma longa tradição no âmbito<br />

da música religiosa e da carreira eclesiástica na<br />

zona de Weissenfels e Zeitz. Entre 1692 e 1697,<br />

Johann Christian Schiefferdecker estudou na<br />

Escola de S. Tomás de Leipzig, passando mais<br />

tarde a frequentar a universidade da mesma cidade.<br />

Foi ainda durante os seus tempos de estudante que<br />

duas das suas primeiras óperas foram levadas à<br />

cena. A partir de 1702, Schiefferdecker tornou-se<br />

acompanhador da Ópera de Hamburgo, encontrando-se<br />

portanto em funções quando Händel<br />

ingressou na orquestra do Theater am Gänsemarkt.<br />

Aí foram interpretadas mais três das suas<br />

óperas, cujos manuscritos musicais se encontram<br />

até ao momento por localizar.<br />

Em Janeiro de 1707, Schiefferdecker sucedeu<br />

a Buxtehude, como organista da igreja de Santa<br />

Maria, em Lübeck, onde trabalhava já como assistente.<br />

De acordo com a tradição local, casou com<br />

a filha do seu predecessor, Anna Margarethe,<br />

condição que havia sido recusada por Händel,<br />

Matheson ou J. S. Bach. A partir desta fase, a sua<br />

produção focalizou-se primordialmente em torno<br />

da música vocal sacra, conforme era preconizado<br />

pelas obrigações que o seu cargo implicava, mas<br />

entre as obras que nos deixou encontram-se igualmente<br />

peças para órgão e obras para conjuntos<br />

instrumentais (aberturas, suites e sonatas), compostas<br />

especialmente durante a época de Hamburgo.<br />

A Suite em Dó Maior é mais um testemunho<br />

do gosto e da adopção do estilo francês<br />

pelos alemães, numa época em que se começava,<br />

pouco a pouco, a caminhar para a fusão dos vários<br />

estilos nacionais do barroco, concretizada de<br />

forma magistral por J. S. Bach e Händel.<br />

Carl Philipp Emanuel Bach (1714-1788)<br />

Sinfonia em Si menor, wq 182.5 (Hamburgo 1773)<br />

Carl Philipp Emanuel Bach, o mais famoso e<br />

o mais prolífico dos filhos de J. S. Bach, foi também<br />

uma das grandes personalidades da vida musical<br />

de Hamburgo, onde passou os últimos trinta<br />

anos da sua vida. Antes (1740-1758) havia sido<br />

cravista na corte de Frederico II da Prússia, em<br />

Berlim. Mas a partir de 1758 mudou-se para<br />

Hamburgo, onde sucedeu a Telemann seu padrinho,<br />

como Kantor no Johanneum e director musical<br />

das cinco principais igrejas da cidade.<br />

Todavia, a postura de C. Ph. E. Bach era bem<br />

diversa da anterior geração de mestres de capela.<br />

Para além de músico, era um intelectual atento às<br />

modificações culturais e filosóficas do seu tempo.<br />

Foi correspondente de Diderot, amigo de Lessing<br />

e Klopstock e as suas casas em Berlim e Hamburgo<br />

foram centros activos de discussão e ponto de<br />

encontro de figuras ilustres, tanto no campo musical<br />

como literário. C. Ph. E. Bach ilustra assim o<br />

espírito de uma nova época, o que terá, obviamente,<br />

repercussões na sua forma de abordar a<br />

música e no acto criativo. Ainda que ocupasse uma<br />

posição profissional nos moldes do antigo regime,<br />

o mais insigne representante da E m p f i n d s a m k e i t f o i ,<br />

por outro lado, um precursor do Romantismo, ao<br />

encarar a música como uma necessidade interior e<br />

ao valorizar nas suas obras a emoção e a subjectividade.<br />

[ 123 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCV III.


Carl Philipp Emanuel Bach escreveu dezoito<br />

sinfonias (oito em Berlim, entre 1741 e 1762, e<br />

dez em Hamburgo, entre 1773 e 1776), das quais<br />

apenas cinco foram publicadas em vida. Com<br />

excepção das quatro primeiras, as sinfonias de<br />

Emanuel Bach afastam-se, em geral, da simplicidade<br />

galante e pré-clássica, para aderir aos rasgos<br />

mais ousados da E m p f i n d s a m k e i t . Deste modo, as<br />

semelhanças com as obras do mesmo género dos<br />

seus contemporâneos (entre os quais se distinguia<br />

o seu irmão Johann Christian Bach) vão pouco<br />

além do habitual esquema em três andamentos<br />

(rápido-lento-rápido ou rápido-lento-moderato).<br />

Carl Philipp Emanuel Bach parece ter tido a clara<br />

consciência de que a era da ópera italiana estava<br />

ultrapassada e que, de futuro, a sinfonia deveria<br />

marcar a sua individualidade e primazia no universo<br />

musical.<br />

Algumas particularidades formais e expressivas<br />

funcionam como uma espécie de imagem de<br />

marca das sinfonias de C. Ph. E. Bach: os<br />

primeiros andamentos são, em geral, audaciosos e<br />

impulsivos, os segundos poéticos ou meditativos e<br />

os finais alegres e despretensiosos. A trama contínua<br />

da textura musical barroca encontra-se já<br />

ausente destas obras que, por outro lado, evitam<br />

ainda as simetrias do fraseado clássico, se bem que<br />

o contraste temático seja já evidente. São frequentes<br />

os efeitos de surpresa; interrupções súbitas<br />

do discurso musical; mudanças de tempo e<br />

dinâmica; encadeamento de andamentos sem<br />

interrupção; recapitulações truncadas; repetição de<br />

temas completos em vários níveis tonais; e ainda, o<br />

conservadorismo dos últimos andamentos (em<br />

comparação com os iniciais), que se mostram por<br />

vezes débeis na sua função de clímax.<br />

A sinfonia seleccionada para o concerto de<br />

hoje pertence ao conjunto das seis sinfonias que C.<br />

Ph. E. compôs em Hamburgo, em 1773<br />

(W.182/1-6 ou H.657-662). Resultantes de uma<br />

encomenda de Gottfried van Swieten, embaixador<br />

austríaco em Berlim, destinam-se a um efectivo<br />

instrumental constituído unicamente por cordas e<br />

baixo contínuo. Fascinado pela originalidade da<br />

música de tecla de C. Ph. E. Bach, Van Swieten<br />

pediu ao compositor que se abandonasse sem<br />

reservas à sua inspiração, sem se preocupar com as<br />

dificuldades que daí resultariam para a execução.<br />

A Sinfonia em Si menor (H.661 ou Wq 182.5)<br />

caracteriza-se pela atmosfera elegíaca que emerge<br />

do primeiro andamento (Allegretto) – e se prolonga<br />

no L a r g h e t t o –, a qual serve de contrapeso ao<br />

XIX Jornadas Gulben kian de <strong>Música</strong> Antiga [ 124]<br />

impetuoso final (P r e s t o), percorrido por acordes<br />

violentos e incisivos que pontuam o discurso.<br />

Georg Philipp Telemann (1681-1767)<br />

Suite La Bizarre (Hamburgo 1730)<br />

Em Julho de 1721, Georg Philipp Telemann<br />

foi convidado pelas autoridades da cidade de<br />

Hamburgo a suceder a Joachim Gerstenbüttel, no<br />

cargo de Kantor do Johanneum e director musical<br />

das cinco principais igrejas da cidade. Antes disso,<br />

Telemann tinha já alguns contactos com<br />

Hamburgo. Em Janeiro do mesmo ano, a sua<br />

ópera Der geduldige Socrates tinha sido levada à cena<br />

no Theater am Gänsemarkt e Telemann tinha<br />

ainda contribuído com algumas peças para a representação<br />

do Ulysses, de Keiser, estreado em 7 de<br />

Julho.<br />

As suas novas funções exigiam-lhe uma produtividade<br />

sem precedentes. Tinha de escrever<br />

duas cantatas para cada Domingo, uma nova<br />

Paixão para cada ano litúrgico e ainda oratórias e<br />

outras peças destinadas a várias solenidades, tanto<br />

religiosas como cívicas. Mas apesar dos requisitos<br />

que o seu cargo lhe impunha, arranjava ainda<br />

tempo para dirigir o Collegium Musicum em concertos<br />

públicos (à semelhança do que tinha feito<br />

em Leipzig), ou para colaborar com as produções<br />

operáticas. Inicialmente, a oposição das entidades<br />

oficiais da cidade foi forte, dando origem, em<br />

1722, à proibição de participar em apresentações<br />

públicas de música teatral ou operática. Mas na<br />

sequência da ameaça de Telemann de trocar<br />

Hamburgo por Leipzig (onde iria ocupar o lugar<br />

de Kuhnau na igreja de São Tomás), estas<br />

acabariam por ser retiradas. Telemann continuou<br />

o seu labor na institucionalização de concertos<br />

públicos e em 1722 seria mesmo nomeado director<br />

da Ópera de Hamburgo, cargo que ocupou até<br />

ao seu encerramento em 1738.<br />

Deste modo, os anos que Telemann passou<br />

em Hamburgo viram nascer uma assombrosa<br />

quantidade de obras de todos os géneros, destinadas<br />

a vários contextos. Nelas, Telemann soube<br />

favorecer a união dos principais estilos do barroco<br />

e adaptar-se a cada um deles, conforme as circunstâncias<br />

ou o carácter das composições, mas revelou<br />

sempre uma especial predilecção pelo estilo francês,<br />

do qual foi o principal cultor na Alemanha.<br />

Entre as numerosas obras instrumentais que compôs<br />

em Hamburgo (44 das suas publicações de


música de câmara datam deste período) encontram-se<br />

várias aberturas ou suites para orquestra<br />

que devem a sua celebridade a títulos pitorescos<br />

como, por exemplo, Le Tintamarre, Wassermusik o u<br />

La Bizarre (que ouviremos no concerto de hoje) e<br />

que são constituídas por danças e peças de inspiração<br />

programática, que denunciam o gosto pela<br />

estética francesa.<br />

Abertura e cenas da ópera Orpheus<br />

(Hamburgo 1726)<br />

Considerado como o principal representante<br />

da ópera alemã da primeira metade do século<br />

XVIII, depois de Reinhard Keiser, Telemann<br />

tinha já uma considerável experiência no género<br />

dramático antes de se fixar em Hamburgo. A sua<br />

primeira ópera (Sigismundus) foi composta com<br />

apenas 12 anos e segue o modelo de Lully. Mais<br />

tarde escreveu para os teatros de Leipzig e<br />

Bayreuth, mas o teatro de Hamburgo seria o destinatário<br />

das suas principais óperas, entre as quais se<br />

destacam: a já citada Der geduldige Socrates (1721); o<br />

intermezzo Il Pimpione (1725), que antecipa L a<br />

Serva Padrona, de Pergolesi; Emma und Eginhard<br />

(1728) e Don Quichott der Löwenritter (1735).<br />

Um dos pontos culminantes da actividade de<br />

Telemann na Ópera de Hamburgo é representado<br />

pela ópera Orpheus oder Die wunderbare Beständigkeit der<br />

L i e b e , (Orfeu ou a Maravilhosa Constância do<br />

Amor), estreada em 1726, no âmbito de um concerto<br />

organizado por Madame Kayser, e reposta,<br />

com algumas alterações, em 1736.<br />

Redescoberta há cerca de vinte anos na biblioteca<br />

musical do Conde von Schönbon, no castelo<br />

de Wiesentheide, na Francónia, O r p h e u s teve a<br />

sua primeira audição moderna em 1990, no<br />

Landestheater der Wartburgstadt, em Eisenach.<br />

Para uma outra produção em Berlim (Staatsoper<br />

Unter den Linden, 1994) foi pedido a René<br />

Jacobs, Peter Huth e Jakob Peters-Messer a<br />

revisão e reconstituição das lacunas presentes nos<br />

manuscritos, de forma a obter uma versão operacional<br />

para ser posta em cena. A mesma versão,<br />

com René Jacobs, a Akademie für Alte Musik e<br />

Roman Trekel no papel de Orfeu, foi gravada em<br />

1998 pela Harmonia Mundi.<br />

O mito de Orfeu (associado ao poder da<br />

música e do amor) exerceu sempre um grande<br />

fascínio sobre os compositores em todas as épocas.<br />

Telemann não foi excepção, mas fez uso de uma<br />

nova leitura, baseada na “tragédie lyrique” O r p h é e ,<br />

com libreto de Michel Du Boullay e música de<br />

Louis Lully (filho de Jean-Baptiste). Orasia,<br />

Rainha da Trácia vem ocupar o lugar do Destino,<br />

matando Eurídice por ciúme e vingança de Orfeu,<br />

que desdenhou o seu amor. Da violência deste<br />

conflito resulta um drama polarizado em duas personagens<br />

(Orfeu e Orasia), donde emergem<br />

paixões desenfreadas e forças indomáveis, destrutoras<br />

do amor.<br />

O confronto entre as diversas concepções<br />

operáticas europeias dá lugar em O r p h e u s a uma<br />

brilhante síntese de estilos (alemão, francês e italiano),<br />

géneros (sério, cómico, misto) e idiomas<br />

(árias e coros em italiano e francês encontram-se<br />

disseminadas ao longo de um libreto escrito principalmente<br />

em alemão). Alguns versos provêm<br />

ainda de óperas célebres de Händel e Lully. A<br />

invenção musical de Telemann, a sua habilidade<br />

para captar a essência dos vários estilos, o sentido<br />

dramático, o cuidado na caracterização psicológica<br />

das personagens e a expressividade da música<br />

acabam por dar coerência a esta plêiade de elementos<br />

díspares, que vão ganhando uma nova luz com<br />

o desenrolar do drama.<br />

No concerto de hoje ouviremos, além da<br />

Abertura e de outras passagens instrumentais, que<br />

denunciam a influência francesa, uma selecção de<br />

recitativos e árias de Orfeu (em alemão e italiano)<br />

que ilustram os seus conflitos interiores e os seus<br />

dotes de persuasão, oferecendo-nos uma rica paleta<br />

de sentimentos, cambiantes expressivas e linguagens<br />

musicais.<br />

[ 125 ] Li sboa, 6 a 1 4 Outub ro MCMXCVIII.


Orpheus<br />

GEORG PHILIPP TELEMANN<br />

Einsamkeit ist mein Vergnügen,<br />

nichts erfreut mich mehr als sie.<br />

Dieser Bäche sanftes Rauschen,<br />

dieser Winde lispelnden Schall,<br />

diesen Klang der Nachtigall,<br />

dieser Blumen holde Pracht,<br />

werd’ ich nimmermehr vertauschen<br />

mit der größten Ehr’ und Macht.<br />

Wie ist mir? Wozu soll ich noch<br />

leben?<br />

Kann mir der Himmel nicht mein Leben wiedergeben,<br />

das Euridice war:<br />

so acht ich alles nicht.<br />

Drum komm, du höchstgewünschter Tod,<br />

du bist allein das Ende meiner Not.<br />

Ach Tod, ach süßer Tod,<br />

ach Tod, wo bleibest du?<br />

Komm, ende meine Not!<br />

Komm, führe mich zur Ruh!<br />

Trà speranza, e trà timore,<br />

Di gioir, ò di languire,<br />

Và nutrendo il dubbio core,<br />

Il contento e il martire.<br />

Così lasso, e ne l’ interno<br />

Son trà ‘l Cielo, e trà l’ inferno.<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 126 ]<br />

Acto I, Cena 2<br />

Ária<br />

A solidão é o meu prazer,<br />

Nada me pode dar mais conforto.<br />

Os suaves murmúrios destes ribeiros,<br />

O sussurro destas brisas,<br />

O canto do rouxinol,<br />

A delicada beleza destas flores,<br />

Jamais os trocaria<br />

Nem pelas maiores honras, nem pelo poder<br />

supremo.<br />

Cena 9<br />

Recitativo<br />

Que se passa comigo? Porque devo<br />

continuar a viver?<br />

Se o céu não pode restituir-me Eurídice,<br />

Que era toda a minha vida,<br />

então nada mais me importa.<br />

Por isso, vem, morte tão desejada,<br />

Só tu podes pôr termo à minha dor.<br />

Ária<br />

Ah morte, ah doce morte!<br />

Ah morte, onde estás tu?<br />

Vem, acaba com o meu sofrimento!<br />

Vem, conduz-me ao descanso.<br />

Acto II, Cena 3<br />

Ária<br />

Entre a esperança e o medo,<br />

De se alegrar ou se afligir,<br />

Alimenta-se meu coração inseguro,<br />

De alegria e de tormento.<br />

Minha alma fatigada<br />

Paira entre o céu e o inferno.


Da diletto, e da tormento<br />

Ciò che spero, e ciò che temo,<br />

O d’ haver assai contento,<br />

O di dar in duolo estremo.<br />

Così lasso, e ne l’ interno<br />

Son trà ‘l Cielo, e trà l’ inferno.<br />

Ihr Götter, ach! Kaum hab ich sie erblickt,<br />

wird sie mir gleich davor auf Lebenslang<br />

entrückt?<br />

Das heißt ja nicht des<br />

Pluto Macht verletzen,<br />

Und sein Verbot im Frevel aus den<br />

Augen setzen.<br />

Welch Anblick! Welche Qual!<br />

Jedoch ich wag es abermal!<br />

Vezzosi lumi<br />

A vagheggiarvi,<br />

Ritornerò.<br />

Siete miei numi!<br />

Voglio adorarvi,<br />

Sin che potrò.<br />

Hier sitz ich in der Einsamkeit<br />

und werde bloß durch meine Qual vergnüget,<br />

da alle Lust von meiner Lebenszeit,<br />

da Eurydice todt und ohne Leben lieget.<br />

Sie war zu meinem Glück geboren,<br />

doch zweymal, zweymal hab’ ich sie verloren…<br />

(Das Echo aus dem benachbarten Walde wiederholet einen<br />

Teil seiner Klage.)<br />

Vergebens suchst du, Echo, mir<br />

dein zärtlichs Beyleid anzubringen.<br />

Ach könntest du dafür<br />

durch jenes Felsen off’ ne Thür,<br />

durch jenen Schlund,<br />

zu Plutos Ohren dringen:<br />

so mögtest du vielleicht<br />

mir Eurydice wieder bringen.<br />

(Die wildesten Tiere finden sich ein, dem Orpheus<br />

zuzuhören.)<br />

Eu alegro-me e sofro<br />

Pelo que espero e pelo que temo,<br />

Ou de desfrutar da maior felicidade,<br />

Ou de jazer na mais extrema angústia.<br />

Minha alma fatigada<br />

Paira entre o céu e o inferno.<br />

Cena 8<br />

Recitativo<br />

Ah, Deus! Apenas pude vislumbrá-la,<br />

Será por esse motivo que ela, para sempre, me<br />

foi tirada?<br />

Não era minha intenção desafiar o<br />

poder de Plutão,<br />

Nem sou eu um sacrílego que desafia a sua<br />

interdição.<br />

Que visão! Que sofrimento!<br />

No entanto, ousarei uma vez mais.<br />

Ária<br />

Para contemplar-vos<br />

Olhos encantadores,<br />

Regressarei.<br />

Vós sois as minhas divindades!<br />

Quero adorar-vos,<br />

Por quanto tempo possa.<br />

Acto III, Cena 4<br />

Recitativo<br />

Eis-me agora abandonado à minha solidão<br />

Apenas a minha angústia me traz alguma alegria<br />

Porque toda a felicidade deixou a minha vida<br />

Porque Euridice jaz sem vida, morta.<br />

Ela nasceu para me trazer felicidade<br />

Mas por duas vezes, duas vezes a perdi…<br />

(O eco da floresta vizinha repete uma parte do<br />

seu lamento.)<br />

É em vão, eco, que procuras<br />

Tomar parte do meu sofrimento.<br />

Ah! Mas se antes pudesses,<br />

Transpondo a porta aberta deste rochedo,<br />

Transpondo este abismo,<br />

chegar aos ouvidos de Plutão:<br />

Talvez então pudesses<br />

trazer de volta a minha Euridice.<br />

(Os animais mais selvagens reunem-se para<br />

escutar Orfeu.)<br />

[ 127 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


Was führt euch für ein Trieb, ihr Bestien, hieher?<br />

Wollt ihr mehr Leid mit mir,<br />

als Pluto selber, tragen?<br />

Ach Eurydice war mein Trost und mein Behagen:<br />

Sie war zu meinem Glück geboren,<br />

doch zweymal, zweymal hab ich sie verloren.<br />

(Er wirft seinen Lorbeer-Kranz nebst der Leyer weg, und<br />

die Symphonie hört auf.)<br />

Verhaßter Zeitvertreib, dich brauch ich nun nicht mehr,<br />

Geh, oder bring durch deine Lieder<br />

mir eiligst Eurydice wieder!<br />

Doch ich beschwere mich<br />

ohn’ Ursach’ über dich.<br />

Ich hab es selbst versehn, und meine Augen müssen<br />

dies ihr Versehn in Blut und Tränen büßen.<br />

Fließt ihr Zeugen meiner Schmerzen!<br />

Fließt ihr Zähren! tröpfelt Blut!<br />

Quillt hervor aus meinem Herzen!<br />

Badet mich in eurer Flut!<br />

Nun, alle Hoffnung ist vorbey!<br />

Ach was verharrt ihr noch, ihr Tyger, Bär und Löwen,<br />

von meiner Qual mich zu erlösen?<br />

Zerreisset mich: so werd ich frey!<br />

Doch ach ihr wollt, zu meiner Pein,<br />

bey eurem Mitleyd selbst noch grausam seyn.<br />

Komm doch, gewünschter Tod!<br />

wie sehn’ ich mich nach dir?<br />

Durch deine Gunst werd ich der Qual entnommen.<br />

Durch dich kann ich allein<br />

zu Eurydice kommen.<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 128 ]<br />

Que demanda vos traz aqui, ó feras?<br />

Tendes mais piedade de mim que o<br />

próprio Plutão?<br />

Ah! Euridice era o meu consolo e a minha alegria.<br />

Ela nasceu para me fazer feliz,<br />

Mas por duas vezes, duas vezes a perdi.<br />

(Lança para longe a sua coroa de louros e a sua<br />

lira e a música cessa.)<br />

Abominável passado, não mais preciso de ti.<br />

Vai-te, ou que tua música me restitua<br />

A minha Euridice, quanto antes!<br />

De ti sem razão me queixo<br />

Se sou eu que estou em falta,<br />

Se os meus olhos devem expiar essa culpa<br />

Em sangue e lágrimas.<br />

Ária<br />

Correi, testemunhas do meu sofrimento!<br />

Correi, lágrimas! Gotas de sangue!<br />

Jorrai do meu coração!<br />

Banhai-me na vossa corrente!<br />

Recitativo<br />

Toda a esperança está agora perdida!<br />

Ah! Porque esperais ainda, tigres, ursos e leões,<br />

Para me libertarem do meu tormento?<br />

Dilacerai-me; assim ficarei livre!<br />

Mas, ah! Mesmo a vossa piedade é cruel,<br />

E aumenta a minha dor.<br />

Vem então morte tão desejada!<br />

Ah, como te desejo!<br />

A tua bondade porá fim ao meu tormento.<br />

Só por teu indermédio, poderei de novo<br />

Juntar-me de novo a Euridice.<br />

Tradução de Cristina Barbosa


Roman Trekel<br />

Roman Trekel nasceu em Pirna e iniciou os<br />

seus estudos musicais (violino, flauta de bisel e<br />

oboé) com a idade de sete anos. Entre 1980 e<br />

1986 estudou canto com o professor Heinz Rech<br />

no Conservatório de Berlim, completando o curso<br />

com distinção. A partir de 1986 apresentou-se<br />

com a Ópera Estadual Alemã, obtendo particular<br />

sucesso no papel de Pelléas numa nova produção<br />

de Ruth Berghaus, sob a direcção de Michael<br />

Gielen. Em 1989 recebeu o primeiro prémio no<br />

Concurso de Canto Walter Gruner, em Londres e<br />

desde essa data é professor no Conservatório<br />

Hanns Eisler de Berlim.<br />

Apresentou-se em concertos e recitais em<br />

Frankfurt (Alte Oper), Hannover, Colónia,<br />

Londres (Wigmore Hall), Viena, Zurique,<br />

Bruxelas, Amesterdão e Nova Iorque. É convidado<br />

regularmente para importantes festivais, nomeadamente:<br />

Festival da Flandres, Maggio Musical<br />

Fiorentino, Festival de Salzburgo, Festival de<br />

<strong>Música</strong> Antiga de Innsbruck, Ópera de Frankfurt,<br />

Ópera Estadual de Dresden e Festival de Bayreuth.<br />

Trabalhou com muitos dos principais maestros<br />

mundiais, entre os quais se contam os nomes<br />

de Daniel Barenboim, Sir Georg Solti, Michael<br />

Gielen, René Jacobs, Fabio Luisi, Marek Janowski,<br />

Lothar Zagrosek, Zubin Mehta, Claudio Abbado<br />

e com os directores/produtores Ruth Bergvhaus,<br />

August Everding, Erhard Fischer, Jonathan Miller,<br />

Nicolas Brieger, Fred Berndt e Nikolaus Lehnhoff.<br />

Gravou para as editoras Jecklin e Decca,<br />

destacando-se os Lieder eines fahrenden Gesellen d e<br />

Gustav Mahler e os Carmina Burana de Carl Orff.<br />

Akademie Für Alte Musik<br />

(ver página 117)<br />

[ 129 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.


FICHA TÉCNICA<br />

Coordenação editorial:<br />

Cláudia Mealha<br />

Miguel Ângelo Ribeiro<br />

Traduções:<br />

Cristina Barbosa<br />

Cláudia Mealha<br />

Dinorah Mealha<br />

Rui Vieira Nery<br />

António Jorge Pacheco<br />

Miguel Ângelo Ribeiro<br />

Cátia Serradas<br />

Design:<br />

Centradesign<br />

Pré-Impressão:<br />

Mirasete, Artes Gráficas, Lda.<br />

Impressão:<br />

M2, Artes Gráficas, Lda.<br />

Depósito Legal<br />

ISBN<br />

700 Exemplares<br />

Lisboa, Outubro 1998<br />

XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 130 ]

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