0 - Gulbenkian Música - Fundação Calouste Gulbenkian
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<strong>Fundação</strong> <strong>Calouste</strong> <strong>Gulbenkian</strong> Serviço de Mús ica
<strong>Fundação</strong> <strong>Calouste</strong> <strong>Gulbenkian</strong><br />
Serviço de <strong>Música</strong><br />
Luís Pereira Leal D i r e c t o r<br />
Carlos de Pontes Leça, Rui Vieira Nery, Directores Adjuntos<br />
Miguel Sobral Cid A s s e s s o r<br />
A g r a d e c i m e n t o s<br />
Palácio de Queluz<br />
Academia das Ciências de Lisboa<br />
Patriarcado de Lisboa<br />
Sociedade de Geografia de Lisboa<br />
Divisão de Cena (Ser viços Centrais)<br />
João Leitão Director de Cena<br />
Christine de Roo e Jorge Freire Assistentes de Direcção de Cena
T e r ç a 6<br />
Q u a r t a 7<br />
Q u i n t a 8<br />
S e x t a 9<br />
S á b a d o 10<br />
D o m i n g o 1 1<br />
S e g u n d a 12<br />
T e r ç a 13<br />
Q u a r t a 14<br />
Í n d i c e<br />
C o n f e r ê n c i a p o r<br />
RUI VIEIRA N E R Y .<br />
HESPERION XX.&<br />
LA C A P E LLA R E I A L<br />
D E CATALU N Y A .<br />
C A P ELA R E A L .<br />
HE S P E R I O N XX. &<br />
LA C A P E LLA R E I A L<br />
D E CATALU N Y A .<br />
C o n f e r ê n c i a p o r<br />
ALEXANDRA TRINDADE<br />
GAGO DA CÂMARA.<br />
LE CONCERT DES NATIONS.<br />
SEGRÉIS DE LISBOA. &<br />
CORO GUL B ENK I A N .<br />
THE KING’S CONSORT.<br />
A K A D E M I E F Ü R ALT E M U S I K .<br />
P á g i n a<br />
6<br />
[ 3 ] Lisbo a, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.<br />
8<br />
2 0<br />
3 0<br />
4 6<br />
4 8<br />
5 4<br />
8 4<br />
9 6<br />
1 0 8<br />
1 2 0
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 4 ]
I n t r o d u ç ã o<br />
Em 1998 comemora-se o quarto centenário<br />
da representação, em Florença, da primeira ópera<br />
– a D a f n e de Jacopo Peri, espécie de preâmbulo<br />
experimental, cuja <strong>Música</strong> entretanto se perdeu, às<br />
duas aventuras operáticas imediatamente posteriores<br />
(1600) do mesmo Peri e de Giulio Caccini<br />
sobre a E u r i d i c e do poeta Rinuccini, essas sim<br />
preservadas até aos nossos dias.<br />
Entramos, por isso, num triénio em que os<br />
grandes Teatros e Festivais de Ópera de todo o<br />
mundo não deixarão por certo de dedicar uma<br />
parte significativa da sua programação à abordagem<br />
dos grandes monumentos do novo género,<br />
recriando-os com o esplendor desse cruzamento<br />
deslumbrante de todas as linguagens artísticas que<br />
constituiu desde a origem a essência e o fascínio<br />
da Ópera. Ao conhecimento considerável de que<br />
dispomos hoje sobre o repertório e as práticas<br />
interpretativas da <strong>Música</strong> teatral dos séculos XVII<br />
e XVIII juntar-se-á então um trabalho fundamental<br />
de estudo e recriação sobre a integração do discurso<br />
musical com a cenografia, a maquinaria de<br />
cena, as técnicas de encenação, a géstica e a dança<br />
maneiristas e barrocas.<br />
As<br />
XIX Jornadas<br />
<strong>Gulbenkian</strong><br />
de <strong>Música</strong> Antiga<br />
preferem associar-se às comemorações do quarto<br />
centenário da Ópera propondo uma reflexão breve<br />
sobre as potencialidades de sugestão dramática da<br />
própria linguagem musical nos seus vários contextos<br />
teatrais ou para-teatrais: da <strong>Música</strong> de Cena<br />
para o Teatro renascentista de Juan del Encina à<br />
componente musical do drama shakespeareano;<br />
das pequenas representações musico-teatrais sacras<br />
dos vilancicos barrocos ibero-americanos aos<br />
géneros de concerto que procuram recriar em<br />
miniatura a atmosfera operática e aos géneros<br />
instrumentais concebidos para o palco cénico,<br />
como as aberturas, danças e intermezzi; de duas<br />
das primeiras obras primas da Ópera maneirista,<br />
como La Dafne de Marco da Gagliano ou o<br />
C o m b a t t i m e n t o de Monteverdi, à síntese händeliana<br />
das várias linguagens operáticas do Barroco e, por<br />
último, ao repertório inovador da Ópera de<br />
Hamburgo, símbolo do orgulho cívico da sua<br />
cidade, em pleno período do racionalismo clássico<br />
e iluminista.<br />
Por último, as Jornadas prestam homenagem<br />
a dois dos seus colaboradores mais constantes,<br />
Jordi Savall e Montserrat Figueras, celebrando os<br />
vinte anos da sua primeira apresentação em<br />
Portugal, com três concertos assegurados pelos<br />
seus três agrupamentos permanentes: o Hesperion<br />
XX, a Capella Reial de Catalunya e a orquestra Le<br />
Concert des Nations.<br />
Rui Vieira Nery<br />
[ 5 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCV III.
Terça-Feira, Dia 6<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga<br />
6
Auditório Dois,<br />
1 8 . 3 0<br />
DO DRAMA COM MÚSICA<br />
AO DRAMA POR MÚSICA<br />
Conferência por<br />
RUI VIEIRA NERY<br />
(Universidade Nova de Lisboa)<br />
Rui Vieira Nery<br />
Rui Vieira Nery nasceu em Lisboa em 1957.<br />
Iniciou os seus estudos de <strong>Música</strong> na<br />
Academia de <strong>Música</strong> de Santa Cecília e<br />
prosseguiu-os no Conservatório Nacional de<br />
Lisboa onde foi aluno de Melina Rebelo (Piano),<br />
Constança Capdeville (Composição) e Macario<br />
Santiago Kastner (Musicologia e Interpretação de<br />
<strong>Música</strong> Antiga).<br />
É Licenciado em História pela Faculdade de<br />
Letras da Universidade de Lisboa e Doutorado em<br />
Musicologia pela Universidade do Texas em<br />
Austin, que frequentou como Fullbright Scholar e<br />
como bolseiro da <strong>Fundação</strong> <strong>Calouste</strong> <strong>Gulbenkian</strong>.<br />
É Professor Auxiliar do Departamento de<br />
Ciências Musicais da Universidade Nova de<br />
Lisboa, onde ensina desde 1985 e Director-<br />
Adjunto do Serviço de <strong>Música</strong> da <strong>Fundação</strong><br />
<strong>Calouste</strong> <strong>Gulbenkian</strong>.<br />
Como musicólogo, é autor de diversos estudos<br />
sobre História da <strong>Música</strong> Portuguesa, dois<br />
dos quais receberam o Prémio de Ensaísmo<br />
Musical do Conselho Português da <strong>Música</strong> (1984<br />
e 1992), bem como de largo número de artigos<br />
científicos publicados em revistas especializadas,<br />
portuguesas e internacionais. Exerce também uma<br />
actividade intensa como conferencista, na Europa,<br />
nos Estados Unidos e no Brasil. Os seus temas de<br />
investigação incluem a problemática do Maneirismo<br />
e do Barroco na música ibérica, e as formas<br />
de inter-penetração cultural na <strong>Música</strong> Portuguesa:<br />
do Vilancico à Modinha e ao Fado. Trabalha<br />
presentemente num estudo de fundo sobre a<br />
vida musical luso-brasileira, na óptica dos viajantes<br />
estrangeiros do final do antigo regime (1750-<br />
1834).<br />
Como crítico e colunista musical foi colaborador<br />
dos semanários E x p r e s s o e O Independente.<br />
Produziu para a Antena Dois da RDP o programa<br />
“Sons Intemporais”.<br />
Foi Consultor Musical da Comissão Nacional<br />
para as Comemorações dos Descobrimentos<br />
Portugueses e da Régie Cooperativa Sinfonia e<br />
entre Novembro de 1991 e Junho de 1992, foi<br />
nomeado responsável pelo projecto artístico do<br />
Centro de Espectáculos do Centro Cultural de<br />
Belém.<br />
Entre Outubro de 1995 e Outubro de 1997<br />
ocupou o cargo de Secretário de Estado da<br />
Cultura do XIII Governo Constitucional.<br />
[ 7 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCV III.
Academia das Ciências de Lisboa, 2 1 . 3 0<br />
LUZES E SOMBRAS NO TEATRO MUSICAL ESPANHOL<br />
DO SÉCULO DE OURO<br />
De Juan del Encina a Lope de Vega<br />
JUAN DE LEYVA<br />
Romance a la muerte de Don Manrique de Lara<br />
ENRÍQUEZ DE VALDERRÁBANO (fl. séc. XVI)<br />
Pavana Real<br />
JUAN DEL ENCINA (1468 - 15 2 9/3 0)<br />
Amor con fortuna<br />
Si abrá en este baldrés<br />
VENEGAS DE HENESTROSA ( f l. 15 5 7)<br />
Diferencias sobre “las Vacas”<br />
A N Ó N I M O<br />
Si avéis dicho marido<br />
JUAN DEL ENCINA<br />
Fata la parte<br />
Cucú, cucú, cucucú<br />
A N Ó N I M O<br />
Diferencias sobre “la Folia”<br />
PERE JOAN ALMODAR<br />
Ah, Pelayo que desmayo<br />
JUAN DEL ENCINA<br />
Mas vale trocar<br />
A N Ó N I M O<br />
Seguidillas em eco: De tu vista celoso<br />
I n t e r v a l o<br />
SEBASTIAN AGUILERA DE HEREDIA (ca. 1565 - 16 2 7)<br />
Tiento de Batalla<br />
MANUEL MACHADO (ca. 1590 - 16 4 6)<br />
Afuera, afuera que sale<br />
A N Ó N I M O<br />
Ya es tiempo de recoger<br />
Oh que bien que baila Gil<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 8 ]
A N Ó N I M O<br />
Danza del Hacha e Canarios<br />
PEDRO RUIMONTE (ca. 1570 - p . 16 1 8)<br />
Madre la mi madre<br />
JUAN BLAS DE CASTRO ( c a . 1530 - 16 3 1)<br />
Desde las torres del alma<br />
ANÓNIMO / ANTÓNIO VALENTE ( f l . 1565 - 80)<br />
El Villano / Gallarda Napolitana<br />
JUAN BLAS DE CASTRO<br />
Entre dos àlamos verdes<br />
A N Ó N I M O<br />
Jácaras: No hay que decirle el primor<br />
LA CAPELLA REIAL DE CATALUNYA<br />
Montserrat Figueras S o p r a n o<br />
Pilar Jurado S o p r a n o<br />
Pilar Esteban M e i o - S o p r a n o<br />
Carlos Mena C o n t r a t e n o r<br />
Lambert Climent T e n o r<br />
Francesc Garrigosa T e n o r<br />
Daniele Carnovich B a i x o<br />
HESPERION XX<br />
Jordi Savall e Sergi Casademunt Violas da gamba<br />
Sophie Wattilon e Juan Manuel Quintana Violas da gamba<br />
Pedro Memelsdorff F l a u t a<br />
Jean-Pierre Canihac C o r n e t a<br />
Beatrice Delpierre C h a r a m e l a<br />
Daniel Lassalle S a c a b u x a<br />
Josep Borràs D u l ç a i n a<br />
Xavier Diaz Vihuela e Guitarra<br />
Edin Karamazov Alaúde e Guitarra<br />
Michael Behringer Cravo e Órgão<br />
Pedro Estevan P e r c u s s ã o<br />
Jordi Savall D i r e c ç ã o<br />
A Capella Reial de Catalunya tem o patrocínio da Generalitat da Catalunya e<br />
a Colaboração de IBERIA – Líneas Aéreas<br />
[ 9 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
LUZES E SOMBRAS NO TEATRO MUSICAL ESPANHOL<br />
Nas últimas décadas do século XV o Teatro<br />
converteu-se numa das mais importantes vertentes<br />
da Cultura cortesã na Península Ibérica, sobretudo<br />
graças à acção de dois grandes nomes: Gil Vicente<br />
em Portugal e Juan del Encina em Espanha. A<br />
tradição teatral peninsular tinha já então, claro está,<br />
largos séculos, mas manifestara-se sobretudo sob<br />
formas improvisadas de raiz popular,p r e d o m i n a n t emente<br />
sobre temática religiosa, quer através de mistérios<br />
e representações sacras exteriores à instituiç ã o<br />
eclesiástica quer através dos dramas litúrgicos admitidos<br />
no seio da própria liturgia oficial da Igreja.<br />
O novo Teatro de corte tinha características<br />
diferentes. Não enjeitava os temas sacros, e tendia<br />
mesmo a adoptar com alguma frequência, mesmo<br />
fora daqueles, um cariz moralizante; mas preferia<br />
concentrar-se na esfera profana, ora tratando de<br />
assuntos amorosos, muitas vezes enquadrados em<br />
contextos idealizados de natureza bucólica e pastoril,<br />
ora entrando abertamente pelos domínios da<br />
sátira política e da crítica de costumes, ora ficando-se<br />
pela simples comédia de entretenimento.<br />
Também não recusava a memória das suas origens<br />
populares remotas, bem presente nos seus<br />
inúmeros personagens de camponeses e mesteirais,<br />
representados com uma linguagem chã e por vezes<br />
mesmo a roçar o registo escabroso; mas partilhava<br />
inequivocamente, mesmo que disfarçando-o sob<br />
uma aparência construída de ingenuidade, das<br />
referências culturais do humanismo renascentista<br />
do seu tempo. Por último, não abandonava a<br />
tradição medieval da sátira social e da denúncia<br />
dos abusos dos poderosos; mas – vivendo no<br />
período da institucionalização de um novo poder<br />
régio centralizado, levada a cabo em Espanha pelos<br />
Reis Católicos e em Portugal por D. João II e D.<br />
Manuel I - colocava-a agora ao serviço desse novo<br />
ideal da autoridade absoluta do monarca como<br />
garante último da justiça no seu Reino e, por conseguinte,<br />
da própria correcção e castigo dos desmandos<br />
e excessos assim denunciados.<br />
XIX Jo rnadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 10 ]<br />
Se não é este, naturalmente, o espaço adequado<br />
para uma abordagem, mesmo que sumária, das<br />
características intrinsecamente dramatúrgicas deste<br />
repertório, o que importa, isso sim, sublinhar é que<br />
a <strong>Música</strong> ocupava nela uma função absolutamente<br />
essencial. Desde logo, ao nível da caracterização<br />
social dos personagens, que com frequência entravam<br />
em cena cantando uma canção emblemática<br />
do seu estatuto de classe: os pastores e camponeses<br />
entoando ou tocando melodias e danças rústicas,<br />
os escudeiros e cavaleiros preferindo vilancetes e<br />
cantigas galantes acompanhados à vihuela ou à<br />
guitarra, os eclesiásticos optando por melodias de<br />
cantochão ou até mesmo, em casos excepcionais,<br />
por pequenas peças polifónicas. Depois, no plano<br />
da própria caracterização psicológica desses personagens,<br />
traduzindo-lhes os sentimentos e emoções<br />
por meio da temática e do carácter expressivo<br />
das obras musicais escolhidas. Finalmente, como<br />
instrumento de marcação do ritmo interno e da<br />
estrutura dramática da própria peça, separando<br />
cenas, sublinhando pontos de clímax, celebrando o<br />
desenlace final do enredo ou sustentando, ocasionalmente,<br />
um epílogo de reflexão moralizante<br />
sobre a história narrada.<br />
Uma função de semelhante importância da<br />
componente musical do espectáculo implicava que<br />
esta fosse pensada logo à partida como veículo<br />
privilegiado do fio condutor da peça, pelo que o<br />
próprio dramaturgo tinha de estar, ele mesmo,<br />
suficientemente familiarizado com a linguagem<br />
técnica e o potencial expressivo da <strong>Música</strong> da<br />
época. Não admira, pois, que tanto no caso de Gil<br />
Vicente como no de Juan del Encina a precisão<br />
das referências musicais e a justeza dramática e<br />
funcional da inserção destas nos respectivos textos<br />
evidenciem profunda formação musical da parte<br />
dos autores. E se quanto a Mestre Gil não dispomos<br />
de dados concretos que nos permitam identificá-lo<br />
com segurança como compositor de pelo<br />
menos uma parte das obras de <strong>Música</strong> que utiliza
DO SÉCULO DE OURO por Rui Vieira Nery<br />
o mesmo não sucede com Encina, compositor<br />
consagrado e um dos autores de <strong>Música</strong> profana<br />
mais representados nos cancioneiros polifónicos<br />
ibéricos entre finais do século XV e meados do<br />
XVI.<br />
Não é de admirar este facto, se considerarmos<br />
o percurso pessoal de Juan del Encina. Nascido em<br />
1468 em Salamanca, viria a frequentar a prestigiada<br />
Universidade da sua terra natal, onde seu irmão<br />
Diego era Lente de <strong>Música</strong>, nela recebendo o<br />
Bacharelato em Leis. Mas já entretanto em 1484,<br />
aos dezasseis anos, o encontramos como cantor no<br />
coro da catedral salamantina, cargo muito competitivo<br />
que pressupõe que tenha recebido desde criança<br />
uma sólida formação musical nos domínios<br />
do cantochão e do contraponto. Nestas funções e<br />
– a partir de 1490, depois de ter tomado ordens<br />
menores – nas de Capelão da mesma catedral terá<br />
permanecido até 1492, data em que entrou ao<br />
serviço de Don Fradique Álvarez de Toledo,<br />
Duque de Alba, como poeta e dramaturgo residente,<br />
encarregue de promover o entretenimento<br />
poético e teatral do paço ducal de Alba de<br />
Tormes.<br />
A sua acção durante os seis anos que passou<br />
na corte da Casa de Alba foi extremamente intensa,<br />
datando desse período a quase totalidade da sua<br />
obra que chegou aos nossos dias, de que ele<br />
próprio compilou uma grande parte numa colectânea<br />
que ofereceu em 1495, ainda em manuscrito,<br />
ao Duque, e que fez imprimir no ano seguinte:<br />
nela se continham, designadamente, cerca de<br />
sessenta poemas para serem cantados, incluindo<br />
oito peças teatrais, e uma Arte de poesía castellana que<br />
constitui uma importante referência teórica para a<br />
caracterização do repertório poético do tempo e<br />
atesta bem, pelo seu carácter erudito de influência<br />
italiana, a vertente cosmopolita e cortesã do autor.<br />
Dos dois anos posteriores à publicação datam<br />
ainda mais cinco peças que viriam a ser incluídas<br />
nas sucessivas reedições da obra.<br />
Curiosamente, a carreira de dramaturgo e<br />
compositor de Juan del Encina pode assim considerar-se<br />
quase terminada por alturas do seu trigésimo<br />
aniversário, em 1498, quando abandona o serv<br />
i ç o do Duque de Alba. Candidata-se então ao<br />
cargo de Cantor-Mor da catedral de Salamanca,<br />
mas sem sucesso, visto que a escolha do cabido<br />
acaba por recair no compositor Lucas Fernández,<br />
após um processo de selecção complexo e algo<br />
irregular que Encina impugnará em tribunal, num<br />
pleito que se arrastará por vários anos. Entretanto<br />
parte para Roma, onde o Papa espanhol Alexandre<br />
VI o recebe generosamente, concedendo-lhe vários<br />
rendimentos eclesiásticos em dioceses da Espanha.<br />
Entra ao serviço de um outro compatriota, o<br />
Cardeal Francisco de Lorris, e em 1508 o Papa<br />
Júlio II concede-lhe o cargo de Arcediago da catedral<br />
de Málaga. Passará agora a dividir a sua vida<br />
entre esta última cidade e Roma, e é ainda no palácio<br />
romano do Cardeal valenciano Jacobo Serra<br />
que faz representar em 1513 a sua última peça<br />
conhecida, a Écloga de Plácida e Victoriano. Depois virá<br />
um período de verdadeira crise mística. Juan del<br />
Encina parte em 1519 em peregrinação à Terra<br />
Santa, e ao regressar a Roma é nomeado Prior da<br />
catedral de León, para onde partirá em seguida, aí<br />
permanecendo até à sua morte, em finais de 1529<br />
ou inícios de 1530.<br />
Muito embora Encina, como dramaturgo,<br />
tenha também utilizado nas suas peças obras musicais<br />
de outros compositores, ficaram-nos de sua<br />
autoria confirmada 61 peças musicais cuja fonte<br />
principal é o célebre Cancionero del Palácio, a mais<br />
extensa colectânea de <strong>Música</strong> vocal profana da<br />
Espanha das primeiras décadas do século XVI,<br />
assim designada por se preservar na biblioteca do<br />
Palácio Real de Madrid. Trata-se, em geral, de formas<br />
de estribilho e coplas (vilancetes ou cantigas)<br />
ou de peças estróficas de carácter narrativo<br />
(romances). Os romances tendem, com frequência,<br />
a ser de natureza mais grave e expressiva,<br />
[ 11 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
enquanto as cantigas e os vilancetes são quase sempre<br />
mais ritmados e ligeiros. A temática oscila<br />
entre a comédia picaresca, por vezes de sabor<br />
satírico e sensual, e o enredo amoroso. Algumas<br />
das peças vêm expressamente referidas nas obras<br />
teatrais do autor, sendo de admitir, no entanto,<br />
que mesmo as restantes que não são directamente<br />
indicadas possam na prática ter sido livremente<br />
inseridas nas representações.<br />
A tradição teatral espanhola prossegue, como<br />
se sabe, com um esplendor crescente a partir de<br />
Juan del Encina, para atingir o seu auge ao longo<br />
da primeira metade do século XVII, pela pena de<br />
autores como Calderón de la Barca, Tirso de<br />
Molina ou Lope de Vega. E a componente musical<br />
manteve no seio desse repertório um peso fundamental,<br />
com funções muito semelhantes às que<br />
já desempenhava nas obras do século anterior e<br />
limitando-se a acompanhar a evolução natural do<br />
estilo de composição profana praticado na<br />
Espanha do Século de Ouro.<br />
Destes autores foi precisamente Lope de<br />
Vega aquele que de forma mais constante reservou<br />
um lugar de destaque à <strong>Música</strong> nas suas obras, ao<br />
ponto de vir a ser o autor do texto e o promotor<br />
mais importante da primeira Ópera espanhola, L a<br />
Selva sin Amor, de que infelizmente se perdeu o<br />
registo da <strong>Música</strong>. Conhecemos pouco da sua<br />
infância, para lá do que ele próprio nos descreve<br />
na sua obra-prima autobiográfica, La Dorotea, m a s<br />
sabe-se que nasceu em Madrid em 1562 e admite-<br />
-se que terá estudado na Universidade de Alcalá de<br />
Henares, desconhecendo-se se terá recebido alguma<br />
formação musical. Ao contrário de Encina,<br />
contudo, nada parece indicar que tal tenha sucedido,<br />
visto que apesar da constante presença de<br />
referências musicais nas suas peças nenhuma fonte<br />
o aponta como compositor das obras de <strong>Música</strong><br />
que circulam sobre textos seus.<br />
A vida de Lope de Vega é ela própria um verdadeiro<br />
folhetim, a que não faltam alguns episódios<br />
militares – como o seu alistamento em 1583<br />
na esquadra espanhola que vai defender os Açores<br />
da ameaça de desembarque das forças leais ao<br />
Prior do Crato e 1588 na tristemente célebre<br />
Invencível Armada – e sobretudo um percurso<br />
amoroso sobressaltado e donjuanesco, com um<br />
primeiro envolvimento, aos dezassete anos, com<br />
uma mulher casada, Elena Osorio, dois casamentos<br />
sucessivos com Isabel de Urbina e Juana de<br />
Guardo, uma ligação ilegítima com Antonia Trillo<br />
que o leva a tribunal por crime de mancebia, e uma<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 12 ]<br />
longa relação paralela com Micaela de Luján, mãe<br />
de quatro dos seus seis filhos. Incapaz de fazer<br />
frente aos seus encargos pessoais apenas com os<br />
rendimentos da sua obra literária e dramatúrgica,<br />
torna-se em 1607 secretário do Duque de Sessa,<br />
seu grande amigo e protector até à morte, depois<br />
de ter estado, também ele, de 1590 a 1595, como<br />
um século antes o fizera Juan del Encina, ao<br />
serviço do Duque de Alba, em Toledo e Alba de<br />
Tormes. Em 1614, contudo, entra numa fase de<br />
intenso misticismo, tomando ordens menores na<br />
sequência da morte da sua segunda mulher e publicando<br />
em seguida um volume belíssimo de<br />
Rimas Sacras, o que não o impedirá de dois anos<br />
mais tarde vir a embarcar numa última grande ligação<br />
amorosa, desta vez com Marta de Nevares.<br />
Morreu em 1635, em Madrid.<br />
Todas estas amadas, por sinal, lhe inspirarão<br />
versos magníficos e lhe terão servido, muito<br />
provavelmente, de modelo aos personagens femininos<br />
que tão bem soube criar na sua obra<br />
dramática. Esta é, de resto, extensíssima, havendo<br />
ainda hoje debate entre os investigadores para o<br />
estabelecimento de um corpus inequívoco das<br />
composições teatrais de sua autoria para lá das<br />
vinte colecções de peças que publicou em sua vida,<br />
mas avultando entre estas El Alcalde de Zalamea<br />
(1600), Peribañez y el Comendador de Ocaña ( 1 6 1 4 ) ,<br />
Fuenteovejuna (1618), ou El Caballero de Olmedo<br />
(1641). De cerca de 340 comédias que lhe são<br />
atribuídas pelo menos metade contém referências<br />
a obras musicais específicas, para lá de mesmo nas<br />
restantes surgirem alusões genéricas como “aquí<br />
cantan y bailan”, “cantan con guitarra” ou “suena<br />
música”. A toda esta presença constante da <strong>Música</strong><br />
corresponde bem, aliás, a informação de que dispomos<br />
sobre a constituição das companhias de<br />
teatro espanholas da época, cujos actores e actrizes<br />
eram descritos como sendo, na sua maioria,<br />
capazes não só de declamar como de cantar, de<br />
dançar e, em alguns casos, de tocar algum instrumento.<br />
Não sendo ele mesmo músico, Lope de Vega<br />
soube atrair a si alguns dos maiores compositores<br />
activos na Corte de Madrid para escreverem a<br />
<strong>Música</strong> das suas peças. É o caso de Juan Blas de<br />
Castro (†1631), que servira com o dramaturgo ao<br />
Duque de Alba e ao qual Lope daria o epíteto<br />
poético de “dos veces divino maestro”, do português<br />
Manuel Machado (ca. 1490-1646), discípulo<br />
de Duarte Lobo e filho do harpista da<br />
Capela Real espanhola, ou de Pedro Ruimonte
(ca. 1570-p. 1618), autor de uma célebre colecção<br />
de madrigais espanhóis, El Parnaso Español, impressa<br />
em 1614 em Antuérpia. As obras destes e de<br />
outros compositores da época encontram-se dispersas<br />
pelos principais cancioneiros da primeira<br />
metade do século XVII, do Libro de Tonos Humanos<br />
e dos Romances y Letras a Tres Voces, da Biblioteca<br />
Nacional de Madrid, aos Cancioneiros de Claudio<br />
de la Sablonara, da Biblioteca Casanatense, de<br />
Olot, etc.. Aos vilancetes de tradição quinhentista<br />
junta-se aqui uma panóplia de novas formas, por<br />
vezes com forte componente de dança, com uma<br />
presença significativa das canções e danças populares<br />
espanholas, como a “seguidilla”, a “jácara”<br />
ou a “chacona”.<br />
A par com as obras especificamente escritas<br />
sobre textos integrantes das peças teatrais em<br />
causa, a componente musical das éclogas, comédias,<br />
tragicomédias, tagédias e demais géneros<br />
dramáticos da escola espanhola, de Encina a Lope,<br />
incluía, naturalmente, a execução frequente de<br />
<strong>Música</strong> instrumental durante as representações.<br />
Em alguns casos é no próprio texto ou nas respectivas<br />
verificar que encontramos indicações concretas<br />
sobre estas inserções. É de supor, no entanto,<br />
que a maioria destas passagens instrumentais<br />
ficaria à discrição dos responsáveis pela produção<br />
e sujeita à disponibilidade de músicos e instrumentos<br />
ali existentes, podendo ser escolhida de entre<br />
as várias categorias do repertório instrumental<br />
ibérico dos séculos XVI e XVII.<br />
No presente programa incluem-se, por isso<br />
mesmo, seis exemplos de géneros instrumentais<br />
diversos que poderiam ter estado representados<br />
nessa prática. O primeiro é uma das danças de<br />
Corte mais cultivadas no século XVI, a Pavana,<br />
dança lenta de passos, de que é aqui incluído um<br />
exemplo extraído do Libro de <strong>Música</strong> de Vihuela, intitulado<br />
Silva de Sirenas (Valladolid, 1547), do vihuelista<br />
Enríquez de Valderrábano. O segundo é uma série<br />
de variações sobre uma das mais populares canções<br />
espanholas da mesma época, Guárdame las vacas,<br />
extraída de uma importante colecção impressa de<br />
obras ibéricas para tecla coligidas por Luis<br />
Venegas de Henestrosa sob o título de Libro de<br />
Cifra Nueva para Tecla (Alcalá de Henares, 1557). A<br />
Folia, por sua vez, era uma dança medieval de<br />
origem portuguesa que durante mais de três séculos<br />
gozou de imensa popularidade, primeiro em<br />
toda a Península, depois pela Europa fora, até<br />
finais do século XVIII, ao ponto de Corelli e<br />
Vivaldi ainda comporem sobre ela conhecidas<br />
variações instrumentais. O repertório de órgão,<br />
frequentemente objecto de adaptações para conjuntos<br />
instrumentais que eram executadas nos mais<br />
diversos contextos, está aqui representado por uma<br />
obra do aragonês Sebastián Aguilera de Heredia<br />
(ca. 1565-1627), um “Tiento de Batalla” que<br />
procura descrever por efeitos musicais onomatopaicos,<br />
como era típico do género no século<br />
XVII, o combate místico entre as forças do Bem e<br />
do Mal. Por último encontraremos duas séries de<br />
improvisações sobre danças populares ibéricas<br />
deste período: antes de mais a “Danza del Hacha”<br />
e os “Canarios”, de que conhecemos registos importantes<br />
nas antologias para órgão organizadas<br />
pelo catalão Antonio Matin i Coll em finais do<br />
século XVII, e depois o conjunto formado pela<br />
dança popular “El Vilano”, de registo anónimo, e<br />
por mais uma dança cortesã, a “Gallarda Napolitana”,<br />
apresentada originalmente numa versão<br />
para cravo pelo compositor italiano Antonio<br />
Valente, na sua Intavolatura di Cimbalo ( N á p o l e s ,<br />
1575).<br />
[ 13 ] Lisbo a, 6 a 1 4 Outub ro MCMXCVIII.
De Juan del Encina<br />
a Lope de Vega<br />
Romance a la muerte de<br />
Don Manrique de Lara<br />
A veynte y siete de março<br />
la media noche sería<br />
en Barcelona la grande<br />
muy grandes llantos se hazía.<br />
los gritos llegan al cielo,<br />
la gente se amortecía<br />
por don Manrique de Lara<br />
que deste mundo partía.<br />
Muerto lo traen a su tierra<br />
donde bivo sucedía;<br />
su bulto lleva cubierto<br />
de muy rica pedrería,<br />
cercado d’escudos d’armas,<br />
de real genalogía,<br />
de aquellos altos linages<br />
donde aquel señor venía,<br />
de los Manriíquez y Castros<br />
el mejor era que avía,<br />
de los infantes de Lara<br />
derechamente venía.<br />
Con él salen arçobispos<br />
con toda la clerezía.<br />
Cavalleros traen sus andas,<br />
duques son su compañía,<br />
llóralo el rey y la reyna,<br />
como aquel que les dolía,<br />
y llora toda la corte,<br />
cada qual quien más podía.<br />
Quedaron todas las damas<br />
sin consuelo ni alegría;<br />
cada uno de los galanes<br />
con sus lágrimas dezía:<br />
“El mejor de los mejores<br />
oy nos dexa en este día;<br />
hizo honra a los menores,<br />
a los grandes demasía,<br />
XIX Jorn adas Gulb en kian de <strong>Música</strong> An tiga [ 14 ]<br />
parecía al duque su padre<br />
en toda cavallería;<br />
sólo un consuelo le queda<br />
A el que más le quería,<br />
que aunque la vida muriese<br />
su memoria quedaría.<br />
Parecióme Barcelona<br />
A Troya quando se ardía.”<br />
Amor con fortuna<br />
Amor con fortuna<br />
Me muestra enemiga.<br />
No sé qué me diga.<br />
No sé lo que quiero,<br />
Pues busqué mi daño.<br />
Yo mismo m’engaño,<br />
Me meto do muero<br />
Y, muerto, no espero<br />
Salir de fatiga.<br />
No sé qué me diga.<br />
Amor me persigue<br />
Con muy cruda guerra.<br />
Por mar y por tierra<br />
Fortuna me sigue.<br />
Quién hay que desligue<br />
Amor donde liga?<br />
No sé qué me diga.<br />
Fortuna traidora<br />
Me haze mudança,<br />
Y amor, esperança<br />
Que siempre empeora.<br />
Jamás no mejora<br />
Mi suerte enemiga.<br />
No sé qué me diga.
Si abrá en este baldrés<br />
Si abrá en este baldrés<br />
Mangas apra todas tres?<br />
Tres moças d’aquesta villa,<br />
Tres mozas d’aquesta villa<br />
Desollavan una pija<br />
Para mangas a todas tres.<br />
Tres moças d’aqueste barrio,<br />
Tres moças d’aqueste barrio<br />
Desollavan un carajo<br />
Para mangas a todas tres.<br />
Desollavan una pija,<br />
Desollavan una pija<br />
Y faltóles una tira<br />
Para mangas a todas tres.<br />
Y faltóles una tira,<br />
Y faltóles una tira.<br />
La una a buscalla iva<br />
Para mangas a todas tres.<br />
Y faltóles un pedaço,<br />
Y faltóles un pedaço.<br />
La una iva a buscallo<br />
Para mangas a todas tres<br />
Si avéis dicho marido<br />
Si avéis dicho marido,<br />
Esperá, diré yo lo mío.<br />
¡Si se cunpliese, marido,<br />
Lo qu’esta noch’ é soñado<br />
Qu’ estuviésedes subido<br />
En la picota, emplumado!<br />
Yo, con un moço garrido,<br />
En la cama, a mi costado,<br />
Y, tomando quel plazer<br />
Del qual vos sois ya cansado,<br />
Hiziésemos un alnado<br />
Que vos fuese a desçender.<br />
Fata la parte<br />
Fata la parte<br />
Tutt’ogni cal,<br />
Qu’es morta la muller<br />
De micer Cotal.<br />
Porque l’hai trovato<br />
Con un españolo<br />
En su casa solo,<br />
Luego l’hai macato.<br />
Lui se l’ha escapato<br />
Por forsa y por arte.<br />
Restava dicendo<br />
Porque l’hovo visto.<br />
- O válasme Cristo!,<br />
El dedo mordiendo,<br />
Griudando y piangendo:<br />
Españoleto, guarte!<br />
Guarda si te pillo,<br />
Don españoleto!<br />
Supra dal mio leto<br />
Te faró un martillo,<br />
Tal que en escrevillo<br />
Piangeran le carte.<br />
- Micer mi compare,<br />
Gracia della e de ti.<br />
- Lasa fare a mi<br />
Y non te curare.<br />
- Assai mal me pare<br />
Lui encornudarte.<br />
Cucú, cucú, cucucú!<br />
Cucú, cucú, cucucú!<br />
Guarda no lo seas tú.<br />
Compadre debes saber<br />
Que la más buena mujer<br />
Rabia sempre por hoder.<br />
Harta bien la tuya tú.<br />
Compadre, has de guardar<br />
Para nunca encornudar;<br />
Si tu mujer sale a mear<br />
Sal junto con ella tú.<br />
Ah, Pelayo que desmayo<br />
Ah, Pelayo que desmayo!<br />
- ¿De què, dí?<br />
- D’una zagala que ví.<br />
- Ah Pelayo si la vieras,<br />
Tanta es su hermosura,<br />
No bastara tu cordura,<br />
Qu’en verla tu te perdieras,<br />
Y penaras y murieras.<br />
- ¿Tal es dí?<br />
- Mas linda que nunca ví.<br />
Más vale trocar<br />
Más vale trocar<br />
Plazer por dolores<br />
Que estar sin amores.<br />
Donde es gradecido<br />
Es dulce el morir:<br />
Bivir en olvido.<br />
Aquél no es bivur.<br />
Mejor es sufrir<br />
Passión y dolores<br />
Que estar sin amores.<br />
Es vida perdida<br />
Bivir sin amar,<br />
Y más es que vida<br />
Saberla emplear.<br />
Mejor es penar<br />
Sufriendo dolores<br />
Ques estar sin amores.<br />
La muerte es vitoria<br />
Do bive afición,<br />
Que espera haver gloria<br />
Quien sufre passión.<br />
Más vale presión<br />
De tales dolores<br />
Que estar sin amores.<br />
El qu’es más penado<br />
Más goza de amor,<br />
Qu’el mucho cuidado<br />
Le quita el temor.<br />
Assí qu’es mejor<br />
Amar con dolores<br />
Que estar sin amores.<br />
No teme tormento<br />
Quiem ama con fe<br />
Sí su pensamiento<br />
Sin causa no fué.<br />
Haviendo por qué,<br />
Más valen dolores<br />
Que estar sin amores.<br />
Amor que no pena<br />
No pida plazer<br />
Pues ya le condena<br />
Su poco querer.<br />
Mejor es perder<br />
Plazer por dolores<br />
Que estar sin amores.<br />
[ 15 ] Li sboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
De tu vista celoso<br />
De tu vista celoso<br />
Paso mi vida<br />
Que me da mil enojos<br />
… ojos<br />
Que a tantos miran.<br />
Miras poco y robas<br />
Mil coraçones<br />
Y aunque mas te retiras<br />
… tiras<br />
Flechas de amores<br />
Para qué no nos falte<br />
Plata y vestidos<br />
Las mujeres hagamos<br />
… gamos<br />
Nuestros maridos.<br />
Para qué quieres galas<br />
Si honor pretendes<br />
Mira que son las galas<br />
… alas<br />
Para perderte.<br />
Afuera, afuera<br />
Afuera, afuera que sale<br />
Con ejercitos de flores<br />
La arrogancia del Abril<br />
A la campaña de un bosque.<br />
A sus fuerzas la nieve<br />
No se le oponga:<br />
Mire, no quede<br />
Sin la victoria.<br />
Ya es tiempo de recoger<br />
Ya es tiempo de recoger<br />
Soldados de mi memoria.<br />
Escapados y vencidos<br />
De una batalla tan loca.<br />
Toca, toca a recoger,<br />
Toca, toca que marcha.<br />
Que marcha el tiempo,<br />
Y la jornada es corta.<br />
Oh que bien que baila Gil<br />
Oh que bien que baila Gil<br />
Con las mozas de Barajas<br />
La chacona a las sonajas<br />
Y el villano al tamburil.<br />
¡Oh! Que bien cierto galán<br />
Baila Gil, tañendo Andrés!<br />
O pon fuego en los pies<br />
O al aire volando van;<br />
No hay mozo que tan gentil<br />
Agora baile en Barajas<br />
La chacona a las sonajas<br />
Y el villano al tamburil.<br />
¿Qué moza desecharía<br />
Un mozo de tal donaire<br />
Que de coces en el aire<br />
Y a volar le desafía?<br />
A lo menos más sutil<br />
Cuando baila, se hace rajas<br />
La chacona a las sonajas<br />
Y el villano al tamburil.<br />
Madre, la mi madre<br />
Madre, la mi madre<br />
Guardarme queréis;<br />
Mas si yo no me guardo<br />
Mal me guardaréis.<br />
Como es el amor<br />
Un fuerte guerrero,<br />
Quiso en mil el primero<br />
Mostrar su rigor,<br />
Gusté de su ardor<br />
Y abrile la puerta<br />
Si él la deja abierta,<br />
Mal la cerraréis,<br />
Que si yo no me guardo<br />
Mal me guardaréis.<br />
Desde las torres del alma<br />
Desde las torres del alma,<br />
Cercadas de mil engaños,<br />
Al dormido entendimiento<br />
La rasón está llamando.<br />
Alarma, alarma, guerra, desengaños,<br />
Que me lleva el amor mis verdes años.<br />
Dicen que le ha dado sueño<br />
La voluntad de Belardo<br />
Con la yerva de unos ojos<br />
Tan hermosos como falsos.<br />
Alarma, alarma, guerra, desengaños,<br />
Que me lleva el amor mis verdes años.<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 16 ]<br />
Entre dos àlamos verdes<br />
Entre dos àlamos verdes,<br />
Que forman juntos un arco,<br />
Por no despertar las aves<br />
Pasava callando el Tajo.<br />
Juntar los troncos querían<br />
Los enamorados braços;<br />
Pero el imbidioso río<br />
No dexa llegar los ramos.<br />
Juntaréis vuestras ramas,<br />
Àlamos altos,<br />
En menguando las aguas<br />
Del claro Tajo;<br />
Pero si ay desdichas<br />
Que vencen años.<br />
Creceràn con los tiempos<br />
Penas y agravios.<br />
Aunque en las crecientes<br />
Mientras que duran<br />
Las soberbias puentes<br />
No estàn siguras,<br />
A pesar de su furia<br />
Podréis juntaros<br />
En menguando las aguas<br />
Del claro Tajo.<br />
No hay que decirle el primor<br />
No hay que decirle el primor<br />
Ni con el valor que sale,<br />
Que yo se que esta zagala<br />
De las que rompen el aire.<br />
Tan bizarra y presumida<br />
Tan valiente es y arrogante<br />
Que ha jurado que ella sola<br />
Ha de vencer al Dios Marte.<br />
Si sale, que la festejan<br />
Las florecillas y aves,<br />
Juzgara que son temores<br />
Lo que haceis por agradables.<br />
Muera con la confusion<br />
De su arrogancia pues trae<br />
Por blason la victoria,<br />
Rayos con que ha de abrasarse.
Jordi Savall<br />
Nasceu em Igualada (Barcelona) em 1941. A<br />
sua trajectória musical começa aos seis anos de<br />
idade, tendo adquirido experiência prática e formação<br />
musical num coro infantil da sua terra<br />
natal. Prosseguiu estudos de <strong>Música</strong> e Violoncelo<br />
no Conservatório Superior de <strong>Música</strong> de<br />
Barcelona até 1965. Pioneiro ávido de novos horizontes,<br />
rapidamente se apercebeu da importância<br />
da <strong>Música</strong> Antiga, redescobrindo a viola da gamba<br />
e o rico património musical antigo da Península<br />
Ibérica. Em 1968 completou a sua formação na<br />
Schola Cantorum de Basileia onde, em 1973,<br />
sucedeu ao seu mestre August Wenzinger.<br />
A partir de 1970 grava e dá a conhecer, como<br />
solista, as obras primas do repertório para viola da<br />
gamba, sendo rapidamente reconhecido pela crítica<br />
internacional como um dos melhores intérpretes<br />
deste instrumento. Infatigável descobridor<br />
de obras esquecidas, entre 1974 e 1989 funda<br />
várias formações instrumentais que lhe permitem<br />
interpretar um amplo repertório, que se estende da<br />
Idade Média aos primeiros anos do século XIX.<br />
Em 1974 fundou o Hesperion XX com o soprano<br />
Montserrat Figueras, Hopkinson Smith e Lorenzo<br />
Alpert; em 1987 La Capella Reial de Catalunya e<br />
em 1989 a orquestra Le Concert des Nations,<br />
situando-se rapidamente, com cada um destes três<br />
agrupamentos, na vanguarda da interpretação, graças<br />
a uma nova concepção caracterizada por uma<br />
grande intensidade musical e por uma escrupulosa<br />
fidelidade histórica. A sua notável actividade de<br />
concertos (cerca de 100 por ano) em todo o mundo,<br />
permite-lhe visitar regularmente os principais<br />
festivais de <strong>Música</strong> Antiga de mais de 25 países da<br />
Europa, Estados Unidos, América Latina, Médio e<br />
Extremo Oriente, Austrália e Nova Zelândia.<br />
Unanimemente reconhecido como um dos<br />
principais intérpretes actuais de <strong>Música</strong> Antiga,<br />
Jordi Savall é uma das personalidades musicais<br />
mais polivalentes da sua geração: violista, director<br />
e fundador de um estilo próprio, as suas acti-<br />
vidades de concertista, de pedagogo e de investigador<br />
situam-no entre os principais agentes do<br />
processo de revalorização da <strong>Música</strong> Antiga. Com<br />
a sua decisiva participação no filme de Alain<br />
Corneau Tous les matins du monde (o qual recebeu sete<br />
Césares, incluindo o de melhor banda sonora),<br />
demonstrou que o gosto pela <strong>Música</strong> Antiga não é<br />
necessariamente elitista ou minoritário e que pode<br />
interessar a um público cada vez mais jovem e<br />
numeroso. Jordi Savall realizou também as bandas<br />
sonoras dos filmes Jeanne la Pucelle (1993) de<br />
Jacques Rivette, O Pássaro da Felicidade (1993) de<br />
Pilar Miró e M a r q u i s e (1997) de Vera Belmont,<br />
nomeada para os Césares de 1998.<br />
Durante trinta anos de intensa actividade<br />
Jordi Savall recebeu várias distinções. Em 1988 foi<br />
nomeado Oficial da Ordem das Artes e das Letras<br />
do Ministério Francês da Cultura, em 1990 recebeu<br />
a Cruz de Sant Jordi do Governo Regional da<br />
Catalunha, em 1992 foi eleito “Músico do Ano”<br />
pela revista Monde de la Musique e em 1993 “Solista<br />
do Ano” nas 8. as Victoires de la Musique.<br />
No ano de 1998 Jordi Savall começou a editar<br />
em exclusivo as suas próprias gravações e as dos<br />
grupos que lidera, com a criação de uma nova etiqueta<br />
discográfica intitulada ALIA VOX. A sua<br />
importante discografia, que inclui mais de uma<br />
centena de gravações para a EMI e Astrée /<br />
Auvidis, recebeu numerosos galardões:<br />
Grand Prix de l’Académie du Disque Français<br />
(1988, 1989); Edisson Klassic (1989); Grand<br />
Prix de l’Académie Charles Cros (1989), Prix de<br />
l’Académie du Disque Lyrique (1990); Orphée<br />
d’Or (1990); Grand Prix du Disque Classique da<br />
FNAC (1990); Diapason d’Or (1991); Prémio<br />
CD Compact (1992, 1995, 1996, 1997); Grand<br />
Prix de la Nouvelle Académie du Disque (1992);<br />
Disc d’Or RTL (1992, 1994); Croissete d’Or<br />
(1992); Grand Prix de la Ville de Cannes, do<br />
Festival Internacional do Audiovisual Musical<br />
(1992); César para a Melhor Banda Sonora (T o u s<br />
les Matins du Monde, 1992); Grande Prémio da<br />
Academia do Disco japonesa (1993); Prémio da<br />
<strong>Fundação</strong> Giorgio Gini (Veneza, 1995); Prémio<br />
Cecilia (1996); MIDEM ’97 (Cannes Classic<br />
Awards, por La Lira d’Esperia); MIDEM’98 (E l<br />
Cançoner de Calabria); nomeação para os Césares<br />
1998, pela banda sonora do filme Marquise.<br />
Colaborador regular das “Jornadas <strong>Gulbenkian</strong><br />
de <strong>Música</strong> Antiga”, completam-se no corrente<br />
ano de 1998 vinte anos sobre a sua primeira<br />
apresentação em Portugal.<br />
[ 17 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
Montserrat Figueras<br />
Nascida em Barcelona, no seio de uma família<br />
de melómanos, desde a mais tenra idade estudou<br />
canto com Jordi Albareda e frequentou, simultaneamente,<br />
cursos de arte dramática.<br />
O seu encontro com Jordi Savall, com quem<br />
casou em 1968, assinala o início de uma associação<br />
artística e pessoal que os marcará mútua e<br />
reciprocamente. Nesse mesmo ano Montserrat<br />
Figueras ingressa na Schola Cantorum e na Academia<br />
de <strong>Música</strong> de Basileia, onde trabalha com<br />
Kurt Widmer, Thomas Binkley, Andrea von<br />
Rahm e Eva Krasznai. No ano de 1974, em<br />
Basileia, com Jordi Savall, Hopkinson Smith,<br />
Lorenzo Alpert e outros músicos interessados nas<br />
mesmas pesquisas, Montserrat Figueras participa<br />
na formação do grupo Hesperion XX. Mais tarde,<br />
em Barcelona, colabora igualmente na criação da<br />
Capella Reial de Catalunya, em 1987.<br />
O estudo das técnicas de canto originais,<br />
desde a era dos Trovadores até finais do século<br />
XVII, o conhecimento do estilo do canto tradicional<br />
catalão, ibérico e mediterrânico e a polifonia<br />
religiosa espanhola são os três elementos que a<br />
tocam mais profundamente. É a alquimia entre<br />
este elementos que lhe proporciona uma concepção<br />
musical muito pessoal, à margem da<br />
influência do modelo pós-romântico.<br />
Montserrat Figueras aborda um largo universo<br />
musical que abrange a música espanhola da<br />
Idade Média até ao século XVIII e se estende aos<br />
repertórios italiano e francês. Gravou mais de<br />
cinquenta discos, dos quais alguns foram premiados:<br />
Prémio Edisson Klassick; Grand Prix de<br />
l’Académie du Disque e Grand Prix de l’Académie<br />
Charles Cros.<br />
Montserrat Figueras grava actualmente, em<br />
exclusivo, para a ALIA VOX, uma nova editora<br />
criada pelos artistas ligados a Jordi Savall, tendo<br />
recebido um estusiástico acolhimento da crítica e<br />
do público pela sua gravação das obras de José<br />
Marin.<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 18 ]<br />
La Capella Reial de Catalunya<br />
A Capella Reial de Catalunya foi criada em<br />
1987 por Jordi Savall e é um formada por um<br />
conjunto de cantores solistas e músicos especialistas<br />
em instrumentos de época, cujo objectivo é o<br />
de divulgar universalmente o repertório da música<br />
catalã, hispânica e europeia dos séculos IX a XIX.<br />
Esta formação leva a cabo um intensa actividade<br />
de concertos na Catalunha, Espanha,<br />
Portugal, Itália, França, Inglaterra, Hungria,<br />
Áustria, Alemanha, Holanda, Canadá, Estados<br />
Unidos, México, Austrália, Nova Zelândia,<br />
Filipinas, Japão, Formosa e Hong Kong, entre outros<br />
países.<br />
Realizou uma importante série de gravações,<br />
entre as quais se destacam: El cant de la Sibilla, Missa<br />
de Batalla e Missa pro Defunctis de Cererols; Vespro della<br />
Beata Virgine e Madrigali Guerrieri et Amorosi d e<br />
Monteverdi; El cançoner del Duc de Calabria e C a n t i c a<br />
Beatae Virginis de Victoria e o Requiem de Mozart.<br />
De assinalar também a sua participação no<br />
Gran Teatro del Liceo de Barcelona com a ópera<br />
Orfeo de Monteverdi e ainda a presença do agrupamento<br />
na banda sonora do filme de Jacques<br />
Rivette Jeanne La Pucelle.<br />
A Capella Reial de Catalunya recebeu diversos<br />
prémios durante os últimos anos, nomedamente:<br />
os Grandes Prémios da Académie du<br />
Disque Français, da Académie Charles Cross e da<br />
Nouvelle Académie du Disque; Diapason d’Or;<br />
Prémio da Académie du Disque Lyrique; Orphée<br />
d’Or; Grande Prémio do Disco Clássico da<br />
FNAC; Prémio da <strong>Fundação</strong> Giorgio Cini<br />
(Veneza) e Prémio CD Compact.<br />
Desde 1990 que o agrupamento é patrocinado<br />
pelo Governo Regional da Catalunha e recebe<br />
actualmente também o apoio da companhia de<br />
aviação Iberia.
Na Antiguidade, às duas penínsulas mais a<br />
ocidente da Europa – as Penínsulas Itálica e<br />
Ibérica – era dado o nome de Hesperia (em grego,<br />
Hesperio designa um indivíduo originário de uma<br />
destas penínsulas). Hesperio era também o nome<br />
dado ao planeta Vénus que, ao anoitecer, aparece<br />
no céu a Ocidente.<br />
Unidos por uma ideia comum – o estudo e a<br />
interpretação da <strong>Música</strong> Antiga a partir de premissas<br />
novas e actuais – Jordi Savall (instrumentos de<br />
arco), Montserrat Figueras (canto), Hopkinson<br />
Smith (instrumentos de corda dedilhada) e<br />
Lorenzo Alpert (instrumentos de sopro e percussões)<br />
fundaram em 1974 o agrupamento<br />
Hesperion XX, o qual se dedica à revalorização de<br />
determinados aspectos essenciais do repertório<br />
musical europeu (especialmente hispânico) anterior<br />
a 1800. No decorrer de duas décadas de<br />
existência, o Hesperion XX tem sido fiel a este<br />
ideal ao realizar um grande número de programas<br />
inéditos, através de diferentes produções de rádio,<br />
televisão e disco (contando mais de trinta<br />
gravações para a EMI, a Astrée/Auvidis, a Philips<br />
e a DG-Archiv) e de digressões por toda a Europa,<br />
Estados Unidos, Japão, México e Venezuela. O<br />
Hesperion XX participa regularmente em diversos<br />
festivais internacionais, especialmente nos de<br />
<strong>Música</strong> Antiga.<br />
Programas como <strong>Música</strong> no tempo de Cervantes,<br />
<strong>Música</strong> Napolitana da Renascença, Libre Vermell de<br />
Montserrat, Romances Sefarditas, Cansós de Trobairitz o u<br />
O Barroco Espanhol, e ainda produções monográficas<br />
de obras de compositores tão diferentes como<br />
Cabezón, G. Gabrielli, Frescobaldi, du Carroy,<br />
Scheidt, Hume, Gibbons, Couperin ou J. S. Bach,<br />
testemunham a riqueza de possibilidades que este<br />
agrupamento oferece. Podemos referir ainda A Arte<br />
da Fuga de J. S. Bach, Lachrimae or Seaven Teares d e<br />
Dowland, Laudes Deo de Tye (estreia mundial da<br />
Consort Musicke completa), Recercadas do Trattado de<br />
G l o s a s de Diego Ortiz, Romances e Vilancicos de<br />
Hesperion XX<br />
Juan del Encina, as sinfonias e as sonatas de J.<br />
Rosenmüller, ou as obras de J. Jenkins, para além<br />
de uma selecção de música do século de ouro<br />
espanhol: Cancioneiro do Palácio, Cancioneiro da<br />
Colombina, Cancioneiro de Medinacelli, Folias y<br />
Canarios e obras religiosas de Cristobal de Morales,<br />
Francisco Guerrero e Tomás Luís de Victoria.<br />
Entre os recentes êxitos do Hesperion XX<br />
destacam-se: as Fantasias de Purcell para conjuntos<br />
de viola da gamba, editado em 1995 para assinalar<br />
os trezentos anos da morte do compositor<br />
inglês; Fantasias, Pavanas e Galhardas de Luís de<br />
Milán; Ludi Musici de Scheidt e o quadro Moyen Âge<br />
& Renaissance, sendo todas estas edições Astrée /<br />
Auvidis. Os novos discos do Hesperion XX são<br />
editados pela ALIA VOX, nomeadamente: Batalles,<br />
Tientos & Passacalles de Joan Cabanilles e <strong>Música</strong> no<br />
Tempo de Isabel I, para conjunto de violas da gamba.<br />
Um repertório tão vasto requer formações<br />
variadas e exige dos intérpretes, para além de um<br />
grande virtuosismo, um conhecimento profundo<br />
dos diferente estilos e épocas. Assim, o Hesperion<br />
XX possui um formação internacional, abrigando<br />
alguns dos melhores solistas em cada domínio,<br />
variando segundo o repertório a interpretar, mas<br />
mantendo sempre o mesmo núcleo. Na actual<br />
problemática da interpretação de <strong>Música</strong> Antiga, a<br />
originalidade do Hesperion XX reside na intrepidez<br />
das suas opções: a criatividade individual no<br />
âmbito de um trabalho de grupo (onde a improvisação<br />
encontra o seu lugar) e a procura de uma<br />
síntese dinâmica da expressão musical, aliadas ao<br />
conhecimento estilístico e histórico e à imaginação<br />
criativa de um músico do século XX.<br />
[ 19 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
XIX Jorn adas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> An tiga<br />
Q u a r t a - F e i r a ,<br />
Dia 7<br />
20
Palácio de Queluz, 2 1 . 3 0<br />
EM TORNO DA ÓPERA BARROCA ITALIANA<br />
PIETRO ANTONIO LOCATELLI (1695 - 17 6 4)<br />
Concerto a quattro, Op. 7, N.º 6 em Mi Bemol Maior - Il Pianto d’Ariana<br />
(Andante, Allegro - Largo - Largo, Andante - Grave - Allegro - Largo)<br />
CARL PHILIPP EMANUEL BACH (1714 - 17 8 8)<br />
Sinfonia para Cordas em Si bemol Maior<br />
(Allegro di molto - Poco adagio - Presto)<br />
GIOVANNI BATTISTA PERGOLESI (1710 - 17 3 6)<br />
O r f e o , Cantata para Soprano, Cordas e Baixo Contínuo<br />
(Recitativo - Ária Amoroso - Recitativo - Ária Presto)<br />
I n t e r v a l o<br />
ANTONIO VIVALDI (1678 - 17 4 1)<br />
Concerto Op. 3, N.º 8, para dois Violinos, em Lá menor<br />
(Allegro - Larghetto spirituoso - Allegro)<br />
JOHANN SEBASTIAN BACH (1685 - 17 5 0)<br />
Non sa che sia dolore, C a n t a t a<br />
(Sinfonia - Recitativo - Ária - Recitativo - Ária)<br />
CAPELA REAL<br />
Pedro Couto Soares F l a u t a<br />
Stephen Bull e Philip Yeeles V i o l i n o s<br />
Álvaro Pinto e Tera Shimizu V i o l i n o s<br />
Luís Santos e Margareta Sandros V i o l i n o s<br />
Teresa Fernandes e Margarida Araújo V i o l a s<br />
Luís Sá Pessoa e Miguel Ivo Cruz V i o l o n c e l o s<br />
Pedro Wallenstein C o n t r a b a i x o<br />
Ana Mafalda Castro Cravo e Orgão<br />
Em colaboração com o<br />
Goethe-Institut Lissabon (Instituto Alemão)<br />
Barbara Schlick S o p r a n o<br />
Stephen Bull V i o l i n o<br />
Anton Steck Violino e Direcção<br />
[ 21 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
EM TORNO DA ÓPERA<br />
BARROCA ITALIANA<br />
por Stephen Bull<br />
O Alargamento da esfera de influência da<br />
música italiana, e em particular da ópera italiana,<br />
foi uma das características da vida musical na<br />
Europa do século XVIII. As viagens de virtuosi italianos,<br />
cantores e instrumentistas, bem como o<br />
desenvolvimento de modernos métodos de<br />
impressão e distribuição de música, contribuíram<br />
para tornar a Europa um espaço mais inter-dependente<br />
e cada vez mais aberto aos diversos estilos<br />
nacionais, bem como ao trabalho de diferentes<br />
compositores. A própria definição de ópera encontrava-se<br />
em mudança, afastando-se da associação<br />
com o entretenimento do drama grego para<br />
receber a inclusão de formas como a comedie musicale<br />
ou o drama sacro.<br />
Pietro Antonio Locatelli, nascido em<br />
Bergamo em 1695, foi um dos primeiros v i r t u o s i<br />
italianos que, após ter estudado em Roma, desenvolveu<br />
uma carreira bem sucedida na Europa do<br />
Norte. Na data da sua morte em Amesterdão, em<br />
1764, tinha-se tornado num editor de música,<br />
negociante de instrumentos musicais, professor de<br />
um elevado número de amadores de música provenientes<br />
de famílias abastadas, e ainda, segundo o<br />
inventário feito na sua biblioteca, num homem de<br />
posses pouco comuns e com um largo espectro de<br />
interesses culturais. Foi considerado como o sucessor<br />
do grande Arcangelo Corelli, embora seja mais<br />
provável que tenha feito a sua aprendizagem com<br />
o seu rival Valentini. Contudo o estilo de Locatelli<br />
como compositor demonstra que este absorveu<br />
influências de numerosos compositores, incluindo<br />
Vivaldi. A experiência obtida por Locatelli em<br />
Amesterdão, fazendo a leitura de provas para o<br />
editor Le Cene, ter-lhe-ia proporcionado amplas<br />
oportunidades de estudo do trabalho de outros<br />
compositores.<br />
Como instrumentista, segundo os seus contemporâneos,<br />
Locatelli era uma figura controversa.<br />
Relatos de “doçura e virtuosismo em partes de<br />
canto” contrastam com outros que referem que ele<br />
tocava com tal fúria que provavelmente destruiria<br />
dezenas de violinos por ano. As sua composições<br />
são também vistas de modos diversos pelos seus<br />
contemporâneos. Por um lado, era apreciado pela<br />
naturalidade dos seus temas e por outro, como<br />
XIX Jorn adas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> An tiga [ 22 ]<br />
apresentando “mais surpresa do que prazer”, como<br />
refere Burney, o viajante musical inglês, no seu<br />
diário. Após trabalhos iniciais de um estilo semelhante<br />
a Corelli, mais tarde escreveu composições<br />
com alusões a ideias programáticas, como cenas de<br />
caça em Il imitazione del corno de caccia. No concerto<br />
Op. 7 N.º 6 , um trabalho relativamente tardio,<br />
faz uma clara alusão à ópera. Com o título Il pianto<br />
di Arianna, Locatelli toma como referência a ópera<br />
no seu sentido mais antigo, recreando o drama da<br />
Grécia Antiga, e, com o uso de recitativo no<br />
primeiro andamento, utilizando o estilo operático<br />
num concerto grosso (este procedimento tinha já<br />
sido realizado algum tempo antes por Bonporti,<br />
mas não se pode ter a certeza se Locatelli teria ou<br />
não ouvido o concerto de Bonporti, embora a<br />
experiência que detinha na publicação de música o<br />
possa ter posto em contacto com o seu trabalho).<br />
Carl Philipp Emanuel Bach, o segundo filho<br />
sobrevivente de Johann Sebastian Bach, nasceu em<br />
Weimar em 1714. Contrariamente a Locatelli<br />
nunca lhe foram conhecidas grandes viagens, pelo<br />
menos fora da Alemanha. No entanto, manteve-se<br />
permeável a variadas influências musicais. Criado<br />
no seio de uma família de músicos, teve Georg<br />
Philipp Telemann como padrinho e durante a sua<br />
infância inúmeros músicos visitavam a casa de seus<br />
pais. Os seus estudos iniciais (exclusivamente com<br />
o seu pai) deram-lhe um conhecimento alargado<br />
de muitos estilos musicais (por exemplo, compôs<br />
umas variações sobre um dos minuetes de<br />
Locatelli), embora tenha apenas ouvido ópera em<br />
Dresden e estando, até então, provavelmente<br />
restringido a obras de Hasse.<br />
A sua carreira como compositor sofreu atrasos<br />
devido aos anos em que estudou Direito em<br />
Frankfurt, estudos que efectuou com o fim de<br />
ampliar os seus conhecimentos e adquirir um<br />
maior prestígio social do que aquele que era atingível<br />
na época por um jovem aspirante a compositor.<br />
Enquanto estudante compôs e tocou como cravista,<br />
fazendo-se notado pelo príncipe Frederico<br />
da Prússia, mais tarde Frederico, o Grande.<br />
Durante 30 anos, com início em 1738, o<br />
jovem Bach foi cravista na corte de Frederico o<br />
Grande, tocando essencialmente música de câmara<br />
como acompanhador do rei e de outros músicos<br />
da corte. Nessa altura, Frederico inaugurou a<br />
Ópera de Berlim onde Bach teve oportunidade de<br />
contactar com os grandes intérpretes italianos e<br />
franceses, bem como com as obras de Hasse e<br />
Graun. As suas próprias composições tornaram-se
mais dramáticas, contudo nunca compôs uma<br />
ópera, mesmo após a saída da corte de Frederico o<br />
Grande. Segundo relatos da época, o jovem Bach<br />
nunca conseguiu obter o estatuto que desejava na<br />
corte e as relações com o rei eram difíceis. Em<br />
1758 sucedeu ao seu padrinho Telemann, como<br />
K a n t o r em Hamburgo, com a tarefa de ensinar e<br />
compor música para a igreja. Havia também<br />
tempo para outras actividades, incluindo a<br />
direcção de concertos públicos cujos programas<br />
incluíram obras dos compositores mais modernos:<br />
Jommelli, Haydn, Händel e Gluck. A Sinfonia em<br />
Si bemol Maior data provavelmente desta época.<br />
O nome de Giovanni Battista Pergolesi é<br />
conhecido sobretudo devido a duas obras, o S t a b a t<br />
M a t e r e La Serva Padrona, facto que não facilita a<br />
divulgação da sua variada obra. Durante uma vida<br />
breve (tinha apenas 26 anos quando faleceu em<br />
1736), compôs peças instrumentais, obras religiosas<br />
e muitas formas de música secular dramática:<br />
ópera seria, intermezzi (por exemplo La Serva<br />
P a d r o n a , escrita como i n t e r m e z z o para a mesmo<br />
ocasião que uma das suas opere serie), comedie musicali<br />
(escritas em dialecto napolitano) e cantatas, estas<br />
últimas provavelmente compostas para um público<br />
nobre. Salvo uma visita a Roma, Pergolesi nunca<br />
saiu de Nápoles, a sua cidade natal, mas ainda em<br />
vida a sua música tornou-se muito popular, até em<br />
países geograficamente muito afastados, como a<br />
Inglaterra. A fama após a sua morte foi enorme,<br />
especialmente em França onde o seu trabalho foi<br />
copiado incessantemente e onde foi considerado o<br />
exponente máximo da ópera buffa italiana. A cantata<br />
O r f e o foi composta quase no fim da sua vida,<br />
talvez mesmo durante a fase final da sua doença.<br />
Antonio Vivaldi nunca tinha saído da cidade<br />
de Veneza quando as suas obras foram publicadas<br />
pela primeira vez em Amesterdão. A influência de<br />
L'Estro Armonico, publicado em 1711, espalhou-se<br />
rapidamente por toda a Europa e permaneceu<br />
muito depois da sua morte em 1741. O editor,<br />
Estienne Roger, tinha inventado uma técnica nova<br />
de impressão de música, muito mais legível que as<br />
até então utilizadas e que tinha a grande vantagem<br />
de não precisar da repetição de todos os passos de<br />
cada vez que se necessitava de proceder a uma<br />
reimpressão. Vivaldi foi o primeiro compositor<br />
italiano a beneficiar desta nova tecnologia. Mesmo<br />
o grande Arcangelo Corelli, na altura mais importante<br />
que Vivaldi, apenas iniciou a utilização desta<br />
técnica alguns anos após Vivaldi quando publicou<br />
os seus Concerti grossi, na mesma editora, em 1714.<br />
A transcrição de Johann Sebastian Bach de um<br />
destes concertos demonstra a ampla divulgação da<br />
obra. Sabemos que Joseph Haydn estudou outras<br />
obras de Vivaldi, que lhe foram vendidas por<br />
Roger, muitos anos mais tarde. Michel-Charles le<br />
Cene, o genro de Roger, foi inclusivamente o editor<br />
com quem Locatelli trabalhou em Amesterdão.<br />
O livro de 12 concertos que Vivaldi intitulou<br />
L'Estro Armonico contem obras para várias combinações<br />
de instrumentos de cordas. Muito provavelmente,<br />
foram compostas para o Ospedale della<br />
Pietà, o orfanato onde Vivaldi era maestro de' concerti,<br />
padre e professor de música. A variedade das composições<br />
e o título sugerem uma função pedagógica,<br />
enquanto que claramente os vários agrupamentos<br />
de instrumentos implicam a existência de um<br />
razoável número de instrumentistas com uma<br />
mesma escola. Talvez o seu envolvimento nas casas<br />
de ópera, ou talvez a intriga veneziana, o tenham<br />
colocado na lista negra da direcção do Ospedale<br />
em 1709, o ano em que Georg Friedrich Händel<br />
chegou a Veneza. O facto surpreendente é que em<br />
1711, quando L'Estro Armonico foi publicado,<br />
Vivaldi não detinha posição oficial no Ospedale,<br />
sendo readmitido apenas no fim desse ano.<br />
Talvez a obra de Johann Sebastian Bach<br />
mais parecida com ópera italiana seja a cantata Non<br />
sa che sia dolore. O seu conhecimento da música italiana,<br />
instrumental e vocal, deve ter origem em<br />
várias fontes. Um exemplo já mencionado é a sua<br />
transcrição do Concerto para Quatro Violinos de<br />
Vivaldi, da obra L'Estro Armonico, mas mais frequentemente<br />
reformulava composições de mestres<br />
italianos, sobretudo obras com textos em latim. O<br />
italiano Torelli foi empregado em Anspach (vila<br />
mencionada no texto de Non sa che sia dolore) no<br />
princípio do século, e outros compositores italianos<br />
de cantatas e óperas eram bem conhecidos em<br />
Dresden e Leipzig. Esta obra é, porém, uma mistura<br />
estranha de ingredientes musicais e linguísticos,<br />
sendo possível que não sejam todos do mesmo<br />
autor. O texto, aparentemente escrito por um alemão<br />
(com passagens frequentemente sem qualquer<br />
sentido em italiano), contém, na ária final, quatro<br />
linhas compostas pelo poeta Pietro Metastasio. A<br />
combinação desastrada de palavras com a música<br />
sugere que esta poderia ter sido originalmente<br />
composta para um outro texto. Provavelmente<br />
estas observações apoiam a explicação tradicional<br />
de que Bach preparou a obra apressadamente para<br />
celebrar a partida do seu pupilo Christoph Mizler,<br />
de Leipzig para Itália em 1734.<br />
[ 23 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
O r f e o<br />
GIOVANNI BATTISTA PERGOLESI<br />
Recitativo<br />
Nel chiuso centro, ove ogni luce assonna,<br />
all’or che pianse in compagnia d’amore,<br />
della smarita donna seguendo l’orme per<br />
ignota via,<br />
giunse di Tracia il vate.<br />
Al suo dolore qui sciolse il freno<br />
a rintracciar pietate,<br />
e qui nel muto orrore,<br />
in dolce accenti all’alme sventurate,<br />
sulla cetra narrando i suoi tormenti;<br />
temprò la pena e debelò lo sdegno<br />
del barbaro signor del cieco regno.<br />
Aria<br />
Euridice, e dove sei?<br />
Chi m’ascolta, chi m’addita,<br />
dov’è il sol degl’occhi miei?<br />
Chi farà che torni in vita?<br />
Chi al mio cor la renderà?<br />
Cor mio, mia vita,<br />
chi m’ascolta, chi m’addita,<br />
Euridice dov’è, dov’è?<br />
Preda fu d’ingiusta morte.<br />
Io dirò se tra voi resta<br />
l’adorata mia consorte,<br />
che pietà più non si desta,<br />
che giustizia più non v’ ha.<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 24 ]<br />
Recitativo<br />
No fechado centro, onde toda a luz esmorece,<br />
agora chora em companhia do amor,<br />
da perdida senhora, seguindo-lhe o rasto por<br />
obscuro caminho,<br />
encontrou o poeta a pista.<br />
Solta as rédeas da sua dor<br />
ao procurar pegadas,<br />
e quem no mudo horror,<br />
em doces inflexões às almas infelizes,<br />
na cítara narra os seus tormentos;<br />
suavizou a pena e debelou o desdém<br />
do bárbaro senhor do cego reino.<br />
Ária<br />
Eurídice, onde estás?<br />
Quem me ouve, quem me mostra,<br />
onde está o sol dos olhos meus?<br />
Quem lhe dará de novo a vida?<br />
Quem ao meu coração a devolverá?<br />
Coração meu, minha vida,<br />
quem me escuta, quem me mostra,<br />
Eurídice onde está, onde está ?<br />
Presa foi de injusta morte.<br />
Dizei-me se entre vós jaz<br />
a minha bem amada,<br />
piedade já não há,<br />
justiça já não existe.
Recitativo<br />
Si, che pietà non v’è,<br />
se a me non lice piegar del fato il braccio,<br />
onde risane la cruda piaga d’Euridice in seno.<br />
Non v’è pietà, no, non s’intende amore;<br />
se invano sospiro, invan mi crucio e piango.<br />
Ma che dissi, che finsi?<br />
Un tanto affetto chi non provò?<br />
Chi non intese ancora<br />
di natura e d’amor le voci i moti?<br />
Angue tra spine sia,<br />
tra ircane selve feroce tigre,<br />
o tra numide arene sieno indomite belve?<br />
Ditelo voi, cui trasse amore tra l’ombre,<br />
palida amica turba, Euadne, Fedra,<br />
e tu prole d’Accasto e voi compagne,<br />
si può tra rai del sole tornar così?<br />
Chi può, senza il suo bene, trarre i giorni<br />
odiosi,<br />
e disperando vivere per amare penando?<br />
Aria<br />
O d’Euridice n’andrò fastoso,<br />
o d’Acheronte sul nero fonte,<br />
disciolto in lagrime, spirto infelice,<br />
si, si, io resterò.<br />
Non ha terrore per me la morte.<br />
Presso al mio amore, ogni aspra sorte,<br />
ogni sventura, soffrir si può.<br />
Recitativo<br />
Sim, piedade já não há,<br />
se não me é lícito torcer o braço do destino,<br />
onde se cura a crua chaga do seio de Eurídice.<br />
Não há piedade, não, de amor nada sabe;<br />
se em vão suspiro, em vão me lamento e choro.<br />
Mas que disse eu, que imaginei?<br />
Um tal afecto quem não experimentou?<br />
Quem nunca ouviu<br />
as vozes suplicantes da natureza e do amor ?<br />
Seja serpente entre espinhos,<br />
feroz tigre na impenetrável selva,<br />
ou indómita fera na arena?<br />
Dizei-me vós, que o amor trazeis entre as sombras,<br />
pálida multidão amiga, Euadne, Fedra,<br />
e tu prole de Acasto e vós companheiras,<br />
se se pode assim voltar aos raios de Sol?<br />
Quem pode, sem o seu amor, percorrer os dias<br />
odiosos,<br />
e desesperado viver pelo amor sofrendo?<br />
Ária<br />
Oh, de Eurídice não me afastarei,<br />
assim mergulho nas negras águas de Acheronte<br />
desfeito em lágrimas, espírito infeliz,<br />
sim, sim, aqui ficarei.<br />
Não tem para mim terror a morte.<br />
Junto ao meu amor, o pior destino,<br />
a pior desdita, posso suportar.<br />
[ 25 ] Li sboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
Non<br />
JOHANN SEBASTIAN<br />
sa<br />
BACH<br />
che sia dolore<br />
Recitativo<br />
Non sa che sia dolore<br />
chi dall’ amico suo parte e non more.<br />
Il fanciullin’, che plora e geme<br />
ed allor che più ei teme,<br />
vien la madre a consolar.<br />
Va dunque a cenni del cielo,<br />
adempi or di Minerva il zelo.<br />
Aria<br />
Parti pur e con dolore<br />
lasci a noi dolente il cuore.<br />
La patria goderai,<br />
a dover la servirai;<br />
varchi or di sponda in sponda,<br />
propizi vedi el vento e l’onda.<br />
Recitativo<br />
Tuo saver al tempo e l’età contrasta,<br />
virtù e valor sol a vincer basta,<br />
ma chi gran ti farà più che non fusti<br />
Ansbaca piena di tanti Augusti.<br />
Aria<br />
Ricetti gramezza e pavento<br />
qual nocchier placato il vento.<br />
Più non teme o si scolora,<br />
ma contento in su la prora<br />
va cantando in faccia al mar.<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 26 ]<br />
Recitativo<br />
Não sabe o que seja a dor<br />
quem do seu amigo se separa e não morre.<br />
O bebé, que chora e geme<br />
e que quando tudo teme,<br />
vem a mãe para o consolar.<br />
Eis assim os sinais do céu,<br />
cumpra-se agora de Minerva o zelo.<br />
Aria<br />
Parte, pois, e com dor<br />
deixas a nós pesaroso o coração.<br />
A pátria desfrutarás,<br />
com dever a servirás;<br />
passa agora de praia em praia,<br />
propícios são o vento e o mar.<br />
Recitativo<br />
O teu saber com o tempo e a idade contrasta,<br />
virtude e valor para vencer bastam,<br />
mas quem grande te fará como nunca foste<br />
Ansbaca cheia de tantos Augustos.<br />
Aria<br />
Preparas-te e não temes,<br />
qual navegante que aplaca o vento.<br />
Não está pálido nem receia,<br />
mas contente sobre a proa<br />
vai cantando face ao mar.<br />
Traduções de Dinorah Mealha
Após ter concluído o curso de violino com o<br />
Prof. Jörg-Wolfgang Jahn, na Escola Superior de<br />
<strong>Música</strong> de Karlsruhe, Anton Steck estudou ainda<br />
violino barroco e técnicas de interpretação com<br />
Reinhard Goebel na Escola Superior de Belas-<br />
Artes de Amesterdão.<br />
Em 1991, assumiu a função de 1º violino no<br />
Ensemble Musica Antiqua Köln. Com este agrupamento<br />
participou em digressões a nível mundial<br />
e em inúmeros discos que foram premiados por<br />
várias vezes. Em 1995, Anton Steck acompanhou<br />
a orquestra barroca Les Musiciens du Louvre<br />
(Marc Minkowski), em Paris, como 1º violino<br />
solo. Na mesma altura, assumiu também a posição<br />
de 1º violino do grupo holandês Ensemble Musica<br />
ad Rhenum (Jed Wentz). Além disso, é solista da<br />
Orquestra do Bach-Verein de Colónia.<br />
Em 1998, trabalhou pela primeira vez como<br />
maestro com a Orquestra da Ópera de Halle/Saale.<br />
Apesar de a sua actividade abranger a orquestra<br />
e a ópera, Anton Steck dedica-se principalmente<br />
à música de câmara, muito especialmente<br />
aos géneros sonata para violino e quarteto de cordas.<br />
Em conjunto com Robert Hill (pianoforte) e<br />
s o b a etiqueta Dadringhaus & Grimm, tocou toda<br />
a obra para duo de Franz Schubert e gravou um<br />
CD com sonatas desconhecidas de Mozart.<br />
Anton Steck<br />
O seu Quarteto Schuppanzigh, fundado em<br />
1996, distingue-se na interpretação das obras clássicas<br />
e do pré-romantismo (altura que se caracteriza<br />
pelo desabrochar do quarteto de cordas), com<br />
utilização de instrumentos originais. Na temporada<br />
de 1998/99 tem programados concertos em<br />
Grenoble, Essen, Lubliana, Hamburgo, Karlsruhe,<br />
Bad Irsee e Bona (Sala de <strong>Música</strong> de Câmara).<br />
Anton Steck é professor na Escola Superior<br />
de <strong>Música</strong> de Karlsruhe e no Conservatório de<br />
Hamburgo, e orienta cursos na Escola Superior de<br />
<strong>Música</strong> de Wuppertal e na Academia Händel de<br />
Karlsruhe. Toca num violino de David Tecchler<br />
(Roma, 1720), posto à sua disposição pela<br />
<strong>Fundação</strong> Arte e Cultura.<br />
[ 27 ] Li sboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
O soprano Barbara Schlick nasceu em<br />
Würzburg na Alemanha. Nesta cidade estudou na<br />
Escola Superior de <strong>Música</strong> com Henriette Klink-<br />
Schneider e em Essen estudou canto com Hilde<br />
Wesselmann. Iniciou a sua carreira de concerto no<br />
Barockensemble Adolf Scherbaum.<br />
Barbara Schlick é requisitada internacionalmente<br />
como intérprete de música barroca e clássica<br />
e já pisou os palcos de quase todos os importantes<br />
centros musicais da Europa, Israel, Japão,<br />
Canadá, América e Rússia. Participa nos mais<br />
conhecidos festivais europeus de <strong>Música</strong> Antiga<br />
como Ansbach, Berlim, Brügge, Göttingen, Lisboa,<br />
Londres, Paris, Estugarda e Utrecht e com maestros<br />
de prestígio como Frans Brüggen, William<br />
Christie, Michel Corboz, Reinhard Goebel,<br />
Philippe Herreweghe, René Jacobs, Jürgen<br />
Jürgens, Ton Koopman, Sigiswald Kuijken e<br />
Michael Schneider, entre outros.<br />
As suas interpretações, que desde 1979 também<br />
incluem representações de óperas barrocas, estão<br />
em grande parte gravadas pela Rádio, Televisão e<br />
em disco. Entre elas a cantata Ino de Georg Philipp<br />
Telemann, com o Musica Antiqua Köln, para a<br />
Archiv Produktion, as missas de Mozart, sob a<br />
batuta de Peter Neumann, para a EMI, a P a i x ã o<br />
Segundo S. João, Paixão Segundo S. Mateus, a Missa em Si<br />
m e n o r e a Oratória de Natal de Johann Sebastian<br />
Bach, sob a regência de Philippe Herreweghe,<br />
assim como a ópera Júlio César de Georg Friedrich<br />
Händel, sob a direcção de René Jacobs, para a<br />
Harmonia Mundi France, a Paixão Segundo S. Mateus<br />
de Johann Sebastian Bach e 16 Cantatas de<br />
Dietrich Buxtehude dirigidas por Ton Koopman,<br />
assim como o R e q u i e m e canções de Wolfgang<br />
Amadeus Mozart, com Tini Mathot, para a Erato.<br />
Ultimamente, Barbara Schlick tem-se dedicado<br />
principalmente à interpretação de L i e d e r e tem-<br />
-se apresentado em inúmeros recitais de canto com<br />
a pianista Elzbieta Kalvelage, tanto na Alemanha<br />
como no resto do mundo. O programa deste duo<br />
Barbara Schlick<br />
XIX Jorn adas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> An tiga [ 28 ]<br />
com os grandes ciclos de Schubert tem sido recebido<br />
com júbilo na Alemanha Ocidental. As<br />
canções de Fanny Hensel e Felix Mendelssohn-<br />
Bartholdy estão gravadas em CD pelas mesmas<br />
intérpretes.<br />
A par da sua grande actividade concertística,<br />
Barbara Schlick ensinou canto durante onze anos<br />
na Escola Superior de <strong>Música</strong> de Würzburg e, em<br />
colaboração com vários centros, orientou canto<br />
barroco em cursos de <strong>Música</strong> Antiga (Bremen,<br />
Brügge, Frankfurt am Main, Forum Artium<br />
Georgsmarienhütte, Internationale Bach-Akadem<br />
i e, Estugarda, Festival de <strong>Música</strong> Antiga de<br />
York).<br />
No primeiro semestre de 1997/98, Barbara<br />
Schlick foi convidada para professora na Escola<br />
Superior de <strong>Música</strong> de Colónia (Wuppertal).
Stephen Bull Capela Real<br />
Após ter terminado os seus estudos de violino<br />
e de direcção de orquestra, Stephen Bull especializou-se<br />
em violino barroco. Realizou concertos<br />
e gravações com grande parte dos grupos britânicos<br />
que tocam em instrumentos de época, incluindo<br />
The Hanover Band, Academy of Ancient<br />
Music, London Classical Players e a Orchestra of<br />
the Age of Enlightenment.<br />
A sua mais recente actividade à frente de<br />
orquestras de ópera barroca tem sido recebida com<br />
muito entusiasmo. Entre outras, trabalhou com a<br />
Midsummer Opera (Il Combattimento di Tancredi e<br />
C l o r i n d a) e The London Baroque Sinfonia. Em<br />
1997 tocou no Festival de Halle, numa produção<br />
de A t a l a n t a de Händel, com a Midsummer Opera,<br />
e no Festival de Melbourne, onde dirigiu um programa<br />
de música italiana com a London Baroque<br />
Sinfonia e tocou em duas óperas de Händel com a<br />
Opera Theatre Company.<br />
Com a orquestra de câmara Capela Real<br />
dirigiu vários programas, maioritariamente preenchidos<br />
por música portuguesa, com destaque<br />
para o Te Deum de António Teixeira. Além do seu<br />
trabalho em Portugal, foi director convidado da<br />
London Händel Orchestra em vários concertos no<br />
London Händel Festival de 1998.<br />
Actua ocasionalmente como solista (mais<br />
recentemente no Festival de Melbourne), e interessa-se<br />
particularmente pelo ensino, sendo presentemente<br />
professor de violino no Golsmiths’ College,<br />
na Universidade de Londres e na Academia de<br />
Santa Cecília em Lisboa. Recentemente organizou<br />
dois cursos de música barroca para a Associação<br />
Portuguesa de Educação Musical.<br />
Vivendo parte do tempo em Portugal, é seu<br />
desejo, ao trabalhar com a Capela Real, dar voz ao<br />
riquíssimo reportório português da época barroca.<br />
A formação da orquestra Capela Real deveuse<br />
à vontade e determinação de um grupo de<br />
músicos portugueses e estrangeiros residentes em<br />
Portugal, com experiência no campo da <strong>Música</strong><br />
Antiga, sobretudo barroca, tocada em instrumentos<br />
originais.<br />
Desde o primeiro concerto da Capela Real<br />
em 1996, na sua constituição actual, o agrupamento<br />
realizou concertos de música portuguesa<br />
anterior ao terramoto de 1755 no Mosteiro dos<br />
Jerónimos, programas de música de dança no<br />
Festival de <strong>Música</strong> Antiga de Óbidos e no Palácio<br />
de Queluz e interpretou o Te Deum de António<br />
Teixeira, com o qual inaugurou o novo Festival<br />
de <strong>Música</strong> de Mafra. A orquestra tocou também<br />
com a Opera Theatre Company de Dublin, numa<br />
produção de Amadigi de Händel e num programa<br />
de música de cinco países europeus no Festival de<br />
Leiria.<br />
No Festival dos Cem Dias da EXPO’ 98,<br />
participou nas produções do Gloria de Vivaldi e<br />
de madrigais de Monteverdi com o Mark Morris<br />
Dance Group de Nova Iorque e na ópera<br />
T a m e r l a n o de Händel com a Opera Theatre<br />
Company de Dublin.<br />
[ 29 ] Lisbo a, 6 a 1 4 Outub ro MCMXCVIII.
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 30 ]<br />
Q u i n t a<br />
F e i r a ,<br />
Dia 8
Sé Patriarcal de Lisboa, 2 1 . 3 0<br />
MÚSICAS ESPIRITUAIS REPRESENTADAS<br />
EM ESPANHA, CANARIAS E MÉXICO<br />
A N Ó N I M O S (ca. 1400 - 1600)<br />
O Mistério de Elx<br />
(Drama sacro que se representa na insigne Basílica de Santa Maria de Elx)<br />
1.º Acto: La Vespra<br />
Maria: Germanes mies<br />
Maria e Cortejo: Verge i Mare de Déu<br />
Maria: Ai, trista vida corporal<br />
Maria: Grand desig m’ha vengut al cor<br />
Anjo: Déu vos salve Verge imperial<br />
São João: Saluts, honor e salvament<br />
Maria: Ai, fill Joan, si a vós plau<br />
São João: Ai, trista vida corporal<br />
São Pedro: Verge humil flor d’honor<br />
Apóstolos: Oh, poder de l’Alt Imperi<br />
Apóstolos: Salve Regina princesa<br />
São Pedro: Oh, Déu valeu!<br />
Maria: Los meus cars fills<br />
Apóstolos: Oh, cos sant glorificat<br />
Araceli: Esposa e Mare de Déu<br />
BARTOLOMÉ RAMOS DE PAREJA (ca. 1440 - 1491)<br />
Mundus et Musica et totus concentus (Canon perpetuum)<br />
MATEU FLETXA (1 4 8 1? - 1553)<br />
Ensalada a 4: El Fuego (Praga 1 5 8 1)<br />
Corred, corred, pecadores<br />
Oh, como el mundo se abrasa<br />
Este mundo, donde andamos<br />
Mira Nero, de Tarpeya<br />
No os tardéis, traed agua ya<br />
Toca Joan, con tu gaytilla<br />
D i n d i r i n d í n<br />
Qui biberit ex hac aqua<br />
I n t e r v a l o<br />
[ 31 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
JOAN CABANILLES (1 6 4 4 - 1 7 1 2)<br />
F a n t a s i a<br />
LOPE DE VEGA (1 5 6 2 - 1 6 3 5) – FRANCISCO GUERRERO (1 4 2 8 - 1 5 9 9)<br />
Solilóquios amorosos de un alma a Dios:<br />
Si tus penas no pruebo, Jesus mío<br />
JUAN GUTIÉRREZ DE PADILLA (ca. 1 5 9 0 - 1 6 6 4)<br />
(Natal do ano de 1 6 5 7 em Puebla - México)<br />
Introdução: Ay que chacota<br />
Vilancico a 6: Lágrimas de un niño<br />
Negrilla a 6: T á b a l a g u m b a<br />
Calenda a 6: Ha de la tierra y del monte<br />
Motete: Christus natus est nobis<br />
SEBASTIÁN AGUILERA DE HEREDIA (ca. 1 5 6 5 - 1 6 2 7)<br />
E n s a l a d a<br />
DIEGO DURÓN (ca. 1 6 5 8 - 1 7 3 1)<br />
(Vilancicos de Natal em Palma de Gran Canaria)<br />
Vilancico a 6: Ah, de las gitanillas!<br />
Xácara a 8: Oygan, tengan, paren, miren<br />
LA CAPELLA REIAL DE CATALUNYA<br />
Montserrat Figueras S o p r a n o<br />
Pilar Jurado S o p r a n o<br />
Pilar Esteban M e i o - S o p r a n o<br />
Carlos Mena C o n t r a t e n o r<br />
Lambert Climent T e n o r<br />
Francesc Garrigosa T e n o r<br />
Daniele Carnovich B a i x o<br />
HESPERION XX<br />
Jordi Savall e Sergi Casademunt Violas da gamba<br />
Sophie Wattilon e Juan Manuel Quintana Violas da gamba<br />
Jean-Pierre Canihac C o r n e t a<br />
Beatrice Delpierre C h a r a m e l a<br />
Daniel Lassalle S a c a b u x a<br />
Josep Borràs D u l ç a i n a<br />
Xavier Díaz Vihuela e Guitarra<br />
Edin Karamazov Alaúde e Guitarra<br />
Michael Behringer Cravo e Órgão<br />
Andrew Lawrence-King Harpa dupla<br />
Pedro Estevan P e r c u s s ã o<br />
Jordi Savall D i r e c ç ã o<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 32 ]
MÚSICAS ESPIRITUAIS REPRESENTADAS<br />
EM ESPANHA, CANARIAS E MÉXICO<br />
A liturgia cristã utilizou, desde muito cedo,<br />
um elemento teatral como parte da sua própria<br />
eficácia enquanto veículo de comunicação com os<br />
fiéis, instrumento da respectiva formação doutrinal<br />
e verdadeiro ritual agregador de toda a comunidade.<br />
Em última análise, de resto, a própria celebração<br />
da Missa como repetição ritualizada da<br />
Última Ceia – com a recolha das ofertas, a sua<br />
consagração e a sua partilha sob a forma da<br />
Comunhão – contém ela mesma, na sua essência,<br />
esse elemento dramático, que não existiria se a<br />
liturgia se limitasse, por exemplo, a uma série de<br />
leituras de textos sagrados ou de orações genéricas,<br />
sem a presença permanente do drama concreto da<br />
Paixão de Cristo.<br />
Na verdade, numa sociedade como a<br />
medieval, em que não havia lugar para qualquer<br />
fronteira entre as vertentes sagrada e profana da<br />
existência humana e em que a cosmovisão religiosa<br />
era o único quadro concebível para a compreensão<br />
da realidade, a participação na liturgia desempenhava<br />
múltiplas funções. Ao acto de culto, propriamente<br />
dito, juntava-se a afirmação de uma identidade<br />
cultural colectiva (incluindo a reiteração simbólica,<br />
sob múltiplas formas, da hierarquia social<br />
vigente) e a própria dimensão mágica de um espectáculo<br />
dirigido a todos os sentidos, associando o<br />
texto e a música, a luz e a cor, a géstica e o movimento,<br />
e até mesmo, graças ao incenso e às velas<br />
perfumadas, o olfacto.<br />
Não é pois de admirar que em torno da liturgia<br />
formal tenham surgido desde a Alta Idade<br />
Média representações teatrais populares de carácter<br />
devocional, sob a forma de mistérios e autos<br />
sacramentais, executadas em geral no adro das<br />
igrejas e catedrais e nem sempre, por sinal, de<br />
absoluta ortodoxia teológica, para algum desconforto<br />
das autoridades eclesiásticas que por vezes se<br />
viam confrontadas com verdadeiras sobrevivências<br />
de tradições culturais pré-cristãs sob pretextos<br />
doutrinais mais ou menos ténues. E até a própria<br />
por Rui Vieira Nery<br />
liturgia romana oficial logo a partir do século IX,<br />
se começou a abrir a práticas de teatralização adicional<br />
de certas passagens das Escrituras que a isso<br />
se prestavam. Era o caso, por exemplo, da pergunta<br />
do Anjo às Santas Mulheres, Quem quaeritis in<br />
s e p u l c h r o (“a quem procurais no sepulcro”), em<br />
torno da qual se construía, agregando-o ao<br />
Intróito do Domingo de Páscoa, um pequeno diálogo<br />
cantado de natureza didáctica sobre o significado<br />
da Morte e Ressurreição de Cristo. E pouco<br />
depois surgia um diálogo semelhante, Quem quaeritis<br />
in paesebre (“a quem procurais no presépio”), em<br />
que a pergunta era dirigida aos pastores vindos a<br />
Belém para adorar o Deus menino, ao que gradualmente<br />
se foram seguindo outros excertos de<br />
acção dramática, cada vez de dimensões e complexidade<br />
maiores, sob a designação genérica de<br />
“dramas litúrgicos”.<br />
No século XV, o surgimento de movimentos<br />
pietistas como a Devotio Moderna conduziria em<br />
toda a Europa a um importante surto de produção<br />
artística de carácter religioso mas de natureza<br />
devocional privada, assente num tratamento emocional<br />
intenso dos mistérios da doutrina cristã<br />
através das diversas linguagens da Arte. Surgiram<br />
novas devoções, como a Adoração da Cruz, e deuse<br />
um aprofundamento do culto mariano, através<br />
quer de novas festas dedicadas à Virgem no calendário<br />
litúrgico quer do reforço de outras já existentes.<br />
Algumas das manifestações da religiosidade<br />
popular tradicional foram agora objecto de um<br />
tratamento erudito e de uma crescente aceitação,<br />
nessa sua nova forma mais elaborada, no seio da<br />
liturgia.<br />
Todas estas tendências se fizeram sentir<br />
igualmente na Península Ibérica, e nela foram<br />
ainda reforçadas pelo impacto da Contra-<br />
Reforma. Respondendo à aproximação entre a<br />
liturgia e os fiéis que os protestantes propunham<br />
através do uso do vernáculo em substituição do<br />
Latim, a Igreja tridentina optou por reforçar pre-<br />
[ 33 ] Lisbo a, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
cisamente o elemento espectacular das cerimónias<br />
litúrgicas, tornando-as cada vez mais fascinantes<br />
para o público presente nas grandes solenidades,<br />
não só pelo reforço da magnificência própria<br />
do ritual como também pela procura de novas<br />
componentes artísticas performativas para este,<br />
incluindo algumas de tradição popular. E como<br />
esta atitude contra-reformista se prolongou em<br />
Espanha e Portugal praticamente até à eclosão do<br />
Liberalismo, pelo menos, sem dar lugar nas práticas<br />
culturais ibéricas mais enraizadas a uma<br />
influência significativa do laicismo iluminista,<br />
muitas das tradições de teatro musical sacro se perpetuaram<br />
nestes dois países até ao pleno século<br />
XIX.<br />
Uma das tradições sacro-dramáticas que<br />
ainda hoje se fazem sentir na Península é a da representação<br />
do célebre Mistério de Elx, que se executa<br />
anualmente naquela cidade, perto de Alicante,<br />
nos dias 14 e 15 de Agosto. Trata-se de uma celebração<br />
dramática da festa da Assunção da Virgem,<br />
cuja origem parece remontar a meados do século<br />
XIII, embora nem toda a <strong>Música</strong> que hoje nela se<br />
canta date do mesmo período. A representação<br />
está descrita pormenorizadamente nos livros de<br />
C o n s u e t a da catedral de Elx de 1625 e 1709, e a<br />
cópia integral mais antiga da <strong>Música</strong> de que hoje<br />
temos conhecimento está datada de 1639,<br />
admitindo-se que as secções polifónicas da obra<br />
actualmente interpretadas datem desse mesmo<br />
período de inícios do século XVII, até pelo seu<br />
forte carácter homorrítmico e quase “pré-harmónico”,<br />
por assim dizer. Estas passagens em<br />
polifonia correspondem, contudo, apenas às partes<br />
do coro, enquanto os personagens individuais,<br />
como a Virgem e os Santos, cantam melodias de<br />
cantochão. Destas, algumas foram já identificadas<br />
como versões com texto novo sobre melodias gregorianas<br />
litúrgicas (caso de diversas versões do<br />
hino Vexilla regis prodeunt, por exemplo) mas outras<br />
parecem remontar, pela sua ornamentação melismática<br />
e pelo seu desenho interválico característicos,<br />
ao velho repertório de cantochão moçárabe,<br />
que se cantava em toda a Península antes da introdução<br />
oficial do rito romano, já no século XI.<br />
A Espanha da segunda metade do século XV,<br />
dividida ainda nos Reinos de Castela e de Aragão,<br />
por sinal com fortes divisões culturais e linguísticas<br />
entre si, será toda ela, no entanto, um parceiro<br />
muito activo da evolução musical erudita da<br />
Europa ocidental, em especial no que respeita à<br />
<strong>Música</strong> sacra polifónica, assente na base institu-<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 34 ]<br />
cional muito sólida das Capelas ao serviço das<br />
Casas Reais de ambas as monarquias e da rede de<br />
grandes catedrais castelhanas e aragonesas,<br />
dotadas, de um modo geral, de vastos rendimentos<br />
capazes de suportarem financeiramente uma liturgia<br />
musical de grande sofisticação. A espinha dorsal<br />
teórica dessa prática polifónica litúrgica será<br />
uma importante produção tratadística de autores<br />
espanhóis de grande peso na evolução da Teoria<br />
Musical europeia da época, com destaque para<br />
Bartolomé Ramos de Pareja (ca. 1440-1491), um<br />
dos autores especulativos mais relevantes de todo<br />
o século XV europeu e cuja <strong>Música</strong> prática<br />
reflecte essa mesma preocupação com a procura do<br />
mais extremo rigor na ciência do Contraponto.<br />
Mesmo depois da união formal das coroas<br />
castelhana e aragonesa, através do casamento dos<br />
herdeiros de ambos os tronos, Fernando e Isabel,<br />
os “Reis Católicos”, a personalidade própria das<br />
duas matrizes culturais permanecerá viva na obras<br />
dos seus representantes musicais mais importantes,<br />
tanto mais quanto se vivia precisamente o período<br />
a que acima nos referimos de incorporação crescente<br />
na liturgia musical oficial de tradições artísticas<br />
locais. Nestas tradições, como seria de esperar,<br />
e apesar dos traços comuns ibéricos que são<br />
válidos tanto para estas duas grandes escolas<br />
espanholas como até para a portuguesa, estão bem<br />
patentes, por vezes, os traços autonómicos. É o<br />
caso da obra de Mateu Fletxa, o Velho(1481?-<br />
1553), compositor catalão nascido em Prades e<br />
formado na catedral de Barcelona, que depois viria<br />
a desempenhar funções de Mestre de Capela sucessivamente<br />
na Sé de Lérida, ao serviço do Duque<br />
do Infantado, em Sevilha, e por fim na corte do<br />
Duque de Calabria, em Valência.<br />
Ferdinando, Duque de Calabria (1488-<br />
1550), príncipe do ramo da Casa Real aragonesa<br />
que governava o Reino de Nápoles, casaria em<br />
1526 com a viúva do Rei Católico Fernando de<br />
Aragão, Germaine de Foix, sendo ele e sua mulher<br />
nomeados pelo novo soberano, Carlos V, Vice-<br />
Reis de Valência. Nesta cidade, durante cerca de<br />
três décadas, se estabeleceria assim uma Corte de<br />
enorme brilho cultural, onde as tradições artísticas<br />
e literárias da antiga monarquia catalano-aragonesa<br />
encontrariam um espaço de desenvolvimento<br />
ideal, mesmo no seio da nova Espanha. Entre<br />
os vários músicos de enorme prestígio que<br />
Ferdinando e Germaine chamaram a si contar-se-<br />
-ia, por conseguinte, Mateu Fletxa. E este, no seio<br />
da tendência do seu tempo para a inserção no
culto de novos elementos musicais e músicodramáticos,<br />
ficaria ligado um novo género sacro<br />
cujo primeiro cultor parece ter sido o nosso Gil<br />
Vicente: a “Ensalada”.<br />
Tratava-se, antes de mais, de introduzir nas<br />
cerimónias litúrgicas de certas festas de carácter<br />
mais alegre do calendário sacro algumas obras<br />
vocais de sabor semi-profano e de texto em língua<br />
vernácula, versando um tema de natureza espiritual<br />
mas convertendo muitas vezes esse tema num<br />
mero pretexto para a admissão, no seio das cerimónias<br />
da Igreja, de temáticas paralelas e de processos<br />
de escrita poético-musical característicos do<br />
repertório secular. A designação genérica destas<br />
obras era a de “Vilancicos” (em português também<br />
“Vilancetes”), ou simplesmente de “Chansonetas”,<br />
mas no seio delas havia um sub-género, a<br />
“Ensalada”, caracterizado por uma estrutura narrativa<br />
mais longa, agrupando numa sequência<br />
dramática diversas peças mais pequenas e com o<br />
traço particular de em geral incluir textos em várias<br />
línguas, do Castelhano ao Catalão, do Português<br />
ao Latim, do Galego aos primeiros crioulos negros<br />
de Português ou Castelhano.<br />
Mateu Fletxa parece ter sido um dos<br />
primeiros autores eruditos a compor neste novo<br />
género músico-litúrgico, sendo as suas obras altamente<br />
apreciadas tanto pela Corte valenciana<br />
como mais tarde pelo círculo das Infantas Maria e<br />
Juana de Espanha, filhas de Carlos V, de cuja<br />
Capela Fletxa passaria a ser Mestre a partir de<br />
1543. Dispondo ambas as Cortes de importantes<br />
ligações internacionais, o compositor veria, logo<br />
em 1544, uma das suas ensaladas, La Justa, s e r<br />
incluída pelo célebre impressor musical de Lyon,<br />
Jacques Moderne, numa das suas antologias<br />
polifónicas. Contudo, uma colecção mais substancial<br />
dessas suas ensaladas só viria a ser editada<br />
muito depois da sua morte, sob os auspícios do<br />
seu sobrinho, Mateu Fletxa, o Jovem, já em 1581,<br />
o que diz bem do prestígio de que ainda gozava a<br />
memória do velho autor catalão mesmo nos finais<br />
do século XVI.<br />
É desta colecção de 1581 que é extraída a<br />
ensalada El fuego, obra moralizante cujo tema é simples:<br />
a Espanha está em fogo, devido aos muitos<br />
pecados dos seus naturais, mas a Virgem ofereceu<br />
aos crentes a água necessária para apagar as<br />
chamas: seu filho Jesus Cristo. Segundo esta lógica<br />
temática sucedem-se na obra secções em formas<br />
diferentes, alguma com ritmo de dança popular,<br />
outras de uma polifonia mais cuidada, cujos textos<br />
são bem indicativos da mensagem moralizante que<br />
se pretende passar: o fogo do pecado é semelhante<br />
ao do grande incêndio ateado por Nero a Roma,<br />
no ano de 64 (“Mira Nero de Tarpeya”), mas<br />
Nossa Senhora dá-nos a água purificadora (“De la<br />
Virgen sin mancilla / ha manado el agua pura”) e<br />
quem a beber não sofrerá sede na vida eterna<br />
(“Qui biberit ex hoc aqua / Non sitiet in aeternum”).<br />
Compreende-se bem o impacto extraordinário<br />
que uma peça como esta, com todos os<br />
seus “efeitos especiais” músico-dramáticos, deverá<br />
ter tido junto dos fiéis presentes no culto, e como<br />
esta combinação de <strong>Música</strong> de inspiração popular<br />
e de tratamento polifónico erudito, associada<br />
provavelmente a efeitos cénicos sugestivos, deverá<br />
ter agradado a um auditório habituado à extrema<br />
solenidade da liturgia tradicional mais austera.<br />
Este território misto de criação musical, juntando<br />
técnicas e géneros tradicionalmente profanos<br />
a um contexto temático e cerimonial religioso,<br />
atraiu cada vez mais polifonistas sacros ao<br />
longo da segunda metade do século XVI. O<br />
próprio Francisco Guerrero (1528-1599), o<br />
príncipe da polifonia sacra espanhola do<br />
Maneirismo, aclamado internacionalmente pelas<br />
suas obras contrapontísticas sobre textos litúrgicos<br />
latinos, dedicaria a sua penúltima publicação em<br />
vida a uma colecção de Canciones y Villanescas<br />
Espirituales (Veneza, 1589), apresentando nela uma<br />
série de peças de sabor quase madrigalesco mas<br />
sobre poemas de temática religiosa. O que é<br />
curiosíssimo de verificar, contudo, é que Guerrero,<br />
ao fazê-lo, parece ter tido de tal modo noção do<br />
carácter híbrido do género que se permitiu inclusive<br />
reutilizar neste novo contexto para-litúrgico a<br />
<strong>Música</strong> de algumas das suas obras profanas anteriores.<br />
Foi assim que o poema galante de uma<br />
canção a 3 vozes que publicara em 1582, Tu dorado<br />
c a b e l l o , deu lugar a um belíssimo texto religioso<br />
extraído das Rimas Sacras de Lope de Vega, Si tus<br />
penas no pruebo, Jesús mío, limitando-se o autor a retocar<br />
(de resto com mão de Mestre) algumas passagens<br />
pontuais da obras musical anterior para a<br />
adaptar às novas nuances expressivas do seu texto<br />
sacro.<br />
Os observadores mais conservadores não cessaram<br />
de se insurgir contra o uso de vilancicos e<br />
ensaladas na liturgia das igrejas ibéricas, protestando<br />
contra uma prática em que viam um verdadeiro<br />
sacrilégio, responsável pela transformação<br />
da Igreja num Teatro, a que o público acorria para<br />
ver um espectáculo de cariz cada vez mais profano,<br />
[ 35 ] Lisbo a, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
em vez de comparecer para zelar pela sua salvação<br />
eterna. Mas as autoridades eclesiásticas portuguesas<br />
e espanholas eram acima de tudo muito pragmáticas,<br />
e o sucesso estrondoso desta liturgia festiva<br />
que enchia as igrejas, garantindo a presença regular<br />
dos fiéis na Missa e nas grandes celebrações do<br />
Ofício, parecia-lhes a melhor das defesas contra a<br />
penetração de quaisquer vislumbres de missionação<br />
filo-protestante na Península que porventura<br />
conseguisse passar pelas malhas da repressão<br />
inquisitorial.<br />
O vilancico religioso tornou-se, por conseguinte,<br />
numa componente quase indispensável<br />
da liturgia nas festas jubilatórias do ano, em especial<br />
no Natal, no dia de Reis, nas grandes festas<br />
marianas, como a Conceição ou a Assunção, e nos<br />
dias dos Santos de maior devoção, como São João<br />
Baptista, São João Evangelista ou São Pedro. Na<br />
quadra natalícia, muito em especial, era frequente<br />
que, em cada catedral, o Mestre de Capela fosse<br />
dispensado de quase todas as suas demais funções<br />
durante algum tempo para escrever os novos vilancicos<br />
que seriam cantados nas Matinas do Natal, e<br />
a preparação da sua execução era feita com enorme<br />
cuidado e despesa. Os vilancicos eram inseridos<br />
nas Matinas em séries de oito ou nove, alternando<br />
com os Responsórios latinos previstos na liturgia<br />
oficial, ou podiam igualmente surgir na própria<br />
Missa, durante a Elevação da Hóstia. Muitas<br />
vezes, como sucedia com as ensaladas de Fletxa, os<br />
sucessivos vilancicos encadeavam-se como elos de<br />
uma única narrativa dramática, e – embora este<br />
aspecto não tenha sido ainda devidamente estudado<br />
em profundidade – tudo parece sugerir que<br />
haveria recurso a algum esboço de encenação e<br />
mesmo a alguns adereços e figurinos especiais para<br />
a representação deste repertório, em que os cantores<br />
do coro desempenhavam agora os mais diversos<br />
papéis em pequenos enredos dramáticos geralmente<br />
relacionados com a ida a Belém para a<br />
Adoração ao Deus menino.<br />
Esta prática prolongou-se por todo o século<br />
XVII, abrangendo tanto o território peninsular<br />
como o espaço colonial português e espanhol, da<br />
Índia à América Latina. Juan Gutiérrez de Padilla<br />
(ca. 1590-1664), Mestre de Capela da opulenta<br />
catedral de Puebla, no México, a partir de 1629,<br />
ficaria precisamente como um relevante cultor do<br />
género. Para tal contou a partir de 1640 com o<br />
apoio decisivo do Bispo Palafox y Mendoza,<br />
melómano entusiástico que não se poupava a<br />
despesas para que as celebrações litúrgicas na sua<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 36 ]<br />
catedral se fizessem com um máximo de esplendor.<br />
Em 1645, por exemplo, Gutiérrez de Padilla<br />
dispunha para executar as suas obras de um conjunto<br />
de 14 meninos do coro e de 28 cantores<br />
adultos, muitos dos quais também instrumentistas,<br />
para lá de um harpista e de um organista notáveis.<br />
Podia assim permitir-se uma escrita complexa para<br />
dois ou mais coros combinados, por vezes mesmo<br />
com partes instrumentais desenvolvidas, jogando<br />
com todos os efeitos de contraste concertante<br />
entre solistas e tutti e com a variedade das formas<br />
poético-musicais de raiz popular tradicional à sua<br />
disposição. É assim que encontramos entre as suas<br />
obras para as Matinas de Natal de 1657, hoje executadas,<br />
formas curiosas como uma “Negrilla”,<br />
vilancico em crioulo de castelhano que descreve<br />
cenas pitorescas de um grupo de negros que quer<br />
ir também adorar o Menino no presépio de Belém.<br />
Já no final do século XVII, na catedral de Las<br />
Palmas, importantíssimo entreposto na rota para<br />
as colónias espanholas da América do Sul, encontramos<br />
o último compositor do presente programa,<br />
Diego Durón (ca. 1658-1731). Irmão do<br />
grande compositor Sebastián Durón, que chegaria,<br />
nesse mesmo período a organista – e depois<br />
Mestre – da Capela Real de Madrid, Diego radicou-se<br />
nas Canárias como responsável da Capela<br />
da Sé de Las Palmas, dedicando-se aí a uma intensa<br />
produção de vilancicos: o arquivo da sua catedral<br />
preserva ainda hoje nada mais nada menos do<br />
que 422 da sua autoria. São obras em que os modelos<br />
formais herdados dos finais do século anterior,<br />
como a “Xácara”, por exemplo (uma dança<br />
popular espanhola grandemente cultivada pelos<br />
compositores instrumentais seiscentistas na<br />
Península), se combinam agora cada vez mais com<br />
a influência formal da cantata barroca italiana,<br />
com a sua típica sequência de recitativos e árias.<br />
Mantêm, contudo, bem viva a sua função de animação<br />
músico-teatral de um quadro litúrgico que<br />
– justamente pela continuidade da sua presença no<br />
contexto ibérico através dos séculos – constituiu<br />
uma das mais originais determinantes específicas<br />
da escrita da <strong>Música</strong> religiosa ibérica.
O Mistério de Elx<br />
Primeiro Acto – La Vespra<br />
Maria<br />
Germanes mies, jo voldria<br />
fer certa petició aquest dia:<br />
prec-vos no em vullau deixar<br />
puix tant me mostrau amar.<br />
Maria y Cortejo<br />
Verge i Mare de Déu,<br />
on Vós voldreu anar<br />
vos irem a acompanyar<br />
Maria<br />
Ai, trista vida corporal!<br />
Oh, món cruel, tan desigual!<br />
Trista de mi! Jo qué faré?<br />
Lo meu car Fill, quan lo veuré?<br />
Maria<br />
Gran desig m’ha vengut al cor<br />
del meu car Fill ple d’amor,<br />
tan gran que no ho podria dir<br />
on, per remei, desig morir.<br />
Maria<br />
Irmãs minhas, eu queria<br />
Fazer uma certa petição neste dia:<br />
Peço-vos que não me queirais deixar<br />
Pois tanto me mostrais amar.<br />
(Os membros do cortejo mariano manifestam a sua absoluta<br />
fidelidade à Virgem:)<br />
Maria e Cortejo<br />
Virgem e Mãe de Deus,<br />
Para onde vos quiseres dirigir<br />
Nós vos acompanharemos<br />
(Maria Mayor – assim se chama em Elx ao menino que<br />
interpreta a Virgem – avança uns passos e expressa a dor<br />
que sente na ausência de Jesus:)<br />
Maria<br />
Ai, triste vida corporal!<br />
Oh, mundo cruel tão desigual!<br />
Triste de mim! Que farei?<br />
Meu caro Filho, quando o verei?<br />
(O cortejo mariano começa a sua lenta subida até ao<br />
cadafal, enquanto que recorda três momentos da Paixão e<br />
Morte de Jesus Cristo: a sua oração no Horto das Oliveiras,<br />
a sua crucificação no Monte Calvário e o seu enterro no<br />
Santo Sepulcro. Entretanto, a Virgem ajoelha-se num leito<br />
improvisado no cadafal e manifesta as sua ânsia de reunião<br />
com o seu Filho:)<br />
Maria<br />
Grande desejo encheu meu coração<br />
De meu querido Filho cheio de amor,<br />
Tão grande que não poderia exprimi-lo<br />
E, como remédio, desejo morrer.<br />
(Acabada esta petição, abrem-se as portas do ciclo que se representa<br />
por intermédio de uma grande lona, pintada com<br />
nuvens e anjos e que cobre totalmente o anel principal da<br />
cúpula do templo. Do céu desce um objecto esférico, em cujo<br />
interior – uma vez abertas as suas oito asas – se descobre<br />
um menino que aparenta ser um anjo. Este saúda a Virgem<br />
e, depois de anunciar a sua morte próxima, entrega-lhe uma<br />
palma dourada como presente celestial:)<br />
[ 37 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCV III.
Angel<br />
Déu vos salve Verge imperial,<br />
Mare del Rei celestial…<br />
San Juan<br />
Saluts, honor e salvament<br />
sia a Vós, Mare excel.lent<br />
e lo Senyor, qui és del tro,<br />
vos done consolació<br />
Maria<br />
Ai, fill Joan, si a vós plau,<br />
aquesta palma vós prengau<br />
e la’m façau davant portar<br />
quan me porten a soterrar.<br />
San Juan<br />
Ai , trista vida corporal!<br />
Oh, món cruel, tan desigual!<br />
Oh, trist de mí! Jo on iré?<br />
Oh, llas, mesquí! Jo qué faré?<br />
Oh, Verge, Reina imperial!<br />
Mare del Rei celestial!<br />
Com nos deixau ah gran dolor,<br />
sens ningun cap ne regidor?<br />
San Juan<br />
Oh, Apòstols e germans meus!<br />
Veniu, plorem ab tristes veus,<br />
car hui perdem tot nostre hé.<br />
Lo clar govern de nostra fe.<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 38 ]<br />
Anjo<br />
Deus vos salve Virgem imperial,<br />
Mãe do Rei celestial…<br />
(Maria Mayor recebe a simbólica palma e expressa ao anjo o<br />
seu desejo de ver reunidos, em seu redor, os Apóstolos.<br />
Quando o mensageiro celeste sobe à cúpula da igreja começam<br />
a chegar os discípulos de Cristo, conduzidos por uma misteriosa<br />
força que os conduz a Jerusalém. O primeiro de entre<br />
eles é São João, que saúda a sua Mãe:)<br />
São João<br />
Saudações, virtude e salvação<br />
Sejam convosco, magnífica Mãe<br />
E o senhor que está no trono,<br />
Vos conceda consolação<br />
(A Virgem entrega ao amado discípulo a palma dourada e<br />
pede-lhe que a leve no seu funeral:)<br />
Maria<br />
Ai, filho João, se vos apraz,<br />
Pegai nesta palma<br />
E fazei com que a levem<br />
Quando me forem sepultar.<br />
(O Apóstolo manifesta a sua tristeza, perante a morte<br />
próxima de Maria:)<br />
São João<br />
Ai, triste vida corporal<br />
Oh, mundo cruel tão desigual!<br />
Oh, triste de mim, para onde irei?<br />
Oh, cansado, infeliz! O que farei?<br />
Oh, Virgem, Rainha imperial!<br />
Mãe do Rei celestial!<br />
Como nos deixais com grande dor,<br />
Sem nenhum chefe nem regedor?<br />
(Seguidamente, São João dirige-se à porta do cadafal e<br />
convoca os seus companheiros no apostolado:)<br />
São João<br />
Oh, Apóstolos e irmãos meus!<br />
Vinde, choremos com tristes vozes,<br />
Pois hoje perdemos todo o nosso bem.<br />
O lúcido governo da nossa fé.<br />
(O Apóstolo preferido volta a dirigir-se à Virgem,<br />
expressando-lhe a sua tristeza e desamparo:)
San Juan<br />
Sens Vós, Senyora, qué farem?<br />
E ab qui ens aconsolarem?<br />
D’ulls e de cor devem plorar<br />
mentres viurem e sospirar.<br />
San Pedro<br />
Verge humil, flor d’honor,<br />
Mare del nostre Redemptor,<br />
saluts, honor e salvament<br />
vos done Déu omnipotent.<br />
Apostoles<br />
Oh, poder de l’Alt Imperi.<br />
Senyor de tots los creats!<br />
Cert és aquest gran misteri<br />
ser ací tots ajustats.<br />
De les parts d’ací estranyes<br />
som venguts molt prestament<br />
passant viles i muntanyes<br />
en menys temps d’un moment.<br />
Apostoles<br />
Salve Regina, princesa,<br />
Mater Regis angelorum,<br />
advocata pecatorum,<br />
consolatrix aflictorum.<br />
L’omnipotent Déu, Fill vostre,<br />
per nostra consolació,<br />
fa la tal congregació,<br />
en lo sant conspecte vostre.<br />
Vós, molt pura e defesa,<br />
reatus patrum nostrorum,<br />
advocata pecatorum,<br />
consolatrix aflicorum<br />
São João<br />
Sem vós, Senhora, que faremos?<br />
E com quem nos consolaremos?<br />
Com olhos e coração devemos chorar<br />
enquanto formos vivos, e suspirar.<br />
(O discípulo seguinte a entrar no cadafal é são Pedro –<br />
sempre representado por um sacerdote – que depois de abraçar<br />
São João, saúda a Virgem:)<br />
São Pedro<br />
Virgem humilde, flor de virtude,<br />
Mãe do nosso Redentor,<br />
Saudações, virtude e salvação<br />
Vos conceda Deus omnipotente.<br />
(Seguidamente entram em cena seis discípulos de Cristo que<br />
beijam as mãos de Maria e abraçam Pedro e João. Outros<br />
três Apóstolos – um dos quais é Santiago – chegam por três<br />
caminhos diferentes. No seu canto manifestam a sua surpresa<br />
por se terem deslocado desde os seus respectivos locais de pregação<br />
até à casa da Mãe de Deus:)<br />
Apóstolos<br />
Oh, poder do Alto Império,<br />
Senhor de todas as criaturas!<br />
Certo é este grande mistério<br />
De sermos aqui todos reunidos.<br />
Dos lugares mais distantes<br />
Viemos apressadamente<br />
Passando cidades e montes<br />
Em menos tempo que um momento.<br />
(Reunidos todos os Apóstolos em torno do leito da Virgem –<br />
com a ressalva de São Tomás – saúdam-na e louvam a sua<br />
figura como intercessora da humanidade aflita:)<br />
Apóstolos<br />
Salve Rainha, princesa,<br />
Mãe do Rei dos anjos,<br />
Advogada dos pecadores,<br />
Consolo dos aflitos.<br />
O Deus omnipotente, vosso Filho,<br />
Para nosso consolo,<br />
Fez esta congregação,<br />
Em vossa santa presença.<br />
Vós, muito pura e defendida,<br />
Da culpa dos nosso pais,<br />
Advogada dos pecadores,<br />
Consolo dos aflitos.<br />
[ 39 ] Li sboa, 6 a 1 4 Outub ro MCMXCVIII.
San Pedro<br />
Oh, Déu, valeu! E qué és açò<br />
d’aquesta congregació?<br />
Algun misteri amagat<br />
vol Déu nos sia revelat.<br />
Maria<br />
Los meus cars fills, puix sou venguts<br />
i lo Senyor vos haja duts,<br />
mon cos vos sia acomanat<br />
lo soterreu en Josafat.<br />
Apostoles<br />
Oh, cos sant glorificat<br />
de la Verge santa i pura,<br />
bui serás tu sepultat<br />
i reinaràs en l’altura.<br />
Araceli<br />
Esposa e Mare de Déu<br />
a nós, àngels, seguireu.<br />
Seureu en cadira real<br />
en lo regne celestial<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 40 ]<br />
(São Pedro, em nome de todos os Apóstolos, expressa a sua<br />
estranheza ante a misteriosa reunião dos discípulos:)<br />
São Pedro<br />
Oh, Deus valei-nos! E para que serve<br />
esta congregação?<br />
Algum mistério oculto<br />
Quer Deus que nos seja revelado.<br />
(Maria, sentindo eminente a sua morte, recomenda aos<br />
Apóstolos que enterrem o seu corpo no Vale de Josafat:)<br />
Maria<br />
Meus caros filhos, pois que vieram<br />
e o Senhor os trouxe,<br />
o meu corpo vos seja entregue<br />
e em Josafat sepultado.<br />
(A Mãe de Deus morre e nesse instante o jovem que a representa<br />
é substituído, por intermédio de uma manobra oculta<br />
por baixo do cadafal, pela imagem da Virgem da Ascensão,<br />
padroeira de Elx, em postura de defunta. Perante ela, os<br />
Apóstolos ajoelhados e com velas acesas entoam um cântico<br />
fúnebre em que expressam a esperança da sua futura ressurreição:)<br />
Apóstolos<br />
Oh, corpo santo glorificado<br />
Da Virgem santa e pura,<br />
Hoje serás sepultado<br />
E reinarás nas alturas.<br />
(Concluído o canto emocionado dos discípulos de Cristo,<br />
abrem-se de novo as portas do céu e inicia-se a descida do<br />
artefacto aéreo, denominado Araceli. Este dispositivo cénico<br />
está ocupado por três homens e duas crianças que representam<br />
anjos e que acompanham o seu canto – a quatro vozes, uma<br />
vez que o anjo central permanece mudo – com uma guitarra<br />
e uma harpa. O Araceli chega ao cadafal com a finalidade<br />
de que o mencionado anjo – também representado por um<br />
sacerdote – recolha a alma da Virgem, simbolizada por uma<br />
pequena imagem mariana:)<br />
Araceli<br />
Esposa e Mãe de Deus<br />
A nós, anjos, seguireis.<br />
Sentareis em cadeira Real<br />
No reino celestial.<br />
(Com a entrada da alma da Mãe de Deus no céu da<br />
Basílica, conclui-se o primeiro acto do Mistério.)
MATEU FLETXA<br />
El Fuego<br />
¡Corred, corred, peccadores!<br />
No os tardéis en traer luego<br />
agua al fuego, agua al fuego!<br />
¡Fuego, fuego, fuego… !<br />
Este fuego que se enciende<br />
es el maldito peccado,<br />
que al que no halla occupado<br />
siempre para sí lo prende.<br />
Qualquier que de Dios pretende<br />
salvación procure luego<br />
agua al fuego, agua al fuego.<br />
¡Fuego, fuego, fuego… !<br />
Venid presto, peccadores,<br />
a matar aqueste fuego;<br />
haced penitencia luego<br />
de todos vuestros errores.<br />
Reclamen essas campanas<br />
dentro en vuestros coraçones.<br />
Dandán, dandán, dandán,…<br />
Poné en Dios las aficiones,<br />
Todas las gentes humanas.<br />
Dandán, dandán, dandán,…<br />
¡Llamad essos aguadores,<br />
Luego, luego, sin tardar!<br />
Y ayúdennos a matar<br />
este fuego.<br />
No os tardéis en traer luego<br />
dentro de vuestra conciencia<br />
mil cargos de penitencia<br />
de buen'agua,<br />
y ansí mataréis la fragua<br />
de vuestros malos deseos,<br />
y los enemigos feos<br />
huyrán.<br />
¡Oh cómo el mundo se abrassa<br />
no teniendo a Dios temor,<br />
teniendo siempre su amor<br />
con lo que el demonio amassa!<br />
Por cualquiera que traspassa<br />
los mandamientos de Dios,<br />
cantaremos entre nos,<br />
dándole siempre baldones:<br />
“Cadent super eos carbones,<br />
in ignem dejicies eos:<br />
in miseriis non subsistent”,<br />
Este mundo donde andamos<br />
es una herviente fragua,<br />
donde no á lugar el agua,<br />
si por ventura tardamos.<br />
¡Oh cómo nos abrassamos<br />
en el mundo y su hervor!<br />
Por qualquiera peccador<br />
que lo que da Dios no toma,<br />
se dirá lo que de Roma<br />
quando ardía sin favor:<br />
“Mira Nero, de Trapeya,<br />
a Roma cómo se ardía;<br />
gritos dan niños y viejos<br />
y él de nada se dolía”.<br />
¡No os tardéis!<br />
¡Traed, traed agua ya!<br />
¡Y vosotros atajad!<br />
¡Corred! ¡Presto socorred!<br />
¡Sed prestos y muy lijeros<br />
en dar golpes a los pechos!<br />
¡Atajad aquessos techos!<br />
Dandán, dandán, dandán,…<br />
¡Corred, corred!<br />
¡Cortad presto essos maderos!<br />
Tras, tras, tras, tras, traas,…<br />
Dandán, dandán, dandán,…<br />
¡Tañed, tañed, más apriessa,<br />
que vamos sin redención!<br />
¡Tañed presto, que ya cessa<br />
con agua nuestra passión.<br />
Y ansí, con justa razón<br />
dirán la gentes humanas:<br />
“¿Dónde las hay, dónde las hay<br />
las tales aguas soberanas?”<br />
Toca, Joan, con tu gaitilla,<br />
Pues ha cessado el pesar.<br />
Yo te diré un cantar<br />
muy polido a maravilla.<br />
Veslo aquí,<br />
ea pues, todos decir:<br />
Zon, zon, zon, zon, zon,…<br />
Dindirindín, dindin.<br />
“De la Virgen sin mancilla<br />
ha manado el agua pura”.<br />
Y es que á hecho crïatura<br />
al Hijo de Dios eterno,<br />
para que diesse govierno<br />
al mundo que se perdió;<br />
y una Virgen lo parió,<br />
según havemos sabido,<br />
por reparar lo perdido<br />
de nuestros padres primeros:<br />
¡Alegría, cavalleros!<br />
que nos vino en este día<br />
que parió sancta María<br />
al pastor de los corderos.<br />
Zon, zon, zon, zon, zon,…<br />
Dindiridín, dindiridin…<br />
Y con este nascimiento,<br />
que es de agua dulce y buena,<br />
se repara nuestra pena<br />
para darnos a entender<br />
que tenemos de beber<br />
desta agua los sedientos,<br />
guardando los mandamientos<br />
a que nos obliga Dios,<br />
porque se diga por nos:<br />
“Qui biberit ex hac aqua,<br />
non sitiet in aeternum”.<br />
[ 41 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
L O P E D E VEGA – FRANCISCOGUERRERO<br />
Soliloquios amorosos<br />
de un alma a dios<br />
Si tus penas non pruebo, Jesus mío,<br />
vivo triste y penado:<br />
damelas por el alma que te he dado,<br />
que si este bien me hicieres,<br />
ay Dios, como veré lo que me quieres!<br />
Quiéreme bien, y en darmelas lo<br />
muestra,<br />
que es ley entre amadores<br />
partir como los gustos los dolores,<br />
que non es partir al justo<br />
tener tu los dolores y yo el gusto.<br />
Mas qué te pido yo que tu me quieras,<br />
si tu, mi bien, me quieres,<br />
de suerte que por darme vida mueres?<br />
Yo soy quien no te quiero,<br />
pues viéndote a la muerte non me<br />
muero.<br />
No quiero vida yo sin ti, mi vida,<br />
si tu mi vida eres,<br />
en ti mismo estaras, cuando quisires,<br />
que yo siempre querria<br />
estar en ti, pues eres vida mia.<br />
Ay, si estuviese un hora yo contigo,<br />
y que esta hora fuese tan grande<br />
que mayor que el tiempo fuese,<br />
y que tanto durase<br />
que tus eternos anos igualase!<br />
Bien sé que soy de pobres labradores<br />
y grosera aldeana<br />
y que tu majestad es soberana:<br />
mas tu, que te apocaste,<br />
subiste mi valor cuando bajaste.<br />
XIX Jorn adas Gulb en kian de <strong>Música</strong> An tiga [ 42 ]<br />
En la cuenta no vale nada el cero:<br />
mas tu, numero santo,<br />
puesto al principio, vengo a subir tanto,<br />
que vienes a ensalzarme,<br />
porque te humanas tu para endiosarme.<br />
Dame, señor, tu Cruz, dame tus<br />
clavos,<br />
para que no me huya:<br />
traspasen las espinas de la tuya<br />
mi cabeza dichosa,<br />
corona de tus flores a tu Esposa.<br />
Descansa un poco, dulce vida mia,<br />
de tu Cruz en mis brazos,<br />
tercero sea tu Cruz destos abrazos,<br />
y asi pareceremos<br />
Dios hombre, el hombre Dios, de amor<br />
extremos.
JUAN GUTÉRREZ DE PADILLA<br />
Ay que chacota<br />
Vilancico de Natal<br />
Ay que chacota que haçe in noche<br />
porque el sol de acarrea con ella;<br />
cada tachuela que pone en su coche,<br />
ay que chacota, parece una estrella.<br />
Coplas<br />
I. La noche, que todo el año<br />
es enemiga del dia<br />
a prevenir nuevas paçes<br />
con todo el sol viene a vistas.<br />
II. De Belén, en la campaña,<br />
donde la aurora Maria,<br />
la luz y la aurora a un tiempo<br />
quieren quedar muy amigas.<br />
III. De todo el llanto del cielo<br />
la nochebuena se atina<br />
Luceros son quanto arrastra<br />
y planetas quanto pisa.<br />
Lágrimas de un niño<br />
Lágrimas de un niño<br />
ternesas de un dios,<br />
si por mí las llora<br />
que dulçes que son.<br />
El rigor las causa<br />
si las busca amor<br />
que lo ingrato siempre<br />
duplica el dolor.<br />
Romance<br />
Mas, si el daño que padeçe<br />
lo ostenta por mí ocasión,<br />
llore yo, pues a tantos exçesos<br />
obliga la fuerza de mí sinrazón.<br />
Coplas<br />
I. Sentir por mí la pena<br />
sufrir por mí el dolor,<br />
hermoso niño mio,<br />
muchas finesas son.<br />
II. Por mí tendresa de amante<br />
el crédito mayor,<br />
que son buenas finesas<br />
de mi satisfaçion.<br />
III. Antes que os mereciera,<br />
mi bien, tanto favor,<br />
erays un dios terrible,<br />
mas ya otra cosa soys.<br />
IV. Decime, niño hermoso,<br />
Qué fuerça os obligó<br />
a que pagueis la fruta,<br />
pues, no comisteis vos.<br />
Tábalagumba<br />
Negrilla<br />
Tábalagumba<br />
que ya no gorioso naçiro ya<br />
Tábalagumba turu<br />
en plosisione vamo a bele.<br />
Aya huuchiha<br />
que téne candela<br />
la nubalà.<br />
Y ya, y ya, y ya,<br />
titilitando lo niño, ya<br />
Coplas<br />
I. A la porta de Beléne<br />
venimo neglo cuntenta<br />
a haçé una plosisione<br />
delante la naçimenta.<br />
Aya huuchia<br />
Titilitando lo niño sá<br />
y ya, y ya, y ya,<br />
Su made vindita le cayenta<br />
II. A lo neglo don Jorgiyo<br />
que dice tené opinio<br />
a ese avemo de rogá,<br />
que nos yeve la pendó.<br />
III. A lo neglo de vicalio,<br />
que diçe somos [h]onraro<br />
a ese avemo de rogá,<br />
que nos yeve lo sensario.<br />
IV. A lo neglo don Biafra<br />
pues que tené bonacala<br />
a ese avemo de rogá<br />
La clus de la combaca<br />
V. A lo neglo don Pelico<br />
que tené glande balona<br />
a ese avemo de rogá,<br />
que nos yeve a nosa giñola.<br />
VI. A lo neglo Monicongo<br />
que tené glande barriga<br />
a ese avemo de rogá<br />
que yeve la campaniya.<br />
Ha de la tierra y del monte<br />
Calenda<br />
Ha de la tierra y del monte,<br />
a quien puebla tanta flor<br />
de cuyo hermoso verdor<br />
se rie aquel horizonte<br />
Quién llama?<br />
[ 43 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
Yo, que en novedad tamaña<br />
pregunto, Por qué esto día,<br />
aborta tanta alegria<br />
en tan áspera montaña?<br />
Esta noche verdad quedó<br />
reducida a corta esphera,<br />
la maravilla primera<br />
que supo haçer el çielo.<br />
Celebrad pastores!<br />
Alégrense las aves<br />
y las flores y en el viento,<br />
con primoroso açento<br />
canton los Ruyseñores.<br />
Campanillas del alva<br />
de este sol que naçe<br />
toquen en la salva<br />
Y digan jilgueros con pico,<br />
parleros en dulce primor,<br />
fuentecilla que al alvor<br />
quebrais mil perlas de riza.<br />
No corrais, no tan aprisa,<br />
vels al que naçe,<br />
que es luz y que es flor.<br />
Coplas<br />
Al gozo que ha publicado,<br />
el que al alva en tal alto empleo<br />
aviva nuestro deseo,<br />
acaba nuestro cuydado.<br />
No corrais, no tan aprisa,<br />
vels al que naçe,<br />
que es luz y que es flor.<br />
Lineas çeñira estrellas<br />
a este sol siendo prisión,<br />
a su hermoso coraçón,<br />
con lágrimas en ves de flechas.<br />
Por él veremos logrado<br />
en los braços de la aurora<br />
un sol que naçe a deshora<br />
entre rayos y primores.<br />
Campanillas del alva,<br />
de este sol que naçe<br />
toque en la salva.<br />
Perlas al brotar las flechas,<br />
como al alva, aljofar llora,<br />
ganando a su precursora<br />
en grandesas y favores<br />
Christus natus est nobis<br />
Christus natus est nobis,<br />
Venite adoremus.<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 44 ]<br />
DIEGO DURÓN<br />
Ah, de las gitanillas<br />
Vilancico de Natal<br />
¡Ah, de las gitanillas!<br />
¡Hala! ¡Hala! ¡Hala que hala!<br />
¡Contentas venid gitanas<br />
que un niño de oro roba las almas!<br />
que amante nos da las pasquas<br />
¡Hala! ¡Hala! ¡Hala que hala!<br />
¡A bailar, a bailar gitanicas!<br />
¡Hala! ¡Hala!, Vamos en ala,<br />
Ya mi pulidico, bello gitanico<br />
que está entre unas paxas<br />
haciendonos raxas<br />
¡Vamos le alegrar!<br />
¡Ay, andar a Belén!<br />
¡Ay, andar al portal!<br />
¡Ay, andar, que la buena fortuna<br />
nos aguarda gitanas, allá!<br />
Repique el pandero<br />
Y las castañuelas<br />
lleven el compás<br />
Trás, trás, trás, trás!<br />
¡Andar, andar, andar!<br />
Coplas<br />
I. Carita de rosa polido zagal,<br />
mira como bailamos<br />
mira a tu magestad<br />
¡Ay, andar, andar!<br />
II. Oye a las gitanas,<br />
que cantando van<br />
sin dexar las mudanças<br />
oye de tu humanidad<br />
¡Ay, andar, andar!<br />
III. Bien te conocemos<br />
y sabemos ya<br />
que tu ser aunque niño<br />
tiene una eternidad<br />
¡Ay, andar, andar!
IV. Enamoradico<br />
lloras sin cesar<br />
de una dama que tienes<br />
llora el mas grave mal<br />
¡Ay, andar, andar!<br />
V. Quisiste curarla<br />
de tu voluntad<br />
y tu sabiduría<br />
viene médico a un portal<br />
¡Ay, andar, andar!<br />
VI. Por aquesta cura<br />
aunque te ves ya,<br />
hecho muy hombre el serio<br />
sabe que lo has de pagar<br />
¡Ay, andar, andar!<br />
VII. Con tus medicinas<br />
ella sanará<br />
pero con este açierto<br />
çierto tu te morirás<br />
¡Ay, andar, andar!<br />
VIII. Y pues te hemos dicho,<br />
toda la verdad,<br />
alguna limosnica<br />
niño danos liberdad<br />
¡Ay, andar, andar!<br />
Oygan, tengan, paren, miren<br />
Vilancico de Natal<br />
Oygan, tengan, paren, miren,<br />
oygan, de un valentón que atendella,<br />
tengan, tengan<br />
de un valentón que atendella<br />
viene de los varrios altos<br />
Vaya, vaya, tengan, tengan, vaya,<br />
escuchen, miren<br />
Qué es esto que voi mirando<br />
miren esto que voi mirando<br />
Qué es esto que voi mirando<br />
quien es el que echo de un boleo<br />
quien es el que echo de un boleo<br />
Los demonios derrivando<br />
Lindo, bune, bueno, bravo, bueno,<br />
bravo, bravo.<br />
Xácara<br />
I. Vaya de xácara y sea el hijo de Dios<br />
loado, Aquel que lo sabe todo<br />
Ya me entiende con quien hablo.<br />
II. El, que antes que hubiera mundo,<br />
se mostro mañoso y sabio y hacía todas<br />
las cosas como quien dice jugando.<br />
III. Con el, estrellarse quiso, un<br />
sobervio y otros brancos, pero los hizo<br />
tortilla, no sinó guevos asados.<br />
IV. De un alferez de gran perso, el<br />
espíritu a lentado haciendo nombre de<br />
Dios los hechó a rodar, ahi diablos.<br />
V. No les dolió la caída, pero rabiosos<br />
sembraron en la evedad del valiente, la<br />
cizaña, malos años.<br />
VI. Como no sabe de burlas, dando des<br />
del cielo un salto, a ponerlo todo en paz,<br />
llego a un portal, ver buen caro.<br />
VII. A los tristes hijos de Eva, que<br />
estan gimiendo y llorando, viene a<br />
librar y le cuesta la vida, ese es el<br />
reparo.<br />
VIII. Entre doce camaradas, tiene un<br />
pariente bizarro que por los ayres sen<br />
atenta, hijo del trueno, Santiago.<br />
IX. Aunque un saulo le persigue con<br />
las armas y caballo, sera después en su<br />
ayuda, Rayo de luz guarda Pablo.<br />
X. Temen los valientes todos, que aun<br />
que al frio está temblando se hace<br />
respetar y valerse para que seamos<br />
santos.<br />
XI. Cuentan los evangelistas, toda su<br />
vida y milagros y esta la historia cabal<br />
como dos y dos son quatro.<br />
Jordi Savall<br />
(ver página 17)<br />
M o n t s e r r a t<br />
F i g u e r a s<br />
(ver página 18)<br />
Hesperion XX<br />
(ver página 19)<br />
La Capella<br />
Reial de<br />
C a t a l u n y a<br />
(ver página 18)<br />
[ 45 ] Lisbo a, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga<br />
S e x t a -<br />
Feira,<br />
Dia 9<br />
46
Auditório Dois,<br />
1 8 . 3 0<br />
OS LUGARES DA ÓPERA:<br />
ESPAÇOS TEATRAIS NA<br />
LISBOA SETECENTISTA.<br />
Conferência por<br />
ALEXANDRA TRINDADE<br />
GAGO DA CÂMARA<br />
(Universidade Aberta)<br />
47<br />
Maria Alexandra Trindade<br />
Gago da Câmara<br />
Maria Alexandra Trindade Gago da Câmara<br />
nasceu a 21 de Julho de 1962 em Lisboa. Licenciou-se<br />
em História (variante de História de Arte)<br />
pela Universidade Nova de Lisboa, em Junho de<br />
1984. Obteve o grau de Mestre em História de<br />
Arte Moderna Portuguesa, na mesma universidade,<br />
em 1991.<br />
Exerce desde 1992 as funções de assistente<br />
na Universidade Aberta e integra também o<br />
Centro de estudos Históricos e Interdisciplinares.<br />
É colaboradora no Centro de História de Arte da<br />
Universidade de Évora.<br />
No âmbito da sua investigação debruçou-se<br />
sobre questões ligadas à espacialidade teatral do<br />
século XVIII, tendo publicado diversos estudos:<br />
“Um percurso de Italianização: Os desenhos dos<br />
Galli-Bibiena”, na Revista de Estudos Italianos em<br />
P o r t u g a l , (Lisboa, 1993); “A Teatralidade do<br />
Barroco e a Representação de Espaços Efémeros -<br />
Proposta de Leitura do Espaço Cénico na Ópera<br />
Setecentista”, na Revista Portuguesa de Musicologia<br />
(Lisboa, 1993); “A Encenação e Representação do<br />
Espaço da Azulejaria Setecentista”, em Actas do<br />
Encontro sobre Barroco e Rocócó no Palácio Fronteira<br />
(Junho, 1994); Lisboa: Espaços Teatrais Setecentistas<br />
(Livros Horizonte, Lisboa, 1996); entre outros.<br />
Actualmente prepara a sua tese de Doutoramento<br />
na área da azulejaria portuguesa da segunda<br />
metade do século XVIII.<br />
Li sboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
Grande Auditório <strong>Gulbenkian</strong>, 2 1 . 3 0<br />
ABERTURAS, INTERMEZZI E DANÇAS TEATRAIS<br />
DO BARROCO FRANCÊS E ITALIANO<br />
De CHRISTOFANO MALVEZZI a CLAUDIO MONTEVERDI<br />
Sinfonias e Intermezzi (Florença 1 5 8 9 - Mântua 1 6 0 7)<br />
Christofano Malvezzi (b. 1 5 4 7 - 1599) - Prólogo<br />
Anónimo - Galharda: La Traditora<br />
Giulio Abondante (fl. 1 5 4 6 - 87) - Pavana: La forza d’Ercole<br />
Jacomo de Gorzanis (ca. 1 5 2 0 - ? 1 5 7 5/9) - Galharda: La Barca d’amore<br />
Luca Marenzio (? 1 5 5 3/4 - 1599) - Sinfonia<br />
Luigi Rossi (1 5 9 8 - 1653) - Fantasia: Les pleurs d’Orphée ayant perdu sa femme<br />
Claudio Monteverdi (1 5 6 7 - 1643) - Sinfonia: M o r e s c a<br />
WILLIAM BRADE (1 5 6 0 - 1630)<br />
Intraden, Mascheraden, Aufzüge und Fremde Tänze (Lübeck, 1 6 1 7)<br />
Abertura Turca: Der Satyrn Tanz<br />
Dança Escocesa: Der Hexen Tanz<br />
GUILLAUME DUMANOIR (1 6 1 5 - 1697)<br />
Ballet dansé a Stockholm (1 6 4 0)<br />
Intrada - Sarabande - Allegro - Libertas - Marche - Bourrée<br />
Air - Gavotte - Bransle - Hungaresca - Marche - Tambourin - Sarabande<br />
I n t e r v a l o<br />
JOHANN ROSENMÜLLER (ca. 1 6 1 9 - 1684)<br />
Sinfonia Quarta (Veneza 1 6 6 7)<br />
Sinfonia - Alemanda - Correnta - Ballo - Sarabanda<br />
JEAN-BAPTISTE LULLY (1 6 3 2 - 1687)<br />
Alceste: Suite d’Airs a Joüer (Paris 1 6 7 4)<br />
Marche des Combattans<br />
Bourrée I - C a n a r i e<br />
Bourrée II - E c h o s<br />
La Fête Infernale - Les Démons<br />
Pompe Funèbre<br />
Les Hommes et Femmes armès<br />
Prélude des Trompettes et autres Instruments pour Mars<br />
Menuet pour les Trompettes<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 48 ]
HESPERION XX<br />
Jordi Savall e Sergi Casademunt Violas da gamba<br />
Eunice Brandão, Juan Manuel Quintana Violas da gamba<br />
Jean-Pierre Canihac e Jean Imbert C o r n e t a s<br />
Beatrice Delpierre C h a r a m e l a<br />
Daniel Lassalle S a c a b u x a<br />
Josep Borràs D u l ç a i n a<br />
Xavier Diaz Vihuela e Guitarra<br />
Edin Karamazov Alaúde e Guitarra<br />
Michael Behringer Cravo e Órgão<br />
Pedro Estevan P e r c u s s ã o<br />
LE CONCERT DES NATIONS<br />
Manfredo Kraemer C o n c e r t i n o<br />
Davide Amodio e Santi Aubert V i o l i n o s<br />
Lydia Cevidalli e Pablo Valetti V i o l i n o s<br />
Angelo Bartoletti e Judit Foldes V i o l a s<br />
Bruno Coeset e Gaetano Nasillo Baixo de Violino<br />
Alberto Rassi V i o l o n e<br />
Charles Zebley F l a u t a<br />
Robert Vanryne e Christoph Pigram T r o m p e t e s<br />
Alfredo Bernardini O b o é<br />
Stephan Légée Trombone Alto<br />
Jordi Savall D i r e c ç ã o<br />
Com a Colaboração de IBERIA – Líneas Aéreas<br />
[ 49 ] Lisbo a, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
ABERTURAS, INTERMEZZI E DANÇAS TEATRAIS<br />
DO BARROCO FRANCÊS<br />
O dealbar do século XVII trouxe consigo o<br />
nascimento da Ópera, indelevelmente marcado<br />
pela fértil tradição italiana dos interlúdios músicodramáticos<br />
de temática pastoral, alegórica ou<br />
mitológica, que desempenhavam uma função de<br />
entretenimento no decurso das peças teatrais.<br />
Usufruindo de uma grande popularidade desde a<br />
Renascença, os intermezzi incorporavam, a par<br />
com o discurso falado, o canto e a música instrumental,<br />
o que esteve na origem da constituição de<br />
uma vasta produção musical, associada à esfera<br />
teatral e constituída por madrigais, motetes, ballets,<br />
aberturas e danças instrumentais, a qual é, em<br />
parte, objecto do presente programa. Os exemplos<br />
mais antigos são da autoria de Giulio Abondante<br />
(fl. 1546-1587) e Jacomo de Gorzanis (ca.1520ca.1579),<br />
dois destacados representantes da literatura<br />
para o alaúde em Itália nos meados do século<br />
XVI.<br />
Muito embora a música desempenhasse um<br />
papel autónomo e desligado da acção dramática,<br />
no seio dos intermezzi, foi a sua convivência<br />
estreita com a palavra e com a representação de<br />
emoções o fundamento embrionário da Ópera.<br />
Contando-se entre os mais célebres intermezzi,<br />
encontram-se os seis que foram apresentados em<br />
Florença no ano de 1589, por ocasião do casamento<br />
do Duque Ferdinando de Medici com D.<br />
Cristina de Lorena. Para a realização do espectáculo,<br />
emoldurado por cenários sumptuosos e dispendiosa<br />
maquinaria de palco, contribuíram algumas<br />
das personalidades mais destacadas do<br />
panorama literário e artístico da época, como o<br />
mecenas Giovanni Bardi (1534-1612), responsável<br />
pela elaboração dos textos, em conjunto com<br />
Ottavio Rinuccini e Laura Guidiccioni, e os compositores<br />
Christofano Malvezzi (†1599), e Luca<br />
Marenzio (ca. 1553-1599). Estes últimos, distintos<br />
representantes do Madrigal maneirista, escreveram<br />
a maior parte da música que contou ainda<br />
com colaborações pontuais de Jacopo Peri (1561-<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 50 ]<br />
1633), Antonio Archilei (ca. 1550-1612),<br />
Giovanni Bardi, Giulio Caccini (ca. 1548-1618) e<br />
do supervisor musical do evento, Emilio Cavalieri<br />
(ca.1550-1602). Do vasto leque de géneros abordados<br />
ao longo dos seis intermezzi, que vão desde<br />
a canção solística de contornos ornamentados,<br />
acompanhada pelo chitarrone, aos imponentes<br />
madrigais policorais, em que participam sessenta<br />
cantores e pelo menos vinte e quatro instrumentos,<br />
fazem parte as sinfonias instrumentais, das<br />
quais serão ouvidos exemplos da autoria de<br />
Malvezzi e Marenzio. Estas obras destinavam-se a<br />
introduzir um intermedio ou a acompanhar a<br />
mudança de cenário, sendo executadas por conjuntos<br />
extremamente diversificados, constituídos,<br />
entre outros instrumentos, por flautas, cornetas,<br />
sacabuxas, violinos, violas da gamba, mandoras,<br />
alaúdes, guitarras e saltérios, segundo a prática<br />
renascentista. O uso desta instrumentária viria<br />
ainda a reflectir-se nas primeiras óperas, muito<br />
particularmente no O r f e o de Claudio Monteverdi<br />
(1567-1643), estreado em Mântua, a 24 de<br />
Fevereiro de 1607, de onde provém a Sinfonia<br />
M o r e s c a . Ao longo das mais de três décadas que<br />
decorreram entre a composição das primeiras<br />
óperas de Monteverdi e do que constitui o<br />
corolário da sua produção dramática, surgido a<br />
partir de 1640, a corrente impulsionadora do<br />
“dramma per musica” deslocou-se de Florença<br />
para Roma, com o protagonismo crescente de<br />
compositores como Domenico Mazzocchi (1592-<br />
1665), Stefano Landi (ca. 1586-1639) e Luigi<br />
Rossi (1598-1653), ao mesmo tempo que as inovações<br />
estilísticas italianas se estendiam a toda a<br />
Europa. Rossi contribuiu significativamente para a<br />
projecção do idioma italiano fora de Itália, e a sua<br />
ópera O r f e o (1647), foi apresentada com grande<br />
sucesso na corte francesa a convite do primeiroministro<br />
Jules Mazarin. Apesar de contestada<br />
pelos racionalistas da tradição clássica francesa, a<br />
música italiana teve reflexos duradouros na pro-
E ITALIANO<br />
por Rui Cabral<br />
dução de óperas e de numerosos géneros de dança,<br />
como os “ballets de court”, cultivados extensivamente<br />
por compositores como Pierre Guédron<br />
(†1621), Jean de Cambefort (1605-1661) e<br />
Guillaume Dumanoir (1615-1697). A sua<br />
influência perdurou mesmo para além da afirmação<br />
absolutista de uma estética marcadamente<br />
francesa, sob o vulto de Jean-Baptiste Lully (1632-<br />
1687). Tal convivência de culturas musicais veio a<br />
ocupar um lugar preferencial na discussão teórica<br />
contemporânea, em especial na promovida por<br />
Marin Mersenne (Harmonie Universelle, 1636).<br />
Correspondendo à tendência que se fazia sentir<br />
em Itália e França, a música de dança conheceu<br />
uma crescente afirmação no espaço germânico, na<br />
primeira metade do século XVII. O violinista<br />
inglês William Brade (1560-1630), passou a<br />
maior parte da sua vida criativa na Alemanha e foi<br />
um dos principais cultores da suite barroca naquele<br />
país. Exímio executante, Brade destacou-se,<br />
sobretudo, pelo engenho com que elaborava variações<br />
sobre baixos de dança, um exercício de<br />
improvisação de que se tornou pioneiro. A par<br />
com as mais convencionais Pavana, Galharda ou<br />
Alemanda, Brade divulgou danças menos conhecidas<br />
que vieram alargar a estrutura formal da suite,<br />
como a Maschera, inspirada pelas festividades carnavalescas,<br />
e a Intrada, de carácter processional.<br />
A expansão da música instrumental de<br />
câmara durante o barroco médio germânico devese,<br />
sobretudo, à acção de três compositores:<br />
Johann Rosenmüller (ca. 1619-1684) Johann<br />
Schmelzer (ca. 1620-1680) e Heinrich Ignaz von<br />
Biber (1644-1704). Rosenmüller nasceu na<br />
Saxónia mas desenvolveu o essencial da sua actividade<br />
em Itália, onde ocupou o cargo de trombonista<br />
na Basílica de São Marcos, em Veneza. As<br />
suites e as sonatas do compositor veiculam um discurso<br />
elaborado, caracterizado pela inventiva da<br />
concepção harmónica. No final da sua vida,<br />
Rosenmüller regressou ao seu país natal, tornan-<br />
do-se Mestre de Capela em Wolfenbüttel, e as<br />
suas composições instrumentais vieram a estabelecer<br />
um canal privilegiado para a transmissão do<br />
estilo italiano às regiões do Norte da Alemanha.<br />
[ 51 ] Lisbo a, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
A Orquestra Le Concert des Nations foi fundada<br />
em 1989, em torno da Capella Reial de<br />
Catalunya e é a mais recente das formações dirigidas<br />
por Jordi Savall. “Les Nations”, referência à<br />
obra de François Couperin, simbolizam a reunião<br />
dos “gostos” e também a premonição de uma arte<br />
europeia que não foi inventada hoje e que exibe a<br />
marca do Século da Luzes.<br />
Este agrupamento responde à necessidade<br />
actual de uma orquestra com instrumentos de<br />
época, capaz de interpretar o repertório orquestral<br />
e sinfónico, desde o Barroco até ao romantismo:<br />
1600-1850. Os músicos que integram a orquestra<br />
são, na sua maioria, originários de países latinos e<br />
todos especialistas de alto nível na interpretação<br />
de instrumentos antigos.<br />
As primeiras obras gravadas pela Concert des<br />
Nations foram: Canticum ad Beatam Virginem Mariam<br />
de Marc Antoine Charpentier; as Suites para<br />
Orquestra e os Concertos Brandeburgueses de Johann<br />
Sebastian Bach e as Sete Últimas Palavras de Cristo na<br />
Cruz de Joseph Haydn. Com Una Cosa Rara, ópera<br />
de Martin e Soler, o Concert des Nations e a<br />
Capella Reial de Catalunya fizeram a sua estreia<br />
no domínio da ópera. Esta obra foi representada<br />
no Teatro del Liceo de Barcelona em 1991, a que<br />
se seguiu o Orfeo de Monteverdi, em 1993. A última<br />
produção no género, Il Burbero di Buon Cuore de<br />
Martin e Soler, realizou-se em Montpellier em<br />
1995.<br />
Le Concert des Nations<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 52 ]<br />
Le Concert des Nations gravou também o<br />
R e q u i e m de Mozart com a Capella Reial de<br />
Catalunya, para além de Music for the Royal Fire Works<br />
e Water Music de Händel (Prémio RTL, 1994),<br />
Alcione e Suites des airs à jouer de Marin Marais,<br />
Sinfonia para Grande Orquestra e a Obra Orquestal<br />
de Arriaga, Sinfonia Eroica de Beethoven e<br />
Suites de Orquestra de Dumanoir. O repertório<br />
que a orquestra abordou ultimamente inclui a<br />
Abertura E g m o n t de Beethoven, as Suites de Bach,<br />
The Fairy Queen de Purcell e obras de Lully, Dumanoir<br />
e Rameau.<br />
Le Concert de Nations tem o patrocínio hon<br />
orífico da Comissão das Comunidades Europeias.<br />
Jordi Savall<br />
(ver página 17)<br />
Hesperion XX<br />
(ver página 19)
53<br />
Li sboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 54 ]<br />
Sábado,<br />
Dia 1 0
Sociedade de Geografia de Lisboa, 1 8 . 3 0<br />
CLAUDIO MONTEVERDI (1567 - 16 4 3)<br />
Il Combattimento di Tancredi e Clorinda<br />
I n t e r v a l o<br />
MARCO DA GAGLIANO (1582 - 16 4 3)<br />
La Dafne<br />
SEGRÉIS DE LISBOA<br />
Jennifer Smith Soprano (Narrador; Dafne)<br />
Ana Ferraz S o p r a n o (Clorinda; Vénus)<br />
Alexandra do Ó M e i o - S o p r a n o ( A m o r )<br />
Nicolau Domingues A l t o ( T i r s i )<br />
Rui Taveira Tenor (Ovídio; Pastor I)<br />
Mário José Alves T e n o r (Pastor II)<br />
António Wagner Diniz B a r í t o n o (Tancredi; Apolo)<br />
Pedro Couto Soares F l a u t a s<br />
Pedro Gandia, Iñaki Lagos V i o l i n o s<br />
Miguel Ivo Cruz Viola da gamba tenor<br />
Itziar Atutcha Viola da gamba baixo<br />
Paulo Galvão Alaúde e Viola de cinco ordens<br />
Manuel Morais Teorba e Alaúde<br />
Rui Paiva Orgão e Cravo<br />
CORO GULBENKIAN<br />
Sopranos:<br />
Sandra Lourenço (Ninfa I), Joana Seara (Ninfa II), Ana Caramelo, Rosário<br />
Azevedo, Myriam Madzalik, Sérgio Fontão<br />
C o n t r a l t o s :<br />
Elisabeth Silveira, Maria João Carmo, Mariana Portas,<br />
Sofia de Mendia<br />
T e n o r e s :<br />
Fernando Ferreira, Jorge Alves, José Damas, Manuel Lisboa<br />
B a i x o s :<br />
Rui Baeta (Pastor III), Horário Santos, João Valeriano,<br />
Hugo Oliveira<br />
Manuel Morais D i r e c ç ã o<br />
[ 55 ] Li sboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
NO BERÇO DO “DRAMMA<br />
PER MUSICA”<br />
por Rui Cabral<br />
A concepção da música como meio de<br />
expressão privilegiado de sentimentos e afectos<br />
humanos exerceu, desde cedo, uma influência decisiva<br />
no percurso criativo de Claudio Monteverdi<br />
(1567-1643). Em 1590, o compositor foi nomeado<br />
para o cargo de “suonatore di vivuola”, ao<br />
serviço do Duque Vincenzo I de Gonzaga, em<br />
Mântua, cargo esse que podia designar tanto o executante<br />
de Viola da Gamba como o de Violino.<br />
Estes instrumentistas eram habitualmente integrados<br />
em Quintetos de Cordas que tinham como<br />
função acompanhar elegantes danças de corte, em<br />
tudo idênticas aos ballets de court da tradição francesa,<br />
protagonizadas pelos membros da nobreza.<br />
Neste contexto – e porque os ballets i l u s t r a v a m ,<br />
regra geral, uma breve representação dramática,<br />
Monteverdi terá, desde logo, desenvolvido um<br />
particular interesse pela relação entre a música e o<br />
teatro, o qual se viria a materializar, em grande<br />
medida, embora não exclusivamente, no domínio<br />
da ópera. Foram, apesar de tudo, relativamente<br />
esparsas as oportunidades para a composição de<br />
óperas, ao longo da vida do compositor. Depois<br />
do célebre O r f e o (1607), Monteverdi escreveu,<br />
ainda em Mântua, uma outra ópera entretanto perdida,<br />
A r i a n n a (1608). Já em Veneza, foram-lhe<br />
dirigidas algumas encomendas de obras dramáticas,<br />
mas o essencial da sua produção tardia neste<br />
domínio viria a surgir a partir de 1640, coincidindo<br />
com a abertura dos primeiros teatros públicos<br />
de ópera em Veneza: Il ritorno d' Ulisse in Patria<br />
(1640), Le nozze d' Enea com Lavinia (1641) e<br />
L' incoronazione di Poppea (1642). Em contrapartida,<br />
tornaram-se muito mais frequentes as solicitações<br />
para a composição de b a l l e t s e de i n t e r m e d i , u m<br />
género músico-dramático tornado comum desde o<br />
século XVI, que desempenhava uma função de<br />
entretenimento entre os actos das peças teatrais. O<br />
cultivo intensivo destes géneros teve uma influência<br />
determinante, tanto no amadurecimento de<br />
conceitos operáticos então inovadores – por exem-<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 56 ]<br />
plo o do recitativo enquanto motor da história<br />
(cultivado pela C a m e r a t a florentina) – como também<br />
na estruturação formal do discurso músicodramático<br />
de Monteverdi: os ballets exigiam<br />
padrões de organização rigorosos e dos i n t e r m e d i<br />
faziam parte obrigatória as árias e os coros. Mais<br />
importante do que estes elementos é porém, o<br />
papel desempenhado pela “imitação” na filosofia<br />
de Monteverdi, conceito alicerçado nas doutrinas<br />
de Platão e na interpretação que delas fizeram os<br />
teóricos renascentistas. Apesar de haver uma diversidade<br />
de interpretações quanto ao seu significado,<br />
a acepção do compositor traduziu-se por duas<br />
medidas práticas: a imitação dos sons da natureza,<br />
tais como o canto dos pássaros e o murmúrio das<br />
águas ou do vento, e a procura de expedientes<br />
musicais que representassem as emoções humanas.<br />
A primeira delas é ilustrada de um modo notável<br />
no Combattimento di Tancredi e Clorinda que faz parte<br />
do presente programa. Composta em 1624, a obra<br />
foi publicada, catorze anos mais tarde, no seio do<br />
oitavo Livro de Madrigais (Madrigali guerrieri et<br />
a m o r o s i). A sua primeira audição teve lugar em<br />
Veneza, no Palácio de Girolamo Mocenigo,<br />
patrono do compositor. O texto, inspirado num<br />
conto medieval, provém do poema épico G e r usalemme<br />
liberata (1575) de Torquato Tasso, o qual<br />
relata a luta entre o cruzado Tancredi e a muçulmana<br />
Clorinda, amada por Tancredi, mas que ele<br />
não reconhece em virtude da mesma se encontrar<br />
dissimulada por uma armadura. Tancredi vence o<br />
combate, ferindo de morte a sua adversária, a qual<br />
acaba por reconhecer assim que lhe desvenda a<br />
face. Movido pela dor e pelo remorso, Tancredi é,<br />
por fim, perdoado por Clorinda, cuja morte é precedida<br />
pelo baptismo cristão. É muito significativo<br />
que ainda hoje subsistam reflexos deste conto<br />
medieval na nossa tradição musical, bem representados<br />
no filme de João César Monteiro, S i l v e s t r e<br />
(1978).<br />
O Combattimento di Tancredi e Clorinda coloca em<br />
cena, além dos personagens Clorinda (Soprano) e<br />
Tancredi (Barítono), a figura do testo ou narrador<br />
(Soprano), de cujo discurso vocal deviam estar<br />
ausentes, segundo o compositor, a coloratura e o<br />
trilo: “la voce del testo dover à essere chiara, ferma<br />
et di bona pronuntia”. As vozes são acompanhadas<br />
por um grupo instrumental constituído por dois<br />
violinos, violeta e baixo contínuo (órgão, cravo,<br />
alaúde, teorba e viola de cinco ordens), o qual<br />
devia, segundo o compositor, traduzir todas as<br />
subtilezas do texto. Particularmente relevante na
escrita para as cordas é a demonstração das potencialidades<br />
do stile concitato, ou “estilo agitado”, com<br />
a subdivisão de valores rítmicos longos em sequências<br />
de notas repetidas. A ausência na obra de uma<br />
perspectiva teatral de “ilusão pelo natural” – invalidada<br />
pelo recurso ao narrador – deixa um amplo<br />
espaço para a expressão de efeitos realistas pela<br />
orquestra, como, por exemplo, a imitação, em<br />
métrica ternária do trotar dos cavalos, ou o uso do<br />
pizzicato para evocar o entrechocar das espadas. À<br />
agonia final de Clorinda juntam-se as cordas, num<br />
lamento gradualmente menos intenso conseguido<br />
através do prolongamento das arcadas. O génio<br />
dramático de Monteverdi emana, a todo o<br />
momento, da extraordinária atmosfera deste<br />
madrigal guerreiro, dominada pela eloquência do<br />
fraseado melódico, pelas harmonias audaciosamente<br />
expressivas e pelo elevado poder sugestivo<br />
dos efeitos rítmicos.<br />
Uma das figuras mais destacadas da vida<br />
musical em Itália, na transição para o século XVII,<br />
Marco da Gagliano (1582-1643) foi autor de<br />
uma importante produção de madrigais seculares,<br />
monodias e obras sacras que teveram uma divulgação<br />
bastante significativa na primeira metade do<br />
século XVII. Seria, contudo, a composição da<br />
fábula La Dafne, estreada em Mântua em 1608 –<br />
um ano depois da apresentação na mesma cidade<br />
do O r f e o de Monteverdi – que viria a estabelecer<br />
definitivamente a reputação de Gagliano como<br />
compositor pioneiro, na história do que se considerava<br />
então como o novo género do melodrama.<br />
Composta sobre o libreto de Ottavio Rinuccini<br />
(1563-1621), que se reporta, por sua vez, a um<br />
texto das Metamorfoses de Ovídeo, a obra relata o<br />
mito clássico de Dafne que, querendo escapar ao<br />
ímpeto amoroso do deus Apolo, se transforma<br />
num loureiro. O mesmo libreto havia já sido<br />
objecto de versões musicais por Jacopo Peri,<br />
Jacopo Corsi (1594) e por Giulio Caccini (1602).<br />
A D a f n e de Gagliano, cuja apresentação fez parte<br />
das festividades carnavalescas comemoradas no<br />
Palácio do Duque de Mântua, Vincenzo I de<br />
Gonzaga, recolheu um entusiasmo generalizado,<br />
não apenas por parte do público contemporâneo,<br />
como também junto dos compositores que haviam<br />
anteriormente musicado o mesmo libreto. Jacopo<br />
Peri, numa carta que dirigiu ao Cardeal Ferdinando<br />
Gonzaga, considerou ser a versão de Gagliano<br />
superior a qualquer outra (referindo-se à sua própria<br />
e de Corsi) e sublinhou ainda a semelhança<br />
notável entre o idioma vocal do compositor e o<br />
discurso falado. A obra de Gagliano confere, com<br />
efeito, continuidade à tradição estética e estilística<br />
da C a m e r a t a florentina, fazendo recurso constante<br />
a um “recitar cantando”, de grande qualidade na<br />
relação entre o texto e a música, a árias de curta<br />
duração e a grupos instrumentais que detêm, por<br />
vezes, uma conotação com os personagens. À<br />
semelhança do que acontecia nas primeiras óperas,<br />
La Dafne tem por base um modelo de organização<br />
inspirado na tragédia grega, com coros de ninfas e<br />
pastores que, no palco, comentam a acção e contribuem,<br />
deste modo, para adensar a atmosfera<br />
dramática. Para a Sinfonia instrumental que precede<br />
o Prólogo, os Segréis de Lisboa seleccionaram<br />
a música de Gagliano (sinfonia a tre e ballo a tre),<br />
publicada no Ballo di donne turche (1615).<br />
O poeta Ovídeo (Tenor) domina o Prólogo<br />
evocando a metamorfose da ninfa Dafne, o poder<br />
do Amor sobre os Homens, e o destino de Apolo<br />
que, apesar da sua divindade, foi vítima do Amor e<br />
por isso chora a perda da sua amada Dafne. O<br />
coro de ninfas e pastores invoca o auxílio de<br />
Apolo para os libertar do jugo do terrível dragão<br />
Pitão, que dizimava os rebanhos. Apolo corresponde<br />
ao pedido lutando contra o dragão e vencendo-o.<br />
Na cena seguinte, Vénus (Soprano) surge<br />
acompanhada pelo seu filho, Amor (Meio-<br />
Soprano) e ambos encontram Apolo, que vagueia<br />
no bosque. Apolo escarnece de Amor lamentando<br />
a falta de precisão na escolha dos alvos a que dirige<br />
os seus dardos. Vénus previne Apolo do perigo<br />
que tal atitude implica e Amor, por sua vez, jura<br />
que só descansará quando vir Apolo sofrer, depois<br />
de o atingir com uma das suas setas. Na terceira<br />
cena, a ninfa da caça Dafne (Soprano) encontra-se<br />
com Apolo que se sente imediatamente atraído<br />
pela sua beleza. Dafne recusa, porém, a corte de<br />
Apolo, invocando uma lei inviolável que a proíbe<br />
de ter um deus como companheiro. Ante o desgosto<br />
amoroso de Apolo, Amor exalta a sua alegria.<br />
Vénus convida o filho a regressar com ela à companhia<br />
dos deuses. Com o intuito de se afastar<br />
definitivamente de Apolo, Dafne cumpre o seu<br />
destino, transformando-se num loureiro. As ninfas<br />
e os pastores ficam a par do sucedido através de<br />
Tirsi (Contralto), o mensageiro do triste evento.<br />
Apolo encerra a fábula, juntando-se às ninfas e<br />
pastores para exprimir a sua dor pelo desaparecimento<br />
da sua amada Dafne.<br />
[ 57 ] Li sboa, 6 a 1 4 Outub ro MCMXCVIII.
Testo<br />
Tancredi, che Clorinda un uomo stima,<br />
vuol nel’armi provarla al paragone.<br />
Va girando colei l’alpestre cima<br />
verso altra porta, ove<br />
d’entrar dispone.<br />
Segue egli impetuoso; onde, assai prima<br />
che giunga, guisa avvien che<br />
d’armi suone,<br />
ch’ella si volge, e grida:<br />
Clorinda<br />
O tu, che porte, che corri si?<br />
Testo<br />
Risponde:<br />
Tancredi<br />
E guerra, e morte!<br />
Clorinda<br />
Guerra e morte avrai,<br />
Testo<br />
Disse;<br />
CLAUDIO MONTEVERDI<br />
Il Combattimento di<br />
Tancredi e Clorinda<br />
Clorinda<br />
Io non rifiuto dàrlati, se la cerchi - e ferma attende.<br />
Testo<br />
Non vuol Tancredi, che<br />
pedon veduto<br />
ha il suo nemico, usar cavallo,<br />
e scende.<br />
E impugna l’una e l’altro il ferro acuto,<br />
ed aguzza l’orgoglio, e l’ire accende;<br />
e vansi incontro a passi<br />
tardi e lenti<br />
che duo tori gelosi e d’ira ardenti.<br />
Notte, che nel profondo oscuro seno<br />
chiudesti e ne l’oblio fatto si<br />
grande,<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 58 ]<br />
Narrador<br />
Tancredi, que julga que Clorinda é um homem,<br />
quer pô-la à prova como guerreira.<br />
Ela contorna o monte íngreme<br />
em direcção ao outro portão, por onde espera<br />
entrar.<br />
Ele segue-a impetuosamente, de tal modo<br />
que, ainda antes de a alcançar, o som da sua<br />
armadura<br />
fá-la virar-se e exclamar:<br />
Clorinda<br />
Que te tráz com tanta pressa?<br />
Narrador<br />
Ele responde:<br />
Tancredi<br />
Guerra e morte!<br />
Clorinda<br />
Pois terás guerra e morte,<br />
Narrador<br />
diz ela;<br />
Clorinda<br />
Não te recusarei o que tanto procuras e esperas.<br />
Narrador<br />
Tancredi, que tinha visto que o seu adversário<br />
e s t a v a a pé,<br />
não quer aproveitar-se dessa vantagem e<br />
desmonta.<br />
Ambos empunham espadas afiadas,<br />
como o orgulho acerado e ira acesa;<br />
avançam um para o outro com passos<br />
lentos e pesados,<br />
como dois touros ciumentos fervendo de raiva.<br />
Noite, que no seu seio de escuridão profunda<br />
e n c e rraste no esquecimento um acto tão<br />
grandioso,
degne d’un chiaro sol, degne d’un pieno teatro,<br />
opre sarìan sì memorande.<br />
Piacciati ch’io ne ‘l tragga, e ‘n bel sereno<br />
a le future età lo spieghi e mande.<br />
Viva la fama loro; et tra<br />
lor gloria<br />
splenda del fosco tuo l’alta memoria.<br />
Non schivar, non parar,<br />
non pur ritrarsi;<br />
voglion costor, né qui destrezza ha parte.<br />
Non dànno i colpi or finti, or pieni<br />
or scarsi;<br />
toglie l’ombra e’l furor l’uso de l’arte.<br />
Odi le spade<br />
orribilmente utarsi<br />
a mezzo il ferro; il piè d’orma non parte:<br />
sempre è il piè fermo, e la man<br />
sempre in moto;<br />
né scende taglio in van, né<br />
punta a vòto.<br />
L’onta irrita lo sdegno a la vendetta,<br />
e la vendetta poi l’onta rinova;<br />
onde sempre al ferir, sempre a la fretta,<br />
stimol nuovo s’aggiunge e piaga nova.<br />
D’or in or più si mesce, e<br />
più ristretta<br />
si fa la pugna: e spada oprar non giova;<br />
dansi con pomi, e, infelloniti<br />
e crudi,<br />
cozzan con gli elmi e con gli scudi.<br />
Tre volte il cavalier la donna stringe<br />
con le robuste braccia; ed altrettante poi<br />
da quei nodi tenaci ella scinge,<br />
nodi di fier nemico, e non<br />
d’amante.<br />
Tornano al ferro,<br />
e l’uno e l’altro il tinge.<br />
Con molte piaghe: e stanco ed anelante<br />
e questi e quegli al fin pur ritira,<br />
e dopo lungo faticar respira.<br />
L’un l’altro guarda, e del suo corpo essangue<br />
su ‘l pomo de la spada appoggia il peso.<br />
Già de l’ultima stella il raggio langue<br />
al primo albor ch’è in oriente acceso.<br />
Vede Tancredi<br />
in maggior copia il sangue<br />
del suo nemico, e sé non tanto offeso.<br />
Ne gode e superbisce. Oh nostra<br />
folle<br />
mente, ch’ogn’aura di fortuna estolle!<br />
Misero, di che godi? oh quanto mesti<br />
fiano e trionfi, ed infelice il vanto!<br />
digno do claro sol, digno de um teatro cheio,<br />
um feito que ficará memorável,<br />
permite-me que aqui o traga à luz do dia,<br />
que o exponha e o ofereça às épocas futuras.<br />
Que a sua fama viva, e que juntamente com a<br />
sua glória<br />
brilhe também a memória das suas trevas.<br />
Eles não se esquivam, não aparam os golpes nem<br />
pensam sequer em retirar-se;<br />
aqui a destreza não tem qualquer papel.<br />
Não desferem golpes ora simulados, ora pesados,<br />
ora leves;<br />
a escuridão e a raiva impedem o uso da arte.<br />
Escutai as espadas, a entrechocarem-se<br />
horrorosamente<br />
a meio das lâminas; os pés não se movem,<br />
firmes, mas as mãos estão<br />
em contínuo movimento;<br />
não há golpe que se abata em vão, não há<br />
estocada que encontre o vácuo.<br />
O rancor incita o desdém à vingança,<br />
e depois a vingança renova o rancor.<br />
Por isso, ao ferir sempre, sempre apressadamente,<br />
um novo estímulo, uma nova ferida, se junta.<br />
Agora lutam mais duramente e combatem tão<br />
perto um do outro<br />
que as espadas de nada lhes servem;<br />
usam os punhos das espadas, violenta e<br />
maldosamente,<br />
e chocam com os elmos e os escudos.<br />
Por três vezes o cavaleiro estreita a mulher<br />
nos seus braços poderosos, e outras tantas vezes<br />
ela se liberta desse abraço,<br />
que é o de um bravo inimigo e não o<br />
de um amante.<br />
Retomam as espadas e ambos se cobrem,<br />
um ao outro, de sangue.<br />
exaustos e ofegantes,<br />
recuam por fim<br />
e após o combate longo e duro respiram.<br />
Olham-se entre si, apoiando os corpos exaustos<br />
nos punhos das espadas.<br />
Já a luz da última estrela se vai extinguindo<br />
com o nascer da aurora a oriente.<br />
Tancredi vê que o sangue do seu inimigo escorreu<br />
em maior quantidade<br />
e que ele próprio não está tão ferido,<br />
o que o alegra e o orgulha. Oh, nosso louco<br />
espírito<br />
que se entusiasma com qualquer sopro de fortuna!<br />
Miserável, de que te alegras? Oh! Sejam as vitórias<br />
sempre tão tristes e o seu elogio tão infeliz!<br />
[ 59 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
Gli occhi tuoi pagheran (se in vita resti)<br />
di quel sangue ogni stilla un mar di pianto.<br />
Cosi tacendo e rimirando, questi<br />
sanguinosi guerrier cessaro<br />
alquanto.<br />
Ruppe il silenzio al fin Tancredi e disse,<br />
perchè suo nome a lui l’altro scoprisse:<br />
Tancredi<br />
Nostra sventura è ben che qui s’impieghi<br />
tanto valor, dove silenzio il copra.<br />
Ma, poi che sorte rea vien che ci neghi<br />
e lode e testimon degno de l’opra,<br />
pregoti (se fra l’arme han loco i preghi)<br />
che ‘l tuo nome e ‘l stato a me tu scopra,<br />
acciò ch’io sappia, o vinto o vincitore,<br />
chi la mia morte o la vittoria onore.<br />
Testo<br />
Risponde la feroce:<br />
Clorinda<br />
Indarno chiedi quel c’ ho per uso di<br />
non far palese.<br />
Ma chiunque io mi sia, tu inanzi vedi<br />
un di quei due che la gran torre accese.<br />
Testo<br />
Arse di sdegno a quel parlar Tancredi e:<br />
Tancredi<br />
In mal punto il dicesti;<br />
il tuo dir e ‘l tacer di par m’alletta,<br />
barbaro discortese, a la vendetta.<br />
Testo<br />
Torna l’ira ne’ cori, e li transporta,<br />
benché deboli, in guerra. Ah fera pugna!<br />
U’l’arte in bando, u’ già la forza è morta,<br />
ove, in vece, d’entrambi il furor pugna!<br />
Oh che sanguigna e spaziosa porta<br />
fa l’una e l’altra spada, ovunque giugna,<br />
ne l’arme e ne le carni! e se la vita<br />
non esce, sdegno tienla al petto unita.<br />
Ma ecco ommai l’ora fatale è giunta,<br />
che ‘l viver di Clorinda al suo fin deve.<br />
Spinge egli il ferro nel bel sen di punta,<br />
che vi s’immerge, e’ sangue<br />
avido beve;<br />
e la veste, che d’or vago trapunta<br />
XIX Jo rnadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 60 ]<br />
Os teus olhos derramarão (se sobreviveres)<br />
um mar de lágrimas por cada gota deste sangue.<br />
Assim, silenciosos e entreolhando-se,<br />
os sangrentos guerreiros permaneceram por<br />
momentos.<br />
Por fim, Tancredi rompeu o silêncio e disse,<br />
para que cada um pudesse saber o nome do outro:<br />
Tancredi<br />
Dura é a nossa sorte, que tanta bravura<br />
mostramos encobertos pelo silêncio.<br />
Mas já que a má sorte nos nega a ambos<br />
o testemunho e o elogio dos nossos feitos,<br />
peço-te, se tal é permitido numa batalha,<br />
que me reveles o teu nome e a tua condição,<br />
para que saiba, vencedor ou vencido,<br />
quem assim honrou a minha vida ou a minha<br />
morte.<br />
Narrador<br />
Ela respondeu orgulhosamente:<br />
Clorinda<br />
Em vão procuras saber o que por hábito<br />
não revelo.<br />
Mas, quem quer que eu seja, tens perante ti<br />
um dos responsáveis pelo fogo da grande torre.<br />
Narrador<br />
Ardendo de indignação perante esta resposta,<br />
Tancredi exclamou:<br />
Tancredi<br />
Falaste incorrectamente; as tuas palavras,<br />
tanto como o teu silêncio, me obrigam<br />
– rude descortesia – à vingança!.<br />
Narrador<br />
A raiva regressa aos seus corações e leva-os,<br />
embora fracos, para a guerra, ao combate heróico!<br />
A arte de esgrima desapareceu, a força desfaleceu,<br />
e é a raiva que em vez delas combate.<br />
Oh, que feridas sangrentas e abertas<br />
causam as espadas onde quer que rasguem<br />
as armaduras e a carne, e se a vida se não esvai<br />
é porque o desdém a mantém presa ao coração.<br />
Mas eis que chegou a hora fatal<br />
em que deve terminar a vida de Clorinda.<br />
Ele atravessa-lhe o peito com a espada,<br />
que se afunda sedenta de um sangue que cobre,<br />
como um rio quente,<br />
a veste bordada a ouro que se lhe cola ao peito.
Le mammelle stringea tenera e leve,<br />
l’empie d’un caldo fiume. Ella già sente<br />
morirsi, e ‘l piè le manca egro e languente.<br />
Segue egli la vittoria, e la trafitta<br />
vergine minacciando incalza e preme.<br />
Ella, mentre cadea, la voce afflitta<br />
movendo, disse le parole estreme;<br />
parole ch’a lei nuovo un spirto ditta,<br />
Spirto di fé, di carità, di speme;<br />
virtù ch’or Dio le infonde,<br />
e se rubella<br />
in vita fu, la vuole in morte ancella.<br />
Clorinda<br />
Amico hai vinto: io ti perdon… perdona<br />
tu ancora, al corpo no, che nulla pave,<br />
a l’alma si; deh! per lei prega, e dona<br />
battesmo a me ch’ogni mia colpa lave.<br />
Testo<br />
In queste voci languide risuona<br />
un non so che di flebile e soave<br />
ch’al cor gli scende, ed ogni sdegno ammorza<br />
e gli occhi a lagrimar gli invoglia e sforza.<br />
Poco quindi lontan nel sen del<br />
monte,<br />
scaturìa mormorando un picciol rio.<br />
Egli v’accorse, e l’elmo empié nel fonte,<br />
e tornò mesto al<br />
grande ufficio e pio.<br />
Tremar senti la man, mentre<br />
la fronte<br />
non conosciuta ancor, sciolse<br />
e scoprio.<br />
La vide, la connobbe; e restò senza<br />
e voce e moto. Ahi vista! ahi conoscenza!<br />
Non morì già;<br />
ché sue virtuti accolse<br />
tutte in quel punto, e in guardia al cor le mise,<br />
e premendo il suo affano,<br />
a dar si volse<br />
vita con l’acqua a chi col ferro uccise.<br />
Mentre egli il suon de’ sacri detti<br />
sciolse,<br />
colei di gioia trasmutossi, e rise;<br />
e in atto di morir lieto e vivace,<br />
dir parea:<br />
Clorinda<br />
S’apre il ciel; io vado in pace.<br />
Ela sente-se moribunda,<br />
os pés falham-lhe, fracos e exaustos.<br />
Ele acompanha a vitória<br />
e aproxima-se ameaçadoramente da donzela ferida.<br />
Enquanto cai, ela profere com voz aflita<br />
as suas últimas palavras, que um novo espírito lhe<br />
revelou.<br />
Espírito de fé, de caridade, de esperança,<br />
uma virtude que Deus lhe infundiu,<br />
E embora ela tenha sido durante a vida uma<br />
rebelde<br />
Ele quere-a ao seu serviço na morte.<br />
Clorinda<br />
Amigo, venceste: perdoo-te! Perdoa também<br />
tu, não ao corpo, que nada teme,<br />
mas sim à alma. Oh, reza por ela, e dá-me<br />
o baptismo que leva todos os pecados.<br />
Narrador<br />
Nestas palavras lentas<br />
soou qualquer coisa de tão dolente e doce<br />
que no coração dele se extinguiu todo o<br />
desdém e as lágrimas lhe vieram aos olhos.<br />
A pouca distância dali, na encosta de uma<br />
elevação,<br />
corria murmurando um pequeno riacho.<br />
Correu para ele e encheu o elmo na nascente,<br />
voltando tristemente para a sua<br />
grandiosa e solene missão.<br />
Sentiu as mãos a tremerem-lhe e libertou aquele<br />
rosto<br />
ainda desconhecido. Descobriu-o, olhou-o e<br />
reconheceu-o.<br />
Ficou silencioso e quedo.<br />
Ai, ver! Ai saber!<br />
Não morreu naquele momento porque reuniu<br />
todas as suas virtudes,<br />
confiando-as à guarda do coração<br />
e amordaçando a sua dor entregou-se<br />
a dar vida pela água àquela que matara<br />
pela espada.<br />
À medida que o som das palavras sagradas a<br />
envolvia,<br />
a alegria transformou-a e ela riu-se;<br />
e ao morrer feliz e alegre,<br />
parecia dizer:<br />
Clorinda<br />
O Céu abre-se, eu vou em paz.<br />
Tradução de Rui Vieira Nery<br />
[ 61 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
La Dafne<br />
MARCO DA GAGLIANO<br />
Prologo<br />
Un paesaggio greco ai piedi dell’Olimpo. Il poeta<br />
Ovidio parla nel suo prologo del dio Apollo che<br />
piange la metamorfosi della sua amata.<br />
Ovidio<br />
Da’ fortunati campi, ove immortali<br />
godonsi a l’ombra de’ frondosi mirti<br />
i graditi dal Ciel felici spirti,<br />
mostromi in questa notte a voi, mortali.<br />
Quel mi son io, che su la dotta lira<br />
cantai le fiamme de’ celesti<br />
amanti,<br />
e i trasformati lor vari sembianti<br />
soave sì, ch’il mondo ancor m’ammira.<br />
Indi l’arte insegnai come si deste<br />
in un gelato sen fiamma d’amore,<br />
e come in libertà ritorni un core<br />
cui son d’amor le fiamme aspre emoleste.<br />
Ma quel par, che tra l’ombra, il ciel rischiari<br />
nuova luce, e splendor di rai celesti?<br />
Qual Mestà vegg’io? Son forse questi<br />
gl’eccelsi Augusti miei felici, e chiari.<br />
De gran sembianti a lo splendor altero<br />
Vicentio io ben conosco, e Leonora;<br />
incliti Eroi, ch’ogni bell’alma adora<br />
e del Mincio, e del Arno honor primiero.<br />
Coppia Real, ch’alto destino scelse<br />
per serenar, per far beato il mondo,<br />
al cui senno e valor d’Atlante il pondo<br />
farà soma non grave, anime eccelse.<br />
Seguendo di giovar l’antico stile,<br />
con chiaro esempio a dimostrarvi piglio,<br />
quanto sia, Donne e Cavalier, periglio<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 62 ]<br />
Prologo 1<br />
Uma paisagem grega no sopé do Olimpo. No seu<br />
prólogo, o poeta Ovídio fala do deus Apolo que<br />
chora a metamorfose da sua amada.<br />
Ovídio<br />
Dos elísios campos, onde os benquistos do Céu<br />
gozam dos espíritos felizes e imortais,<br />
à sombra dos frondosos mirtos,<br />
a vós me mostro esta noite, ó mortais.<br />
Eu sou aquele que com sábia lira<br />
tão suavemente cantei o ardor dos celestes<br />
amantes<br />
e as várias transformações dos seus semblantes,<br />
que o mundo ainda me admira.<br />
Então ensinei a arte de despertar<br />
num gélido peito a chama do amor,<br />
e como devolver a um coração a liberdade<br />
para quem a chama do amor era moléstia.<br />
Mas que esplendor de raios celestes,<br />
que nova luz vencendo a sombra o céu ilumina?<br />
Que Majestades vejo? Serão estes<br />
os meus felizes, excelsos, preclaros Augustos<br />
Soberanos?<br />
Do nobre semblante e do esplendor altivo,<br />
Vicentio eu bem conheço, e Leonora;<br />
ínclitos Heróis, que toda a grande alma adora,<br />
do Mincio e do Arno honra primeira.<br />
Casal Real, que alto destino escolheu<br />
para serenar, para fazer feliz o mundo,<br />
que assim, à força e ao valor de Atlas,<br />
pouco pedirá, almas excelsas.<br />
Mantendo-me fiel ao antigo estilo,<br />
com um claro exemplo vos quero demonstrar<br />
que é, Senhoras e Senhores, um perigo
la potenza d’Amor recarsi a vile.<br />
Vedrete lagrimar quel Dio, ch’in Cielo<br />
reca in bel carro d’or la luce e ‘l giorno,<br />
e de l’amata Ninfa il lume adorno<br />
adorar dentro al trasformato stelo.<br />
Scena Prima<br />
Le ninfe e i pastori pregano gli dei di liberarli dal terribile<br />
mostro, che distrugge le loro greggi e<br />
avvelena i loro campi e i loro prati. Apollo appare<br />
ed uccide il drago col suo arco invencibile.<br />
Pastore del Coro (1)<br />
Tra queste ombre segrete<br />
s’inselva e si nasconde<br />
l’orrida belva: cauti i piè muovete,<br />
Ninfe e Pastori; ah, non scotete fronde.<br />
Altro Pastore<br />
Dunque senza timor, senza spavento,<br />
pe’ nostri dolci campi<br />
non guiderem mai più gregge od armento?<br />
Ninfa del Coro (1)<br />
E quando mai per queste piagge e quelle<br />
fronda corrêmo o fiore,<br />
misere verginelle,<br />
che di terror non ci si agghiacci ‘l core?<br />
Tirsi<br />
Giove immortal, che tra baleni e lampi<br />
scoti la terra e ‘l Cielo,<br />
màndane fiamma o telo<br />
che da mostro sì rio n’affidi e scampi.<br />
Pastore del Coro (III)<br />
Mira dal Ciel, deh mira:<br />
nudi di frondi omai questi arboscelli,<br />
pallide l’erbe e torbidi i ruscelli;<br />
mira dal Ciel, deh mira:<br />
a força do Amor menosprezar.<br />
Vereis chorar aquele Deus que pelo Céu<br />
leva num belo carro dourado a luz e o dia,<br />
e da amada ninfa o brilho cintilante<br />
adorar dentro da planta transformada.<br />
Primeira Cena<br />
As ninfas e os pastores suplicam aos deuses que<br />
os liberte do terrível monstro que dizima os seus<br />
rebanhos e envenena os seus campos e prados.<br />
Apolo aparece e mata o dragão com o seu arco<br />
invencível.<br />
Pastor do Coro (I)<br />
Por estas sombras secretas<br />
rasteja e se esconde<br />
a horrível fera: movei-vos com cautela,<br />
Ninfas e Pastores; ah, não agiteis a ramagem.<br />
Outro Pastor<br />
Então, sem temor, sem medo,<br />
pelos nossos doces pastos<br />
não mais conduziremos o gado e os rebanhos?<br />
Ninfa do Coro (I)<br />
E quando poderemos, nestas encostas,<br />
voltar a colher folhas e flores,<br />
pobres virgens,<br />
sem que se nos gele de terror o coração?<br />
Tirsi<br />
Júpiter imortal, que por entre raios e trovões<br />
fazes tremer a terra e o Céu,<br />
manda um relâmpago flamejante<br />
que de monstro tão terrível nos proteja.<br />
Pastor do Coro (III)<br />
Vê, lá do Céu, oh vê:<br />
despojados de folhas estão agora estes arbustos,<br />
pálidas as ervas e turvos os riachos;<br />
vê, lá do Céu, oh vê:<br />
[ 63 ] Lisbo a, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
tra lagrime e lamenti<br />
tender le palme al Cielo<br />
sconsolati Pastor, Ninfe innocenti.<br />
Pastore del Coro (1)<br />
Se lassù tra gli aurei chiostri<br />
puote un cor trovar mercè,<br />
odi il pianto e i pregui nostri,<br />
o del Ciel Monarca e Re.<br />
Coro<br />
Odi il pianto, e preghi nostri,<br />
o del Ciel Monarca e Re.<br />
Due Pastori<br />
Se a ferir la turba altera<br />
che sovr’Óssa Olimpo alzò,<br />
d’atro foco ira severa<br />
tra le Nubi il Cielo armò.<br />
Coro<br />
Odi il pianto, e preghi nostri,<br />
o del Ciel Monarca e Re.<br />
Due Ninfe<br />
De la destra onnipotente<br />
non vil pregio ancor sarà<br />
sterminar crudo serpente<br />
che struggendo il mondo va.<br />
Coro<br />
Odi il pianto, e preghi nostri,<br />
o del Ciel Monarca e Re.<br />
Pastore del Coro (III)<br />
Pera, pera il rio veleno,<br />
non attoschi il mondo più;<br />
verde il prato e ‘l Ciel sereno<br />
torni omai, torni qual fu.<br />
Coro<br />
Odi il pianto, e preghi nostri,<br />
o del Ciel Monarca e Re.<br />
Altro Pastore (II)<br />
Ma dove oggi trarrem tranquilla un’ora<br />
senza temer l’abominevol tosco?<br />
Pastore del Coro (1)<br />
Ebra di sangue in questo oscuro bosco<br />
giacea pur dinanzi la terribil fera.<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 64 ]<br />
entre lágrimas e lamentos<br />
estendem as mãos para o Céu<br />
desolados Pastores, Ninfas inocentes.<br />
Pastor do Coro (I)<br />
Se lá no alto, nos áureos claustros,<br />
pode um coração encontrar piedade,<br />
ouve o pranto e as nossas preces,<br />
ó Rei e Monarca do Céu.<br />
Coro<br />
Escuta o pranto e as nossas preces,<br />
ó Rei e Monarca do Céu.<br />
Dois Pastores<br />
Se para punir a turba altiva 2<br />
que usou o Ossa para escalar o Olimpo,<br />
o Céu entre as nuvens armou<br />
a sua impiedosa ira de um fogo funesto...<br />
Coro<br />
Ouve o pranto e as nossas preces,<br />
ó Rei e Monarca do Céu.<br />
Duas Ninfas<br />
Menor mérito não terá<br />
se com a destra omnipotente<br />
exterminar a cruel serpente<br />
que anda a afligir o mundo.<br />
Coro<br />
Ouve o pranto e as nossas preces,<br />
ó Rei e Monarca do Céu.<br />
Pastor do Coro (III)<br />
Morra, morra esse terrível veneno,<br />
e não empeste mais o mundo;<br />
verdes os prados e sereno o Céu<br />
voltem agora, voltem a ser como foram.<br />
Coro<br />
Ouve o pranto e as nossas preces,<br />
ó Rei e Monarca do Céu.<br />
Outro Pastor (II)<br />
Mas onde passaremos agora uma hora tranquila<br />
sem temer a abominável peste?<br />
Pastor do Coro (I)<br />
Ébria de sangue, neste obscuro bosque,<br />
rastejava há pouco a terrível fera.
Altro Pastore<br />
Dunque più non attosca<br />
nostre belle campagne? altrove è gita?<br />
Pastore del Coro (1)<br />
Farà ritorno più per questi poggi?<br />
Altro Pastore<br />
Ohimè! chi n’assecura<br />
s’oggi tornar pur deve il mostro rio?<br />
Tirsi<br />
Che sei tu, che n’affidi e ne console?<br />
Pastore del Coro (1)<br />
Il Sol tu sei? tu sei di Delo il Dio?<br />
Hai l’arco teco per ferirlo, Apollo?<br />
Tirsi<br />
S’hai l’arco tuo, saetta infin che mora<br />
questo mostro crudel, che ne divora.<br />
Coro<br />
Ohimè che vegg’io? O Divo, O Nume eterno,<br />
ecco l’orribil angue:<br />
spenga forza del Ciel mostro d’inferno.<br />
O benedeto stral! mirate il sangue!<br />
O glorioso arciero!<br />
Ah, mostro fero, ancor non cadi esangue?<br />
Arma di nuovo stral l’arco possente.<br />
Vola, vola pungente;<br />
spezza l’orrido tergo,<br />
giungilo al cor dove ha la vita albergo.<br />
Apollo<br />
Pur giacque estinto al fine<br />
in su ‘l terren sanguineo<br />
da l’invitt’arco mio l’angue maligno.<br />
Securi itene al bosco,<br />
Ninfe e Pastori, ite securi al prato:<br />
non più di fiamma e tosco<br />
infetta ‘l puro Ciel l’orribil fiato.<br />
Tornin le belle rose<br />
ne le guancie amorose;<br />
torni tranquillo il cor; sereno ‘l volto:<br />
io l’alma e ‘l fiato al crudo serpe ho tolto.<br />
Outro Pastor<br />
Então já não empesta<br />
os nossos belos campos? Mudou de paragens?<br />
Pastor do Coro (I)<br />
Algum dia voltará a estas colinas?<br />
Outro Pastor<br />
Ah! Quem nos garante<br />
que não volte hoje o terrível monstro?<br />
Tirsi<br />
Quem és tu, que nos consolas e confortas?<br />
Pastor do Coro (I)<br />
Tu és o Sol? És tu o Deus de Delos?<br />
Trazes contigo o arco para o ferir, Apolo?<br />
Tirsi<br />
Se trazes o arco, atira até que morra<br />
este monstro cruel que nos devora.<br />
Coro<br />
Ah! Que vejo eu? Ó Divindade, ó Deus eterno,<br />
eis a horrível serpente:<br />
que a força do Céu aniquile o monstro do inferno.<br />
Ó bendita flecha! Vejam o sangue!<br />
Ó glorioso archeiro!<br />
Ah, monstro feroz, não tombaste ainda exangue?<br />
Arma de nova seta o teu arco potente.<br />
Voa, voa pungente;<br />
trespassa o horrível dorso,<br />
atinge-o no coração, onde se abriga a vida.<br />
Apolo<br />
Finalmente jaz, extinto,<br />
sobre chão ensanguentado,<br />
pelo meu invicto arco a serpente maligna.<br />
Ide sem medo ao bosque,<br />
Ninfas e Pastores, ide sem medo ao prado:<br />
de veneno e fogo já não infecta mais<br />
o puro Céu aquele horrível bafo.<br />
Volte o belo rubor<br />
às faces graciosas;<br />
Volte a ser tranquilo o coração; sereno o rosto:<br />
Eu a alma e o bafo à cruel serpente já tirei.<br />
[ 65 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
Coro<br />
Almo Dio, che ‘l carro ardente<br />
per lo ciel volgendo intorno<br />
vesti ‘l dì d’un aureo manto,<br />
se tra l’ombra orrida algente<br />
splende il Ciel di lume adorno,<br />
pur tua la gloria e ‘l vanto.<br />
Se germoglian frondi e fiori,<br />
selve e prati, e rinovella<br />
l’ampia terra il suo bel manto,<br />
se de’ suoi dolci tesori<br />
ogni pianta si fa bella,<br />
pur tua la gloria e ‘l vanto.<br />
Per te vive e per te gode<br />
quanto scerne occhio mortale<br />
o Rettor del carro eterno:<br />
Ma si taccia ogn’altra lode;<br />
Sol de l’arco e de lo strale<br />
Voli il grido al Ciel superno.<br />
Nobil vanto! il fier dragone<br />
di velen, di fiamme armato<br />
su ‘l terren versat’ha l’alma:<br />
per trecciar fregi e corone<br />
al bel crin di raggi ornato<br />
qual fia degno edera o palma?<br />
Scena Seconda<br />
Apollo incontra Venere con Amore, il suo figlio cieco. Questi<br />
decide che la sua prossima vittima sarà Apollo, che lo deride, e<br />
di non riposare prima di aver colpito con la sua freccia anche<br />
il cuore di lui.<br />
Amore<br />
Che tu vadia cercando o giglio o rosa<br />
per infiorarti i crini,<br />
non ti vo’ creder, no, madre vezzosa.<br />
Venere<br />
Che cerco dunque, o figlio?<br />
Amore<br />
Rosa non già, né giglio:<br />
cerchi d’Adone, o d’altro vie più bello<br />
leggiadro pastorello.<br />
Venere<br />
Ah tristo, tristo! Ecco ‘l signor di Delo:<br />
pe’ boschi oggi se ‘n van gli Dèi del Cielo.<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 66 ]<br />
Coro<br />
Deus Supremo, que o carro ardente<br />
à volta do Céu levando<br />
vestes o dia de um áureo manto,<br />
se, rompendo a sombra hórrida e algente,<br />
brilha o Céu de esplêndida luz,<br />
são teus o mérito e a glória.<br />
Se rebentam folhas e flores<br />
e selvas e prados, e renova<br />
a vasta terra o seu belo manto;<br />
se dos seus doces tesouros<br />
cada planta se embeleza,<br />
são teus o mérito e a glória.<br />
Por ti vive e por ti goza<br />
quanto distingua olho mortal,<br />
ó Senhor do carro eterno:<br />
que eu cale outros louvores;<br />
só do arco e do dardo<br />
chegue o grito ao Céu superno.<br />
Nobre mérito! O feroz dragão<br />
de veneno e chamas armado<br />
sobre o chão derramou a alma:<br />
para cingir de festões e coroas<br />
a bela cabeleira dos raios dourados<br />
qual é mais digna: a hera ou a palma?<br />
Segunda Cena<br />
Apolo encontra Vénus com Cupido, o seu filho<br />
cego. Este decide que a sua próxima vítima será<br />
Apolo, que troça dele, e que não descansará<br />
enquanto não tiver atingido também aquele<br />
coração com a sua flecha.<br />
Cupido<br />
Que tu procures lírios ou rosas<br />
para enfeitar os teus cabelos,<br />
não acredito, não, mãe vaidosa.<br />
Vénus<br />
Que procuro então, ó filho?<br />
Cupido<br />
Rosas não, nem lírios:<br />
procuras Adónis, ou outro ainda mais belo<br />
e gracioso pastorinho.<br />
Vénus<br />
Ai que mau, que mau! Eis o Senhor de Delos:<br />
pelos bosques hoje se passeiam os Deuses do Céu.
Apollo<br />
Dimmi, possente arciero,<br />
qual fera attendi o qual serpente al varco<br />
c’hai la faretra e l’arco?<br />
Amore<br />
Se da quest’arco mio<br />
non fu Fitone ucciso,<br />
arcier non son peró degno di riso,<br />
e son del Cielo, Apollo, un Nume anch’io.<br />
Apollo<br />
Sollo; ma quando scocchi<br />
l’arco, sbendi tu gli occhi<br />
o ferisci a l’oscuro, arciero esperto?<br />
Amore<br />
S’hai di saper desio<br />
d’un cieco arcier le prove,<br />
chiedilo a Re de l’onde,<br />
chiedilo in Cielo a Giove.<br />
E tra l’ombre profonde<br />
dal Regno orrido oscuro<br />
chiedi, chiedi a Pluton, s’ei fu sicuro!<br />
Apollo<br />
Se in Cielo, in mare, in terra<br />
Amor trionfi in guerra<br />
dove, dove m’ascondo?<br />
Chi novo Ciel m’insegna, o novo mondo?<br />
Amore<br />
So ben, che non paventi<br />
la forza d’un fanciullo,<br />
saettator di mostri e di serpenti;<br />
ma, prendi pur di me giuoco e trastullo!<br />
Apollo<br />
Ah, tu t’adiri a torto:<br />
o mi perdona, Amore,<br />
o, se mi vuoi ferir, risparmia ‘l core.<br />
Venere (mentre parte Apollo)<br />
Vedrai, che grave risco è scherzar seco,<br />
bench’ei sia pargoletto, ignudo e cieco.<br />
Amore<br />
S’in quel superbo core<br />
non fo piaga mortale,<br />
più tuo figlio non son, non sono Amore.<br />
Apolo<br />
Diz-me, poderoso archeiro,<br />
que fera ou que serpente esperas,<br />
que vens de aljava e arco?<br />
Cupido<br />
Se por este meu arco<br />
não foi Pitão abatido,<br />
não sou porém archeiro que mereça o riso,<br />
e também eu, Apolo, sou um Deus do Céu.<br />
Apolo<br />
Sei-o, mas quando apontas<br />
o arco, desvendas os teus olhos<br />
ou atiras às cegas, archeiro exímio?<br />
Cupido<br />
Se quiseres saber<br />
as proezas de um archeiro cego,<br />
pergunta ao Rei das ondas 3 ,<br />
pergunta no Céu a Júpiter.<br />
E nas sombras profundas<br />
do Reino hórrido e obscuro<br />
pergunta, pergunta a Plutão, se ele estava seguro!<br />
Apolo<br />
Se no Céu, no mar, na terra<br />
triunfas, Cupido, na guerra<br />
onde, onde me escondo?<br />
Quem me ensina um novo Céu, um novo mundo?<br />
Cupido<br />
Sei bem que não receias<br />
a força de uma criança,<br />
caçador de monstros e de serpentes;<br />
mas, brinca comigo, faz troça de mim!<br />
Apolo<br />
Ah, fazes mal em te zangar:<br />
ou me perdoas, Cupido,<br />
ou, se me queres ferir, guarda as forças.<br />
Vénus (entretanto sai Apolo)<br />
Verás que arriscado é troçar dele,<br />
ainda que seja um rapazinho, nu e cego.<br />
Cupido<br />
Se naquele soberbo coração<br />
não fizer ferida mortal,<br />
não sou mais teu filho, nem sou Cupido.<br />
[ 67 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outub ro MCMXCVIII.
Venere<br />
Amato pargoletto,<br />
come giust’ira e sdegno<br />
oggi t’infiamma il petto,<br />
sì spero al nostro regno<br />
veder l’altero Dio servo e suggetto.<br />
Amore<br />
Non avrò posa mai, non avrò pace<br />
fin ch’io no’l vegga lagrimar ferito<br />
da quest’arco schernito.<br />
Madre, ben mi dispiace<br />
di lasciarti soletta,<br />
ma toglie assai d’onor tarda vendetta.<br />
Venere<br />
Vanne pur lieto, o figlio;<br />
lieta rimango anch’io,<br />
che troppo è gran periglio<br />
averti irato a canto:<br />
per queste selve intanto<br />
farò dolce soggiorno;<br />
poscia faremo insieme al Ciel ritorno.<br />
Chi da’ lacci d’amor vive disciolto<br />
de la sua libertà goda pur lieto,<br />
superbo no: d’oscura nube involto<br />
stassi per noi del Ciel l’alto decreto;<br />
S’hor non senti d’amor poco né molto,<br />
avrai dimani il cor turbato e ‘nqueto.<br />
E signor proverai crudo e severo<br />
Amor, che dianzi disprezzasti altero.<br />
Coro<br />
Nudo Arcier, che l’arco tendi<br />
che velat’ambe le ciglia,<br />
ammirabil meraviglia!<br />
Mortalmente i cori offendi,<br />
se così t’infiammi e ‘ncendi<br />
verso un Dio, quai saran poi<br />
sovra noi gli sdegni tuoi?<br />
D’un leggiadro giovinetto<br />
già de’ boschi onore e gloria<br />
suona ancor fresca memoria<br />
che m’agghiaccia ‘l cor nel petto,<br />
qual per entro un ruscelletto<br />
sé mirando, arse d’amore,<br />
e tornò piangendo in fiore.<br />
Ogni Ninfa in doglie e ‘n pianti<br />
posto avea per sua bellezza,<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 68 ]<br />
Vénus<br />
Amado rapazinho,<br />
tão justa ira e desdém<br />
hoje te inflama o peito,<br />
que espero ao nosso reino<br />
ver o altivo Deus rendido e submetido.<br />
Cupido<br />
Não terei descanso, não terei paz<br />
enquanto não o vir chorar, ferido<br />
por este arco escarnecido.<br />
Mãe, muito me custa<br />
deixar-te sozinha,<br />
mas diminui muito a honra tarda vingança.<br />
Vénus<br />
Vai descansado, ó filho;<br />
descansada também eu fico,<br />
porque é um grande perigo<br />
ter-te irado por perto:<br />
Nestas selvas, entretanto,<br />
farei doce pausa;<br />
Depois juntos ao Céu faremos o retorno.<br />
Quem dos laços do amor vive solto<br />
da sua liberdade goze, mas feliz,<br />
soberbo não: de obscura nuvem envolto<br />
há para nós do Céu uma lei suprema;<br />
Se agora amor não sentes, nem muito nem pouco,<br />
amanhã terás o coração perturbado e inquieto.<br />
E terás em Cupido, que, altivo, antes desprezaste,<br />
um senhor cruel e severo.<br />
Coro<br />
Desnudo archeiro, que o arco estiras<br />
e velados tens ambos os olhos,<br />
admirável maravilha!<br />
Tu, que mortalmente os corações atinges,<br />
se assim te irritas e enfureces<br />
com um Deus, como não serão<br />
contra nós as tuas fúrias?<br />
De um gracioso jovem 4 ,<br />
antes dos bosques a honra e a glória,<br />
paira ainda uma fresca memória<br />
que no peito me gela o coração,<br />
ele que, vendo num riacho<br />
o seu reflexo, se perdeu de amores,<br />
e chorando foi transformado em flor.<br />
Todas as Ninfas em dor e em pranto<br />
tinha deixado a sua beleza,
ma del cor l’aspra durezza<br />
non piegâr l’afflitte amanti:<br />
quelle voci e quei sembianti<br />
ch’avrian mosso un cor di fera,<br />
schernia pur quell’alma altera.<br />
Una al pianto in abbandono<br />
lagrimando uscì di vita,<br />
che fu poi per gli antri udita<br />
ribombar, nud’ombra e suono:<br />
or qui più non ha perdono,<br />
più non soffre Amor irato<br />
l’impietà del core ingrato.<br />
Punto ‘l sen di piaga acerba<br />
da quell’armi ond’altri ancise,<br />
non pria fine al pianto ei mise<br />
che un bel fior si fe’ sull’erba.<br />
O beltà cruda e superba,<br />
non fia già ch’invan m’insegni<br />
come irato Amor si sdegni.<br />
Scena Terza<br />
Dafne, che si trova a caccia, viene a sapere dai pastori come<br />
Apollo ha ucciso il drago. Apollo appare e tenta inutilmente<br />
di conquistare la bella ninfa. Mentre Dafne fugge nel bosco,<br />
il vendicativo Amor trionfa su Apollo, sua vittima.<br />
Dafne<br />
Per queste piante ombrose<br />
scorgimi, Cintia, tu selvaggio Nume;<br />
dove fuggì la fera, ove s’ascose?<br />
Pastore del Coro (III)<br />
Ecco il pregio, ecco il sol di queste selve,<br />
ecco la bella Dafne<br />
che al suon de l’arco fa tremar le belve.<br />
Altro Pastore (II)<br />
Cacciatrice gentil, che col bel ciglio<br />
splendor raddoppi a questo dì sereno,<br />
spento è il crudo Fiton, mira il terreno<br />
de l’empio sangue ancor caldo e vermiglio.<br />
Dafne<br />
Dolcissima novella! E qual sì forte<br />
avventurosa mano<br />
lasciato ha il mostro rio preda di morte?<br />
Pastore del Coro (1)<br />
Febo, che su ne l’alto<br />
mas a áspera dureza daquele coração<br />
não foi tocada pelas aflitas amantes:<br />
dos seus lamentos e dos seus semblantes,<br />
que teriam comovido um coração de fera,<br />
escarnecia aquela alma altiva.<br />
Uma delas 5 partiu deste mundo<br />
chorando lágrimas de abandono,<br />
e foi depois nas cavernas ouvida<br />
ecoar, privada de sombra e de som:<br />
para ele agora já não há perdão,<br />
mais não tolera Cupido irado<br />
a impiedade daquele coração ingrato.<br />
Atingido pelas mesmas armas<br />
com que outros antes feria,<br />
não teve fim o seu pranto<br />
sem que uma bela flor crescesse na erva.<br />
Ó beleza cruel e soberba,<br />
não seja em vão que alguém me ensine<br />
como é de Cupido irado o desdém.<br />
Terceira Cena<br />
Dafne, que está a caçar, fica a saber pelos pastores<br />
que Apolo matou o dragão. Apolo aparece e tenta<br />
inutilmente conquistar a bela ninfa. Enquanto<br />
Dafne foge para o bosque, o vingativo Cupido<br />
vence Apolo, sua vítima.<br />
Dafne<br />
Por entre estas árvores sombrias<br />
descobre-me, Diana, Deusa do mundo selvagem;<br />
para onde fugiu a fera, onde se esconde?<br />
Pastor do Coro (III)<br />
Eis o dote, eis o sol destas florestas,<br />
eis a bela Dafne<br />
que ao som do seu arco faz tremer as feras.<br />
Outro Pastor (II)<br />
Caçadora gentil, que com os teus belos olhos<br />
redobras de esplendor este dia sereno,<br />
morto foi o cruel Dragão, olha para o chão<br />
do ímpio sangue ainda tingido e quente.<br />
Dafne<br />
Que doce notícia! E qual tão forte<br />
e venturosa mão<br />
fez do malvado monstro presa da morte?<br />
Pastor do Coro (I)<br />
Febo, que lá no alto<br />
[ 69 ] Li sboa, 6 a 1 4 Outub ro MCMXCVIII.
ota la face onde s’aggiorna il mondo,<br />
spènselo alfin dopo un mortale assalto.<br />
Deh, come fu giocondo<br />
mirar quel Divo in un feroce e vago<br />
moversi incontro al formidabil drago!<br />
Or minaccioso a fronte<br />
stàvagli ardito, or sovra il piè leggiero<br />
de l’immenso animal schernia la rabbia<br />
che da l’accese labbia<br />
fremendo invan spargea fiamma e veleno.<br />
Sovra la belva atroce<br />
fermo tenea talor lo sguardo intento,<br />
hor movea tardo e lento,<br />
or rapido, or veloce<br />
pur come avesse ne le piante il vento.<br />
Né mai felice arciero<br />
spinse da l’arco strale<br />
che di piaga mortale<br />
non lasciasse trafitto il mostro fero,<br />
tal che a fuggir si diè tutto tremante:<br />
ma da l’alate piante<br />
del gran saettator fuggissi invano,<br />
ch’ei pur lo giunse; o memorabil palma!<br />
E privo d’alma lo lasciò su ‘l piano.<br />
Dafne<br />
O di celeste Eroe ben degni vanti!<br />
Felicissimo giorno! al suono, a’ balli<br />
tornate omai, Pastor,<br />
tornate a’ canti.<br />
Vie più sicura anch’io per monti e valli<br />
saettando n’andrò le fere erranti.<br />
Coro<br />
Ogni ninfa in doglie e ‘n pianti<br />
posto avea per sua bellezza,<br />
ma del cor l’aspra durezza<br />
non piegâr l’afflitte amanti:<br />
quelle voci e quei sembianti<br />
ch’avrian mosso un cor di fera,<br />
schernia pur quell’alma altera.<br />
Apollo<br />
Deh come lieto in queste piagge io torno,<br />
piagge dilette e care<br />
ove colsi d’amor palme sì chiare!<br />
Ma, deh, che miro! e qual d’un ciglio adorno<br />
spira lume gentil che al cor mi giunge!<br />
XIX Jornadas Gulb en kian de <strong>Música</strong> Antiga [ 70 ]<br />
roda a luz que cada dia renova o mundo,<br />
abateu-o após uma luta mortal.<br />
Ah, que alegria<br />
ver aquele Deus num feroz mas gracioso<br />
movimento ir ao encontro do formidável dragão!<br />
Ora ameaçador, de frente<br />
o atacava ousado, ora com pé ligeiro<br />
do imenso animal escarnecia a raiva<br />
que dos lábios em brasa,<br />
fremindo, em vão lançava chama e veneno.<br />
Sobre a fera atroz<br />
firme mantinha por vezes o olhar atento,<br />
e ora se movia vagaroso e lento,<br />
ora rápido e veloz<br />
como se tivesse nos pés o vento.<br />
Nunca tão feliz um outro archeiro<br />
do seu arco atirou flecha<br />
que de ferida mortal<br />
deixasse trespassado o monstro feroz<br />
e a tremer todo o pusesse em fuga:<br />
mas dos pés alados<br />
do grande atirador fugia em vão,<br />
que ele logo o alcançou; ó memorável feito!<br />
E privado da alma o deixou por terra.<br />
Dafne<br />
Oh, proezas dignas de um celeste Herói!<br />
Felicíssima jornada! À música, à dança<br />
voltai agora, Pastores,<br />
voltai aos cânticos.<br />
Mais segura também eu irei, por montes e vales,<br />
atirando sobre a feras errantes.<br />
Coro 6<br />
Todas as Ninfas em dor e em pranto<br />
tinha deixado a sua beleza,<br />
mas a áspera dureza daquele coração<br />
não foi tocada pelas aflitas amantes:<br />
dos seus lamentos e dos seus semblantes,<br />
que teriam comovido um coração de fera,<br />
escarnecia aquela alma altiva.<br />
Apolo<br />
Ah, como feliz a estas colinas volto,<br />
colinas dilectas e caras<br />
onde colhi do amor tão claras vitórias!<br />
Mas, ah, que vejo! De que olhos tão belos<br />
parte o gentil brilho que o coração me atinge!
Dafne<br />
Certo non molto lunge,<br />
se non m’ingannan l’orme, è damma o<br />
cervo.<br />
Or vedrò se ‘l mio stral va dritto e punge.<br />
Apollo<br />
Ah, ben sent’io se son pungenti i dardi<br />
de’ tuoi soavi sguardi!<br />
Pastore del Coro (III)<br />
Ben a ragion s’apprezza,<br />
se ne sospira un Dio, l’alta bellezza.<br />
Apollo<br />
Dimmi, qual tu ti sei,<br />
o Ninfa o Dèa, chè tale<br />
rassembri a gli occhi miei,<br />
che cerchi armata di faretra e strale?<br />
Dafne<br />
Seguendo io me ne giva,<br />
si come è l’uso mio, fugace fera;<br />
e son donna mortal, non del ciel diva.<br />
Apollo<br />
Se cotal luce splende<br />
in bellezza mortale,<br />
del Ciel più non mi cale.<br />
Dafne<br />
Dove mi volgo? dove<br />
moverò ‘l passo che la fera trove?<br />
Apollo<br />
Senza che dardo avventi o l’arco scocchi<br />
valli cercando o monti,<br />
far nobil preda puoi co’ tuoi begli occhi.<br />
Dafne<br />
Altra preda non bramo, altro diletto<br />
che fere e selve; e son contenta e lieta<br />
se damma errante o fer cignal saetto.<br />
Apollo<br />
Ah, che non sol di fere<br />
saettatrice sei,<br />
ma contro a gli alti Iddei<br />
saette aventi da le luci altere.<br />
Dafne<br />
Del Ciel gli eterni Numi<br />
Dafne<br />
Por certo não muito longe,<br />
se não me enganam as pegadas, anda gamo ou<br />
veado.<br />
Vejamos se o meu dardo vai direito e o atinge.<br />
Apolo<br />
Ah, bem sinto eu como são pungentes os dardos<br />
do teu doce olhar!<br />
Pastor do Coro (III)<br />
Com razão se admira<br />
tal beleza, se por ela um Deus suspira.<br />
Apolo<br />
Diz-me, quem és tu,<br />
Ninfa ou Deusa, que tal<br />
pareces aos meus olhos,<br />
que procuras, armada de aljava e flecha?<br />
Dafne<br />
Perseguindo andava,<br />
como é meu uso, fera fugaz;<br />
e sou ser mortal, não dos céus diva.<br />
Apolo<br />
Se tal luz brilha<br />
em beleza mortal,<br />
do Céu ninguém mais me fale.<br />
Dafne<br />
Para onde ir? Para onde<br />
encaminhar meus passos que a fera encontre?<br />
Apolo<br />
Sem que o dardo desfeches ou o arco armes,<br />
por vales e montes procurando,<br />
nobre presa podes fazer com os teus belos olhos.<br />
Dafne<br />
Por outra presa não anseio, nem outro prazer,<br />
senão feras e selvas; e fico feliz e contente<br />
se gamo errante ou feroz javali caço.<br />
Apolo<br />
Ah, que não só de feras<br />
és caçadora,<br />
também contra os Deuses supremos<br />
desferem setas os teus altivos olhos.<br />
Dafne<br />
Do Céu os eternos Deuses<br />
[ 71 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
umile onoro e colò,<br />
e per le selve solo<br />
pongo su l’arco i dardi:<br />
ma tu per giuoco il mio cammin ritardi.<br />
Apollo<br />
Deh non sdegnar che teco<br />
prenda ne’ boschi anch’io dolce diletto;<br />
anch’io so tender l’arco, anch’io saetto.<br />
E qui pur dianzi insanguinato ha l’erba,<br />
trofeo di questa man, belva superba.<br />
Dafne<br />
Serva di Cintia, altri che l’arco mio<br />
meco non voglio. Inviolabil legge<br />
vuol ch’io recusi per compagno un Dio.<br />
Apollo<br />
Ohimè! non tanta fretta:<br />
aspetta, Ninfa, aspetta.<br />
Tirsi<br />
Oh come ratta fugge! ed è già lunge:<br />
veder vo’ s’ei la giunge.<br />
Amore<br />
Ve’ che ti giunsi al varco:<br />
Oh impara a disprezzar l’etate e l’arco!<br />
Pastore del Coro (III)<br />
Qui Fiton giacque estinto,<br />
trofeo d’Apollo; e qui trafitto il cuore<br />
pianse il gran vincitor, trofeo d’Amore.<br />
Amore<br />
Or su de l’alto Cielo<br />
mirin gli eterni Dei<br />
le glorie e i vanti miei;<br />
e voi quaggiù, mortali,<br />
celebrate il valor de gli aurei strali.<br />
Pastore del Coro (1)<br />
Altri celebri e canti,<br />
trofei del sommo Giove,<br />
le fulminate moli e i rei Giganti:<br />
io canterò d’Amor l’inclite prove.<br />
Coro<br />
Una al pianto in abbandono<br />
lagrimando uscì di vita,<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 72 ]<br />
humilde honro e venero,<br />
e só para as selvas<br />
ponho os dardos no arco:<br />
mas tu divertes-te a atrasar o meu caminho.<br />
Apolo<br />
Ah, não desdenhes que contigo<br />
aprecie também eu o doce prazer dos bosques;<br />
também eu sei esticar o arco, também eu atiro.<br />
E ainda há pouco aqui ensanguentou a erva,<br />
troféu desta mão, uma fera soberba.<br />
Dafne<br />
Serva de Diana, além do meu arco<br />
nada mais quero comigo. Inviolável lei<br />
manda que eu recuse um Deus por companhia.<br />
Apolo<br />
Ah, não! Não tenhas tanta pressa:<br />
espera, Ninfa, espera.<br />
Tirsi<br />
Oh, como veloz foge! E já vai longe:<br />
vou ver se ele a alcança.<br />
Cupido<br />
Vês como te atingi:<br />
Oh, aprende a respeitar a minha idade e o meu<br />
arco!<br />
Pastor do Coro (III)<br />
Aqui jaz Pitão extinto,<br />
troféu de Apolo; e ali, com o coração trespassado<br />
chora o grande vencedor, troféu de Cupido.<br />
Cupido<br />
Que agora do alto Céu<br />
vejam os eternos Deuses<br />
as glórias e os meus feitos;<br />
e vós, cá em baixo, mortais,<br />
exaltai o valor dos áureos dardos.<br />
Pastor do Coro (I)<br />
Outros exaltem e cantem,<br />
os troféus do sumo Júpiter,<br />
os corpos fulminados e os réus Gigantes:<br />
eu cantarei de Cupido as ínclitas proezas.<br />
Coro 7<br />
Uma delas partiu deste mundo<br />
chorando lágrimas de abandono,
che fu poi per gli antri udita<br />
ribombar, nud’ombra e suono:<br />
or qui più non ha perdono,<br />
più non soffre Amor irato<br />
l’impietà del core ingrato.<br />
Punto ‘l sen di piaga acerba<br />
da quell’armi ond’altri ancise,<br />
non pria fine al pianto ei mise<br />
che un bel fior si fe’ sull’erba.<br />
O beltà cruda e superba,<br />
non fia già ch’invan m’insegni<br />
come irato Amor si sdegni.<br />
Scena Quarta<br />
Amor trionfa della sua vittoria e si propone come prossima<br />
vittima la superba Dafne fuggente, che non vuole sentir parlare<br />
d’amore. Venere appare e viene a sapere dal figlio che<br />
ormai anche Apollo è stato colpito dalla sua freccia.<br />
Amore<br />
Qual de’ mortali o de’ celesti a scherno<br />
più recherassi Amore? Ah bella, ah fera,<br />
benchè fasciato gli occhi, io ben ti scerno.<br />
Ridi, ridi pur lieta, anima altera,<br />
vanne fastosa pur, vanne superba<br />
de le lagrime altrui, di tua bellezza.<br />
Ma quest’armi pungenti,<br />
quest’arco e queste piume<br />
rimira, e ti rammenta<br />
che fatto ho suspirar del cielo un Nume.<br />
Venere<br />
Figlio, dolce diletto<br />
del cor, de gli occhi miei,<br />
come sì lieto e baldanzoso sei?<br />
Dillo, bel pargoletto,<br />
dimmelo, Amor, che anch’io<br />
senta le gioie tue dentro’al cor mio.<br />
Amore<br />
Madre, di gemme e d’oro<br />
un bel carro m’appresta;<br />
ponmi su l’aurea testa<br />
nobil fregio d’onor, cerchio frondoso;<br />
vegganmi oggi gli Dei de l’alto cielo<br />
trionfar pomposo.<br />
Quel Dio, ch’intorno gira<br />
il carro luminoso,<br />
vinto da l’arco mio piange e sospira.<br />
e foi depois nas cavernas ouvida<br />
ecoar, privada de sombra e de som:<br />
para ele agora já não há perdão,<br />
mais não tolera Cupido irado<br />
a impiedade daquele coração ingrato.<br />
Atingido pelas mesmas armas<br />
com que outros antes feria,<br />
não teve fim o seu pranto<br />
sem que uma bela flor crescesse na erva.<br />
Ó beleza cruel e soberba,<br />
não seja em vão que alguém me ensine<br />
como é de Cupido irado o desdém.<br />
Quarta Cena<br />
Cupido festeja a sua vitória e propôe-se fazer sua<br />
próxima vítima a soberba Dafne fugitiva, que não<br />
quer ouvir falar de amor. Vénus aparece e fica<br />
saber pelo filho que também Apolo foi atingido<br />
pela sua flecha.<br />
Cupido<br />
Qual dos mortais ou das divindades quererá<br />
ainda escarnecer Cupido? Ah, bela, ah, orgulhosa,<br />
mesmo com os olhos vendados, eu bem te vejo.<br />
Ri, ri contente, alma altiva,<br />
ostenta ainda, insensível<br />
às lágrimas dos outros, a tua beleza.<br />
Mas estas armas pungentes,<br />
este arco e estas plumas 8<br />
contempla, e lembra-te<br />
que um Deus do Céu fiz suspirar.<br />
Vénus<br />
Filho, doce predilecto<br />
do coração, dos olhos meus,<br />
porque tão contente e orgulhoso estás?<br />
Diz-me, bela criança,<br />
diz-me, Cupido; que também eu<br />
sinta as tuas alegrias no meu coração.<br />
Cupido<br />
Mãe, de gemas e de ouro<br />
um belo carro me apresta;<br />
coloca na minha áurea cabeça<br />
nobre festão de honra, coroa frondosa;<br />
vejam-me hoje os Deuses do alto Céu<br />
triunfar com pompa.<br />
Aquele Deus, que à volta leva<br />
o carro luminoso,<br />
vencido pelo meu arco chora e suspira.<br />
[ 73 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCV III.
Venere<br />
Qual degl’Iddei del cielo<br />
de la faretra invitta<br />
non sentì dentr’al cor pungente telo?<br />
Io, che madre ti sono, ahi quanto, ahi quanto<br />
il molle sen traffita,<br />
e ‘n ciel e in terra ho lagrimato e pianto!<br />
Amore<br />
S’hai lagrimato e pianto, hai riso ancora.<br />
Dimmi, piangevi allora<br />
che del Fabro geloso<br />
non potesti schivar l’inganno ascoso?<br />
Venere<br />
Taci, taci, bel figlio;<br />
pur troppo, e tu lo sai,<br />
il mio bel viso allor si fe’ vermiglio:<br />
ma di tornare al Cielo è tempo ormai.<br />
Coro<br />
Non si nasconde in selva<br />
sì dispietata belva,<br />
nè su per l’alto polo<br />
spiega le penne a volo augel solingo,<br />
nè per le piagge ondose,<br />
tra le fere squamose alberga core<br />
che non senta d’amore.<br />
Arder miriam le piante<br />
l’una de l’altra amante,<br />
e gli elementi ancora<br />
bel foco arde e innamora, e’nsieme accorda:<br />
sol contro gli aurei strali<br />
i semplici mortali armano il core<br />
che non senta d’amore.<br />
Questi l’albe e le sere<br />
perde cacciando fere,<br />
e quei, s’al ciel ribomba<br />
di Marte altera tromba, a l’armi corre;<br />
altri la mente vaga<br />
di mortal fasto appaga e ‘ndura il core<br />
che non senta d’amore.<br />
Ma se d’un ciglio adorno<br />
mira le fiamme un giorno,<br />
o, pregio d’un bel volto,<br />
scherzar con l’aure sciolto un capel d’oro,<br />
già vinto ogni altro affetto.<br />
Prova ch’in uman petto non è core<br />
che non senta d’amore.<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 74 ]<br />
Vénus<br />
Qual dos Deuses do Céu<br />
da aljava invicta<br />
não sentiu já no coração pungente flecha?<br />
Eu, que sou tua mãe, ah, quanto, ah quanto,<br />
com o macio peito trespassado,<br />
no Céu e na terra não verti lágrimas e chorei!<br />
Cupido<br />
Se verteste lágrimas e choraste, ainda mais riste.<br />
Diz-me, choravas quando<br />
do Ferreiro 9 ciumento<br />
não conseguiste evitar a armadilha escondida?<br />
Vénus<br />
Cala-te, cala-te, querido filho;<br />
infelizmente, tu bem sabes<br />
como o meu belo rosto então enrubesceu.<br />
Mas agora é tempo de voltar ao Céu.<br />
Coro<br />
Não se esconde na selva<br />
tão insensível fera;<br />
nem no alto Céu<br />
estende as asas para o voo pássaro solitário;<br />
nem nas águas ondulosas,<br />
entre as feras escamosas, se alberga um coração<br />
que não sinta amor.<br />
Vemos plantas arder<br />
umas das outras amantes,<br />
e até os elementos<br />
o belo fogo une, e faz arder e enamorar:<br />
só os simples mortais<br />
armam contra os dardos dourados um coração<br />
que não sinta amor.<br />
Uns, as noites e as madrugadas<br />
perdem caçando feras;<br />
aqueles, se no céu ribomba<br />
de Marte a imperiosa trompa, às armas correm;<br />
outros, a mente concupiscente<br />
de mortal fausto sacia e endurece um coração<br />
que não sinta amor.<br />
Mas se de uns belos olhos<br />
vêem a chama um dia,<br />
ou, dote de um belo rosto,<br />
um louro cabelo solto brincar com a brisa,<br />
vencida já foi qualquer outra atracção.<br />
Prova de que num peito humano não há coração<br />
que não sinta amor.
Scena Quinta<br />
Il messaggero Tirsi annuncia alle ninfe ed ai pastori come<br />
Dafne in fugga, per non essere raggiunta da Apollo, si è<br />
trasformata davanti ai suoi occhi in un albero di alloro.<br />
Insieme deprecano il destino della bella ninfa.<br />
Tirsi<br />
Qual nuova meraviglia<br />
veduto han gli occhi miei?<br />
O sempiterni Dei,<br />
che per lo Ciel volgeste<br />
nostre sorti mortali o triste o liete,<br />
fu castigo o pietate<br />
cangiar l’alma beltate?<br />
Pastore del Coro (III)<br />
Pastor, deh narra a noi<br />
le nove meraviglie,<br />
che visto han gli occhi tuoi.<br />
Tirsi<br />
Non senza trar core<br />
lagrime di dolore<br />
udirete, Pastori,<br />
il destin de la bella cacciatrice<br />
purtroppo miserabile e ‘nfelice.<br />
Pastore del Coro (III)<br />
Di’ pur saggio Pastore,<br />
che non senza dolcezza<br />
lagrima per pietate un gentil core.<br />
Tirsi<br />
Quando la bella Ninfa,<br />
sprezzando i preghi del celeste amante,<br />
vidi che per fuggir movea le piante,<br />
da voi mi tolsi anch’io<br />
l’orme seguendo de l’acceso Dio.<br />
Ella, quasi cervetta<br />
che innanzi a crudo veltro il passo affretta,<br />
fuggia veloce, e spesso<br />
si volgeva a mirar se lungi o presso<br />
avea l’odiato amante;<br />
Ma, fatt’accorda omai<br />
ch’era ogni fuga in vano,<br />
i lagrimosi rai<br />
al ciel rivolse e l’una e l’altra mano,<br />
e ‘n lamentevol suono,<br />
ch’io non udii, ché troppo era lontano,<br />
sciolse la lingua: et ecco in un momento<br />
Quinta Cena<br />
O mensageiro Tirsi anuncia como viu Dafne, em<br />
fuga para não ser alcançada por Apolo, ser transformada<br />
em árvore de loureiro. Todos lamentam<br />
o destino da bela ninfa.<br />
Tirsi<br />
Que novo prodígio<br />
viram os meus olhos?<br />
Ó sempiternos Deuses,<br />
que no Céu decidis<br />
nosso mortal destino, triste ou alegre,<br />
foi por castigo ou piedade<br />
que transformastes a sublime beldade?<br />
Pastor do Coro (III)<br />
Pastor, ah, conta-nos<br />
os novos prodígios,<br />
que viram os teus olhos.<br />
Tirsi<br />
Não sem que ao coração<br />
assomem lágrimas de dor<br />
ouvireis, Pastores,<br />
o destino da bela caçadora<br />
infelizmente lastimável e infeliz.<br />
Pastor do Coro (III)<br />
Conta, mesmo assim, sábio Pastor,<br />
que não é sem sofrimento<br />
que chora por piedade um coração sensível.<br />
Tirsi<br />
Quando vi a bela Ninfa,<br />
desprezando as cortesias do celeste amante,<br />
empreender a fuga,<br />
de vós também eu me separei<br />
seguindo a sombra do inflamado Deus.<br />
Ela, qual corça,<br />
que fugindo a cruel galgo o passo acelera,<br />
fugia veloz, e muitas vezes<br />
se virava para ver se longe ou perto<br />
vinha o odiado amante;<br />
Mas, percebendo então<br />
que em vão fugia,<br />
os olhos chorosos<br />
e as mãos juntas ao céu levou,<br />
e um triste lamento,<br />
que estando muito longe não ouvi,<br />
soltou dos lábios: e eis que num momento<br />
[ 75 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
che l’uno e l’altro leggiadretto piede,<br />
che pur dianzi al fuggir parve aura o vento,<br />
fatto immobil si vede<br />
di salvatica scorza insieme avvinto.<br />
E le braccia e le palme al Ciel distese<br />
veste selvaggia fronde:<br />
le crespe chiome e bionde<br />
più non riveggo e ‘l volto e ‘l bianco petto;<br />
ma del gentile aspetto<br />
ogni sembianza si dilegua e perde;<br />
sol miro un arboscel fiorito e verde.<br />
Pastore del Coro (III)<br />
O miserabil caso, o destin rio!<br />
Che fe’, che disse allora<br />
l’innamorato Dio?<br />
Tirsi<br />
A l’alta novitate<br />
fermò repente il passo,<br />
e, confuso d’orrore e di pietate,<br />
restò per lungo spazio immobil sasso.<br />
Poscia a le fronde amate,<br />
levando gli occhi sospirosi e molli,<br />
stese le braccia e ‘l nobil tronco avvinse<br />
e mille volte ribaciollo e strinse.<br />
Piangean d’intorno le campagne e i colli,<br />
sospiravan pietosi e l’aure e i venti;<br />
et ei nel gran dolore<br />
sciogliea sì mesti accenti,<br />
ch’io sentii per pietà mancarmi il core.<br />
Pastore del Coro (III)<br />
Ahi dura, ahi ria novella!<br />
Mira, deh, Tirsi mio, che il Ciel ne piange,<br />
senti gli aurei lagnar tra’ secchi rami<br />
e le fere ulular per le campagne:<br />
odi, come piangendo ognun la chiami.<br />
Ninfa del Coro (II)<br />
Piangete, o Ninfe, e con voi pianga Amore;<br />
raccogliete le penne, aure celesti,<br />
e voi pietosi e mesti<br />
fermate il piè d’argento, o fonti, o fiumi;<br />
lagrimate ne l’alto eterni Numi.<br />
Due Pastori del Coro<br />
Sparse più non vedrem di quel fin oro<br />
le bionde chiome al vento;<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 76 ]<br />
os seus graciosos pés,<br />
que pouco antes pareciam brisa ou vento,<br />
imóveis se tornam,<br />
por selvagem casca envolvidos.<br />
Os braços e as mãos para o Céu estendidos<br />
vestem-se de bravia ramagem:<br />
a dourada cabeleira, o rosto<br />
e o branco seio deixo de ver;<br />
do seu belo aspecto<br />
toda a semelhança se dilui e perde;<br />
só distingo um arbusto florido e verde.<br />
Pastor do Coro (III)<br />
Ó lamentável caso, ó destino cruel!<br />
Que fez, que disse então<br />
o Deus enamorado?<br />
Tirsi<br />
Perante tal prodígio<br />
abrandou de repente o passo,<br />
e, confuso de horror e piedade,<br />
ficou por muito tempo imóvel como uma pedra.<br />
Depois, para o amado arbusto<br />
levantando os olhos suspirosos e humedecidos,<br />
estendeu os braços e o nobre tronco abraçou,<br />
e mil vezes o beijou e contra si apertou.<br />
A toda a volta choravam os campos e as colinas,<br />
suspiravam de piedade as brisas e os ventos;<br />
e ele, na sua grande dor,<br />
gemia tão tristes lamentos,<br />
que eu senti por piedade partir-se-me o coração.<br />
Pastor do Coro (III)<br />
Ai, que dura, ai, que terrível história!<br />
Ah, meu Tirsi, vê como o Céu por ela chora,<br />
ouve os pássaros piar nos ramos secos<br />
e as feras a uivar pelos campos:<br />
ouve como, chorando, todos a chamam.<br />
Ninfa do Coro (II) 10<br />
Chorai, ó Ninfas, e convosco chore Cupido;<br />
recolhei as asas, brisas celestes,<br />
e vós, ó fontes, ó rios,<br />
piedosos e tristes, detende o pé prateado;<br />
chorai lá no alto, eternos Deuses.<br />
Dois Pastores do Coro<br />
Ondular não mais veremos daquele fino ouro<br />
a loura cabeleira ao vento;
ahi! nè più s’udirà tra ‘l bel tesoro<br />
di perle e di rubin l’alto concento.<br />
Ahi! ch’ecclissato e spento<br />
È del ciglio seren l’almo splendore.<br />
Piangete, Ninfe, e con voi pianga Amore.<br />
Coro<br />
Piangete, Ninfe, e con voi pianga Amore.<br />
Dov’è il bel viso? Dov’è le bella man?<br />
Dov’è il bel seno? E dov’è il dolce riso,<br />
Dov’è del guardo il lampeggiar,<br />
Dov’è del guardo il lampeggiar sereno?<br />
Pastore del Coro (III)<br />
Ahi lagrime, ahi dolor!<br />
Piangete, Ninfe, e con voi pianga Amore.<br />
Coro<br />
Piangete, Ninfe, e con voi pianga Amore.<br />
Scena Sesta<br />
Apollo appare ai pastori e alle ninfe piangenti e compiange la<br />
metamorfosi dell’amata ninfa. Le ninfe e iI pastori pregano<br />
Amor di preservarli da un destino simile.<br />
Tirsi<br />
Ma, vedete lui stesso<br />
che verso noi se ‘n viene<br />
tutto carco di penne:<br />
deh, come fuor del luminoso volto<br />
traspare il duol c’ha dentr’al petto accolto!<br />
Apollo<br />
Dunque ruvida scorza<br />
chiuderà sempre la beltà celeste?<br />
Lumi, voi che vedeste<br />
l’alta beltà, che a lagrimar vi sforza,<br />
affisatevi pure in questa fronde:<br />
qui posa, e qui s’asconde<br />
il mio bene, il mio core, il mio tesoro,<br />
per cui, ben ch’immortal, languisco e moro.<br />
Tirsi<br />
Deh come invan s’affigge, invan si duole!<br />
Odilo, bella Dafne, e godi almeno,<br />
che le sventure tue lagrimi il Sole!<br />
Apollo<br />
Un guardo, un guardo appena,<br />
Un guardo appena, ahi lasso!<br />
ai!, nunca mais se ouvirá, qual belo tesouro<br />
de pérolas de de rubis, o canto divino.<br />
Ai! Que eclipsado, se apagou<br />
dos olhos serenos o gentil esplendor.<br />
Chorai, ó Ninfas, e convosco chore Cupido.<br />
Coro<br />
Chorai, ó Ninfas, e convosco chore Cupido.<br />
Onde está o belo rosto? Onde está a bela mão?<br />
Onde está o belo seio? E onde está o doce riso,<br />
Onde está daquele olhar o brilho,<br />
Onde está daquele olhar o brilho sereno?<br />
Pastor do Coro (III)<br />
Ai, lágrimas; ai dor!<br />
Chorai, ó Ninfas, e convosco chore Cupido.<br />
Coro<br />
Chorai, ó Ninfas, e convosco chore Cupido.<br />
Sexta Cena<br />
Apolo aparece aos pastores e às ninfas chorosos e<br />
lamenta a metamorfose da ninfa amada. As ninfas<br />
e os pastores suplicam a Cupido que os preserve<br />
de igual destino.<br />
Tirsi<br />
Mas, vede que ele mesmo<br />
para nós se dirige<br />
carregado de desgosto:<br />
ah, como daquele luminoso rosto<br />
transparece a dor que se aninhou no peito!<br />
Apolo<br />
Então uma casca grosseira<br />
encerrará para sempre a beldade celeste?<br />
Olhos, vós que vistes<br />
a divina beldade, que a chorar vos força,<br />
fixai-vos nesta folhagem:<br />
aqui jaz, e aqui se esconde<br />
o meu amor, o meu coração, o meu tesouro,<br />
por quem, sendo imortal, definho e morro.<br />
Tirsi<br />
Ah, como em vão se aflige; em vão se martiriza!<br />
Ouve-o, bela Dafne, e aprecia ao menos<br />
que as tuas desventuras chore o Sol!<br />
Apolo<br />
Um olhar, um só olhar,<br />
um só olhar, ai de mim,<br />
[ 77 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
Affissai ne la fronte alma e serena<br />
che disdegnosa, ohimè! Volgesti il passo.<br />
Semplicetta beltà, qual tema avesti!<br />
Ah, non sapevi ancora<br />
che offesa non pon far gli Dei celesti?<br />
Non mai nell’alto polo<br />
volgerò della luce il carro ardente,<br />
che misero e dolente<br />
gli occhi girando alle frondose chiome,<br />
non chiami mille volte il tuo bel nome.<br />
Ninfa sdegnosa e schiva,<br />
che fuggendo l’amor d’un Dio del Cielo,<br />
cangiasti in verde lauro il tuo bel velo,<br />
non fia però ch’io non t’onori et ami,<br />
ma sempre al mio crin d’oro<br />
faran ghirlanda le tue fronde e’ rami.<br />
Ma deh! se in questa fronde odi il mio pianto,<br />
senti la nobil cetra,<br />
quai doni a te dal Ciel cantando impetra:<br />
Non curi la mia pianta o fiamma o gelo,<br />
sian del vivo smeraldo eterni i pregi,<br />
nè l’offenda già mai l’ira del Cielo.<br />
I bei cigni di Dirce e i sommi Regi<br />
di verdeggianti rami al crin famoso<br />
portin, segno d’onor, ghirlande e fregi.<br />
Gregge mai nè Pastor fia che noioso<br />
del verde manto suo la spogli e prive:<br />
a la grat’ombra il dì lieto e gioioso<br />
traggan dolce cantando e Ninfe e Dive.<br />
Coro<br />
Bella Ninfa fuggitiva,<br />
sciolta e priva<br />
del mortal tuo nobil velo,<br />
godi pur pianta novela,<br />
casta e bella,<br />
cara al mondo, e cara al Cielo.<br />
Tu non curi e nembi, e tuoni;<br />
tu coroni<br />
cigni, Regi, e Dei celesti:<br />
geli il cielo o ‘nfiammi e scaldi,<br />
di smeraldi<br />
lieta ogn’or t’adorni e vesti.<br />
Godi pur de’ doni egregi;<br />
i tuoi pregi<br />
XIX Jorn adas Gulb en kian de <strong>Música</strong> An tiga [ 78 ]<br />
fixei na tua divina e serena fronte,<br />
que desdenhosa, ai de mim, te afastaste.<br />
Singela beleza, o que temeste?<br />
Ah, não sabias ainda<br />
que nenhum mal te podiam fazer os Deuses<br />
celestes?<br />
Nunca mais pelo alto Céu<br />
levarei da luz o carro luminoso,<br />
sem que, mísero e dolente,<br />
com os olhos percorrendo a tua farta cabeleira<br />
mil vezes invoque o teu belo nome.<br />
Ninfa desdenhosa e esquiva,<br />
que fugindo ao amor de um Deus do Céu,<br />
transformaste em verde louro o teu belo semblante,<br />
nem por isso deixarei de te honrar e amar,<br />
e para sempre no meu cabelo louro<br />
farão guirlanda a tua fronde e os teus ramos.<br />
Mas, ah! Se nesta fronde soar o meu pranto,<br />
ouve quais dádivas a minha nobre lira<br />
para ti cantando ao Céu exige:<br />
Não receie a minha planta o calor nem o frio,<br />
do verde esmeralda eternos sejam os seus dotes,<br />
nem jamais a atinja a ira do Céu.<br />
Que os belos cisnes de Dirce 11 e os sumos Reis<br />
tragam, sinal de honra, nos famosos cabelos<br />
guirlandas e festões de verdejantes ramos.<br />
Quem nem rebanho nem Pastor a importune,<br />
nem do seu verde manto a dispa e prive:<br />
na sua grata sombra o dia alegre e feliz<br />
passem as Ninfas e as Deusas,cantando docemente.<br />
Coro<br />
Bela Ninfa fugitiva,<br />
despojada e liberta<br />
do teu mortal e nobre véu;<br />
exulta, jovem planta,<br />
casta e bela,<br />
cara ao mundo e cara ao Céu.<br />
Não te importam nuvens nem trovões;<br />
tu coroas<br />
cisnes, Reis e Deuses celestes:<br />
gele o céu ou arda escaldante,<br />
de esmeraldas<br />
alegre te adornas sempre e vestes.<br />
Goza dessas excelsas dádivas;<br />
os teus dotes
non t’invidio e non desio:<br />
io se mai d’amor m’assale<br />
aureo strale,<br />
non vo’ guerra con un Dio.<br />
Se a fuggir movo le piante<br />
vero amante,<br />
contra amor cruda e superba,<br />
venir possa il mio crin d’auro<br />
non pur lauro,<br />
ma qual è più miser’erba.<br />
Sia vil canna mio crin biondo<br />
che l’immondo<br />
gregge ogn’or schianti e dirame;<br />
sia vil fien, ch’a i crudi denti<br />
de gli armenti<br />
tragga ogn’or l’avida fame.<br />
Ma s’a’ preghi sospirosi,<br />
amorosi,<br />
di pietà sfavillo ed ardo,<br />
s’io prometto a l’altrui pene<br />
dolce spene<br />
con un riso e con un guardo,<br />
Non soffrir, cortese Amore,<br />
che ‘l mio ardore<br />
prenda a scherno alma gelata,<br />
non soffrir ch’in piaggia o ‘n lido<br />
cor infido<br />
m’abbandoni innamorata.<br />
Fa’ ch’al foco de’ miei lumi<br />
si consumi<br />
ogni gelo, ogni durezza,<br />
ardi poi quest’alma allora<br />
ch’altra adora,<br />
qual si sia la mia bellezza.<br />
1 O Prólogo era habitualmente adaptado às circunstâncias da representação.<br />
A versão da representação em Mântua, que celebra as bodas de Francesco<br />
Gonzaga e Margarida de Savoia, contém referências (recados?) aos noivos,<br />
ao Duque Vincenzo Gonzaga e sua mulher, bem como aos rios Mincio e<br />
Arno que banham Mântua e Florença.<br />
2 Refere-se ao mito dos Titãs que, para escalar o Olimpo, sobrepuseram o<br />
monte Ossa ao Pelio.<br />
3 Refere-se a Neptuno.<br />
4 Refere-se a Narciso.<br />
5 Refere-se à ninfa Eco.<br />
6 É estranha a repetição deste coro, cujo sujeito era Narciso, quando se<br />
celebram as proezas de Apolo.<br />
não te invejo nem desejo:<br />
se do amor me atingisse<br />
o dardo dourado,<br />
não ia querer guerra com um Deus.<br />
Se para fugir de um vero amante<br />
os meus pés eu mover,<br />
cruel e soberba, repelindo o amor,<br />
possa a minha cabeleira dourada<br />
transformar-se, não em louro,<br />
mas na mais miserável erva.<br />
Seja vil planta o meu cabelo louro<br />
que o mais imundo<br />
rebanho desfolhe e espezinhe;<br />
seja vil feno, que aos cruéis dentes<br />
das manadas<br />
tire sempre a ávida fome.<br />
Mas se às súplicas suspirantes,<br />
amorosas,<br />
com piedade correspondo e ardo,<br />
se, com um sorriso e um olhar,<br />
doces esperanças prometo<br />
ao sofrimento de alguém,<br />
Não permitas, gentil Cupido,<br />
que do meu ardor<br />
troce alma gelada;<br />
não permitas que na margem ou na colina<br />
um coração infiel<br />
me abandone enamorada.<br />
Faz com que ao fogo dos meus olhos<br />
se dissipe<br />
da alma adorada<br />
o gelo e a dureza,<br />
e que esta por mim arda,<br />
qualquer que seja a minha beleza.<br />
Ottavio Rinuccini (trad. de António Jorge Pacheco)<br />
7 Também aqui se estranha a repetição de um coro que invoca Narciso e a<br />
ninfa Eco.<br />
8 Cupido usava dois tipos de setas: douradas, com plumas de pombo, para<br />
despertar a paixão; de chumbo, com plumas de coruja, para a indiferença.<br />
9 Refere-se a Vulcano. Este, sabendo que Vénus, sua mulher, o atraiçoava<br />
com Marte, apanhou-os no leito onde eles se deitavam com uma rede que<br />
ele mesmo fabricou.<br />
10 As “asas das brisas celestes” e “o pé prateado das fontes e dos rios”,<br />
parecem-nos metáforas demasiado improváveis para um poeta como<br />
Rinuccini, indício de mão estranha. De facto, na edição da “Ricciardi”, não<br />
consta este nem outros trechos do libreto utilizado por Gagliano.<br />
11 Os poetas. A fonte de Rinuccini é certamente Horácio, que chama a<br />
Píndaro “cisne de Dirce”.<br />
[ 79 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
Nasceu em Lisboa em 1943. Tangedor de<br />
instrumentos antigos de corda dedilhada e<br />
musicólogo. Estudou no Conservatório Nacional<br />
de Lisboa com Mestre Emílio Pujol e com o<br />
Professor Macario Santiago Kastner. Como bolseiro<br />
da <strong>Fundação</strong> <strong>Calouste</strong> <strong>Gulbenkian</strong>, especializou-se<br />
em Espanha e, de1968 a 1972, na Schola<br />
Cantorum de Basileia, com o Professor Eugen M.<br />
Dombois. Estudou também Musicologia com o<br />
Professor Raymond Meylan, da Universidade de<br />
Zurique.<br />
É colaborador regular da Comissão de<br />
Musicologia da <strong>Fundação</strong> <strong>Calouste</strong> <strong>Gulbenkian</strong>,<br />
tendo nessa qualidade participado na investigação,<br />
inventariação, catalogação e publicação de música<br />
portuguesa dos séculos XVI a XIX. Publicou todo<br />
o corpus actualmente conhecido dos nossos cancioneiros<br />
poético-musicais quinhentistas, nomeadamente<br />
os Cancioneiros de Elvas (Biblioteca<br />
Pública, fundo Públia Hortênsia), de Lisboa<br />
(Biblioteca Nacional, fundo Ivo Cruz), de Paris<br />
(Biblioteca da Escola Nacional Superior de Belas<br />
Artes, fundo Masson) e de Belém (Museu de<br />
Etnologia).<br />
É fundador e director dos Segréis de Lisboa,<br />
agrupamento especializado na interpretação da<br />
<strong>Música</strong> Antiga, particularmente na recuperação do<br />
reportório português e espanhol dos séculos XIII<br />
ao XIX. Em 1991 este grupo foi agraciado com a<br />
Medalha de Mérito Cultural da Secretaria de<br />
Estado da Cultura.<br />
Tem realizado inúmeros concertos em<br />
Portugal e no estrangeiro, tendo-se já apresentado<br />
em quase todos os países da Europa, nos Estados<br />
Unidos, no Brasil, na República Popular da China<br />
e na Índia. Gravou para a RTP, RDP, Radio<br />
France, Radiodifusion Belge e para as companhias<br />
discográficas Philips, Erato, EMI/Valentim de<br />
Carvalho, Polygram e Movieplay.<br />
Manuel Morais<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 80 ]<br />
Desde 1972 é professor no Conservatório<br />
Nacional de Lisboa e tem ainda participado como<br />
docente nos Cursos de <strong>Música</strong> Barroca e Rocócó<br />
do Escorial (Espanha), nas Semanas de <strong>Música</strong><br />
Antiga Ibérica e nos Cursos Internacionais de<br />
<strong>Música</strong> Portuguesa. O seu reportório abrange: no<br />
Alaúde e instrumentos similares, o Renascimento<br />
e o Maneirismo, na Viola de Cinco Ordens, o<br />
Barroco; e na Viola Romântica (ou Francesa) os<br />
séculos XVIII e XIX.<br />
Manuel Morais tem desenvolvido em<br />
Portugal uma actividade pioneira na expansão da<br />
<strong>Música</strong> Antiga, particularmente do reportório dos<br />
séculos XIII ao XIX, bem como na prática dos<br />
instrumentos antigos de corda dedilhada. A sua<br />
acção tem-se dividido entre a pedagogia, a execução,<br />
a investigação e a publicação no domínio<br />
da Musicologia.
Segréis de Lisboa<br />
Fundado em 1972 pelo alaudista e musicólogo<br />
Manuel Morais, o grupo Segréis de Lisboa é<br />
constituído por uma formação variável de cantores<br />
e instrumentistas cuja preocupação essencial se<br />
traduz em fazer reviver a <strong>Música</strong> Antiga com a<br />
maior autenticidade, fundamentando-se nos conhecimentos<br />
musicológicos, históricos e estilísticos<br />
presentemente disponíveis e recorrendo a instrumentos<br />
originais ou a cópias modernas destes últimos.<br />
O exaustivo trabalho de investigação desenvolvido<br />
pelo agrupamento compreende o estudo e<br />
prática das notações e ornamentações de cada<br />
período, bem como das respectivas técnicas<br />
históricas de execução, baseando-se nos tratados<br />
originais e, nalguns casos, no resultado do estudo<br />
da música tradicional ibérica, num esforço de permanente<br />
criatividade. Ainda que com um<br />
reportório muito diversificado, os Segréis de<br />
Lisboa visam, principalmente, com o seu trabalho,<br />
a recuperação da música portuguesa e espanhola<br />
dos séculos XIII ao XIX.<br />
O grupo realizou inúmeros concertos e<br />
gravações radiofónicas e televisivas, tanto em<br />
Portugal como noutros países da Europa. As suas<br />
digressões internacionais levaram-no igualmente<br />
aos Estados Unidos, ao Extremo oriente e à Índia.<br />
Tem participado em Festivais de <strong>Música</strong> Antiga<br />
como o de Saints (França), o Musica Antiqua<br />
Europae Orientalis (Bydgoszcz, Polónia) e as<br />
Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga, nas quais<br />
colabora regularmente. Nas suas mais recentes<br />
digressões internacionais a qualidade dos Segréis<br />
de Lisboa tem sido unanimemente reconhecida<br />
pelo público e pela crítica especializada, sendo de<br />
destacar as referências elogiosas do New York<br />
Times à apresentação do agrupamento na<br />
Columbia University (The Kathryn Bache Miller<br />
Theater) de Nova Iorque e o sucesso alcançado<br />
nos concertos realizados no âmbito da Europália e<br />
do Festival de Utrecht.<br />
Em 1991 o grupo foi agraciado com a Medalha<br />
de Mérito Cultural da Secretaria de Estado da<br />
Cultura.<br />
A qualidade dos Segréis de Lisboa tem sido<br />
alvo de distinção também pela atribuição de um<br />
C h o c da Revista Le Monde de la Musique (N.º 201,<br />
Julho-Agosto de 1996) ao disco <strong>Música</strong> Maneirista<br />
Portuguesa - Cancioneiro Musical de Belém. Na sua<br />
discografia destacam-se ainda os CDs: M ú s i c a<br />
Ibérica da Idade Média e do Renascimento (EMI /<br />
Valentim de Carvalho), A <strong>Música</strong> no Tempo de Camões<br />
(EMI/Valentim de Carvalho), La Portingaloise:<br />
<strong>Música</strong> no Tempo dos Descobrimentos ( M o v i e p l a y ) ,<br />
<strong>Música</strong> de Salão no Tempo de D. Maria I ( M o v i e p l a y ) ,<br />
Modinhas e Lunduns dos Séculos XVIII e XIX<br />
(Movieplay), Saudade, Amor e Morte nos Cancioneiros<br />
dos Séculos XV ao XVIII (Polygram), <strong>Música</strong> Sacra de<br />
João de Sousa Carvalho, José Joaquim dos Santos e Luciano<br />
Xavier dos Santos (Com o Coro de Câmara da<br />
Universidade de Salamanca; Movieplay) e M ú s i c a<br />
no Tempo de D. João V: Cantatas Humanas a Solo e a Duo<br />
(Movieplay).<br />
[ 81 ] Li sboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
Coro <strong>Gulbenkian</strong><br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 82 ]<br />
Fundado em 1964, o Coro <strong>Gulbenkian</strong> conta<br />
presentemente com uma formação sinfónica de<br />
cerca de 100 cantores, actuando igualmente em<br />
grupos vocais reduzidos, conforme a natureza das<br />
obras a executar. Assim, o Coro <strong>Gulbenkian</strong> tanto<br />
pode apresentar-se como grupo a cappella, o que<br />
tem acontecido regularmente para a interpretação<br />
de polifonia portuguesa dos séculos XVI e XVII,<br />
como colaborar com a Orquestra <strong>Gulbenkian</strong> para<br />
a execução de obras coral-sinfónicas do repertório<br />
clássico e romântico. Na música do século XX,<br />
campo em que é particularmente conhecido, tem<br />
interpretado, e frequentemente estreado, inúmeras<br />
obras contemporâneas de compositores portugueses<br />
e estrangeiros. Tem sido igualmente convidado<br />
para colaborar com as mais prestigiadas orquestras<br />
mundiais, na execução de grandes obras como A<br />
Criação de Haydn e a Nona Sinfonia de Beethoven<br />
(Orquestra do Século XVIII / Frans Brüggen), a<br />
Missa Solemnis de Beethoven (Orquestra Sinfónica<br />
de Baden-Baden / Michael Gielen), as Segunda,<br />
Terceira e Oitava Sinfonias de Mahler (Filarmónica<br />
de Berlim / Claudio Abbado; Filarmónica<br />
de Londres / Franz Welser-Möst; Sinfónica de<br />
Viena / Rafael Frübeck de Burgos; Filarmónica<br />
Checa / Gerd Albrecht), A Danação de Fausto d e<br />
Berlioz (Filarmónica de Strasburgo / Theodor<br />
Guschlbauer e Concertgebouw de Amesterdão /<br />
Colin Davis), ou Daphnis et Chloé de Ravel<br />
(Filarmónica de Monte-Carlo / Emmanuel<br />
Krivine).<br />
Para além da sua apresentação na temporada<br />
de concertos da <strong>Fundação</strong>, em Lisboa, e das suas<br />
digressões pelo país, o Coro <strong>Gulbenkian</strong> tem actuado<br />
em numerosas cidades de Espanha, França,<br />
Itália, Hungria, Canadá, Iraque, Índia, Macau e<br />
Japão. Em 1991, apresentou-se em várias cidades<br />
da Bélgica, no quadro do Festival Europália, e<br />
deslocou-se a Israel para uma série de actuações<br />
com a Orquestra de Câmara de Israel (Tel Aviv,<br />
Carmiel, Haifa e Jerusalém). Em 1992, uma
digressão em várias cidades da Holanda e da<br />
Alemanha com a Orquestra do Século XVIII deu<br />
origem à gravação ao vivo da Nona Sinfonia de<br />
Beethoven, que foi incluída na edição integral das<br />
sinfonias de Beethoven que Frans Brüggen realizou<br />
para a Philips. Em 1993, o Coro <strong>Gulbenkian</strong><br />
teve a honra de acompanhar o então Presidente da<br />
República, Doutor Mário Soares, numa visita oficial<br />
ao Reino Unido. Deslocou-se em seguida ao<br />
Brasil, e foi convidado pela Orquestra Filarmónica<br />
de Monte-Carlo para a realização de um concerto,<br />
a convite de S.A.R. o Príncipe Rainier do<br />
Mónaco. Nesse mesmo ano, actuou ainda em<br />
Lyon, Estrasburgo e Mulhouse, com a Orquestra<br />
Nacional de Lyon (A Transfiguração de Messiaen).<br />
Em 1994, deslocou-se a Budapeste com a<br />
Orquestra <strong>Gulbenkian</strong>, e efectuou uma segunda<br />
digressão com Frans Brüggen e a Orquestra do<br />
Século XVIII, actuando em Itália, França,<br />
Holanda e Portugal (A Criação de Haydn). No ano<br />
seguinte, apresentou-se na Índia com quatro concertos<br />
a cappella, realizando uma digressão no Brasil,<br />
Argentina e Uruguai, com a Orquestra <strong>Gulbenkian</strong>,<br />
sob a direcção de Michel Corboz (E l i a s<br />
de Mendelssohn). Ainda em 1995, nove concertos,<br />
com a Orquestra do Século XVIII (Nona<br />
Sinfonia de Beethoven) levaram o Coro <strong>Gulbenkian</strong><br />
a oito cidades do Japão. Em Junho de 1997,<br />
apresentou-se com esta mesma orquestra dirigida<br />
por Frans Brüggen em concertos realizados em<br />
diversas cidades europeias, incluindo uma participação<br />
no Festival Eurotop de Amesterdão (Sonho de<br />
Uma Noite de Verão de Mendelssohn). Ainda em<br />
Novembro de 1997, teve o privilégio de acompanhar<br />
Sua Excelência o Presidente da República,<br />
Doutor Jorge Sampaio, na visita oficial à Holanda<br />
a convite de Sua Majestade a Rainha Beatriz da<br />
Holanda, tendo actuado na cidade de Leiden. Para<br />
a temporada de 1998-1999, para além de dois<br />
concertos realizados no âmbito do Festival Veneto<br />
com a Orquestra I Solisti Veneti, em Pádua e<br />
Verona, estão previstas várias actuações, em Israel,<br />
na Holanda e em vários festivais da Europa.<br />
O Coro <strong>Gulbenkian</strong> tem gravado para as editoras<br />
Philips, Archiv-Deutsche Grammophon,<br />
Erato, Cascavelle, Musifrance, FNAC-Music e<br />
Aria-Music, interpretando um repertório diversificado<br />
que inclui música portuguesa do século XVI<br />
aos nossos dias, Beethoven e Xenakis, entre outros.<br />
Algumas destas gravações receberam prémios<br />
internacionais, tais como o Prémio Berlioz, da<br />
Academia Nacional Francesa do Disco Lírico, o<br />
Grande Prémio Internacional do Disco, da<br />
Academia Charles Cros, ou o Orfeu de Ouro,<br />
entre outros.<br />
Desde 1969 Michel Corboz é o Maestro Titular<br />
do Coro, sendo as funções de Maestro Adjunto e<br />
as de Maestro Assistente desempenhadas, respectivamente,<br />
por Fernando Eldoro e Jorge Matta.<br />
[ 83 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
Domingo, Dia 1 1<br />
XIX Jornadas Gulben kian de <strong>Música</strong> Antiga [ 84 ]
Academia das Ciências de Lisboa, 2 1 . 3 0<br />
ÁRIAS, CANÇÕES E DANÇAS TEATRAIS<br />
DE HENRY PURCELL (1659 - 1695)<br />
Be welcome then, great Sir<br />
How long, great God<br />
With him he brings<br />
Suite de A b d e l a z e r (Rondeau - Air - Air - Hornpipe - Air)<br />
What shall I do to show how much I love her?<br />
Since from my dear Astrea’s sight<br />
Sonata em Sol menor (Adagio - Allegro - Largo - Vivace)<br />
Here the deities approve<br />
I n t e r v a l o<br />
Love’s Goddess sure was blind<br />
Chaconne em Sol menor<br />
The fatal hour comes on<br />
The pale and the purple rose<br />
Suite de The Fairy Queen (Prelude - Hornpipe - Rondeau - Chaconne)<br />
Not all my torments<br />
Britain, thou now art great<br />
Fairest Isle<br />
THE KING’S CONSORT<br />
Pavlo Beznosiuk V i o l i n o<br />
Lucy Howard V i o l i n o<br />
Rachel Byrt V i o l a<br />
Katherine Sharman Baixo de Violino<br />
Richard Campbell Baixo de Violino<br />
Paula Chateauneuf T e o r b a<br />
James Bowman C o n t r a t e n o r<br />
Robert King Órgão, Cravo e Direcção<br />
[ 85 ] Li sboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
A História da música dramática em<br />
Inglaterra, vista no seu conjunto, está marcada pela<br />
irregularidade e pela inexistência de escolas, mas<br />
paradoxalmente foi de lá que vieram algumas das<br />
referências incontornáveis para o género. Esta<br />
História teve o seu primeiro capítulo com Henry<br />
Purcell (1659-1695), depois com Georg Friedrich<br />
Händel (1685-1759) compositor de origem<br />
alemã que se naturaliza inglês e se torna num dos<br />
principais responsáveis pela importação dos modelos<br />
operáticos italianos para Inglaterra. Já no<br />
Século XX, Benjamin Britten (1913-1976) representa<br />
um capítulo final da ópera britânica. Os factores<br />
que à partida terão determinado este quadro<br />
relacionaram-se porventura com a ligação privilegiada<br />
do público inglês ao teatro, a sua relutância<br />
em importar produtos culturais estrangeiros (no<br />
caso a ópera italiana), e ainda as vagas de puritanismo<br />
cultural impostas pela política de<br />
Cromwell, que obrigariam ao encerramento dos<br />
teatros.<br />
XIX Jorn adas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> An tiga [ 86 ]<br />
ÁRIAS, CANÇÕES E DANÇAS TEATRAIS<br />
Em concreto, a produção de música de cena<br />
por parte de Henry Purcell foi fortemente condicionada<br />
por circunstâncias conjunturais, nomeadamente<br />
a reabertura dos teatros em Londres com a<br />
Restauração de Carlos II no trono de Inglaterra<br />
em 1660. Como se pode imaginar, verificou-se<br />
uma espécie de reflorescimento da actividade<br />
teatral para corresponder às expectativas de um<br />
público sedento de voltar ao teatro num país com<br />
tão fortes tradições neste domínio. Tal como se<br />
tornara prática desde o séc. XVI, podia introduzir-se<br />
música vocal e instrumental em quantidade<br />
muito significativa ao longo das peças<br />
teatrais, já que a verdade é que a ópera, tal como<br />
era concebida no continente – definindo-se como<br />
drama exclusivamente cantado –, não era bem<br />
aceite em Inglaterra. Por volta de 1660 houve<br />
vários planos para introduzir a ópera italiana em<br />
Londres, mas estes não foram bem sucedidos.<br />
Desta feita, é compreensível que um compositor<br />
particularmente dotado para a exploração do sentido<br />
dramático da música, como é o caso de<br />
Purcell, se tenha dedicado à produção de música<br />
para teatro. É mesmo muito provável que tenha<br />
sido sobretudo graças a esta vertente da sua produção<br />
que o seu nome se foi tornando popular<br />
para um público que pouco sabia de música sacra,<br />
ou que não tinha acesso às suas odes para a Corte.<br />
Considere-se ou não a conjuntura política e<br />
cultural, a verdade é que o processo de transição<br />
de Purcell do teatro para a ópera decorreu de<br />
forma natural, alheia a teorizações ou planos de<br />
intenções e motivada, apenas e somente, por um<br />
aprofundamento da comunicação de emoções, da<br />
sua dramatização em música. Com um enorme<br />
grau de liberdade – porventura só comparável a<br />
um Claudio Monteverdi ou a um Heinrich Schütz<br />
– Henry Purcell usou indiferenciadamente procedimentos<br />
composicionais antigos e modernos, e<br />
sobretudo ousou experimentar, orientando-se apenas<br />
pelo seu apurado sentido dramático. É certo
DE HENRY PURCELL<br />
por Vanda de Sá<br />
que escreveu apenas uma ópera, Dido and Aeneas<br />
(1689), sobre um libreto pouco conseguido da<br />
autoria de Nahum Tate e ainda por cima de curta<br />
extensão, mas ninguém negará que se trata de uma<br />
verdadeira obra-prima na história da música<br />
dramática. Após esta incursão isolada pelo teatro<br />
cantado, que enquanto género estava longe de conhecer<br />
uma plena aceitação em Inglaterra, Purcell<br />
dedicou-se sobretudo a um género híbrido, a semiópera.<br />
Aqui a acção associada às personagens principais<br />
era apresentada por meio de representação<br />
teatral, dando-se espaço ao teatro cantado através<br />
das personagens secundárias que protagonizam<br />
cenas musicais de extensão considerável, podendo<br />
detectar-se o cruzamento das mais recentes inovações<br />
italianas neste domínio com a herança da<br />
masque inglesa. Este tipo de produções conheceram<br />
um considerável investimento em termos de<br />
cenografia e figurinos, cultivando-se sobretudo em<br />
finais do século XVII, embora em número limitado.<br />
Henry Purcell deixou-nos um total de cinco<br />
semi-óperas: The Dioclesian ( 1 6 9 0 ), The Fairy Queen<br />
( 1 6 9 2 ), The Tempest ( c a . 1 6 9 5 ), The Indian Queen<br />
(1695) e King Arthur (1691) a única com um libreto<br />
especificamente escrito para o efeito da autoria<br />
de John Dryden, já que as restantes quatro foram<br />
adaptações de peças já existentes. A verdade é que<br />
até praticamente ao início do século XVIII quase<br />
todas as ditas “óperas” montadas em Inglaterra se<br />
baseavam em peças de teatro já existentes, às quais<br />
se adicionavam episódios musicais e efeitos cénicos<br />
muito elaborados. Este compromisso de uma<br />
peça teatral com cenas musicais espectaculares era<br />
no fundo a ideia de ópera apreciada pelo público<br />
inglês.<br />
Apesar de Henry Purcell ser hoje um compositor<br />
justamente reconhecido como um dos<br />
maiores génios do período barroco, o facto é que a<br />
sua música ainda não se impôs totalmente no<br />
reportório consagrado, excepção feita à sua ópera<br />
Dido and Aeneas, à Ode para o Dia de Santa Cecília<br />
(1683) ou à <strong>Música</strong> Fúnebre para a Rainha D. Maria.<br />
Demasiado esquecida é a sua música instrumental,<br />
sobretudo para viola da gamba, que se constitui<br />
como uma das mais geniais súmulas do pensamento<br />
musical do seu tempo. O aspecto mais fascinante<br />
do conjunto da produção de Henry Purcell<br />
reside decerto na sinceridade e investimento com<br />
que aborda os mais diferentes géneros. Dele ficounos<br />
alguma da mais pungente música sacra do seu<br />
tempo, mas também algumas das páginas mais<br />
sérias no domínio do fausto protocolar das obras<br />
de circunstância para a Corte. Mas foi ainda<br />
Purcell quem desbravou o caminho para a afirmação<br />
da ópera em língua inglesa, devendo-se-lhe<br />
também aquele que constitui o derradeiro testemunho<br />
da tradição da “Consort Music” britânica<br />
para violas da gamba, nomeadamente, as suas<br />
Fantasias. Em qualquer uma das facetas desta variada<br />
produção podem encontrar-se elementos de<br />
uma escrita verdadeiramente pessoal e original, que<br />
reside numa singular aliança entre um registo popular,<br />
uma tradição inglesa anterior ao seu tempo,<br />
mas sobretudo uma veia de expressão nostálgica.<br />
[ 87 ] Li sboa, 6 a 1 4 Outub ro MCMXCVIII.
HENRY PURCELL<br />
Be welcome then, great Sir<br />
Be welcome then great Sir, to constant<br />
vows<br />
of loyalty never to vary more.<br />
Welcome to all that obedience owes<br />
to a Prince so mild and gentle in pow’ r.<br />
How long, great God<br />
How long, great God, must I<br />
immured in this dark prison lie?<br />
Where, at the gates and avenues of sense,<br />
my soul must watch to have intelligence,<br />
where but faint gleams<br />
of thee salute my sight,<br />
like doubtful moonshine in a cloudy night.<br />
When shall I leave this magic sphere,<br />
and be all mind, all eye, all ear?<br />
How cold this clime! And yet my sense<br />
perceives ev’ n here thy influence,<br />
ev’ n here thy strong magnetic charms I feel,<br />
and pant and tremble like the amorous steel;<br />
To lower good, and beauties<br />
not divine,<br />
sometimes my erroneous needle does decline;<br />
but yet, so strong the sympathy,<br />
it turns and points again to thee.<br />
I long to see this excellence<br />
which at such distance stricks my sense;<br />
My impatient soul struggles to disengage<br />
her wings from the confinement of her cage.<br />
Would’ st thou, great love,<br />
this pris’ ner once set free,<br />
how would she hasten to be link’ d to thee.<br />
She’ d for no angel’ s conduct stay,<br />
but fly, and love on all the way.<br />
XIX Jo rnadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 88 ]<br />
Árias, canções<br />
Sede pois bem vindo, Grande Senhor<br />
Sede pois bem vindo, grande Senhor, aos votos<br />
constantes<br />
de lealdade que nunca esmorecerão.<br />
Bem vindo a todos os que devem obediência<br />
a um Príncipe de poder tão ameno e doce.<br />
Por quanto tempo, Senhor<br />
Por quanto tempo, Senhor, terei eu<br />
de jazer emparedado nesta escura prisão?<br />
Aqui onde, nas grades e avenidas da razão,<br />
a minha alma tem de estar atenta para discernir,<br />
onde a minha visão só consegue saudar<br />
imagens esbatidas da tua presença<br />
como o luar incerto numa noite enevoada.<br />
Quando poderei deixar esta esfera mágica,<br />
e ser todo eu espírito, olhos e ouvidos?<br />
Quão frio é este clima! E, no entanto,<br />
consigo mesmo aqui sentir a vossa influência,<br />
os vossos poderosos encantos magnéticos,<br />
e fico ofegante e tremo como a lâmina<br />
enamorada.<br />
Para a bondade menor menores e para belezas<br />
não divinas,<br />
por vezes se vira a minha errante agulha;<br />
mas no entanto, tão grande é a empatia,<br />
que se volta e aponta, de novo, para vós.<br />
Anseio por ver a excelência<br />
que, a tanta distância, me atinge a razão;<br />
A minha alma impaciente debate-se para libertar<br />
as suas asas da prisão da sua gaiola.<br />
Se alguma vez, grande amor, libertasses este<br />
prisioneiro,<br />
ele apressar-se-ia a prender-se de novo a ti.<br />
Nem uma escolta de anjos o faria ficar,<br />
mas fugiria, e amaria para sempre.
e danças teatrais<br />
With him he brings<br />
With him he brings the partner of his throne,<br />
that brighter jewel than a crown,<br />
in whom does triumph each commanding grace<br />
an angel mien and matchless face.<br />
There beauty its whole artillery tries<br />
whilst he who ever kept the<br />
field<br />
gladly submits, is proved to yield<br />
and fall the captive of her conquering eyes.<br />
What shall I do to show<br />
how much I love her?<br />
What shall I do to show how much I love her?<br />
How many millions of sighs can suffice?<br />
That which wins others’ hearts<br />
never can move her:<br />
those common methods of love she’ ll despise.<br />
I will love more than man e’ er<br />
loved before me,<br />
gaze on her all the day and melt all the<br />
night,<br />
till for her own sake at last she’ ll<br />
implore me<br />
to love her less to preserve our delight.<br />
Since gods themselves could not ever<br />
be loving,<br />
men must have breathing recruits for new<br />
joys;<br />
I wish my love could be ever improving,<br />
though eager love, more than<br />
sorrow destroys.<br />
In fair Aurelia’ s arms leave me expiring,<br />
to be embalm’ d by the sweets of her breath;<br />
to the last moment I’ ll still be desiring;<br />
never had hero so glorious a death.<br />
Ele traz consigo<br />
Ele traz consigo a companheira do seu trono,<br />
aquela jóia mais cintilante que uma coroa,<br />
em quem cada encanto imperial triunfa<br />
um porte de anjo e face sem igual.<br />
Nela a beleza usa todas as suas armas<br />
enquanto que aquele que sempre cuidou<br />
do seu campo<br />
alegremente se submete, e é certo que cederá<br />
e cairá, cativo dos seus olhos conquistadores.<br />
Que devo fazer para mostrar<br />
quanto a amo?<br />
Que devo fazer para mostrar quanto a amo?<br />
Quantos milhões de suspiros bastarão?<br />
O que conquista outros corações<br />
nunca a comoverá:<br />
Ela desprezará os métodos comuns do amor .<br />
Eu amarei mais do que qualquer homem jamais<br />
amou,<br />
olharei para ela todo o dia e derreter-me-ei toda<br />
a noite,<br />
até que, para seu próprio bem, ela me há-de<br />
implorar,<br />
que a ame menos para manter o nosso deleite.<br />
Uma vez que os próprios deuses nunca poderão<br />
amar,<br />
os homens só podem ter novas alegrias com<br />
outros mortais;<br />
Desejava que o meu amor fosse cada vez maior,<br />
apesar do amor ávido destruir mais do que os<br />
sofrimentos.<br />
Deixai-me expirar nos belos braços de Aurelia,<br />
e ser perfumado pela doçura do seu hálito;<br />
desejá-la-ei até ao último momento;<br />
e nunca um herói terá tido morte tão gloriosa.<br />
[ 89 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
Since from my dear Astrea’ s sight<br />
Since from my dear Astrea’ s sight<br />
I was so rudely torn,<br />
my soul has never known<br />
delight,<br />
unless it were to mourn.<br />
But oh! alas, with weeping eyes,<br />
and bleeding heart I lie;<br />
Thinking on her whose absence ‘ tis,<br />
that makes me wish to die.<br />
Here the deities approve<br />
Here the deities approve<br />
the God of Music and of Love;<br />
All the talents they have lent you,<br />
all the blessings they have sent you,<br />
pleas’ d to see what they bestow,<br />
live and thrive so well below.<br />
Love’ s Goddess sure was blind this day<br />
Love’ s Goddess sure was blind this day,<br />
thus to adorn her greatest foe,<br />
and Love’ s artillery betray<br />
to one that would her realm o’ erthrow.<br />
The fatal hour comes on<br />
The fatal hour comes on apace,<br />
which I had rather die than see,<br />
for when fate calls you from this place,<br />
you go to certain misery.<br />
The thought does stab me to the heart,<br />
and gives me pangs no word<br />
can speak,<br />
it wracks me in each vital part,<br />
sure when you go, my heart<br />
will break.<br />
Since I for you so much endure,<br />
may I not hope you will believe,<br />
that you alone these wounds can cure,<br />
which are the fountains of my grief.<br />
The pale and the purple rose<br />
The pale and the purple rose,<br />
that after cost so many blows<br />
when English Barons fought,<br />
a prize so dearly bought<br />
by the fam’ d worthies of that shire,<br />
still best by sword and shield defended were.<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 90 ]<br />
Desde que fui espulso<br />
Desde que fui tão rudemente expulso<br />
da companhia da minha querida Astreia<br />
que a minha alma nunca mais conheceu<br />
a felicidade,<br />
a não ser a felicidade da lamentação.<br />
Mas, oh!, eis que, de olhos chorosos,<br />
e coração sangrando jazo;<br />
Pensando naquela cuja ausência<br />
me faz querer morrer.<br />
Aqui as divindades aprovam<br />
Aqui as divindades aprovam<br />
o Deus da <strong>Música</strong> e do Amor;<br />
Emprestaram-te todos os talentos,<br />
e todas as bênçãos te enviaram,<br />
agradados de ver que as suas dádivas,<br />
vivem e medram tão bem cá em baixo.<br />
A Deusa do Amor era decerto cega<br />
A Deusa do Amor era decerto cega,<br />
para assim adornar o seu pior inimigo,<br />
e as armas do Amor entregar<br />
àquele que lhe destruiria o reino.<br />
A hora fatal chega<br />
A hora fatal chega, expedita,<br />
e eu antes queria morrer do que vê-la chegar,<br />
pois quando o destino te chama deste lugar,<br />
certa é a desgraça que vais encontrar.<br />
Este pensamento apunhala-me o coração,<br />
e causa-me tormentos que as palavras não<br />
conseguem descrever<br />
despedaça-me todos os órgãos vitais<br />
e decerto que, quando partires, o meu coração se<br />
quebrará.<br />
Uma vez que, por ti, eu tanto aguento,<br />
poderei esperar que acredites,<br />
que apenas tu poderás estas curar estas feridas,<br />
que são a fonte do meu sofrimento.<br />
A rosa branca e a vermelha<br />
A rosa branca e a vermelha,<br />
que custaram tantos ferimentos,<br />
quando os Barões Ingleses combateram entre si,<br />
um preço pago tão caro<br />
pelas famosas riquezas daquele condado<br />
pela espada e pelo escudo melhor foram<br />
defendidas.
Not all my torments<br />
Not all my torments can your<br />
pity move,<br />
your scorn increases with my love.<br />
Yet to the grave I will my<br />
sorrow bear;<br />
I love, tho’ I despair.<br />
Britain, thou now art great<br />
Britain, thou now art great indeed,<br />
arise! and proud of Caesar’ s godlike sway,<br />
above the neighbour nations lift thy head,<br />
command the world while Caesar you obey.<br />
Fairest isle<br />
Fairest isle, all isles excelling,<br />
seat of pleasure and of love.<br />
Venus here will choose her dwelling,<br />
and forsake her Cyprian grove.<br />
Cupid from his fav’ rite nation<br />
care and envy will remove;<br />
Jealousy that poisons passion,<br />
and despair that dies for love.<br />
Gentle murmurs, sweet complaining,<br />
sighs that blow the fire of love<br />
soft repulses, kind disdaining,<br />
shall be all the pains you prove.<br />
Ev’ ry swain shall pay his duty,<br />
grateful ev’ ry man shall prove;<br />
And as these excel in beauty,<br />
those shall be renown’ d for love.<br />
Nem todos os meus tormentos<br />
Nem todos os meus tormentos podem ser<br />
afastados pela tua piedade,<br />
o teu desprezo aumenta o meu amor.<br />
Ainda hei-de levar o meu sofrimento para o<br />
t ú m u l o ;<br />
Amo, apesar de desesperar.<br />
Bretanha, és agora grande<br />
Bretanha, és agora grande, na verdade,<br />
Ergue-te! E altiva do poderio divino de César,<br />
ergue a tua cabeça acima das nações vizinhas,<br />
e comanda o mundo enquanto a César obedeces.<br />
Ilha mais bela<br />
Ilha mais bela, todas as ilhas excedendo,<br />
lugar de prazer e de amor.<br />
Aqui Vénus vai escolher a sua morada,<br />
e abandonar o seu bosque em Chipre.<br />
Da sua nação favorita<br />
Cúpido afastará toda a apreensão e inveja;<br />
o ciúme, que envenena a paixão,<br />
e o desespero, que morre por amor.<br />
Suaves murmúrios, doces lamentações,<br />
suspiros que sopram o fogo do amor<br />
brando desfavor, gentil desdém,<br />
serão estas as dores que provarás.<br />
Todo o amante cumpirá o seu dever,<br />
todos os homens ficarão cheios de gratidão;<br />
E enquanto uns excedem em beleza,<br />
outros serão conhecidos pelo seu amor.<br />
Tradução de Cláudia Mealha<br />
[ 91 ] Li sboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
Robert King é hoje um dos principais chefes<br />
de orquestra britânicos. Nascido em 1960 fez a<br />
iniciação musical como coralista do famoso Coro<br />
do St. John’s College de Cambridge, tendo as suas<br />
actuações a solo incluído uma muito apreciada<br />
gravação do Requiem de Maurice Duruflé. Regressou<br />
mais tarde à Universidade de Cambridge para<br />
se doutorar em música e em 1980 fundou a<br />
orquestra barroca The King’s Consort. Dirigiu já<br />
em quase todos os países da Europa, deslocandose<br />
frequentemente a Espanha, Holanda, França,<br />
Bélgica e Itália. Fora da Europa efectuou digressões<br />
ao Japão, Formosa, Canadá, Brasil, Israel, Argentina<br />
e Hong-Kong. Em 1991 estreou-se como<br />
maestro nos Proms da BBC (com transmissão em<br />
directo para a rádio e para a televisão) tendo<br />
regressado, desde então, por mais duas vezes.<br />
Para além da direcção da sua própria orquestra,<br />
Robert King desenvolve um trabalho intenso<br />
como maestro. Recentemente dirigiu as Orquestras<br />
Sinfónicas de Atlanta, de Norrköping, da RTL e<br />
de Euskadi, as Orquestras de Câmara de Örebro,<br />
de Uppsala, Holandesa e Inglesa (incluíndo a sua<br />
estreia no Royal Festival Hall com o R e q u i e m d e<br />
Mozart), a Orquestra Filarmónica de Vlaanderen,<br />
a Orquestra de Cadaqués, a Israel Camerata e a<br />
Orquestra Italiana Il Giardino Armonico. Trabalha<br />
também regularmente com agrupamentos corais,<br />
tendo as suas recentes apresentações incluido a<br />
direcção do Coro de Câmara da Holanda, do<br />
Orféon Donostiarra, do Coro do New College<br />
Oxford, do Tölzer Knabenchor e do Collegium<br />
Vocale Ghent. As produções de ópera que dirigiu<br />
incluíram as obras de Händel O t t o n e, em Tóquio,<br />
Osaka e Londres, E z i o , no Théatre des Champs-<br />
Elysées, e ainda The Indian Queen, de Purcell, em<br />
Londres e no Festival de Schwetzingen. Entre<br />
muitos concertos de prestígio conta-se o transmitido<br />
a partir de Praga, para a rádio e para a televisão,<br />
por ocasião da visita da Rainha Isabel II à<br />
República Checa.<br />
Robert King<br />
XIX Jornadas Gulben kian de <strong>Música</strong> Antiga [ 92 ]<br />
Robert King é particularmente conhecido<br />
pelas suas interpretações das obras-primas de<br />
Händel, J. S. Bach, Vivaldi e Purcell, tendo interpretado<br />
e gravado muitas das respectivas composições.<br />
Para além da música barroca, o seu<br />
reportório inclui regularmente obras corais e<br />
instrumentais do período clássico e do primeiro<br />
romantismo, incluindo obras de Mozart, Haydn,<br />
Schubert e Mendelssohn. Com o King’s Consort<br />
realizou mais de sessenta gravações para a editora<br />
Hyperion, ganhando vários prémios internacionais.<br />
Foi recentemente nomeado Director<br />
Artístico do Festival de Páscoa de Aldeburgh.<br />
Reconhecido como um especialista na música<br />
de Henry Purcell, realizou ambiciosos projectos<br />
de gravação, nomeadamente a integral das odes,<br />
das canções gratulatórias, das canções a solo e da<br />
música sacra. Foi Director Artístico do Wigmore<br />
Hall’s 1995 Purcell Tricentenary Festival e editou<br />
uma grande parte da música deste compositor<br />
inglês. O seu livro sobre Purcell, publicado pela<br />
Thames and Hudson, foi considerado como<br />
“a biografia definitiva” do compositor.
Ao longo de quase trinta anos, James<br />
Bowman tem sido considerado como um dos principais<br />
contratenores mundiais. A sua carreira inclui<br />
a ópera, a oratória, música contemporânea e<br />
recitais a solo. Fez a sua estreia londrina em 1967,<br />
quando foi convidado por Benjamin Britten para<br />
cantar no concerto de inauguração do novo Queen<br />
Elisabeth Hall. De imediato começou a ser solicitado<br />
para produções de ópera e apresentações em<br />
concerto, estreando-se no Sadlers Wells em 1967,<br />
em Glyndebourne em 1970, na English Nacional<br />
Opera em 1971 e na Royal Opera House em<br />
1971. As suas numerosas participações operáticas<br />
fora de Inglaterra incluiram Paris (Ópera de Paris,<br />
Théatre des Champs-Elysées e Opéra Comique),<br />
Scala de Milão, Teatro La Fenice em Veneza e o<br />
Festival de Aix-en-Provence. Na Austrália apresentou-se<br />
na Ópera de Sydney e nos Estado<br />
Unidos em São Francisco, Dallas e Santa Fé. Na<br />
sala de concertos é reconhecido pelos seus recitais,<br />
com digressões por todo o mundo. Fez mais de<br />
cento cinquenta gravações com as maiores editoras<br />
discográficas, sob a direcção de maestros como<br />
Harnoncourt, Mackerras, Leppard, Hogwood,<br />
Brüggen, Dorati e Pinnock.<br />
A maioria das suas mais recentes gravações e<br />
muitos dos seus concertos foram realizados com o<br />
King’s Consort, agrupamento com o qual se apresentou<br />
no Japão, em Hong-Kong e por toda a<br />
Europa. Fez mais de trinta gravações com o King’s<br />
Consort, incluindo os projectos de gravação integral<br />
das Odes, Musica Sacra e Canções Seculares<br />
de Purcell. Gravou também as oratórias de Händel<br />
J o s h u a, Judas Macchabaeus, D e b o r a h, The Occasional<br />
O r a t o r i o e Joseph and his Brethren, a ópera O t t o n e, dois<br />
discos de árias das óperas de Händel e os duetos<br />
italianos do mesmo autor, assim como Trois Leçons<br />
de Ténèbres de Couperin, música de Schütz e de<br />
Gabrieli, canções com alaúde de Dowland e um<br />
disco com música de Scarlatti e de Hasse.<br />
James Bowman<br />
James Bowman estreou muitas obras contemporâneas<br />
importantes, incluindo composições de<br />
Benjamin Britten, Michael Tippett, Peter Maxwell<br />
Davies, Richard Rodney Bennett, Robin Holloway,<br />
Geoffrey Burgon, Michel Nyman e Alan<br />
Ridout. Em Maio de 1996 recebeu o Grau<br />
Honorário de Doutor em <strong>Música</strong> pela Universidade<br />
de Newcastle e em Junho de 1997 foi galardoado<br />
pelos seus serviços em prol da música.<br />
[ 93 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCV III.
The King’s Consort é um dos principais grupos<br />
instrumentais de época britânicos, podendo<br />
apresentar-se como agrupamento de câmara ou<br />
como orquestra barroca. Efectuou já digressões<br />
pelos cinco continentes e é uma das orquestras de<br />
instrumentos originais que mais gravações realizou.<br />
Ao longo deste último ano, o King’s Consort<br />
interpretou uma grande variedade de reportório<br />
barroco e clássico em concertos realizados na<br />
Áustria, Bélgica, França, Holanda, Noruega,<br />
Portugal, Espanha, Suiça e República Checa,<br />
incluindo também um espectáculo, transmitido em<br />
directo pela televisão e pela rádio, por ocasião da<br />
visita de estado da Rainha Isabel II a Praga. O<br />
King’s Consort fez uma aclamada estreia no Royal<br />
Albert Hall em 1991, nos Proms da BBC, apresentando-se<br />
aí por mais duas vezes, desde essa<br />
altura. Em 1995 inaugurou as celebrações Purcell<br />
da BBC, com um Concerto de Ano Novo, transmitido<br />
em directo pela televisão. Considerados<br />
como intérpretes de referência da música de<br />
Purcell, no ano do tricentenário da morte do compositor<br />
britânico realizaram digressões a Hong-<br />
Kong, Argentina, Brasil e a quase todos os países<br />
europeus. As produções de ópera que contaram<br />
com a sua participação incluem Ottone, de Händel,<br />
no Japão e na Inglaterra, E z i o , também de Händel,<br />
no Théatre des Champs-Elysées (Paris), e T h e<br />
Indian Queen, de Purcell, no teatro histórico alemão<br />
de Schwetzingen.<br />
As sessenta aclamadas gravações que o King’s<br />
Consort realizou para a Hyperion receberam<br />
muitos prémios internacionais. A orquestra é mais<br />
conhecida pelas suas interpretações da música<br />
instrumental de Händel e de Purcell, mas o seu<br />
reportório gravado inclui também obras de Johann<br />
Sebastian Bach (cantatas, Missa em Si menor e as<br />
Sonatas em trio); dois discos de árias de Händel<br />
com James Bowman; a História da Natividade d e<br />
Heinrich Schütz; motetos de Gabrieli; Stabat Mater<br />
The King’s Consort<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 94 ]<br />
de Pergolesi; música vocal de Dowland, Scarlatti,<br />
Hasse e Couperin e música de câmara, concertos e<br />
música instrumental de Telemann, Albinoni e<br />
Vivaldi. Os projectos de gravação de obras de<br />
Purcell como a integral das odes, canções gratulatórias<br />
e canções a solo. (8 CDs) e a da música<br />
sacra (11 volumes) consagraram o King’s Consort<br />
como a principal referência interpretativa da música<br />
deste compositor. O King’s Consort gravou<br />
também doze CDs dedicados à música de Händel,<br />
incluindo as obras Acis and Galatea, Ottone, Joshua,<br />
Deborah, Judas Macchabaeus, Occasional Oratorio, Joseph<br />
and his Brethren e mais recentemente, Alexander Balus,<br />
assim como os duetos italianos, os C o r o n a t i o n<br />
Anthems, Music for Royal Occasions e uma notável<br />
primeira gravação de Music for the Royal Fireworks, na<br />
versão original do compositor para um grande<br />
agrupamento de sopros. Foi recentemente lançada<br />
um extravagante gravação de Water Music d e<br />
Händel, juntamente com uma igualmente colorida<br />
versão de W a s s e r m u s i k de Telemann. Os primeiros<br />
três volumes do grande projecto de gravação de<br />
uma integral da música sacra de Vivaldi, receberam<br />
já um série de prémios.<br />
Os projectos mais importantes agendados<br />
para as próximas temporadas incluem interpretações<br />
das obras de Händel B e l s h a z z a r e Acis and<br />
Galatea, massivas produções de Lo Spozalizio e da<br />
Tragédia Romântica de Filipe o Belo, uma exploração em<br />
grande escala da música de Johann Sebastian Bach<br />
e dos seus contemporâneos (culminando num festival<br />
com um ano de duração no Wigmore Hall,<br />
em Londres), os volumes seguintes do projecto<br />
Vivaldi e um novo projecto dedicado às Quatro<br />
Suites Orquestrais de Bach.
95<br />
Li sboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 96 ]<br />
S e g u n d a ,<br />
Dia<br />
1 2
Academia das Ciências de Lisboa, 2 1 . 3 0<br />
MÚSICA PARA O TEATRO DE SHAKESPEARE<br />
De The Tempest:<br />
MATTHEW LOCKE (? 16 2 1/22 - 16 7 7)<br />
Introdução - Galharda - Gavotte<br />
ROBERT JOHNSON (ca. 1583 - 16 3 3)<br />
Hark, hark, the l ark<br />
De Measure for Measure:<br />
JOHN WILSON (1595 - 16 7 4)<br />
Take, O take those lips a way<br />
De The Tempest:<br />
MATTHEW LOCKE<br />
Melodia de Abertura<br />
De Twelfth Night:<br />
THOMAS MORLEY (? 15 5 7/58 - 16 0 2)<br />
O mistress mine<br />
ROBERT JOHNSON<br />
When that I was<br />
De Timon of Athens:<br />
HENRY PURCELL (1659 - 16 9 5) E JAMES PAISIBLE (? - 17 2 1)<br />
Suite<br />
De Winter’s Tale:<br />
JOHN WILSON<br />
Lawn as white as driven snow<br />
De Romeo and Juliet:<br />
RICHARD EDWARDS (1524 - 15 6 6)<br />
When griping grief<br />
De The Tempest:<br />
MATTHEW LOCKE<br />
Ária Rústica - Corant - Conclusão<br />
De Otello:<br />
A N Ó N I M O<br />
The Willow Song<br />
•<br />
EDWARD JOHNSON (1572 - 16 0 1)<br />
Eliza is th e fairest Queen<br />
[ 97 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCV III.
I n t e r v a l o<br />
HENRY PURCELL<br />
Canções e música instrumental de The Fairy Queen<br />
Thus, thus the gloomy world<br />
Dança de Abertura e Ária<br />
Sin fonia para a entrada dos cisnes<br />
One charming nig ht<br />
Dança para os seguidores da noite<br />
See even night herself is here<br />
Dança das Fadas<br />
Dança dos Homens verde s<br />
Thrice happy lovers<br />
The Pla int<br />
Melodia do Segundo Acto<br />
If lov e’s a sweet passion<br />
THE KING’S CONSORT<br />
Pavlo Beznosiuk V i o l i n o<br />
Lucy Howard V i o l i n o<br />
Rachel Byrt V i o l a<br />
Katherine Sharman Baixo de Violino<br />
Richard Campbell Baixo de Violino<br />
Paula Chateauneuf T e o r b a<br />
James Bowman C o n t r a t e n o r<br />
Robert King Órgão, Cravo e Direcção<br />
XIX Jorn adas Gulb enkian de <strong>Música</strong> An tiga [ 98 ]
MÚSICA PARA O TEATRO DE SHAKESPEARE<br />
Estabelecer o teatro como ponto de partida<br />
para uma aproximação à produção musical revestese<br />
de particular significado num país como a<br />
Inglaterra que conheceu, desde cedo, nas artes do<br />
palco uma das suas manifestações culturais mais<br />
ricas e valiosas. Se as questões levantadas pela associação<br />
do texto à música constituíram, desde sempre,<br />
uma das pedras de toque da composição musical,<br />
quando se começou a pensar na dramatização<br />
do texto a história do pensamento musical conheceu<br />
uma das suas mais importantes inflexões com<br />
a criação do género operático. Ao circunscrever-se<br />
um programa de concerto ao tema de “<strong>Música</strong><br />
para o Teatro de Shakespeare”, em última análise,<br />
seríamos levados a dar resposta à velha questão “o<br />
que está primeiro, a palavra ou a música ?” Neste<br />
caso a resposta cabal é: a palavra! A palavra em<br />
todo a sua dimensão coloquial, com toda a naturalidade<br />
da “spoken word”, cruzada com uma teia<br />
de duplos sentidos e uma transcendência poética<br />
secreta. A poesia une-se ao drama, a frase simples e<br />
directa contém todas as nuances da emoção, mas é<br />
também analítica. Enfim uma espécie de melodia<br />
de palavras com os acentos e respirações próprios<br />
ao pensamento do poeta, mas que poderia ser<br />
intercalada por canções ou alguma música instrumental.<br />
William Shakespeare (1564-1616) foi<br />
porventura um dos autores cuja obra mais estimulou<br />
a controvérsia, a reflexão e a investigação. É<br />
consensual o reconhecimento da sua grandiosidade,<br />
da sua profundidade, enfim da sua universalidade.<br />
O Homem, em todas as suas contradições<br />
e matizes emocionais, em todos os seus defeitos e<br />
qualidades, aparece retratado na sua dramaturgia.<br />
Cada época se reviu de forma diferente, mas a verdade<br />
é que a reputação de Shakespeare não pára de<br />
crescer, sendo agora a vez do cinema, a mais “glob<br />
a l i z a n t e ”das artes, que depois das visões de Orson<br />
Wells se tem vindo a apropriar desta obra. No<br />
Século XVIII procedeu-se ao estabelecimento do<br />
texto com base no Folio de 1623, e sua divulgação<br />
por Vanda de Sá<br />
em versões por vezes emendadas, adocicadas e<br />
livres de rugosidades. Os Românticos mitificaramno<br />
e idolatraram-no e em seu nome proclamaram<br />
a revolução, o novo, ou a sublimação (Stendhal,<br />
Berlioz ou Verdi). O Século XX exalta agora a<br />
violência e a paixão das personagens, identifica-as<br />
com o Homem comum, transfere-as para a rua.<br />
Shakespeare transformou-se num clássico que,<br />
pela sua universalidade, permite todas as liberdades,<br />
mas não há dúvida que é também no século<br />
XX que maior atracção se sente pelo retorno à<br />
origem, através da recente reconstrução do<br />
pequeno teatro circular de madeira em que<br />
Shakespeare trabalhou (The Globe), a recuperação<br />
da música original para as suas peças, enfim o<br />
respeito máximo pelo texto original.<br />
Em finais do Século XVI, a Inglaterra era um<br />
pequeno reino que se encontrava em plena expansão<br />
política, económica e artística, decorrente de<br />
um processo de tomada de consciência da sua<br />
existência nacional e dos seus valores humanos.<br />
No plano literário e musical verificou-se um florescimento<br />
de raro fôlego que pôs o país a par das<br />
tendências do Renascimento no continente. Desta<br />
feita, a obra de William Shakespeare não se constituiu<br />
propriamente como um fenómeno isolado<br />
pois integrou-se numa época de intensa expressão<br />
literária, sobretudo teatral, mas também poética.<br />
Em Londres abundavam os poetas refinados ou<br />
eróticos, sábios ou simplesmente apaixonados, cultivava-se<br />
a elegia, a lenda, o mito, o soneto e a sátira.<br />
Aprofundava-se o engenho, a reinvenção da língua.<br />
Como aliás aparece reflectido na sua obra<br />
dramática, Shakespeare também não resistiu a este<br />
domínio da criação, tão admirado entre a sociedade<br />
cultivada e aristocrata que ele próprio frequentava.<br />
Ficaram-nos dentro do género poético V e n u s<br />
and Adonis (1593), Rape of Lucrece (1594) e ainda os<br />
seus sonetos editados em 1609, embora sem a<br />
autorização do autor, que seguem a moda do<br />
poema amoroso que idolatrava a beleza feminina –<br />
[ 99 ] Li sboa, 6 a 1 4 Outub ro MCMXCVIII.
a sua singularidade residiu simplesmente no facto<br />
de se dirigirem a um jovem rapaz. Aqui Shakespeare,<br />
com raro fôlego poético, exprime a melancolia,<br />
o desgosto e a nostalgia em relação à morte,<br />
enfim os demónios do envelhecimento e dos<br />
amores interditos. Com esta edição estamos, de<br />
facto, perante a melhor e mais grandiosa produção<br />
de sonetos (154) do período Isabelino, tratandose<br />
como que de uma condensação, uma síntese dos<br />
seus trabalhos dramáticos de 20 anos.<br />
A vida musical na Inglaterra do tempo de<br />
Shakespeare floresceu sobretudo entre os compositores<br />
que trabalhavam para a corte real de Isabel<br />
I (1558-1603). Os géneros cultivados passavam<br />
pela música instrumental de tecla, sobretudo para<br />
o virginal, mas também para agrupamentos<br />
(“Consorts”). A música vocal era sacra, ou cantava<br />
a arte dos poetas contemporâneos, sendo que<br />
grande parte deste tipo de produção servia as representações<br />
teatrais. A maioria dos compositores<br />
hoje em programa dedicou precisamente parte da<br />
sua produção musical ao teatro, em concreto, a um<br />
dos seus maiores autores, Shakespeare. Os compositores<br />
apresentados permitem, em larga medida,<br />
ficar com uma ideia clara da evolução da música<br />
vocal enquanto estrutura limitada tipo canção,<br />
com a função de intercalar uma narrativa teatral<br />
longa. A partir daí, pode acompanhar-se o processo<br />
de crescente dramatização, através da assimilação<br />
de uma escrita tipo declamatório e das<br />
influências italianas que naturalmente se farão sentir<br />
na tradição da Masque – um género de entretenimento<br />
dramático que floresceu em Inglaterra<br />
nos Séculos XVI e XVII, envolvendo poesia,<br />
música e sequências dramáticas relativamente elaboradas<br />
– mas sobretudo nas semi-óperas de<br />
Henry Purcell.<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 100]<br />
Robert Johnson (ca. 1583-1633), esteve ao<br />
serviço de Lord Chamberlain e foi alaudista da<br />
Corte, de 1604 até à data de sua morte. Foi um<br />
compositor dotado que conheceu alguma consagração<br />
na sua época tendo escrito canções para<br />
várias peças teatrais, incluindo as de Shakespeare.<br />
Com um estilo que acompanhou as tendências da<br />
sua época, escreveu também música para Masques,<br />
danças para alaúde com uma escrita muito refinada,<br />
mas também alguma música sacra e instrumental.<br />
John Wilson (1595-1674), desenvolveu a<br />
sua actividade de músico sobretudo como compositor<br />
e alaudista. Foi na condição de músico<br />
prático que se reuniu em 1635 ao “King’s<br />
Musick” (como alaudista e cantor), mudando-se<br />
mais tarde com a Corte para Oxford, onde se<br />
tornou professor de música na Universidade<br />
(1656-61). A maior parte da sua produção é constituída<br />
por canções, que podem ser, desde longas e<br />
melodiosas baladas até uma escrita vocal mais do<br />
tipo declamatório e dramático, tendo sido algumas<br />
delas escritas para peças teatrais.<br />
Matthew Locke (1621/22-1677), começou<br />
a sua actividade musical integrando o Coro da<br />
Exeter Cathedral. Após a Restauração, em 1660,<br />
Locke passou a ocupar três cargos na Corte, aos<br />
quais adicionou em 1662 o de organista da rainha.<br />
A produção de música para o teatro foi uma constante<br />
ao longo da sua vida e de facto a sua reputação<br />
associa-se sobretudo à música para conjuntos<br />
instrumentais e dramática, sendo que neste<br />
último domínio se constituiu como uma influência<br />
inegável para Henry Purcell. Escreveu música<br />
para cerca de dez representações teatrais, revelando<br />
normalmente um apurado sentido dramático,<br />
sobretudo na escrita dos recitativos e entreactos.
A transição e estabilização para o período<br />
barroco, desde logo marcado pelo advento da<br />
ópera em Itália em 1600, é protagonizada por um<br />
dos grandes nomes da música de todos os tempos,<br />
Henry Purcell (1659-1695). Entre as suas principais<br />
influências musicais encontram-se Matthew<br />
Locke, Pelham Humfrey ou John Blow, para além<br />
do conhecimento e cada vez maior familiaridade<br />
com a música italiana do seu tempo. A maior parte<br />
da música dramática de Purcell consiste em aberturas,<br />
entreactos, danças e canções que eram introduzidas<br />
ao longo das peças teatrais, na linha do<br />
que acontecia com os compositores de gerações<br />
anteriores. Desenvolveram-se no entanto, em finais<br />
do século XVII, algumas produções, embora de<br />
número limitado, que permitiam a inclusão de<br />
uma muito maior quantidade de música, incluindo<br />
cenas inteiras. Purcell escreveu música para cinco<br />
produções deste tipo que ficariam conhecidas<br />
como semi-óperas. Quatro delas: The Dioclesian<br />
( 1 6 9 0 ), The Fairy Queen ( 1 6 9 2 ), The Tempest<br />
( c a . 1 6 9 5 ) e The Indian Queen (1695), foram adapatações<br />
de peças já existentes. Apenas King Arthur<br />
(1691) foi escrita por John Dryden especificamente<br />
para o efeito de servir a música de Purcell.<br />
The Fairy Queen é baseada na peça A Midsummer<br />
Night’s Dream de Shakespeare, segundo um libreto<br />
de provável autoria de Elkanah Settle. Constitui-se<br />
como uma semi-ópera de um prólogo e cinco<br />
actos na qual, de acordo com o género, podem<br />
encontrar-se cenas musicais de significativa extensão,<br />
que revelam a herança da masque, e que são<br />
apresentadas pelas personagens secundárias, uma<br />
vez que a acção central era apresentada por meio<br />
de representação teatral. Na época The Fairy Queen<br />
foi um espectáculo particularmente dispendioso,<br />
ao ponto da United Company se ver obrigada a<br />
apresentá-la em 1692 e novamente em 1693,<br />
numa versão com mais momentos musicais, para<br />
cobrir a despesa. Mas a verdade é que esta semiópera<br />
foi também um dos maiores sucessos de<br />
Henry Purcell em vida. Para o seu êxito terá contribuído<br />
o carácter onírico da peça de Shakespeare,<br />
já que o teatro inglês, por tradição, associava a<br />
música sobretudo a cenas relativas à representação<br />
de cerimónias religiosas, intervindo deuses pagãos<br />
da Antiguidade greco-latina, ou então a cenas em<br />
que interviessem personagens sobrenaturais como<br />
fantasmas, feiticeiras ou fadas.<br />
Robert King<br />
(ver página 92)<br />
James Bowman<br />
(ver página 93)<br />
The Kings’<br />
C o n s o r t<br />
(ver página 94)<br />
[ 101 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
<strong>Música</strong> para o Teatro<br />
de William Shakespeare<br />
Hark, hark, the lark<br />
Hark, hark, the lark at<br />
heaven’s gate sings,<br />
And Phoebus ‘gins arise,<br />
His steeds to water at those springs<br />
On chaliced flowers that<br />
lies;<br />
The winking marybuds begin<br />
To ope’ their golden eyes:<br />
With everything that pretty is,<br />
My lady sweet, arise!<br />
Arise, arise!<br />
Take, O take those Lips Away<br />
Take, O take those lips away,<br />
That so sweetly were forsworn:<br />
And those eyes, the break of day,<br />
Lights that do mislead the morn:<br />
But my kisses bring again,<br />
Seals o f love, but sealed in vain.<br />
Hide, O hide those Hills of Snow<br />
That thy frozen bosom bears,<br />
On whose tops, the pinks that grow.<br />
Are of those that April wears.<br />
But first set my poor heart free,<br />
Bound in ivy chains by thee.<br />
O Mistress mine<br />
O Mistress mine! Where are you roaming?<br />
O stay and hear; your true love’s coming,<br />
That can sing both high and low.<br />
Trip no further, pretty sweeting;<br />
Journeys end in lovers meeting,<br />
Every wise man’s son doth know.<br />
What is love? ‘tis not hereafter;<br />
Present mirth hath<br />
present laughter;<br />
What’s to come is still unsure:<br />
In delay there lies no plenty;<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 102]<br />
Escutai, escutai a cotovia<br />
Escutai, escutai a cotovia que canta às portas<br />
do céu,<br />
e já Febo se apressa a erguer-se,<br />
os seus corcéis refrescam-se<br />
nas águas da nascente onde se deitam os<br />
nenúfares;<br />
os botões de malmequer<br />
começam a abrir seus olhos doirados:<br />
como tantas outras coisas bonitas,<br />
minha querida senhora, despertai!<br />
Despertai, despertai!<br />
Afasta esses lábios<br />
Afasta, afasta esses lábios,<br />
que tão docemente mentiram:<br />
e esses olhos, alvores da manhã,<br />
luzes que iludem a aurora:<br />
mas traz os meus beijos de volta,<br />
selos de amor, que selados foram em vão.<br />
Esconde, esconde esses montes de neve<br />
que o teu frio colo abriga.<br />
As rosáceas que florescem nos seus cumes,<br />
são das cores que Abril se cobre.<br />
Mas antes liberta o meu pobre coração,<br />
preso, por ti, em correntes de hera.<br />
Minha Senhora<br />
Minha Senhora! Onde is?<br />
Ficai e ouvi, que chega o vosso fiel amante,<br />
que pode alto e baixo cantar.<br />
Não viajeis mais, meu lindo amor;<br />
as viagens acabam em encontros de amantes,<br />
e isso todo o filho de um homem sensato o sabe.<br />
O que é o amor? Não é o que há-de vir;<br />
O regozijo do presente é feito de risos do<br />
presente;<br />
O que há-de vir é ainda incerto;<br />
o protelamento não traz abundância;
Then come kiss me, sweet and twenty,<br />
Youth’s a stuff will not endure<br />
When that I was<br />
When that I was and a little tiny boy<br />
With hey-ho the wind and the rain,<br />
A foolish thing was but a toy,<br />
For the rain it raineth every day.<br />
But when I came to man’s estate,<br />
With hey-ho the wind and the rain,<br />
‘Gainst knaves and thieves men shut<br />
their gate,<br />
For the rain it raineth every day.<br />
But when I came alas to wive,<br />
With hey-ho the wind and the rain,<br />
By swaggering I could never thrive,<br />
For the rain it raineth every day.<br />
A great while ago the world began<br />
With hey-ho the wind and the rain,<br />
But that’s all one, our play is done,<br />
And we’ll strive to please you every day.<br />
Lawn as white as driven snow<br />
Lawn as white as driven snow,<br />
Cyprus black as e’er was crow;<br />
Gloves as sweet as damask roses;<br />
Masks for faces and for noses;<br />
Bugle-bracelet,<br />
necklace-amber,<br />
Perfume for a lady’s chamber;<br />
Golden quoifs and stomachers,<br />
For my lads to give their dears;<br />
Pins and poking sticks of steel;<br />
What maids lack from head to heel:<br />
Come buy of me, come; come buy, come buy;<br />
Buy lads, or else your lasses cry:<br />
Come buy.<br />
Where griping grief<br />
Where griping grief the heart would wound,<br />
And doleful dumps the mind oppress;<br />
Then music with her silver sound,<br />
Is wont with speed to give redress;<br />
Of troubled minds for every sore,<br />
Sweet music hath a salve therefore.<br />
In joy it makes our mirth abound,<br />
In grief it cheers our heavy sprites.<br />
assim vem e beija-me, jovem donzela,<br />
pois o encanto da juventude não durará<br />
para sempre.<br />
Quando eu era<br />
Quando eu era pequenino<br />
e andava ao vento e à chuva,<br />
todas as coisas tolas não passavam de brinquedos,<br />
pois a chuva caía todos os dias.<br />
Mas quando cheguei ao estado adulto,<br />
e andava ao vento e à chuva,<br />
contra velhacos e ladrões os homens se fechavam<br />
em casa,<br />
pois a chuva caía todos os dias.<br />
Mas quando, finalmente, me casei,<br />
e andava ao vento e à chuva,<br />
com fanfarronadas nunca consegui triunfar,<br />
pois a chuva caía todos os dias.<br />
O mundo começou há muito, muito tempo,<br />
sempre com vento e chuva,<br />
mas isso é tudo o mesmo, e a nossa peça acabou,<br />
e nós procuraremos sempre agradar-vos.<br />
Cambraias brancas de neve<br />
Cambraias brancas de neve,<br />
crepes mais negros que corvos,<br />
luvas tão suaves como rosas adamascadas;<br />
disfarces para o rosto e nariz;<br />
braceletes de negras missangas, âmbar para o<br />
pescoço,<br />
perfumes de toucador;<br />
coifas e espartilhos doirados<br />
para vós, rapazes, oferecerem às vossas amadas;<br />
alfinetes, e ferros de engomar colarinhos,<br />
tudo o que as donzelas precisam dos pés à cabeça:<br />
vinde comprar-me, vinde: vinde comprar-me;<br />
comprai, rapazes, se não as quereis ver chorar,<br />
vinde comprar.<br />
Onde a mágoa profunda<br />
Onde a mágoa profunda atinge o coração,<br />
e nostálgicas tristezas oprimem a mente;<br />
a música, com o seu som argentino,<br />
com veloz auxílio trará consolo;<br />
às mentes perturbadas por cada ferida,<br />
a doce música é um bálsamo.<br />
Na alegria aumenta-nos o deleite,<br />
na aflição anima-nos o espírito pesaroso.<br />
[ 103 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCV III.
The careful head release hath found,<br />
By music’s pleasant sweet delights.<br />
Our senses, what should I say more,<br />
Are subject unto music’s lore.<br />
O heavenly gift that turns the mind,<br />
Like as the stern doth rule the ship:<br />
O music, whom the gods assigned,<br />
To comfort man, whom cares would nip.<br />
Since thou both man and beast dost move,<br />
What wise man, then, will thee reprove?<br />
The willow song<br />
The poor soul sat sighing by a<br />
sycamore tree,<br />
Sing willow, willow, willow.<br />
With his hand on his bosom,<br />
And his head upon his knee.<br />
O willow, willow, willow, willow<br />
Shall be my garland.<br />
Sing all a green willow.<br />
Aye, me, the green willow must be my<br />
garland.<br />
He sighed in his singing and made a great moan.<br />
Sing willow, willow, willow.<br />
I am dead to all pleasure,<br />
my true love he is gone.<br />
The mute bird sat by him,<br />
was made tame by his moans.<br />
Sing willow, willow, willow.<br />
The true tears fell from him,<br />
would have melted the stones.<br />
Let love no more boast her<br />
in palace nor bower.<br />
Sing willow, willow, willow.<br />
It buds but it blasteth ere<br />
it be a flower.<br />
Let nobody chide her, her scorns I approve.<br />
Sing willow, willow, willow.<br />
She was born to be false, and I to die<br />
for love.<br />
Take this for my farewell, and<br />
latest adieu.<br />
Sing willow, willow, willow.<br />
Write this on my tomb, that in love I was true.<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 104]<br />
o mais apreensivo encontrou alívio,<br />
nos aprazíveis e doces prazeres da música.<br />
Os nossos sentidos - que mais poderei acrescentar,<br />
estão subjugados ao saber da música.<br />
Ó dádiva celeste que orientas a mente,<br />
tal como a popa norteia o navio:<br />
música, a quem os deuses confiaram,<br />
a tarefa de aliviar o Homem das suas preocupações.<br />
Uma vez que tu comoves ambos homens e bestas,<br />
que homem sábio alguma vez te reprovará?<br />
A canção do salgueiro<br />
A pobre alma sentou-se, suspirando, junto ao<br />
sicômoro:<br />
“Oh, o salgueiro, o salgueiro, o salgueiro.”<br />
com a mão sobre o peito,<br />
e a cabeça nos joelhos.<br />
“Oh, o salgueiro, o salgueiro, o salgueiro,<br />
Cantai todos que o verde salgueiro,<br />
será a minha coroa fúnebre.<br />
Ai de mim, o verde salgueiro será a minha coroa<br />
fúnebre.”<br />
Ele cantava, e suspirava, e muito se lamentava.<br />
“Cantai, o salgueiro, o salgueiro, o salgueiro.”<br />
Estou morto para todo o prazer,<br />
O meu verdadeiro amor foi-se embora.”<br />
O cisne branco pousou a seu lado,<br />
domado pelos seus gemidos.<br />
“Cantai, o salgueiro, o salgueiro, o salgueiro.”<br />
As amargas lágrimas caiam-lhe dos olhos,<br />
e amoleciam as pedras.<br />
“Que o amor nunca mais dela se gabe<br />
em palácios ou camaranchões<br />
Cantai, o salgueiro, o salgueiro, o salgueiro.<br />
O amor brotou mas quebrou-se antes<br />
de florescer.”<br />
“Que ninguém a censure, eu aprovo-lhe o desdém.<br />
Cantai o salgueiro, o salgueiro, o salgueiro,<br />
ela nasceu para ser falsa, e eu para morrer<br />
de amor.”<br />
“Tomai isto como a minha despedida e o meu<br />
último adeus.<br />
Cantai o salgueiro, o salgueiro, o salgueiro.<br />
Escrevei isto no meu túmulo: que no amor fui<br />
verdadeiro.”
Eliza is the fairest Queen<br />
Eliza is the fairest Queen<br />
That ever trod upon the green.<br />
Eliza’s eyes are blessed stars,<br />
Inducing peace, subduing wars.<br />
O blessed be each day and hour<br />
Where sweet Eliza builds her bower.<br />
Eliza’s hand is crystal bright,<br />
Her words are balm, her looks<br />
are light.<br />
Eliza’s breast is that fair hill<br />
Where virtue dwells, and sacred still.<br />
O blessed be each day and hour<br />
Where sweet Eliza builds her bower.<br />
Eliza é a Rainha mais bela<br />
Eliza é a Rainha mais bela<br />
que jamais andou por estes pastos.<br />
Os olhos de Eliza são estrelas abençoadas,<br />
que induzem a paz, e subjugam as guerras.<br />
Oh, que sejam abençoados cada dia e hora<br />
em que a doce Eliza construir o seu retiro.<br />
A mão de Eliza é cintilante como o cristal,<br />
as suas palavras são um bálsamo, a sua aparência<br />
é de luz.<br />
O seio de Eliza é aquele belo monte<br />
onde a virtude habita, ainda sagrada.<br />
Oh, que sejam abençoados cada dia e hora<br />
em que a doce Eliza construir o seu retiro.<br />
Tradução de Cláudia Mealha<br />
[ 105 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
The Fairy Queen<br />
HENRY PURCELL<br />
Thus, thus the gloomy world<br />
Thus the gloomy world<br />
At first began to shine,<br />
And from the power divine<br />
A glory round it hurled;<br />
Which made it bright,<br />
And gave it birth in light.<br />
Then were all minds as pure<br />
As those ethereal streams;<br />
In innocence secure,<br />
Not subject to extremes.<br />
There was no room for empty Fame,<br />
No cause for Pride,<br />
Ambition wanted aim.<br />
One charming night<br />
One charming night<br />
Gives more delight<br />
Than a hundred lucky days.<br />
Night and I improve the taste,<br />
Make the pleasure longer last,<br />
A thousand several ways.<br />
See, even Night herself is here<br />
See, even Night herself is here,<br />
To favour your design;<br />
And all here peaceful train is near,<br />
That men to sleep incline.<br />
Let noise and care,<br />
Doubts and despair,<br />
Envy and Spite<br />
(The Fiends delight)<br />
Be ever banished hence,<br />
Let soft repose<br />
Her eyelids close;<br />
And murm’ring streams<br />
Bring pleasing dreams;<br />
Let nothing stay to give offence<br />
XIX Jornadas Gulb en kian de <strong>Música</strong> An tiga [ 106 ]<br />
Foi assim que o mundo sombrio<br />
Foi assim que o mundo sombrio<br />
começou primeiro a brilhar,<br />
e lá do poder divino<br />
lançou uma carga de glória;<br />
que o fez brilhar,<br />
e nascer na luz.<br />
Nesse tempo todas as mentes eram puras<br />
como esses fluxos etéreos;<br />
em inocência resguardados,<br />
longe de todos os extremos.<br />
Não havia espaço para a vazia Fama,<br />
nem razão para o Orgulho,<br />
nem para os desígnios permeados de Ambição.<br />
Uma noite de sedução<br />
Uma noite de sedução<br />
dá mais prazer<br />
que um cento de dias de sorte.<br />
Eu e a noite melhoramos o sabor,<br />
e fazemos o prazer durar,<br />
de mil diferentes maneiras.<br />
Vede, que até a noite chegou<br />
Vede, que até a noite chegou<br />
para favorecer o teu desígnio<br />
e o de todos; o tranquilo séquito aproxima-se<br />
para que os homens resvalem para o sono.<br />
Que o ruído e a preocupação,<br />
as dúvidas e o desespero,<br />
a Inveja e a Maldade<br />
(que são os deleites do Demónio)<br />
sejam daqui banidas para sempre,<br />
que o suave repouso<br />
cerre as suas pálpebras;<br />
e riachos murmurantes<br />
tragam bons sonhos;<br />
que nada que possa ofender<br />
aqui possa permanecer.
Thrice happy lovers<br />
Thrice happy lovers, may you be<br />
For ever, ever free,<br />
From that tormenting devil Jealousy.<br />
From all that anxious care and strife,<br />
That attends a married life:<br />
Be to one another true,<br />
Kind to her as she to you,<br />
And since the errors of the night are past,<br />
May he be ever constant, she for ever chaste.<br />
The plaint<br />
O let me ever, ever weep,<br />
My eyes no more shall welcome<br />
sleep;<br />
I’ll hide me from the sight of day,<br />
And sigh, and sigh my soul away.<br />
He’s gone, he’s gone, his loss deplore;<br />
For I shall never see him more.<br />
If love’s a sweet passion<br />
If love’s a sweet passion, why does it torment?<br />
If a bitter, oh tell me whence comes my<br />
content?<br />
Since I suffer with pleasure, why should I complain,<br />
Or grieve at my fate, when I know ‘tis<br />
in vain?<br />
Yet so pleasing the pain is, so soft is the dart,<br />
That at once it both wounds me and tickles my heart.<br />
I press her hand gently,<br />
look languishing down,<br />
And by passionate silence I make<br />
my love known.<br />
But oh! how I’m blest when so kind<br />
she does prove,<br />
By some willing mistake to discover her love.<br />
When in striving to hide, she reveals all her<br />
flame,<br />
And our eyes tell each other what neither<br />
dares name.<br />
Três vezes amantes felizes<br />
Três vezes amantes felizes possais vós ser<br />
livres para todo o sempre,<br />
dos Ciúmes diabólicos e atormentadores.<br />
E de todos as discórdias e ansiosos cuidados,<br />
que esperam a vida de casados:<br />
sede francos um com o outro,<br />
sede bom para ela como ela para ti,<br />
e uma vez que os erros da noite já passaram,<br />
possa ele ser sempre constante e ela sempre casta.<br />
O lamento<br />
Deixai-me chorar sempre, sempre,<br />
os meus olhos nunca mais darão as boas vindas<br />
ao sono;<br />
esconder-me-ei da vista do Dia,<br />
e fenecerei a minha alma em suspiros.<br />
Ele partiu, foi-se embora, a sua partida choro;<br />
porque nunca mais o verei.<br />
Se o amor é uma doce paixão<br />
Se o amor é uma doce paixão, porque atormenta?<br />
se também amarga, diz-me de onde me vem a<br />
felicidade?<br />
se sofro de prazer, porque me queixo,<br />
ou lamento o meu destino, quando sei que o faço<br />
em vão?<br />
Mas a dor é tão agradável, tão suave é o dardo,<br />
que tanto me fere como me afaga o coração.<br />
Aperto a sua mão com delicadeza, baixando os<br />
olhos ternamente,<br />
e pelo silêncio apaixonado dou a conhecer<br />
o meu amor.<br />
Mas oh! Como me sinto abençoado quando<br />
ela revela,<br />
por algum erro propositado, o seu amor.<br />
Lutando para o esconder ela revela todo o seu<br />
arrebatamento,<br />
e os nosso olhos dizem aquilo que nenhum de nós<br />
se atreve a nomear.<br />
Tradução de Cláudia Mealha<br />
[ 107 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga<br />
108<br />
T e r ç a -<br />
Feira,<br />
Dia<br />
1 3
Sociedade de Geografia de Lisboa, 2 1 . 3 0<br />
OMBRA MAI FÙ:<br />
ÁRIAS, ABERTURAS E SINFONIAS DE ÓPERAS DE HÄNDEL<br />
GEORG FRIEDRICH HÄNDEL (1685 - 17 5 9 )<br />
Da ópera Admeto, Rè di Tessaglia:<br />
Abertura e Introdução<br />
Accompagnato: Orride larve<br />
Arioso: Chiudetevi, miei lumi<br />
Da ópera R a d a m i s t o :<br />
Passacaille - Giga - Passepied/Rigaudon<br />
Da ópera Rodelinda, Regina de’ Longobardi:<br />
S i n f o n i a<br />
Acompagnato: Pompe varne di morte<br />
Ária: Dove sei<br />
Acompagnato: Si l’infida<br />
Ária: C o n f u s a<br />
I n t e r v a l o<br />
Da ópera Giulio Cesare in Egitto:<br />
Ária: Se in fiorito<br />
Ária: Va tacito<br />
Da ode Alexander’s Feast:<br />
Concerto grosso em Dó Maior,<br />
(Allegro - Largo - Allegro - Andante non presto)<br />
Da ópera S e r s e :<br />
S i n f o n i a<br />
Recitativo: Frondi tenere<br />
Arioso: Ombra mai fù<br />
AKADEMIE FÜR ALTE MUSIK<br />
Andreas Scholl C o n t r a t e n o r<br />
[ 109 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
UMA CARREIRA OPERÁTICA<br />
CONTURBADA<br />
por Cristina Fernandes<br />
Considerado como um dos expoentes máximos<br />
do Barroco musical, Georg Friedrich Händel<br />
(1685-1759) foi durante muito tempo reconhecido<br />
pela maioria dos melómanos apenas como<br />
compositor de oratórias ou, simplesmente, como o<br />
autor do Messias, o que acabaria por originar uma<br />
visão redutora do seu génio. Efectivamente,<br />
durante cerca de trinta e cinco anos, a sua principal<br />
actividade foi a de compor e dirigir ópera.<br />
Numa época em que esta constituía a principal<br />
ambição dos músicos que aspiravam à celebridade,<br />
Händel converteu-se, apesar de todas as vicissitudes,<br />
no principal compositor operático em<br />
Inglaterra e num dos mais destacados representantes<br />
deste género musical entre os seus contemporâneos.<br />
Cosmopolita e eclético, Händel foi, por<br />
formação e inclinação, um compositor teatral que<br />
soube incorporar habilmente na sua obra as principais<br />
tradições musicais do seu tempo.<br />
Ao contrário de Johann Sebastian Bach,<br />
Händel nasceu numa família desprovida de<br />
tradições musicais. O seu pai era cirugião-barbeiro<br />
em Halle, na Saxónia, e desejava que o filho se tornasse<br />
advogado. Todavia, confrontado com o brilhante<br />
talento musical que Händel demonstrou<br />
desde a infância, acabaria por consentir que este<br />
tivesse lições com o compositor e organista<br />
Friedrich Zachow (1663-1712). Sob a sua orientação,<br />
Händel converteu-se num hábil cravista e<br />
organista, estudou violino e oboé e recebeu uma<br />
sólida preparação contrapontística. Ao mesmo<br />
tempo familiarizou-se com a música dos principais<br />
compositores alemães e italianos seus contemporâneos,<br />
através da cópia das suas partituras,<br />
como era prática habitual na época.<br />
Correspondendo aos desígnios de seu pai,<br />
Händel matriculou-se em 1702 na Universidade<br />
de Halle a fim estudar direito e um ano mais tarde<br />
(quando contava 18 anos) foi nomeado organista<br />
da catedral. Contudo, a vida rotineira de mestre de<br />
capela (para a qual havia sido preparado por<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 110 ]<br />
Zachow) não satisfazia o seu espírito inquieto.<br />
A ópera era um apelo muito forte e Händel<br />
dirigiu-se para Hamburgo, em 1703, a primeira<br />
cidade alemã a dispor de um teatro público de<br />
ópera desde 1678. Händel tornou-se violinista e<br />
depois cravista da orquestra da ópera do Theater<br />
am Gänsemarkt, e estabeleceu relações com o reputado<br />
teórico Johann Matheson (1691-1764) e<br />
com Reinhard Keiser (1674-1739), então director<br />
da Ópera de Hamburgo e o principal compositor<br />
alemão neste domínio. Foi para teatro de<br />
Hamburgo que Händel compôs as suas primeiras<br />
óperas, das quais sobreviveu apenas A l m i r a , e s t r e ada<br />
a 8 de Janeiro de 1705.<br />
Entre 1706 e 1710 Händel viveu em Itália,<br />
berço da ópera e ponto de passagem obrigatório<br />
para a formação dos compositores da época, onde<br />
foi reconhecido como um dos talentos mais<br />
promissores da sua geração e onde se vinculou aos<br />
principais mecenas e músicos de Roma, Florença,<br />
Nápoles e Veneza. Conheceu Corelli, Caldara,<br />
Alessandro e Domenico Scarlatti e também<br />
Agostino Stefanni, o que exerceu uma forte<br />
influência no seu estilo musical. Este período, que<br />
seria decisivo para a sua carreira posterior, permitiu-lhe<br />
assimilar de forma mais profunda o rico<br />
idioma musical italiano e o brilhantismo do seu<br />
estilo melódico. Para além de outras composições<br />
(salmos, cantatas, oratórias, etc.), Händel conseguiu<br />
também nesta altura o ansiado sucesso no<br />
âmbito da ópera, que se verificou com A g r i p p i n a ,<br />
representada em Veneza em 1709.<br />
No ano seguinte, Händel recebeu uma proposta<br />
para ocupar o lugar de mestre de capela na<br />
corte de Hannover. Deixou então a Itália, mas o<br />
seu novo cargo não seria mais do que um episódio<br />
passageiro. Pouco tempo depois, o compositor<br />
ausentou-se de Hannover com uma licença de 12<br />
meses e dirigiu-se a Londres onde causou sensação<br />
com a sua ópera R i n a l d o , estreada no Queen’ s<br />
Theatre na temporada de 1710-11. De regresso a<br />
Hannover, foi-lhe concedida uma segunda licença<br />
em 1712 para se deslocar novamente à capital<br />
britânica, com a condição de que regressasse num<br />
“espaço de tempo razoável”. Quando dois anos<br />
mais tarde Georg-Ludwig de Hannover foi proclamado<br />
Rei de Inglaterra (Jorge I), Händel ainda<br />
não tinha regressado, acabando por se fixar definitivamente<br />
em Londres, onde empreendeu uma<br />
intensa, mas conturbada carreira.<br />
Durante os primeiros anos na capital britânica,<br />
Händel compôs apenas quatro óperas (Il Pastor
fido, Teseo, Lucio Silla e Amadigi), mas após um interregno<br />
de cinco anos, retomou a sua actividade<br />
operática com grande fulgor, motivado pela criação<br />
da Royal Academy of Music. Fundada em<br />
1719, com o patrocínio do rei, tratava-se de uma<br />
sociedade por acções destinada à realização de representações<br />
operáticas no King’ s T h e a t r e . L o g o<br />
n o seu primeiro ano de existência, Händel ocupou<br />
o cargo de director musical desta instituição e<br />
deslocou-se ao continente com a missão de contratar<br />
cantores. Após o seu regresso, já em 1720,<br />
alcançou um êxito sem precedentes com a ópera<br />
Radamisto que marca o início de um dos seus períodos<br />
criativos mais brilhantes. Pouco tempo depois,<br />
os italianos Filippo Amadei (c.1690-1730) e<br />
Giovanni Bononcini (1670-1755) foram contratados<br />
para completar as temporadas. Este último,<br />
que havia estreado muitas óperas em Roma,<br />
Berlim e Viena, converteu-se no rival mais directo<br />
de Händel.<br />
Graças à energia que Händel colocou ao<br />
serviço deste empreendimento a Academia foi um<br />
êxito artístico, ainda que tivesse sido um fracasso<br />
do ponto de vista económico. Para ela Händel<br />
compôs algumas das suas melhores óperas: além<br />
de Radamisto (1720), O t t o n e (1723), Giulio Cesare<br />
(1724), T a m e r l a n o (1724), R o d e l i n d a (1725) e<br />
A d m e t o (1727) obtiveram êxitos clamorosos.<br />
Porém, o sucesso de The Beggar’ s Opera, de John<br />
Gay e Johann Christoph Peppush – sátira cruel da<br />
s i t u ação político-social londrina e uma dura crítica<br />
ópera à italiana – contribuiria para agravar a<br />
decadência económica que se foi progressivamente<br />
instalando na Royal Academy, que teve de ser dissolvida<br />
em 1728.<br />
Estes acontecimentos não dissuadiram<br />
Händel dos seus intuitos. Logo no ano seguinte,<br />
retoma juntamente com Johann Jakob Heidegger,<br />
empresário do King’ s Theatre, uma sociedade<br />
musical com o mesmo nome da anterior, obtendo<br />
a autorização do rei para utilizar o material da<br />
antiga. Händel assumiu as funções de compositor<br />
e empresário e partiu para Itália à procura de vozes<br />
competentes.<br />
Contudo, a actividade da segunda Royal<br />
Academy foi ainda mais difícil e saldou-se por<br />
vários insucessos que obrigaram Händel a repor<br />
êxitos anteriores. As dificuldades foram agravadas<br />
pelo surgimento em 1733 da Nobility Opera, criada<br />
por um grupo de nobres, com o apoio do<br />
Príncipe de Gales e que passou a exercer uma forte<br />
rivalidade com a companhia de Händel. A<br />
Nobility Opera contava com a colaboração de<br />
Nicola Porpora (1686-1768) – e mais tarde com<br />
a de Johann Adolf Hasse (1699-1783) – para<br />
além dos cantores virtuosos mais reputados da<br />
Europa, entre os quais o célebre c a s t r a t o C a r l o<br />
Broschi (Farinelli) e Francesca Cuzzoni, a qual<br />
tinha trabalhado para a Royal Academy.<br />
Antevendo maiores lucros e mais prestígio na nova<br />
instituição, o sócio de Händel (Heidegger) ofereceu<br />
o King’ s Theatre à Nobility Opera no ano<br />
seguinte.<br />
Na sequência destes acontecimentos, Händel<br />
passou a apresentar as suas óperas no Covent<br />
Garden, a partir de 1734, vendo-se obrigado a<br />
compor, a refazer obras antigas e a incluir nos seus<br />
programas oratórias, concertos para orgão e concerti<br />
g r o s s i . A batalha era desigual e o público estava<br />
dividido, daí que nem a apresentação de óperas da<br />
estatura de Ariodante (1735), Alcina (1735), Atalanta<br />
(1736) e G i u s t i n a (1737), ou da oratória profana<br />
Alexander’ s Feast – cuja apresentação incluía simultaneamente<br />
o célebre Concerto Grosso em Dó<br />
Maior, que ouviremos no concerto de hoje –, conseguiriam<br />
impedir o fracasso financeiro da companhia.<br />
Em 1737 e apesar do êxito da Nobility<br />
Ópera, ambas as companhias acabariam por encerrar<br />
as portas, em consequência da morte da Rainha<br />
Carolina. No curto espaço de tempo que separa o<br />
malogro da terceira companhia de ópera de Händel<br />
e a sua definitiva ruptura com o género operático,<br />
em 1741, compôs ainda F a r a m o n d o ( 1 7 3 8 ) ,<br />
S e r s e (1738) e Deidamia (1741). Nenhuma delas<br />
teve sucesso, mas Serse celebrizou-se nos séculos<br />
posteriores, devido ao famoso arioso Ombra mai fu.<br />
Dotadas de um elevado teor artístico, as<br />
óperas de Händel viram-se confrontadas com o<br />
insucesso, mais por razões sociais do que musicais.<br />
A nobreza londrina era demasiado pobre para<br />
apoiar uma companhia de ópera (duas era impensável!)<br />
e a corte não tinha uma relação de mecenato<br />
directo com a ópera, como acontecia noutros<br />
centros europeus. Por outro lado, a classe média<br />
não se interessava por um entretenimento musical<br />
pensado para a nobreza e apresentado numa língua<br />
estrangeira. A partir de 1741 os esforços criativos<br />
de Händel seriam especialmente canalizados para<br />
a música religiosa, transpondo o seu génio<br />
dramático para a oratória. Mais do que uma opção<br />
estética, esta viragem reflecte antes uma mudança<br />
social no contexto que envolvia a arte de Händel.<br />
[ 111 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCV III.
Em torno da Ópera Séria<br />
Quando Händel se deslocou pela primeira<br />
vez a Inglaterra, com a finalidade de levar Rinaldo à<br />
cena, o público inglês tinha já alguma familiaridade<br />
com o estilo operático italiano, devido às<br />
diversas imitações e importações que se fizeram<br />
durante os primeiros anos de setecentos. Em 1705<br />
foi representado no Teatro de Drury Lane um<br />
libreto italiano traduzido em inglês, Arsinoe, Queen<br />
of Cyprus, com música de Thomas Clayton, Nicola<br />
Haym e Charles Dieuparyt. Realizaram-se também<br />
adaptações de óperas italianas, como C a m i l l a ,<br />
de Bononcini (traduzida para inglês em 1706) e<br />
Pirro e Demetrio, de Alessandro Scarlatti (1708) –<br />
parte em inglês, parte em italiano. A primeira<br />
ópera cantada integralmente em italiano foi<br />
A l m a h i d e de Bononcini (1710), mesmo assim com<br />
i n t e r m e z z i em inglês. Paralelamente processaram-se<br />
tentativas de estabelecer uma ópera em língua<br />
inglesa, mas estas foram em geral mal sucedidas. A<br />
única ópera originalmente em inglês foi R o s a m o n d<br />
(1707), com libreto de Joseph Addison e música<br />
de Thomas Clayton, mas estava condenada ao fracasso<br />
por incompetência do compositor. Deste<br />
modo, o êxito de Rinaldo (1711) marca simultaneamente<br />
o início da série de quarenta óperas que<br />
Händel compôs (ao longo de trinta anos) para os<br />
palcos londrinos e o início do reinado da ópera<br />
italiana na capital britânica.<br />
Ao contrário do que se poderia pensar, a<br />
colossal produção operática de Händel não apresenta<br />
uma linha de orientação ou de desenvolvimento<br />
interno claro, seguindo com maior ou<br />
menor genialidade os ideais da ópera séria. As<br />
temáticas utilizadas são as habituais na época:<br />
lendas e aventuras maravilhosas, baseadas nas<br />
obras de Ariosto e Tasso ou, com mais frequência,<br />
em episódios da vida dos heróis da antiguidade,<br />
livremente adaptados para lograr o máximo de<br />
situações dramáticas intensas. O esquema musical<br />
é similar ao utilizado nos inícios do século XVIII<br />
e recorre às tipologias básicas da ópera séria:<br />
recitativo (s e c c o e a c o m p a g n i a t o), arioso, ária (com<br />
predomínio da ária da capo), duetos e, mais raramente,<br />
grandes conjuntos de solistas. Os dois tipos<br />
de recitativos combinam-se de vez em quando com<br />
árias e a r i o s i breves, convertendo as grandes cenas<br />
dramáticas em complexos que recordam a liberdade<br />
da ópera veneziana do século XVII, ao<br />
mesmo tempo que anunciam (no que diz respeito<br />
à coerência e continuidade dramática) os métodos<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 112 ]<br />
de Gluck e de outros compositores da segunda<br />
metade do século. A acção é reservada aos recitativos<br />
– o recitativo acompanhado adquire com<br />
Händel uma elaboração e intensidade expressiva<br />
sem precedentes – ou às cenas acima descritas,<br />
enquanto as árias se limitam a reflectir ou expressar<br />
uma atmosfera ou sentimento específico, de<br />
acordo com a Teoria dos Afectos.<br />
As partituras de Händel constituem uma<br />
espécie de compêndio da ária no barroco tardio,<br />
pela variedade de exemplos que apresentam, não<br />
obstante a sua estreita ligação com as convenções<br />
da ópera séria. Entre os brilhantes efeitos virtuosísticos<br />
e de agilidade das árias di bravura e a expressividade<br />
patética ou sublime das árias c a n t a b i l e ,<br />
abre-se um mundo de incontáveis riquezas musicais.<br />
Algumas ilustram a grandiloquência barroca,<br />
através dos seus ricos acompanhamentos contrapontísticos,<br />
ou de carácter concertante, enquanto<br />
outras recorrem simplesmente a melodias de estilo<br />
popular, com acompanhamentos de feição galante.<br />
A influência da dança é mais um aspecto singular<br />
das árias de Händel. Tal como J. S. Bach,<br />
Händel estilizava os padrões da dança de acordo<br />
com os afectos a transmitir. Entre os mais utilizados,<br />
encontram-se: a siciliana; a sarabanda, quase<br />
sempre relacionada com a ária c a n t a b i l e (o exemplo<br />
mais famoso é Lascia ch’ io pianga de Rinaldo); a<br />
bourrée; a gavotte, ou mesmo a allemande, nas<br />
árias destinadas a descrever sentimentos de triunfo<br />
e agitação; e ainda a courante e o minueto, no caso<br />
da arietta simples com melodia de sabor popular.<br />
A ária da capo é a principal configuração formal<br />
subjacente a estas categorias, embora possam<br />
aparecer outros padrões. A partir de 1730 Händel<br />
passa a recorrer com mais frequência a formas<br />
abreviadas e simples de ária. Os conjuntos maiores<br />
que os duos são raros, assim como os coros.<br />
Quando estes últimos aparecem, são geralmente<br />
destinados a um cantor por cada parte.<br />
Para além da Abertura, a música puramente<br />
instrumental surge geralmente como música de<br />
dança ou então para assinalar momentos-chave do<br />
argumento, como batalhas, cerimónias ou a evocação<br />
do sobrenatural. Neste último caso é frequente<br />
a designação S i n f o n i a . As Aberturas têm em<br />
geral duas grandes secções: a primeira corresponde<br />
ao carácter solene da abertura à francesa, enquanto<br />
que a segunda é uma dança ou uma série de danças.<br />
A genialidade de Händel está em ter sabido<br />
transcender este conjunto de receitas, através de<br />
uma invenção musical singular.
Obras-primas para grandes virtuosos<br />
As óperas representadas no concerto de hoje<br />
pertencem todas, com a excepção de S e r s e , a o<br />
primeiro período da Royal Academy of Music<br />
(1720-28). Durante este lapso de tempo, Händel<br />
teve o privilégio de ver os principais papéis das<br />
suas óperas serem interpretados por alguns dos<br />
cantores mais célebres da Europa. Apesar dos seus<br />
caprichos e rivalidades (documentadas em<br />
inúmeros relatos setecentistas) e da teimosia de<br />
Händel (que não se submetia aos desejos dos cantores<br />
com a mesma facilidade que os seus colegas),<br />
os seus dotes vocais e interpretativos foram certamente<br />
uma forte fonte de inspiração. Os compositores<br />
desta época eram frequentemente obrigados<br />
a submeter-se às exigências dos cantores, escrevendo<br />
uma música que fizesse brilhar ao máximo os<br />
seus recursos vocais e teatrais. Além disso, as árias<br />
tinham de ser distribuídas de acordo com a<br />
importância de cada membro do elenco.<br />
Os três cantores virtuosos mais importantes<br />
que deram corpo à música de Händel durante este<br />
período foram o castrato Senesio (Francesco<br />
Bernardi), Francesca Cuzzoni e Faustina Bordoni.<br />
O primeiro estreou-se em Londres em 1720, a<br />
segunda em 1723 e a terceira em 1726. Actuaram<br />
pela primeira vez juntos em Alessandro – a primeira<br />
das cinco óperas que Händel escreveu para as duas<br />
cantoras rivais (que chegaram a agredir-se fisicamente<br />
em cena na representação de uma ópera de<br />
Bononcini) e pela segunda em Admeto (1727), uma<br />
das partituras mais subtis de Händel e o último<br />
grande triunfo da Royal Academy (19 representações),<br />
antes do seu encerramento em 1728.<br />
Como já vinha sendo habitual a rivalidade<br />
entre as duas prime donne tinha de vir ao de cima:<br />
“A violência dos partidários das duas cantoras era<br />
tão grande que, quando os admiradores de uma<br />
começavam a aplaudir, os da outra assobiavam”,<br />
conta-nos Quantz na sua A u t o b i o g r a f i a . Por outro<br />
lado, o célebre flautista não poupa elogios à música<br />
e à interpretação: “ (…) tinha uma música magnífica.<br />
Faustina, Cuzzoni e Senesio, três virtuosos,<br />
de primeiro nível, foram os intérpretes fundamentais.<br />
Os restantes eram medianos… A orquestra<br />
estava integrada na sua maior parte por alemães,<br />
vários italianos e poucos ingleses. Castrucci, violinista<br />
italiano era o concertino. Todos juntos, sob<br />
a direcção de Händel, conseguiram resultados<br />
excelentes”. Admeto coroa assim um período áureo<br />
da produção de Händel que se tinha iniciado com<br />
R a d a m i s t o (1720), o primeiro grande sucesso da<br />
Royal Academy of Music, descrito por Charles<br />
Burney como: “mais sólido, engenhoso e cheio de<br />
fogo que qualquer outro drama produzido por<br />
Händel”.<br />
Giulio Cesare (1724) e R o d e l i n d a (1725) constituem<br />
outros dois exemplos da mestria e invenção<br />
dramática de Händel. Se o primeiro representa o<br />
exemplo mais profundo e acabado do ideal heróico,<br />
pela sua exótica magnificência e refinado colorido<br />
orquestral, o segundo constitui um comovente<br />
relato onde a ternura e a dor se exprimem<br />
intensamente<br />
Finalmente, S e r s e (1738) inclui-se na última<br />
fase operática de Händel, depois do malogro das<br />
três companhias com que colaborou. Apesar de<br />
um elenco de prestígio e da inclusão (pela primeira<br />
vez em Händel) de cenas de carácter cómico, teve<br />
pouco sucesso, mantendo-se em cena apenas<br />
durante cinco representações. Não deixa de ser<br />
curioso que uma obra que se inicia com Ombra mai<br />
fu, talvez a melodia mais célebre de Händel (juntamente<br />
com o A l l e l u i a do M e s s i a s e a H o r n p i p e d a<br />
<strong>Música</strong> Aquática), tivesse despertado tão pouco<br />
interesse junto do público da época. Por outro<br />
lado, é ainda mais curioso que esta ária sensual,<br />
cantada por Serse em louvor de uma árvore<br />
(“Jamais houve uma sombra tão querida e<br />
amada…”) se tenha celebrizado no século XIX<br />
como o “Largo de Händel”. Originalmente um<br />
L a r g h e t t o , foi alterada intencionalmente pelos editores<br />
até se converter num lentíssimo L a r g o , o que<br />
lhe retira a sua peculiar força expressiva, ao mesmo<br />
tempo que lhe dá um sabor pseudo-religioso.<br />
Esperamos reencontrar neste concerto o seu espírito<br />
original.<br />
[ 113 ] Lisbo a, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
GEORG FRIEDRICH HÄNDELÁrias<br />
Admeto, Rè di Tessaglia<br />
Recitativo<br />
Orride larve! E che da me volete?<br />
Perchè Admeto fuggite? Ah! Si voi siete, che turbate la mente,<br />
e da voi non risente che un affanno penoso: crude! Non avrò<br />
mai dunquo riposo? Se volete, ch’io muora, io morirò; ma che!<br />
Voi non potete farmi morir senza turbar la quiete? Si, si: di<br />
ferro armate, sanguinolenti, o crude tornate, omai tornate.<br />
Ma! Oh Dio! Ch’io già vi sento che di pietate ignude non<br />
volete che cessi il mio tormento. L’etra si scuota, e con<br />
fulminea fiamma fenda la terra, e nel suo cupo letto ov’è de<br />
sogni il regno, là vi ritrovi, e là vi sguarci il petto. Così<br />
almeno potrò, se il cor si sface già che morir degg’io, morir in<br />
pace.<br />
Arioso<br />
Chiudetevi, miei lumi,<br />
in un perpetuo oblio,<br />
Così col morir mio<br />
Toglietemi alle pene, eterni Numi.<br />
Rodelinda, Regina de’ Longobardi<br />
Recitativo<br />
Pompe vane di morte!<br />
menzogne di dolor.<br />
Che riserbate il mio volto e ‘l mio nome,<br />
ed adulate del vincitor superbo il genio altiero!<br />
voidite, ch’io son morto; mà risponde il mio duol<br />
che non è vero.<br />
Bertarido fù Rè; da Grimoaldo vinto fuggi<br />
presso degli Unni giace.<br />
Abbia l’alma riposo e ‘l cener pace.<br />
L’ace al cener mio?<br />
Astritiranni! dunque fin ch’avrò vita,<br />
guerra avrò con glistenti<br />
e congli affanni.<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 114 ]<br />
Admeto, Rei da Tessália<br />
Recitativo<br />
Horrendas larvas! E que quereis de mim?<br />
Porque foges Admeto? Ah, sois vós que perturbais<br />
a mente, e de vós só surgem ânsias penosas: cruéis!<br />
Nunca terei repouso? Se quereis que eu morra,<br />
morrerei; mas quê! Vós não podeis fazer-me morrer<br />
sem perturbar a quietude? Sim, sim: de ferro<br />
armadas, sanguinolentas, oh cruéis voltais, agora<br />
voltais. Mas! Oh Deus! Que eu já vos oiço e que,<br />
despidas de piedade, não quereis que cesse o meu<br />
tormento. O céu se inflame, e com fulmínea chama<br />
rasgue a terra, e no seu escuro leito onde é o<br />
reino dos sonhos, aí vos encontrarei, e aí se trespassará<br />
o peito. Assim poderei ao menos, – se o coração<br />
se desfez, já que devo morrer –, morrer em<br />
paz.<br />
Arioso<br />
Fechai-vos, olhos meus,<br />
num perpétuo esquecimento,<br />
assim como a minha morte<br />
Livrai-me das penas, eternos Deuses.<br />
Rodelinda, Rainha dos Lombardos<br />
Recitativo<br />
Pompas vãs de morte!<br />
Mentiras de dor.<br />
Que guardais o meu rosto e o meu nome,<br />
e adulais do vencedor soberbo o génio altaneiro!<br />
Dizeis que morri; mas responde o meu lamento<br />
que não é verdade.<br />
Bertarido foi Rei; vencido por Grimoaldo fugiu,<br />
junto aos Unni jaz.<br />
Tenha a alma repouso e as cinzas paz.<br />
Quereis as minhas cinzas?<br />
Cruéis tiranos! Pois enquanto viver,<br />
guerra farei aos padecimentos<br />
e às ânsias.
Aria<br />
Dove sei? Amato bene! Vieni l’alma a consolar!<br />
Sono oppresso da’ tormenti, ed i crudi miei<br />
lamenti sol conte posso bear.<br />
Accompagnato<br />
Si, l’infida consorte mi creda estinto ancora,<br />
porga al novello sposo la fè,<br />
che a me serbò; lieta qual fronda,<br />
e sappia allor ch’io vivo,<br />
e si confronda.<br />
Aria<br />
Confusa si miri, l’infida consorte,<br />
che in faccia di morte così mi deride.<br />
Confinti sospiri e s’agita e s’ange,<br />
e morto mi piange e vivo m’uoido.<br />
Giulio Cesare in Egitto<br />
Aria<br />
Se infiorito ameno prato<br />
l’augellin trà fiori fronde si nasconde,<br />
fa più grato il suo cantar.<br />
Se cosi Lidia vezzosa spiega ancor notti<br />
canore,<br />
più graziosa fà ogni core innamorar.<br />
Aria<br />
Va tacito e nascosto, quand’avido è<br />
preda,<br />
l’astuto cacciator.<br />
E chi è mal far disposto, non brama<br />
che si veda<br />
l’inganno del suo cor<br />
Serse<br />
Recitativo<br />
Frondi tenere, e belle del mio platano amato,<br />
per voi risplenda il Fato.<br />
Tuoni, lampi, e procelle non<br />
v’oltraggino mai<br />
la cara pace<br />
nè giunga a profanarvi austro repace.<br />
Arioso<br />
Ombra mai fù, di vegetabile cara<br />
ed amabile soave più<br />
Ária<br />
Onde estás? Bem amado! Vem a alma consolar!<br />
Eis-me oprimido por tormentos, e os meus cruéis<br />
lamentos só contigo posso enlevar.<br />
Recitativo Acompanhado<br />
Sim, a infiel consorte crê-me ainda morto,<br />
que ofereça ao novo esposo a fidelidade,<br />
que me era reservada; feliz como arbusto,<br />
saiba então que eu vivo,<br />
e se confunda.<br />
Ária<br />
Confusa se olha, a infiel consorte,<br />
que em face da morte assim de mim escarnece.<br />
Com fingidos suspiros se agita e estremece,<br />
e morto chora-me, e vivo me mato.<br />
Júlio César no Egipto<br />
Ária<br />
Se num florido e ameno prado<br />
o passarinho entre flores e ramos se esconde,<br />
mais alegre se torna o seu cantar.<br />
Se assim Lídia graciosa desdobra ainda notas<br />
canoras,<br />
mais bela faz todo o coração enamorar-se<br />
Ária<br />
Vai calado e escondido, quando ávido está da<br />
presa,<br />
o astuto caçador.<br />
E quem a fazer o mal está disposto, não anseia<br />
que se veja<br />
o engano do seu coração<br />
Xerxes<br />
Recitativo<br />
Ramos tenros, e belos do meu plátano amado,<br />
para vós brilha o Fado.<br />
Trovões, relâmpagos e tempestades não<br />
vos ultragem nunca<br />
a cara paz<br />
nem venha a profanar-vos ave de rapina.<br />
Arioso<br />
Nunca houve sombra vegetal mais amada,<br />
terna e suave.<br />
Tradução de Dinorah Mealha<br />
[ 115 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
Nascido na Alemanha, Andreas Scholl iniciou<br />
os estudos musicais nos Kiedricher<br />
Chorbuben. Entre 1987 e 1993 estudou com<br />
Richard Levitt e René Jacobs na Schola Cantorum<br />
de Basileia, onde obteve o diploma em <strong>Música</strong><br />
Antiga. Em 1992 foi bolseiro do Conselho da<br />
Europa e da <strong>Fundação</strong> Claude Nicolas Ledoux.<br />
Vencedor do Prémio Gramophone de 1996,<br />
na categoria de <strong>Música</strong> Vocal Barroca, pela sua<br />
gravação (Harmonia Mundi) do Stabat Mater d e<br />
Vivaldi, com o Ensemble 415, Andreas Scholl é<br />
considerado como o grande contratenor da sua<br />
geração.<br />
Andreas Scholl completou também um série<br />
de gravações a solo, largamente aplaudidas pela<br />
crítica, que incluiram um disco de canções barrocas<br />
alemãs e outro de canções com alaúde e<br />
canções populares inglesas. Outros projectos para<br />
a Harmonia Mundi incluem a Oratória de Natal d e<br />
J. S. Bach, Orfeo de Monteverdi, as Vésperas de 1610<br />
e a gravação de Maddalena ai piedi di Cristo d e<br />
Antonio Caldara (vencedor do Prémio Gramophone<br />
1997), todos sob a direcção de René<br />
Jacobs. Com Les arts Florissants e William Christie<br />
gravou o M e s s i a s e com o Collegium Vocale e<br />
Philip Herreweghe a Missa em Si menor de J. S.<br />
Bach.<br />
Em concerto, Andreas Scholl trabalha regularmente<br />
com os principais especialistas de <strong>Música</strong><br />
Barroca, tendo-se apresentado com William<br />
Christie e Les arts Florissants no Festival de Aixen-Provence<br />
(M e s s i a s); com Philipe Herreweghe e<br />
o Collegium Vocale (em digressão: Missa em Si<br />
menor, Oratória de Natal e Cantatas de J. S. Bach);<br />
com La Petite Bande (em digressão: Paixão segundo<br />
São João e Cantatas de J. S. Bach); com o Coro de<br />
Câmara de Estugarda (Missa em Si menor de J. S.<br />
Bach); com a Orchestra do Período do Iluminismo,<br />
em Oxford e Frankfurt (Árias de<br />
Händel); com o Coro Bach Holandês (em<br />
digressão: Paixão segundo São Mateus e Paixão segundo<br />
Andreas Scholl<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 116 ]<br />
São João de J. S. Bach); e com o Ensemble 415<br />
(Stabat Mater de Vivaldi). Nos Concertos Promenade<br />
da BBC cantou em Julio César e no<br />
Magnificat de J. S. Bach com a Orchestra do Período<br />
do Iluminismo, sob a direcção de René Jacobs<br />
e na Missa em Sol Maior de J. S. Bach<br />
com o Collegium Vocale, dirigido por Philip<br />
Herreweghe. Em recital apresentou-se no Théatre<br />
Grévin, na Ópera de Tel-Aviv, no Purcell Room e<br />
ainda em Beaune e Turim. Participou em diversos<br />
festivais, incluindo os de Versailles, Ambronay,<br />
Saintes, Santiago e Lucerna.<br />
Na temporada de 1997/98 Andreas Scholl<br />
estreou-se na ópera, com grande êxito, interpretando<br />
o papel de Bertarido em Rodelinda, com a Ópera<br />
do Festival de Glyndebourne sob a direcção de<br />
William Christie. Os seus mais importantes papéis<br />
em versão de concerto incluem: o papel principal<br />
no Salomão de Händel, em digressão com o Gabrieli<br />
Consort e Paul MacCreesh (em gravação para a<br />
Deutsche Grammophon); árias de Händel, com a<br />
St. Paul Chamber Orchestra e Christopher<br />
Hogwood; a Missa em Si menor e a Paixão segundo<br />
São Mateus de J. S. Bach, em digressão com o<br />
Collegium Vocale e Philip Herreweghe; a P a i x ã o<br />
segundo São João de J. S. Bach, com a Orquestra Real<br />
do Concertgebouw e Ton Koopman e ainda<br />
recitais no Wigmore Hall, na Filarmonia de<br />
Colónia, no Concertgebouw e no Festival de<br />
Sidney.
Em 1736, Johann Gottlieb Janitsch intitulou<br />
o seu círculo privado de música de câmara T h e<br />
Musical Academy. Janitsch, que tinha sido recrutado<br />
como gambista para a residência do príncipe prussiano<br />
Frederico em Rheinsberg, perto de Berlim,<br />
escolheu o nome no espírito da antiga tradição.<br />
Quatro anos mais tarde, Frederico era já Rei da<br />
Prússia e a Academia de Janitsch tinha-se tornado<br />
numa instituição de prestígio em Berlim. Os<br />
encontros realizavam-se todas as sextas-feiras na<br />
residência privada de Janitsch na Jaegerstrasse. A<br />
interacção entre os músicos, na forma de uma<br />
intensa troca de ideias musicais, definiu o conceito<br />
de “música de conjunto” tal como os músicos de<br />
Berlim entendiam naqueles tempos – e ainda hoje.<br />
A Akademie für Alte Musik foi fundada em<br />
1982. Jovens músicos de várias orquestras profissionais<br />
de Berlim – a Orquestra Sinfónica da<br />
Rádio, a Orquestra Sinfónica de Berlim e a<br />
Staatskapelle – juntaram forças para a formação<br />
de um novo agrupamento formado por instrumentos<br />
de época. Assim, um novo impulso foi dado às<br />
até então tímidas tentativas no sentido da interpretação<br />
autêntica da <strong>Música</strong> Antiga na República<br />
Democrática Alemã. A Akademie fez a sua estreia<br />
com uma muito notada série de concertos na<br />
Universidade Humboldt, intitulados “<strong>Música</strong><br />
Antiga – hoje”. Desde 1984 a orquestra possui a<br />
sua própria série de concertos no Schauspielhaus<br />
am Gendarmenmarkt de Berlim.<br />
A reputação da orquestra cresceu rapidamente,<br />
tanto local como internacionalmente. Em<br />
1998 a orquestra apresentou-se no Tage der Alten<br />
Musik Herne, um festival dirigido pela Radiodifusão<br />
da Alemanha Ocidental em Colónia. Desde essa<br />
altura o agrupamento realizou digressões pela<br />
Suiça, Áustria, Holanda, Bélgica, Inglaterra,<br />
França, Itália, Grécia, Chipre, Egipto, Síria, Israel,<br />
Jordânia, Rússia e pelos Estados Bálticos. Gravou<br />
para as editoras Capriccio e Deutsche Schall-<br />
Akademie Für Alte Musik<br />
platten Berlin (Berlin Classics), assim como para<br />
numerosas estações de rádio e televisão. Desde o<br />
Outono de 1994 a Akademie für alte Musik grava<br />
em exclusivo para a Harmonia Mundi France. A<br />
gravação da Missa em Si menor de Johann<br />
Sebastian Bach com o maestro René Jacobs foi<br />
premiada com o Prémio Alemão do Disco de<br />
1994.<br />
A Akademie für Alte Musik tem uma estrutura<br />
democrática e trabalha sem um director permanente.<br />
As decisões artísticas, incluindo a sua<br />
programação e os aspectos interpretativos e estéticos<br />
em geral, são tomadas colectivamente. O seu<br />
carácter é tanto influenciado por esta vitalidade<br />
regeneradora e pela abertura intelectual dos seus<br />
membros, como pelo trabalho desenvolvido com<br />
artistas como René Jacobs, Philippe Herreweghe,<br />
Ton Koopman, Reinhard Goebel, Andreas Staier<br />
e Monica Huggett. Desde a queda do muro de<br />
Berlim, a orquestra tem estado associada ao Coro<br />
de Câmara da RIAS, dirigido por Marcus Creed;<br />
por outro lado, a presente colaboração com Andreas<br />
Scholl reveste-se de particular importância.<br />
A Akademie für Alte Musik domina um<br />
largo e invulgar reportório de música de câmara e<br />
orquestral. No entanto, dedica particular atenção<br />
à música composta para a corte de Berlim durante<br />
o século XVIII. Um CD recente, produzido pela<br />
Berlim Classics, inclui uma selecção destas obras.<br />
Para além das obras de Carl Philipp Emanuel<br />
Bach, a orquestra tem a intenção de trazer para o<br />
domínio público composições longamente negligenciadas<br />
de compositores como Johann Friedrich<br />
Agricola, Christoph Nichelmann, Johann Philipp<br />
Kirnberger, Johann Joachim Quantz e Christoph<br />
Schaffrath. Este trabalho tem por base um levantamento<br />
de manuscritos do extenso arquivo da<br />
Biblioteca Estadual de Berlim. Por outro lado a<br />
orquestra interpreta regularmente as grande obras<br />
do reportório europeu, incluindo a pertencente à<br />
tradição vienense clássica e pré-romântica, até<br />
[ 117 ] Li sboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
Schubert, Mendelssohn ou Brahms. Compositores<br />
como Händel, Telemann, Rameau, Purcell,<br />
Corelli, Vivaldi e os membros da família Bach, são<br />
regularmente incluídos nos programas de concerto,<br />
assim outros compositores como Georg Benda,<br />
Biber, Boccherini, Campra, Graun, Homilius,<br />
Pepusch, Pisendel, Wassenaer, Zelenka, ou Jan<br />
Václav Voriek, boémio contemporâneo de<br />
Schubert.<br />
No trabalho com o Coro de Câmara da RIAS,<br />
a orquestra apresentou várias interpretações de<br />
música coral sacra e profana dos séculos XVII e<br />
XVIII. Uma particular atenção é dedicada à interpretação<br />
das oratórias de Händel. Embora a<br />
orquestra inclua no seu reportório obras de<br />
primeira linha, como os R e q u i e m de Mozart ou<br />
Brahms, ou a Missa em Si menor de Johann<br />
Sebastian Bach, mostra particular entusiasmo na<br />
descoberta e interpretação de composições esquecidas.<br />
A primeira gravação do oratório L a<br />
Conversione di Sant’Agostino de Johann Adolph Hasse,<br />
sublinha este objectivo.<br />
O O r f e o de Telemann ou S e m e l e de Händel,<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 118 ]<br />
são os resultados, largamente reconhecidos, de<br />
uma cooperação contínua com a Staatsoper,<br />
enriquecendo o largo espectro do trabalho artístico<br />
do agrupamento. Vários projectos de ópera<br />
dedicados a Haydn e a Mozart tiveram lugar no<br />
teatro histórico do Palácio de Frederico II em<br />
Postdam, Sanssouci. Em 1998 a Akademie für<br />
Alte Musik regressa ao Festival de <strong>Música</strong> Antiga<br />
de Innsbruck para participar em duas óperas<br />
como Orquestra Residente.
119<br />
Li sboa, 6 a 1 4 Outub ro MCMXCVIII.
Quarta-Feira, Dia 1 4<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 120 ]
Sociedade de Geografia de Lisboa, 2 1 . 3 0<br />
MÚSICA PARA A ÓPERA DE HAMBURGO<br />
JOHANN CHRISTIAN SCHIEFFERDECKER (1679 - 1732)<br />
Suite em Dó Maior (Hamburgo 1 7 1 1)<br />
(Ouverture - Passepied - Entrée - Chaconne - Gigue)<br />
CARL PHILIPP EMANUEL BACH (1714 - 1788)<br />
Sinfonia para cordas e contínuo, em Si menor, Wq 1 8 2/5 (Hamburgo 1 7 7 3)<br />
(Allegretto - Larghetto - Presto)<br />
GEORG PHILIPP TELEMANN (1681 - 1767)<br />
Suite La Bizarre (Hamburgo ca. 1 7 3 0)<br />
(Ouverture - Courante - Gavotte Rondeau - Branle - Sarabande -<br />
Fantaisie - Menuet I - Menuet II - Rossignol)<br />
I n t e r v a l o<br />
GEORG PHILIPP TELEMANN (1681 - 1767)<br />
Abertura e cenas da ópera O r p h e u s (Hamburgo 1 7 2 6)<br />
A b e r t u r a<br />
1.º Acto, Cena 2:<br />
Ária: Einsamkeit ist mein Vergnügen<br />
Coro das Ninfas - Polonaise - Niais<br />
Cena 9:<br />
Recitativo: Wie ist mir? – Ária: Ach Tod, ach süßer Tod<br />
2.º Acto, Cena 3:<br />
Sinfonia de Orfeu – Ária: Trà speranza<br />
Cena 8:<br />
Coro dos espíritos (instrumental) – Recitativo: Ihr Götter, ach!<br />
Ária: Vezzosi lumi – Sinfonia das Fúrias<br />
3.º Acto, Cena 4:<br />
Recitativo: Hier sitze ich in der Einsamkeit<br />
Ária: Fließt ihr Zeugen meiner Schmerzen!<br />
Recitativo: Nun alle Hoffnung ist vorbei!<br />
S i n f o n i a<br />
AKADEMIE FÜR ALTE MUSIK<br />
Roman Trekel B a r í t o n o<br />
[ 121 ] Li sboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
MÚSICA PARA A ÓPERA<br />
DE HAMBURGO<br />
por Cristina Fernandes<br />
Ao longo da primeira metade do século<br />
XVIII, a ópera italiana invadiu os principais centros<br />
europeus, sobrepondo-se com frequência às<br />
tradições autóctones no âmbito do teatro musical.<br />
A Alemanha e outras regiões de língua alemã,<br />
como a Áustria, não foram alheias a esta influência.<br />
Os principais compositores de ópera italiana<br />
trabalharam nesta época em território germânico<br />
(Hasse em Dresden, Jomelli em Stuttgart, Caldara<br />
em Viena, etc.), enquanto o maior libretista do<br />
género, Pietro Metastasio, foi poeta da corte<br />
vienense.<br />
Ainda durante o século XVII, as tentativas de<br />
estabelecer na Alemanha uma ópera em língua<br />
vernácula tiveram em geral pouco sucesso e curta<br />
duração. É o caso das cortes de Brunswick-<br />
Wolfenbüttel e de Weissenfals, esta última o<br />
único local onde a habitual mescla de árias em italiano<br />
e em alemão não era tolerada. A única<br />
excepção consistente a este panorama verificou-se<br />
à margem do circuito cortesão, no primeiro teatro<br />
público que surgiu em solo alemão, a Ópera de<br />
Hamburgo, onde a burguesia conseguiu estabelecer<br />
alguma tradição na interpretação de espectáculos<br />
operáticos em língua alemã, apesar da violenta<br />
oposição das autoridades eclesiásticas e de várias<br />
crises financeiras. Ainda que a ópera italiana fosse<br />
admitida nas suas programações e que a maioria<br />
dos libretos fossem traduções ou adaptações de<br />
textos importados de outros centros europeus, esta<br />
funcionou como um importante baluarte de defesa<br />
contra o prepotente alastrar da ópera italiana<br />
“alla moda”, acabando por se converter na principal<br />
e mais influente instituição operática da<br />
Alemanha.<br />
Fundada em 1678, a Ópera de Hamburgo<br />
estava sediada no famoso Theater am Gänsemarkt<br />
(nome que advinha do facto de se encontrar junto<br />
ao Mercado dos Gansos) e constituiu uma espécie<br />
de paralelo germânico da ópera comercial<br />
veneziana. Após a sua inauguração, com o<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 122 ]<br />
Singspiel de Johann Theile, Adam und Eva, os compositores<br />
mais promissores de ópera alemã viram<br />
as suas obras representadas em Hamburgo: além<br />
de Theile (aluno de Schütz), Strungk, Franck,<br />
Förtsch, Kusser, Krieger, Keiser, Telemann e o<br />
próprio Händel. Os libretistas eram quase sempre<br />
poetas de origem local (Lucas von Bostel,<br />
Christian Heinrich Postel, Christian Hunold, conhecido<br />
como Menantes, e Barthold Feind) assim<br />
como os intérpretes. Hamburgo viveu sem a contratação<br />
de grandes estrelas e sem sucumbir ao<br />
fascínio dos castrati.<br />
Todavia, não se pense que a ópera alemã<br />
como género musical consistia numa proposta<br />
inteiramente autónoma e desprovida de outras<br />
influências. Desde os finais do século XVII que<br />
esta se baseava numa espécie de receita, cujos três<br />
principais ingredientes eram o lied alemão, a ária<br />
italiana e a dança francesa. Cada qual era interpretado<br />
na sua própria língua: os recitativos em<br />
alemão, as árias em italiano (ou, mais raramente,<br />
noutra língua estrangeira), enquanto as descrições<br />
do cenário e as cenas de dança continham com frequência<br />
indicações em francês. A maior parte dos<br />
argumentos eram históricos ou mitológicos, com<br />
cenas de violência e espectáculo enfatizados pelo<br />
gosto alemão e moderado por sub-argumentos de<br />
comédia local. Tal como nos teatros públicos<br />
venezianos de meados do séc. XVII, a introdução<br />
de personagens cómicas (especialmente criados e<br />
camponeses) tornou-se cada vez mais importante e<br />
popular, acabando por dar origem a intermezzi independentes.<br />
Na Ópera de Hamburgo a coexistência de<br />
línguas diferentes era habitual, pelo menos desde<br />
1703 (Die verdammte Staat-Sucht de Hinsch/Keiser)<br />
e estendeu-se ao longo do século. Em 1711 Hoe e<br />
Matheson incluíram em Die geheimen Begebenheiten<br />
Henrico IV, para além de árias italianas, coros em<br />
espanhol. Por vezes, apareciam também canções<br />
em dialecto. A multiplicidade linguística, a convivência<br />
pacífica entre o repertório alemão, francês<br />
e italiano e a utilização de vários géneros (sério,<br />
cómico e misto) fizeram da Ópera de Hamburgo<br />
um caso único em toda a Europa.<br />
O período mais brilhante deu-se sob a égide<br />
de Reinhard Keiser (1674-1739), que se mudou<br />
para Hamburgo em 1695. Keiser escreveu mais de<br />
50 óperas para a companhia e durante a sua<br />
direcção (1703-1707), houve um forte incremento<br />
de sucessos, interrompidos por divergências<br />
internas e dificuldades financeiras.
A fama da nova ópera e a possibilidade de<br />
contactar com Keiser e Matheson, figuras destacadas<br />
na vida musical de Hamburgo, levou Händel<br />
a esta cidade em 1703, onde permaneceu durante<br />
três anos, primeiro como violinista e depois como<br />
cravista na orquestra da ópera. Esse período viu<br />
nascer as suas primeiras óperas (Almira, Nero,<br />
F l o r i n d o e D a p h n e), das quais apenas se conserva a<br />
música de Almira.<br />
Esta primeira fase da Ópera de Hamburgo<br />
culminou com uma série de obras de Telemann<br />
(nomeado director do teatro em 1722), que<br />
alcançaram grande sucesso e que vieram suspender<br />
por algum tempo o declínio do empreendimento,<br />
que começava a dar sinais de desgaste e a causar<br />
crescentes problemas financeiros. Apesar dos<br />
promissores avanços da ópera alemã, a partir de<br />
1738 passaram a dominar as companhias itinerantes,<br />
que faziam primordialmente repertório italiano.<br />
A crise era geral: no início da década de<br />
1730, os teatros alemães deixaram de montar<br />
óperas e os que não fecharam as portas passaram<br />
para as mãos de italianos. A ópera alemã voltou ao<br />
que tinha sido inicialmente, um produto cortesão<br />
importado.<br />
Johann Christian Schiefferdecker (1679-1732)<br />
Suite em Dó Maior (Hamburgo, 1711)<br />
O organista e compositor Johann Christian<br />
Schiefferdecker(1679-1732) nasceu em Teuchern,<br />
próximo de Weissenfels. Filho de Christian<br />
Schieferdecker (Kantor, organista e professor em<br />
Teuchern), a sua família contava, desde meados do<br />
século XVII, com uma longa tradição no âmbito<br />
da música religiosa e da carreira eclesiástica na<br />
zona de Weissenfels e Zeitz. Entre 1692 e 1697,<br />
Johann Christian Schiefferdecker estudou na<br />
Escola de S. Tomás de Leipzig, passando mais<br />
tarde a frequentar a universidade da mesma cidade.<br />
Foi ainda durante os seus tempos de estudante que<br />
duas das suas primeiras óperas foram levadas à<br />
cena. A partir de 1702, Schiefferdecker tornou-se<br />
acompanhador da Ópera de Hamburgo, encontrando-se<br />
portanto em funções quando Händel<br />
ingressou na orquestra do Theater am Gänsemarkt.<br />
Aí foram interpretadas mais três das suas<br />
óperas, cujos manuscritos musicais se encontram<br />
até ao momento por localizar.<br />
Em Janeiro de 1707, Schiefferdecker sucedeu<br />
a Buxtehude, como organista da igreja de Santa<br />
Maria, em Lübeck, onde trabalhava já como assistente.<br />
De acordo com a tradição local, casou com<br />
a filha do seu predecessor, Anna Margarethe,<br />
condição que havia sido recusada por Händel,<br />
Matheson ou J. S. Bach. A partir desta fase, a sua<br />
produção focalizou-se primordialmente em torno<br />
da música vocal sacra, conforme era preconizado<br />
pelas obrigações que o seu cargo implicava, mas<br />
entre as obras que nos deixou encontram-se igualmente<br />
peças para órgão e obras para conjuntos<br />
instrumentais (aberturas, suites e sonatas), compostas<br />
especialmente durante a época de Hamburgo.<br />
A Suite em Dó Maior é mais um testemunho<br />
do gosto e da adopção do estilo francês<br />
pelos alemães, numa época em que se começava,<br />
pouco a pouco, a caminhar para a fusão dos vários<br />
estilos nacionais do barroco, concretizada de<br />
forma magistral por J. S. Bach e Händel.<br />
Carl Philipp Emanuel Bach (1714-1788)<br />
Sinfonia em Si menor, wq 182.5 (Hamburgo 1773)<br />
Carl Philipp Emanuel Bach, o mais famoso e<br />
o mais prolífico dos filhos de J. S. Bach, foi também<br />
uma das grandes personalidades da vida musical<br />
de Hamburgo, onde passou os últimos trinta<br />
anos da sua vida. Antes (1740-1758) havia sido<br />
cravista na corte de Frederico II da Prússia, em<br />
Berlim. Mas a partir de 1758 mudou-se para<br />
Hamburgo, onde sucedeu a Telemann seu padrinho,<br />
como Kantor no Johanneum e director musical<br />
das cinco principais igrejas da cidade.<br />
Todavia, a postura de C. Ph. E. Bach era bem<br />
diversa da anterior geração de mestres de capela.<br />
Para além de músico, era um intelectual atento às<br />
modificações culturais e filosóficas do seu tempo.<br />
Foi correspondente de Diderot, amigo de Lessing<br />
e Klopstock e as suas casas em Berlim e Hamburgo<br />
foram centros activos de discussão e ponto de<br />
encontro de figuras ilustres, tanto no campo musical<br />
como literário. C. Ph. E. Bach ilustra assim o<br />
espírito de uma nova época, o que terá, obviamente,<br />
repercussões na sua forma de abordar a<br />
música e no acto criativo. Ainda que ocupasse uma<br />
posição profissional nos moldes do antigo regime,<br />
o mais insigne representante da E m p f i n d s a m k e i t f o i ,<br />
por outro lado, um precursor do Romantismo, ao<br />
encarar a música como uma necessidade interior e<br />
ao valorizar nas suas obras a emoção e a subjectividade.<br />
[ 123 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCV III.
Carl Philipp Emanuel Bach escreveu dezoito<br />
sinfonias (oito em Berlim, entre 1741 e 1762, e<br />
dez em Hamburgo, entre 1773 e 1776), das quais<br />
apenas cinco foram publicadas em vida. Com<br />
excepção das quatro primeiras, as sinfonias de<br />
Emanuel Bach afastam-se, em geral, da simplicidade<br />
galante e pré-clássica, para aderir aos rasgos<br />
mais ousados da E m p f i n d s a m k e i t . Deste modo, as<br />
semelhanças com as obras do mesmo género dos<br />
seus contemporâneos (entre os quais se distinguia<br />
o seu irmão Johann Christian Bach) vão pouco<br />
além do habitual esquema em três andamentos<br />
(rápido-lento-rápido ou rápido-lento-moderato).<br />
Carl Philipp Emanuel Bach parece ter tido a clara<br />
consciência de que a era da ópera italiana estava<br />
ultrapassada e que, de futuro, a sinfonia deveria<br />
marcar a sua individualidade e primazia no universo<br />
musical.<br />
Algumas particularidades formais e expressivas<br />
funcionam como uma espécie de imagem de<br />
marca das sinfonias de C. Ph. E. Bach: os<br />
primeiros andamentos são, em geral, audaciosos e<br />
impulsivos, os segundos poéticos ou meditativos e<br />
os finais alegres e despretensiosos. A trama contínua<br />
da textura musical barroca encontra-se já<br />
ausente destas obras que, por outro lado, evitam<br />
ainda as simetrias do fraseado clássico, se bem que<br />
o contraste temático seja já evidente. São frequentes<br />
os efeitos de surpresa; interrupções súbitas<br />
do discurso musical; mudanças de tempo e<br />
dinâmica; encadeamento de andamentos sem<br />
interrupção; recapitulações truncadas; repetição de<br />
temas completos em vários níveis tonais; e ainda, o<br />
conservadorismo dos últimos andamentos (em<br />
comparação com os iniciais), que se mostram por<br />
vezes débeis na sua função de clímax.<br />
A sinfonia seleccionada para o concerto de<br />
hoje pertence ao conjunto das seis sinfonias que C.<br />
Ph. E. compôs em Hamburgo, em 1773<br />
(W.182/1-6 ou H.657-662). Resultantes de uma<br />
encomenda de Gottfried van Swieten, embaixador<br />
austríaco em Berlim, destinam-se a um efectivo<br />
instrumental constituído unicamente por cordas e<br />
baixo contínuo. Fascinado pela originalidade da<br />
música de tecla de C. Ph. E. Bach, Van Swieten<br />
pediu ao compositor que se abandonasse sem<br />
reservas à sua inspiração, sem se preocupar com as<br />
dificuldades que daí resultariam para a execução.<br />
A Sinfonia em Si menor (H.661 ou Wq 182.5)<br />
caracteriza-se pela atmosfera elegíaca que emerge<br />
do primeiro andamento (Allegretto) – e se prolonga<br />
no L a r g h e t t o –, a qual serve de contrapeso ao<br />
XIX Jornadas Gulben kian de <strong>Música</strong> Antiga [ 124]<br />
impetuoso final (P r e s t o), percorrido por acordes<br />
violentos e incisivos que pontuam o discurso.<br />
Georg Philipp Telemann (1681-1767)<br />
Suite La Bizarre (Hamburgo 1730)<br />
Em Julho de 1721, Georg Philipp Telemann<br />
foi convidado pelas autoridades da cidade de<br />
Hamburgo a suceder a Joachim Gerstenbüttel, no<br />
cargo de Kantor do Johanneum e director musical<br />
das cinco principais igrejas da cidade. Antes disso,<br />
Telemann tinha já alguns contactos com<br />
Hamburgo. Em Janeiro do mesmo ano, a sua<br />
ópera Der geduldige Socrates tinha sido levada à cena<br />
no Theater am Gänsemarkt e Telemann tinha<br />
ainda contribuído com algumas peças para a representação<br />
do Ulysses, de Keiser, estreado em 7 de<br />
Julho.<br />
As suas novas funções exigiam-lhe uma produtividade<br />
sem precedentes. Tinha de escrever<br />
duas cantatas para cada Domingo, uma nova<br />
Paixão para cada ano litúrgico e ainda oratórias e<br />
outras peças destinadas a várias solenidades, tanto<br />
religiosas como cívicas. Mas apesar dos requisitos<br />
que o seu cargo lhe impunha, arranjava ainda<br />
tempo para dirigir o Collegium Musicum em concertos<br />
públicos (à semelhança do que tinha feito<br />
em Leipzig), ou para colaborar com as produções<br />
operáticas. Inicialmente, a oposição das entidades<br />
oficiais da cidade foi forte, dando origem, em<br />
1722, à proibição de participar em apresentações<br />
públicas de música teatral ou operática. Mas na<br />
sequência da ameaça de Telemann de trocar<br />
Hamburgo por Leipzig (onde iria ocupar o lugar<br />
de Kuhnau na igreja de São Tomás), estas<br />
acabariam por ser retiradas. Telemann continuou<br />
o seu labor na institucionalização de concertos<br />
públicos e em 1722 seria mesmo nomeado director<br />
da Ópera de Hamburgo, cargo que ocupou até<br />
ao seu encerramento em 1738.<br />
Deste modo, os anos que Telemann passou<br />
em Hamburgo viram nascer uma assombrosa<br />
quantidade de obras de todos os géneros, destinadas<br />
a vários contextos. Nelas, Telemann soube<br />
favorecer a união dos principais estilos do barroco<br />
e adaptar-se a cada um deles, conforme as circunstâncias<br />
ou o carácter das composições, mas revelou<br />
sempre uma especial predilecção pelo estilo francês,<br />
do qual foi o principal cultor na Alemanha.<br />
Entre as numerosas obras instrumentais que compôs<br />
em Hamburgo (44 das suas publicações de
música de câmara datam deste período) encontram-se<br />
várias aberturas ou suites para orquestra<br />
que devem a sua celebridade a títulos pitorescos<br />
como, por exemplo, Le Tintamarre, Wassermusik o u<br />
La Bizarre (que ouviremos no concerto de hoje) e<br />
que são constituídas por danças e peças de inspiração<br />
programática, que denunciam o gosto pela<br />
estética francesa.<br />
Abertura e cenas da ópera Orpheus<br />
(Hamburgo 1726)<br />
Considerado como o principal representante<br />
da ópera alemã da primeira metade do século<br />
XVIII, depois de Reinhard Keiser, Telemann<br />
tinha já uma considerável experiência no género<br />
dramático antes de se fixar em Hamburgo. A sua<br />
primeira ópera (Sigismundus) foi composta com<br />
apenas 12 anos e segue o modelo de Lully. Mais<br />
tarde escreveu para os teatros de Leipzig e<br />
Bayreuth, mas o teatro de Hamburgo seria o destinatário<br />
das suas principais óperas, entre as quais se<br />
destacam: a já citada Der geduldige Socrates (1721); o<br />
intermezzo Il Pimpione (1725), que antecipa L a<br />
Serva Padrona, de Pergolesi; Emma und Eginhard<br />
(1728) e Don Quichott der Löwenritter (1735).<br />
Um dos pontos culminantes da actividade de<br />
Telemann na Ópera de Hamburgo é representado<br />
pela ópera Orpheus oder Die wunderbare Beständigkeit der<br />
L i e b e , (Orfeu ou a Maravilhosa Constância do<br />
Amor), estreada em 1726, no âmbito de um concerto<br />
organizado por Madame Kayser, e reposta,<br />
com algumas alterações, em 1736.<br />
Redescoberta há cerca de vinte anos na biblioteca<br />
musical do Conde von Schönbon, no castelo<br />
de Wiesentheide, na Francónia, O r p h e u s teve a<br />
sua primeira audição moderna em 1990, no<br />
Landestheater der Wartburgstadt, em Eisenach.<br />
Para uma outra produção em Berlim (Staatsoper<br />
Unter den Linden, 1994) foi pedido a René<br />
Jacobs, Peter Huth e Jakob Peters-Messer a<br />
revisão e reconstituição das lacunas presentes nos<br />
manuscritos, de forma a obter uma versão operacional<br />
para ser posta em cena. A mesma versão,<br />
com René Jacobs, a Akademie für Alte Musik e<br />
Roman Trekel no papel de Orfeu, foi gravada em<br />
1998 pela Harmonia Mundi.<br />
O mito de Orfeu (associado ao poder da<br />
música e do amor) exerceu sempre um grande<br />
fascínio sobre os compositores em todas as épocas.<br />
Telemann não foi excepção, mas fez uso de uma<br />
nova leitura, baseada na “tragédie lyrique” O r p h é e ,<br />
com libreto de Michel Du Boullay e música de<br />
Louis Lully (filho de Jean-Baptiste). Orasia,<br />
Rainha da Trácia vem ocupar o lugar do Destino,<br />
matando Eurídice por ciúme e vingança de Orfeu,<br />
que desdenhou o seu amor. Da violência deste<br />
conflito resulta um drama polarizado em duas personagens<br />
(Orfeu e Orasia), donde emergem<br />
paixões desenfreadas e forças indomáveis, destrutoras<br />
do amor.<br />
O confronto entre as diversas concepções<br />
operáticas europeias dá lugar em O r p h e u s a uma<br />
brilhante síntese de estilos (alemão, francês e italiano),<br />
géneros (sério, cómico, misto) e idiomas<br />
(árias e coros em italiano e francês encontram-se<br />
disseminadas ao longo de um libreto escrito principalmente<br />
em alemão). Alguns versos provêm<br />
ainda de óperas célebres de Händel e Lully. A<br />
invenção musical de Telemann, a sua habilidade<br />
para captar a essência dos vários estilos, o sentido<br />
dramático, o cuidado na caracterização psicológica<br />
das personagens e a expressividade da música<br />
acabam por dar coerência a esta plêiade de elementos<br />
díspares, que vão ganhando uma nova luz com<br />
o desenrolar do drama.<br />
No concerto de hoje ouviremos, além da<br />
Abertura e de outras passagens instrumentais, que<br />
denunciam a influência francesa, uma selecção de<br />
recitativos e árias de Orfeu (em alemão e italiano)<br />
que ilustram os seus conflitos interiores e os seus<br />
dotes de persuasão, oferecendo-nos uma rica paleta<br />
de sentimentos, cambiantes expressivas e linguagens<br />
musicais.<br />
[ 125 ] Li sboa, 6 a 1 4 Outub ro MCMXCVIII.
Orpheus<br />
GEORG PHILIPP TELEMANN<br />
Einsamkeit ist mein Vergnügen,<br />
nichts erfreut mich mehr als sie.<br />
Dieser Bäche sanftes Rauschen,<br />
dieser Winde lispelnden Schall,<br />
diesen Klang der Nachtigall,<br />
dieser Blumen holde Pracht,<br />
werd’ ich nimmermehr vertauschen<br />
mit der größten Ehr’ und Macht.<br />
Wie ist mir? Wozu soll ich noch<br />
leben?<br />
Kann mir der Himmel nicht mein Leben wiedergeben,<br />
das Euridice war:<br />
so acht ich alles nicht.<br />
Drum komm, du höchstgewünschter Tod,<br />
du bist allein das Ende meiner Not.<br />
Ach Tod, ach süßer Tod,<br />
ach Tod, wo bleibest du?<br />
Komm, ende meine Not!<br />
Komm, führe mich zur Ruh!<br />
Trà speranza, e trà timore,<br />
Di gioir, ò di languire,<br />
Và nutrendo il dubbio core,<br />
Il contento e il martire.<br />
Così lasso, e ne l’ interno<br />
Son trà ‘l Cielo, e trà l’ inferno.<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de Mús ica Antiga [ 126 ]<br />
Acto I, Cena 2<br />
Ária<br />
A solidão é o meu prazer,<br />
Nada me pode dar mais conforto.<br />
Os suaves murmúrios destes ribeiros,<br />
O sussurro destas brisas,<br />
O canto do rouxinol,<br />
A delicada beleza destas flores,<br />
Jamais os trocaria<br />
Nem pelas maiores honras, nem pelo poder<br />
supremo.<br />
Cena 9<br />
Recitativo<br />
Que se passa comigo? Porque devo<br />
continuar a viver?<br />
Se o céu não pode restituir-me Eurídice,<br />
Que era toda a minha vida,<br />
então nada mais me importa.<br />
Por isso, vem, morte tão desejada,<br />
Só tu podes pôr termo à minha dor.<br />
Ária<br />
Ah morte, ah doce morte!<br />
Ah morte, onde estás tu?<br />
Vem, acaba com o meu sofrimento!<br />
Vem, conduz-me ao descanso.<br />
Acto II, Cena 3<br />
Ária<br />
Entre a esperança e o medo,<br />
De se alegrar ou se afligir,<br />
Alimenta-se meu coração inseguro,<br />
De alegria e de tormento.<br />
Minha alma fatigada<br />
Paira entre o céu e o inferno.
Da diletto, e da tormento<br />
Ciò che spero, e ciò che temo,<br />
O d’ haver assai contento,<br />
O di dar in duolo estremo.<br />
Così lasso, e ne l’ interno<br />
Son trà ‘l Cielo, e trà l’ inferno.<br />
Ihr Götter, ach! Kaum hab ich sie erblickt,<br />
wird sie mir gleich davor auf Lebenslang<br />
entrückt?<br />
Das heißt ja nicht des<br />
Pluto Macht verletzen,<br />
Und sein Verbot im Frevel aus den<br />
Augen setzen.<br />
Welch Anblick! Welche Qual!<br />
Jedoch ich wag es abermal!<br />
Vezzosi lumi<br />
A vagheggiarvi,<br />
Ritornerò.<br />
Siete miei numi!<br />
Voglio adorarvi,<br />
Sin che potrò.<br />
Hier sitz ich in der Einsamkeit<br />
und werde bloß durch meine Qual vergnüget,<br />
da alle Lust von meiner Lebenszeit,<br />
da Eurydice todt und ohne Leben lieget.<br />
Sie war zu meinem Glück geboren,<br />
doch zweymal, zweymal hab’ ich sie verloren…<br />
(Das Echo aus dem benachbarten Walde wiederholet einen<br />
Teil seiner Klage.)<br />
Vergebens suchst du, Echo, mir<br />
dein zärtlichs Beyleid anzubringen.<br />
Ach könntest du dafür<br />
durch jenes Felsen off’ ne Thür,<br />
durch jenen Schlund,<br />
zu Plutos Ohren dringen:<br />
so mögtest du vielleicht<br />
mir Eurydice wieder bringen.<br />
(Die wildesten Tiere finden sich ein, dem Orpheus<br />
zuzuhören.)<br />
Eu alegro-me e sofro<br />
Pelo que espero e pelo que temo,<br />
Ou de desfrutar da maior felicidade,<br />
Ou de jazer na mais extrema angústia.<br />
Minha alma fatigada<br />
Paira entre o céu e o inferno.<br />
Cena 8<br />
Recitativo<br />
Ah, Deus! Apenas pude vislumbrá-la,<br />
Será por esse motivo que ela, para sempre, me<br />
foi tirada?<br />
Não era minha intenção desafiar o<br />
poder de Plutão,<br />
Nem sou eu um sacrílego que desafia a sua<br />
interdição.<br />
Que visão! Que sofrimento!<br />
No entanto, ousarei uma vez mais.<br />
Ária<br />
Para contemplar-vos<br />
Olhos encantadores,<br />
Regressarei.<br />
Vós sois as minhas divindades!<br />
Quero adorar-vos,<br />
Por quanto tempo possa.<br />
Acto III, Cena 4<br />
Recitativo<br />
Eis-me agora abandonado à minha solidão<br />
Apenas a minha angústia me traz alguma alegria<br />
Porque toda a felicidade deixou a minha vida<br />
Porque Euridice jaz sem vida, morta.<br />
Ela nasceu para me trazer felicidade<br />
Mas por duas vezes, duas vezes a perdi…<br />
(O eco da floresta vizinha repete uma parte do<br />
seu lamento.)<br />
É em vão, eco, que procuras<br />
Tomar parte do meu sofrimento.<br />
Ah! Mas se antes pudesses,<br />
Transpondo a porta aberta deste rochedo,<br />
Transpondo este abismo,<br />
chegar aos ouvidos de Plutão:<br />
Talvez então pudesses<br />
trazer de volta a minha Euridice.<br />
(Os animais mais selvagens reunem-se para<br />
escutar Orfeu.)<br />
[ 127 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
Was führt euch für ein Trieb, ihr Bestien, hieher?<br />
Wollt ihr mehr Leid mit mir,<br />
als Pluto selber, tragen?<br />
Ach Eurydice war mein Trost und mein Behagen:<br />
Sie war zu meinem Glück geboren,<br />
doch zweymal, zweymal hab ich sie verloren.<br />
(Er wirft seinen Lorbeer-Kranz nebst der Leyer weg, und<br />
die Symphonie hört auf.)<br />
Verhaßter Zeitvertreib, dich brauch ich nun nicht mehr,<br />
Geh, oder bring durch deine Lieder<br />
mir eiligst Eurydice wieder!<br />
Doch ich beschwere mich<br />
ohn’ Ursach’ über dich.<br />
Ich hab es selbst versehn, und meine Augen müssen<br />
dies ihr Versehn in Blut und Tränen büßen.<br />
Fließt ihr Zeugen meiner Schmerzen!<br />
Fließt ihr Zähren! tröpfelt Blut!<br />
Quillt hervor aus meinem Herzen!<br />
Badet mich in eurer Flut!<br />
Nun, alle Hoffnung ist vorbey!<br />
Ach was verharrt ihr noch, ihr Tyger, Bär und Löwen,<br />
von meiner Qual mich zu erlösen?<br />
Zerreisset mich: so werd ich frey!<br />
Doch ach ihr wollt, zu meiner Pein,<br />
bey eurem Mitleyd selbst noch grausam seyn.<br />
Komm doch, gewünschter Tod!<br />
wie sehn’ ich mich nach dir?<br />
Durch deine Gunst werd ich der Qual entnommen.<br />
Durch dich kann ich allein<br />
zu Eurydice kommen.<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 128 ]<br />
Que demanda vos traz aqui, ó feras?<br />
Tendes mais piedade de mim que o<br />
próprio Plutão?<br />
Ah! Euridice era o meu consolo e a minha alegria.<br />
Ela nasceu para me fazer feliz,<br />
Mas por duas vezes, duas vezes a perdi.<br />
(Lança para longe a sua coroa de louros e a sua<br />
lira e a música cessa.)<br />
Abominável passado, não mais preciso de ti.<br />
Vai-te, ou que tua música me restitua<br />
A minha Euridice, quanto antes!<br />
De ti sem razão me queixo<br />
Se sou eu que estou em falta,<br />
Se os meus olhos devem expiar essa culpa<br />
Em sangue e lágrimas.<br />
Ária<br />
Correi, testemunhas do meu sofrimento!<br />
Correi, lágrimas! Gotas de sangue!<br />
Jorrai do meu coração!<br />
Banhai-me na vossa corrente!<br />
Recitativo<br />
Toda a esperança está agora perdida!<br />
Ah! Porque esperais ainda, tigres, ursos e leões,<br />
Para me libertarem do meu tormento?<br />
Dilacerai-me; assim ficarei livre!<br />
Mas, ah! Mesmo a vossa piedade é cruel,<br />
E aumenta a minha dor.<br />
Vem então morte tão desejada!<br />
Ah, como te desejo!<br />
A tua bondade porá fim ao meu tormento.<br />
Só por teu indermédio, poderei de novo<br />
Juntar-me de novo a Euridice.<br />
Tradução de Cristina Barbosa
Roman Trekel<br />
Roman Trekel nasceu em Pirna e iniciou os<br />
seus estudos musicais (violino, flauta de bisel e<br />
oboé) com a idade de sete anos. Entre 1980 e<br />
1986 estudou canto com o professor Heinz Rech<br />
no Conservatório de Berlim, completando o curso<br />
com distinção. A partir de 1986 apresentou-se<br />
com a Ópera Estadual Alemã, obtendo particular<br />
sucesso no papel de Pelléas numa nova produção<br />
de Ruth Berghaus, sob a direcção de Michael<br />
Gielen. Em 1989 recebeu o primeiro prémio no<br />
Concurso de Canto Walter Gruner, em Londres e<br />
desde essa data é professor no Conservatório<br />
Hanns Eisler de Berlim.<br />
Apresentou-se em concertos e recitais em<br />
Frankfurt (Alte Oper), Hannover, Colónia,<br />
Londres (Wigmore Hall), Viena, Zurique,<br />
Bruxelas, Amesterdão e Nova Iorque. É convidado<br />
regularmente para importantes festivais, nomeadamente:<br />
Festival da Flandres, Maggio Musical<br />
Fiorentino, Festival de Salzburgo, Festival de<br />
<strong>Música</strong> Antiga de Innsbruck, Ópera de Frankfurt,<br />
Ópera Estadual de Dresden e Festival de Bayreuth.<br />
Trabalhou com muitos dos principais maestros<br />
mundiais, entre os quais se contam os nomes<br />
de Daniel Barenboim, Sir Georg Solti, Michael<br />
Gielen, René Jacobs, Fabio Luisi, Marek Janowski,<br />
Lothar Zagrosek, Zubin Mehta, Claudio Abbado<br />
e com os directores/produtores Ruth Bergvhaus,<br />
August Everding, Erhard Fischer, Jonathan Miller,<br />
Nicolas Brieger, Fred Berndt e Nikolaus Lehnhoff.<br />
Gravou para as editoras Jecklin e Decca,<br />
destacando-se os Lieder eines fahrenden Gesellen d e<br />
Gustav Mahler e os Carmina Burana de Carl Orff.<br />
Akademie Für Alte Musik<br />
(ver página 117)<br />
[ 129 ] Lisboa, 6 a 1 4 Outubro MCMXCVIII.
FICHA TÉCNICA<br />
Coordenação editorial:<br />
Cláudia Mealha<br />
Miguel Ângelo Ribeiro<br />
Traduções:<br />
Cristina Barbosa<br />
Cláudia Mealha<br />
Dinorah Mealha<br />
Rui Vieira Nery<br />
António Jorge Pacheco<br />
Miguel Ângelo Ribeiro<br />
Cátia Serradas<br />
Design:<br />
Centradesign<br />
Pré-Impressão:<br />
Mirasete, Artes Gráficas, Lda.<br />
Impressão:<br />
M2, Artes Gráficas, Lda.<br />
Depósito Legal<br />
ISBN<br />
700 Exemplares<br />
Lisboa, Outubro 1998<br />
XIX Jornadas <strong>Gulbenkian</strong> de <strong>Música</strong> Antiga [ 130 ]