16.04.2013 Views

José Roberto de Amorim A PALAVRA COMO CORPO Poesia a

José Roberto de Amorim A PALAVRA COMO CORPO Poesia a

José Roberto de Amorim A PALAVRA COMO CORPO Poesia a

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

<strong>José</strong> <strong>Roberto</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>Amorim</strong><br />

A <strong>PALAVRA</strong><br />

<strong>COMO</strong><br />

<strong>CORPO</strong><br />

<strong>Poesia</strong><br />

a<br />

Quintal dos Poetas<br />

Oficina Literária<br />

Página1


<strong>José</strong> <strong>Roberto</strong> <strong>de</strong> <strong>Amorim</strong><br />

A palavra como corpo<br />

<strong>Poesia</strong><br />

a<br />

Quintal dos Poetas<br />

Oficina Literária<br />

Página2


Copyright 2009 by <strong>José</strong> <strong>Roberto</strong> <strong>de</strong> <strong>Amorim</strong><br />

Dados <strong>de</strong> Catalogação na Publicação (CIP)<br />

A425a <strong>Amorim</strong>, <strong>José</strong> <strong>Roberto</strong> <strong>de</strong><br />

A <strong>PALAVRA</strong> <strong>COMO</strong> <strong>CORPO</strong>/ <strong>José</strong> <strong>Roberto</strong> <strong>de</strong> <strong>Amorim</strong> – Lagoa<br />

Santa: Quintal dos Poetas – Oficina Literária, 2009.<br />

ISBN*****<br />

1. Literatura Brasileira. 2.<strong>Poesia</strong>. I Título.<br />

Quintal dos Poetas<br />

Oficina Literária<br />

Lagoa Santa, 2009<br />

www.quintaldospoetas.com<br />

quintaldospoetas@quintaldospoetas.com<br />

CDD 869.915<br />

Página3


<strong>José</strong> <strong>Roberto</strong> <strong>de</strong> <strong>Amorim</strong><br />

A palavra como corpo<br />

Página4


A <strong>PALAVRA</strong> <strong>COMO</strong> <strong>CORPO</strong><br />

A palavra se disseca<br />

Com zelo cirurgião<br />

Tinta e sangue<br />

Curando a paixão<br />

Sem fechar a ferida<br />

A idéia se constrói<br />

Em movimentos <strong>de</strong> corte<br />

São incisões e suturas<br />

Que não salvam<br />

E a alma atravessa a dor<br />

Novamente<br />

Abstrata e suja<br />

Mas, não há paz<br />

De repente,<br />

Jogos <strong>de</strong> sombra e luz<br />

Pois a frase se produz<br />

Em cicatrizes e restos<br />

É peleja <strong>de</strong> parto<br />

Que dói mais<br />

Pois nasce<br />

Mas não cessa<br />

Ludibria, envelhece<br />

E <strong>de</strong> novo inicia<br />

Sem conseguir explicar<br />

Nem o corpo<br />

Nem a palavra<br />

Que não há lógica<br />

Nem reza<br />

Que dê jeito<br />

Na vida do poeta<br />

E eles morrem juntos<br />

Palavra sendo corpo<br />

E corpo sendo palavra.<br />

LISTAS DE MORTOS<br />

Os mortos se enfileiram <strong>de</strong>vagar<br />

Sombras dos castiçais se projetam<br />

E perfilam suas sombras<br />

No muro <strong>de</strong> pedras<br />

Que separa os vivos dos mortos<br />

Página5


Os mortos se enfileiram <strong>de</strong>vagar<br />

Numa or<strong>de</strong>m sem sentido<br />

Descontínua e sem ritmo<br />

Cheia <strong>de</strong> cheiro<br />

E falta <strong>de</strong> som<br />

O ruído dos mortos <strong>de</strong>sacata<br />

Mas respeito-lhes o direito<br />

De planar sem ventos<br />

Não lhes invejo os campos<br />

Nem regatos ou remansos<br />

Nem sei se isso importa:<br />

Sem peso, sem hora, sem espaço<br />

Não há comparação para mortos<br />

Mortos não enviam cartas<br />

Não aquecem a lembrança<br />

Mas mantêm uma brasa renitente<br />

Que sorve a memória dos passantes.<br />

E eles ficam e vão ficando<br />

Pingando, pingando, pingando<br />

Tudo po<strong>de</strong>ndo, como mortos<br />

Com o tempo que têm<br />

Os mortos esperam<br />

Pacientes<br />

E a lista dos mortos<br />

Exata e inapelável<br />

No dia <strong>de</strong>terminado<br />

Se completa, enfim.<br />

TEMPO<br />

Aceito os meus crimes<br />

E como consolo<br />

Observo o tempo que passa<br />

Às vezes chove<br />

As vezes bate sol<br />

Não sei<br />

O tempo tem<br />

Todo o tempo do mundo<br />

Eu também<br />

MEU PAI<br />

Uma manhã meu pai acordou<br />

Barbeou-se e se vestiu<br />

Página6


Preparou-se para a vida e o dia<br />

Como fazia<br />

Saiu cedo<br />

Voltou com a carne<br />

E a verdura do almoço,<br />

Assim era todo dia<br />

Na sua santa obrigação<br />

E saiu <strong>de</strong> novo<br />

Mas não voltou para o almoço<br />

Morreu antes:<br />

Naquele dia ele tinha acordado à toa.<br />

OS AMIGOS<br />

Com os amigos se bebe<br />

o mel e a cerveja<br />

Se come da fruta santa<br />

Docemente adoçada<br />

No canteiro da memória<br />

Choramos uns pelos outros<br />

Tantos amores traídos<br />

Juramos pelas mentiras<br />

Que amigo é isso mesmo<br />

Aos amigos agra<strong>de</strong>ço<br />

E exijo justa memória:<br />

Enterrem minha tristeza<br />

Desfral<strong>de</strong>m minha alegria.<br />

AS MULHERES<br />

(PARTE I)<br />

Eu amo as adolescentes<br />

Suas guirlandas<br />

E segredos transparentes<br />

Amo a fita em seus cabelos<br />

Quero seus pelos voláteis<br />

Seus retratos amarelos<br />

E amo solene as viúvas<br />

Na moldura das janelas<br />

Aceito suas ofertas<br />

Página7


Entendo suas feridas<br />

Eu amo sete mulheres<br />

No seu mister natural:<br />

Descobrindo, renovando<br />

Colorindo suas flores<br />

perfumando os seus ventres<br />

Como mulheres que são<br />

Ouso e me ofereço:<br />

Sorvo o gosto<br />

do gozo que elas têm,<br />

Fermentando<br />

Seu suspiro liquefeito<br />

No <strong>de</strong>lírio que não ce<strong>de</strong><br />

Imagino suas frutas<br />

Impregnando <strong>de</strong> gosto<br />

De essência <strong>de</strong> mulher<br />

Lambuzando <strong>de</strong> sabor<br />

O meu casto paladar.<br />

O CAIS<br />

O cais, é do mar<br />

O limite único:<br />

O traçado<br />

Do acabar da imensidão<br />

Começa ali<br />

E muito mais:<br />

Transita ali o marear<br />

Da alma dos marinheiros<br />

(Marinheiros: mar, eiras<br />

e beiras, nos beirais do mundo)<br />

Voltar<br />

Cruzar o teu limite único<br />

E me guardar no fundo<br />

Da ida<strong>de</strong> do planeta.<br />

O cais me liga<br />

A versão dos afogados<br />

A respeito dos abismos<br />

O cais, convenhamos<br />

Tem serventia:<br />

Nas prostitutas, doce <strong>de</strong>scanso<br />

Nas amarras do cansaço<br />

E a certeza<br />

Que o mar termina enfim<br />

Página8


Vagas lembranças<br />

De outros cais<br />

E esperanças<br />

De outros mais<br />

Pelo cais<br />

Doido bailado<br />

Embriagado<br />

Da brisa<br />

inebriada<br />

Dos navegantes<br />

No cais me jogo ao longe<br />

Consumo o fato<br />

Aceito o fado dos montanheses:<br />

Atrás do monte o monte<br />

Atrás do cais, o mar<br />

Atrás do mar, o mar.<br />

SIGNIFICADO DO BRAÇO<br />

Imaginam como bala<br />

Imagino como passo<br />

Imagino como pluma<br />

Imaginam como faca<br />

Imaginam alavanca<br />

Imagino um compasso<br />

Imaginam sem sentido<br />

Se uma luta não venceu<br />

Um aço não soergueu<br />

Um canto não conquistou<br />

Quanto a mim:<br />

No arco do abraço<br />

Imagino<br />

O sentido do que faço.<br />

OS MORTOS NÃO MORREM<br />

Os mortos não morrem<br />

Senão <strong>de</strong>pois<br />

Depois que a notícia<br />

Ecoa na paróquia<br />

Senão <strong>de</strong>pois<br />

Página9


Que a carpina dos rituais<br />

Desgravita<br />

Suas almas pesadas<br />

E<br />

finalmente as elevam aos céus<br />

Assim os mortos<br />

Morrem finalmente<br />

E morridos ficam<br />

Lacrados pelas proprieda<strong>de</strong>s da morte<br />

Mais a baixa voz dos vizinhos<br />

E a compreensão da família<br />

Amém.<br />

EPITÁFIO EM BRANCO<br />

Embora tenha sido feliz no dia-a-dia<br />

Me sinto incompleto<br />

E acho que na minha morte<br />

Terei sentimentos amargos<br />

Gosto do que fiz<br />

Mas<br />

Ninguém leu o que eu escrevi<br />

Ninguém ouviu o que eu disse<br />

Assim<br />

Não sei exatamente<br />

como se lembrarão <strong>de</strong> mim<br />

(Ninguém me <strong>de</strong>u indícios seguros)<br />

Deixo um epitáfio em branco<br />

Pois não quero ser <strong>de</strong>sonesto<br />

Comigo mesmo, eternida<strong>de</strong> afora.<br />

PRIMEIRA NEGAÇÃO DA MORTE<br />

Morrer<br />

Sei que tem que ser<br />

Mas, como e porque ?<br />

A trombose, po<strong>de</strong> ser<br />

O enfarte, a overdose<br />

Ou enzimas tresloucadas<br />

Quiçá a revolução<br />

E tem o cutelo da paixão<br />

Página10


O susto, a <strong>de</strong>cepção<br />

Morrer no leito<br />

Na solidão<br />

Morrer no escuro<br />

Na ponta da <strong>de</strong>lação<br />

Nas masmorras da nação<br />

Morrer ?<br />

Hoje, pelo menos,<br />

Não.<br />

<strong>CORPO</strong> ABERTO<br />

Por vida justo vivida<br />

Proposto fica o preço<br />

De corpóreos atos<br />

De construção e amor<br />

Vida é campo condição<br />

Ari<strong>de</strong>z está no homem<br />

De corpo pedra ou semente<br />

Vale ato lavrador<br />

De fazer recipiente<br />

Das entranhas e contornos<br />

(Semear, zelar<br />

participar da colheita)<br />

Pega a ponta do caminho<br />

Negocia a rendição<br />

A guerra não tem sentido<br />

O <strong>de</strong>sfecho é conhecido:<br />

Corpo, terra vai virar<br />

Frutificado ou não.<br />

DOCE LAR<br />

Minha casa é cheia <strong>de</strong> tudo<br />

Tem sol e tem magia<br />

Morre uma planta ou outra<br />

Mas, quase tudo dá certo<br />

Minha casa é quase cheia <strong>de</strong> tudo<br />

Tem lua e tem tesão<br />

De noite as estrelas ficam nuas<br />

E viram fadas safadas<br />

Página11


Lumiando a minha cama<br />

De dia<br />

Lagartos viram flores<br />

E flores viram lagartos<br />

Magia, sonho, ilusão<br />

Enfim, minha casa<br />

É um quintal <strong>de</strong> poetas<br />

Tem vôo das almas<br />

Presença <strong>de</strong> amigos<br />

Pais e parentes<br />

Passados pro outro mundo<br />

Presentes, mas mudos contudo<br />

Enfim, como eu disse<br />

Minha casa tem quase <strong>de</strong> tudo,<br />

Sendo mágica<br />

Mas sapos são sapos<br />

E príncipe não há<br />

Somos só dois<br />

Na minha casa<br />

As coisas<br />

São o que são<br />

E o que eu quero que sejam<br />

Pois a casa é minha<br />

E faço o que quero<br />

Com o mundo<br />

No espaço da casa minha.<br />

PREVISÃO DO TEMPO<br />

Vivo numa época<br />

Equivocada<br />

Para mim<br />

Cantando na chuva<br />

Evitando os raios<br />

No meio do temporal<br />

A evolução das máquinas<br />

Fascina<br />

Facilita a preguiça<br />

E dizem que é progresso<br />

No meu tempo<br />

A razão subverte<br />

Página12


Fecundada do excesso<br />

Incomodo a natureza<br />

Subverto a moda<br />

O mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> gestão<br />

Quero emprego<br />

Mas sou a parte irracional<br />

Do processo produtivo<br />

E onero o produto<br />

Que preciso comprar<br />

Não entendo<br />

E sigo sem renda<br />

Comprando<br />

Comida, gloria e ilusão<br />

Na feira e na televisão<br />

Mas continuo feliz<br />

Não há nada a temer<br />

Exceto o dia <strong>de</strong> amanhã<br />

PRIMEIRA LIÇÃO<br />

A liberda<strong>de</strong> é bonita<br />

Tem uma flor nos cabelos<br />

Colorida <strong>de</strong> alvorada<br />

Tem jeito leve <strong>de</strong> nuvem<br />

Tem um sorriso amigo<br />

E uns olhos muito negros<br />

Sabe contar histórias<br />

Ela tem uma mão macia<br />

Que é gostoso segurar<br />

Quando ela parte e nos <strong>de</strong>ixa<br />

Tudo fica muito triste<br />

A liberda<strong>de</strong> é bonita<br />

MINAS EM MIM<br />

“Minas não há mais”<br />

Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />

Está em mim a montanha<br />

Tal qual um órgão vital<br />

Canceroso<br />

Página13


A mor<strong>de</strong>r a paisagem<br />

E uma légua <strong>de</strong> cerrado<br />

Está<br />

On<strong>de</strong> também<br />

Ainda está<br />

O mofo da sacristia<br />

A procissão dos <strong>de</strong>screntes<br />

E leve <strong>de</strong>sesperança<br />

Estão em mim<br />

A vila<br />

O veio<br />

A memória<br />

O doce, o cepo<br />

A pedra colonial<br />

Em mim<br />

Estagnado está<br />

A seca do chafariz<br />

A ari<strong>de</strong>z do quintal<br />

O susto da mansidão<br />

Eu <strong>de</strong>sconheço a razão<br />

Porque poetas <strong>de</strong> Minas<br />

Morrem e ficam mortos<br />

Numa esquina <strong>de</strong> Ipanema.<br />

DOLORES PRENHE<br />

O ventre <strong>de</strong> Dolores<br />

É terra<br />

Sim <strong>de</strong> sal e erosão<br />

E <strong>de</strong> pedras floreado<br />

De tanto terra que é<br />

Lacrado em cava <strong>de</strong> húmus<br />

No ventre leva Dolores<br />

Justo as vidas <strong>de</strong> um rio<br />

Mesmo em ossos ponteados<br />

Que pese carnes trincadas<br />

Da vigília embalada<br />

Nos hectares pejados<br />

Floresce a flor uterina<br />

Que pese o catre <strong>de</strong> seixos<br />

Que pese o nome perdido<br />

E o futuro suspenso<br />

O ventre é cova segura<br />

Fechado em forte cimento<br />

Página14


Contra o fogo engatilhado<br />

Da ari<strong>de</strong>z circundante.<br />

SALMO, VERSÍCULO, QUALQUER COISA ASSIM<br />

Tu não fugirás<br />

Porque não terás asas<br />

Nem para on<strong>de</strong> ir<br />

Arrastarás os pés<br />

Pelas grotas e ravinas<br />

Sustentarás o teu ser<br />

Leve<br />

Mas além da sua capacida<strong>de</strong><br />

De levá-lo às costas<br />

E cortarás a terra<br />

No lugar em que mereceres<br />

Mas Deus é justo,<br />

E terás a vida toda<br />

Para escolher o lugar<br />

De leve carregarás também<br />

Os sonhos<br />

Que te levarão<br />

Levitando pesado<br />

No lastro das ilusões<br />

Mas valerá a pena<br />

Pois que um dia <strong>de</strong> sol<br />

Corrige a temporada <strong>de</strong> chuva<br />

Serás único nessa trajetória<br />

Muitos se lembrarão <strong>de</strong> ti<br />

Outros não.<br />

OLHAR O MAR<br />

Olhar o mar<br />

Não é pisar a imensidão do nada<br />

Nem corrigir o tempo e o espaço<br />

Exagerando a serventia <strong>de</strong> sonhar<br />

Olhar o mar<br />

Não entorpece <strong>de</strong> morfina as ilusões<br />

Nem energiza a força da paixão<br />

Não dispersa as brumas do presente<br />

Nem adormece o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> voltar<br />

É certo que há música pairando sobre as ondas<br />

Página15


É certo que há cores borboletas salpicadas sobre os olhos<br />

E luzes <strong>de</strong> vitrais azuis <strong>de</strong> catedrais<br />

Mas não alcanço os lugares ermos<br />

Não liberto o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> enxergar além<br />

Não velejo os ventos visionários<br />

Nem <strong>de</strong>creto os termos <strong>de</strong> conquistas<br />

Navegar não é preciso<br />

O mar, afinal<br />

Não leva longe<br />

SEGUNDA NEGAÇÃO DA MORTE<br />

Na manhã do dia em que morri<br />

Acor<strong>de</strong>i com a boca amarga<br />

E a noite anterior estava ali<br />

Tinha uma valsa<br />

E falsas mulheres<br />

Mas não liguei<br />

Que a vida é assim<br />

E eu não sabia<br />

Ser a manhã do dia em que morri<br />

Na tar<strong>de</strong> do dia em que morri<br />

Segui as minhas obrigações<br />

E me senti um cidadão<br />

Probo, reservista e eleitor<br />

Mas me <strong>de</strong>solou pensar<br />

Que vinte anos vivi nesta cida<strong>de</strong><br />

E um dia percebi-me sem amigos<br />

(Mas penso que não era isso)<br />

E tinha um sentimento<br />

De vento que venta longe<br />

E caí, me contorci<br />

E cumpri o ritual da morte<br />

Na tar<strong>de</strong> do dia em que morri<br />

Mas, <strong>de</strong>savergonhado<br />

Não importa como<br />

Na noite do dia em que morri<br />

Achei melhor não <strong>de</strong>sistir<br />

Era noite<br />

Me arrumei e renasci .<br />

DECOMPOSIÇÃO<br />

Página16


Febres solares se agitam<br />

Como moinho <strong>de</strong> sal<br />

Recen<strong>de</strong>ndo das pare<strong>de</strong>s<br />

Tudo na casa é o quarto<br />

Tudo no quarto é o catre<br />

Tudo no catre é o corpo<br />

Imóvel, hostil, beligerante<br />

A contração visceral<br />

Rompe enfim a cicatriz<br />

Flui o fluido <strong>de</strong> lava<br />

Que por <strong>de</strong>scanso dá fim<br />

Exaurida exaustão<br />

Bicho, coisa, animal<br />

Geometria vertical<br />

Nem homem nem vegetal<br />

João vestido <strong>de</strong>ssa paz<br />

Nada tem que lhe supere<br />

Marcas <strong>de</strong> vida e <strong>de</strong> morte:<br />

É só verme imergindo<br />

No parto da reversão.<br />

AUTO-RETRATO<br />

(Fragmento I)<br />

Eu tinha uma avó<br />

Eterna todos os dias<br />

Me olhava<br />

E dizia:<br />

Somente no sofrimento<br />

Se apren<strong>de</strong> a viver<br />

Minha avó morreu sem me avisar<br />

Não tive tempo <strong>de</strong> me organizar<br />

Para enfrentar o enigma<br />

E fui levando<br />

Hoje ainda não sei<br />

Se ela tinha razão<br />

É bem provável que sim<br />

(A incerteza persiste)<br />

Tenho vivido feliz<br />

Mas<br />

Em recatada alegria<br />

Página17


Sei não,<br />

Melhor me prevenir<br />

As avós<br />

Sempre foram mui sábias.<br />

INFÂNCIA EM MINAS<br />

Carambola, Luciano<br />

Papagaio, cajueiro<br />

Manga, abacate, pião<br />

Simples e infinitos<br />

Maria-mole<br />

Maria a virgem<br />

Maria, a outra<br />

(Nua, quem <strong>de</strong>ra!)<br />

Vai-e-vem<br />

Me leva, me traz<br />

Me <strong>de</strong>ixa ficar<br />

Quero ver ela passar<br />

Bete, bolinha-<strong>de</strong>-gu<strong>de</strong><br />

Queimada, chicote, maré<br />

Bola <strong>de</strong> meia<br />

Barulho <strong>de</strong> estrelas<br />

E cheiro <strong>de</strong> lua<br />

Subir no muro<br />

E, enfim, sou Deus<br />

E posso mijar no mundo<br />

Vestígios <strong>de</strong> ontem<br />

Memória na mão<br />

Coceira gostosa<br />

De bicho-<strong>de</strong>-pé<br />

Retratos colados<br />

Na pare<strong>de</strong> do quarto<br />

Do mundo, da casa,<br />

De lugar algum<br />

Passam ventos<br />

Do passado<br />

Passo eu,<br />

Não tem importância<br />

Minas persiste.<br />

O ESTRUME<br />

Página18


Decisivamente<br />

É na própria consistência<br />

Que o estrume subverte<br />

Eis pois renegada pasta<br />

Desafio à transcendência<br />

Humano-tecnológica<br />

Desafio industrial<br />

À cultura oci<strong>de</strong>ntal<br />

Reciclável<br />

Penso mais ignorar<br />

A agir como a espécime<br />

Feito imagem e semelhança<br />

De seres televisivos<br />

Mas fico me remoendo<br />

E na ação <strong>de</strong> traçar<br />

A geografia do corpo<br />

Posso, <strong>de</strong>vo e faço<br />

Desse lixo um motivo<br />

Que sou, queiram ou não<br />

Animal que excrementa.<br />

DESVAIRIO DOS LÍRIOS<br />

O lírio lírico<br />

Se cansou<br />

Do branco<br />

E transgrediu<br />

Sua origem e sua cor<br />

O lírio lírico<br />

Desistiu <strong>de</strong> enfeitar o andor<br />

Delirou<br />

Envermelhou<br />

Ousado e polêmico<br />

E enfeitou o carnaval<br />

Mas lírios são flores brancas<br />

Que nascem lírios<br />

Nem <strong>de</strong>lírios, nem polêmicos<br />

Nem alegres<br />

Quedam <strong>de</strong>svairados e inúteis<br />

Se não são brancos<br />

Se não são flores<br />

Se não são lírios<br />

Carregando seus silêncios<br />

Na procissão das almas<br />

Página19


Não carece inquietações:<br />

O mister dos lírios<br />

Não tem mistérios.<br />

ROSA DO MEIO DIA<br />

Demente rosa geral<br />

Enfeite do meio dia<br />

Musgo etéreo que amortalha<br />

As retas do horizonte<br />

Imune <strong>de</strong>ntro do tempo<br />

Acesa cessa em urtigas<br />

O ventre cavo da noiva<br />

De flores petrificadas<br />

Demente rosa geral<br />

Elaborando tijolos<br />

Drenando seivas do corpo<br />

Moendo pó, moendo sal<br />

Como organismo letal<br />

De útero compactado<br />

Mas que inveja a lua<br />

E refloresce no dia.<br />

ORAÇÃO<br />

Que importa a escuridão<br />

A quem tem os olhos <strong>de</strong> Deus<br />

Que importa a outra flora<br />

A quem tem os campos <strong>de</strong> Deus<br />

Mas os olhos <strong>de</strong> Deus são mansos<br />

E há em tudo tempesta<strong>de</strong>s<br />

Os campos <strong>de</strong> Deus têm flores<br />

E as entranhas pe<strong>de</strong>m pão<br />

Eu tenho os olhos <strong>de</strong> Deus<br />

Eu tenho a sombra <strong>de</strong> Deus<br />

Mas <strong>de</strong> mãos só tenho as minhas<br />

E Deus não sabe lutar.<br />

DIÁLOGO<br />

O homem vivenciado<br />

Na educação paisagem<br />

Não conhece aritmética<br />

E linhas conhece pouco<br />

Página20


Do retrato social<br />

Fala pois, que só lhe basta<br />

Uma linguagem <strong>de</strong> braço<br />

Homem e vida se confrontam<br />

E um e outro se arma<br />

Certos nos pontos <strong>de</strong> vista:<br />

Palavra queda <strong>de</strong> braço<br />

Homem na vida educado<br />

Engatilha as idéias<br />

Num sucinto e inexeqüível<br />

Corpo-a-corpo conversar.<br />

TARDE DE DOMINGO<br />

Me <strong>de</strong>ito ao sol<br />

Como animal que sou<br />

E com o pudor <strong>de</strong> uma puta<br />

Deixo Deus<br />

Sorrateiro me invadir<br />

(Que é quem cuida do meu corpo<br />

que da alma cuido eu)<br />

Deitado ao sol<br />

Numa tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> domingo<br />

Olhando o céu<br />

Penso que posso<br />

Por um segundo<br />

Ser azul<br />

Como louco flutuar<br />

Fazer nada, ir subindo<br />

Esticado ao sol<br />

Indolente e manso<br />

Numa tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> domingo.<br />

RACIOCÍNIO ESTOMACAL<br />

As entranhas remoendo<br />

São nada<br />

Senão peças ocupadas<br />

Essas o corpo conhece<br />

Mas se entranhas não maquinam<br />

Enzimas, grãos hormonais<br />

- Então raciocinam<br />

Página21


O que entranhas vazias<br />

Remoem em pensamento<br />

Conclusão indigesta não é paz<br />

Há uma lógica inconteste<br />

Neste animal raciocínio.<br />

TERCEIRA NEGAÇÃO DA MORTE<br />

É preciso não morrer<br />

Burocraticamente<br />

Num dia apropriado<br />

No espaço reservado<br />

O corpo<br />

Finamente preparado<br />

Vestido e encerado<br />

Exposto solenemente<br />

Entre velas sob flores<br />

Morrer tranqüilo e sereno<br />

Com a família protegida<br />

E o céu assegurado<br />

Na missa dos sete dias<br />

Quero a morte como amor<br />

E o corpo consumar<br />

Sem nunca o consumir<br />

Quero a morte no campo<br />

Que sopra vento<br />

De corpo bento<br />

Que não corroi<br />

Morrer é certo<br />

Mas na hora <strong>de</strong> morrer<br />

E preciso não morrer,<br />

Mais uma vez.<br />

DE JAZZ E BAIÃO<br />

New Orleans<br />

É a capital do jazz<br />

E fica no Piauí<br />

E tem o pianista cego<br />

Que é repentista<br />

E a bailarina<br />

Que trai o garçom<br />

Página22


E tem as baladas<br />

Na beira do rio<br />

É o Mississipi<br />

Ou o velho Chico ?<br />

Eu tenho ida<strong>de</strong><br />

E danço exposto<br />

Num dancing suspeito<br />

É o velho sax<br />

Ou é a sanfona ?<br />

Nem quero saber<br />

Tem boca carmim<br />

E lance <strong>de</strong> peito<br />

Sweet Geórgia Bronw<br />

E o Baião <strong>de</strong> Dois<br />

Tem o Armstrong<br />

E o Gonzagão<br />

E vamos bailando<br />

Bailando, bailando<br />

Se isso é pecado<br />

Nem quero perdão.<br />

SIGNIFICADO DA PAZ<br />

(Num Sentido Popular)<br />

A paz<br />

É um estado geral<br />

É um riso coletivo<br />

Po<strong>de</strong> ser contraditório<br />

Definir o seu sentido<br />

Num sentido popular<br />

Sei que não é perdão<br />

Nem <strong>de</strong>creto po<strong>de</strong> ser<br />

Nem cria <strong>de</strong> marechais<br />

A paz tem valor em si?<br />

Nutritiva não é<br />

E tem algo <strong>de</strong> supérfluo<br />

No vazio do estômago<br />

Mesmo assim faz falta<br />

E todos querem<br />

A graça <strong>de</strong> bebê-la<br />

Mas a paz não é dada<br />

Página23


É trocada<br />

E, <strong>de</strong> repente,<br />

Saí do nada<br />

Posto isso,<br />

É preciso<br />

Ser guardião<br />

E sempre estar<br />

Armado para ela.<br />

ÚLTIMA NEGAÇÃO DA MORTE<br />

Um dia<br />

Deixarei <strong>de</strong> beber a cerveja<br />

Deixarei <strong>de</strong> querer o teu leite<br />

As castanhas dos teus seios<br />

Deixarei um dia<br />

De sonhar a liberda<strong>de</strong><br />

Vendo o povo no po<strong>de</strong>r<br />

Deixarei <strong>de</strong> sentir<br />

O vazio <strong>de</strong> chegar<br />

Sem nunca ter partido<br />

(Deixarei <strong>de</strong> pensar<br />

que fui feliz<br />

sem precisar ter ido?)<br />

Um dia esquecerei um dia<br />

E <strong>de</strong>ixarei <strong>de</strong> te seguir<br />

Um dia <strong>de</strong>ixarei <strong>de</strong> querer<br />

De querer criar<br />

De viver<br />

Um dia serei verbo<br />

Mas meu forte é ser sujeito<br />

Anotem meu lamento nesse dia<br />

O dia em que <strong>de</strong>sanimei.<br />

Era a hora<br />

E reviver não quis.<br />

SIGNIFICADO DO CABELO<br />

Se no fundo é vegetação<br />

Cresce então conforme o sítio<br />

Nada tem com o pensamento<br />

Não é planta ecumênica<br />

Mas é grama ou cipoal<br />

Página24


É vegetal processado<br />

Que nenhum tanto <strong>de</strong> terra<br />

Produz, induz ou digere<br />

Mas é mais uma lição:<br />

Que o corpo todo é um campo<br />

Também auto-fecundado.<br />

DIREITO À COVA<br />

Por lavra que te levaram<br />

E a lei efetivou<br />

Não sei se vale falar<br />

Pois garantia precisa<br />

É o direito cidadão<br />

Dos sete palmos na cova<br />

Da terra municipal.<br />

SIGNIFICADO DO ARADO<br />

O arado é instrumento<br />

E como instrumento: arma<br />

Qualquer coisa <strong>de</strong> gentil<br />

Torna <strong>de</strong> amor essa arma<br />

Assessoria do braço<br />

Prolongamento da mão<br />

Lado aço do abraço<br />

De corte e fecundação<br />

O arado é instrumento<br />

Que rasga e engravida<br />

Cortando o ventre da terra<br />

Como navalha no cio.<br />

FRAGMENTOS DE JORNAL<br />

O número <strong>de</strong> <strong>Roberto</strong> Lamacier<br />

Vai ser totalmente diferente<br />

De tudo o que já aconteceu em termos <strong>de</strong> Showçaite<br />

Cada vez mais furioso <strong>de</strong> busca da chave<br />

Antônio Carlos Moreira apanhou um copo vazio<br />

E começou a golpear a cabeça <strong>de</strong> Maria <strong>José</strong><br />

O guarda-roupa será quase todo feito por Marcial<br />

Que reputo <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> bom gosto<br />

Um dos maiores mesmo no gênero no Brasil<br />

Página25


Para fantasias a roupas extravagantes<br />

Sentada em sua ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> rodas<br />

Ela falou que o rapaz<br />

Arrancou a força um <strong>de</strong> seus brincos<br />

- Quase arrancou a minha orelha, conta Divina<br />

Fabiana Gomes estará circulando “comme il faut”<br />

Sua beleza no palco dançando uma valsa.<br />

O elenco está belíssimo<br />

Será a maior parada <strong>de</strong> luxo e beleza dos últimos tempos.<br />

A PROPÓSITO DOS RITUAIS DA MORTE<br />

Os fúnebres rituais<br />

Os quero brancos<br />

Os rituais da morte<br />

Eu quero leves, brandos<br />

Não <strong>de</strong> flores e velas<br />

Que tais peças não combinam<br />

Os rituais <strong>de</strong>funtos<br />

Sobretudo quero justos<br />

Sejam os rituais <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iros<br />

Compatíveis com a vida:<br />

Nem intróitos ou epílogos<br />

Não o corpo <strong>de</strong>gradado<br />

Pelos rituais da morte:<br />

Me quero forte e eterno<br />

Inoxidável<br />

Na inexorável lembrança.<br />

Abreviem os rituais<br />

Cancelem meu compromisso<br />

Sem condição, sem limite<br />

Para que voar eu possa<br />

Finalmente<br />

Finalizando o finito.<br />

AS MULHERES<br />

(Parte II)<br />

A que passa<br />

Fulgurante<br />

E exala<br />

O clamor<br />

Página26


Do sabonete<br />

A vizinha<br />

Deslumbrante<br />

A passear<br />

Seus regalos<br />

Opulentos<br />

A moça<br />

Madura<br />

Enclausurada<br />

De <strong>de</strong>cência<br />

E <strong>de</strong> medo<br />

A playmate<br />

A Cristel<br />

A Rosa <strong>de</strong> Luxemburgo<br />

A prima luxuriante<br />

A mucama, a bacana<br />

E a francesa <strong>de</strong> ligas<br />

Lambuzada <strong>de</strong> carmim<br />

A mulher <strong>de</strong> um amigo<br />

A irmã <strong>de</strong> um irmão<br />

(Por favor não me con<strong>de</strong>nem<br />

Só quero pegar na mão).<br />

ROUBAR<br />

“Roubar da cana a doçura do mel”<br />

Milton Nascimento e Chico Buarque<br />

Sei <strong>de</strong> quem roubou<br />

A doçura da cana<br />

Me dê forte motivo<br />

Porque não roubar<br />

A doçura<br />

Dos fluidos teus.<br />

AUTO-RETRATO<br />

(Fragmento II)<br />

De manhã<br />

Descobri que estava velho<br />

Tive medo <strong>de</strong> estar cego<br />

Confinado numa cela tumular<br />

Mas abro<br />

O olho do pensamento<br />

Página27


E lembro <strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong><br />

Que nem mais sei on<strong>de</strong> fica<br />

Mas que pesa na mochila<br />

Foi lá que te conheci<br />

Eu tinha vinte e poucos<br />

Você talvez <strong>de</strong>zesseis<br />

Uma bola, um papagaio<br />

O quintal da Tia Helena<br />

Preciso <strong>de</strong> um antiácido<br />

Pra acalmar a memória<br />

A poética dos relógios<br />

Legitima a velhice<br />

Minha história não tem graça<br />

Agora conta a sua.<br />

BEBER<br />

Beber <strong>de</strong> boa fonte<br />

Saciar honesta se<strong>de</strong><br />

Prover o corpo<br />

Cada poro, cada pelo<br />

A espada dos sentidos<br />

Cortar, bandida a tua carne<br />

E<br />

No regaço da loucura<br />

A ternura encontrar<br />

Beber a taça dos teus seios<br />

E dormir.<br />

METALINGUAGEM<br />

(OU A <strong>PALAVRA</strong> <strong>COMO</strong> <strong>PALAVRA</strong>)<br />

Não basta i<strong>de</strong>ar<br />

Dar, i<strong>de</strong>alizar<br />

Dizer o que ninguém disse<br />

Nem rimar<br />

Minimizando<br />

A extensão<br />

Tão pouco metrificar<br />

Ir além<br />

Mas parar aquém do metro<br />

Página28


Há que arquitetar<br />

Cortar e ajustar<br />

No lugar<br />

Concretar, talvez<br />

Mas sobretudo<br />

Moldar<br />

Lapidar com <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za<br />

Sonorizar<br />

Ouvir e ver<br />

O arranjo<br />

Das palavras.<br />

ANOTAÇÕES AUTO-BIOGRÁFICAS<br />

Sou único<br />

Não vivi antes<br />

Não viverei <strong>de</strong>pois<br />

Nada se compara a mim<br />

Humil<strong>de</strong> ou glorioso<br />

Bandoleiro e herói<br />

Indivisível<br />

Apenas eu<br />

Descobrindo<br />

Derra<strong>de</strong>iro<br />

Pioneiro<br />

Do que sou<br />

Sem ensaio e teoria<br />

Ser vivente<br />

Indispensável<br />

Sendo único<br />

E um só.<br />

A COMUNHÃO<br />

Muitos vindos no norte<br />

Muitos vindos do monte<br />

A trilha seguida<br />

E a convergência<br />

Dos rumos um plano<br />

De absorção<br />

E assim a família<br />

Página29


De um ponto alcançando<br />

Os palmos da terra<br />

A <strong>de</strong>fesa esboçada<br />

Palmilhando em torno<br />

Os filhos, as mãos<br />

O ventre, a vegetação<br />

Crescendo estrutura<br />

Gerando e colhendo<br />

Incesto sagrado<br />

Assim a nação.<br />

TE DOU A BOCA<br />

Te dou a boca do riso<br />

Te dou a boca da reza<br />

Te dou a boca do abismo<br />

Te dou a boca serena<br />

Te dou a boca do guizo<br />

Te dou a boca do mar<br />

De dou a boca do vento<br />

Te dou<br />

A boca<br />

(Leve na conta <strong>de</strong>vida:<br />

É aqui que minha alma começa).<br />

O FUNDO DAS COISAS<br />

O lado certo, quem sabe<br />

Está no fundo das coisas<br />

Que a procura dissecou<br />

Deve haver conhecimento<br />

Na pesquisa uterina<br />

Do nome que tudo tem<br />

Exato<br />

Mas há caso especial<br />

Não importa precisão<br />

Nem critérios <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>:<br />

Vale a vista e os sentidos<br />

A superfície nos basta<br />

Eis então que ninguém ama<br />

As entranhas <strong>de</strong> ninguém.<br />

Página30


TE AMAR<br />

Te amar é replantar<br />

É clarear<br />

E colorir<br />

É ter medo aventureiro<br />

Dos <strong>de</strong>clives do teu corpo<br />

Querer contudo explorá-los<br />

Te amar é ser menino<br />

Fazer coisas no quintal<br />

Olhar longe<br />

E sonhar<br />

Te amar é te seguir<br />

Sem calcular o rumo<br />

Sem ligar<br />

De estar perdido<br />

É conhecer, porém, preciso<br />

O sentido do que somos:<br />

Etéreas criaturas<br />

Sagradas e venéreas.<br />

RIO DE JANEIRO<br />

Rio<br />

É um retrato<br />

Guardado na gaveta,<br />

Singular<br />

Ocupando pouco espaço<br />

Com certeza<br />

Desprezado sem razão<br />

(Sei não<br />

Tenho dúvidas<br />

Do <strong>de</strong>sprezo<br />

E da falta <strong>de</strong> razão<br />

O Rio é maior do que eu)<br />

Mas Rio são muitos<br />

Presentes ou esquecidos<br />

Na tonteira do tempo<br />

Sem eira e sem beiral<br />

Fincado na borda do mundo<br />

Lado contrário do meu<br />

Rio me assusta<br />

Com sustos<br />

Página31


Injustos<br />

Incauto estando eu<br />

Contemplando os seus tempos<br />

No centro das suas glórias<br />

Seus mosteiros e outeiros<br />

(Se assusto<br />

Quem po<strong>de</strong> estar errado sou eu)<br />

Rio meu que ninguém vê<br />

Rio meu longe do mar<br />

Abotoado<br />

Com os botões do passado<br />

Como o cais dos mineiros<br />

De Valentim, do Serro<br />

ou Machado <strong>de</strong> Assis<br />

Olhando o avesso das almas<br />

Em pleno dia <strong>de</strong> sol<br />

Drummond, coitado<br />

Se encantou <strong>de</strong>pois da hora.<br />

Nasceu encantado<br />

Mas dormiu distraído<br />

E até virou estátua<br />

Numa esquina apertada<br />

Ali no meio do nada<br />

Distante da Itabira<br />

Do Mato Dentro, do mato<br />

Repleto <strong>de</strong> poesia<br />

A espera <strong>de</strong> Drummond<br />

Vinícius é uma rua<br />

Vinícius era uma rua, aliás<br />

Direi melhor, uma calçada<br />

Preguiçosa, que leva ao mar<br />

Mas, poetinha que era<br />

Tinha que ser isso mesmo<br />

Jobim nasceu <strong>de</strong> frente pro mundo<br />

Maior, espaçoso<br />

E levita num espaço<br />

Moribundo e glorioso<br />

De um Rio eterno<br />

Como é,<br />

Mesmo retrato<br />

Enfim<br />

Felizes os poetas<br />

Que são amigos <strong>de</strong> Tom<br />

Mas poeta ser é preciso<br />

No tom exato do Rio<br />

Não serve pra outro lugar<br />

Página32


Rio, Rio<br />

Vale aqueles que inspiras<br />

Mesmo retrato<br />

Ocupando pouco espaço<br />

Para mim<br />

Do Rio me man<strong>de</strong>m notícias<br />

Quem sabe passo por lá.<br />

VIVER E MORRER POR ISSO<br />

As pessoas querem viver.<br />

Justo que vivam<br />

Justo também<br />

Que vivas como querem ser<br />

sejam felizes:<br />

Pintar, bordar,escrever<br />

Seguir o arco-íris<br />

Ou outra bobagem qualquer<br />

Que o dia é comprido<br />

As pessoas nasceram<br />

Para viver<br />

E é justo que vivam<br />

Mesmo <strong>de</strong>siguais<br />

Bandidas e imorais<br />

Que o céu<br />

Talvez exista<br />

E nos nivele um dia<br />

À direita <strong>de</strong> Deus<br />

Mas a vida é imperfeita<br />

Nasceu marcada para morrer<br />

E fez esse discreto contrato<br />

Comigo e com você<br />

No exato dia<br />

Em que viemos ao mundo<br />

Assustados com sua dimensão<br />

Mas aceitando sua boniteza<br />

Vasto, vasto<br />

Sem Raimundo e sem solução<br />

Mas, foi feliz o dia em que viemos<br />

E tivemos uma mãe bela e eterna<br />

Que bela e eterna como era<br />

Nos amou como ninguém<br />

A vida, claro<br />

Tem seu preço<br />

Cobra dor, cobra razão<br />

Página33


Às vezes é injusta<br />

Levando quem não viveu<br />

Mas quem se importa<br />

Contudo, é correta<br />

E cobra o preço <strong>de</strong> cada dia<br />

Bom, neutro ou ruim<br />

Que a semana é longa também<br />

Começa no domingo<br />

E termina no sábado<br />

(Mas, como ando meio tonto<br />

Só vivo <strong>de</strong> quarta a domingo,<br />

Mas sem queixas<br />

Que sei usar entrelinhas)<br />

E envelhecemos<br />

Na medida exata e justa<br />

Do tempo<br />

Não é caro nem há troco<br />

A velhice é natural<br />

A morte é certa e justa<br />

Sejamos dignos<br />

Aceitando o preço<br />

Honrando nossa parte no trato<br />

Morrendo jovens ou velhos<br />

Sem pintar os cabelos<br />

Serenos<br />

Eternos, então<br />

.<br />

SÁBADO<br />

Sábado<br />

Joana solta os cabelos<br />

E abre as janelas<br />

E veste o vestido<br />

De barra rendada<br />

E bota as miçangas<br />

E os brincos <strong>de</strong> argola<br />

E forma a roda<br />

E puxa a ciranda<br />

Exumo a alegria<br />

E penso um verso<br />

Que Joana já vem<br />

Falou em me amar<br />

E po<strong>de</strong> cumprir<br />

Que hoje é o dia<br />

Página34


Toca maxixe<br />

Toca baião<br />

E roda uma valsa<br />

E vou pela mão<br />

Menino e pião<br />

Sábado é Joana<br />

Me <strong>de</strong>ixo levar.<br />

PUDOR DE NAMORADO<br />

Quis ter<br />

Teu lado mais guardado<br />

Teus <strong>de</strong>sejos solfejados<br />

Doces arpejos<br />

Coberto <strong>de</strong> pejos<br />

Meus <strong>de</strong>spejos<br />

recusados<br />

Avancei<br />

Mas não fui longe<br />

Costurei uns poucos versos<br />

Tinha que pelejar<br />

Apaixonado mas preguiçoso<br />

Simplesmente <strong>de</strong>sisti<br />

Anos mais tar<strong>de</strong><br />

Te encontrei<br />

Matutei e<br />

Descobri que estava certo:<br />

Eu seria <strong>de</strong>sastrado<br />

Desconcertado<br />

com o mesmo <strong>de</strong>sconcerto<br />

Do bebedor sóbrio e incerto<br />

Que <strong>de</strong>clama um verso<br />

Derrama a cerveja<br />

E é vaiado<br />

Sem ter bebido ainda.<br />

Mas nada,<br />

Nem bêbado e nem poeta<br />

Pura e boba poesia<br />

Amor antigo<br />

Não volta.<br />

AS MENINAS<br />

On<strong>de</strong> estão as meninas<br />

Que no meu tempo eram as meninas<br />

Página35


Aquelas coisinhas lindas<br />

Que queriam mudar o mundo<br />

Que nos aceitavam como vagabundos<br />

E tinham lugares para nos<br />

Ao seu lado<br />

Por um pouquinho<br />

De incerto amor<br />

Aquelas coisinhas<br />

Que nos mostravam o caminho<br />

A gente dançava com elas<br />

E a gente casava com elas<br />

Para sempre<br />

E a gente casava<br />

Mas amava todas<br />

as belas meninas do meu tempo<br />

Com um pouquinho <strong>de</strong> amor<br />

E com tão pouco<br />

Elas mudaram o mundo<br />

Doces meninas do meu tempo.<br />

CLARISSE<br />

Clarisse está longe<br />

Clarisse está on<strong>de</strong> ela po<strong>de</strong><br />

Fazer bem feito<br />

Segue os passarinhos<br />

Em busca <strong>de</strong> quem não po<strong>de</strong><br />

Seguir os passarinhos<br />

Abre as portas do mundo<br />

E espia <strong>de</strong>ntro<br />

Ver se tem menino precisando <strong>de</strong> encanto<br />

E vai encantando<br />

Clarisse está longe outra vez<br />

Seguindo meninos e passarinhos.<br />

PARA MARIA INÊZ<br />

Era uma segunda-feira<br />

Miserável como tal<br />

Of course.<br />

Acor<strong>de</strong>i sonebundo<br />

Com preguiça do mundo<br />

Página36


Justo e recíproco<br />

Pois nos odiamos<br />

Às segundas-feiras<br />

Mas <strong>de</strong> repente comecei a abrir gavetas<br />

E encontrar poemas pornográficos<br />

Mais retratos in<strong>de</strong>centes<br />

E falei:<br />

O dia hoje promete.<br />

CATARINA PASSOU NUA?<br />

Catarina<br />

Tinha umas luvas <strong>de</strong> viúva<br />

Trágicas e respeitosas<br />

Pretas e luzentes<br />

De noivas e bailarinas<br />

Tinha uma alma <strong>de</strong> viúva<br />

Arrependida e dada<br />

Rendada<br />

Transparecendo o corpo e a alma<br />

Buscando o paraíso<br />

Suspirando lasciva e esquecida<br />

Da memória do marido<br />

Catarina virou freira<br />

Mas antes<br />

Tirou o preto<br />

Tirou o branco e passou nua<br />

Noiva novamente<br />

Abundante para o mundo inteiro<br />

Não vi<br />

Ninguém viu<br />

Mas gosto <strong>de</strong> imaginar<br />

ARTES MAIORES<br />

Não sei dançar<br />

Nem representar<br />

Detesto maus atores<br />

Tenho dó dos bailarinos<br />

Escorraço coreógrafos<br />

Abomino os cenógrafos<br />

Pobre <strong>de</strong> mim<br />

Tenho que arriscar<br />

Meu diminuto talento<br />

Nas artes maiores<br />

Página37


Maiores do que eu<br />

Enfim<br />

Mas músico não sou<br />

Completo analfabeto<br />

Nesse nobre mister<br />

Pintor nem pensar<br />

Mesmo porque<br />

A luz da França acabou<br />

Aliás, ninguém mais liga pra ela<br />

Quem sabe<br />

Um ou outro poema<br />

Numa pobre<br />

Uma nobre antologia<br />

Na cida<strong>de</strong> em que nasci.<br />

O <strong>CORPO</strong> <strong>COMO</strong> <strong>CORPO</strong><br />

Meu corpo não é altar<br />

Me liga ao mundo<br />

Me faz concreto<br />

Ser sensitivo<br />

Me faz guerreiro<br />

Me faz gentil<br />

E <strong>de</strong>vo zelar por ele<br />

Não consumi-lo<br />

Contrariá-lo<br />

Evitar<br />

As disfunções<br />

Fazer check-up<br />

Não esquecer<br />

O movimento<br />

Nem <strong>de</strong>sprezar<br />

O sonrisal<br />

Mundanas coisas<br />

De corpo e alma<br />

São armadilhas<br />

(Doces ardis).<br />

Gelar a chama<br />

Reter o pulso<br />

Não mais pecar<br />

Nem engordar<br />

Mas meu corpo<br />

Me traz prazer<br />

Vil penitente, abjurado<br />

É réu confesso<br />

Página38


.<br />

Vai se esvaindo<br />

E consumindo<br />

O seu redor<br />

Meu corpo<br />

Me seduz:<br />

Vivo<br />

Enquanto po<strong>de</strong><br />

Imortal<br />

Enquanto dure<br />

Página39


A obra poética<br />

do autor está<br />

distribuída em<br />

três livros. Este<br />

é o primeiro<br />

<strong>de</strong>les.<br />

Página40

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!