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José Roberto de Amorim - Quintal dos Poetas

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<strong>José</strong> <strong>Roberto</strong> <strong>de</strong> <strong>Amorim</strong><br />

LUND<br />

<strong>Quintal</strong> <strong>dos</strong> poetas<br />

Oficina literária


<strong>José</strong> <strong>Roberto</strong> <strong>de</strong> <strong>Amorim</strong><br />

Lund<br />

a<br />

<strong>Quintal</strong> <strong>dos</strong> <strong>Poetas</strong><br />

Oficina Literária<br />

2


Copyright 2011 by <strong>José</strong> <strong>Roberto</strong> <strong>de</strong> <strong>Amorim</strong><br />

Da<strong>dos</strong> <strong>de</strong> Catalogação na Publicação (CIP)<br />

A524l <strong>Amorim</strong>, <strong>José</strong> <strong>Roberto</strong> <strong>de</strong><br />

LUND / <strong>José</strong> <strong>Roberto</strong> <strong>de</strong> <strong>Amorim</strong> – Lagoa Santa: <strong>Quintal</strong><br />

<strong>dos</strong> <strong>Poetas</strong> Oficina Literária*, 2011<br />

ISBN 978-85-911866-3-1<br />

1. Lund, Peter Wilhelm. 2. Biografia. 3.<br />

Paleontologia. 4. Cavernas. 5. Minas Gerais 6.<br />

Lagoa Santa. I. Título.<br />

<strong>Quintal</strong> <strong>dos</strong> <strong>Poetas</strong><br />

Oficina Literária<br />

Lagoa Santa – 2011<br />

www.quintal<strong>dos</strong>poetas.com<br />

quintal<strong>dos</strong>poetas@quintal<strong>dos</strong>poetas.com<br />

CDD: 925<br />

3


<strong>José</strong> <strong>Roberto</strong> <strong>de</strong> <strong>Amorim</strong><br />

Lund<br />

4


I – Lund<br />

Sumário<br />

II – Um bom lugar para se viver:<br />

A prodigiosa lagoa<br />

O solitário <strong>de</strong> Lagoa Santa e os<br />

<strong>de</strong>stroços da sua memória<br />

Colaboradores, amigos e aproveitadores<br />

III – Rumo às cavernas <strong>de</strong> ossos:<br />

Formigas vorazes e passarinhos sem<br />

papo<br />

O interregno europeu<br />

Nasce o paleontólogo<br />

Mãos, enxadas e pás<br />

Paus, pedras e ossos no caminho<br />

Maquiné: obra artística da natureza<br />

IV – A vitória <strong>de</strong> Deus:<br />

Uma natureza profana<br />

O inventário incompleto da Arca <strong>de</strong> Noé<br />

A enxada do diabo e a harpa <strong>de</strong> Deus<br />

5


O ponto final<br />

Cronologia básica<br />

Orientações bibliográficas<br />

6


“É diante <strong>de</strong>sta <strong>de</strong>scoberta que eu encaro os<br />

fatos, contra os quais resisto em nome do ser<br />

humano (...)”.<br />

Peter Wilhelm Lund<br />

(Escrito em 1843, quando o paleontólogo dinamarquês se<br />

convenceu amargamente <strong>de</strong> que não havia linha divisória no tempo,<br />

separando as espécies extintas das espécies ainda vivas.)<br />

7


I – Lund<br />

Quem foi Peter Wilhelm Lund? Nunca saberemos.<br />

Aliás, nunca saberemos quem foi quem quer que seja, pois o<br />

ser humano, além <strong>de</strong> complexo é instável, temperamental e<br />

refratário. Ainda mais quando tratamos <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong>s e<br />

vultos históricos, aos quais chegamos retardatariamente,<br />

através <strong>de</strong> documentos parciais, muitas vezes insinceros, ou<br />

através da opinião e paixão <strong>de</strong> terceiros.<br />

Mas, inegavelmente, Lund faz parte <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong><br />

pessoas incomuns que levaram vidas singulares e<br />

interessantes, fugindo do padrão com que a maioria enfrenta o<br />

cotidiano e encerra os seus dias. Era rico mas viveu recluso e<br />

<strong>de</strong> forma mo<strong>de</strong>sta bem no meio do fim do mundo. Como o<br />

próprio Charles Darwin comentou, ele era um excelente<br />

observador. Mas, usando argumentos absolutamente<br />

anticientíficos, se recusou a aceitar a contundência que a<br />

realida<strong>de</strong> se lhe expunha com to<strong>dos</strong> os contornos e o peso <strong>de</strong><br />

fatos incontestes. Surpreen<strong>de</strong>ntemente encerrou sua carreira<br />

exatamente no momento em que ela estava ficando mais<br />

interessante, prometendo-lhe <strong>de</strong>safios fascinantes se quisesse<br />

agitar as quietu<strong>de</strong>s da mente.<br />

Qual teria sido o traço mais marcante da personalida<strong>de</strong><br />

do chamado “sábio <strong>de</strong> Lagoa Santa”? Certamente o recato.<br />

Principalmente o recato intelectual. Carregava um coração<br />

respeitoso, guiado por uma mente excessivamente pie<strong>dos</strong>a.<br />

Embora dotado <strong>de</strong> um cérebro ativo e vibrante e tivesse suas<br />

8


vaida<strong>de</strong>s intelectuais, Peter Wilhelm Lund era espiritualmente<br />

acanhado e submisso. Seu isolamento e sua hipocondria<br />

po<strong>de</strong>m ser uma manifestação da fragilida<strong>de</strong> embutida numa<br />

timi<strong>de</strong>z visceral. Misantropo e misógino, escondia-se <strong>dos</strong><br />

outros e <strong>de</strong> si mesmo.<br />

Ele teve a donzela mais <strong>de</strong>slumbrante do baile à sua<br />

disposição e não teve coragem <strong>de</strong> tirá-la para dançar. Apesar<br />

<strong>dos</strong> flertes, quedou-se na ca<strong>de</strong>ira e <strong>de</strong>ixou a festa acabar.<br />

Se não tivesse sido assim talvez ele tivesse sido um <strong>dos</strong><br />

maiores cientistas do seu tempo, pois tinha competência para<br />

isso e havia um campo fértil se abrindo à sua frente. Mas se<br />

tivesse sido assim, certamente eu não teria me interessado por<br />

ele.<br />

9


I - Um bom lugar para se viver<br />

A prodigiosa lagoa<br />

Quando Peter Brandt, velho companheiro e<br />

colaborador <strong>de</strong> Lund morreu em 1862, o sábio escreveu ao<br />

seu mentor Reinhardt na Dinamarca pedindo que enviasse<br />

alguém para lhe prestar assistência e servir <strong>de</strong> companhia,<br />

pois, aos sessenta anos e sempre temeroso <strong>de</strong> seu estado <strong>de</strong><br />

saú<strong>de</strong>, não queria ficar inteiramente esquecido e isolado<br />

naquele fundo <strong>de</strong> sertão mineiro. Ali já vivia há mais <strong>de</strong> um<br />

quarto <strong>de</strong> século sem mostrar qualquer vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> voltar às<br />

luzes europeias, curtindo uma doce “beata ruris otia” 1<br />

autojustificada pelo medo <strong>de</strong> que seus pulmões, aqueci<strong>dos</strong> há<br />

tanto tempo pelo sol tropical, não se acostumassem mais às<br />

frialda<strong>de</strong>s escandinavas. Des<strong>de</strong> 1853 ele já havia se<br />

convencido disso e, <strong>de</strong> fato, manteve esse convencimento até<br />

a morte, cumprindo um longo exílio voluntário, encerrado no<br />

serrado, carrasquento e enfezado, mas tépido e acolhedor.<br />

A escolha do seu assistente recaiu sobre Eugenius<br />

Warming. Não foi difícil para o jovem botânico convencer <strong>de</strong><br />

que era o candidato com maior talento para preencher a vaga,<br />

especialmente porque estava muito interessado em <strong>de</strong>finir<br />

1 Expressão latina usada pelo sábio dinamarquês em uma <strong>de</strong> suas<br />

correspondências para justificar sua predileção pela pacata vidinha<br />

lagoasantense e que significa, mais ou menos, “bendita preguiça<br />

interiorana”.<br />

10


assunto para sua tese acadêmica e via em um estágio<br />

temporário nos campos das plagas centrais do Brasil, uma<br />

alternativa muito interessante para suprir essa necessida<strong>de</strong><br />

imperiosa. Estava pleno <strong>de</strong> motivação, tinha talento e<br />

empenho e tudo somou a favor. De sorte que em julho <strong>de</strong><br />

1863 o jovem e promissor cientista <strong>de</strong>sembarcava em Lagoa<br />

Santa on<strong>de</strong> ficaria durante três anos, trocando i<strong>de</strong>ias botânicas<br />

com Lund e fazendo incursões nas cercanias, buscando<br />

enten<strong>de</strong>r a harmonia árida das folhas instáveis e paus<br />

enruga<strong>dos</strong> da vegetação circundante. Ia ser uma temporada<br />

extremamente produtiva pois o velho tinha escrito um tratado<br />

sobre a formação <strong>dos</strong> campos e florestas do Brasil antes <strong>de</strong><br />

começar a se <strong>de</strong>dicar inteiramente aos fósseis das cavernas e<br />

podia ser muito útil orientando o estágio e ajudando a<br />

encurtar o caminho do pupilo. Aliás, esse antigo tratado <strong>de</strong><br />

Lund acabou sendo o único fruto original da sua aventura <strong>de</strong><br />

mais <strong>de</strong> um ano pelo sertão em companhia do botânico<br />

alemão Ludwig Rie<strong>de</strong>l. A jornada tinha começado em outubro<br />

<strong>de</strong> 1833 no Rio <strong>de</strong> Janeiro e iria terminar, um tanto<br />

melancolicamente, em Ouro Preto em fevereiro <strong>de</strong> 1835.<br />

Mas não só <strong>de</strong> botânica falavam os dois<br />

dinamarqueses nos intervalos <strong>dos</strong> seus respectivos afazeres;<br />

quer dizer, o jovem suando no lombo <strong>de</strong> um burro serviçal e<br />

o velho ocupado em respon<strong>de</strong>r cartas atrasadas que se<br />

empilhavam em sua escrivaninha rotineiramente, pois naquele<br />

tempo sua vida já se conformara ao ritmo que lhe convinha,<br />

ou seja, ia lenta e preguiçosa. Era então que Warming tinha<br />

que segurar o sono bendito, reclamado pela vitalida<strong>de</strong> <strong>dos</strong><br />

seus vinte e poucos anos, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma jornada estafante.<br />

11


Contudo gostava <strong>de</strong> ouvir as recordações - as eruditas e as<br />

sentimentais – <strong>de</strong> Lund e ele, nessas horas, se mostrava meio<br />

falastrão, pois acabava ficando ansioso por uma conversa<br />

inteligente <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter passado todo o dia recolhido na sua<br />

alcova com as janelas cerradas e as guilhotinas das vidraças<br />

<strong>de</strong>scidas com medo <strong>de</strong> que um vento traiçoeiro lhe viesse<br />

lamber o peito doentio acordando velhas feridas <strong>de</strong> infância,<br />

adormecidas no recôndito <strong>dos</strong> pulmões. E foi num <strong>de</strong>sses<br />

momentos intimistas, em que cada um recordava coisas da<br />

mesma pátria distante, que Lund teria confessado a Warming<br />

que da primeira vez que viu Lagoa Santa não pô<strong>de</strong> conter a<br />

admiração diante daquela paisagem única e exclamou<br />

suspirando <strong>de</strong> emoção:<br />

- Aqui sim, aqui é um bom lugar para se viver!<br />

Warming até achava aquela paisagem meio<br />

melancólica, mas admirava a exuberância minimalista da sua<br />

diversida<strong>de</strong> botânica com toda aquela exagerada profusão <strong>de</strong><br />

flores miudas, mo<strong>de</strong>stas mas mantendo o cerrado numa<br />

eterna primavera. A<strong>de</strong>mais, entendia exatamente o que o<br />

velho queria dizer, entrelaçando-se à sua fina sensibilida<strong>de</strong>.<br />

Na verda<strong>de</strong>, quando o ilustre sábio dinamarquês<br />

escolheu viver em Lagoa Santa, o lugar não passava <strong>de</strong> um<br />

povoado estagnado, cochilando nos baixios do Sabarabuçu. A<br />

região, contudo, já tinha quase dois séculos <strong>de</strong> história.<br />

Embora o arraial só tivesse começado a consolidar uma<br />

concentração <strong>de</strong> moradores em mea<strong>dos</strong> do século XVIII, foi<br />

12


nas suas imediações que a ban<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> Fernão Dias estacionou<br />

em 1675. Portanto, aquelas plagas faziam parte do núcleo<br />

on<strong>de</strong> a História <strong>de</strong> Minas começou, tendo o leito do Rio das<br />

Velhas como uma das principais rotas <strong>de</strong> penetração rumo às<br />

minas e os pastos do São Francisco. O gran<strong>de</strong> ban<strong>de</strong>irante<br />

paulista assentou a sua quinta nas proximida<strong>de</strong>s, mais<br />

precisamente do lado da Lagoa do Sumidouro que faz divisa<br />

com o poente do sítio <strong>de</strong> Lagoa Santa, a pouco mais <strong>de</strong> uma<br />

légua. Ali ficou quatro anos se preparando para a conquista<br />

das esmeraldas, enfrentando penúria e maledicências. Seu<br />

rumo <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro era a região <strong>de</strong> Itacambira, seguindo a<br />

lendária trilha <strong>de</strong> Marcos <strong>de</strong> Azevedo em busca da Lagoa do<br />

Vupabuçu, on<strong>de</strong> se teve notícia, pela primeira vez, da<br />

existência <strong>de</strong> abundantes e preciosas esmeraldas.<br />

O Sumidouro, nos dias <strong>de</strong> hoje, é distrito do<br />

município <strong>de</strong> Pedro Leopoldo. O nome primitivo da lagoa era<br />

Anhonhecanhuva, que quer dizer na língua geral <strong>dos</strong> nativos<br />

brasílicos, “água que some”. Por volta da virada do século<br />

XVIII para o século XIX, a região do Sumidouro compunha o<br />

distrito <strong>de</strong> Quinta, daí ser muito comum encontrarmos ainda<br />

hoje a <strong>de</strong>nominação Quinta do Sumidouro, usada para<br />

<strong>de</strong>signar a região do atual distrito lagoasantense <strong>de</strong> Fidalgo.<br />

Segundo o historiador Wal<strong>de</strong>mar <strong>de</strong> Almeida Barbosa o<br />

primeiro arraial fundado por Borba Gato ficava ao norte <strong>de</strong><br />

Lagoa Santa, talvez nas proximida<strong>de</strong>s do Rio das Velhas, às<br />

margens do caminho para a Bahia. Era ali que ele morava por<br />

ocasião da morte <strong>de</strong> d. Rodrigo Castel Branco que vem a ser<br />

exatamente o Fidalgo que <strong>de</strong>u nome ao lugar. Conta a lenda<br />

que Borba Gato armou uma tocaia para d. Rodrigo, apelando<br />

13


para uma medida verda<strong>de</strong>iramente radical para impedir que ele<br />

usurpasse <strong>de</strong> Fernão Dias o título <strong>de</strong> Governador das<br />

Esmeraldas. Com a morte do suposto intruso, Borba teve que<br />

fugir. Firmou parceria com os nativos do Vale do Rio Doce<br />

on<strong>de</strong> permaneceu, vivendo em certa tranquilida<strong>de</strong> por cerca<br />

<strong>de</strong> quinze anos. Depois, compelido pelas agitações próprias<br />

do seu espírito industrioso, voltou à, digamos, civilização e<br />

acabou indultado pelo governador. Com as contas ajustadas<br />

assim, o inquieto Borba foi se estabelecer novamente às<br />

margens do Rio das Velhas, fundando o arraial <strong>de</strong> Santo<br />

Antônio do Bom Retiro da Roça Gran<strong>de</strong>, na margem<br />

esquerda do rio, próximo a Sabará. Ele, provavelmente, era<br />

proprietário da quinta que tinha pertencido a Fernão Dias.<br />

Sim, pois era marido da filha do velho ban<strong>de</strong>irante – Maria<br />

Leite – que bem po<strong>de</strong>ria ter herdado a proprieda<strong>de</strong> do pai<br />

incorporado-a aos bens do casal. Em sendo assim, Borba<br />

Gato <strong>de</strong>via transitar habitualmente entre Sabará e a casa da<br />

Quinta do Sumidouro. O mais provável é que ele fizesse o<br />

percurso <strong>de</strong>scendo <strong>de</strong> canoa pelo Rio das Velhas e <strong>de</strong>pois<br />

voltando a pé para evitar o esforço <strong>de</strong> ter que remar rio acima.<br />

Então <strong>de</strong>via cortar a Fazenda do Fidalgo, passar por <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong><br />

Lagoa Santa, contornando a Lagoa Central pela esquerda em<br />

direitura à barra do Sabará Pequeno. Era mais ou menos o<br />

trajeto <strong>de</strong> parte da atual Rua Con<strong>de</strong> Dolabela que, muito<br />

provavelmente, teve o seu traçado tortuoso herdado da antiga<br />

estrada que ligava o Sumidouro a Sabará.<br />

Lund, contudo, não <strong>de</strong>ve ter trilhado habitualmente o<br />

caminho <strong>de</strong> Sabará já que esse não é o caminho das grutas.<br />

Elas ficam do lado oposto.<br />

14


Tempos diferentes, ambições diferentes, rumos<br />

diferentes: Borba Gato atrás <strong>de</strong> ouro e Lund atrás <strong>de</strong> ossos.<br />

Diferenças <strong>de</strong> sábios e <strong>de</strong> ban<strong>de</strong>irantes.<br />

Os ossos acabaram mas o ouro continua abundante<br />

nos recônditos das galerias do sub-solo, como acontece ser<br />

com a rica Mina <strong>de</strong> Cuiabá e seus veios correndo nas<br />

entranhas profundas da mística Serra da Pieda<strong>de</strong>.<br />

De qualquer ponto mais alto <strong>de</strong> Lagoa Santa se avista<br />

a lendária Serra do Sabarabuçu, exatamente a dita cuja Serra<br />

da Pieda<strong>de</strong>. É fácil observar que a serra está quase sempre<br />

envolvida por uma nuvem <strong>de</strong>nsa e persistente. Daí talvez a<br />

origem do nome Sabarabuçu que, para o poeta inconfi<strong>de</strong>nte<br />

Cláudio Manuel da Costa significava “gran<strong>de</strong> coisa felpuda”. 2<br />

Lendas <strong>dos</strong> primeiros tempos <strong>de</strong> Lagoa Santa dão<br />

conta <strong>de</strong> muitas curas milagrosas das águas da lagoa e foi isso<br />

que induziu o princípio do povoamento da região. Parece que<br />

em 1713 Felipe Rodrigues já tinha <strong>de</strong>scoberto o po<strong>de</strong>r<br />

curativo da lagoa e estava habitando suas margens, com um<br />

engenho erguido próximo ao sangradouro natural por on<strong>de</strong> o<br />

excesso <strong>de</strong> água da lagoa vazava até o Rio das Velhas.<br />

Rodrigues fazia parte da turma <strong>de</strong> Antônio Soares Ferreira e<br />

2 Fundamento Histórico do Poema “Vila Rica”.<br />

15


Antônio Rodrigues Arzão 3 que no alvorecer do século XVIII<br />

a<strong>de</strong>ntraram os campos do Guaicuí e foram semeando arraiais<br />

pelo norte <strong>de</strong> Minas, <strong>de</strong> Santa Luzia até a comarca do Serro<br />

Frio. Naquele tempo a lagoa chamava Lagoa Feia ou Lagoa<br />

Gran<strong>de</strong>. 4 Mas à medida que as notícias <strong>de</strong> curas foram se<br />

multiplicando o nome primitivo foi sendo santificado.<br />

Antes <strong>de</strong> 1747 não havia propriamente um povoado,<br />

mas nessa época a fama curativa da água já havia se espalhado<br />

e atraído muita gente interessada em habitar o lugar. Tudo<br />

começou quando Felipe Rodrigues contou ao padre Antônio<br />

<strong>de</strong> Miranda, resi<strong>de</strong>nte em Sabará, que tinha obtido cura para<br />

umas ulcerações antigas que lhe afetavam as pernas,<br />

simplesmente tomando banho na lagoa. O padre resolveu<br />

tentar também e não <strong>de</strong>u outra: conseguiu cura para uns<br />

“flatos melancólicos” 5 que, volta e meia, o faziam dar vexame.<br />

Contou seu sucesso para o dr. Simão Pedro <strong>de</strong> Castro que,<br />

por sua vez, conseguiu se curar <strong>de</strong> um “formigamento nas<br />

3 Este Arzão provavelmente era filho do <strong>de</strong>scobridor do ouro da<br />

região da Casa da Casca, o primeiro <strong>de</strong> que se <strong>de</strong>u notícia à Coroa<br />

Portuguesa.<br />

4 Muitos autores informam que o nome primitivo era “Lagoa das<br />

Congonhas do Sabará” pois a região primitivamente era chamada<br />

“Congonhas das Minas do Sabará”. Isso soa estranho pois<br />

“Congonhas do Sabará” é o antigo nome <strong>de</strong> Nova Lima, ou seja, a<br />

região das congonhas ficava do outro lado da Serra do Curral.<br />

5 Augusto <strong>de</strong> Lima jr. – Notícias Históricas.<br />

16


ná<strong>de</strong>gas”. Foi a partir daí que o dr. Ciali – médico italiano<br />

também resi<strong>de</strong>nte em Sabará - e <strong>de</strong>pois seu colega Giovanni<br />

Guido, este resi<strong>de</strong>nte em Vila Rica; comprovaram as<br />

proprieda<strong>de</strong>s medicinais da água da lagoa chancelando sua<br />

toponímia beatificada para todo o sempre. A fama acabou<br />

ganhando o ultramar e em 1749 publicava-se em Lisboa uma<br />

notícia sobre as virtu<strong>de</strong>s das águas daquela lagoa do sertão<br />

mineiro, o que causou gran<strong>de</strong> repercussão e acabou dando<br />

lugar ao primeiro empreendimento exportador da região. É<br />

que as águas milagrosas criaram tamanha fama em Portugal<br />

que logo se instalou uma indústria <strong>de</strong>stinada a colocar porções<br />

da mesma no mercado português, acen<strong>de</strong>ndo esperança <strong>de</strong><br />

cura aos achaca<strong>dos</strong> lusos em geral. O negócio prosperou tanto<br />

que a Coroa se assustou e proibiu sua continuida<strong>de</strong>, temerosa<br />

<strong>de</strong> que os vidrinhos milagrosos <strong>de</strong> água <strong>de</strong> Lagoa Santa<br />

prejudicassem as ativida<strong>de</strong>s balneárias baseadas nas<br />

proprieda<strong>de</strong>s curativas das águas das termas reais <strong>de</strong> Caldas da<br />

Rainha. Com certeza o temor infundido em d. João V tinha<br />

fundamento pois a concorrência da lagoa estava escorada em<br />

nada menos do que 3 milhões <strong>de</strong> metros cúbicos <strong>de</strong> água<br />

milagrosa bebível, imersível e friccionável, capaz <strong>de</strong> curar<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> úlceras e perebas <strong>de</strong> pele até espasmos neuróticos no<br />

recôndito das entranhas. Em Caldas da Rainha não havia mais<br />

<strong>de</strong> que umas fontezinhas mo<strong>de</strong>stas a suprir o palácio termal a<br />

que só os nobres e bem nasci<strong>dos</strong> tinham acesso. Daí a<br />

intervenção saneadora do rei. Nada <strong>de</strong>mais à luz da política<br />

colonialista em geral on<strong>de</strong> sufocar os empreen<strong>de</strong>dores <strong>de</strong><br />

ultramar era uma medida sempre justa e salutar.<br />

17


Em abril <strong>de</strong> 1749 o ouvidor <strong>de</strong> Sabará cuidava das<br />

primeiras providências para que o arraial da santa lagoa<br />

pu<strong>de</strong>sse ser assentado com uma certa or<strong>de</strong>m, investindo o cel.<br />

Faustino Pereira da Silva, então seu mais importante morador,<br />

<strong>de</strong> po<strong>de</strong>res para tal. Foi aí que se assentou o arruamento e se<br />

<strong>de</strong>marcou o lugar da primeira capela em honra a N. S. <strong>dos</strong><br />

Remédios. O primeiro templo era uma tapera <strong>de</strong> pau e folhas<br />

<strong>de</strong> coqueiro e foi no meio <strong>de</strong>ssa penúria pioneira que o padre<br />

Antônio <strong>de</strong> Miranda, já livre daqueles flatos traiçoeiros, pô<strong>de</strong><br />

rezar a primeira missa com toda a dignida<strong>de</strong>. Mas logo no ano<br />

seguinte se <strong>de</strong>u início à construção <strong>de</strong> templo mais <strong>de</strong>cente,<br />

construção essa que, no seu conceito básico, durou até o final<br />

do século XVIII.<br />

Em 1837 o briga<strong>de</strong>iro Raimundo <strong>José</strong> da Cunha<br />

Matos 6 registrou que os insetos e os pássaros fugiam da lagoa,<br />

mas em suas águas podiam ser pescadas piabas, bicu<strong>dos</strong>,<br />

traíras, lambaris e perumbebas. Conta ainda Cunha Matos que<br />

quatro olhos d’água borbotavam do seu centro e que se<br />

constituíam nas fontes que conservavam seu volume <strong>de</strong> água.<br />

De fato a lagoa, ao contrário da gran<strong>de</strong> parte das lagoas da<br />

região, mantém o nível da água relativamente estável durante<br />

todo o ano, mesmo no pico <strong>dos</strong> perío<strong>dos</strong> mais secos. Estes<br />

olhos d’água não são visíveis mas, provavelmente, no piso da<br />

lagoa <strong>de</strong>vem existir canais <strong>de</strong> contato com as correntes<br />

6 Corografia Histórica da Província <strong>de</strong> Minas Gerais (1837).<br />

18


subterrâneas que abundam na região. 7 Álvaro da Silveira, em<br />

<strong>de</strong>poimento publicado em 1906, conta que os moradores<br />

acreditavam que havia uma gran<strong>de</strong> nascente próxima a uma<br />

das margens cujo jorro era capaz <strong>de</strong> empurrar uma canoa até o<br />

meio da lagoa. Ele, contudo não conseguiu testemunhar isso<br />

pessoalmente. 8 Eugenius Warming afirma, em seu livro sobre<br />

a flora <strong>dos</strong> campos circundantes, que não encontrou nenhuma<br />

fonte visível <strong>de</strong> alimentação da lagoa e atribuiu a origem da<br />

água apenas à retenção do escoamento pluvial, o que parece<br />

improvável.<br />

O padre Casal 9 conta que quando a lagoa ficava<br />

totalmente parada, vale dizer sem ondulações, era possível se<br />

perceber uma nata prateada em sua superfície e que quando as<br />

pessoas bebiam <strong>de</strong>ssa água ficavam com os lábios brilhantes.<br />

Há uma lenda do final do século XIX contando que no auge<br />

<strong>de</strong> seus po<strong>de</strong>res milagrosos, por volta do meio dia, no meio da<br />

lagoa emergia um cruzeiro prateado, como que abençoando a<br />

santida<strong>de</strong> das águas. Arremata a lenda que <strong>de</strong>pois que o povo<br />

começou a se banhar na lagoa por pura diversão e sem<br />

nenhum respeito o cruzeiro parou <strong>de</strong> aparecer.<br />

7 Parece que explorações <strong>de</strong> mergulhadores, feitas na década <strong>de</strong><br />

setenta com o objetivo <strong>de</strong> localizar esses olhos d’água, resultaram<br />

infrutíferas.<br />

8 Álvaro da Silveira – “Lagoa Santa”. (Vi<strong>de</strong> bibliografia).<br />

9 Corografia Brasílica.<br />

.<br />

19


Voltando à Lagoa do Sumidouro - on<strong>de</strong> Lund fez as<br />

suas mais importantes e <strong>de</strong>sconcertantes <strong>de</strong>scobertas - é<br />

interessante lembrar que Borba Gato também andou fazendo<br />

pesquisas por lá. É que ele quis testar as proprieda<strong>de</strong>s<br />

sorvedouras da lagoa e mandou afundar umas toras <strong>de</strong><br />

ma<strong>de</strong>ira que <strong>de</strong> fato, em lugar <strong>de</strong> voltarem à tona,<br />

simplesmente sumiram. O mais fantástico é que <strong>de</strong>pois elas<br />

teriam sido encontradas boiando no Rio das Velhas, a uma<br />

meia légua da lagoa 10 . Para o historiador mineiro Diogo <strong>de</strong><br />

Vasconcelos, o mais provável é que a referência ao<br />

<strong>de</strong>saparecimento das águas da lagoa, que tanto intrigava os<br />

índios no tempo <strong>dos</strong> ban<strong>de</strong>irantes, fosse fruto das enchentes<br />

periódicas do rio que, naquele tempo em que os rios eram<br />

fortes e limpos, inundavam a região e se confundiam com a<br />

própria lagoa. Ao baixar a enchente, a água voltava ao leito do<br />

Guaicuí e sumia. O velho historiador estava certo em parte.<br />

De fato é mais ou menos essa a explicação para o sumiço das<br />

águas. Em 1843 Lund já havia registrado a causa do fenômeno<br />

numa <strong>de</strong> suas memórias. É que essa região forma o Carst <strong>de</strong><br />

Lagoa Santa. Isso quer dizer que a formação geológica do<br />

terreno apresenta características especiais, com vários canais<br />

subterrâneos que se comunicam entre si e que permitem a<br />

passagem <strong>de</strong> água, interligando <strong>de</strong>pósitos subterrâneos ou <strong>de</strong><br />

10 O próprio Lund acreditava que a Lapa do Sumidouro tinha<br />

ligação com o Rio das Velhas, o que sugere que a história do Borba<br />

po<strong>de</strong> não ser apenas uma lenda.<br />

20


superfície. Assim, é sabido que a Lagoa do Sumidouro, <strong>de</strong>pois<br />

<strong>de</strong> atingir um <strong>de</strong>terminado nível no período das chuvas, per<strong>de</strong><br />

água com certa rapi<strong>de</strong>z por canais existentes nos paredões<br />

rochosos que margeiam um <strong>dos</strong> la<strong>dos</strong> da lagoa.<br />

Comprovadamente esses canais existem e seus vestíbulos são<br />

exatamente as cavernas que fazem parte do complexo <strong>dos</strong><br />

vasos comunicantes da formação cárstica do subsolo.<br />

Quando Peter Lund chegou a Lagoa Santa em 1835<br />

encontrou um povoado mergulhado num marasmo<br />

centenário, bem à margem da rota comercial que ligava Sabará<br />

à comarca do Serro do Frio mas ignorada pelos tropeiros que<br />

trilhavam essas direituras. O único marco <strong>de</strong> evolução no<br />

longo período tinha sido a criação da paróquia <strong>de</strong> Nossa<br />

Senhora da Saú<strong>de</strong>, o que só se <strong>de</strong>u em 1823, sendo a freguesia<br />

<strong>de</strong>smembrada da jurisdição da Matriz <strong>de</strong> Santo Antônio do<br />

Bom Retiro da Roça Gran<strong>de</strong>. Seu primeiro vigário<br />

encomendado foi o padre João Batista Correa 11 . A matriz foi<br />

instalada na igreja que já existia <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1819. Tinha ela sido<br />

erguida sob uma fron<strong>dos</strong>a gameleira na borda da passagem do<br />

caminho <strong>de</strong> Sabará. A gameleira foi <strong>de</strong>rrubada ali por volta <strong>de</strong><br />

1900 pois o vigário achou que seus galhos centenários<br />

estavam ameaçando o telhado da igreja 12 . A própria matriz<br />

seria <strong>de</strong>molida em mea<strong>dos</strong> do século XX para dar lugar a atual<br />

11 Cônego Raimundo Trinda<strong>de</strong> – “Archediocese <strong>de</strong> Marianna”.<br />

12 Álvaro da Silveira – op. citi.<br />

21


Matriz <strong>de</strong> Nossa Senhora da Saú<strong>de</strong>, erguida no mesmo lugar<br />

do primitivo templo oitocentista. A primeira capela <strong>de</strong><br />

alvenaria, no entanto, foi aquela cuja construção foi iniciada<br />

em 1750. O local era o mesmo on<strong>de</strong> mais tar<strong>de</strong> se ergueria a<br />

atual capela do Rosário, tendo como orago N. S. <strong>dos</strong><br />

Remédios, contando, à frente da santa iniciativa, com o<br />

empenho <strong>de</strong> Felipe Rodrigues <strong>de</strong> Macedo e Manoel Pereira<br />

Barreto e com apoio financeiro <strong>de</strong> João Batista Furtado Leite.<br />

O bispo d. Frei Manuel da Cruz, que tinha acabado <strong>de</strong> assumir<br />

o recém criado bispado <strong>de</strong> Mariana, consi<strong>de</strong>rou o novo<br />

templo suficientemente <strong>de</strong>cente e autorizou sua consagração<br />

ao serviço do Senhor.<br />

Em 1938 Lagoa Santa passaria a categoria <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>,<br />

livrando-se da condição <strong>de</strong> distrito <strong>de</strong> Santa Luzia. Compõe<br />

assim o grupo <strong>dos</strong> municípios mineiros do século XX, apesar<br />

das suas origens remontarem às raízes do próprio Estado <strong>de</strong><br />

Minas Gerais, como vimos.<br />

Causa surpresa que Lagoa Santa seja hoje uma cida<strong>de</strong><br />

tão pacata e típica do interior mineiro não obstante sua<br />

proximida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Belo Horizonte. Acontece que até<br />

recentemente o arraial e <strong>de</strong>pois a cida<strong>de</strong>, sempre estiveram<br />

mais ou menos fora das rotas <strong>de</strong> comércio. No princípio do<br />

século XX o acesso, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a capital, era feito através da<br />

Estrada <strong>de</strong> Ferro Central do Brasil, com conexão na estação<br />

<strong>de</strong> Vespasiano on<strong>de</strong> o viajante tinha que vestir o seu<br />

impecável guarda-pó branco, atrelar as esporas na botina<br />

lustrada, montar um velho sen<strong>de</strong>ro, atravessar o Ribeirão da<br />

22


Mata e trotar durante uma hora até alcançar a lagoa e seu<br />

entorno urbano esparso. A partir <strong>de</strong> 1914 já seria possível<br />

alcançar Belo Horizonte por uma dita “estrada <strong>de</strong> automóvel”.<br />

Esses porém eram raríssimos e predominavam ainda as bestas<br />

e carroças e o guarda-pó ou a capa <strong>de</strong> vaqueiro ainda eram<br />

vestimentas indispensáveis aos valentes viajantes.<br />

Embora hoje um ramal da chamada “Estrada Real”<br />

passe <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> Lagoa Santa, esse não era o roteiro<br />

efetivamente usado nos séculos XVIII e XIX para ligar Vila<br />

Rica ou Sabará ao Serro e ao distrito diamantífero do Tijuco.<br />

Segundo o dr. <strong>José</strong> Viera Couto 13 , havia dois caminhos<br />

ligando essas regiões. Um era o chamado “Caminho do Mato”<br />

e o outro era o “Caminho do Campo”. O primeiro era o<br />

preferido para quem vinha <strong>de</strong> Vila Rica e Mariana. Seguia pelo<br />

lado <strong>de</strong> Cocais, Caeté e Morro do Pilar, evitando a Serra do<br />

Cipó. O segundo passava por Santa Luzia e Macaúbas e<br />

cruzava a serra margeando o rio Cipó, evitando Conceição do<br />

Serro e buscando o rumo <strong>de</strong> Congonhas do Norte. Quem<br />

usava o Rio das Velhas para alcançar o Vale do São Francisco<br />

por via fluvial, preferia usar o porto <strong>de</strong> Santa Luzia para<br />

pernoitar e fazer biscates. Assim, até mea<strong>dos</strong> do século XX, a<br />

região permaneceu relativamente adormecida preservando seu<br />

jeito tranqüilo <strong>de</strong> hoje. É provável que com as facilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

acesso e a revitalização do Aeroporto <strong>de</strong> Confins a cida<strong>de</strong><br />

venha a ter uma gran<strong>de</strong> expansão urbana. Mas a força da<br />

13 Memória Sobre as Minas da Capitania <strong>de</strong> Minas Gerais.<br />

23


cultura legitimamente mineira do povo <strong>de</strong>ve assegurar que<br />

Lagoa Santa continue sendo um bom lugar para se viver, tal<br />

qual Lund já tinha prenunciado para levar o seu “beata ruris<br />

otia”.<br />

O solitário <strong>de</strong> Lagoa Santa e os <strong>de</strong>stroços da sua<br />

memória<br />

A <strong>de</strong>cisão do sábio dinamarquês em passar a viver no<br />

então arraial da lagoa milagrosa não foi repentina. Embora<br />

tivesse chegado na região em 1835, só quatro anos <strong>de</strong>pois do<br />

início das suas pesquisas iria adquirir uma casa em Lagoa<br />

Santa e assim mesmo porque o preço <strong>de</strong> 1:000$000 (um conto<br />

<strong>de</strong> reis) lhe pareceu muito compensador. Mas em 1853 o dr.<br />

Lund afastou <strong>de</strong>finitivamente a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> voltar um dia à<br />

Europa, pois se convenceu <strong>de</strong> que isso po<strong>de</strong>ria agravar<br />

perigosamente seu estado <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Durante nove anos,<br />

guiado por espertos mateiros, ele se <strong>de</strong>dicou a explorar a<br />

região fazendo incursões freqüentes nas grutas, cavando,<br />

colecionando fósseis preciosíssimos e escrevendo memórias<br />

que muito contribuíram para mudar o conhecimento científico<br />

mundial sobre a extinção das espécies e a antiguida<strong>de</strong> do<br />

homem americano. A partir <strong>de</strong> 1844 Lund resolveu suspen<strong>de</strong>r<br />

suas pesquisas, segundo ele mesmo por falta <strong>de</strong> recursos<br />

financeiros. Des<strong>de</strong> então adotou um comportamento<br />

excêntrico aos olhos da população do pequeno arraial<br />

protegido pela Nossa Senhora da Saú<strong>de</strong>. Conta-se que ele só<br />

recebia visitas com hora e tempo <strong>de</strong> duração previamente<br />

marca<strong>dos</strong>. Não recebia antes da hora combinada e, findo o<br />

24


tempo estipulado para a conversação, simplesmente <strong>de</strong>ixava a<br />

visita na sala e se recolhia ao seu gabinete em busca <strong>de</strong> coisa<br />

mais interessante, tipo montar quebras cabeças <strong>de</strong> ossos<br />

fossiliza<strong>dos</strong>. Fez valer o rigor da sua agenda inclusive com o<br />

con<strong>de</strong> d’Eu que não foi recebido porque não tinha marcado<br />

hora. Lund nem levou em consi<strong>de</strong>ração o fato <strong>de</strong> que o con<strong>de</strong><br />

tinha se abalado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Ouro Preto somente para<br />

cumprimentá-lo. O mesmo aconteceu com Richard Burton<br />

que em 1867, <strong>de</strong>scendo <strong>de</strong> canoa pelo Rio das Velhas em<br />

busca da foz do rio São Francisco, tentou aproveitar a<br />

proximida<strong>de</strong> para falar com o sábio. Esperou dois dias mas, a<br />

<strong>de</strong>speito do empenho do secretário Behrens – casualmente<br />

sóbrio -, não conseguiu ser recebido. Burton notou que Lund<br />

pa<strong>de</strong>cia <strong>de</strong> um reumatismo que o obrigava a ficar <strong>de</strong> cama.<br />

Atribuiu, contudo, a recusa do sábio em recebê-lo a um certo<br />

“receio <strong>de</strong> estrangeiros”. 14 Lund até po<strong>de</strong> ter tido motivos,<br />

pois parece que Burton, atrevido como era, pretendia<br />

questioná-lo sobre a influência retardatária das i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong><br />

Cuvier sobre sua obra. 15<br />

14 Richard Francis Burton –“Viagem <strong>de</strong> Canoa <strong>de</strong> Sabará ao Oceano<br />

Atlântico”.<br />

15 Burton po<strong>de</strong> ter tido razão quando disse que Peter Lund tinha<br />

receio <strong>de</strong> estrangeiros. Isso certamente significa que ele evitava<br />

constrangimentos <strong>de</strong>batendo com pessoas ilustradas que não<br />

fossem do seu círculo <strong>de</strong> colaboradores e admiradores mais íntimos.<br />

Nesse caso, com certeza, o capitão Richard Francis Burton seria a<br />

última pessoa do mundo que ele gostaria <strong>de</strong> receber.<br />

25


Conta-se que Peter Lund não tinha coragem <strong>de</strong> negar<br />

pedi<strong>dos</strong> <strong>de</strong> empréstimo <strong>de</strong> dinheiro ao povo <strong>de</strong> Lagoa Santa. 16<br />

Um dia porém, cansado <strong>de</strong> ver que os <strong>de</strong>vedores nunca<br />

saldavam suas dívidas, mandou publicar pelo arraial que<br />

ninguém precisava quitar seus compromissos com ele mas<br />

que, também, a partir daquele dia não mais emprestaria<br />

dinheiro a quem quer que fosse. Faleceu em 1880 e antes <strong>de</strong><br />

morrer <strong>de</strong>ixou instruções precisas sobre o seu funeral, do qual<br />

fazia parte uma solenida<strong>de</strong> com comida, bebida e música<br />

alegre. Essa espécie <strong>de</strong> festa funerária <strong>de</strong>veria ter lugar em sua<br />

casa logo <strong>de</strong>pois que seu corpo <strong>de</strong>scesse à terra. Foi sepultado<br />

no cemitério que ele próprio construiu e on<strong>de</strong> hoje ainda está<br />

a sua tumba, ao lado <strong>de</strong> dois <strong>de</strong> seus ilustres colaboradores<br />

mais queri<strong>dos</strong>. Contam que ele mandou construir o cemitério<br />

porque receava que o vigário não permitisse seu sepultamento<br />

no cemitério do arraial por ele ser luterano. Fez questão <strong>de</strong><br />

marcar meticulosamente o local da sua cova para que ela<br />

ficasse a maior parte do dia sob a sombra <strong>de</strong> um pé <strong>de</strong> pequi<br />

que ele mesmo havia plantado.<br />

16 Lund sempre emprestou dinheiro a gran<strong>de</strong>s e a pequenos, mesmo<br />

porque, era <strong>de</strong> rendas que ele vivia. Volta e meia se aborrecia com<br />

os calotes que tomava. Há quem acredite que foi um gran<strong>de</strong><br />

prejuízo, advindo <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sses empréstimos, que levou o sábio a<br />

parar com suas pesquisas já que era ele próprio que arcava com a<br />

maior parte do custo das mesmas. Mais adiante voltaremos a esse<br />

assunto.<br />

26


Infelizmente, logo após a morte <strong>de</strong> Lund, os vestígios<br />

da sua longa presença em Lagoa Santa já começaram a ser<br />

<strong>de</strong>stroça<strong>dos</strong>. Por volta <strong>de</strong> 1890, ou seja, <strong>de</strong>z anos após a morte<br />

do ilustre cientista, o dr. Pires <strong>de</strong> Almeida testemunhou,<br />

consternado, que a herança material <strong>de</strong> Lund já caminhava<br />

para total ruína. O cemitério estava abandonado e servia <strong>de</strong><br />

quintal ao pasto <strong>de</strong> animas domésticos, a sua casa tinha virado<br />

uma taverna, estava em total <strong>de</strong>cadência e o mirante que o<br />

sábio tinha mandando construir para contemplar a lagoa nas<br />

suas tar<strong>de</strong>s introspectas, ameaçava <strong>de</strong>sabar. 17 O jardim que ele<br />

tinha plantado com suas próprias mãos estava tomado pelo<br />

mato e só uma majestosa palmeira imperial restava para<br />

honrar o zelo jardineiro <strong>de</strong> Lund. 18 A casa <strong>de</strong> Lund acabaria<br />

nas mãos do cônego Cândido Calazans Correa e ali por volta<br />

<strong>de</strong> 1910 seria <strong>de</strong>molida para dar lugar ao Grupo Escolar que<br />

hoje leva o nome do sábio dinamarquês, numa homenagem<br />

honesta mas lamentável.<br />

No dia 21 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1897 o barão Homem <strong>de</strong><br />

Melo publicou uma nota no Jornal do Comércio do Rio <strong>de</strong><br />

17 Consta que ele também tinha mandado erguer uma casinha na<br />

margem da lagoa on<strong>de</strong> gostava <strong>de</strong> ficar placidamente alimentado os<br />

peixes. Há quem diga que essa casa era <strong>de</strong> Brandt que ali instalou o<br />

seu estúdio.<br />

18 Essa palmeira sobreviveu à casa <strong>de</strong> Lund e ficou durante muitos<br />

anos adornando o pátio da escola ali construída, mas acabou<br />

também sendo <strong>de</strong>rrubada no final do século XX.<br />

27


Janeiro que permite confirmar as observações do dr. Pires <strong>de</strong><br />

Almeida. Noticiava ele que a casa <strong>de</strong> Lund, que ficava na rua<br />

direita “quase em frente a matriz”, estava <strong>de</strong> pé porém tinha<br />

sido modificada interna e externamente. Testemunhou ainda<br />

que a biblioteca tinha se perdido e que o horto por ele<br />

implantado ao lado da casa estava apenas parcialmente<br />

preservado. Álvaro da Silveira testemunhou também que a<br />

biblioteca <strong>de</strong> Lund tinha sido vendida em pequenos lotes 19 .<br />

Comentou, indignado, que havia encontrado páginas<br />

ilustradas da obra do mestre Georges Cuvier – “Le Reigne<br />

Animal Distribuié d’aprés Son Organisation”- que tinha<br />

pertencido a Lund, coladas numa pare<strong>de</strong>, adornando o fundo<br />

<strong>de</strong> um singelo presépio. Tinha virado papel velho. Há<br />

registros <strong>de</strong> que, durante os próprios festejos que o sábio<br />

tinha encomendado para marcar o seu funeral, o estoque <strong>de</strong><br />

rojões e foguetes disponíveis acabou e que outros foram<br />

manufatura<strong>dos</strong> às pressas usando como buchas as páginas<br />

arrancadas <strong>dos</strong> exemplares da valiosa livraria. Assim, <strong>de</strong> forma<br />

tão selvagem e ignorante, <strong>de</strong>ve ter sido consumida toda a<br />

biblioteca <strong>de</strong> Lund on<strong>de</strong> até po<strong>de</strong>riam estar incluí<strong>dos</strong><br />

manuscritos inéditos, quem sabe até com i<strong>de</strong>ias que ele<br />

próprio não tinha tido a audácia <strong>de</strong> revelar ao mundo<br />

enquanto vivia pois, como veremos mais adiante, suas<br />

19 Quem sabe com o simples propósito <strong>de</strong> facilitar o botafora<br />

daquelas tralhas que ocupavam todo o espaço <strong>de</strong> um barracão que<br />

Lund tinha acrescido à sua casa para acomodar os preciosos<br />

volumes.<br />

28


<strong>de</strong>scobertas científicas andaram torturando suas convicções<br />

teológicas. Parece que o sr. Nereo Cecílio <strong>dos</strong> Santos – o<br />

her<strong>de</strong>iro legal <strong>de</strong> Peter Lund - não teve muito apreço pelos<br />

valiosíssimos objetos que herdou, dispondo <strong>de</strong>les<br />

rapidamente. Esse <strong>de</strong>scaso lamentável já dura mais <strong>de</strong> cem<br />

anos e caminha para se tornar irreversível pois, ainda hoje,<br />

quase não existe patrimônio material histórico em Lagoa<br />

Santa, a lastrear a memória <strong>de</strong> Lund.<br />

Colaboradores, amigos e aproveitadores<br />

Ao se falar das pessoas que viveram em torno <strong>de</strong><br />

Lund no Brasil há <strong>de</strong> se começar com Brandt e acabar com<br />

seu filho adotivo Nereo Cecílio <strong>dos</strong> Santos. No meio<br />

encontramos alcoólatras, naturalistas, gente simples das Gerais<br />

e trambiqueiros contumazes.<br />

Talvez a melhor coisa que tenha acontecido na vida<br />

cheia <strong>de</strong> fracassos do artista norueguês Peter Andréas Brandt,<br />

tenha sido conhecer Peter Wilhelm Lund. Notável coincidência<br />

que ocorreu a mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>z mil quilômetros da península on<strong>de</strong><br />

ambos tinham nascido. Isso aconteceu na fazenda do - também<br />

dinamarquês - Peter Claussen, da segunda vez em que o dr.<br />

Lund esteve lá, voltando <strong>de</strong> Ouro Preto. Brandt tinha <strong>de</strong>ixado<br />

mulher e três filhos na Noruega e estava no Brasil tentando a<br />

sorte, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter fracassado como dono <strong>de</strong> jornal e<br />

comerciante <strong>de</strong> teci<strong>dos</strong> na pequena cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Kristiania na<br />

Noruega. Costumava freqüentar o mundo intelectual e boêmio<br />

da sua terra e quando veio para a América do Sul aportou<br />

29


primeiro no Chile on<strong>de</strong> arranjou emprego <strong>de</strong> ilustrador num<br />

jornal <strong>de</strong> Valparaiso. Mas o jornal faliu e Brandt veio dar no<br />

Brasil, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma penosa viagem que incluiu uma travessia<br />

da Cordilheira <strong>dos</strong> An<strong>de</strong>s a pé, com um saco <strong>de</strong> roupas nas<br />

costas. É, a vida não tinha sido fácil para o promissor<br />

<strong>de</strong>senhista, já então beirando os quarenta e quatro anos e já<br />

ostentando uma lustrosa calva. Quando conheceu Lund, Brandt<br />

ganhava a vida miseravelmente, prestando serviços como uma<br />

espécie <strong>de</strong> secretário <strong>de</strong> Claussen. Embora fossem radicalmente<br />

diferentes em sua visão <strong>de</strong> mundo, a amiza<strong>de</strong> entre o artista<br />

norueguês e o naturalista dinamarquês foi quase instantânea.<br />

Um era o típico artista boêmio, mulherengo, alegre e falastrão e<br />

o outro um cientista austero, misógino e misantropo. Mas se<br />

atraíram um ao outro e combinaram se associar no trabalho <strong>de</strong><br />

exploração das cavernas, on<strong>de</strong> Brandt po<strong>de</strong>ria ser muito útil<br />

como ilustrador. Saíram da proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Claussen<br />

praticamente escondi<strong>dos</strong>. Temiam uma reação irada do<br />

truculento fazen<strong>de</strong>iro àquela inesperada parceria que<br />

certamente contrariava os planos que Claussen tinha para um e<br />

outro e, não obstante, tinha sido urdida bem <strong>de</strong>baixo do seu<br />

nariz, cheirando a conspiração.<br />

Depois <strong>de</strong> pesquisarem juntos quase vinte grutas<br />

localizadas nos atuais municípios <strong>de</strong> Cordisburgo, Sete Lagoas e<br />

Matosinhos, os novos parceiros chegaram a Lagoa Santa. Era a<br />

tar<strong>de</strong> do dia 17 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1835. Nem imaginavam que ali<br />

viveriam até o fim das suas respectivas vidas e que seriam<br />

enterra<strong>dos</strong> lado a lado, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> vinte e sete anos <strong>de</strong><br />

convivência.<br />

30


Parece que Brandt cuidava <strong>de</strong> Lund com fraterna<br />

abnegação e este correspondia abrindo sua bolsa às<br />

necessida<strong>de</strong>s do companheiro que não eram poucas. Parece que<br />

até o filho mais velho <strong>de</strong> Brandt foi beneficiado com uma ajuda<br />

do sábio dinamarquês, representada por um empréstimo que<br />

provavelmente nunca foi pago e que permitiu que ele se<br />

estabelecesse como comerciante e exportador em Nova York.<br />

Brandt tinha mandado construir uma palafita no meio da lagoa<br />

on<strong>de</strong> passava as horas vagas pintando e <strong>de</strong>senhando suas<br />

paisagens e gravuras. Certamente o imóvel só pô<strong>de</strong> ser erguido<br />

com recursos brota<strong>dos</strong> da bolsa inesgotável <strong>de</strong> Lund. Também<br />

<strong>de</strong>via haver muita tolerância <strong>de</strong> ambas as partes com relação<br />

aos hábitos <strong>de</strong> um e outro: Brandt tolerando as manias e a<br />

hipocondria do dr. Lund e este tolerando as escapadas do<br />

primeiro à Sabará on<strong>de</strong> passava revigorantes temporadas em<br />

bares e bordéis. Enfim, <strong>de</strong>viam gostar <strong>de</strong> suas mútuas<br />

<strong>de</strong>pendências, entrelaçadas ainda que muito diversas.<br />

Quando Peter Andréas Brandt morreu em 1862, aos<br />

71 anos, Lund fez questão <strong>de</strong> sepultá-lo no cemitério que vinha<br />

preparando para si próprio, gesto que, sem duvida, representou<br />

uma prova eterna <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>.<br />

A obra pictórica <strong>de</strong> Brandt é praticamente<br />

<strong>de</strong>sconhecida no Brasil. Lund enviou vários <strong>dos</strong> trabalhos <strong>de</strong><br />

seu companheiro para a Dinamarca junto com os manuscritos<br />

<strong>de</strong> suas memórias, mas eles foram pouco divulga<strong>dos</strong>. Hoje há<br />

um movimento <strong>de</strong> pesquisadores tanto dinamarqueses quanto<br />

brasileiros para resgatar essa dívida. Quem viu suas ilustrações<br />

31


nos originais se encantou por elas e saiu convencido <strong>de</strong> que o<br />

velho Brandt tinha luz própria.<br />

Depois <strong>de</strong> Brandt há <strong>de</strong> se voltar a falar <strong>de</strong> Johannes<br />

Eugenius Bulow Warming. Tinha apenas vinte e dois anos<br />

quando veio para o Brasil. Aqui se <strong>de</strong>dicou a estudar o serrado<br />

e aceitou respeitoso a ajuda do dr. Lund, embora já <strong>de</strong>vesse<br />

achá-lo um tanto ultrapassado, especialmente no campo da<br />

zoologia. Gostava muito mais da obra <strong>de</strong> Lamarck do que da <strong>de</strong><br />

Cuvier e, naquele, tempo, já <strong>de</strong>via carregar a obra <strong>de</strong> Darwin<br />

<strong>de</strong>baixo do braço. Mas, com certeza, não <strong>de</strong>veria polemizar<br />

sobre tudo isso com Lund. Ainda mais enten<strong>de</strong>ndo o quanto a<br />

questão era <strong>de</strong>licada para o velho.<br />

Warming é consi<strong>de</strong>rado um naturalista inovador.<br />

Entre outras coisas entendia que as plantas <strong>de</strong>viam ser<br />

estudadas em seus habitat naturais e não herborizadas em<br />

gavetas cheirando a mofo. Deu o primeiro passo para que a<br />

botânica meramente classificatória <strong>de</strong>sse lugar ao estudo da<br />

interação das plantas com o ambiente <strong>de</strong> que fazem parte. Seu<br />

livro “Comunida<strong>de</strong> das Plantas” (Plantesafund), publicado em<br />

1895, lançou as sementes da mo<strong>de</strong>rna fitoecologia. A obra que<br />

coligiu suas pesquisas no serrado mineiro foi publicada no<br />

Brasil pela primeira vez em 1908 com o título <strong>de</strong> “Lagoa Santa:<br />

Contribuição para a Geographia Phytobiológica”. A presença<br />

das i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> Lund sobre a formação da vegetação <strong>dos</strong> campos<br />

mineiros é marcante nesta obra. Mas parece que Warming teve<br />

dificulda<strong>de</strong>s para publicar seus trabalhos no início da carreira,<br />

pelo menos é o que se <strong>de</strong>preen<strong>de</strong> da correspondência trocada<br />

32


com o próprio Lund em 1877, ou seja, mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong>pois<br />

das suas pesquisas em Lagoa Santa.<br />

Claro que, num certo aspecto, Lund <strong>de</strong>via se<br />

i<strong>de</strong>ntificar muito mais com Warming do que se i<strong>de</strong>ntificava com<br />

Brandt. Até porque o jovem naturalista tinha trazido sua<br />

sanfona e a música era uma das paixões <strong>de</strong> Lund. Outra coisa<br />

que Warming tinha trazido na sua bagagem era uma câmara<br />

fotográfica e, graças a ela, hoje temos alguns registros<br />

interessantes da vida <strong>de</strong> Lund, inclusive o clássico ícone que<br />

mostra o sábio dinamarquês, aos sessenta e dois anos, com seu<br />

respeitável perfil, seus óculos <strong>de</strong> sábio, seu chapéu <strong>de</strong> palha já<br />

acaipirado e sua barba branca rala e respeitosa.<br />

Wilhelm Behrens está entre as companhias<br />

<strong>de</strong>safortunadas do dr. Lund. Tinham se conhecido em Sabará<br />

e se tornado amigos, provavelmente porque tinham algo em<br />

comum: ambos eram credores <strong>de</strong> um empreendimento falido.<br />

Fora isso talvez não tivessem nada que os pu<strong>de</strong>sse unir. Po<strong>de</strong><br />

até ser que Behrens fizesse Lund se lembrar um pouco <strong>de</strong><br />

Brandt. É que ambos eram um tanto boêmios, chega<strong>dos</strong><br />

numa boa pinga, daquelas que até hoje ainda se po<strong>de</strong><br />

encontrar em Lagoa Santa. Era alemão e vivia em Sabará on<strong>de</strong><br />

conheceu Lund numa das idas do sábio àquela vila para cuidar<br />

<strong>de</strong> negócios. Segundo Henrique Gorceix, Behrens entrou para<br />

o serviço do sábio dinamarquês em 1866. Portanto, logo que<br />

Warming voltou para casa. Mas, ao contrário <strong>de</strong> Brandt, ele<br />

ficou com Lund por pouco tempo.<br />

33


A visita <strong>de</strong> Richard Burton a Lagoa Santa ocorreu no<br />

final <strong>de</strong> 1867 e, como vimos, ele não conseguiu ser recebido<br />

pelo sábio. Mas contou ter sido tratado por Behrens com<br />

atenção, inclusive tendo tido o privilégio <strong>de</strong> conhecer a casa<br />

<strong>de</strong> Lund na margem da lagoa. Burton acabou, assim, sendo<br />

uma fonte <strong>de</strong> referência positiva ao terceiro secretário do dr.<br />

Lund, ainda que fugaz. Outra fonte vem do próprio dr. Lund<br />

que, numa carta a Reinhardt, informava que o tinha <strong>de</strong>spedido<br />

mas que ele era um bom homem. Mas, a respeito do caráter<br />

<strong>de</strong> Behrens há uma curiosida<strong>de</strong> incompreensíve,l envolvendo<br />

o filho adotivo <strong>de</strong> Lund, Nereo Cecílio <strong>dos</strong> Santos. No esboço<br />

biográfico que Nereo publicou a respeito <strong>de</strong> Lund, ao<br />

mencionar os secretários <strong>de</strong> seu benfeitor, ele simplesmente<br />

omite o nome <strong>de</strong> Behrens informando que:<br />

“Depois da retirada <strong>de</strong> Warming foi o lugar <strong>de</strong>ste preenchido por um<br />

alemão resi<strong>de</strong>nte em Sabará e relacionado com Lund havia longos anos”.<br />

O mais surpreen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> tudo é que Nereo <strong>de</strong>dicou o livro a<br />

Reinhardt e... ao próprio Behrens!<br />

O secretário alemão foi <strong>de</strong>spedido pelo austero patrão<br />

e amigo por causa do excesso <strong>de</strong> palavrões que o excesso <strong>de</strong><br />

álcool provocava em seu humor. Mas o sábio gostava <strong>de</strong>le e<br />

quando admitiu o pobre Behrens como secretário já eram<br />

amigos há mais <strong>de</strong> vinte anos. Parece que quando Behrens foi<br />

<strong>de</strong>spedido passou a viver numa pensão em Lagoa Santa,<br />

provavelmente às expensas <strong>de</strong> Lund. Quando ele morreu,<br />

assim como tinha feito com Brandt, Lund cuidou para que o<br />

34


indigitado amigo também fosse sepultado em seu cemitério<br />

particular. E lá ficaram os dois diletos beberrões à espera do<br />

amigo e benfeitor, o que tiveram que fazer até 1780 pois,<br />

embora estivesse sempre se queixando da saú<strong>de</strong>, o dr. Lund<br />

era muito mais saudável do que imaginava e por pouco não<br />

chegou aos oitenta anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>.<br />

Lund legou a maioria <strong>dos</strong> seus bens a seu filho adotivo<br />

Nereo. Parece que ele não era <strong>dos</strong> mais escrupulosos e não<br />

fazia jus à confiança que o pai voluntário <strong>de</strong>positava nele.<br />

Senão vejamos: o sábio legou sua cruz da Or<strong>de</strong>m <strong>de</strong><br />

Donnebrog ao seu sobrinho - o historiador Troels-Lund -<br />

encarregando o filho adotivo <strong>de</strong> enviá-la ao mesmo, após a<br />

sua morte. Nereo cumpriu a <strong>de</strong>terminação apenas em parte<br />

pois enviou a preciosa cruz faltando um pingente <strong>de</strong> rubi, sua<br />

pedra mais preciosa. O motivo alegado para a falta da joia foi<br />

<strong>de</strong> que ela tinha sido enterrada adornando o peito do cadáver<br />

<strong>de</strong> Lund 20 . Sabe-se também que o filho adotivo, que o sábio<br />

tinha educado com todo o carinho, andou violando a<br />

correspondência <strong>de</strong> Lund após a sua morte.<br />

A única coisa que foi salva do espólio material <strong>de</strong><br />

Lund foi sua correspondência que Nereo se encarregou <strong>de</strong><br />

enviar à Dinamarca, provavelmente intimado por J.T.<br />

20 O corpo <strong>de</strong> Lund foi exumado em 1930. Anibal Matos fez uma<br />

<strong>de</strong>scrição minuciosa da mesma e não menciona que um rubi tenha<br />

sido encontrado junto ao corpo.<br />

35


Reinhardt, o curador da coleção do sábio solitário <strong>de</strong> Lagoa<br />

Santa. Segundo o filho adotivo, as últimas palavras <strong>de</strong> Lund<br />

foram: “amor, amor, amor”. Como eu não confio no Nereo,<br />

tenho dúvidas da veracida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse final novelesco.<br />

É interessante notar que Nereo participou a Reinhardt<br />

que Lund tinha falecido no dia 25 <strong>de</strong> maio e é esta a fonte da<br />

data oficial que prevalece hoje. No entanto, quando da<br />

exumação do corpo do sábio em 1930, na tampa da urna<br />

estava marcado que ele tinha falecido em 05 <strong>de</strong> maio. Essa é a<br />

data <strong>de</strong> falecimento encontrada na maioria <strong>dos</strong> relatos sobre a<br />

vida <strong>de</strong> Lund produzi<strong>dos</strong> no final do século XIX, ou seja,<br />

antes da publicação da obra <strong>de</strong> Nereo. Será que quem gravou<br />

a data na urna não sabia que dia era aquele, ou será que Nereo<br />

alterou a data por algum motivo? 21<br />

Quanto ao próprio Nereo, não se sabe o dia em que<br />

morreu nem o ano em que nasceu. Sabe-se apenas que ele era<br />

um mulato esperto com pendões musicais e que foi adotado<br />

pelo sábio dinamarquês quando tinha doze anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>.<br />

Teria morrido no ano <strong>de</strong> 1922. Teve doze filhos. Parece que<br />

ele dilapidou rapidamente a fortuna que herdou e que a família<br />

<strong>de</strong> Lund continuou a ajudá-lo e, mesmo <strong>de</strong>pois da sua morte,<br />

sua esposa - Maria Cesarina Marques <strong>dos</strong> Santos - continuou<br />

recebendo ajuda, inclusive para manutenção do túmulo do<br />

sábio que a família fez questão <strong>de</strong> manter através <strong>de</strong> gerações,<br />

21<br />

Nereo <strong>de</strong>morou a escrever a Reinhardt participando a morte <strong>de</strong> Lund e<br />

não afasto a hipótese <strong>de</strong> que ele tenha alterado a data, tentando ocultar<br />

esse retardo.<br />

36


até por volta <strong>de</strong> 1930, quando Anibal Matos e seus<br />

companheiros re<strong>de</strong>scobriram o velho Lund e passaram a<br />

cuidar melhor da sua memória.<br />

Houve muita gente mais que privou da amiza<strong>de</strong> do dr.<br />

Lund, algumas <strong>de</strong>spretensiosas outras absolutamente<br />

oportunistas. Tratamos <strong>de</strong>las em partes diversas <strong>de</strong>ste<br />

trabalho.<br />

37


II - Rumo às cavernas <strong>de</strong> ossos<br />

Formigas vorazes e passarinhos sem papo<br />

A carreira <strong>de</strong> Lund teve três fases. Na primeira,<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhar <strong>dos</strong> tecnicismos da medicina, ele se<br />

sentiu fielmente enamorado da zoologia e não escondia a<br />

atração que sentia pelos mistérios <strong>dos</strong> insetos, moluscos e<br />

passarinhos. A segunda, mais profícua e genial é a das<br />

“cavernas <strong>de</strong> ossos”, como ele mesmo dizia. A terceira é<br />

aquela em que ele praticamente se divorciou da ciência e ficou<br />

contemplando à distância os enigmas da natureza sem<br />

disposição para <strong>de</strong>slindá-los.<br />

Ele havia se preparado <strong>de</strong>dicadamente para a primeira<br />

fase e só ficou sabendo da segunda quando chegou à vila <strong>de</strong><br />

Curvelo, em outubro <strong>de</strong> 1834. Mas também estava preparado<br />

para ela pois tinha uma sólida formação geológica, zoológica e<br />

botânica, além <strong>de</strong> uma privilegiada capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong>dutiva e uma<br />

autêntica honestida<strong>de</strong> científica. Toda a história tinha<br />

começado verda<strong>de</strong>iramente em 1825 quando, aos vinte e<br />

quatro anos, <strong>de</strong>sembarcou no Rio <strong>de</strong> Janeiro pela primeira<br />

vez. Naquele ano publicaria a tese com que tinha se graduado<br />

em medicina, mas não era essa sua verda<strong>de</strong>ira área <strong>de</strong><br />

interesse. Antes mesmo <strong>de</strong> se graduar ele já tinha <strong>de</strong>cidido se<br />

<strong>de</strong>dicar à zoologia e à botânica. Naquele tempo nenhum<br />

naturalista que se prezasse podia dispensar o charme <strong>de</strong> uma<br />

viagem exótica <strong>de</strong> estu<strong>dos</strong> num país distante. Além disso, sua<br />

família achava que ele <strong>de</strong>veria passar uns tempos mais perto<br />

38


do sol revitalizando os pulmões, doentes por conta <strong>de</strong> uma<br />

tuberculose, maldito e perigoso mal que já havia ceifado a vida<br />

<strong>de</strong> dois <strong>dos</strong> seus irmãos e fazia com que to<strong>dos</strong> o cercassem <strong>de</strong><br />

merecido <strong>de</strong>svelo, temendo o perigo persistente das brisas<br />

geladas do pólo norte, ali tão perto. Tinha to<strong>dos</strong> os motivos,<br />

portanto, para empreen<strong>de</strong>r uma viagem terapêutica e <strong>de</strong><br />

estu<strong>dos</strong> ao sul da linha do Equador. Seguindo o exemplo <strong>de</strong><br />

Saint-Hilaire, Spix e Martius, Langsdorff e muitos outros,<br />

escolheu o Brasil. Faria bem à sua saú<strong>de</strong> e ainda lhe<br />

proporcionaria extraordinário material para estu<strong>dos</strong>. Além do<br />

mais, contava com o apoio do Museu <strong>de</strong> História Natural e da<br />

Aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> Ciências <strong>de</strong> Copenhagen. A aca<strong>de</strong>mia até estava<br />

disposta a lhe dar algum suporte financeiro e técnico,<br />

condição indispensável para que sua viagem tivesse um<br />

respaldo institucional e não fosse vista apenas como uma<br />

aventura <strong>de</strong> filho <strong>de</strong> família abastada num país distante.<br />

E ei-lo <strong>de</strong>sembarcando no Cais <strong>dos</strong> Mineiros no dia 08<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1825, cheio <strong>de</strong> entusiasmo com o seu projeto<br />

e maravilhado pela paisagem, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> setenta dias<br />

<strong>de</strong> viagem, riscando o Atlântico <strong>de</strong> norte a sul numa longa<br />

linha inclinada a oeste, pois era ali que estava o Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

portal principal <strong>de</strong> entrada do Brasil, imenso e variado. A<br />

cida<strong>de</strong> estava em festa pelo nascimento <strong>de</strong> Pedro, filho <strong>de</strong><br />

outro Pedro e da arquiduquesa da Áustria, futuro segundo<br />

imperador do Brasil. De sorte que tudo concorreu para que<br />

sua primeira impressão fosse muito positiva, pelo menos no<br />

quesito alegria. Mas, como o objetivo da viagem era outro, ele<br />

preferiu se instalar em Niterói, longe da agitação da capital e<br />

39


<strong>de</strong> seu porto assaz movimentado, ponto obrigatório <strong>de</strong> ligação<br />

das rotas do Atlântico Sul. Ali, do outro lado da baia, passava<br />

os dias na meticulosa labuta <strong>dos</strong> estudiosos da natureza. Ao<br />

alvorecer e antes <strong>de</strong> dormir se ocupava <strong>de</strong> estudar e escrever<br />

suas observações sobre plantas, peixes e insetos e entre essas<br />

ativida<strong>de</strong>s partia para explorar os arredores, embrenhando-se<br />

na mata tropical do beiramar. Nessa sua primeira viagem ao<br />

Brasil Lund andou mudando <strong>de</strong> residência várias vezes,<br />

sempre curioso <strong>de</strong> conhecer as intimida<strong>de</strong>s zoobotânicas do<br />

país. Mas nunca se aventurou a ir muito longe, preferindo as<br />

cercanias do Rio <strong>de</strong> Janeiro, incluindo os Campos <strong>dos</strong><br />

Goitacazes e as alturas da Serra do Mar. Nada comparável às<br />

extraordinárias jornadas <strong>de</strong> Spix, Martius e Saint-Hilaire, mas<br />

em janeiro <strong>de</strong> 1828 Lund achou que já tinha reunido muito<br />

material interessante e resolveu voltar para casa e dar<br />

seqüência a sua jornada acadêmica e sua inserção na elite<br />

científica europeia, <strong>de</strong> preferência morando em Paris. O<br />

resultado final da auspiciosa viagem, além das coleções <strong>de</strong><br />

espécies <strong>de</strong>positadas no Museu <strong>de</strong> Copenhagen, foram três<br />

ensaios típicos da sua primeira fase científica: um sobre os<br />

passarinhos sem papo, outro sobre as vorazes saúvas<br />

brasileiras e outro sobre o revestimento <strong>dos</strong> ovos <strong>de</strong> moluscos<br />

da Baia da Guanabara. Essas minudências po<strong>de</strong>m parecer<br />

ingênuas hoje em dia, mas eram relevantes na época pois a<br />

zoologia <strong>de</strong> então era um vasto campo <strong>de</strong> coisas por<br />

<strong>de</strong>scobrir, gran<strong>de</strong>s e pequenas. Vai daí que seus trabalhos<br />

<strong>de</strong>spertaram algum interesse nos meios científicos do velho<br />

mundo, garantindo-lhe a abertura <strong>de</strong> preciosas portas que<br />

davam acesso a gabinetes e salões galantes cheios <strong>de</strong> nobres e<br />

40


sábios arrogantes, especialmente na maravilhosa Paris do<br />

século XIX.<br />

O interregno europeu<br />

Depois que voltou para a Europa, Lund ficou três<br />

anos e meio sem saber o que fazer. Mas não ficou parado,<br />

pelo contrário: viajou, visitou museus, coletou objetos para<br />

pesquisas, dissecou bichos, escreveu notas científicas e<br />

conheceu muita gente boa interessada nas coisas da natureza<br />

como ele. Mas antes <strong>de</strong> tudo isso, <strong>de</strong>u-se umas curtas e<br />

merecidas férias, passando o verão <strong>de</strong> 1829 com a família,<br />

encantando a to<strong>dos</strong> com histórias sobre o Brasil. Até o<br />

filósofo Kierkegaard, então com <strong>de</strong>zesseis anos, irmão das<br />

duas cunhadas <strong>de</strong> Lund, se lembraria daquelas histórias com<br />

sauda<strong>de</strong>s. Em seguida foi até a Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Kiel buscar<br />

seu título <strong>de</strong> doutor. Parece que ele não teve muita dificulda<strong>de</strong><br />

em obter o título pois nem chegou a produzir uma tese<br />

específica para esse fim, recorrendo a trabalhos já prontos.<br />

Certamente porque já era um cientista <strong>de</strong> prestígio, embora<br />

sua carreira estivesse apenas começando. Inicialmente ele<br />

havia tentado obter o doutorado oferecendo à banca<br />

examinadora uma obra que tinha sido premiada num<br />

concurso da faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> medicina <strong>de</strong> Copenhagen, quatro<br />

anos antes. Mas a instituição recusou o expediente achando<br />

que o trabalho tinha um enfoque muito voltado para a<br />

medicina, impróprio para uma tese <strong>de</strong> natureza filosófica. Aí<br />

Lund resolveu arriscar com aquele trabalho que tinha<br />

41


produzido no Brasil sobre os passarinhos sem papo. Retocou<br />

aqui e ali, imprimiu um caráter mais filosófico ao tratado<br />

sobre aquela anomalia genética das aves e, <strong>de</strong>sta vez, obteve<br />

sucesso.<br />

No dia 04 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1829 Lund recebia<br />

solenemente seu título <strong>de</strong> doutor em filosofia natural. Com o<br />

canudo assegurado, partiu para um giro pelas cida<strong>de</strong>s cultas e<br />

divertidas do continente europeu. Visitou Berlim, Dres<strong>de</strong>n,<br />

Praga e Viena. Em Berlim teve a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> confirmar<br />

que os Urubus têm o papo furado. Explico-me melhor: é que,<br />

quando esteve no Brasil, ele examinou casualmente um<br />

indivíduo daquela classe <strong>de</strong> aves pretas <strong>de</strong> maus hábitos<br />

alimentares mas magníficas em seus voos altaneiros e<br />

verificou que havia uma abertura numa das dobras do papo<br />

do bicho. Anotou aquela anomalia em seu ca<strong>de</strong>rninho mas<br />

não chegou a se interessar em verificar o caso mais a fundo.<br />

Eis senão quando, em plena Berlim, ele encontra no museu <strong>de</strong><br />

zoologia um exemplar <strong>de</strong> urubu conservado em álcool. Pediu<br />

para examinar o papo do exemplar e não <strong>de</strong>u outra: também<br />

aquele tinha o papo furado. Concluiu ele que aquela estranha<br />

particularida<strong>de</strong> era uma característica da espécie, apressan<strong>dos</strong>e<br />

em revelar a novida<strong>de</strong> ao mundo científico, naquele tempo<br />

ávido por esse tipo <strong>de</strong> notícia.<br />

No seu tour europeu Lund foi revezando ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

caráter científico com alguns mereci<strong>dos</strong> divertimentos no seio<br />

empoado da média nobreza do velho mundo, on<strong>de</strong> o jovem<br />

dr. Lund fazia o maior sucesso pela inteligência e fineza do<br />

42


trato. No meio disso veio a notícia da morte da mãe, tirando a<br />

graça <strong>de</strong> tudo. Mas ele não se abalou, seguiu o roteiro traçado<br />

e em setembro <strong>de</strong> 1832 entrava em Paris cheio <strong>de</strong> cartas <strong>de</strong><br />

recomendação no bolso, esperançoso <strong>de</strong> ser recebido no meio<br />

da gente <strong>de</strong> espírito que brilhava nos salões intelectuais da<br />

cida<strong>de</strong> luz.<br />

Sua primeira intenção, na capital francesa, foi se<br />

encontrar com Auguste <strong>de</strong> Saint-Hilaire. O gran<strong>de</strong> naturalista<br />

tinha passado seis anos viajando pelo Brasil e nessa ocasião já<br />

tinha publicado a maioria <strong>dos</strong> inúmeros livros que escreveu<br />

sobre a viagem. Mas infelizmente Saint-Hilaire não estava em<br />

Paris, pois andava meio doente repousando na província.<br />

Assim o encontro entre os dois não se realizou. Foi uma pena,<br />

pois a experiência e os conhecimentos que o sábio francês<br />

tinha sobre o nosso país po<strong>de</strong>riam ter ajudado muito a Lund<br />

que, naquela altura, já estava pensando firmemente em voltar<br />

ao Brasil e <strong>de</strong>ve ter sido por isso mesmo que Saint-Hilaire<br />

tenha sido a primeira pessoa que ele procurou. 22 Na verda<strong>de</strong>, o<br />

naturalista francês jamais recuperaria sua saú<strong>de</strong>, abalada em<br />

conseqüência das agruras das suas penosas viagens pelos<br />

nossos sertões, tomando chuva, comendo feijão com toucinho<br />

e dormindo em ranchos, disputando espaço com pulgas e<br />

22 Mas o sábio francês ficou sabendo da intenção <strong>de</strong> Lund <strong>de</strong> viajar<br />

novamente ao Brasil e até elogiou essa disposição dizendo que ele<br />

havia estudado durante vários anos os costumes <strong>dos</strong> insetos do país<br />

e agora estava planejando voltar para aprofundar esses estu<strong>dos</strong>.<br />

(Mencionado no livro “Viagem pelo Distrito <strong>dos</strong> Diamantes e<br />

Litoral do Brasil”, publicado originalmente em Paris em 1833).<br />

43


carrapatos ferozes. É provável que o abalo na saú<strong>de</strong> da Saint-<br />

Hilaire até viesse a pesar mais tar<strong>de</strong> na <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> Lund <strong>de</strong><br />

nunca mais voltar à Europa, acreditando que, quem se<br />

acostumava ao sol do Brasil, jamais teria condição <strong>de</strong><br />

enfrentar o clima da Europa novamente.<br />

A priorida<strong>de</strong> seguinte <strong>de</strong> Lund era conhecer o ilustre barão<br />

George Cuvier e ser admitido no seu notável círculo <strong>de</strong> sábios<br />

, entre os quais se alinhava Alexan<strong>de</strong>r von Humboldt, que<br />

nunca <strong>de</strong>ixava <strong>de</strong> freqüentar o seleto círculo sempre que<br />

estava em Paris, brilhando ao lado <strong>de</strong> Cuvier como se fossem<br />

duas estrelas flamejantes. Também freqüentou aulas do<br />

Colégio <strong>de</strong> França e estava convencido <strong>de</strong> que Paris era<br />

realmente o centro cultural do planeta e que era ali que um<br />

cientista <strong>de</strong>veria viver e publicar os seus trabalhos. Mas<br />

quanto mais ele se <strong>de</strong>slumbrava com toda aquela gran<strong>de</strong>za<br />

mais se convencia <strong>de</strong> que sua obra estava inacabada e mais<br />

cultivava a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> voltar ao Brasil e retomar o estudo <strong>de</strong><br />

tantas espécies curiosas que abundavam no país das formigas<br />

vorazes e <strong>dos</strong> passarinhos sem papo. No verão <strong>de</strong> 1831<br />

<strong>de</strong>cidiu voltar à Dinamarca e, pouco mais <strong>de</strong> um ano <strong>de</strong>pois,<br />

embarcava novamente para o Brasil. Mal sabia ele que o<br />

resultado mais marcante <strong>de</strong>ssa segunda viagem seria a<br />

inexorável conclusão <strong>de</strong> que as teorias catastrofistas do<br />

admirável barão Georges Cuvier estavam inteiramente<br />

equivocadas. 23 Ele, contudo, evitaria assumir isso com toda a<br />

23<br />

O catastrofismo <strong>de</strong> Cuvier e autores coadjuvantes pregava que as<br />

espécies <strong>de</strong> animais extintas tinham <strong>de</strong>saparecido <strong>de</strong>vido a<br />

44


contundência que os acha<strong>dos</strong> nas cavernas <strong>de</strong> ossos lhe<br />

mostravam.<br />

Nasce o paleontólogo<br />

Em 19 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1833 Lund <strong>de</strong>sembarcava no<br />

Brasil pela segunda e eterna vez. Assim que chegou conheceu<br />

Ludwig Rie<strong>de</strong>l, um botânico alemão já experiente no país pois<br />

tinha sido da equipe <strong>de</strong> Langsdorff. Rie<strong>de</strong>l estava se<br />

preparando para fazer uma incursão científica pelo interior e<br />

isso vinha <strong>de</strong> exato encontro aos interesses <strong>de</strong> Lund que, <strong>de</strong>sta<br />

vez, tinha projeto mais contun<strong>de</strong>nte e não pretendia ficar<br />

apenas bor<strong>de</strong>jando em volta da capital do império bragantino<br />

da América. O plano acertado focava um estudo botânico<br />

pelas províncias <strong>de</strong> São Paulo, Goiás e Minas e <strong>de</strong>veria durar<br />

cerca <strong>de</strong> um ano. No caminho também po<strong>de</strong>riam aproveitar<br />

para coletar e estudar insetos e passarinhos, agregando mais<br />

conhecimento aos seus primeiros trabalhos no Brasil. Era o<br />

final do inverno e a seca já começava a provocar incêndios<br />

espontâneos no cerrado, condição que chamou a atenção do<br />

jovem cientista dinamarquês e o levou a produzir um <strong>dos</strong><br />

catástrofes repentinas que, <strong>de</strong> uma só vez, dizimavam to<strong>dos</strong> os seres<br />

viventes <strong>de</strong> uma região. Portanto não admitia que espécies <strong>de</strong><br />

animais ainda existentes pu<strong>de</strong>ssem ter coexistido no passado com<br />

espécies já extintas.<br />

45


poucos trabalhos que escreveria em toda a vida tratando <strong>de</strong><br />

botânica.<br />

A viagem começou no dia 12 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1833. Do<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro rumaram para a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo e, na<br />

seqüência, as vilas <strong>de</strong> Campinas, Araraquara e Franca.<br />

Entraram em Goiás, <strong>de</strong>sistiram <strong>de</strong> ir até a capital da província<br />

e <strong>de</strong> Catalão miraram o Rio São Francisco, iniciando o roteiro<br />

<strong>de</strong> retorno ao Rio <strong>de</strong> Janeiro. Passaram em Paracatu e em 10<br />

<strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1834, ou seja, um ano <strong>de</strong>pois do início da<br />

viagem, chegaram na vila <strong>de</strong> Santo Antônio do Curvelo. Aí o<br />

jovem Lund conheceria as maravilhosas cavernas do serrado.<br />

Sua vida iria mudar radicalmente e ele ia ter todas as chances<br />

do mundo <strong>de</strong> reverter os resulta<strong>dos</strong> daquela viagem que até<br />

então estavam beirando o ridículo, pois a dupla vivia<br />

adoecendo, carecendo <strong>de</strong> ânimo para trabalhar <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>. A<br />

história toda começou por acaso pois foi assim que Lund e<br />

Rie<strong>de</strong>l conheceram Peter Claussen. Ele era meio aventureiro,<br />

com algum conhecimento <strong>de</strong> paleontologia e que vinha<br />

colecionando ossos fósseis, encontra<strong>dos</strong> nas cavernas da<br />

região a partir <strong>de</strong> escavações feitas para extração <strong>de</strong> salitre.<br />

Lund se encantou com as coleções <strong>de</strong> Claussen e passou a<br />

nem dormir direito. Sua vocação paleontológica começava a<br />

fermentar. Mas aquele primeiro impacto não chegou<br />

propriamente a <strong>de</strong>snorteá-lo. De sorte que ele e Rie<strong>de</strong>l<br />

seguiram o roteiro traçado já no rumo <strong>de</strong> volta ao ponto <strong>de</strong><br />

partida da viagem. Passou por Lagoa Santa, achou<br />

interessante, mas não a ponto <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir naquela hora viver ali<br />

até o fim da vida. Assim, seguiram até Santa Luzia, subiram a<br />

46


Serra da Pieda<strong>de</strong> coberta <strong>de</strong> flores, passaram na mina <strong>de</strong><br />

Congo Soco e foram dar em Ouro Preto, então imperial<br />

cida<strong>de</strong> e capital da província <strong>de</strong> Minas Gerais. Ali Rie<strong>de</strong>l<br />

adoeceu novamente e <strong>de</strong>sta vez <strong>de</strong> forma verda<strong>de</strong>iramente<br />

preocupante, prostrado numa cama sem forças para nada.<br />

Enquanto esperava a recuperação do companheiro,<br />

Lund se ocupou <strong>de</strong> escrever aquela memória sobre o serrado,<br />

como dito uma das suas poucas obras sobre botânica. Mas<br />

também voltou a pensar nos fósseis <strong>de</strong> Peter Claussen. A<br />

coisa foi crescendo a ponto <strong>de</strong>le procurar umas cavernas para<br />

explorar ali mesmo. Encontrou algumas lapinhas perto <strong>de</strong><br />

Cachoeira do Campo cheias <strong>de</strong> ossos <strong>de</strong> pequenos mamíferos.<br />

Quanto mais cavava mais se entusiasmava. O resultado foi<br />

que, assim que Rie<strong>de</strong>l se recuperou, cada um seguiu o seu<br />

caminho: Rie<strong>de</strong>l voltou para o Rio <strong>de</strong> Janeiro on<strong>de</strong> continuaria<br />

botânico até o fim da vida. Peter Lund foi atrás das cavernas<br />

<strong>de</strong> ossos. O paleontólogo estava nascendo. Infelizmente não<br />

duraria até o fim da vida. Mas já então ele se encontrava<br />

pronto para começar o trabalho <strong>de</strong> escavação das cavernas e<br />

do exame metódico das rochas e ossos que encontrava nelas.<br />

E qual era a base da preparação <strong>de</strong> Lund para esse<br />

novo mistér? Ou por outra, como funcionava sua cabeça<br />

paleontológica? Funcionava, claro, como funcionavam as<br />

mentes científicas da época: muito escrúpulo <strong>de</strong>dutivo mas, ao<br />

mesmo tempo, pouco material indutivo, atrapalhando o rumo<br />

das verda<strong>de</strong> das <strong>de</strong>scobertas científicas. Isso abria espaço para<br />

muitas aventuras especulativas pois havia um universo imenso<br />

47


<strong>de</strong> coisas ainda por <strong>de</strong>scobrir sobre as regularida<strong>de</strong>s <strong>dos</strong><br />

mecanismos da natureza, uma vez que elas ainda estavam bem<br />

guardadas no bolso <strong>dos</strong> teólogos e havia também a inexorável<br />

lógica <strong>de</strong> Deus a ser respeitada. Um olho arguto somado à<br />

capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> raciocínio para fazer aflorar as relações <strong>de</strong><br />

causas e conseqüências eram a principal ferramenta racional<br />

do pós-iluminismo. E já era um gran<strong>de</strong> avanço, pois, como<br />

dito, ainda havia muito da “vonta<strong>de</strong> do Senhor” confundindo<br />

os caminhos.<br />

Na verda<strong>de</strong> Lund navegou suas <strong>de</strong>duções<br />

paleontológicas escorado num mo<strong>de</strong>lo analítico muito<br />

simples, sustentado numa premissa dorsal <strong>de</strong> forte inspiração<br />

cuvieriana. Era um mo<strong>de</strong>lo essencialmente classificatório que<br />

parava no Apocalipse sem ter passado pelo Genesis. Esse<br />

mo<strong>de</strong>lo, inicialmente tão querido e confortável, foi sendo<br />

posto à prova à medida que Lund ia <strong>de</strong>scobrindo coisas. Esses<br />

questionamentos causaram nele um gran<strong>de</strong> sofrimento e,<br />

como acreditamos, acabaram sendo a causa fundamental para<br />

a interrupção prematura das suas pesquisas. Mas ele nunca<br />

chegou verda<strong>de</strong>iramente a reformulá-lo no essencial, nem<br />

abandonar os ranços das i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> Georges Cuvier,<br />

mostrando-se receoso <strong>de</strong> <strong>de</strong>sfechar um golpe sobre teorias<br />

que ele próprio já tinha posto <strong>de</strong> joelhos.<br />

Nesse aspecto, um trecho da carta que Lund enviou ao<br />

seu mentor Reinhardt na Dinamarca, em 26 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1844,<br />

é muito significativo. Nela ele faz observações sobre critérios<br />

<strong>de</strong> publicações da sua coleção <strong>de</strong> memórias. Observa que o<br />

título da coleção “Olhar sobre o mundo animal brasileiro<br />

48


antes da última revolução da Terra” o obrigava a ignorar seus<br />

próprios escrúpulos, pois, em parte, o título anunciava uma<br />

hipótese que no momento podia ser sujeita a contestação e em<br />

parte era ina<strong>de</strong>quado ao conteúdo, pois seu trabalho também<br />

tratava <strong>de</strong> animais viventes. Portanto, sugeria que ela fosse<br />

mudada para “Olhar sobre a criação animal viva e extinta<br />

brasileira” ou “Contribuição para o conhecimento sobre a<br />

criação animal viva e extinta brasileira”, contudo <strong>de</strong>ixava a<br />

questão a critério <strong>de</strong> Reinhardt. Quer dizer, Lund reconhecia<br />

que a inspiração cuvieriana do título da sua obra tinha se<br />

tornado ina<strong>de</strong>quado e que ele restringia o horizonte que suas<br />

pesquisas havia alcançado. Porém, não tinha nenhuma posição<br />

firme em relação a isso, <strong>de</strong>ixando ao seu próprio preceptor<br />

resolver.<br />

Eis uma posição verda<strong>de</strong>iramente <strong>de</strong>sconfortável,<br />

eivada <strong>de</strong> in<strong>de</strong>cisões quando havia tantas certezas para serem<br />

aceitas e aprofundadas. Mas <strong>de</strong>ixemos essa questão para mais<br />

tar<strong>de</strong> e voltemos ao mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> análise paleontológica <strong>de</strong><br />

Lund. Vamos tentar reconstituí-lo. Ele era constituído <strong>de</strong> três<br />

variáveis dicotômicas. A primeira <strong>de</strong>las era a condição fóssil<br />

das ossadas encontradas. Lund <strong>de</strong>screveu inúmeras vezes os<br />

critérios para se distinguir um osso fóssil <strong>de</strong> outro não-fóssil,<br />

inclusive dar uma bizarra lambida no osso para testar sua<br />

a<strong>de</strong>rência. Tudo que era fóssil era antigo ou anterior aos<br />

tempos históricos 24 . Tudo que não era fóssil pertencia a era<br />

atual.<br />

24 Ou com mais <strong>de</strong> 3.000 anos, segundo os cálculos <strong>de</strong> Lund<br />

49


A segunda variável do mo<strong>de</strong>lo era a posição geológica<br />

das camadas on<strong>de</strong> os ossos eram encontra<strong>dos</strong>. Num primeiro<br />

momento, ao cavar as camadas das cavernas, ele encontrou<br />

uma faixa <strong>de</strong> rocha que i<strong>de</strong>ntificou como tendo sido formada<br />

pelo “diluvium”. Abaixo da camada estaria a era pré-diluviana<br />

e acima a era pós-diluviana.<br />

A terceira variável seria a atualida<strong>de</strong> biológica <strong>dos</strong><br />

animais. Abaixo da tal faixa do dilúvio estariam os restos <strong>dos</strong><br />

animais extintos e acima <strong>de</strong>la estariam os restos <strong>dos</strong> animais<br />

viventes.<br />

E... voilá. Combinado essas três variáveis seria possível<br />

i<strong>de</strong>ntificar com facilida<strong>de</strong> e precisão as ossadas das espécies <strong>de</strong><br />

animais extintos e as ossadas das espécies <strong>de</strong> animais viventes.<br />

Cuvier não teria nada a retocar.<br />

Do lado zoológico o mo<strong>de</strong>lo fazia crer que todas as<br />

espécies já não-viventes tinham sido extintas por conta <strong>de</strong><br />

hecatombes colossais que, volta e meia, realinhavam o perfil<br />

do planeta. Alhures, no tempo e no espaço, o impacto não se<br />

tinha feito sentir e parte da criação tinha sobrevivido e<br />

composto as espécies <strong>de</strong> animais viventes atuais, casualmente<br />

redistribuindo-os pelo mundo. Era a teoria <strong>de</strong> George Cuvier<br />

pura e intocada.<br />

Do ponto <strong>de</strong> vista geológico o mo<strong>de</strong>lo propunha que<br />

era possível estabelecer uma linha divisória para distinguir o<br />

tempo da catástrofe universal <strong>dos</strong> tempos atuais. O gran<strong>de</strong><br />

50


indicador <strong>de</strong>ssa separação era o estado <strong>de</strong> “antiquida<strong>de</strong>” <strong>dos</strong><br />

ossos encontra<strong>dos</strong> em cada um <strong>de</strong>les. O sinal <strong>de</strong>ssa<br />

antiquida<strong>de</strong> era fundamentalmente o estado <strong>de</strong> “fossilização”<br />

<strong>dos</strong> ossos. Antigo, enfim era tudo aquilo que se encontrava<br />

fossilizado, homens ou animais. As três variáveis se<br />

encaixavam perfeitamente, se completavam e eis a realida<strong>de</strong> da<br />

classificação paleontológica em sua plenitu<strong>de</strong><br />

Munido do seu mo<strong>de</strong>lo explicativo, <strong>de</strong> um par <strong>de</strong> boas<br />

enxadas, da companhia <strong>de</strong> Brandt e <strong>de</strong> alguns mateiros e<br />

escravos o dr. Peter W. Lund partiu resoluto para campo. No<br />

princípio foi só alegria. O mo<strong>de</strong>lo funcionava perfeitamente,<br />

mesmo porque, era a realida<strong>de</strong> que se conformava a ele. Mas o<br />

dr. Lund, arguto observador como disse Darwin, não<br />

<strong>de</strong>morou em perceber que a realida<strong>de</strong> era muito mais<br />

complexa do que sonhava a sua vã e estabelecida filosofia. E<br />

aí ele começou a se sentir <strong>de</strong>sconfortável.<br />

Era um mo<strong>de</strong>lo compatível com a época e a formação<br />

<strong>de</strong> Lund mas, chegava a ser ingênuo e suas próprias<br />

<strong>de</strong>scobertas foram abalando seu arcabouço teórico logo que<br />

ele percebeu que era possível encontrar ossos fósseis e não<br />

fósseis num mesmo período geológico. Darwin escreveria<br />

anos <strong>de</strong>pois, em sua famosa obra sobre a evolução das<br />

espécies através da seleção natural: “(...) a aparição e o<br />

<strong>de</strong>saparecimento das numerosas espécies extintas, escondidas em cada<br />

formação (geológica), não foram jamais simultâneas. As espécies<br />

pertencentes a diferentes gêneros e a diferentes classes não se<br />

transformaram no mesmo grau nem com a mesma rapi<strong>de</strong>z. Nas camadas<br />

51


terciárias mais antigas encontram-se algumas espécies atualmente vivas<br />

em meio <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> formas extintas”.<br />

Nas suas primeiras memórias Lund acreditava que<br />

uma faixa superficial <strong>de</strong> argila fina encontrada nas cavernas<br />

indicava os tempos atuais, <strong>de</strong>pois havia uma fina camada <strong>de</strong><br />

estalactites <strong>de</strong>limitando as duas eras e abaixo estava a<br />

maravilhosa faixa <strong>de</strong> argila amarelada indicando os tempos<br />

antigos ou o cemitério das espécies extintas. Claro que essa<br />

maneira rígida <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar os perío<strong>dos</strong> geológicos era<br />

precária e se constituía no gran<strong>de</strong> problema do mo<strong>de</strong>lo.<br />

Mas ele insistiu e, durante algum tempo, preferiu<br />

rejeitar a hipótese <strong>de</strong> que espécies extintas e viventes tivessem<br />

coexistido num mesmo passado. Preferia forçar a crença <strong>de</strong><br />

que aci<strong>de</strong>ntes pontuais como a ação das águas ou <strong>de</strong> animais<br />

tivessem removido ossos para situações artificiais, diferentes<br />

naquelas características da época em que os animais tinham<br />

efetivamente morrido. Quando isso se tornava insustentável<br />

ele se <strong>de</strong>snorteava e sofria com o zig zag que a história das<br />

espécies parecia fazer por sobre a linha do tempo.<br />

Em outra carta en<strong>de</strong>reçada a Reinhardt - esta escrita<br />

em 16 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1843 - Lund parece admitir que tinha<br />

reformulado parte do mo<strong>de</strong>lo. Informava que tinha<br />

conseguindo da<strong>dos</strong> para formar uma enorme base para suas<br />

teorias sobre os fenômenos geológicos a respeito da<br />

<strong>de</strong>struição das cavernas e da terra e a introdução <strong>dos</strong> ossos<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>las. Afirmava que tais teorias consolidaram sua<br />

convicção e <strong>de</strong>spertaram tranquilida<strong>de</strong> e satisfação o que<br />

52


contrastava com o <strong>de</strong>scontentamento com as teorias<br />

anteriores, sobre esses mesmos pontos, que teve que<br />

abandonar. Mas, por outro lado, na mesma carta confessava<br />

que outros pontos anteriores que já tinha admitido como<br />

comprova<strong>dos</strong> foram abala<strong>dos</strong> por novas dúvidas surgidas,<br />

especialmente em relação à linha separadora entre as eras pois<br />

tinha observado espécies extintas se movimentarem em<br />

direção ao presente e espécies do presente se movimentarem<br />

em direção ao passado. Afirmava, candidamente, que resistia à<br />

força <strong>de</strong>sses fatos em nome do ser humano. Informava ainda<br />

que naquele ano tinha encontrado restos humanos que não<br />

<strong>de</strong>ixavam nenhuma dúvida <strong>de</strong> que eles testemunharam a<br />

extinção <strong>de</strong> pelo menos cinco espécies <strong>de</strong> mamíferos.<br />

Assim, Lund acabou por reconhecer as <strong>de</strong>ficiências<br />

geológicas do mo<strong>de</strong>lo. Mas, ao evitar discutir o mecanismo<br />

através do qual as espécies são extintas, ele foi incapaz <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>struir o mo<strong>de</strong>lo e seguir em frente. Preferiu sofrer, se<br />

queixar <strong>de</strong> isolamento intelectual e falta <strong>de</strong> recursos para<br />

aprofundar suas pesquisas e acabou por abandoná-las. Ou<br />

seja, em relação a espinha dorsal do mo<strong>de</strong>lo, vale dizer, o<br />

sentido da existência <strong>de</strong> uma linha separadora entre as<br />

espécies extintas e não extintas ele se quedava impotente e<br />

confuso. Pobre Lund não teve coragem <strong>de</strong> admitir que essa<br />

linha nunca existiu, pois como viria a propor o sr. Charles<br />

Darwin, os fenômenos geológicos nada têm a ver com a<br />

história das espécies. Mas nada disso era simples. O próprio<br />

Darwin levaria vinte anos criando coragem para propagar suas<br />

i<strong>de</strong>ias. Lund preferiu não chegar ao ponto <strong>de</strong> conservar uma<br />

heresia na gaveta e quando sentiu que seu mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong><br />

53


investigação estava ficando inconsistente com as <strong>de</strong>duções<br />

que as evidências das suas investigações se lhe impunham,<br />

preferiu parar.<br />

Mãos, enxadas e pás<br />

A primeira caverna que Lund conheceu foi nas<br />

proximida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Curvelo em outubro <strong>de</strong> 1834. Foi<br />

basicamente uma visita recreativa, propiciada por gentileza <strong>de</strong><br />

Peter Claussen e impulsionada pela curiosida<strong>de</strong> compulsiva <strong>de</strong><br />

um naturalista <strong>de</strong>dicado, sempre excitado pelo <strong>de</strong>sejo<br />

permanente <strong>de</strong> esmiuçar toda a complexida<strong>de</strong> da natureza.<br />

Naquele tempo se acreditava que isso era possível, pois o<br />

conhecimento era pouco e as especialida<strong>de</strong>s das ciências<br />

naturais ainda não tinham firmado suas fronteiras com maior<br />

niti<strong>de</strong>z. A exploração <strong>de</strong> cavernas na região, naquela época,<br />

tinha interesse meramente comercial, objetivando a extração<br />

do salitre, mineral abundante no piso naquelas perfurações<br />

naturais que a água tinha feito na rocha calcária. Essa ativida<strong>de</strong><br />

era muito comum ali e, por volta <strong>de</strong> 1805, o sempre ativo<br />

naturalista mineiro <strong>José</strong> Vieira Couto já alertava o governo da<br />

capitania para o potencial da ativida<strong>de</strong>, especialmente na Serra<br />

do Cabral, próximo a barra do Guaycuí. Mas nunca se<br />

estabeleceu uma exploração or<strong>de</strong>nada e produtiva pois o<br />

governo da metrópole tinha muito receio <strong>de</strong> que o salitre<br />

virasse pólvora e viesse municiar movimentos que buscassem<br />

uma emancipação prematura do jugo português. Assim<br />

preferia comprar o produto mirrado obtido por fazen<strong>de</strong>iros<br />

54


que tinham na extração do salitre uma ativida<strong>de</strong> extrativista<br />

que competia com plantações, chiqueiros, poleiros e<br />

instalações rudimentares e imundas on<strong>de</strong> se produziam<br />

laticínios. O próprio Peter Claussen era um empreen<strong>de</strong>dor<br />

<strong>de</strong>ste tipo, até que conheceu Lund e <strong>de</strong>scobriu que usando o<br />

nome <strong>de</strong>le po<strong>de</strong>ria dar credibilida<strong>de</strong> as suas ossadas e vendêlas<br />

para museus europeus, granjeando fama e fortuna 25 para<br />

<strong>de</strong>sespero do nosso humil<strong>de</strong> e <strong>de</strong>dicado naturalista que temia<br />

pelos critérios <strong>de</strong>strutivos com que o fazen<strong>de</strong>iro se lançava na<br />

exploração das cavernas <strong>de</strong> ossos.<br />

Portanto, a primeira temporada <strong>de</strong> Lund nas cavernas<br />

<strong>de</strong> Curvelo foi <strong>de</strong> mero aquecimento e o trabalho exploratório<br />

só começou <strong>de</strong> fato nas cercanias <strong>de</strong> Ouro Preto, no final<br />

daquele mesmo ano. A caverna ficava nas proximida<strong>de</strong>s do<br />

arraial da Cachoeira do Campo. Não foi uma labuta muito<br />

gratificante e nem chegou a ser propriamente uma exploração<br />

paleontológica. As escavações produziram não mais do que<br />

uma coleção <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong> fragmentos ósseos <strong>de</strong> espécies<br />

viventes <strong>de</strong> pequenos mamíferos roedores e voadores e é<br />

possível que o sábio dinamarquês tenha <strong>de</strong>scartado essas<br />

coleções insignificantes para dar espaços para coisas mais<br />

preciosas que viriam <strong>de</strong>pois.<br />

25 Embora Lund abominasse que Claussen usasse o seu nome, ele<br />

acabou muito conhecido na Europa graças às coleções que o<br />

aventureiro dinamarquês ven<strong>de</strong>u aos museus do velho mundo.<br />

Várias <strong>de</strong>las foram visitadas por Darwin e citadas em suas obras<br />

como “as coleções <strong>dos</strong> srs. Lund e Claussen”.<br />

55


Lund, em suas cartas, revela ter explorado cerca <strong>de</strong><br />

oitocentas cavernas. Apenas na Lapa do Sumidouro é que ele<br />

encontrou vestígios interessantes <strong>de</strong> seres humanos. Coletou<br />

ossadas <strong>de</strong> um grupo etário variado, abrangendo <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

crianças a velhos <strong>de</strong>crépitos. Foram encontra<strong>dos</strong>, enfim, em<br />

situação geológica que acabou o convencendo <strong>de</strong> que aqueles<br />

seres tinham convivido com animais extintos e, portanto,<br />

eram muito antigos. Embora o sábio dinamarquês,<br />

invariavelmente, tratasse do mesmo assunto em suas<br />

memórias daquela fase, em apenas duas <strong>de</strong>las ele foca mais<br />

diretamente as características das cavernas, suas belezas e<br />

particularida<strong>de</strong>s geológicas. A primeira, datada <strong>de</strong> 1836, relata<br />

os trabalhos na Lapa Nova <strong>de</strong> Maquine. Naquele tempo -<br />

começo da carreira paleontológica - ele ainda era cuvieriano<br />

fanático e consi<strong>de</strong>rava a ocorrência do diluvium<br />

“suficientemente <strong>de</strong>monstrada” por marcas estampadas nas<br />

particularida<strong>de</strong>s geológicas da caverna.<br />

A segunda memória está datada do mesmo ano da<br />

primeira e trata da Lapa da Cerca Gran<strong>de</strong>. Mas, no geral, todo<br />

o trabalho <strong>de</strong> Lund nas cavernas mirava a formação <strong>de</strong><br />

coleções para i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> espécies fósseis e classificação<br />

<strong>de</strong> animais extintos. Portanto, o foco não era propriamente<br />

espeleológico e a geologia era focada apenas como balizador<br />

cronológico para os ossos.<br />

De certa forma, a <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> fósseis humanos na<br />

Lapa do Sumidouro foi um aci<strong>de</strong>nte verda<strong>de</strong>iramente<br />

incômodo que chegou a <strong>de</strong>snortear nosso caro sábio. No fim,<br />

56


foram nove anos <strong>de</strong> escavações <strong>de</strong>spendi<strong>dos</strong> na coleta <strong>de</strong><br />

milhares <strong>de</strong> fragmentos reuni<strong>dos</strong> e compara<strong>dos</strong> pacientemente<br />

com o propósito principal <strong>de</strong> classificação <strong>de</strong> mamíferos. Na<br />

média Lund teria explorado cerca <strong>de</strong> noventa cavernas por<br />

ano. Consi<strong>de</strong>rando que esse trabalho só era feito no período<br />

da seca, ou seja, entre abril e setembro, po<strong>de</strong>mos concluir que,<br />

em gran<strong>de</strong> parte das cavernas, as escavações foram muito<br />

superficiais e o sítio era abandonado se não mostrasse, <strong>de</strong><br />

imediato, algum promissor potencial fossilífero. De qualquer<br />

forma, aqueles nove anos <strong>de</strong> trabalho no fundo das lapas,<br />

permitiram ao sábio i<strong>de</strong>ntificar uma varieda<strong>de</strong> enorme <strong>de</strong><br />

animais que ele classificou ao longo das suas memórias e que<br />

resumiu numa comunicação escrita em novembro <strong>de</strong> 1844<br />

para a Real Socieda<strong>de</strong> Dinamarquesa <strong>de</strong> Ciências. Segundo<br />

Paula Couto 26 , Lund classificou 100 gêneros e 149 espécies<br />

fósseis e 73 gêneros e 103 espécies atuais. As respectivas<br />

ossadas foram pacientemente embaladas e enviadas à<br />

Dinamarca on<strong>de</strong>, junto com as memórias, compõem o acervo<br />

do “Museo Lundii”, revisado e organizado por Herluf Winger<br />

a partir <strong>de</strong> 1884, ou seja, três anos <strong>de</strong>pois da morte do sábio<br />

nos recônditos do planalto brasileiro.<br />

26 “Memórias sobre a paleontologia brasileira”.<br />

57


Paus, pedras e ossos no caminho<br />

Quando Lund e Rie<strong>de</strong>l partiram naquela sua viagem,<br />

a intenção era coletar da<strong>dos</strong> para a produção <strong>de</strong> estu<strong>dos</strong><br />

botânicos como já contamos. De fato, seus dois primeiros<br />

trabalhos resultantes da segunda viagem ao Brasil tratavam <strong>de</strong><br />

plantas. O primeiro foi um estudo sobre a vegetação que o<br />

sábio dinamarquês observou nas cercanias do Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

intitulado “Nota Sobre as Plantas Comuns das Estradas e<br />

Ervas Daninhas do Brasil”.<br />

O segundo foi concluído no dia anterior em que Lund<br />

e Rie<strong>de</strong>l se separaram em Ouro Preto. Este trabalho foi o<br />

único fruto das observações colhidas na viagem pelos sertões<br />

<strong>de</strong> São Paulo e Minas em 1834. O tratado recebeu por título<br />

“Observação Sobre a Vegetação <strong>dos</strong> Planaltos Interiores do<br />

Brasil, em Especial com Relação à História das Plantas” e foi<br />

apresentado por Reinhard na Socieda<strong>de</strong> Científica <strong>de</strong><br />

Copenhagen em 10 <strong>de</strong> julho.<br />

A partir daí Peter Lund foi assumindo rapidamente<br />

sua paixão paleontológica e esquecendo as plantas em favor<br />

<strong>dos</strong> animais, especialmente os mamíferos. Vimos que ele <strong>de</strong>u<br />

ao seu conjunto dorsal <strong>de</strong> memórias o título genérico <strong>de</strong><br />

“Estudo Sumário do Reino Animal do Brasil Antes da Última<br />

Revolução do Globo 27 ou “Olhar Sobre a Criação Animal<br />

27<br />

Na tradução do francês por Leônidas Damásio publicada na revista do<br />

Arquivo Público Mineiro (primeira à quarta memórias). Segundo Damásio<br />

a tradução francesa tinha sido encomendada por d. Pedro II e<br />

58


Brasileira Antes da Última Revolução da Terra” 28 . Antes<br />

porém <strong>de</strong> produzir essa coletânea, ele escreveu alguns ensaios<br />

isola<strong>dos</strong>. Num primeiro momento, como dito, seu foco foi<br />

mais espeleológico e geológico centrado em minuciosas<br />

consi<strong>de</strong>rações sobre as características das cavernas calcárias e<br />

suas camadas. Logo o foco passou a ser o estudo <strong>dos</strong><br />

mamíferos encontra<strong>dos</strong> nelas em abundância.<br />

A primeira das memórias do sábio dinamarquês,<br />

<strong>de</strong>corrente do trabalho nas cavernas, foi aquela que tratava da<br />

exploração da gruta <strong>de</strong> Maquine. Teve por título: “Cavernas<br />

Existentes no Calcário do Interior do Brasil, Contendo<br />

Algumas Delas Ossadas Fósseis” e foi publicada em<br />

Copenhagen em 1836. A segunda memória trata da “Lapa da<br />

Cerca Gran<strong>de</strong>” e foi divulgada em 1837.<br />

A terceira memória vem a ser a primeira da coletânea<br />

<strong>de</strong>dicada ao estudo <strong>dos</strong> mamíferos e foi escrita como uma<br />

introdução geral ao assunto. Está datada <strong>de</strong> 14 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong><br />

1837. Nos seus parágrafos iniciais o autor, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> pedir<br />

<strong>de</strong>sculpas pelas imperfeições que a obra certamente haveria <strong>de</strong><br />

conter por falta <strong>de</strong> recursos ao seu dispor, alerta que se trata<br />

<strong>de</strong> um esboço sobre a classe <strong>dos</strong> mamíferos. Informa que,<br />

àquela altura, já tinha visitado 88 cavernas, que elas tinham<br />

características semelhantes, com predominância <strong>de</strong> argila e<br />

encaminhada a H. Corceix para ser vertida ao português e publicada nos<br />

Anais da Escola <strong>de</strong> Minas <strong>de</strong> Ouro Preto. Somente as duas primeiras<br />

foram publicadas nos Anais.<br />

28 Na tradução do dinamarquês por Pedro Ernesto Luna Filho.<br />

59


presença <strong>de</strong> cascalho e quartzo e que foram formadas no<br />

antigo fundo <strong>de</strong> um lago ou mar. Lund mostra preocupação<br />

criteriosa com a <strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> indicadores <strong>de</strong> antiquida<strong>de</strong><br />

<strong>dos</strong> <strong>de</strong>pósitos <strong>de</strong> ossos, requisito indispensável do seu mo<strong>de</strong>lo<br />

para diferenciação <strong>dos</strong> restos <strong>de</strong> animais extintos e <strong>de</strong> espécies<br />

ainda viventes.<br />

Ensina que:<br />

“uma crosta avermelhada <strong>de</strong> estalagmites esten<strong>de</strong>-se como um tapete sobre<br />

o solo (das cavernas) e assinala o limite entre o tempo passado e o<br />

presente. Nenhuma das forças <strong>de</strong>struidoras da natureza ali atuou e tudo<br />

se acha no estado em que se <strong>de</strong>positou por ocasião do gran<strong>de</strong> cataclismo<br />

que <strong>de</strong>terminou a subversão do mundo antigo com to<strong>dos</strong> os seus<br />

habitantes”.<br />

Depois mostra o mesmo escrúpulo em relação a<br />

<strong>de</strong>terminação da condição fossilizada <strong>dos</strong> esqueletos<br />

encontra<strong>dos</strong>:<br />

“Em geral, a aparência <strong>dos</strong> ossos fósseis é a seguinte: acham-se inteiros e<br />

conservaram suas menores saliências, as arestas e as cristas as mais<br />

<strong>de</strong>licadas, na superfície têm uma bela cor vermelho-amarelada <strong>de</strong> cera e à<br />

fratura apresentam o branco o mais puro. São mais leves que os ossos<br />

frescos e a tal ponto quebradiços que se esfacelam entre os <strong>de</strong><strong>dos</strong>, por um<br />

contato impru<strong>de</strong>nte, a<strong>de</strong>rem fortemente à língua e lança<strong>dos</strong> sobre brasas<br />

enegrecem espalhando o cheiro fraco e <strong>de</strong>sagradável <strong>de</strong> queimado (...)”<br />

60


E eis estabelecida a essência da metodologia lundiana<br />

<strong>de</strong> datação <strong>de</strong> esqueletos, ou seja, a conjugação das condições<br />

geológicas <strong>dos</strong> <strong>de</strong>pósitos on<strong>de</strong> os ossos se encontravam mais<br />

a condição fossilizada <strong>dos</strong> mesmos. Para a época era tudo <strong>de</strong><br />

que se podia dispor. Na verda<strong>de</strong> até hoje, mesmo com as<br />

mo<strong>de</strong>rnas técnicas <strong>de</strong> datação, esse mo<strong>de</strong>lo ainda tem alguma<br />

serventia, pelo menos como guia.<br />

É aos mamíferos encontra<strong>dos</strong> nessa condição, ou seja,<br />

extintos por força da catástrofe diluviana <strong>de</strong> Cuvier, que Lund<br />

preten<strong>de</strong> dar atenção. Mas antes se <strong>de</strong>dica a algumas<br />

consi<strong>de</strong>rações sobre restos <strong>de</strong> mamíferos também<br />

encontra<strong>dos</strong> nas cavernas ou no cerrado e pertencentes a<br />

espécies não extintas. Destaque para os morcegos pela sua<br />

abundância. Depois os roedores: a capivara, a paca e todas<br />

essas carnes saborosas que sempre fascinaram o mineiro e não<br />

era diferente naquele tempo. Em seguida a cutia, o preá e<br />

coisas parecidas já <strong>de</strong>scambando para o lado <strong>dos</strong> ratos.<br />

Finalmente os <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nta<strong>dos</strong>, ou seja: tatu, tamanduá e<br />

preguiças. E ainda ruminantes, lobos e os temíveis felinos<br />

pinta<strong>dos</strong>.<br />

Eram essas as espécies que viviam abundantes nos<br />

tempos <strong>de</strong> Lund. Hoje elas também estão quase extintas. Não<br />

por força <strong>de</strong> cataclismos, claro, mas antes por força da ação<br />

predatória do próprio homem.<br />

A segunda memória da coletânea recebeu o título<br />

explícito <strong>de</strong> “Mamíferos” e está datada <strong>de</strong> 16 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong><br />

1837. Nela Lund aprofunda um pouco mais o que vinha<br />

esboçado na memória anterior, mas o foco agora são os<br />

61


mamíferos extintos. Explica que a memória é um “estudo<br />

geral das espécies <strong>de</strong> mamíferos que habitavam os planaltos<br />

do Brasil tropical antes da última revolução da terra”. Ao final<br />

apresenta um <strong>de</strong>talhado inventário <strong>dos</strong> mamíferos vivos e<br />

fósseis que encontrou no cerrado e que abrangiam 47 gêneros<br />

<strong>de</strong> mamíferos ainda vivos e 50 gêneros <strong>de</strong> mamíferos extintos.<br />

É interessante observar que em seu inventário,<br />

publicado ao final da segunda memória, Lund organizou uma<br />

lista <strong>de</strong> mamíferos que não existiam mais na região <strong>de</strong> Lagoa<br />

Santa mas que ainda existiam em outras partes do globo,<br />

ilustrando a convicção <strong>de</strong> que certas espécies po<strong>de</strong>riam <strong>de</strong>ixar<br />

<strong>de</strong> habitar <strong>de</strong>termina<strong>dos</strong> pontos do planeta. Extinção radical<br />

<strong>de</strong> espécies, porém, só mesmo por obra das tais catástrofes<br />

diluvianas.<br />

A terceira memória está datada <strong>de</strong> 12 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong><br />

1838 e dá continuação ao tratado <strong>dos</strong> mamíferos. Lund<br />

começa lamentando a <strong>de</strong>struição da flora brasileira, <strong>dos</strong> fósseis<br />

e das próprias cavernas. Em seguida retoma o tema da<br />

segunda memória voltado a consi<strong>de</strong>rações sobre os mamíferos<br />

atuais e extintos encontra<strong>dos</strong> na região das cavernas<br />

lagoasantenses. Na verda<strong>de</strong> a obra é essencialmente uma<br />

complementação da memória anterior, complementação essa<br />

imposta pelos novos acha<strong>dos</strong> <strong>de</strong> Lund que abundavam a cada<br />

nova enxadada.<br />

Em 05 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1839 apareceria as<br />

“Observações Sobre as Espécies Extintas <strong>de</strong> Mamíferos do<br />

62


Brasil”. Em 04 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1839 viria a lume um suplemento à<br />

terceira e quarta memórias batizado <strong>de</strong> “Suplemento às Duas<br />

Ultimas Memórias Sobre o Reino Animal do Brasil Antes das<br />

Revoluções do Globo” e em 27 <strong>de</strong> março do ano seguinte<br />

apareceria um “Apêndice às Observações Sobre os Animais<br />

Fósseis do Brasil”.<br />

A quarta memória está datada <strong>de</strong> 30 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1841<br />

e mais tar<strong>de</strong> viria a lume um suplemento agregando à mesma<br />

novas <strong>de</strong>scobertas. Começa como uma dissertação sobre os<br />

esqueletos <strong>de</strong> dois mamíferos extintos: o Platonyx e<br />

Megatherium. Lund também aproveita a oportunida<strong>de</strong> para<br />

reformular sua hipótese <strong>de</strong> que a hiena pu<strong>de</strong>sse ter vivido<br />

antigamente no Brasil, admitindo que não tinha obtido<br />

suficientes evidências disso.<br />

Ao final do trabalho publica novamente sua<br />

classificação modificada <strong>dos</strong> mamíferos vivos e extintos,<br />

sempre buscando agregar os novos conhecimentos que ia<br />

acumulando com os montes <strong>de</strong> ossos que levava para casa e<br />

que aproveitava o período chuvoso para esmiuçar.<br />

Mas o mais notável <strong>de</strong>ssa memória é que nela pela,<br />

primeira vez e <strong>de</strong> forma bastante discreta, Lund relata a<br />

<strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> fósseis humanos. Não <strong>de</strong>monstra nenhum<br />

entusiasmo com o achado espetacular. Ao contrário, apressase<br />

a <strong>de</strong>clarar que ainda não tinha elementos aceitáveis para<br />

concluir sobre a possível contemporaneida<strong>de</strong> do homem com<br />

animais extintos. Admitia a certeza <strong>de</strong> que os osso eram<br />

fossiliza<strong>dos</strong> mas que as condições em que foram encontra<strong>dos</strong><br />

não permitiam <strong>de</strong>terminar sua ida<strong>de</strong> geológica. E ei-lo<br />

63


comedido quando <strong>de</strong>veria estar exultante, brandindo sua<br />

enxada como se fosse uma espada empunhada na conquista<br />

<strong>de</strong> mun<strong>dos</strong> <strong>de</strong>sconheci<strong>dos</strong>. Verda<strong>de</strong>iramente uma atitu<strong>de</strong><br />

acanhada para um sábio à frente <strong>de</strong> véus que ameaçavam se<br />

<strong>de</strong>sfazer e por a nu novos e excitantes conhecimentos.<br />

A quinta memória sobre a fauna das cavernas,<br />

continuando ainda o tema <strong>dos</strong> mamíferos, foi escrita em 04 <strong>de</strong><br />

outubro do ano <strong>de</strong> 1841 e completaria a série. Recebeu o<br />

título <strong>de</strong> “As Espécies <strong>de</strong> Carnívoros Atuais e Fósseis nos<br />

Planaltos Centrais do Brasil Tropical”.<br />

Além <strong>de</strong> obter material para confeccionar suas listas <strong>de</strong><br />

mamíferos extintos e viventes, uma outra gran<strong>de</strong> motivação<br />

<strong>de</strong> Peter Lund para explorar as ossadas das cavernas era a<br />

possibilida<strong>de</strong> da <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> animais ainda não revela<strong>dos</strong><br />

para o mundo da ciência e proclamar a feliz paternida<strong>de</strong> aos<br />

doutos ouvi<strong>dos</strong> espalha<strong>dos</strong> pelos gabinetes e aca<strong>de</strong>mias da<br />

Europa. Havia muita e justa vaida<strong>de</strong> embutida no mistér. Esse<br />

era um trabalho que fascinava os paleontólogos da época,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que Cuvier havia <strong>de</strong>scrito o mamute e lançado as bases<br />

<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação e classificação das ossadas <strong>de</strong> animais<br />

extintos.<br />

Esse trabalho era essencialmente comparativo. Ou<br />

seja, consistia na comparação <strong>dos</strong> ossos encontra<strong>dos</strong> com<br />

outros ossos que serviam <strong>de</strong> referência. Quando era possível<br />

reconstituir o animal e imaginar como ele teria sido, havia<br />

ainda a alternativa <strong>de</strong> comparar a coisa resultante com<br />

<strong>de</strong>senhos estampa<strong>dos</strong> em livros e revistas especializadas. Era<br />

64


por isso que os <strong>de</strong>senhistas tinham tanta importância nas<br />

equipes <strong>de</strong> pesquisadores. A moda era batizar o mostrengo<br />

encontrado, usando a raiz latina <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação da espécie ou<br />

característica dominante mais um complemento i<strong>de</strong>ntificando<br />

o lugar on<strong>de</strong> ele havia sido encontrado ou homenageando<br />

alguma personalida<strong>de</strong>. Tipo: Megatherium americanum<br />

(Cuvier) ou Pampatherium humboldti (Lund).<br />

Nosso sábio da Lagoa Santa acabava sendo muito<br />

prejudicado neste trabalho em função da sua distância da<br />

Europa o que o levava muitas vezes, por ignorância das<br />

novida<strong>de</strong>s, a julgar ter sido <strong>de</strong>scobridor <strong>de</strong> alguma espécie<br />

que, na verda<strong>de</strong>, já havia sido revelada. Ele trata disso numa<br />

carta en<strong>de</strong>reçada a Reinhardt, datada <strong>de</strong> 29 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong><br />

1841. Nela lamenta que o seu Hoplophorus eupharactus, que<br />

ele havia <strong>de</strong>scoberto há quase cinco anos, tinha virado<br />

Glyptodont, pois Richard Owen tinha classificado também o<br />

mesmo animal e publicado seu trabalho um mês antes <strong>de</strong>le.<br />

Outros casos aconteceram, restando para Peter Lund, porém,<br />

a glória incontestável <strong>de</strong> ter <strong>de</strong>scoberto o Smilodon polulator<br />

– o tigre <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> sabre – um <strong>dos</strong> maiores animais que já<br />

viveram nas Américas.<br />

De qualquer forma o sábio dinamarquês se queixaria<br />

mais <strong>de</strong> uma vez do seu isolamento e isso também po<strong>de</strong> ter<br />

contribuído para o seu <strong>de</strong>sânimo em continuar escavando,<br />

como alguns autores acreditam com toda proprieda<strong>de</strong>.<br />

65


Maquiné: obra artística da natureza<br />

Como dito, uma das primeiras cavernas que Lund<br />

explorou, ainda na fase curvelana, ou seja, antes <strong>de</strong> que viesse<br />

fixar o seu peão exploratório em Lagoa Santa; foi a Lapa<br />

Nova <strong>de</strong> Maquiné. Com a ajuda <strong>de</strong> seu novo companheiro<br />

Brandt, o naturalista dinamarquês <strong>de</strong>spen<strong>de</strong>u três meses<br />

perscrutando os segre<strong>dos</strong> geológicos e paleontológicos da<br />

gruta. O resultado mereceu aquela memória intitulada<br />

“Cavernas Existentes no Calcário do Interior do Brasil,<br />

Contendo Algumas Delas Ossadas Fósseis”.<br />

Como acontece ainda hoje com quem a visita, o sábio<br />

tomou-se <strong>de</strong> amores pela gruta <strong>de</strong> Maquiné. Descreveu-a com<br />

as mais apaixonadas pinceladas <strong>de</strong> admiração, tais como:<br />

“As obras artísticas do mais alto gosto, a mais rica arquitetura são ali<br />

reproduzidas, e posso mesmo dizer que a arte humana é excedida por<br />

essas formações caprichosas da fantasia da natureza. (...) Os esplêndi<strong>dos</strong><br />

reflexos produzi<strong>dos</strong> pela luz, ferindo as inúmeras facetas <strong>de</strong>sses cristais,<br />

<strong>de</strong>slumbram a vista <strong>de</strong> modo que o homem se julga transportado a um<br />

palácio <strong>de</strong> fadas.”<br />

Mas não foi só fina arte da natureza que Lund viu na<br />

gruta. Viu também sinais geológicos do diluvium e ossadas <strong>de</strong><br />

animais extintos no meio <strong>de</strong>les. Não hesitou em associar os<br />

sinais que tinha encontrado à última gran<strong>de</strong> revolução que<br />

teria havido no globo terrestre, segundo Cuvier e seus<br />

parceiros. Enfim, a força formidável das torrentes diluvianas<br />

66


teria sido a causa da extinção <strong>dos</strong> animais cujos ossos havia<br />

encontrado soterra<strong>dos</strong> na caverna.<br />

Naquele tempo, como vimos, suas convicções estavam<br />

firmes e serenas e ele pô<strong>de</strong> transitar confortável pelas<br />

maravilhas da gruta firmemente convencido da veracida<strong>de</strong> <strong>dos</strong><br />

dogmas catastrofistas e da autorida<strong>de</strong> inconteste das suas<br />

fontes sagradas. Este conforto mental, na verda<strong>de</strong>, não estava<br />

fazendo nada bem a Lund, pois ele estava duplamente errado.<br />

Ou seja, não só não havia sinais inequívocos <strong>de</strong> uma<br />

catástrofe diluviana nas entranhas <strong>de</strong> Maquiné, como também<br />

os animais cujos ossos foram encontra<strong>dos</strong> por ele em<br />

escavações no interior da gruta não estavam extintos. Tratavase<br />

simplesmente <strong>de</strong> ossos <strong>de</strong> vea<strong>dos</strong> mateiros, naqueles<br />

tempos abundante e apreciada caça que saltitava ágil e arisca<br />

no meio da vegetação rala do serrado. Ele próprio se<br />

encarregaria <strong>de</strong> corrigir os equívocos e foi fazendo isso à<br />

medida em que novas escavações revelavam novos enigmas<br />

cujo mo<strong>de</strong>lo explicativo acabado e perfeito que tinha trazido<br />

da Europa não era capaz <strong>de</strong> resolver. Então foi tendo que<br />

buscar novas soluções e quanto mais se empenhava nisso mais<br />

se sentia <strong>de</strong>sconfortável e inseguro. Isso duraria até 1844<br />

quando ele <strong>de</strong>cidiu chutar o pau da barraca. Infelizmente a<br />

barraca caiu sobre ele e ele resolveu ficar quieto em lugar <strong>de</strong> se<br />

levantar e ir em frente.<br />

Do ponto <strong>de</strong> vista paleontológico a Lapa Nova <strong>de</strong><br />

Maquiné não chegou a significar gran<strong>de</strong> coisa nas pesquisas <strong>de</strong><br />

Lund e o que acabou por seduzi-lo foi mesmo o lado<br />

espeleológico que, naquela princípio <strong>de</strong> obra era o que mais o<br />

67


fascinava. De sorte que ele não hesitou em apregoar que<br />

aquela gruta ocultava preciosos tesouros. Ele queria dizer<br />

tesouros da natureza naturalmente, mas o imaginário popular<br />

logo associou a admiração do esperto europeu a outro tipo<br />

mais pragmático <strong>de</strong> preciosida<strong>de</strong>s, tais como ouro e pedras<br />

preciosas.<br />

Desconfiado das reais intenções do sábio, o<br />

proprietário das terras on<strong>de</strong> a gruta se localizava mandou<br />

fechar e ocultar a sua entrada para preservar os tais tesouros,<br />

por certo pensando em explorá-los mais tar<strong>de</strong>. Mas não se<br />

empenhou verda<strong>de</strong>iramente nisso, o tempo passou, o mato<br />

tomou conta <strong>de</strong> tudo e acabou que ninguém conseguia se<br />

lembrar mais on<strong>de</strong> ficava a entrada da Lapa <strong>de</strong> Maquiné. Mas<br />

o mito persistiu e <strong>de</strong> repente virou <strong>de</strong>safio re<strong>de</strong>scobrir a<br />

entrada da <strong>de</strong>slumbrante caverna. Foram necessários trinta<br />

anos <strong>de</strong> busca para que ela fosse novamente encontrada e<br />

aberta ao mundo que então pô<strong>de</strong> contemplar novamente os<br />

tesouros naturais que haviam <strong>de</strong>slumbrado o jovem Peter<br />

Lund, então um tranqüilo admirador da obra organizada e<br />

perfeita <strong>de</strong> Deus.<br />

Consta que em 1836, quando explorava a Lapa da<br />

Cerca Gran<strong>de</strong>, Lund tinha ouvido da boca <strong>de</strong> uns mateiros<br />

que numa das escavações para retirada <strong>de</strong> salitre na gruta<br />

haviam sido encontra<strong>dos</strong> ossos humanos. Ele <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhou a<br />

informação e explicou que os brasileiros tinham mania <strong>de</strong><br />

atribuir a seres humanos to<strong>dos</strong> os ossos fósseis que<br />

encontravam. E completou, sarcástico que, quando os ossos<br />

erram muito gran<strong>de</strong>s, eram atribuí<strong>dos</strong> a gigantes.<br />

68


Naquele tempo, ainda enamorado das teorias<br />

cuvierianas, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> serem encontra<strong>dos</strong> ossos<br />

humanos junto com ossos <strong>de</strong> animais que tinham sido<br />

extintos por força <strong>de</strong> uma hecatombe mundial parecia ao<br />

jovem Lund o mais perfeito <strong>dos</strong> absur<strong>dos</strong>. Não tinha sentido<br />

per<strong>de</strong>r tempo com isso. Mas em 1842 ele já se mostrava<br />

bastante preocupado com essas questões. Foi quando<br />

escreveu uma carta ao secretário geral do Instituto Histórico e<br />

Geográfico Brasileiro dizendo que tinha encontrado fósseis <strong>de</strong><br />

ossos humanos nas cavernas <strong>de</strong> ossos, mas que ainda não se<br />

podia afirmar a coexistência do homem com mamíferos<br />

extintos.<br />

Dizia ele:<br />

“Achei estes restos humanos em uma caverna que continha misturado<br />

com eles ossos <strong>de</strong> diversos animais <strong>de</strong> espécies <strong>de</strong>cididamente extintas<br />

(...)”.<br />

E arrematava, buscando ainda arreme<strong>dos</strong> <strong>de</strong> conforto<br />

para as dúvidas que começam a incomodá-lo <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>:<br />

“Sobre a imensa ida<strong>de</strong> <strong>de</strong>les não po<strong>de</strong> haver dúvida nenhuma, porém<br />

quanto a questão <strong>de</strong> saber se os indivíduos <strong>dos</strong> quais eles <strong>de</strong>rivavam<br />

tinham sido coevos com os animais em companhia <strong>dos</strong> quais eles se<br />

encontravam não se po<strong>de</strong>, infelizmente, tirar conclusão alguma <strong>de</strong>cisiva<br />

visto que a caverna que os continha achava-se na margem <strong>de</strong> uma lagoa<br />

cujas águas, anualmente, no tempo das gran<strong>de</strong>s chuvas entravam nela.<br />

Em conseqüência <strong>de</strong>ssa circunstância podia ter havido não só uma<br />

introdução sucessiva <strong>de</strong> restos <strong>de</strong> animais na caverna como também as<br />

introduzidas posteriormente podiam misturar-se com os já <strong>de</strong>posita<strong>dos</strong>.<br />

Essa possibilida<strong>de</strong> mostrou-se efetivamente realizada, pois no meio <strong>de</strong>sses<br />

69


ossos pertencentes a espécies extintas, achava-se outros <strong>de</strong> espécies ainda<br />

existentes”.<br />

E ei-lo na boca do confronto com os dogmas que<br />

tinha trazido na mala <strong>de</strong> viagem cuida<strong>dos</strong>amente preparada<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a última estadia na Europa, buscando tímidas<br />

justificativas para uma questão crucial, qual seja, a<br />

possibilida<strong>de</strong> não só <strong>de</strong> que o homem tinha convivido com<br />

mamíferos extintos como ainda com a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que<br />

espécies extintas tinham convivido com espécies ainda vivas.<br />

Isso significava não só que as teorias catastrofistas não valiam<br />

um níquel como também – e isso era muito mais assustador -<br />

que as espécies evoluem num ritmo e numa seqüência<br />

<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nada, fortemente tangida pelo acaso. Lund estava às<br />

portas <strong>de</strong> ter que admitir enfim, que não havia um plano<br />

divino no reino da criação. Abalavam-se, assim, os pilares das<br />

portas do gênesis, essência da obra que dava sentido à<br />

existência do universo. Aí a carga estava ficando<br />

verda<strong>de</strong>iramente pesada, pois estava na iminência <strong>de</strong> ter que<br />

questionar não só a Cuvier, mas ao próprio Deus.<br />

O espírito científico do jovem sábio, contudo, ainda<br />

resistiria, um pouco mais. Afinal era a força <strong>de</strong>le que tinha<br />

feito Lund <strong>de</strong>sistir <strong>de</strong> seguir Rie<strong>de</strong>l e voltar à fazenda <strong>de</strong><br />

Claussen atrás das cavernas <strong>de</strong> salitre e seus ossos. E ele ainda<br />

seguiria em frente, pesquisando grutas e matutando à frente da<br />

santa lagoa por mais seis anos, superando-se e corrigindo os<br />

próprios erros até on<strong>de</strong> <strong>de</strong>u.<br />

70


III - A vitória <strong>de</strong> Deus<br />

Uma natureza profana<br />

Um belo dia Peter Lund estava passeando pelo bairro<br />

<strong>de</strong> Vesterbro em Copenhagen quando teve uma visão:<br />

recorrendo a frases flamejantes inscritas no ar, Deus se<br />

manifestou a ele com uma mensagem impressionante que o<br />

fez cair <strong>de</strong> joelhos vergado sob a magnificência do po<strong>de</strong>r do<br />

Senhor. Mas ficou transportado nesse estado apenas alguns<br />

segun<strong>dos</strong>, pois logo foi dominando por um lampejo <strong>de</strong><br />

racionalida<strong>de</strong> que o fez se erguer rapidamente, receoso <strong>de</strong> que<br />

algum passante o tomasse por louco. Nunca revelou o teor da<br />

mensagem divina, mas aquela visão o marcaria <strong>de</strong> forma<br />

in<strong>de</strong>lével, tanto que, já perto do fim da vida, fez questão <strong>de</strong><br />

contar o fato extraordinário ao seu secretário Roepstorff. Já lá<br />

se iam quase cinqüenta anos, mas Lund não tinha se<br />

esquecido daquela visão mística que explodiu diante <strong>dos</strong> seus<br />

olhos, justamente quando ele estava se aprontando para viajar<br />

ao Brasil pela segunda e <strong>de</strong>finitiva vez. Essa passagem singular<br />

na vida do sábio dinamarquês reforça a suspeita <strong>de</strong> que ele<br />

po<strong>de</strong> ter vivenciado um angustiante conflito teológico durante<br />

gran<strong>de</strong> parte da sua vida e que po<strong>de</strong> ter sido uma das causas<br />

principais <strong>de</strong>le ter abandonado o labor científico justamente<br />

quando ele <strong>de</strong>scortinava um novo e surpreen<strong>de</strong>nte horizonte.<br />

Falo, enfim, do velho embate entre a fé e a razão. Num<br />

segundo ei-lo submisso à gloria troante <strong>de</strong> Deus, no segundo<br />

seguinte ei-lo <strong>de</strong> pé, catapultado pelo receio do ridículo que<br />

71


ele representava naquele instante, ajoelhado e <strong>de</strong> mãos postas<br />

bem no meio da rua, sem mais nem menos.<br />

O episódio <strong>de</strong> Vesterbro normalmente é apresentado<br />

como uma simples curiosida<strong>de</strong> pinçada da vida <strong>de</strong> Lund,<br />

quando jovem. Mas muito mais do que isso, o ocorrido nos<br />

revela um traço marcante da personalida<strong>de</strong> do sábio, quer<br />

dizer, uma forte influência religiosa atrapalhando sua forma<br />

<strong>de</strong> pensar e uma certa intimidação diante das reações da<br />

opinião pública. Em essência, a mesma intimidação que mais<br />

tar<strong>de</strong> viria atrapalhar sua confiança em enfrentar a<br />

comunida<strong>de</strong> científica internacional com i<strong>de</strong>ias<br />

excessivamente <strong>de</strong>sconcertantes. Nesse aspecto não haveria<br />

propriamente uma rarida<strong>de</strong>.<br />

No campo da História Natural, o século XIX foi um<br />

século pleno <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias perigosas que a todo instante<br />

ameaçavam a beatitu<strong>de</strong> da convicção <strong>de</strong> que a natureza agia <strong>de</strong><br />

acordo com um plano perfeito, urdido pelo próprio Deus em<br />

pessoa. Alguns naturalistas foram mais ousa<strong>dos</strong> do que outros<br />

e o conhecimento avançou na razão direta <strong>de</strong>ssa ousadia. Mas<br />

a lista <strong>dos</strong> malditos, bani<strong>dos</strong> e ridiculariza<strong>dos</strong> era enorme e era<br />

tremendamente doloroso fazer parte <strong>de</strong>la. Intimismos<br />

teológicos à parte, era muito mais fácil ficar em paz com os<br />

pensadores cristãos <strong>de</strong> to<strong>dos</strong> os formatos, mesmo porque,<br />

atrás <strong>de</strong>les estavam suas po<strong>de</strong>rosas igrejas a tutelar as<br />

aca<strong>de</strong>mias e museus.<br />

72


O próprio Charles Darwin, como mencionamos,<br />

seguraria a revelação das suas i<strong>de</strong>ias sobre a evolução das<br />

espécies durante vinte anos, com receio do impacto que elas<br />

causariam no mundo científico <strong>de</strong> então. Assim mesmo, só o<br />

fez com receio <strong>de</strong> que Alfred Russel Wallance pu<strong>de</strong>sse<br />

precedê-lo, ofuscando os seus méritos com i<strong>de</strong>ias<br />

semelhantes. Darwin publicou seu livro sobre a origem das<br />

espécies, quinze anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Lund ter paralisado suas<br />

pesquisas nas cavernas do serrado mineiro. Se ele tivesse<br />

continuado teria enveredado pela linha darwiana? Claro que<br />

essa pergunta não tem resposta, mesmo porque, o próprio<br />

Lund não a quis fazer a si mesmo. Mas, para muita gente,<br />

Lund teria sido uma boa fonte <strong>de</strong> inspiração para Darwin.<br />

Parece haver aí um notável exagero. Das sete citações que<br />

tivemos oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar na obra darwiniana,<br />

apenas duas têm uma certa relevância 29 . Uma é <strong>de</strong> 1871,<br />

posterior, portanto, à publicação do livro principal sobre as<br />

origem das espécies, on<strong>de</strong> Darwin faz uma elogio pessoal a<br />

Lund chamando-o <strong>de</strong> “um excelente observador”. A outra cita<br />

a convicção <strong>de</strong> Lund <strong>de</strong> que a ocupação do continente<br />

americano pelos índios é muito antiga. As <strong>de</strong>mais cinco<br />

citações apenas ilustram observações do próprio Darwin<br />

calcadas nas coleções fósseis que Claussen ven<strong>de</strong>u aos museus<br />

ingleses afirmando que tinham sido coletadas por ele e por<br />

Lund nas cavernas do Brasil.<br />

29 Citadas por Pedro Luna Filho.<br />

73


É provável que Charles Darwin tenha lido alguma<br />

memória <strong>de</strong> Lund <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> já ter escrito seu livro sobre a<br />

seleção natural, mas é muito pouco provável que ele tenha<br />

visitado as coleções do Museu <strong>de</strong> Copenhagem. Em geral ele<br />

cita as coleções como “admirável coleção <strong>de</strong> ossadas fósseis<br />

recolhidas nas cavernas do Brasil por mr. Lund e Claussen”.<br />

Referia-se àquelas ossadas que Claussen andou ven<strong>de</strong>ndo a<br />

museus europeus, usando o nome <strong>de</strong> Lund para dar a elas<br />

mais credibilida<strong>de</strong>.<br />

De qualquer forma, as citações <strong>de</strong> Darwin evi<strong>de</strong>nciam<br />

que o dr. Peter Lund era uma figura conhecida <strong>dos</strong> meios<br />

científicos europeus naquela época. Infelizmente sua obra<br />

escrita não acompanhou a fertilida<strong>de</strong> das suas pesquisas <strong>de</strong><br />

campo, nem rompeu as inquietações do seu cérebro<br />

privilegiado, contido contudo no anel <strong>de</strong> ferro das suas<br />

convicções teológicas.<br />

O inventário incompleto da Arca <strong>de</strong> Noé<br />

Claro que foi no campo das ciências naturais que o<br />

tal embate entre a fé e a ciência foi mais acirrado pois ali<br />

ambas radicalizavam ao tentar explicar a mesma coisa <strong>de</strong><br />

forma diferente. A autorida<strong>de</strong> da bíblia, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> se recuperar<br />

do safanão que os iluministas lhe haviam dado no século<br />

XVIII, entrou no século seguinte plena <strong>de</strong> vitalida<strong>de</strong>. Aliás,<br />

resquícios <strong>de</strong>ssa vitalida<strong>de</strong> permanecem até hoje, já que ainda<br />

existem ilustra<strong>dos</strong> <strong>de</strong>fensores da i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que Deus criou o<br />

mundo em sete dias como se tivesse um cronograma <strong>de</strong> obras<br />

apertado a cumprir.<br />

74


Na época <strong>de</strong> Lund muitos ainda acreditavam que o<br />

mundo tinha tenros seis mil anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, intolerável erro na<br />

casa <strong>dos</strong> bilhões. Um bispo irlandês, por volta da virada do<br />

século XVII para o século XVIII, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> meticuloso<br />

cálculo baseado na genealogia bíblica, teve a singeleza <strong>de</strong><br />

revelar que o mundo tinha sido criado em outubro <strong>de</strong> 4004<br />

a.c. Eu próprio, quando criança, baseado na mesma<br />

metodologia acabei <strong>de</strong>scobrindo que Matusalém tinha<br />

morrido no mesmo ano do dilúvio, quem sabe até afogado no<br />

próprio. Mas não tive coragem <strong>de</strong> revelar minha <strong>de</strong>scoberta ao<br />

mundo, mesmo porque, ele não estava nem um pouco<br />

interessado nela.<br />

Nem eu nem o bispo conseguimos provar nada, pois a<br />

bíblia - embora <strong>de</strong> preciosíssima leitura - não é fonte <strong>de</strong><br />

verda<strong>de</strong>s científicas. Mas, como dito, ela ainda balizou muito a<br />

evolução do pensamento científico, sobretudo até o século<br />

XIX. Especialmente a i<strong>de</strong>ia do dilúvio continuou<br />

assombrando o pensamento <strong>dos</strong> naturalistas mais distintos<br />

retardando, sucessivamente, o nascimento <strong>de</strong> uma<br />

paleontologia robusta e disposta a trazer o passado do milagre<br />

da criação às luzes salutares do sol.<br />

À medida que acha<strong>dos</strong> geológicos e fósseis <strong>de</strong> vidas<br />

extintas iam sendo reveladas, a admissão <strong>de</strong> que tinha havido<br />

um dilúvio universal perpetrado pelo <strong>de</strong>us rancoroso do velho<br />

testamento ia ficando mais canhestra. Mas o pessoal teimou<br />

enquanto pô<strong>de</strong>. Certas rochas sedimentares, durante muito<br />

tempo, eram tidas como inquestionavelmente formadas pela<br />

ação das águas do dilúvio. Claro que era um absurdo imaginar<br />

75


que elas tinham sido formadas em quarenta dias. Esse teria<br />

sido o tempo <strong>de</strong> duração das catastróficas precipitações<br />

pluviais, sem contar o tempo necessário ao escoamento das<br />

águas mas que, na afobação da cronologia divina, <strong>de</strong>ve ter sido<br />

contado em meses. Mas esse <strong>de</strong>talhe temporal era consi<strong>de</strong>rado<br />

secundário, <strong>de</strong>vidamente pulverizado pela força da fé na<br />

palavra bíblica.<br />

O dilúvio causava no campo da paleontologia o<br />

mesmo incômodo que provocava no campo da geologia,<br />

porém <strong>de</strong> forma muito menos constrangedora, pois ali a coisa<br />

parecia fazer algum sentido. E era ali que os catastrofistas<br />

faziam sucesso, com Georges Cuvier à frente. Era preciso<br />

uma explicação para o fato <strong>de</strong> que muitas ossadas fósseis,<br />

<strong>de</strong>scobertas em diversos cantos do planeta, eram <strong>de</strong> espécies<br />

extintas. Naquela altura até já se admitia que Deus pu<strong>de</strong>sse ter<br />

criado o mundo em etapas <strong>de</strong>scontínuas, <strong>de</strong>ixando o homem<br />

para a última etapa. Mas no escopo bíblico não havia nada que<br />

tratasse <strong>de</strong> extinção <strong>de</strong> espécies. Afinal Noé não havia salvo<br />

to<strong>dos</strong> as espécies embarcando um casal <strong>de</strong> cada uma <strong>de</strong>las na<br />

sua provi<strong>de</strong>ncial arca? A menos que o inventário das espécies<br />

a serem embarcadas estivesse incompleto, falha logística<br />

inadmissível. Mas esse problema foi resolvido com relativa<br />

competência. Surgiu a teoria catastrofista baseada no princípio<br />

<strong>de</strong> que, além do dilúvio, o planeta terra havia passado por<br />

diversas revoluções cada uma das quais extinguia as espécies<br />

mais azaradas, dando lugar a que outras viessem ocupar o seu<br />

lugar geográfico.<br />

76


Era uma bela teoria que conciliava evidências<br />

concretas com princípios <strong>de</strong> fé e fazia Georges Cuvier <strong>de</strong>sfilar<br />

pelos salões parisienses com toda a pompa e arrogância. Ele<br />

morreu em 1832 e não chegou a ver o <strong>de</strong>clínio das suas i<strong>de</strong>ias.<br />

Mas poucos anos <strong>de</strong>pois seu entusiástico admirador Peter<br />

Lund, afirmaria que animais extintos tinham convivido com<br />

espécies ainda vivas. Foi aí que a gloria do Barão Cuvier<br />

começou a <strong>de</strong>finhar. Pobre Lund, preferia não ter causado<br />

isso.<br />

A enxada do diabo e a harpa <strong>de</strong> Deus<br />

A questão <strong>dos</strong> motivos que levaram a interrupção das<br />

pesquisas <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um frenético período produtivo carrega<br />

uma fascinante controvérsia. Na verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>vo dizer que ela é<br />

mesmo um <strong>dos</strong> temas centrais <strong>de</strong>sse trabalho. Claro que não<br />

houve apenas um motivo, mas há <strong>de</strong> haver uma causa<br />

predominante e é aí que se aninha o fascínio da questão. Uma<br />

laboriosa tese <strong>de</strong> doutorado produzida por Pedro Ernesto<br />

Luna Filho em 2007 30 concluiu que o dr. Lund foi sincero<br />

quando apontou a falta <strong>de</strong> recursos próprios como sendo a<br />

causa da interrupção <strong>dos</strong> seus trabalhos. O autor chegou a<br />

essa conclusão após examinar a correspondência do sábio<br />

dinamarquês e constatar que ele tinha se envolvido num<br />

30 Luna Filho, Pedro Ernesto – “Peter Wilhelm Lund: o auge das suas<br />

investigações científicas e a razão para o término das suas pesquisas” – Universida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> São Paulo – 2007.<br />

77


imbróglio financeiro em 1839 que acabou lhe provocando um<br />

prejuízo <strong>de</strong> sete contos e oitocentos mil reis (7:800$000),<br />

quantia que teria sido suficiente para impedi-lo <strong>de</strong> continuar<br />

financiando seu trabalho. Trata-se <strong>de</strong> um empréstimo feito<br />

pelo sábio e que o <strong>de</strong>vedor não teve condições <strong>de</strong> honrar 31 .<br />

Felizmente Luna Filho disponibilizou suas fontes <strong>de</strong> consulta,<br />

segundo ele até agora inéditas, e pu<strong>de</strong> ter acesso a elas. Mas,<br />

ousei chegar a conclusões um pouco diferentes. Quero dizer,<br />

não concordo que questões financeiras tenham sido a causa<br />

dominante que levou o dr. Lund a suspen<strong>de</strong>r seus trabalhos<br />

logo quando eles estavam se tornando tão interessantes. Está<br />

certo que a quantia emprestada ao mau-pagador não era<br />

<strong>de</strong>sprezível mas, antes <strong>de</strong> mais nada, não me pareceu ter<br />

ficado suficientemente caracterizado que o dr. Lund não tenha<br />

sido ressarcido do prejuízo pois, apesar <strong>dos</strong> percalços do<br />

processo, há indícios <strong>de</strong> que isso possa ter acontecido em<br />

1846 quando, segundo notícias do próprio sábio, só faltava a<br />

avaliação e execução <strong>dos</strong> bens da<strong>dos</strong> em garantia ao<br />

empréstimo 32 .<br />

31 Falo <strong>de</strong> Francisco Wiszner <strong>de</strong> Morgenstern que tomou dinheiro<br />

emprestado <strong>de</strong> Lund com juros <strong>de</strong> 12% aa. para investir na sua lavra <strong>de</strong><br />

Papafarinha em Sabará, dando a proprieda<strong>de</strong> em garantia.<br />

32 Henrik Stangerup na sua biografia romanceada <strong>de</strong> Lund (Lagoa Santa:<br />

Vidas e Ossadas), diz que os bens da<strong>dos</strong> em garantia ao empréstimo foram<br />

vendi<strong>dos</strong> a um cidadão inglês.<br />

78


Há <strong>de</strong> se consi<strong>de</strong>rar ainda, que Lund não vivia<br />

diretamente <strong>de</strong> capital e sim <strong>dos</strong> rendimentos <strong>de</strong>le. 33 Ou seja,<br />

ele não era um empresário e sim um investidor. Assim, o que<br />

po<strong>de</strong>ria lhe fazer falta eram os rendimentos do empréstimo<br />

que tinha feito e que, muito provavelmente, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1840 já não<br />

lhe estavam mais sendo pagos, pois a situação financeira do<br />

seu <strong>de</strong>vedor já era crítica e o estabelecimento que <strong>de</strong>veria<br />

gerar a renda para pagar os compromissos contraí<strong>dos</strong> estava<br />

praticamente paralisado. 34 Não obstante, o sábio sustentou<br />

suas pesquisas até 1844 e, dois anos <strong>de</strong>pois, provavelmente<br />

teve todo o seu capital <strong>de</strong> volta. Desta forma, por falta <strong>de</strong><br />

recursos, na pior das hipóteses, ele teria necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

interromper seus trabalhos por apenas dois anos, tempo que<br />

muito bem po<strong>de</strong>ria gastar naquele paciente trabalho <strong>de</strong><br />

classificação <strong>de</strong> suas coleções. De fato ele fez isso até 1847<br />

quando o último lote <strong>de</strong> suas coleções foi <strong>de</strong>spachado para o<br />

Museu Real <strong>de</strong> História Natural <strong>de</strong> Copenhagem, mas <strong>de</strong>pois<br />

se quedou contemplativo e improdutivo.<br />

33 Quando da sua morte seu capital montava a 30.000 coroas<br />

dinamarquesas e estava investido na Casa Hamann e Cia do Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

com juros <strong>de</strong> 6% aa. Essa foi a quantia <strong>de</strong>ixada a seu her<strong>de</strong>iro principal. Os<br />

juros <strong>de</strong>ssa aplicação <strong>de</strong>viam lhe ren<strong>de</strong>r o equivalente a 1,08 contos <strong>de</strong> reis<br />

(1:080$000), quantia suficiente para os sábio viver tranquilamente em<br />

Lagoa Santa on<strong>de</strong> não tinha nem muito com que gastar.<br />

34 O juros do empréstimo a Morgenstern equivaleriam a cerca <strong>de</strong> 780 mil<br />

reis anuais o que significava 39% das <strong>de</strong>spesas domésticas <strong>de</strong> Lund que,<br />

segundo Gorceix, eram em média <strong>de</strong> 2 contos <strong>de</strong> reis anuais (2:000$000)<br />

79


A partir <strong>de</strong> 1844 Lund suspen<strong>de</strong>u não só suas<br />

pesquisas <strong>de</strong> campo mas mergulhou numa verda<strong>de</strong>ira letargia<br />

intelectual se limitando quase que exclusivamente a escrever<br />

minimalísticas cartas científicas. Creio que a causa dominante<br />

<strong>de</strong>ssa paralisia provinha mesmo era da alma, quer dizer, eram<br />

muito mais profundas do que a rasura do bolso. Mesmo<br />

porque, um sábio <strong>de</strong> fama mundial como ele, teria condições<br />

<strong>de</strong> contornar as vicissitu<strong>de</strong>s menores <strong>de</strong> natureza financeira<br />

jogando seu nome contra o mecenato das reais instituições<br />

científicas <strong>de</strong> toda a Europa. Naquela época os monarcas<br />

competiam o tempo todo entre si, cada qual querendo<br />

valorizar mais suas socieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sábios, embelezar os jardins<br />

botânicos <strong>de</strong> sua capitais e entulhar <strong>de</strong> curiosida<strong>de</strong>s os museus<br />

naturalistas <strong>de</strong> suas universida<strong>de</strong>s. Não só os monarcas, mas a<br />

nobreza em geral, viviam financiando expedições científicas<br />

ao novo mundo. O próprio rei da Dinamarca era um <strong>de</strong>les e<br />

na mesma ocasião tinha patrocinado uma expedição <strong>de</strong><br />

naturalistas dinamarqueses ao redor do mundo a bordo da<br />

fragata Galathea copiando, pouco tempo <strong>de</strong>pois, a aventura<br />

do HMS Beagle que faria a fama <strong>de</strong> Charles Darwin.<br />

Cabe lembrar ainda que havia a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Peter<br />

Lund ven<strong>de</strong>r suas coleções ao Museu <strong>de</strong> Copenhagem. Ele,<br />

porém, preferiu doá-las e, em carta ao rei datada <strong>de</strong> 10 <strong>de</strong><br />

janeiro <strong>de</strong> 1845, apenas pediu que o dinheiro por ele gasto nas<br />

pesquisas fosse incorporado ao patrimônio das coleções e que<br />

os juros resultantes fossem aplica<strong>dos</strong> na manutenção das<br />

mesmas. Não seria justíssimo que ele reivindicasse o<br />

ressarcimento <strong>de</strong>ssa quantia para continuar suas pesquisas?<br />

Quem não teria interesse em financiar Peter Wilhelm Lund,<br />

80


conhecedor <strong>dos</strong> segre<strong>dos</strong> das cavernas do Brasil? A<strong>de</strong>mais, o<br />

custo das explorações não parece especialmente vultoso. O<br />

próprio Lund ao solicitar ao rei da Dinamarca a constituição<br />

do fundo para manutenção das suas coleções revelou que as<br />

<strong>de</strong>spesas para obtenção das mesmas tinha sido <strong>de</strong> 9.000<br />

rigsdalers, equivalentes a 18.000 coroas ou 10,8 contos <strong>de</strong> reis<br />

(10:800$000) 35 e que do total para constituição do tal fundo<br />

<strong>de</strong>veria ser <strong>de</strong>duzi<strong>dos</strong> 2.800 rigsdalers que ele tinha recebido<br />

do governo dinamarquês para subsidiar as pesquisas.<br />

Portanto, tinha <strong>de</strong>spendido do próprio bolso a quantia <strong>de</strong><br />

6.200 rigsdalers, equivalentes a cerca <strong>de</strong> 12.400 coroas ou 7,44<br />

contos <strong>de</strong> reis (7:440$000) o que não parece suficiente para<br />

abalar a sua capacida<strong>de</strong> financeira mesmo que tenha<br />

efetivamente perdido dinheiro naquela agiotagem em que se<br />

meteu com Morgenstern. A<strong>de</strong>mais, se consi<strong>de</strong>rarmos que<br />

Lund gastou nove anos <strong>de</strong> pesquisas para formar sua coleção,<br />

vamos observar que suas ativida<strong>de</strong>s custavam 1.000 rigsdalers<br />

anuais (cerca <strong>de</strong> 2.000 coroas ou 1,2 contos <strong>de</strong> reais). Essa<br />

<strong>de</strong>cididamente não era uma quantia significativa e somos<br />

forçosamente leva<strong>dos</strong> a concluir que as pesquisas <strong>de</strong> Lund não<br />

35 Durante a vida <strong>de</strong> Lund o sistema monetário dinamarquês passaria por<br />

duas reformas. A primeira foi em 1813 quando a moeda vigente passou a<br />

ser o “rigsbankdaler”. Em 1854 houve nova mudança e a moeda passou a<br />

ser o “rigsdaler”, <strong>de</strong>nominação que já existia antes da reforma. Em 1873 a<br />

Dinamarca e a Suécia resolveram unificar seus sistemas monetários e<br />

surgiu a coroa dinamarquesa (Danish Krone) que nasceu valendo a meta<strong>de</strong><br />

do rigsdaler. A relação entre os valor da coroa e do real (1 coroa = 600<br />

reis) foi obtida no artigo <strong>de</strong> H. Gorceix publicado na coletânea <strong>de</strong> Carlos<br />

Paula Couto. (Vi<strong>de</strong> bibliografia).<br />

81


eram, em absoluto, dispendiosas. Ainda mais se lembrarmos<br />

que a casa que ele comprou em Lagoa Santa custou 1 conto <strong>de</strong><br />

reis e que ele a comprou exatamente por ter achado o preço<br />

barato. Se consi<strong>de</strong>rarmos ainda que as <strong>de</strong>spesas pessoais<br />

anuais <strong>de</strong> Lund eram <strong>de</strong> aproximadamente 2 contos <strong>de</strong> reis<br />

anuais po<strong>de</strong>mos observar que talvez ele gastasse mais com<br />

filantropia e empréstimos duvi<strong>dos</strong>os ao povo <strong>de</strong> Lagoa Santa<br />

do que gastaria com a continuida<strong>de</strong> das suas pesquisas.<br />

Outros pontos, especialmente em relação ao tamanho<br />

da herança <strong>de</strong>ixada pelo sábio <strong>de</strong> Lagoa Santa também<br />

trabalham fortemente a favor da i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que Lund nunca teve<br />

incômo<strong>dos</strong> financeiros. Ele tinha também recursos aplica<strong>dos</strong><br />

na Dinamarca <strong>de</strong> on<strong>de</strong> <strong>de</strong>via provir uma parte das rendas <strong>de</strong><br />

que precisava.<br />

Lund:<br />

Escreveu Ebba Lund, bisneta <strong>de</strong> um <strong>dos</strong> irmãos <strong>de</strong><br />

“Peter Lund nunca ganhou dinheiro algum em sua vida e, mesmo com<br />

toda sua <strong>de</strong>voção ao trabalho e sorte, não po<strong>de</strong>ria ter levado a vida que<br />

teve, sem a ajuda que recebeu por toda a vida, <strong>de</strong> seus irmãos e sem a<br />

fortuna <strong>de</strong> seu pai”.<br />

Birgitte Holten arrematou:<br />

“A maior parte da fortuna <strong>de</strong> Lund ficou investida em títulos na<br />

Dinamarca sob a vigilância constante e zelosa do irmão bancário ainda<br />

assistido pelo outro irmão, o comerciante Johann Christian Lund”.<br />

82


Portanto, não só Lund tinha fontes <strong>de</strong> renda também<br />

da Dinamarca, como também, parece muito provável, que ele<br />

tenha conseguido reverter, pelo menos em parte, os prejuízos<br />

do temerário empréstimo que fez a Morgenstern.<br />

A cronologia das cartas remetidas aos seus advoga<strong>dos</strong><br />

e procuradores <strong>de</strong> Sabará, coligidas e traduzidas por Luna<br />

Filho, permite reconstruir a história com razoável grau <strong>de</strong><br />

certeza. O empréstimo no valor <strong>de</strong> “7.000 marcos <strong>de</strong> banco”<br />

<strong>de</strong>ve ter sido feito por volta <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1839 e foi afiançada<br />

pela hipoteca da proprieda<strong>de</strong> da Papafarinha. Logo <strong>de</strong>pois do<br />

empréstimo, em 22 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1840, Morgenstern e sua<br />

mulher constituíram uma socieda<strong>de</strong> mineradora com<br />

Martiniano Pereira <strong>de</strong> Castro e seu irmão e, apesar <strong>de</strong> estar<br />

hipotecada, a proprieda<strong>de</strong> foi passada ao patrimônio da<br />

socieda<strong>de</strong>. Pelo contrato, o patrimônio era constituído ainda<br />

<strong>de</strong> um plantel <strong>de</strong> 20 escravos, sendo responsabilida<strong>de</strong> <strong>dos</strong><br />

sócios integrar esse patrimônio em partes iguais. Coube ainda<br />

ao sócio Martiniano pagar a Morgenstern 1.000$000 (um<br />

conto <strong>de</strong> réis) e mais <strong>de</strong>z escravos no valor <strong>de</strong> 5.000$000<br />

(cinco contos <strong>de</strong> reis). Portanto Martiniano <strong>de</strong>u um troco ao<br />

seu sócio <strong>de</strong> 6.000$000 (seis contos <strong>de</strong> réis) o que nos permite<br />

estimar que a proprieda<strong>de</strong> da Papafarinha - que passou ao<br />

patrimônio da socieda<strong>de</strong> com todas as suas benfeitorias - valia<br />

12.000$000 (doze contos <strong>de</strong> reis).<br />

Lund afirma em uma <strong>de</strong> suas cartas que na execução<br />

da penhora tinha direito a um ressarcimento <strong>de</strong> 7.000$000<br />

(sete contos <strong>de</strong> reis). Portanto, o valor da proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>via<br />

cobrir seu prejuízo com certa folga, embora Morgenstern<br />

83


tivesse outros credores. Martiniano Pereira <strong>de</strong> Castro não<br />

<strong>de</strong>sconhecia a situação das dívidas do sócio e consta do<br />

acordo entre eles que a socieda<strong>de</strong> faria um empréstimo <strong>de</strong><br />

6.000$000 (seis contos <strong>de</strong> reis) para saudar as dívidas do<br />

engenheiro húngaro 36 , naturalmente aquelas que estavam<br />

afiançadas na proprieda<strong>de</strong> da Papafarinha. Portanto, tudo<br />

indica que, àquela altura, a situação financeira da socieda<strong>de</strong><br />

estava sob controle, caso contrário um homem <strong>de</strong> negócios<br />

como Martiniano não teria tido interesse em entrar no<br />

empreendimento, assumindo dívidas impagáveis. Nessas<br />

circunstâncias o dinheiro <strong>de</strong> Lund não <strong>de</strong>via estar<br />

propriamente na iminência <strong>de</strong> virar pó.<br />

Está certo que a situação da socieda<strong>de</strong> foi piorando<br />

rapidamente, pois o negócio não caminhou bem e<br />

Morgenstern acabou arrendando a proprieda<strong>de</strong> e dando no pé.<br />

Está certo, também, que o sábio dinamarquês teve<br />

dificulda<strong>de</strong>s com o processo <strong>de</strong> execução, mas isso po<strong>de</strong> ser<br />

atribuído, em parte, ao <strong>de</strong>sempenho da sua trinca <strong>de</strong><br />

advoga<strong>dos</strong> que parece não ter sido muito eficiente na<br />

condução do seu trabalho. Além disso, Lund per<strong>de</strong>u muito<br />

tempo negociando os termos da prestação <strong>de</strong> serviços<br />

jurídicos com sua trupe <strong>de</strong> causídicos que, aliás, mostrava<br />

acentuada disposição em extorqui-lo. Mas, assim que o<br />

cabeça da equipe – Quintiliano <strong>José</strong> da Silva – passou a ser<br />

cogitado para assumir o governo da província <strong>de</strong> Minas<br />

Gerais, o negócio teve um <strong>de</strong>sfecho. E ele foi favorável, como<br />

36 Em sua “Efeméri<strong>de</strong>s Mineiras”, Xavier da Veiga diz que Morgenstern<br />

era alemão.<br />

84


<strong>de</strong>monstraremos a seguir, rastreando a correspondência <strong>de</strong><br />

Peter Lund.<br />

Em 20 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1842 o sábio dinamarquês<br />

propunha os termos da contratação do dr. Quintiliano para<br />

que ele o representasse no processo. Era um acordo <strong>de</strong> risco,<br />

cabendo ao advogado arcar com as <strong>de</strong>spesas e, ao final,<br />

receber 10% do valor da causa. O advogado aceitou o que<br />

<strong>de</strong>nota que as perspectivas eram boas, justificando as <strong>de</strong>spesas<br />

que ele pu<strong>de</strong>sse ter.<br />

Em <strong>de</strong>z <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1843 Lund escrevia<br />

novamente ao seu advogado. Concordava que ele fosse<br />

ressarcido do <strong>de</strong>pósito <strong>de</strong> 2% do valor da causa, expediente<br />

necessário para que o juiz pu<strong>de</strong>sse proferir a sentença. Quer<br />

dizer, mais uma vez os indícios eram <strong>de</strong> que a <strong>de</strong>cisão seria<br />

favorável, uma vez que o dr. Quintiliano, com certeza, não iria<br />

<strong>de</strong>sembolsar cerca <strong>de</strong> 140$000 (cento e quarenta mil reis) por<br />

nada.<br />

Em 22 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1844, em mais uma carta ao seu<br />

advogado, o dr. Lund pe<strong>de</strong> informações sobre o dia em que<br />

será procedida a penhora ou seja, a sentença já tinha sido<br />

proferida e <strong>de</strong>terminava a penhora <strong>dos</strong> bens da socieda<strong>de</strong> para<br />

pagamento das dívidas <strong>de</strong> Morgenstern.<br />

O sábio dinamarquês escreveria novamente ao dr.<br />

Quintiliano em 09 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1845 e, pelo conteúdo da<br />

correspondência, ficamos sabendo que também a fábrica <strong>de</strong><br />

85


ferro do sócio Martiniano Pereira <strong>de</strong> Castro tinha sido incluída<br />

na penhora. Ou seja, a sentença, como, aliás, seria lógico;<br />

<strong>de</strong>terminou que a execução recaísse sobre a socieda<strong>de</strong> e não<br />

sobre Morgenstern isoladamente. O fato mostra que o lastro<br />

para pagamento das dívidas era maior do que o valor<br />

representado pela proprieda<strong>de</strong> da Papafarinha isoladamente.<br />

Na mesma correspondência, o signatário pedia a indicação <strong>de</strong><br />

um procurador em Sabará para cuidar da execução da<br />

penhora.<br />

Em correspondência <strong>de</strong> 20 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1845 Lund se<br />

queixava da <strong>de</strong>mora do dr. Quintiliano em lhe indicar um<br />

procurador. Isso o afligia, pois tinha ficado sabendo que havia<br />

em Sabará alguns ingleses procurando lavras para comprar.<br />

Na mesma correspondência pedia informações sobre “o<br />

estado do negócio da fábrica <strong>de</strong> ferro”.<br />

Em 31 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1845, Lund manda o seu<br />

procurador em Sabará, João Evangelista Amado, executar o<br />

leilão da venda <strong>de</strong> um escravo. Ou, como dito, “para se por à<br />

praça”.<br />

Nova carta seria enviada ao dr. Quintiliano <strong>José</strong> da<br />

Silva em 10 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1845. Nela o sábio <strong>de</strong> Lagoa Santa<br />

pe<strong>de</strong> novamente informações sobre “o negócio da fábrica <strong>de</strong><br />

ferro do Martiniano” e diz que precisa <strong>de</strong>ssa informação para<br />

estipular o valor que teria que cobrar na execução da lavra da<br />

Papafarinha, “na qual estão também outros credores”.<br />

86


Um mês <strong>de</strong>pois, outra correspondência, revela que<br />

Lund estava aguardando para breve o término <strong>dos</strong><br />

procedimentos para arrematação <strong>dos</strong> bens penhora<strong>dos</strong>.<br />

Há uma carta, sem data, mas que foi escrita antes <strong>de</strong><br />

julho <strong>de</strong> 1846 - pois nessa data Lund enviou uma outra carta a<br />

Manuel Rodrigues <strong>de</strong> Lima - em que ele faz menção ao<br />

conteúdo da carta sem data.<br />

Acho importante transcrever o conteúdo <strong>de</strong>sta carta: 37<br />

“Venho por esta me entreter com VS sobre um objeto que po<strong>de</strong>rá vir a<br />

ser, espero, <strong>de</strong> mútuo interesse. VS teria algum conhecimento <strong>de</strong> um<br />

negócio que tenho e que vou lhe dar uma breve exposição. Wiszner <strong>de</strong><br />

Morgenstern e (Martiniano?) hipotecaram as (benfeitoria?) para<br />

segurança da quantia <strong>de</strong> (7.000 marcos <strong>de</strong> banco?), vindo bem a saber:<br />

uma lavra <strong>de</strong> ouro (na região) <strong>de</strong>nominada Papafarinha, uma fábrica <strong>de</strong><br />

ferro no (?), e dois escravos por nome Antônio Crioulo e João Congo. A<br />

lavra está avaliada em 15.000$000 (quinze contos <strong>de</strong> reis). Avisei aos<br />

ditos <strong>de</strong>vedores nos termos do contrato, <strong>de</strong> pagar a dívida, porém, como<br />

não cumpriram, requeri execução e obtive sentença em favor. Resta, por<br />

ora, só provi<strong>de</strong>nciar a avaliação e execução, como porém estou muito<br />

enfadado <strong>de</strong>sse negócio, que tem sido tratado com muito <strong>de</strong>sleixo, até<br />

agora por parte <strong>dos</strong> (responsáveis), porém ativá-la seria indispensável (?)<br />

37<br />

Esta carta foi compilada por Luna filho e as referência em parênteses<br />

estão ilegíveis no original, correndo por minha conta e risco as palavras<br />

inseridas.<br />

87


o que ambas as circunstâncias não me permitem, <strong>de</strong>sejo ven<strong>de</strong>r a hipoteca<br />

e por isso me dirijo a VS para saber se queria se encarregar <strong>de</strong>sse negócio.<br />

A soma total em 05 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1845 é <strong>de</strong> 8 contos, segundo<br />

(Quintiliano?), porém, <strong>de</strong>ssa quantia, há <strong>de</strong> se <strong>de</strong>duzir (?) pelo que (?)<br />

for arrematado. Estou disposto a fazer algum (acordo?) não se obtendo<br />

toda a soma, e ofereço 20% do que VS obtiver. Julgo bem (informar?) a<br />

VS que uns outros credores <strong>de</strong> Wiszner que se julgam com direito <strong>de</strong><br />

(participação?); a saber Broxado, cuja hipoteca , contudo , é inválida por<br />

falta <strong>de</strong> assinatura da mulher <strong>de</strong> Wiszner e uma casa <strong>de</strong> comércio do Rio<br />

que adquiriu as (hipotecas?).”<br />

Nota ao pé da carta:<br />

“7000 marcos <strong>de</strong> banco empresta<strong>dos</strong> em dia 05 <strong>de</strong> (agosto?) <strong>de</strong> 1839 a<br />

12% ao ano, fazem em 05 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1845 (data em que a carta<br />

foi escrita?) 12.040 marcos, os quais pelo câmbio <strong>de</strong>sse dia 655 réis por<br />

cada marco, 7$.886200 (sete contos e oitocentos e oitenta e seis mil e<br />

duzentos reis)”.<br />

Fiz questão <strong>de</strong> transcrever essa correspondência, pois<br />

ela serve como relatório sucinto <strong>de</strong> todo o caso e da posição<br />

em que ele se encontrava em mea<strong>dos</strong> <strong>de</strong> 1846.<br />

A nota do pé da carta contem informações muito<br />

interessantes. Mostra que o empréstimo foi feito em 1839 a<br />

juros <strong>de</strong> 12% ao ano e que, nas contas do ressarcimento a que<br />

almejava, Lund não se esqueceu <strong>de</strong> cobrar os juros do<br />

empréstimo.<br />

88


Em 26 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1846 Lund encaminhou uma carta<br />

a Sebastião da Rocha Brandão cujo conteúdo sugere que o<br />

caso estava então encerrado. Na carta ele agra<strong>de</strong>ce ao<br />

advogado pelo “trabalho que teve com os meus negócios” e<br />

faz um pagamento complementar aten<strong>de</strong>ndo a uma<br />

reclamação <strong>de</strong> Brandão que levou Lund a se convencer “que<br />

VS não ficou pago, como esperara, da quantia que lhe <strong>de</strong>vo”.<br />

Tudo indica, enfim, que o caso teve um final feliz e<br />

que, mesmo estando disposto a negociar a hipoteca, tendo<br />

outros credores com que compartilhar os bens penhora<strong>dos</strong> e<br />

ainda tendo que pagar participação nos resulta<strong>dos</strong> a<br />

Quintiliano <strong>José</strong> da Silva (12%) e Manuel Rodrigues <strong>de</strong> Lima<br />

(20%), o valor <strong>dos</strong> bens arremata<strong>dos</strong> <strong>de</strong>ve ter garantido o<br />

ressarcimento do empréstimo <strong>de</strong> Lund, com juros e tudo<br />

mais.<br />

Ele contava receber perto <strong>de</strong> 8 contos <strong>de</strong> reis e para<br />

isso dispunha, para lançar à praça, <strong>de</strong> uma lavra <strong>de</strong> ouro no<br />

valor <strong>de</strong> 12 contos <strong>de</strong> reis, dois escravos que <strong>de</strong>viam valer um<br />

conto <strong>de</strong> reis e mais a tal fábrica <strong>de</strong> ferro, cujo valor não foi<br />

revelado. Mesmo tendo que repartir o bolo, é provável que o<br />

resultado final não tenha sido propriamente catastrófico a<br />

ponto <strong>de</strong> liquidar sua carreira científica.<br />

Decididamente, Peter Lund, não teve que parar <strong>de</strong><br />

cavar cavernas por falta <strong>de</strong> recursos financeiros <strong>de</strong>correntes<br />

<strong>de</strong>sse negócio mal feito.<br />

89


Penso, enfim, que prosaicas questões <strong>de</strong> dívidas<br />

apenas não <strong>de</strong>veriam obstar aquele homem, exceto se elas<br />

tivessem que ser contraídas por ele mesmo com o Todo<br />

Po<strong>de</strong>roso.<br />

O ponto final<br />

Com certeza, as <strong>de</strong>scobertas <strong>de</strong> Peter Lund abriram<br />

várias fendas no seu conforto moral e o abateram, tornado-o<br />

recluso e adoentado. Do lado sagrado fizeram-no sentir<br />

remorsos. Do lado da razão, talvez a dor maior tenha sido<br />

aquela proveniente do abalo das suas convicções na<br />

genialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Georges Cuvier. O ilustre sábio francês era<br />

alguém que ele admirava <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o princípio e <strong>de</strong> quem se<br />

afligia em ter que duvidar <strong>de</strong>pois que suas pesquisas<br />

apontavam um rumo diferente para explicar a extinção das<br />

espécies. Justo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tê-lo conhecido pessoalmente e ter<br />

gozado da sua amável hospitalida<strong>de</strong> numa noite iluminada <strong>de</strong><br />

muita sabedoria e prazer, bem no meio <strong>de</strong> uma Paris<br />

transbordante <strong>de</strong> elegância e inteligência.<br />

Lund evitou criticar frontalmente a teoria catastrofista<br />

<strong>de</strong> Cuvier. Na verda<strong>de</strong>, ele procurou ser tão gentil o quanto<br />

pô<strong>de</strong> com o homem <strong>de</strong> quem tinha escrito:<br />

90


“(...) Este gran<strong>de</strong> homem que eu nunca me canso <strong>de</strong> admirar e<br />

cujas extraordinárias habilida<strong>de</strong>s ele <strong>de</strong>senvolve <strong>de</strong> um modo<br />

surpreen<strong>de</strong>nte, ficam aparentes quando se fica próximo a ele”. 38<br />

É verda<strong>de</strong> que Lund fez críticas diretas a Cuvier, porém, elas<br />

se circunscreveram a questões metodológicas relacionadas a<br />

classificação <strong>de</strong> espécies, tais como;<br />

“Uma comparação do sistema <strong>de</strong>ntário <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> cem indivíduos (<strong>de</strong><br />

cerví<strong>de</strong>os) conduziu-me a uma inesperada conclusão <strong>de</strong> que o característico<br />

apontado por Cuvier é completamente inadaptável a este gênero como<br />

elemento <strong>de</strong> discriminação.” .<br />

Ou, mais adiante:<br />

“O mais imperfeito <strong>de</strong> to<strong>dos</strong> os princípios <strong>de</strong> classificação nas famílias<br />

existentes é usado por Cuvier e tirado <strong>dos</strong> <strong>de</strong>ntes”.<br />

Em relação à teoria catastrofista, contudo, ele foi bem<br />

mais comedido e, como vimos expressamente, apenas se<br />

limitou a pedir humil<strong>de</strong>mente a Reinhardt que avaliasse a<br />

possibilida<strong>de</strong> da retirada do título do conjunto das suas<br />

memórias a parte que fazia referência a “última revolução da<br />

terra”. Mas isso não seria suficiente para lhe trazer o conforto<br />

intelectual <strong>de</strong> que necessitava, como já veremos.<br />

38 Citado por Henriette Lund. (Pedro Luna Filho).<br />

91


Lund não queria <strong>de</strong>sagradar aos seus mestres e, não<br />

obstante a objetivida<strong>de</strong> das suas inferências, mostrou uma<br />

subserviência intelectual espantosa para um cientista talentoso.<br />

Isso revela a faceta da sua personalida<strong>de</strong> que po<strong>de</strong> ter pesado<br />

muita na sua <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> abandonar os seus trabalhos. Com<br />

certeza, um sábio <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> capacida<strong>de</strong> analítica como Lund,<br />

<strong>de</strong>via sofrer muito ao ter que vencer “escrúpulos” pessoais<br />

para conseguir atingir a veracida<strong>de</strong> científica das evidências<br />

objetivas com que se <strong>de</strong>parava a cada golpe da sua enxada.<br />

Mesmo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter, um tanto involuntariamente,<br />

catapultado a teoria catastrofista ao museu das notáveis teorias<br />

equivocadas, Lund seguiu tentando afastar eventual remorso<br />

por botar pedrinhas no sapato <strong>de</strong> Cuvier, entortando a marcha<br />

gloriosa do notável sábio francês.<br />

Escreveu ele:<br />

“O exame crítico a que Cuvier submeteu esta questão (da extinção <strong>de</strong><br />

animais nos tempos históricos) com a sua acostumada penetração e<br />

admirável erudição tem mostrado aos olhos <strong>de</strong> todo homem <strong>de</strong>sprevenido o<br />

sem fundamento <strong>de</strong>ssas i<strong>de</strong>ias extravagantes. (...). Po<strong>de</strong>-se dizer, com<br />

certeza, que não existe realmente fato nenhum que prove com evidência o<br />

<strong>de</strong>saparecimento <strong>de</strong> espécie alguma animal <strong>de</strong>ntro <strong>dos</strong> tempos históricos.”<br />

39 .<br />

39 Carta ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro datada <strong>de</strong> 21 <strong>de</strong><br />

abril <strong>de</strong> 1844.<br />

92


E ei-lo, em pleno início da neurastenia, tentando botar flores<br />

no monte <strong>de</strong> <strong>de</strong>stroços a que ele próprio havia reduzido o<br />

catastrofismo cuvieriano, num comentário que buscava dar<br />

um sopro <strong>de</strong> vida na obra do mestre. Mera pieda<strong>de</strong> subconsciente.<br />

Lund tergiversava recorrendo à inocuida<strong>de</strong> do<br />

óbvio para nos lembrar discretamente que, como não tinha<br />

havido catástrofes nos tempos históricos 40 , também não tinha<br />

havido extinção <strong>de</strong> animais. Tímida solidarieda<strong>de</strong>, simples,<br />

asséptica e sem compromisso.<br />

Mas, na mesma carta que enviou ao Instituto Histórico<br />

e Geográfico Brasileiro em 21 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1844, Lund acabaria<br />

por admitir finalmente a associação entre o ser humano e<br />

espécies <strong>de</strong> animais extintos e viventes.<br />

Escreveu:<br />

“De sorte que não foi senão no ano passado que se me apresentou o<br />

primeiro exemplo <strong>de</strong> uma tal associação (ossos humanos e <strong>de</strong> animais),<br />

sendo os ossos humanos na localida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que falo mistura<strong>dos</strong> com gran<strong>de</strong><br />

número <strong>de</strong> ossos <strong>de</strong> vários animais, to<strong>dos</strong> exatamente no mesmo estado <strong>de</strong><br />

conservação e mostrando terem sido <strong>de</strong>posita<strong>dos</strong> aproximadamente na<br />

mesma época. “Depois <strong>de</strong> verificada esta parte da questão passei ao<br />

exame <strong>dos</strong> ossos sob o ponto <strong>de</strong> vista geológico tendo concluído pertencerem<br />

40<br />

Para Lund os “tempos históricos” cobriam um período <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> três<br />

mil anos, período <strong>de</strong> pouquíssima relevância paleontológica”.<br />

93


alguns a espécies ainda existentes, outros, porém, proce<strong>de</strong>m <strong>de</strong> animais<br />

que já não participam da criação atual”.<br />

A mente <strong>de</strong> Lund entrara num torvelinho. Não havia<br />

muito mais no que pensar. Ele havia chegado ao portal<br />

principal <strong>de</strong> uma nova dimensão e não havia mais como<br />

<strong>de</strong>sviar <strong>de</strong>le, tinha que ultrapassá-lo ou <strong>de</strong>sistir <strong>de</strong> continuar.<br />

Não havia saída para os la<strong>dos</strong>. Até então, mesmo admirando<br />

profundamente o gran<strong>de</strong> barão Cuvier, Peter Lund tinha<br />

conseguido avançar sobre os incômo<strong>dos</strong> provenientes do<br />

dilúvio ou do apocalipse. Mas, em relação ao gênese, esse<br />

avanço abriu uma temerária hipótese para ele: a <strong>de</strong> que as<br />

espécies pu<strong>de</strong>ssem ser criadas aleatoriamente pela natureza e<br />

que não houvesse uma <strong>de</strong>limitação natural <strong>de</strong> eras. Isso batia<br />

<strong>de</strong> frente com aquela sua velha fé <strong>de</strong> que havia um plano<br />

divino para a criação. Se ele tinha temores com o que<br />

acontecia com o apocalipse, tinha muito mais ainda em<br />

relação ao gênese, pois <strong>de</strong>via muito mais a Deus do que a<br />

Cuvier.<br />

Será que o receio <strong>de</strong> encontrar uma espécie humana<br />

primitiva meio bestificada - ainda mais que tivesse convivido<br />

com as espécies atuais - foi o principal fator que o levou a<br />

suspen<strong>de</strong>r suas pesquisas? Seria terrível para quem, na<br />

juventu<strong>de</strong>, tinha tido uma visão divina em que Deus em<br />

pessoa lhe dava sinais do que esperava <strong>de</strong>le, <strong>de</strong>scobrir que<br />

nem para com sua suprema criação esse mesmo Deus tivesse<br />

uma diretriz <strong>de</strong>finitiva. E foi aí que a fé venceu a ciência no<br />

coração servil <strong>de</strong> Peter Wilhelm Lund. Fato é que, a partir <strong>de</strong><br />

então, vergado à soma <strong>de</strong> tantos fatores <strong>de</strong>sencorajadores, o<br />

94


sábio <strong>de</strong> pouco mais <strong>de</strong> quarenta anos passou a levar uma vida<br />

mais contemplativa e reclusa.<br />

Tudo, como vimos, começou a mudar no princípio do<br />

ano <strong>de</strong> 1844. Em 1840 o sábio dinamarquês já havia<br />

encontrado os primeiros fósseis humanos na gruta do<br />

sumidouro, mas até final <strong>de</strong> 1843 ele manteve suas inferências<br />

sobre o significado do achado em situação relativamente<br />

hibernal. Neste ano, contudo, Lund encontrou uma infinida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> ossadas humanas no interior da mesma caverna on<strong>de</strong> tinha<br />

encontrado o primeiro crânio. Além disso, pô<strong>de</strong> fazer<br />

preciosas e convincentes observações geológicas. Tudo isso<br />

permitiu a ele analisar o significado <strong>dos</strong> acha<strong>dos</strong> <strong>de</strong> forma<br />

mais sistemática, inclusive po<strong>de</strong>ndo emitir opiniões<br />

consistentes sobre as característica e antiguida<strong>de</strong> do “Homem<br />

da Lagoa Santa” e sua coexistência com a megafauna extinta.<br />

Tinha cavado mais fundo do que gostaria. Mas num primeiro<br />

momento ele nem se <strong>de</strong>u conta disso com clareza e sua reação<br />

foi confusa, misturando sentimentos conflitantes <strong>de</strong> euforia e<br />

perplexida<strong>de</strong>. Assim mostra aquela carta reveladora que<br />

escreveu a Reinhardt em 16 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1843, logo que a<br />

estação chuvosa começou forçando a interrupção <strong>dos</strong><br />

trabalhos <strong>de</strong> campo no profícuo sítio da Lapa do Sumidouro:<br />

“(...) Quase todas as espécies tiveram esclarecimentos consi<strong>de</strong>ráveis,<br />

diversos pontos obscuros se iluminaram, dúvidas foram solucionadas,<br />

teorias se confirmaram, foram corrigidas ou surgiram (...)”. Tais teorias<br />

surgiram tão completamente a partir <strong>de</strong> simples generalizações <strong>de</strong> fatos<br />

observa<strong>dos</strong> que se pronunciaram <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim num grau <strong>de</strong> convicção<br />

95


que <strong>de</strong>spertou gratas tranqüilida<strong>de</strong> e satisfação. Isso contrasta muito com<br />

o <strong>de</strong>scontentamento instintivo, a partir do qual minhas teorias anteriores<br />

relativas a esses pontos foram abandonadas quando não tive sucesso em<br />

perceber fenômenos específicos em harmonia.<br />

Por outro lado, não posso negar que aspectos <strong>de</strong> pontos anteriores que eu<br />

já acreditava estabeleci<strong>dos</strong> foram cobertos por nova escuridão e aquilo que<br />

eu pensava ter sido esclarecido não foi totalmente ultrapassado. Isso se<br />

refere, por exemplo, a outra importante questão concernente as<br />

circunstâncias relativas à sucessão das eras e à i<strong>de</strong>ntificação das espécies e<br />

a questão não menos importante da linha separadora entre elas. Esta se<br />

tornou para mim totalmente obscura.”<br />

Mas parece não ter levado mais do que quatro meses<br />

para Lund começar a reexaminar <strong>de</strong> forma mais contun<strong>de</strong>nte<br />

os fragmentos que a enxada do diabo tinha exposto aos seus<br />

olhos pie<strong>dos</strong>os. Uma parte daquela carta <strong>de</strong> 16 <strong>de</strong> novembro<br />

<strong>de</strong> 1843 percutia sua mente:<br />

“Eu observo várias espécies extintas, como aquelas que <strong>de</strong>scobri,<br />

moverem-se por baixo <strong>de</strong>ssa linha em direção do presente e diversas das<br />

espécies do presente, moverem-se em direção do passado”.<br />

E arrematava dramaticamente:<br />

“É diante <strong>de</strong>ssa <strong>de</strong>scoberta que eu encaro os fatos, contra os quais resisto<br />

em nome do ser humano.”<br />

Não resistiria mais. Não houve remédio. Não tinha mais<br />

como negar que não havia um indicador geológico marcando<br />

96


a linha divisória que separava as espécies já extintas das<br />

espécies vivas. Chegava ao ponto final. Não queria ter que<br />

admitir que a extinção <strong>dos</strong> seres vivos <strong>de</strong>corre <strong>de</strong> um<br />

complexo <strong>de</strong> variáveis ecológicas e antropogênicas que se<br />

movem aleatoriamente e <strong>de</strong> forma suave ao longo do tempo e<br />

não <strong>de</strong>ixam marcas nas rochas. Além disso, parecia claro que<br />

Deus não intervinha muito na criação.<br />

E foi ai que ele escreveu ao mesmo Reinhardt a já<br />

mencionada carta <strong>de</strong> 26 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1844 on<strong>de</strong>, além <strong>de</strong> pedir<br />

os tais retoques no título da coletânea das suas memórias,<br />

revela um estado <strong>de</strong> prostração intelectual que parece ser o<br />

prenúncio da trágica <strong>de</strong>cisão que se avizinhava:<br />

“Quatro meses se passaram <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a minha última carta e pergunto a<br />

mim mesmo o que se passou nesse período para que eu tenha ficado<br />

insatisfeito? Por ouro lado, pergunto a mim mesmo se an<strong>de</strong>i para a frente<br />

quando sinto como se cada vez que <strong>de</strong>i um passo adiante, voltei outro<br />

para trás”.<br />

Um conflito estava claramente estabelecido, Lund<br />

continuou administrando-o por mais alguns meses, <strong>de</strong>certo<br />

<strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> muitas noites insones. Mas jamais conseguiria<br />

resolvê-lo, pois não tinha motivação para rever a maior parte<br />

da sua obra e, uma mera mudança <strong>de</strong> título, não ia resolver o<br />

seu problema.<br />

A partir <strong>de</strong> 1845 passa a se preocupar exclusivamente<br />

com o <strong>de</strong>stino das suas coleções. Em janeiro escreve a<br />

Reinhardt dizendo da sua intenção <strong>de</strong> parar com as pesquisas<br />

97


e doar seu acervo. Na mesma data escreve ao rei submetendo<br />

a ele o <strong>de</strong>stino das coleções. Um ano <strong>de</strong>pois recebe uma<br />

resposta <strong>de</strong> Sua Majesta<strong>de</strong> informando que tinha <strong>de</strong>cidido<br />

encaminhá-las ao Museu Real <strong>de</strong> História Natural. Peter Lund<br />

permaneceu trabalhando nas coleções até 1847 quando<br />

Reinhardt – o filho – nomeado curador das coleções pelo rei,<br />

<strong>de</strong> passagem pelo Brasil levou a última parte do acervo para a<br />

Dinamarca.<br />

A partir daí Lund passou a se ocupar <strong>de</strong> jardinagem e<br />

música e o faz até o fim da vida, conforme carta que enviou a<br />

Warming.<br />

“Claro está que eu <strong>de</strong>vo ter lhe incomodado o suficiente com esses assuntos<br />

aos quais me referi a botânica e os assuntos <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m musical, aqueles<br />

com os quais eu mais me ocupo por aqui. Atualmente tenho <strong>de</strong>ixado as<br />

pesquisas ( ) mais e mais para trás, por causa da minha visão e força<br />

minguantes, das quais a última sempre me mantem forçado aos raros<br />

passeios até o fundo do jardim, apesar <strong>de</strong>les serem meu último <strong>de</strong>sejo<br />

constante e praticamente meu único divertimento.”<br />

Poucos dias <strong>de</strong>pois morreria em sua casinha <strong>de</strong> Lagoa<br />

Santa, absolutamente sereno, em paz com Deus e a natureza,<br />

<strong>de</strong>ixando uma pequena dívida com a ciência, intrinsecamente<br />

compensada, contudo, pela honestida<strong>de</strong> com que buscou<br />

preservar a parte que ficou.<br />

98


Cronologia básica<br />

23/09/1769 – Nasce Johannes Christopher Hagemann<br />

Reinhardt, naturalista dinamarquês, mentor <strong>de</strong> Lund.<br />

1776 – Nasce o botânico alemão Ludwig Rie<strong>de</strong>l.<br />

1791 – Nasce o <strong>de</strong>senhista Peter Andreas Brandt.<br />

1795 – Cuvier <strong>de</strong>screve a preguiça terrícola extinta:<br />

Megatherium Americanum.<br />

14/06/1801 – Nasce Peter Wilhelm Lund.<br />

1804 – Nasce o aventureiro dinamarquês Peter Claussen.<br />

1809 – Nasce o naturalista britânico Charles Darwin.<br />

1816 – Nasce o naturalista dinamarquês Johannes Theodor,<br />

filho do mentor <strong>de</strong> Lund.<br />

1818 – Lund entra para a Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Copenhagen.<br />

1824 – Ganha dois prêmios em concursos da faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

medicina.<br />

1825 – Publica a tese <strong>de</strong> conclusão do curso <strong>de</strong> medicina.<br />

1825 – Cuvier publica a sua obra magna “Discurso sobre as<br />

revoluções na superfície do globo”.<br />

99


08/12/1825 – Lund <strong>de</strong>sembarca pela primeira vez do Brasil.<br />

1827 – Ganha uma bolsa <strong>de</strong> 400 rigsdaler anuais, concedidas<br />

pelo rei Fre<strong>de</strong>rik VI, válida por dois anos, condicionado a que<br />

as coleções brasileiras sejam enviadas ao Museu <strong>de</strong> História<br />

Natural <strong>de</strong> Copenhagen.<br />

1828 – Faz uma viagem <strong>de</strong> estu<strong>dos</strong> <strong>de</strong> um mês em Campos <strong>de</strong><br />

Goitacazes.<br />

1829 – Envia as primeiras coleções para o Museu <strong>de</strong> História<br />

Natural <strong>de</strong> Copenhagen (plantas e animais).<br />

1829 – Escreve um trabalho sobre pássaros sem papo (De<br />

genere euphones).<br />

04/11/1829 – Doutora-se em filosofia pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Kiel.<br />

1830 – Per<strong>de</strong> a mãe.<br />

Maio <strong>de</strong> 1831 – Eleito membro da Aca<strong>de</strong>mia Real <strong>de</strong> Ciências<br />

da Dinamarca.<br />

Junho <strong>de</strong> 1831 – Publica o trabalho sobre as formigas<br />

corta<strong>de</strong>iras brasileira nos “Analles <strong>de</strong>s Sciences Naturelles” na<br />

França.<br />

15/01/1033 – Lund <strong>de</strong>sembarca no Brasil pela segunda e<br />

<strong>de</strong>finitiva vez.<br />

100


Setembro <strong>de</strong> 1833 – Envia a Dinamarca um estudo botânico<br />

(Notas sobre as plantas comuns nas estradas e ervas daninhas<br />

do Brasil) que seria publicado em 1838.<br />

13/05/1033 – Morre Georges Cuvier.<br />

12/10/1833 – Lund e Rie<strong>de</strong>l iniciam sua viagem <strong>de</strong> estu<strong>dos</strong><br />

através <strong>de</strong> São Paulo, Goiás e Minas Gerais.<br />

Fevereiro <strong>de</strong> 1834 – Lund publica um trabalho sobre o<br />

invólucro <strong>dos</strong> ovos <strong>dos</strong> moluscos gastrópo<strong>de</strong>s nos “Analles”.<br />

17/09/1834 – Vin<strong>dos</strong> <strong>de</strong> Goiás, Lund e Rie<strong>de</strong>l chegam a<br />

Paracatu.<br />

10/10/1834 – Chegam a Curvelo on<strong>de</strong> ficam conhecendo<br />

Peter Claussen.<br />

20/10/1084 – Deixam Curvelo rumo a Ouro Preto.<br />

Novembro <strong>de</strong> 1834 – Passam em Lagoa Santa rumo a Sabará.<br />

06/11/1834 – Chegam a Sabará.<br />

24/11/1834 – Chegam a Ouro Preto.<br />

06/02/1835 – Lund termina o trabalho sobre o serrado<br />

(“Observações sobre a vegetação <strong>dos</strong> planaltos interiores do<br />

Brasil, em especial com relação à história das plantas”).<br />

101


09/02/1835 – Volta sozinho para Curvelo enquanto Rie<strong>de</strong>l<br />

segue para o Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

Agosto <strong>de</strong> 1835 – Escreve seu primeiro trabalho sobre as<br />

cavernas, <strong>de</strong> inspiração Cuvieriana.<br />

02/09/1835 – Lund e Brandt <strong>de</strong>ixam Curvelo.<br />

17/10/1835 – Chegam a Lagoa Santa <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> visitarem<br />

<strong>de</strong>zenove cavernas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Curvelo.<br />

07/11/1835 – O trabalho sobre as cavernas tem boa<br />

repercussão na Europa e a Aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> Ciências aprova uma<br />

ajuda financeira para Lund por dois anos (1836 e 1837) no<br />

valor <strong>de</strong> 1.000 rigsdaler anuais.<br />

14/02/1837 – Lund escreve sua primeira memória sobre a<br />

fauna das cavernas.<br />

16/11/1837 – Termina a segunda memória sobre a fauna das<br />

cavernas.<br />

27/07/1839 – Lund e Morgenstern se encontram e nesse dia<br />

po<strong>de</strong> ter sido combinado o empréstimo que causaria tantos<br />

aborrecimentos ao sábio dinamarquês.<br />

1839 – Darwin publica sua obra “Journal and Remarks / The<br />

Voyage of the Beagle”.<br />

102


1839 – Lund compra o imóvel em que morava em Lagoa<br />

Santa.<br />

1840 – 09/02/1840 – Lund escreve ao seu advogado<br />

Sebastião da Rocha Brandão manifestando preocupação com<br />

a segurança do empréstimo que tinha feito a Morgenstern.<br />

25/02/1840 – Morgenstern faz socieda<strong>de</strong> com Martiniano<br />

Pereira <strong>de</strong> Castro incluindo no negócio o bem hipotecado<br />

contra o empréstimo contraído com Lund com valor<br />

estipulado em 7:000$000.<br />

11/03/1840 – Lund escreve e Morgenstern cogitando <strong>de</strong><br />

manter o capital na proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que as condições do<br />

contrato <strong>de</strong> empréstimo fossem cumpridas pontualmente.<br />

30/01/1841 – Lund termina a quarta memória sobre a fauna<br />

das cavernas.<br />

27/03/1841 – Escreve novamente a Rocha Brandão<br />

perguntando se Morgenstern tinha cumprido a promessa <strong>de</strong>,<br />

até 25/03/1841, entregar seus bens aos seus credores.<br />

04/01/1841 – Termina a quinta memória intitulada “As<br />

espécies <strong>de</strong> carnívoros atuais e fósseis nos planaltos centrais<br />

do Brasil tropical”.<br />

17/04/1841 – Lund escreve a seu novo advogado Quintiliano<br />

<strong>José</strong> da Silva (futuro governador da província <strong>de</strong> Minas<br />

Gerais) pedindo a ele providências por Morgenstern não ter<br />

103


cumprido sua promessa <strong>de</strong> entregar seus bens aos seus<br />

credores, <strong>de</strong>ixando a ele <strong>de</strong>cidir por uma execução ou<br />

conciliação.<br />

03/11/1841 – Nasce Eugenius Warming.<br />

17/01/1842 – Lund escreve novamente a Rocha Brandão<br />

aprovando as medidas tomadas por ele.<br />

18/01/1842 – Escreve ao Instituto Histórico e Geográfico<br />

Brasileiro dizendo ter encontrado vestígios humanos e <strong>de</strong><br />

animais extintos juntos, mas que não podia concluir que eles<br />

conviveram na mesma época.<br />

16/11/1843 – Escreve carta a Reinhardt sugerindo ter aceito a<br />

tese da coexistência do homem com raças <strong>de</strong> animais extintos.<br />

1844 – Darwin publica suas primeiras notas sobre a seleção<br />

natural, material que daria origem ao seu livro sobre a<br />

evolução das espécies.<br />

21/04/1844 – Envia nova carta ao Instituto Histórico e<br />

Geográfico Brasileiro apresentando a tese <strong>de</strong> que o homem<br />

atual po<strong>de</strong> ter convivido com animais extintos.<br />

26/04/1844 – Escreve a Reinhardt propondo a mudança do<br />

título das coletâneas <strong>de</strong> memórias sobre a fauna das cavernas<br />

para “Olhar sobre a criação animal vivente e extinta<br />

brasileira”, mas <strong>de</strong>ixando a critério do seu mentor <strong>de</strong>cidir<br />

sobre isso.<br />

104


10/01/1845 – Escreve nova carta a Reinhardt falando da<br />

disposição <strong>de</strong> suspen<strong>de</strong>r as pesquisas alegando falta <strong>de</strong><br />

recursos financeiros. Na mesma data escreve ao rei da<br />

Dinamarca colocando suas coleções à disposição para o que<br />

ele julgar conveniente.<br />

20/03/1845 – Escreve carta a Quintiliano <strong>José</strong> da Silveira<br />

pedindo a indicação <strong>de</strong> um procurador em Sabará para a<br />

venda <strong>dos</strong> bens penhora<strong>dos</strong> por conta da dívida <strong>de</strong><br />

Morgenstern.<br />

1845 – Doa suas coleções ao rei da Dinamarca Christian VIII<br />

e envia os primeiros lotes.<br />

1845 – Morre Johannes Christopher Hagemann Reinhardt.<br />

1846 - Faltava apenas a avaliação e venda <strong>dos</strong> bens <strong>de</strong><br />

Morgenstern.<br />

1847 – Johannes Theodor Reinhardt visita Lund e no retorno<br />

leva outro lote das suas coleções para a Dinamarca.<br />

1849 – Seguem os últimos caixotes das coleções <strong>de</strong> Peter<br />

Lund.<br />

1855 – Ano provável da morte <strong>de</strong> Peter Claussen.<br />

1856 – Encontra<strong>dos</strong> os fósseis do Homem <strong>de</strong> Nea<strong>de</strong>rthal.<br />

105


1859 – Darwin publica “On the origens of especies by mens<br />

of natural selection”.<br />

1859 – As coleções <strong>de</strong> Lund são abertas ao público na<br />

Dinamarca.<br />

1861 – Morre Ludwig Rie<strong>de</strong>l.<br />

1862 – Morre Peter Andreas Brandt.<br />

1863 – Eugenius Warming assume as funções <strong>de</strong> secretário <strong>de</strong><br />

Lund.<br />

1866 – Behrens assume as funções <strong>de</strong> secretário <strong>de</strong> Lund com<br />

a volta <strong>de</strong> Warming para a Europa.<br />

1871 – Darwin publica “The <strong>de</strong>scent of man and the selection<br />

in relation of sex”.<br />

1873 – Peter Villum Roespstorff assume as funções <strong>de</strong><br />

secretário <strong>de</strong> Lund.<br />

05 ou 25/05/1880 – Lund morre em Lagoa Santa.<br />

1882 – Morre Johannes Theodor Reinhardt.<br />

1882 – Morre Charles Darwin.<br />

1884 – Herluf Winge inicia a revisão da coletânea <strong>dos</strong><br />

trabalhos <strong>de</strong> Lund disponíveis na Dinamarca.<br />

106


02/04/1924 – Morre Eugenius Warming.<br />

107


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110


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