José Roberto de Amorim - Quintal dos Poetas
José Roberto de Amorim - Quintal dos Poetas
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1<br />
<strong>José</strong> <strong>Roberto</strong><br />
<strong>de</strong> <strong>Amorim</strong><br />
A DEGUSTAÇÃO<br />
DA MAÇÃ<br />
OU<br />
OS<br />
INFORTÚNIOS<br />
DO PRAZER<br />
Romance<br />
a<br />
<strong>Quintal</strong> <strong>dos</strong> <strong>Poetas</strong><br />
Oficina Literária
<strong>José</strong> <strong>Roberto</strong> <strong>de</strong> <strong>Amorim</strong><br />
A <strong>de</strong>gustação da maçã<br />
ou<br />
os infortúnios do prazer<br />
Romance<br />
a<br />
<strong>Quintal</strong> <strong>dos</strong> <strong>Poetas</strong><br />
Oficina Literária<br />
2
Copyright 2009 by <strong>José</strong> <strong>Roberto</strong> <strong>de</strong> <strong>Amorim</strong><br />
Da<strong>dos</strong> <strong>de</strong> Catalogação na Publicação (CIP)<br />
A425a <strong>Amorim</strong>, <strong>José</strong> <strong>Roberto</strong> <strong>de</strong><br />
A DEGUSTAÇÃO DA MAÇÃ OU OS INFORTÚNIOS DO<br />
PRAZER/ <strong>José</strong> <strong>Roberto</strong> <strong>de</strong> <strong>Amorim</strong> – Lagoa Santa: <strong>Quintal</strong><br />
<strong>dos</strong> <strong>Poetas</strong> – Oficina Literária, 2009.<br />
ISBN*****<br />
1. Literatura Brasileira. 2. Romance. I Título.<br />
<strong>Quintal</strong> <strong>dos</strong> <strong>Poetas</strong><br />
Oficina Literária<br />
Lagoa Santa, 2009<br />
WWW.quintal<strong>dos</strong>poetas.com<br />
quintal<strong>dos</strong>poetas@quintal<strong>dos</strong>poetas.com<br />
3<br />
CDD 869.93
<strong>José</strong> <strong>Roberto</strong> <strong>de</strong> <strong>Amorim</strong><br />
A <strong>de</strong>gustação da maçã<br />
ou<br />
os infortúnios do prazer<br />
4
PRÓLOGO<br />
O prazer certamente é vermelho. Não como um coração estilizado, mas como<br />
uma maçã. Porém, o requisito dominante da semelhança não é a cor e sim a<br />
serventia. Como a serventia da maçã é ser comida, não é suficiente contemplar<br />
as suas formas, a própria cor, a textura e seu brilho sedutor. É preciso cortá-la<br />
ao meio e saborear as meta<strong>de</strong>s obtidas, que essa é a única maneira <strong>de</strong><br />
acessar a sua essência. O prazer também é assim, mas ao secionar as suas<br />
partes, <strong>de</strong>scobrimos que, ao contrário da fruta <strong>de</strong> Adão e Eva, elas têm<br />
texturas e sabores diferentes: uma meta<strong>de</strong> é a adoração e a outra meta<strong>de</strong> é o<br />
gozo. São faces da mesma fruta doce, contudo, guardam suas diferenças. Os<br />
limites <strong>de</strong>ssas meta<strong>de</strong>s costumam se confundir, mas vamos tentar enten<strong>de</strong>r as<br />
tais diferenças. Para isso é preciso, antes <strong>de</strong> tudo, enten<strong>de</strong>r os segre<strong>dos</strong> da<br />
<strong>de</strong>gustação do prazer pois é por aí que as coisas se aclaram. Existem duas<br />
formas <strong>de</strong> se sorver a baba do seu gosto sublime. Uma é através do amor, a<br />
outra é através do <strong>de</strong>sejo. Qualquer que seja o meio escolhido há também<br />
duas formas <strong>de</strong> saborear a fruta do prazer: com refinamento ou com banal<br />
grosseria. O amor é extensivo e onipresente, o <strong>de</strong>sejo é intensivo e pontual.<br />
Vai daí que o modo refinado <strong>de</strong> se <strong>de</strong>gustar o prazer do amor vai exigir que ele<br />
seja sorvido <strong>de</strong>vagar. Ao contrário, com o <strong>de</strong>sejo, se quisermos ser refina<strong>dos</strong><br />
temos que sorvê-lo <strong>de</strong> modo um tanto mais ligeiro. O amor precisa do tempero<br />
da ternura e ela é suave e indolente. O <strong>de</strong>sejo, por seu turno, precisa do<br />
antepasto da excitação e ela costuma ser afobada e rompante. No amor, a<br />
ênfase gustativa <strong>de</strong>ve ser centrada na adoração, enquanto no <strong>de</strong>sejo o foco é o<br />
gozo. Quer dizer, é preciso distinguir as meta<strong>de</strong>s e saber apreciá-las com a<br />
<strong>de</strong>vida competência, evitando o lado amargo da fruta.<br />
Didaticamente é apropriado dizer que o fim último do amor é comunhão <strong>dos</strong><br />
amantes numa bela antropofagia espiritual, apimentada com algumas<br />
lambidas. Quando isso acontece surge o contentamento. Mas, no amor, nunca<br />
há sacieda<strong>de</strong> pois, como dito, ele é sempre incompleto. O <strong>de</strong>sejo, ao contrário,<br />
é finito. Leva a sacieda<strong>de</strong>, mas nunca ao contentamento, pagando o preço que<br />
<strong>de</strong>ve. É por isso que, quando no <strong>de</strong>sejo o gozo é incompleto, surge o<br />
sentimento amargo do pecado, azedando no final.<br />
Mas tem o amor contemplativo complicando a teoria. É que ele, por máformação,<br />
dispensa o gozo por completo e conduz diretamente à adoração. Daí<br />
porque ele é tão caro à transcendência das pessoas santas nos seus êxtases e<br />
transportes na busca da revelação das divinda<strong>de</strong>s. Há quem acredite que no<br />
amor contemplativo não há o risco do remorso pois ele leva inexoravelmente<br />
ao perdão e à re<strong>de</strong>nção, conduzindo, na seqüência, a um estado absoluto <strong>de</strong><br />
equilíbrio chamado céu. Mas essa é uma outra história pois não trata do prazer<br />
nem da <strong>de</strong>gustação da maçã.<br />
A outra faceta da razão do amor existir, ao contrário, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ter o seu<br />
lado pecaminoso, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do ângulo que se olha. É que ela se lastreia na<br />
busca do usufruto das <strong>de</strong>liciais que transcen<strong>de</strong>m da pessoa amada, tantos as<br />
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físicas quanto as espirituais. E é aí que o amor abocanha o gozo com<br />
sofreguidão da mesma forma que o <strong>de</strong>sejo. Pois, enfim, a maçã é a mesma e<br />
nem sempre é possível manter o refinamento na sua <strong>de</strong>gustação.<br />
Muita gente confun<strong>de</strong> o amor com a paixão distinguindo os dois apenas quanto<br />
a intensida<strong>de</strong>. E está em parte correto, pois o amor intenso vira paixão da<br />
mesma forma que o <strong>de</strong>sejo intenso vira tentação. Mas também é preciso<br />
consi<strong>de</strong>rar que não há nenhuma improprieda<strong>de</strong> em se admitir que a paixão é o<br />
refinamento do amor assim como a tentação é o refinamento do <strong>de</strong>sejo. Coisas<br />
reservadas aos gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>gustadores.<br />
Também há os que radicalizam nas suas posições. Alguns optam pela procura<br />
constante <strong>de</strong> um jardim fremente <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejos, cultivando os prazeres com<br />
volúpia e fugindo do próprio amor e <strong>de</strong> suas seqüelas. Há quem os critique<br />
vendo na sua opção uma certa covardia: teriam preferido os riscos incertos do<br />
pecado às dores certas do remorso como conseqüência <strong>de</strong> uma má<br />
<strong>de</strong>gustação. Com certeza há boa <strong>dos</strong>e <strong>de</strong> moralismo nesse comentário<br />
mal<strong>dos</strong>o.<br />
As vidas são diferentes e seguirá sendo assim, mas o mais fascinante é que<br />
elas estão impregnadas <strong>de</strong> prazeres e <strong>de</strong> maçãs e elas são vermelhas e<br />
precisam ser comidas, com calma ou sofreguidão, com amor ou com <strong>de</strong>sejo.<br />
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PRIMEIRA PARTE<br />
A súbita queda da luminosida<strong>de</strong> da sala cortou mecanicamente o cochilo<br />
rui<strong>dos</strong>o e suarento do velho. Inserido num ambiente <strong>de</strong> trastes, semi-<strong>de</strong>itado na<br />
ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> mogno <strong>de</strong> espaldar cardinalício talhado em pesadas flores <strong>de</strong> liz,<br />
estava Cedro Angélico. Abriu rapidamente os olhos miú<strong>dos</strong> e constantemente<br />
cansa<strong>dos</strong>, na sua ida<strong>de</strong>. A vista falhava, mas seus reflexos não. Eram um tanto<br />
ligeiros e, assim, a bem da coerência, incompatíveis com seus oitenta e sete<br />
anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, tal qual não eram a vista e muita coisa mais. Incoerentes sendo,<br />
funcionaram rápido e quase instantaneamente o <strong>de</strong>volveu à realida<strong>de</strong><br />
modorrenta da sala repleta <strong>de</strong> trastes, como dito.<br />
O velho juntou as partes boas e as ruins do seu conjunto orgânico exaurido no<br />
geral, reagiu e se pôs alerta como podia. Ergueu a cabeça, olhando em direção<br />
à porta que se abria a um alpendre <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>iras carcomidas, mal ocultas por<br />
uma tintura <strong>de</strong>scarnada, herança <strong>de</strong> antigas eras, por um lado priscas, por<br />
outro, tenebrosas, como sempre acontece em todo lugar. Lá estava a causa da<br />
quebra do equilíbrio sereno do ambiente interrompendo o torpor típico das<br />
mornas e sonolentas tar<strong>de</strong>s pós-prandiais <strong>dos</strong> octogenários, sonolentos, aliás,<br />
como lagartos cobertos das escamas indolentes da ida<strong>de</strong>. Alguém se postara<br />
sob o portal e tentava vislumbrar o interior, procurando vencer o contraste do<br />
sol aberto que tinha acabado <strong>de</strong> enfrentar por algumas horas, galopando o<br />
lombo <strong>de</strong> extenuado cavalo e que lhe fechara <strong>de</strong>fensivamente as pupilas<br />
sensíveis, pois que sensíveis são os olhos e preciosa a visão em qualquer<br />
ida<strong>de</strong>.<br />
- Ô <strong>de</strong> casa ! - gritou o recém-chegado, receoso <strong>de</strong> que uma imperceptível<br />
aproximação pu<strong>de</strong>sse ser mal interpretada.<br />
O velho piguemaleou solerte e matreiro e apenas pigarreou discreto. Era o<br />
sinal para anunciar que a inesperada presença já tinha sido percebida. Mas<br />
nada disse, escon<strong>de</strong>ndo uma certa malandragem oriunda <strong>de</strong> berço e polida na<br />
convicção formada ao longo da vida, singular no seu caso que é, aliás, <strong>de</strong> que<br />
trata essa história no escopo principal.<br />
Com o pigarro pensou o visitante ter obtido a resposta que queria ainda que<br />
pergunta alguma tivesse sito feita. Era a licença para entrar, concluiu ligeiro, no<br />
afã <strong>de</strong> ser aceito e ver tolerada aquela sua intromissão. Assim pensando<br />
avançou alguns passos em direção ao interior da sala. Seguiu reto e se postou<br />
frente ao velho, contemplando-o com gravida<strong>de</strong>, teatralizando a importância<br />
daquela visita como, afinal, precisava que fosse.<br />
Talvez necessário <strong>de</strong>screver que tudo se passava numa sala relativamente<br />
pequena <strong>de</strong> uma moradia simples, <strong>de</strong> um pequeno sítio, <strong>de</strong> um lugar qualquer,<br />
<strong>de</strong> uma quase meta<strong>de</strong> <strong>de</strong> século, nos ermos do sertão. Um século pródigo<br />
para alguns e nem tanto para outros: tinha havido guerras e progresso no<br />
mundo todo, mas não no sertão que continuava o mesmo, crescendo por moto<br />
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próprio, diferente do resto. De sorte que o sertão continuava sertão e naquela<br />
moradia um muro <strong>de</strong> adobe em ruínas - com vários fragmentos <strong>de</strong> camadas <strong>de</strong><br />
tinta <strong>de</strong> cores variadas sobrepostas, suce<strong>de</strong>ndo manchas <strong>de</strong> terra <strong>de</strong> tijolos<br />
expostos - protegia as laterais externas da casa. Morada antiga <strong>de</strong> muita gente,<br />
<strong>de</strong> noite e <strong>de</strong> dia, cumprindo a sua serventia. O muro resultava ser menor do<br />
que o espaço que <strong>de</strong>via cercar, pois que muito pouco valia o que se tinha que<br />
cercar, mas essas falhas <strong>de</strong> segurança não tinham a menor importância.<br />
Contudo, sempre há <strong>de</strong> haver um certo zelo <strong>de</strong>fensivo e daí então, ao tal muro<br />
se seguia, <strong>de</strong> cada lado frontal do terreno, uma cerca <strong>de</strong> paus finos enfia<strong>dos</strong><br />
entre três fios <strong>de</strong> arames farpa<strong>dos</strong>, displicentemente estica<strong>dos</strong> numa tar<strong>de</strong><br />
qualquer <strong>de</strong> preguiça. Cercava porcos mas não cercava galinhas que bem<br />
podiam passar por entre as tortas linhas <strong>dos</strong> paus <strong>de</strong> arbustos do cerrado na<br />
sua função <strong>de</strong> anteparo. Tudo muito rústico e improvisado. Mas nada disto<br />
importava, como já eu havia dito, pois ninguém cobiçava aquela pobreza<br />
conformada e galinhas e porcos, guardadas as proporções, mereciam o<br />
mesmo espaço e acabavam do mesmo jeito, na panela <strong>de</strong> domingo e <strong>de</strong>pois<br />
na travessa <strong>de</strong> louça grossa para serem justamente comi<strong>dos</strong> pois para isso se<br />
tinha investido na sua criação. Tudo parado e <strong>de</strong>salinhado no tempo que<br />
passava longe, <strong>de</strong>trás da serra acolá. Dentro da moradia nada era muito<br />
diferente em termos <strong>de</strong> <strong>de</strong>semportância e carência. A sala terminava em<br />
pare<strong>de</strong>s mal niveladas, com pintura também em mal estado, sujas, com<br />
manchas causadas pela água gotejada e com reboco se soltando em alguns<br />
pontos, <strong>de</strong>ixando o adobe à vista. Pobreza igual, por <strong>de</strong>ntro e por fora.<br />
Cravadas em pontos diversos da sala havia três portas <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira em folhas<br />
mal ajuntadas, pintadas em óleo grosso num tom escuro <strong>de</strong> cinza. Todas<br />
estavam abertas que não havia intimida<strong>de</strong>s a guardar nem se esperava visita.<br />
Chão <strong>de</strong> assoalho tosco, vincado <strong>de</strong> frestas. Duas janelas para o alpendre e<br />
duas do lado oposto, mostrando, a metros, as arvores do quintal e convidando<br />
à sombra, pois no interior da sala estava quente. Caibros expostos<br />
sustentavam uma pesada cobertura <strong>de</strong> telhas escuras <strong>de</strong> coxa grossa, vazadas<br />
em alguns pontos por fios da luz do sol forte <strong>de</strong> meio <strong>de</strong> tar<strong>de</strong>. À mobília que<br />
preenchia os espaços da sala, mais justo seria chamar <strong>de</strong> <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte do que <strong>de</strong><br />
simples, pois solenes as havia, embora rotas e carcomidas no geral. Eram<br />
peças solteiras, <strong>de</strong> mo<strong>dos</strong> diversos, juntadas apenas para cumprir suas<br />
funções práticas essenciais, como sói ser com mobílias em casas naquele<br />
precípuo estado. Um guarda-louça pesado e talhado em boa ma<strong>de</strong>ira,<br />
guardava, como convinha, peças <strong>de</strong> jeito antigo. Testemunhas, talvez <strong>de</strong><br />
solenes rituais familiares perdi<strong>dos</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início <strong>dos</strong> tempos <strong>dos</strong> infortúnios.<br />
Uma poltrona revestida <strong>de</strong> veludo ver<strong>de</strong> manchado e roto, <strong>de</strong>ixando à vista o<br />
forro <strong>de</strong> pano rústico e, sob ele, o algodão encardido do enchimento, semioculto<br />
por um paletó e um chapéu atira<strong>dos</strong> no assento, acentuando o <strong>de</strong>sleixo<br />
do conjunto todo. Uma mesa escura e extraordinariamente sólida, cercada por<br />
meia dúzia <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> palhinha amarela, quase todas soltando tiras. Uma<br />
velha arca <strong>de</strong> couro, apropriada para transporte <strong>de</strong> carga em lombo <strong>de</strong> burro,<br />
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jazia em um canto, inútil, esquecida. Ao lado da arca uma cuspi<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> cobre,<br />
encardida por não ser limpa com a <strong>de</strong>sejável freqüência, multiplicando o po<strong>de</strong>r<br />
<strong>de</strong> corrosão <strong>dos</strong> áci<strong>dos</strong> das salivas ali misturadas. Das pare<strong>de</strong>s pendiam dois<br />
quadros, atira<strong>dos</strong> sem guardar qualquer simetria ou relação com algum ponto<br />
da sala: um coração <strong>de</strong> Jesus <strong>de</strong> moldura azul reluzente e uma fotografia<br />
colorida à mão <strong>de</strong> que, daqui a pouco, falaremos mais. Finalmente,<br />
completando o ambiente <strong>de</strong>spojado e <strong>de</strong>crépito, a ca<strong>de</strong>ira on<strong>de</strong> o homem velho<br />
estava sentado reinando em seu reino <strong>de</strong> <strong>de</strong>stroços. Justo dizer que era um<br />
móvel solene, até majestoso. Contrastava, com certeza, com o restante da sala<br />
pelo bom estado <strong>de</strong> conservação. Talvez por isso, dava uma certa aura <strong>de</strong><br />
autorida<strong>de</strong> ao seu ocupante, legitimando seu lamentável reinado. Decorre daí,<br />
talvez, o tom <strong>de</strong> respeito e solenida<strong>de</strong> com que o recém-chegado perguntou:<br />
- O senhor é Cedro Cedrus? Venho <strong>de</strong> longe para lhe falar.<br />
O velho ouviu a pergunta, apoiou-se melhor na ca<strong>de</strong>ira, <strong>de</strong>ixou passar alguns<br />
segun<strong>dos</strong> e respon<strong>de</strong>u, um tanto contrariado:<br />
- Não sei se sou quem procuras, <strong>de</strong> qualquer forma chegaste em hora errada.<br />
Foram palavras expelidas num tom <strong>de</strong> mau humor como não po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong><br />
ser em sendo ditas por um octogenário interrompido em seu vital repouso<br />
vespertino O jovem, contudo, não se <strong>de</strong>ixou intimidar pelo tom inamistoso da<br />
recepção e completou ludibriando a timi<strong>de</strong>z:<br />
- Desculpe senhor, mas viajo há dias e não pu<strong>de</strong> escolher a hora <strong>de</strong> chegar. O<br />
que me trás é urgente e por isso tive, a contragosto, <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezar a<br />
improprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> incomodá-lo nessa hora.<br />
A resposta firme, <strong>de</strong>cidida e, ao mesmo tempo educada e bem articulada,<br />
pareceu um bom prenúncio ao ancião, <strong>de</strong>sconfiado até então, com uma certa<br />
razão. Não era seguramente a forma com que se expressaria alguém que<br />
viesse com intenções perigosas. Tal conclusão <strong>de</strong>sarmou a animosida<strong>de</strong> inicial<br />
e fez com que o velho mudasse a forma com que recebera o estranho, até<br />
arriscando uma ponta <strong>de</strong> cordialida<strong>de</strong>.<br />
- Muito bem. Espana a poeira do corpo, arrasta uma ca<strong>de</strong>ira e diga porque<br />
procuras Cedro Cedrus.<br />
Embora não tivesse obtido a confirmação <strong>de</strong>sejada o visitante, que até então<br />
estava tenso, se sentiu um tanto mais relaxado e, ainda que <strong>de</strong> forma solene,<br />
avançou alguns passos rápi<strong>dos</strong> em direção a ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> palhinha colocada ao<br />
lado do seu interlocutor. Sentou-se num gesto ágil, impelido pela ansieda<strong>de</strong><br />
que guardava <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que <strong>de</strong>cidiu fazer o que agora fazia, e que estava no ápice<br />
do seu projeto da visita. Tirou o chapéu largo <strong>de</strong> feltro preto <strong>de</strong>scorado e<br />
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pendurou no espaldar. Ajeitou a guaiaca, colocou o chicote sobre a coxa,<br />
posou o alforje que trazia no ombro e fitou o ancião por alguns segun<strong>dos</strong>, sem<br />
saber o que estava por vir.<br />
O velho observou to<strong>dos</strong> os movimentos do recém-chegado e esperou que ele<br />
tomasse cômodo. Tudo se <strong>de</strong>u em segun<strong>dos</strong>, mas aquele ritual que atrasava a<br />
explicação do motivo da vinda já o incomodava quando o visitante resolveu<br />
principiar a falar a fala que já tinha preparado, ensaiado e repassado várias<br />
vezes.<br />
- Meu nome é Jequitibá Malesco e estou vindo do Distrito <strong>dos</strong> Deserda<strong>dos</strong>, <strong>de</strong><br />
um lugar chamado Cerradão da Seriema.<br />
O velho ouviu com atenção os topônimos que indicavam as origens do<br />
visitante tentando se situar e antecipar o motivo da inusitada visita. Lugares<br />
conheci<strong>dos</strong> e agora já perdi<strong>dos</strong>? Terras <strong>de</strong> um amor antigo? Sitio <strong>de</strong> uma<br />
herança insabida. Túmulo <strong>de</strong> um remoto amigo? Tudo isso e nada disso? Seu<br />
giro mnêmico resultou inútil mas ele não quis revelar a inocuida<strong>de</strong> do ligeiro<br />
esforço.<br />
O visitante fez uma pausa, enten<strong>de</strong>ndo que seu interlocutor digeria suas<br />
palavras, buscando uma referência. Em segun<strong>dos</strong> o velho voou léguas e<br />
décadas nas asas da memória e, enquanto fazia isso, fitava os particulares do<br />
forasteiro buscando um rumo qualquer. Olhos negros <strong>de</strong> expressivo contorno.<br />
Mãos e braços fortes. Boa envergadura. Na entrada já tinha notado a leveza no<br />
andar, a rapi<strong>de</strong>z no <strong>de</strong>slocar, <strong>de</strong>slizando na horizontal. Na vertical nem pensou<br />
pois não quis aventar qualquer relação <strong>de</strong> parentesco, perto, médio ou distante.<br />
Po<strong>de</strong>ria ser o contrário (e era), mas ele <strong>de</strong>cidiu, por antecipação, que nada<br />
naquele homem <strong>de</strong>veria encontrar rumo nas suas reminiscências, pois não<br />
queria comprometimentos daquela espécie naquela altura da vida. Assim era<br />
ele: pensava ligeiro, ligeiro tirava conclusões, muitas acertadas, muitas<br />
levianas, tantas outras equivocadas. Mas era <strong>de</strong>sse modo que vivia. Ainda<br />
agora, tantos anos passa<strong>dos</strong>.<br />
Ao final, sua expressão foi <strong>de</strong> vazio, como não po<strong>de</strong>ria ser diferente, por falta<br />
<strong>de</strong> consistência na lógica que tinha adotado naquela análise corrida. Mas,<br />
assim mesmo, o resultado até que calhou bem a Cedro Angélico, pois seria<br />
complicado <strong>de</strong>scobrir, na parte final da vida, que aquele era seu próprio filho,<br />
casual e temporão. Mas isso vemos <strong>de</strong>pois que a história continua.<br />
Percebendo o resultado pífio da elaboração mental no semblante do ancião, o<br />
recém-chegado, constrangido pelo silêncio, resolveu continuar a sua fala e até<br />
aumentar o ritmo da sua penetração sobre a resistência do seu interlocutor.<br />
- Vim aqui porque acredito que o senhor é quem procuro, sabe coisas do meu<br />
passado e po<strong>de</strong> me ajudar a acabar com a minha busca.<br />
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Aquelas palavras <strong>de</strong>sconfortaram novamente o velho. Do passado, como<br />
vimos, não gostava <strong>de</strong> falar e essa condição adversa acrescentou rispi<strong>de</strong>z à<br />
seqüência da conversa.<br />
- Não o conheço e ignoro o seu passado. - Disse secamente.<br />
- O Senhor não andou por Sacramento muitos anos atrás? - Insistiu o visitante,<br />
<strong>de</strong>sprezando a posição refratária do outro lado.<br />
Em lugar <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r à pergunta, o ancião se pôs a examinar mais uma vez<br />
seu interlocutor, insistindo com si mesmo, masturbando a situação, a avaliar o<br />
significado da visita inesperada que subitamente quebrara a já longa seqüência<br />
<strong>de</strong> tar<strong>de</strong>s sonolentas, sucessivas e monótonas naquela ida<strong>de</strong>.<br />
Repassou a geografia da jornada do recém-chegado. Distrito <strong>dos</strong> Deserda<strong>dos</strong>,<br />
na sua parte mais perto, ficava a pelo menos três dias <strong>de</strong> viagem, em bom<br />
galope. Que motivação levaria aquele homem, que supunha não conhecer, a<br />
percorrer essa distância para vê-lo. E, ao que parece a viagem fora feita em<br />
clima <strong>de</strong> aflição, instigando disposição e empurrando ligeireza.<br />
- Quando começou a viagem? - perguntou, quebrando, finalmente, a tensão<br />
que se instalara natural, na evolução da cena narrada.<br />
- Na verda<strong>de</strong> já há alguns anos venho procurando o senhor, mas a informação<br />
que me trouxe aqui, eu obtive há uns <strong>de</strong>z dias - respon<strong>de</strong>u o visitante,<br />
propositadamente já inequívoco i<strong>de</strong>ntificando o velho como sendo a pessoa<br />
procurada, agora encontrada com sucesso.<br />
- Assim que soube que o senhor po<strong>de</strong>ria me dar uma informação muito<br />
importante, parti imediatamente. Não quis correr o risco <strong>de</strong> não encontrá-lo por<br />
falta <strong>de</strong> pressa. Também não tive certeza <strong>de</strong> que o encontraria aqui. Mas vim e<br />
sei que o rumo é certo.<br />
Seguramente o visitante buscava algo muito valioso para ele, pensou o velho,<br />
se animando e virando o humor para o lado mais ameno. Vamos tratar o<br />
assunto levando isso na <strong>de</strong>vida conta, valorizando a visita e ajudando no que<br />
fosse dado ajudar e, claro, cobrando justo por isso.<br />
- Continuo sem saber se sou <strong>de</strong> fato quem procuras, mas vamos ver em que<br />
posso ajudá-lo, compensando seu esforço – respon<strong>de</strong>u o ancião.<br />
- Eu nasci em Sacramento, nas cabeceiras do Rio Barreiro. Sei que o senhor<br />
andou por aquelas paragens, tempo atrás - acrescentou o visitante objetivo.<br />
Sim, relembrou em silêncio, o velho homem, sem esforço. Lembrava-se <strong>de</strong> ter<br />
conhecido um tal lugar. Um arraial inserido na parte final <strong>de</strong> um roteiro <strong>de</strong><br />
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viagem que tinha empreendido décadas passadas, trilhado no dito cujo Distrito<br />
<strong>dos</strong> Deserda<strong>dos</strong>, atrás da quitação <strong>de</strong> dívidas antigas <strong>de</strong> clientes <strong>de</strong>scansa<strong>dos</strong>.<br />
Assim, com a curiosida<strong>de</strong> aguçada por uma referência conhecida <strong>de</strong> décadas<br />
passadas e mais achando interessante aquela situação inusitada, o ancião<br />
afastou <strong>de</strong> vez o seu incômodo com a visita e a invasão impertinente ao seu<br />
passado guardado. Com um gesto <strong>de</strong> mão simpatizante pediu que o visitante<br />
prosseguisse seu relato, no que ele obe<strong>de</strong>ceu gratificado, embargando a voz,<br />
involuntário ce<strong>de</strong>ndo à emoção.<br />
- Nunca conheci meus verda<strong>de</strong>iros pais. Fui criado por alguém que julgava<br />
fosse minha mãe <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> mas que, à morte, confessou não sê-lo.<br />
Desconheço se eles estão vivos, mas preciso reviver suas memórias com tudo<br />
que pu<strong>de</strong>r saber sobre eles.<br />
As palavras do forasteiro fizeram o velho movimentar-se sobre a ca<strong>de</strong>ira,<br />
procurando captar <strong>de</strong> forma mais precisa as exatas intenções daquele homem.<br />
Ali estava alguém impelido por uma dúvida corrosiva sobre suas origens.<br />
Alguém angustiado, premido e disposto a muito por uma informação que<br />
iluminasse uma sombra em sua vida. Um homem querendo <strong>de</strong>sesperadamente<br />
reconstituir o seu passado. Que estúpido sofrimento, que leviano projeto!<br />
Recriar o passado é reacen<strong>de</strong>r <strong>de</strong>sejos já satisfeitos, emoções já saciadas –<br />
pensou o ancião com toda a vivacida<strong>de</strong> como se lesse, alegremente, notas em<br />
um precioso ca<strong>de</strong>rno on<strong>de</strong> tivesse anotado receitas para o bem viver, mesmo<br />
agora, <strong>de</strong>pois que uma vida <strong>de</strong> prazeres já tinha cobrado <strong>de</strong>le o preço <strong>dos</strong><br />
infortúnios que costuma espalhar.<br />
À medida que o forasteiro ia <strong>de</strong>sfibrando a ansieda<strong>de</strong> que carregava, o velho ia<br />
vislumbrando possibilida<strong>de</strong>s interessantes diante <strong>de</strong> si. E sorriu. Sorriu mais<br />
para <strong>de</strong>ntro do que para fora, mas sorriu. E sorrindo com o sorriso mais<br />
discreto <strong>de</strong> fora resolveu mostrar mais interesse. Com um ar <strong>de</strong> simpatia se<br />
inclinou discretamente na direção do visitante que, agora mudo, aguardava<br />
alguma reação do seu interlocutor. Enten<strong>de</strong>u ser aquele um gesto favorável<br />
para continuar a sua fala, que era o que o velho queria.<br />
- A mulher que me criou, por odiosa e <strong>de</strong>sconhecida vingança, me tirou da casa<br />
<strong>de</strong> meus pais quando eu tinha dois anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. Embora seja grato a ela pela<br />
forma amorosa e feliz com que me criou, eu a odiei quando ela, no leito <strong>de</strong><br />
morte, confessou que não era minha mãe e que meu pai era um comerciante<br />
<strong>de</strong> Sacramento <strong>de</strong> on<strong>de</strong> me tirara há mais <strong>de</strong> trinta anos.<br />
A menção <strong>de</strong>sses fatos remexeu <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>cisiva a memória ativa do velho.<br />
Agora <strong>de</strong> forma precisa e objetiva, virando páginas <strong>de</strong>vagar e revelando<br />
retratos com toda a clarida<strong>de</strong> e niti<strong>de</strong>z <strong>dos</strong> pretos, brancos e cinzas que<br />
naquele tempo a realida<strong>de</strong> era retratada assim, graduada e irreal. De fato, em<br />
torno daquele tempo, naquele preciso lugar, por força <strong>de</strong> uma necessida<strong>de</strong><br />
12
premente, teve que ressuscitar os rescal<strong>dos</strong> <strong>dos</strong> negócios da família e se<br />
ocupar algumas semanas em cobrar dívidas antigas, percorrendo vilas e<br />
arraiais naquele ingrato e extemporâneo mister, juntando resquícios da<br />
herança paterna para ganhar uma sobrevida pois estava inteiramente falido e<br />
penando outra vez. Exatamente! Durante dois ou três meses zanzando pelas<br />
povoações ribeirinhas do ribeirão do Barreiro: Barreirinho, Barra do<br />
Pindanhaçu, Carmo do Descampado e, certamente, Sacramento.<br />
As imagens se formaram rápidas e ligeiras como vinham refizeram com niti<strong>de</strong>z<br />
e doçura aventuras vividas aos quarenta e nove anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> quando ainda<br />
conservava a força e disposição <strong>de</strong> um mancebo, como se verá literalmente,<br />
quando for oportuno. Lembrava-se que, naquela viagem, tinha contraído uma<br />
doença que quase o <strong>de</strong>itara no escuro <strong>de</strong> uma cova muito antes da hora. Uma<br />
temporada inusitada <strong>de</strong> chuvas e torrentes transbordantes resultou no seu<br />
penoso isolamento por uma semana, abrigado em uma tosca palhoça, às<br />
margens <strong>de</strong> um afluente do ribeirão do Barreiro, comendo comida estragada e<br />
bebendo água barrenta. Resultou daí uma porca doença que, fora a<br />
humilhação <strong>dos</strong> <strong>de</strong>scontrola<strong>dos</strong> <strong>de</strong>jetos, carcomeu suas forças, roendo a<br />
sempre boa saú<strong>de</strong> antes que ele conseguisse chegar a Sacramento e tentasse<br />
se por a salvo daquele solerte perigo. Ali se reteve por algumas semanas,<br />
hospedado na casa <strong>de</strong> um comerciante, seu cliente <strong>de</strong>vedor, sendo cuidado<br />
por sua mulher e uma <strong>de</strong>dicada e disponível criada. Sim, tinha boas<br />
lembranças daqueles cuida<strong>dos</strong> macios e perfuma<strong>dos</strong>. Sim, tinha boas e<br />
gratíssimas lembranças daquelas mulheres solitárias e solidárias, naquela casa<br />
sombria, on<strong>de</strong> os dias passavam sem nenhuma serventia e elas queriam<br />
resgatar parte do tempo perdido. Lembrava-se também que, cerca <strong>de</strong> três anos<br />
<strong>de</strong>pois, ao passar novamente pelo lugar, cheio <strong>de</strong> recordações e tardias<br />
gratidões acumuladas, não mais encontrou o comerciante, a mulher e nem a<br />
criada. Contaram que ele tinha se mudando, tomando rumo não sabido após<br />
<strong>de</strong>sfazer-se da loja por qualquer preço, como se precisasse sair apressado<br />
para acudir ou fugir <strong>de</strong> alguma coisa que ninguém soube o que era com<br />
certeza, mas todo mundo suspeitava e comentava em voz baixa. Ninguém lhe<br />
falou daquela suspeita, sendo ele só um forasteiro <strong>de</strong> passagem, nem um<br />
pouco benquisto como são os cobradores <strong>de</strong> dívidas que já <strong>de</strong>viam estar<br />
esquecidas. De sorte que, para ele, aquele história não <strong>de</strong>spertou maior<br />
interesse, preocupado que estava em cobrar as tais dívidas e encerrar <strong>de</strong> vez<br />
sua curta e agonizante carreira <strong>de</strong> negócios. E não mais se lembrou daquilo,<br />
nem da mulher do comerciante, nem da criada. Agora, repassando friamente<br />
esses fatos, a lembrança só serviu para Cedro Angélico concluir que<br />
realmente, o forasteiro estava no caminho certo. O finito não findara e ei-lo <strong>de</strong><br />
novo presente Mas não quis revelar ainda a possível existência <strong>de</strong> uma<br />
conexão entre ele e o passado do moço. Assim, assumindo uma postura <strong>de</strong><br />
cautela, resolveu aclarar melhor os <strong>de</strong>sdobramentos daquela situação que<br />
quebrara o seu cochilo naquela tar<strong>de</strong> morna e seca e que teria sido igual a<br />
inúmeras outras se não fosse o inci<strong>de</strong>nte da visita, por si só uma rarida<strong>de</strong>.<br />
13
- O que o faz acreditar que conheci seus pais – perguntou fingindo<br />
<strong>de</strong>sinteresse.<br />
O forasteiro, animado pela pergunta do velho, respon<strong>de</strong>u coloquial, como<br />
queria que fosse a conversa para mais tocar intimida<strong>de</strong>s:<br />
- Bem, pouco antes <strong>de</strong> finar-se, a mulher que me criou, <strong>de</strong>u-me uma<br />
informação importante que acabou por me trazer exato aqui. Ela me revelou o<br />
nome <strong>de</strong> meus pais e que eles viviam em Sacramento. Logo que me foi<br />
possível parti para aquela vila para apurar a revelação da moribunda. Mas,<br />
infelizmente não os encontrei. Vim a saber pelo pároco que lá vivia há mais <strong>de</strong><br />
cinqüenta anos, que eles se mudaram repentinamente do lugar. O velho padre<br />
- acrescentou o visitante - comentou que pouco se sabia <strong>de</strong>les pois pouco<br />
saiam, não freqüentavam a igreja e não se relacionavam socialmente com<br />
ninguém. Era, contudo, admirado e respeitado pela sua correção nas<br />
transações comerciais que fazia.<br />
Nesse ponto o recém-chegado fez pequena pausa como se tivesse apreciado<br />
aquela referência feita sobre o suposto pai. Em seguida retomou a narrativa:<br />
- Na verda<strong>de</strong>, o bom padre não me contou muita coisa, mas duas <strong>de</strong> suas<br />
informações se revelaram preciosas e acabaram por me trazer até o senhor<br />
com essa feliz precisão. Contou-me que a única pessoa que tivera uma relação<br />
mais próxima ao casal fora um viajante que com eles morou algumas semanas,<br />
se recuperando <strong>de</strong> uma doença perigosa. Contou-me, ainda, que no lugar on<strong>de</strong><br />
funcionou a loja <strong>de</strong> meu pai, havia agora uma selaria cujo dono comprara<br />
também alguns móveis e utensílios do antigo ocupante.<br />
O velho ouvia atentamente a narração do forasteiro tentando <strong>de</strong>finir <strong>de</strong> que<br />
forma <strong>de</strong>veria reagir, gerindo a intromissão.<br />
Subitamente, o jovem alteou propositadamente a voz, como se quisesse<br />
sublinhar o que dizia, olhou diretamente nos olhos do velho e exclamou:<br />
- Sei que aquele viajante era o senhor.<br />
- Porque tem tanta certeza - retrucou <strong>de</strong>safiante Cedro Angélico – um pouco<br />
incomodado com aquela contundência.<br />
O homem, como se já esperasse aquela reação continuou, aparentando calma:<br />
- Porque naquela selaria encontrei um baú da antiga loja <strong>de</strong> meu pai on<strong>de</strong><br />
estavam guarda<strong>dos</strong> papéis velhos com registros <strong>de</strong> compras, vendas e<br />
pagamentos. Os papeis mais recentes eram recibos <strong>de</strong> pagamento <strong>de</strong> dívidas<br />
datadas e assinadas pelo senhor. As datas são consistentes com a minha<br />
<strong>de</strong>dução<br />
14
Isso dito, o visitante enfiou a mão no alforje que pendia ao lado da ca<strong>de</strong>ira,<br />
cavacou o fundo e sacou, num gesto quase agressivo, um maço <strong>de</strong> papéis<br />
amarela<strong>dos</strong> pelo tempo e a umida<strong>de</strong> e, num misto <strong>de</strong> receio e <strong>de</strong>safio, exibiu-o<br />
ao velho. O octogenário, sem pegar no pacote <strong>de</strong> papeis amarra<strong>dos</strong> com um<br />
barbante encardido, inclinou-se, apertou os olhos como se procurasse ajustar o<br />
foco da visão e pô<strong>de</strong> ler no cabeçalho <strong>de</strong> um <strong>de</strong>les:<br />
“Sucupira Nemélio & Cedro Cedrus – Socieda<strong>de</strong> Comercial”<br />
Aquela evidência acintosa aborreceu o velho, esfriando o entendimento.<br />
Sentiu-se verda<strong>de</strong>iramente acuado. Como pô<strong>de</strong> o rapaz localizá-lo com base<br />
em tão remoto indício? Ainda mais tendo mudado <strong>de</strong> nome. Sentiu-se<br />
fragilizado, sem condições <strong>de</strong> manipular os cordéis da cena como gostaria.<br />
Tossiu, raspou a garganta, esperou o rapaz guardar os papéis, levantou-se<br />
lentamente, <strong>de</strong>u alguns passos em direção à cuspi<strong>de</strong>ira, escarrou<br />
rui<strong>dos</strong>amente como se procurasse aliviar seu constrangimento, compensandoo<br />
com a ansieda<strong>de</strong> que aqueles minutos <strong>de</strong> espera certamente provocariam no<br />
forasteiro.<br />
O moço esfregou as mãos, acompanhou os gestos do ancião e procurou uma<br />
outra posição contra o assento da ca<strong>de</strong>ira, abrandando o olhar, sem saber o<br />
que dizer.<br />
Percebendo o <strong>de</strong>sconforto e receio <strong>dos</strong> <strong>de</strong>sdobramentos <strong>dos</strong> acontecimentos<br />
estampado nos discretos movimentos <strong>de</strong> seu interlocutor, o velho se sentiu<br />
novamente no comando da situação e suficientemente seguro para dar<br />
seqüência a um plano que lhe fermentava na mente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que percebera a<br />
ânsia e a força <strong>dos</strong> motivos íntimos do visitante e do seu <strong>de</strong>sejo manifesto. Ali<br />
estava alguém <strong>de</strong>sperdiçando o presente, tentando abrir o futuro com as<br />
chaves do passado Com muita disposição, muita ansieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>bilitando da<br />
razão.<br />
Caminhou <strong>de</strong> volta à sua ca<strong>de</strong>ira, sentou-se e exclamou solenemente:<br />
- Sim, <strong>de</strong> fato eu conheci seus pais e posso ajudá-lo a saber algumas coisas do<br />
seu passado, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o começo <strong>de</strong> tudo.<br />
Essas palavras fizeram com que o moço suspirasse fundo e relaxasse os<br />
músculos <strong>de</strong> corpo como se merecesse alguns segun<strong>dos</strong> <strong>de</strong> repouso por uma,<br />
possível, bem sucedida empreitada. Aguardou, sem qualquer reação, numa<br />
pausa como que também imposta por algum receio <strong>de</strong> que o velho pu<strong>de</strong>sse<br />
recuar da disposição positiva que acabara <strong>de</strong> lhe passar.<br />
Falou pausada e cuida<strong>dos</strong>amente, escolhendo as palavras.<br />
- Não quero ofendê-lo senhor, mas <strong>de</strong>ntro das minhas posses estou disposto a<br />
recompensá-lo, ou a quem o senhor indicar, por uma informação ou algo que<br />
me aju<strong>de</strong> a aclarar melhor o meu passado.<br />
15
Esse dito fez velho sorrir um sorriso manifesto, discreto contudo, mas <strong>de</strong><br />
triunfo, como se <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início tivesse por objetivo exatamente provocar tais<br />
palavras em seu interlocutor.<br />
- Na verda<strong>de</strong>, eu não posso dizer, com proprieda<strong>de</strong>, que convivi com seus pais.<br />
Foram apenas duas semanas, mas, <strong>de</strong> fato, foi tempo suficiente para criar uma<br />
amiza<strong>de</strong> que se fortaleceu com algumas passagens posteriores por<br />
Sacramento.<br />
Ditas essas palavras, cheias <strong>de</strong> meias verda<strong>de</strong>s, o ancião fez uma pausa,<br />
como se buscasse cauteloso o que <strong>de</strong>via seguir dizendo. O forasteiro<br />
permaneceu atento, temendo que pu<strong>de</strong>sse vir a per<strong>de</strong>r algum ponto da<br />
narrativa. O octogenário continuou, aumentando as mentiras:<br />
- Fui muito grato a eles pelo tratamento que me <strong>de</strong>ram por conta <strong>de</strong> uma<br />
fraqueza <strong>de</strong> doença que me abateu longe <strong>de</strong> casa e <strong>de</strong> cuida<strong>dos</strong> verda<strong>de</strong>iros.<br />
Acho que foi uma convivência curta mas muito intensa e que atou laços entre<br />
nós. Tanto que, ao partir, recebi <strong>de</strong> seus pais uma inestimável lembrança que<br />
tem me acompanhado to<strong>dos</strong> esses anos e que guardo com reverência e preito<br />
<strong>de</strong> gratidão entalhada.<br />
- Então o senhor tem algo que lhes pertenceu - inquiriu o moço excitado,<br />
cortando a narrativa e cravando os olhos no velho.<br />
Cedro Angélico levantou-se novamente. Com uma trinca <strong>de</strong> passos<br />
ca<strong>de</strong>ncia<strong>dos</strong> andou lentamente até a pare<strong>de</strong> ao lado da porta da entrada da<br />
sala, sentiu os olhos do forasteiro segui-lo, parou a meio metro da pare<strong>de</strong> e<br />
voltou-se teatral.<br />
- Vê esse retrato - disse apontando um <strong>dos</strong> quadros <strong>de</strong>pendura<strong>dos</strong> nas<br />
pare<strong>de</strong>s da sala. Uma velha moldura on<strong>de</strong> se via um casal contra um fundo<br />
azul <strong>de</strong>scorado, colorido à mão com água <strong>de</strong> molho <strong>de</strong> papel crepom.<br />
O forasteiro apontou os olhos na direção indicada, fixou o olhar com<br />
curiosida<strong>de</strong> sobre o objeto e aguardou a seqüência.<br />
O velho olhou o chão alguns segun<strong>dos</strong>. Em seguida alçou a cabeça e sem fitar<br />
nada em particular exclamou em tom levemente dramático:<br />
- São seus pais!<br />
Ao ouvir estas palavras o homem <strong>de</strong>u um salto, se pôs <strong>de</strong> pé e avançou em<br />
direção à pare<strong>de</strong>. Arrancou o quadro com uma certa valentia e passou a<br />
contemplá-lo com reverência. Em seguida, voltou-se para o velho que<br />
permanecia ao lado, fitou-o resoluto e exclamou:<br />
16
- Isso é mais do que eu esperava encontrar.<br />
Não obteve nenhum retorno. A sala ficou algum tempo em silêncio. O forasteiro<br />
extasiado olhando o quadro e o velho fingindo olhar o infinito fora da sala.<br />
Corrido o tempo em que se julgou seguro para propor o que vinha preparando,<br />
Cedro Angélico, atravessou a sala, sentou-se em sua ca<strong>de</strong>ira solene e falou<br />
com a voz impostada, como pô<strong>de</strong>:<br />
- Essa é a única lembrança que tenho <strong>de</strong>les e, infelizmente, não posso dispor<br />
<strong>de</strong>la.<br />
O forasteiro replicou, incontinente, com uma serenida<strong>de</strong> que surpreen<strong>de</strong>u seu<br />
interlocutor:<br />
- Sei que o senhor tinha gran<strong>de</strong> apreço pelos meus pais e creio que eles<br />
sentiam o mesmo pelo senhor, mas, com todo respeito, creio que tenho mais<br />
direito à única lembrança que restou <strong>de</strong>les e que para mim tem o peso <strong>de</strong> uma<br />
relíquia. Além disso estou disposto a recompensá-lo como anunciei.<br />
Isso dito e, sem esperar resposta, abriu a guaiaca, tirou um maço gordo <strong>de</strong><br />
notas, colocou-o sobre a mesa e aguardou a reação do outro.<br />
- Não posso aceitar isso, exclamou o ancião. Se você consi<strong>de</strong>ra que tem<br />
direitos sobre o quadro nem tem que pagar por ele.<br />
- Sim, mas gostaria <strong>de</strong> recompensá-lo até como uma ajuda <strong>de</strong>sinteressada em<br />
nome <strong>dos</strong> laços que, <strong>de</strong> alguma forma, há muito nos une.<br />
De fato os unia, como eu disse <strong>de</strong> passagem, fortes laços <strong>de</strong> sangue, mas isso<br />
não vem agora ter nenhuma pertinência. Assim o velho guardou silêncio, pois<br />
pensava em outra coisa, relegando os <strong>de</strong>talhes daquela mesma história<br />
passada em Sacramento há trinta anos e que, como dito, veremos <strong>de</strong>pois.<br />
O homem esperou alguns segun<strong>dos</strong> ansiosos e, após enten<strong>de</strong>r que o silêncio<br />
do outro significava aprovação, avançou sobre ele esten<strong>de</strong>u a mão que foi<br />
prontamente aceita e apertada com vigor. Em seguida Jequitibá Malesco sorriu,<br />
no que foi seguido pelo ancião. Agachou-se, apanhou o alforje que jazia no<br />
chão, ao lado da ca<strong>de</strong>ira, <strong>de</strong>u um giro para trás à medida que se erguia e,<br />
ainda sorrindo, esticou quatro largos e ágeis passos em direção a porta<br />
levando o retrato apertado contra o peito. Ganhou a clarida<strong>de</strong> do alpendre e o<br />
calor ensolarado que ensopava o jardim. Depois, um tropel indicou que se ia. O<br />
velho permaneceu sorrindo e mudo e assim ficou por mais um tempo até que o<br />
ruído do galope do cavalo do homem, <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser ouvido.<br />
- Cá ! - Gritou olhando em direção a porta que, entre duas janelas iluminadas<br />
pela luz do dia, se abria para o escuro da parte interna e mais encalorada da<br />
casa, bem no rumo <strong>dos</strong> raios do sol daquela hora.<br />
17
Aguardou alguns segun<strong>dos</strong> e não obtendo resposta repetiu o chamamento,<br />
agora já com certa impaciência.<br />
Mais alguns segun<strong>dos</strong> e surgiu, sala a<strong>de</strong>ntro, uma jovem <strong>de</strong> pouco mais <strong>de</strong><br />
trinta anos, com os cabelos pretos que, se não estivessem conti<strong>dos</strong> por um<br />
laço <strong>de</strong> fita amarrado na parte posterior da cabeça, lhe chegaria até a cintura<br />
num jeito meio cigano. Era Camélia Veltum doce companheira da velhice <strong>de</strong><br />
Cedro Angélico. As mulheres sempre foram para ele simples objetos <strong>de</strong> prazer<br />
postos no mundo para saciar divinos <strong>de</strong>sejos, mas não agora. Agora <strong>de</strong>pendia<br />
singelamente <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>las para ter um mínimo <strong>de</strong> consolo e proteção. É a<br />
mecânica da vida pondo as coisas no lugar no seu tempo <strong>de</strong>vido.<br />
- O que foi ? - exclamou a moça. - Não sabia que você estava acordado, lavava<br />
roupa no à beira <strong>de</strong> cisterna.<br />
- Ora mulher, você não percebeu que eu tinha uma visita?<br />
- Na verda<strong>de</strong> sim, e até estranhei, mas não quis aparecer e fui pro fundo do<br />
quintal. O que foi ?<br />
A essa pergunta o ancião não respon<strong>de</strong>u <strong>de</strong> imediato. Esticou lentamente as<br />
pernas. Espreguiçou como se estivesse acabando <strong>de</strong> acordar, ampliou o<br />
mesmo sorriso que já durava alguns minutos e apontou a pare<strong>de</strong> on<strong>de</strong> uma<br />
mancha mais clara no formato do quadro que acabara <strong>de</strong> ser levado, marcava<br />
sua longa permanência naquele lugar, ao tempo em que <strong>de</strong>nunciava a sua<br />
ausência.<br />
- Lembra daquele quadro que já encontramos aqui quando mudamos pra cá ?<br />
- Sim, alguém o esqueceu na pare<strong>de</strong> ou não o quis levar quando mudou daqui<br />
On<strong>de</strong> está ele ? – perguntou a jovem.<br />
- Foi bom não termos jogado ele fora pois acabo <strong>de</strong> vendê-lo por bom dinheiro -<br />
disse o velho, apontando o maço <strong>de</strong> notas que ainda jazia sobre a mesa.<br />
- Como - retrucou Camélia Veltum, surpresa. Como alguém po<strong>de</strong>ria querer<br />
comprar aquela coisa velha?<br />
- É uma historia que agora não interessa. Alguém achou que ele valia, pagou<br />
por ele e até ficou muito feliz pois satisfez uma vonta<strong>de</strong> antiga. As pessoas<br />
pagam pelos <strong>de</strong>sejos que têm, lembra-se?<br />
- Veja – disse, apontando novamente o maço <strong>de</strong> notas. Quanto será que tem<br />
aí?<br />
18
A moça estranhou que ele não soubesse, mas nada perguntou. Pegou o<br />
dinheiro, examinou, passou cuida<strong>dos</strong>amente nota por nota escorregando-as<br />
entre os <strong>de</strong><strong>dos</strong>, contou e se entusiasmou com o resultado.<br />
- É uma loucura alguém pagar esse dinheiro todo por um quadro velho <strong>de</strong> uma<br />
gente antiga que ninguém conhece.<br />
- Sabe <strong>de</strong> uma coisa – completou o octogenário – estamos to<strong>dos</strong> felizes, eu,<br />
você e, principalmente, o novo dono do quadro. Vamos à vila comemorar,<br />
comprar algumas coisas e festejar que isso anda raro e não po<strong>de</strong> ser assim<br />
quando não precisa. Vai trocar <strong>de</strong> roupa, que o carroção do Imbé Cáltio não<br />
<strong>de</strong>mora a aparecer, no rumo do povoado, na hora <strong>de</strong> sempre.<br />
Referia-se ao único meio <strong>de</strong> transporte disponível e que, a cada dois dias, com<br />
bastante pontualida<strong>de</strong>, passava por ali a caminho da vila que ficava a cerca <strong>de</strong><br />
duas léguas do sítio, serra abaixo numa estrada poeirenta e cheia <strong>de</strong> curvas.<br />
- Verda<strong>de</strong>, que boa coincidência – exclamou a moça alegre, seu sentimento<br />
mais raro -. Não <strong>de</strong>moro nem um pouco.<br />
Isso dito sumiu rapidamente pela porta <strong>de</strong> on<strong>de</strong> tinha saído, meia dúzia <strong>de</strong><br />
minutos antes.<br />
Cedro Angélico acompanhou a retirada da moça com um movimento brando <strong>de</strong><br />
cabeça e continuou a manter o olhar na sua direção, mesmo alguns segun<strong>dos</strong><br />
após ela <strong>de</strong>saparecer porta a<strong>de</strong>ntro. Em seguida esten<strong>de</strong>u a mão sobre a<br />
mesa e apanhou o maço <strong>de</strong> notas, sentido nos <strong>de</strong><strong>dos</strong> o prazer do tato com<br />
toda aquela preciosa aspereza. Olhou-o, fechou a mão sobre ele e pousou-o<br />
sobre o colo satisfeito. Recostou-se melhor sobre a ca<strong>de</strong>ira cardinalícia,<br />
reclinou a cabeça levemente para trás buscando um apoio mais confortável<br />
sobre o espaldar majestoso. Olhou o horizonte que se estendia no quintal entre<br />
os fun<strong>dos</strong> da janela e ficou sorrindo. Continuou assim, pensando nas<br />
fragilida<strong>de</strong>s do <strong>de</strong>sejo, quando mal usado, <strong>de</strong>slocado <strong>de</strong> contexto.<br />
Passa<strong>dos</strong> alguns minutos, a moça reentrou na sala animada, farfalhando um<br />
vestido rodado que varria os móveis próximos a cada movimento seu,<br />
locomovendo-se entre eles, em direção ao velho.<br />
- Estou pronta - exclamou com entusiasmo, postando-se frente ao outro.<br />
- Vamos <strong>de</strong>scendo que não temos muito tempo, completou.<br />
Apanhou o paletó e o chapéu que se encontravam joga<strong>dos</strong> sobre o assento da<br />
poltrona <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> veludo ver<strong>de</strong> e esten<strong>de</strong>u-os ao homem. Ele continuou<br />
imóvel olhando o horizonte pós-janela do quintal e sorrindo. A moça repetiu o<br />
movimento, imprimindo-lhe também um sacolejo. Mais uma vez não obteve<br />
qualquer reação. Assustada jogou as roupas para o lado, inclinou-se aflita e<br />
sacudiu o velho. Em princípio apenas assustada e em seguida soluçando e<br />
19
espirando forte como se o ar da sala começasse <strong>de</strong> repente a faltar. O velho<br />
continuou sorrindo e mirando o infinito. Estava inteira, completa e<br />
irremediavelmente morto. E mereceu morrer sorrindo. Afinal, viveu uma vida<br />
inesperada e morreu oitenta anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma vi<strong>de</strong>nte vaticinar que ele, por<br />
ser o fruto torto <strong>de</strong> uma paixão pecaminosa, não viveria mais do que alguns<br />
poucos anos. Mas, em compensação, teria a graça <strong>de</strong> morrer anjinho, poupado<br />
<strong>de</strong> penar nos rios caudalosos do inferno. Ele dispensou <strong>de</strong> morrer anjinho com<br />
toda a convicção, mas on<strong>de</strong> está agora eu não sei.<br />
SEGUNDA PARTE<br />
Naqueles lugares ermos vivia-se à espera <strong>de</strong> que o calendário católico<br />
apostólico romano se cumprisse. E ele se cumpria e tornava a se cumprir no<br />
ano seguinte e no próximo e no subseqüente e assim... Até o dia em que cada<br />
um, fiado no crédito acumulado em tanta pertinência, se visse na presença do<br />
próprio Deus, em pessoa, cobrando o débito, acertando o saldo e justiçando os<br />
infiéis. Tempo certo <strong>de</strong> coisas inexoravelmente certas. Assim, naqueles<br />
tempos, as festas religiosas eram coisas especiais cuja espera podia dar algum<br />
sentido à sucessão monótona <strong>de</strong> dias, semanas e meses, embala<strong>dos</strong> no<br />
mecanismo regular e eterno do universo. A natureza cumpria seu ciclo com<br />
zelo, sem muita violação. Chovia no tempo da chuva, secava no tempo do sol,<br />
ventava no tempo do vento, floria no tempo do cio. Mas, no meio <strong>de</strong> tudo isso,<br />
ditosas celebrações. Dia da padroeira, novena da Santa Virgem, a benção <strong>dos</strong><br />
animais e outros muitos ritos comunitários igualmente aguarda<strong>dos</strong>, posto que<br />
em incertas datas, <strong>de</strong> morte, <strong>de</strong> bodas e <strong>de</strong> nascença. As nascenças não eram<br />
tão incertas assim, visto que se acumulavam todas numa época só, pois as<br />
mulheres daqueles lugares só pariam na primavera. Desta forma, na estação<br />
das flores era uma só festa. Fora disso, contudo, a alegria vinha entremeada<br />
<strong>de</strong> tristezas, <strong>de</strong>scontando as bodas que prenunciavam o florescer.<br />
Mas, às vezes, embora também fossem minuciosamente esperadas, coisas<br />
incomuns aconteciam e quebravam o ritmo monocórdio da existência. Como<br />
quanto os ciganos vinham do sul para prever o futuro e enchiam os lugarejos<br />
<strong>de</strong> curiosida<strong>de</strong> e medo, submetendo a fragilida<strong>de</strong> das almas. Ou quando as<br />
atrizes <strong>de</strong> alvos colos oferta<strong>dos</strong> na ban<strong>de</strong>ja <strong>dos</strong> <strong>de</strong>cotes, vinham do norte para<br />
representar suas comédias recheadas <strong>de</strong> expressões em um francês lindo e<br />
suspeito.<br />
Do lado leste é que vinham os circos. Quatro companhias diferentes, se<br />
revezando a cada dois anos, numa or<strong>de</strong>m regular e obediente como se<br />
houvesse um acordo entre elas. O ritual da vinda e da preparação era sempre<br />
o mesmo, mas nunca perdia o jeito <strong>de</strong> novida<strong>de</strong> que, se não fosse, por<br />
novida<strong>de</strong> passaria, pelo menos no <strong>de</strong>talhe da pessoa ou da vestimenta.<br />
Primeiro os lugarejos acordavam e em, excitada surpresa, encontravam os<br />
muros brancos cheios <strong>de</strong> cartazes colori<strong>dos</strong> anunciando as gran<strong>de</strong>s atrações e<br />
a data da estréia. Aí o povo já se envolvia e o assunto não podia ser mais<br />
20
outro. Depois chegava o cortejo avançado <strong>dos</strong> artistas, vesti<strong>dos</strong> a caráter,<br />
exibindo passagens <strong>de</strong> algumas das mais apreciadas performances, seduzindo<br />
o lado lúdico das pessoas, mesmo as mais sérias. Depois vinha a atração extra<br />
<strong>de</strong> acompanhar a montagem do acampamento, o erguer da lona, o trato <strong>dos</strong><br />
animais e a espiada nas canelas das mulheres do elenco, com freqüência<br />
postas à mostra no sentar e na rodada das saias. Mulheres radiantes, doces e<br />
fictícias, sempre abertas e cheias <strong>de</strong> sol, como não as eram as outras do lugar,<br />
comuns e sem graça no que lhes era exigido das suas obrigações conjugais.<br />
No meio <strong>de</strong> tanta mágica a juventu<strong>de</strong> pairava no elenco <strong>dos</strong> circos, pois as<br />
filhas sucediam as mães que já tinham sucedido as avós, e eram iguais e<br />
maravilhosas estacionadas do tempo.<br />
O circo enchia <strong>de</strong> magia e mudava o sentido do dia-a-dia naquelas plagas<br />
sonolentas on<strong>de</strong> as horas pingavam em cada parte do dia, escorregando<br />
pegajosas.<br />
Foi assim naquela manhã em Chapadão <strong>de</strong> Deserda<strong>dos</strong> quando o circo<br />
chegou. Amanheceu cinzento, abafado na <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> carregada das nuvens.<br />
Uma chuva insistente lavou a noite a noite toda, liquefazendo os sonos e<br />
trazendo a natureza pra <strong>de</strong>baixo <strong>dos</strong> lençóis e <strong>de</strong>sconfortando. O amanhecer<br />
encontrou a povoação coberta <strong>dos</strong> cartazes do circo, silenciosa e<br />
sorrateiramente coloca<strong>dos</strong> durante a noite para parecer que algo <strong>de</strong> realmente<br />
mágico havia acontecido. E mais, naquelas circunstâncias, isso <strong>de</strong> fato<br />
pareceu, pois ninguém podia imaginar que algum ser vivente e racional<br />
pu<strong>de</strong>sse se dispor a colar aqueles cartazes <strong>de</strong>baixo do aguaceiro que<br />
prece<strong>de</strong>u o dia. Talvez homens peixes houvesse, mesmo sem serem atração<br />
no pica<strong>de</strong>iro. Mágicos ou não, lá estavam os cartazes molha<strong>dos</strong> mas firmes,<br />
prenunciando a chegada do admirado Circo Espanhol, prometendo uma vez<br />
mais, atrações nunca vistas nas passagens passadas. Quiçá, imaginadas<br />
sequer, pela originalida<strong>de</strong> da criação. A mulher que vira homem em pleno<br />
pica<strong>de</strong>iro, a ema que come fogo, a cobra que assovia e, mui especialmente, o<br />
homem que voa, planando no espaço e arrostando o perigo da gravida<strong>de</strong> sem<br />
nenhuma proteção. Variado e inusitado espetáculo a merecer prioritária<br />
atenção daquela comunida<strong>de</strong>. Nem precisava <strong>de</strong> tal apelo, sendo sempre bem<br />
vindo o que quebrava a rotina e a disciplina embutida. E isso se dava ligeiro e<br />
facilitado pela conivência geral. De imediato o conselho <strong>dos</strong> notáveis <strong>de</strong>spe a<br />
toga, o chapelão e a sotaina e convoca urgente reunião para revisão do<br />
calendário das novenas e assembléias. As datas são rapidamente acomodadas<br />
para o que contam com as complacências <strong>dos</strong> patronos e comadres. O mesmo<br />
fazem as moças com o programa <strong>de</strong> saraus. Enfim, por uns tempos se adiam<br />
os compromissos, mesmo os políticos e os da alma. E o lugarejo mergulha nos<br />
seus magníficos e raros tempos <strong>de</strong> prestidigitação e <strong>de</strong> encantamento, na beira<br />
do irreal. É assim entre os gran<strong>de</strong>s e os pequenos, irmana<strong>dos</strong> na mesma<br />
meninice.<br />
É assim na casa da viúva do dr. Umbuzeiro Cedrus, também. A noticia da<br />
chegada do circo encontra a família inteiramente envolvida com os preparativos<br />
21
finais para a entrega <strong>de</strong>finitiva da filha única, prometida ao serviço <strong>de</strong> Deus<br />
como freirinha pie<strong>dos</strong>a. Disposta para servi-lo até o último <strong>de</strong> seus dias nessa<br />
vida passageira, plena <strong>de</strong> sofrimento, engano e <strong>de</strong>silusão. Incômoda mas<br />
acomodável coincidência do divino e do profano pois a viúva do dr. Umbuzeiro<br />
sabe distanciar as portas <strong>dos</strong> paraísos, os breves e os perenes. Deus, por<br />
certo há <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r que, mesmo a mais pie<strong>dos</strong>a das famílias, posto que<br />
contemplada por graça <strong>de</strong>le mesmo com distinta posição e apreço social,<br />
precisa estar a altura da gala das noites raras que se avizinham. E assim, baús<br />
antigos são abertos e revira<strong>dos</strong> à cata <strong>de</strong> não menos antigas roupas,<br />
cuida<strong>dos</strong>amente guardadas para essas festas mundanas. É preciso, porém,<br />
não repetir o traje da última temporada, no ano que passou. Um recorte <strong>de</strong> gola<br />
modificado, uma manga encurtada, uma renda renovada. Uma tintura com<br />
cores novas da moda. O máximo para dar figura nova aos trajes reforma<strong>dos</strong> e<br />
assim escapar da arguta perspicácia própria <strong>dos</strong> vizinhos invejosos, como são<br />
to<strong>dos</strong> nos lugares lugarejos, e nos outros também que a vaida<strong>de</strong> se expan<strong>de</strong><br />
conforme o espaço que tem, seja muito ou não.<br />
Açucena Cedrus – a noivinha <strong>de</strong> Jesus, minha doce personagem - tem aceso<br />
nos olhos um brilho <strong>de</strong> <strong>de</strong>spudorada alegria. Como se lhe tivessem arranjado,<br />
<strong>de</strong> surpresa, um prêmio <strong>de</strong> <strong>de</strong>spedida do lado alegre da vida. Foi assim que a<br />
filha única do dr. Umbuzeiro e <strong>de</strong> d. Violeta acolheu aquela inesperada situação<br />
na sua alma em preparo para longa reclusão, contemplando os mistérios<br />
divinos e agasalhando no colo os sofrimentos alheios. E foi assim que não<br />
sentiu remorso <strong>de</strong> ainda se sentir presa às levianda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sse mundo. A mãe,<br />
contudo, como mãe, se incomoda, receosa <strong>de</strong> que a mudança <strong>de</strong> priorida<strong>de</strong>s<br />
na cabeça da menina, ainda que justificada e efêmera, possa prejudicar a<br />
preparação novicial o que, até então, vinha concentrando alegremente a labuta<br />
do gineceu das Cedrus, reforçado pela ajuda <strong>de</strong> tias, madrinhas e vizinhas<br />
solitárias, todas no mesmo lugar cortando e costurando. Mas é preciso cautela<br />
com os impulsos da ida<strong>de</strong>, bem sabe a venerável senhora, às vésperas <strong>de</strong><br />
con<strong>de</strong>nar a filha a preservar-se num convento pelo resto da vida, à salvo das<br />
poeiras profanas <strong>de</strong>sse mundo. Interpelada docemente a jovem se mostra<br />
firmemente convencida <strong>de</strong> que há <strong>de</strong> se cumprir o seu <strong>de</strong>stino, prometida a<br />
Deus <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que a extemporânea e complicada gestação que a formara a tinha<br />
ameaçado <strong>de</strong> nunca botar os olhos negros nas luzes <strong>de</strong>sse mundo. Mas Deus<br />
aten<strong>de</strong>u às <strong>de</strong>sesperadas preces da família e Açucena Cedrus nasceu toda<br />
floral <strong>de</strong> parto sereno, viçosa e saudável como ao Senhor fora implorado,<br />
marcada <strong>de</strong> venial pecado e com o futuro traçado por divino compromisso,<br />
como freira. Isso há <strong>de</strong> se cumprir, reforça em fé sua mãe, conivente e<br />
confiante pois paciente é o seu Deus e sabe do seu triunfo nessa luta singela<br />
entre o gozo e a penitência <strong>de</strong> inocente menina. Mas não foi <strong>de</strong>sse modo,<br />
como iremos contar, no lugar apropriado.<br />
Naqueles dias as coisas correram assim na casa austera <strong>dos</strong> Cedrus, com as<br />
almas em harmonia para o sagrado e o mundano. Raros dias, perpassa<strong>dos</strong> <strong>de</strong><br />
espera ansiosa pela estréia do circo antes das portas do claustro. E não pára a<br />
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faina no gineceu excitado. Uma costura divina, um alinhavo sagrado, camisolão<br />
<strong>de</strong> baeta, uma rendilha brilhante, um brocado <strong>de</strong> seda, um bordado vai<strong>dos</strong>o,<br />
um veludo escarlate. Mas as coisas não se misturam entre o hábito <strong>de</strong> freira e<br />
a toalete do circo. Seguem bem as tarefas duas, pra <strong>de</strong>leite <strong>de</strong> Açucena e<br />
tranqüilida<strong>de</strong> da mãe.<br />
Assim passam, dias poucos mas mais lentos que <strong>de</strong> costume, na lentidão <strong>dos</strong><br />
costumes <strong>de</strong> Chapadão <strong>de</strong> Deserda<strong>dos</strong>.<br />
Mas finalmente é final <strong>de</strong> uma tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> domingo, quente e especial como<br />
poucos. As obrigações dominicais já ficaram pra trás zelosamente cumpridas,<br />
Deus e o estômago sacia<strong>dos</strong> com contrição e <strong>de</strong>cência. Então, tendo atrás <strong>de</strong><br />
si o céu avermelhado pelo sol que não agoniza mas foge, d. Violeta vai<br />
vencendo rua acima a meia légua que separa sua casa do Alto do<br />
Descampado, coberto <strong>de</strong> ralo pasto on<strong>de</strong> se ergue a lona vistosa do circo<br />
maculando o horizonte azulado escorado numa pare<strong>de</strong> <strong>de</strong> pene<strong>dos</strong> colossais,<br />
guarnecendo o vale. Iluminada pela luz tremulante <strong>de</strong> centenas <strong>de</strong> lampiões<br />
suspensos em seu interior, o circo parece um imenso balão pronto a subir pelo<br />
céu <strong>de</strong> veludo azul em matizes <strong>de</strong> escuros crescentes rumo as grimpas do<br />
infinito. Tomando pelo braço a filha, a viúva do dr. Cedrus caminha solene,<br />
cumprimentando com um movimento <strong>de</strong> cabeça, num discreto risco vertical, os<br />
passantes e vizinhos. Posta<strong>dos</strong> em alpendres e janelas, os i<strong>dos</strong>os, entreva<strong>dos</strong>,<br />
<strong>de</strong>serda<strong>dos</strong> ou simplesmente <strong>de</strong>sacoroçoa<strong>dos</strong> observam como po<strong>de</strong>m e com<br />
os humores que lhes parecem justos, o cortejo rumo à lanterna chinesa <strong>de</strong><br />
lona. Poucos, porém, são os que se alhearam inteiramente ao apelo daquele<br />
maravilhoso evento sazonal e intruso, acolhido, contudo, com todo o<br />
<strong>de</strong>slumbramento.<br />
De forma lenta e or<strong>de</strong>nada a lona armada vai engolindo uma boa parte do<br />
povoado. Pequenos grupos se formam ao longo das passagens para<br />
cumprimentos e <strong>de</strong>mais ritos sociais, algumas vezes acresci<strong>dos</strong> <strong>de</strong> conti<strong>dos</strong><br />
cochichos sobre roupas, ancas e pelancas. O povo se move rumo ao alto do<br />
<strong>de</strong>scampado numa alegre procissão. Os assentos do circo vão sendo aos<br />
poucos ocupa<strong>dos</strong>. Algumas doridas pisadas, vassouradas <strong>de</strong> plumas e<br />
ameaçadas <strong>de</strong> bundas a um palmo do nariz não chegam a incomodar, pois<br />
predomina a alegria. Camarotes, ca<strong>de</strong>iras e poleiros vão acomodando a<br />
massa, conforme posses e posições conquistadas ou herdadas.<br />
Um camarote especial tinha sido reservado ao marquês <strong>dos</strong> Choupos, um<br />
fidalgo <strong>de</strong> antiga casa <strong>de</strong> França, exilado voluntário em Chapadão <strong>de</strong><br />
Deserda<strong>dos</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> quando a memória po<strong>de</strong> alcançar. Mas como sempre<br />
acontecia, ele não apareceu, reforçando a lenda do seu mundo <strong>de</strong> mistérios,<br />
isolado <strong>de</strong>sse nosso prosaico mundo e <strong>de</strong> seus seres comuns. Outro igual<br />
camarote foi <strong>de</strong>stinado a Sucupira Nemélio. E lá estava ele: gordo, cachaço<br />
corado, autorida<strong>de</strong> e homem mais abastado do <strong>de</strong>sabastado lugar, mercador<br />
<strong>de</strong> tudo, diamantes em primeiro lugar. Solteiro, não estava contudo sozinho.<br />
23
Mo<strong>de</strong>sto, gostava <strong>de</strong> compartilhar as benesses da sua riqueza e posição com<br />
outras li<strong>de</strong>ranças do lugar. Discreto, as conversas no camarote eram contidas e<br />
sussurradas, tratando <strong>dos</strong> interesses do povo que ele, por ser povo, nem<br />
precisava saber.<br />
D. Violeta, mais por obrigação <strong>de</strong> tradição social do que pelas posses<br />
<strong>de</strong>ca<strong>de</strong>ntes do presente, acomodou-se com a filha numa ala <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>iras bem<br />
situadas, a poucos metros do pesado cortinado azul que escondia os camarins,<br />
jaulas, geringonças e as outras intimida<strong>de</strong>s do circo, necessárias as rotinas que<br />
produziam, enfim, a magia do espetáculo pois esse, claro, <strong>de</strong>pendia <strong>de</strong> muita<br />
coisa banal.<br />
Acomoda<strong>dos</strong> os traseiros o vozerio aumentou. To<strong>dos</strong> se conhecem e querem<br />
saber notícias, mesmo quando já sabidas pois é pouco o repertório em vila tão<br />
modorrenta. Quinze minutos <strong>de</strong>pois do fim da ocupação já bate uma certa<br />
aflição por inexplicável <strong>de</strong>mora para início da sessão. Não dura muito mais,<br />
todavia. Surge o mestre da cerimônia com suas roupas vermelhas, jeito <strong>de</strong><br />
domador fracassado e, sobretudo, o pronunciado sotaque espanhol fluindo por<br />
sob o bigo<strong>de</strong> torcido e engomado. Anuncia a abertura da noite. Começa o<br />
espetáculo e as atrações prometidas nos cartazes e proclamas vão se<br />
suce<strong>de</strong>ndo com regularida<strong>de</strong> cumprindo o programa, <strong>de</strong>cepcionantes,<br />
indiferentes ou surpreen<strong>de</strong>ntes ao respeitável público, conforme o veredicto<br />
das palmas. Macacos, elefantes e leões, bailarinas e anões. Divertindo,<br />
emocionando, ou simplesmente enganando, honesta e docemente. E o melhor,<br />
com certeza, fica para o final. O número mais esperado. O show do trapézio, as<br />
peripécias do homem que voa. Este vou <strong>de</strong>screver no parágrafo seguinte com<br />
mais individuação.<br />
Feericamente precedido <strong>de</strong> aplausos excita<strong>dos</strong> pela crescente expectativa<br />
habilmente criada pelo apresentador, Castanheiro Fúlvio, o Pássaro <strong>de</strong><br />
Castela, a<strong>de</strong>ntrou o pica<strong>de</strong>iro. Correndo agilmente <strong>de</strong> um a outro lado, ergueu<br />
os braços segurando as pontas da capa cintilante, num gesto ritual e<br />
emblemático como se abrisse um par <strong>de</strong> asas po<strong>de</strong>rosas, causando inveja a<br />
Ícaro com suas asas postiças e mal ajambradas.<br />
Após alguns minutos <strong>de</strong> saudação ao público, sustenta<strong>dos</strong> pela força<br />
<strong>de</strong>crescente <strong>dos</strong> aplausos, o trapezista aproximou-se da corda pen<strong>de</strong>nte do<br />
trapézio e, num movimento ensaiado, <strong>de</strong>ixou cair a capa vermelha e brilhante<br />
que lhe cobria os ombros e se estendia até o meio das pernas adornadas por<br />
meias e sapatilhas azuis, tão ajustadas que pareciam parte do próprio corpo do<br />
homem. Agora sem a simbologia das asas, revela ao público o que realmente<br />
po<strong>de</strong> fazer voar um mamífero bípe<strong>de</strong> e implume: uma musculatura perfeita,<br />
paciente e sofridamente esculpida <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a adolescência, potenciando pernas e<br />
braços já gera<strong>dos</strong> para isso. No caso <strong>de</strong>le era diferente, mas isso se vê <strong>de</strong>pois,<br />
pois agora, nesse exato momento, o que nos importa nessa história é a reação<br />
<strong>de</strong> Açucena Cedrus e é a ele que passo. Devo contar que instantaneamente,<br />
<strong>de</strong> forma inexplicável e brusca, aquela visão máscula estilhaçou as <strong>de</strong>fesas<br />
24
mal formadas da filha querida <strong>de</strong> d. Violeta Cedrus e fez ferver os seus flui<strong>dos</strong><br />
<strong>de</strong> fêmea no estágio primário, mas nem por isso aprendiz. Verda<strong>de</strong>iramente,<br />
não era a primeira vez nos seus curtos <strong>de</strong>zenove anos <strong>de</strong> vida, mas era a mais<br />
intensa e estranha. Havia muita coisa nova concentrada, fervilhando quando<br />
não <strong>de</strong>via, dada a hora e o lugar. Ofegante, a moça apurou instintivamente os<br />
seus senti<strong>dos</strong> <strong>de</strong>spertos e os lançou penetrantes na direção da causa daquela<br />
ebulição involuntária, forte e natural. Mesmo a razoável mas bem vencida<br />
distância, perscrutou, apalpou, sentiu <strong>de</strong>talhes do corpo daquele homem,<br />
retesado sob a roupa colante, no esforço disciplinado <strong>de</strong> erguer-se pela corda,<br />
metros do chão, até o trapézio. Saliências e reentrância, vistas e imaginadas<br />
invadiram incontinente as intimida<strong>de</strong>s da menina. Simples <strong>de</strong>sejo ou amor à<br />
primeira vista? Não foi possível apurar naquele exato momento. Fato é que, <strong>de</strong><br />
repente, algo tinha vindo para ficar, mesmo em local tão impróprio a romances<br />
verda<strong>de</strong>iros.<br />
O trapezista espanhol, o homem voador, alheio à invasão que proporciona aos<br />
humores da moça, concentrou-se na sua perigosa e fútil tarefa. Alcançou o<br />
trapézio e se sentou sobre ele. Tomou impulso dobrando ritmado os joelhos,<br />
furando o ar com a ponta <strong>dos</strong> pés num crescente movimento <strong>de</strong> pêndulo. Uma,<br />
duas, várias vezes. Aos poucos vai aumentando o ritmo e elevando a<br />
ansieda<strong>de</strong> da multidão na mesma cadência. Minutos se passam nesse moto<br />
crescente, valente penetração fálica no ar. Atingida a velocida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sejada e<br />
medida com precisão, sob exclamações incontidas da platéia se lança ao vazio<br />
em contornos calcula<strong>dos</strong> em direção a outro trapézio em movimento parelho<br />
que outro trapezista tinha lançado a ele em tempo e distância perfeitos.<br />
Executava pela milésima vez, com o sucesso esperado, o terrível salto mortal<br />
triplo sem re<strong>de</strong> <strong>de</strong> proteção, a quinze metros do chão duro e pouco receptivo.<br />
Depois repetiu a façanha no sentido inverso, <strong>de</strong> um trapézio ao outro, com a<br />
mesma emoção, fascinando a platéia predisposta a ser fascinada e susceptível<br />
à emoção. Concluído o ansiado e breve lance da coreografia alada, ao som <strong>de</strong><br />
palmas entusiásticas e sinceras <strong>de</strong>sceu por uma corda com as pernas eretas<br />
na horizontal, sustentando todo o peso do corpo na força <strong>de</strong> mãos e braços.<br />
Tocou o chão e caminhou rápido rumo ao público, erguendo os punhos<br />
triunfantes. A moça respirou <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>scompassada quando ele avançou em<br />
sua direção sorri<strong>de</strong>nte. Parecia que ele agra<strong>de</strong>cia especialmente aos aplausos<br />
<strong>de</strong>la. Seus olhares pareceram a ela se cruzarem, ariscos e can<strong>de</strong>ntes. Sopros<br />
ingênuos <strong>de</strong> inesperada e fulminante paixão ou flamejante tentação a levam a<br />
sentir nesse glorioso <strong>de</strong>talhe uma espécie <strong>de</strong> secreta conivência aos frêmitos<br />
traiçoeiros <strong>de</strong> sua alma a Deus já prometida. Olhou para o lado, discreta,<br />
temendo que a mãe pu<strong>de</strong>sse ter percebido alguma coisa, especialmente seu<br />
<strong>de</strong>spudorado ofegar. D. Violeta, contudo, não podia dar conta <strong>de</strong> nada que ia à<br />
sua volta, distraída que estava com cada <strong>de</strong>talhe do número que o público<br />
reverenciava. Mas não seria, certamente, a perspicácia própria das mães <strong>de</strong><br />
filhas daquela ida<strong>de</strong> e condição que iriam conter os impulsos da jovem naquele<br />
precípuo instante. Não obstante o alheamento da mãe, procurava pelo menos,<br />
25
conter o entusiasmo das palmas. E aplaudiu como o faria alguém que<br />
aplaudisse por pura educação, sem nada <strong>de</strong> interesse, ignorando os<br />
empurrões que a alma lhe dava, inquieta.<br />
O trapezista agra<strong>de</strong>ceu por mais alguns segun<strong>dos</strong> os aplausos da platéia e<br />
saltitante, ao estilo afetado <strong>dos</strong> artistas <strong>de</strong> circo como era <strong>de</strong> fato, <strong>de</strong>sapareceu<br />
sob o <strong>dos</strong>sel das pesadas cortinas <strong>de</strong> veludo azul que fechavam o fundo do<br />
pica<strong>de</strong>iro num majestoso reposteiro. A banda atacou a peça musical requerida<br />
pelo momento <strong>de</strong> glória e um bando alvoroçado <strong>de</strong> palhaços, na sua função <strong>de</strong><br />
quebrar os resquícios da tensão do número do trapézio, se espalhou<br />
rapidamente, ocupando to<strong>dos</strong> os cantos do pica<strong>de</strong>iro. A cada queda ou<br />
bofetada <strong>dos</strong> bufões o público ria interagindo solidário e grato. E o bailado <strong>de</strong><br />
gestos previsíveis foi seguindo o seu curso conhecido até o fim, mas não sem<br />
fazer sucesso, pois to<strong>dos</strong> gostam <strong>de</strong> rir e se emocionar quando é próprio e era,<br />
pois to<strong>dos</strong> estavam ali atrás <strong>de</strong> alegria singela.<br />
Açucena Cedrus, já refeita <strong>dos</strong> frêmitos que o homem voador lhe causara,<br />
acompanhou mecanizada o resto do espetáculo. Mas, na verda<strong>de</strong>, nem se<br />
dava conta do que passava à frente <strong>dos</strong> seus olhos, sua mente bloqueada, sua<br />
alma em <strong>de</strong>salinho. Tem em marcas fincadas as imagens do número do<br />
trapezista e mais sua figura <strong>de</strong> Hércules e Adônis e o segredo <strong>de</strong> voar.<br />
Consultou o programa do espetáculo, recebido ao entrar e que, casualmente<br />
guardara no fundo da bolsa, então sem muito interesse pelo conteúdo. Mas<br />
agora não. Desdobrou o folheto ansiosa. Buscou i<strong>de</strong>ntificar aquele homem<br />
fascinante. Em <strong>de</strong>staque estava o nome, fácil <strong>de</strong> achar. O homem voador:<br />
Castanheiro Fúlvio - O Pássaro <strong>de</strong> Castela. A jovem pronunciou seu nome em<br />
silêncio. Sentiu ser capaz <strong>de</strong> penetrar incontinente na intimida<strong>de</strong> <strong>de</strong>le. E foi<br />
além e teceu uma banal novela que a ligava ao trapezista pelo resto <strong>de</strong> seus<br />
dias. Se viu vagando pelo mundo, ao estilo <strong>dos</strong> ciganos e da própria gente <strong>de</strong><br />
circo. Se viu embalando o berço. Se viu em contendas <strong>de</strong> amor, em perfume e<br />
suor; como <strong>de</strong>scrito nos romances proibi<strong>dos</strong>, zelosamente tranca<strong>dos</strong> nas<br />
estantes secretas da biblioteca <strong>dos</strong> Cedrus, ao dispor da sua se<strong>de</strong> <strong>de</strong> amor, <strong>de</strong><br />
aventura e <strong>de</strong> luxúria.<br />
Sua vida recriada num suspiro não dura, contudo, mais do que uma dúzia <strong>de</strong><br />
segun<strong>dos</strong> fugidios. Nem podia, por falta <strong>de</strong> lastro. Um toque suave no ombro a<br />
trás <strong>de</strong> volta à hora e ao lugar.<br />
- Foi tudo muito interessante, não foi? Perguntou a mãe, <strong>de</strong>stroçando a leveza<br />
do seu sonhar prematuro e atrevido.<br />
Percebeu então que o espetáculo já se encerrara e o mestre da cerimônia<br />
agra<strong>de</strong>cia a presença do público em nome <strong>de</strong> todo o elenco. Pos-se <strong>de</strong> pé,<br />
num salto, como se quisesse disfarçar seu alheamento e respon<strong>de</strong>:<br />
- Sim, minha mãe, foi o mais perfeito espetáculo que me lembro <strong>de</strong> já ter visto.<br />
26
A mãe não podia perceber o certo atrevimento da resposta. Isso fez a moça<br />
sorrir e completar:<br />
- Foi extremamente excitante.<br />
D. Violeta, surpreendida com a frase, já ia pedir explicações pelo emprego <strong>de</strong><br />
uma palavra que sempre lhe parecera um tanto imoral, quando foi interrompida<br />
por um grito da platéia, já semi<strong>de</strong>sfeita e que, admirada, apontava para o alto.<br />
A veneranda senhora, seguida por sua filha, olhou na direção apontada pelos<br />
tantos braços levanta<strong>dos</strong>. Um pássaro azul cruzou o alto do pica<strong>de</strong>iro num vôo<br />
silencioso. A ave estranha, com porte e envergadura <strong>de</strong> um gavião, alçou o<br />
topo da lona e seguiu uma estreita trajetória circular acompanhando a<br />
circunferência afunilada do alto do recinto. Completadas algumas voltas,<br />
começou uma <strong>de</strong>scida em linha reta em direção às duas mulheres da família<br />
do distinto e sau<strong>dos</strong>o dr. Umbuzeiro Cedrus. A pequena multidão, surpresa<br />
com o extemporâneo espetáculo, se assustou com o que lhes pareceu uma<br />
perigosa posição <strong>de</strong> ataque. Alguns que se viram na linha do vôo se abaixaram<br />
atrás das ca<strong>de</strong>iras. Outros se puseram a correr em busca <strong>de</strong> uma saída.<br />
Outros simplesmente se puseram a gritar, inertes e rendi<strong>dos</strong>. As duas<br />
mulheres, por pavor ou confiança; ainda que se sentindo na linha da trajetória<br />
do suposto ataque da ave, não moveram um só músculo. Permaneceram<br />
imóveis, em solene posição que não revelava a intensida<strong>de</strong> do medo. O<br />
pássaro seguiu o seu mergulho e, à poucos metros da dupla, dobrou o corpo,<br />
esticou as garras e ruflou as asas espalmadas para estancar a velocida<strong>de</strong> da<br />
<strong>de</strong>scida. Elegante e suavemente pousou sobre o frágil ombro da mais jovem<br />
das mulheres, dobrou as asas e ficou imóvel, sereno e dominante. Açucena<br />
Cedrus, respirou fundo e evitou olhar a ave com medo <strong>de</strong> alguma reação<br />
perigosa a um palmo da sua cara. Permaneceu parada e muda, congelada. A<br />
mãe, extremamente pálida, apenas olhou incrédula aquela cena singular.<br />
Alguns segun<strong>dos</strong> se passaram. A ave olhando a moça e ela olhando em frente.<br />
As pessoas que se encontravam mais próximas se aproximaram <strong>de</strong>vagar. As<br />
<strong>de</strong>mais se <strong>de</strong>scontraíram, passado o susto, e olharam atentas. Sentindo-se<br />
segura pela placi<strong>de</strong>z inesperada da ave, a jovem se arriscou a olhá-la<br />
finalmente. O gavião azul retribui com meneios <strong>de</strong> cabeça como se<br />
investigasse algo interessante. A moça avançou um passo para testar a<br />
reação do pássaro. Ia tentar o segundo mas alguém a estancou. Uma jovem<br />
senhora, trajada com discrição, com um gesto suave <strong>de</strong> mão <strong>de</strong>teve,<br />
gentilmente, o seu avanço e, à guisa <strong>de</strong> poleiro, esten<strong>de</strong>u o braço em direção<br />
da ave. Ela não reagiu, parecendo dispensar a cortesia. A mulher insistiu,<br />
gesticulando impaciente o membro erguido. O bicho então obe<strong>de</strong>ceu e do<br />
braço passou ao ombro. Naquela posição, com a ave equilibrada e quieta, a<br />
mulher atravessou rapidamente o pica<strong>de</strong>iro e <strong>de</strong>sapareceu pela fresta semiaberta<br />
na junção das partes da cortina azul <strong>de</strong> veludo.<br />
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Açucena Cedrus e sua mãe acompanham caladas a trajetória da mulher<br />
carregando o pássaro para fora do recinto. Pareciam encantadas com o que<br />
acabaram <strong>de</strong> vivenciar, melhor do que o espetáculo em si, na sua mesmice<br />
circense.<br />
- Que coisa maravilhosa - exclamou a menina, estampando um belo sorriso <strong>de</strong><br />
encantamento.<br />
- Sim - concordou a velha senhora com entusiasmo. Parecia que o pássaro a<br />
havia escolhido, propositadamente, no meio da multidão. Nunca tinha visto um<br />
pássaro assim, semelhante a um gavião azul. Mas não existem gaviões azuis.<br />
Bem, talvez possa existir na Espanha e esse é um circo espanhol - arrematou<br />
seu raciocínio ingênuo, pensativa, sem muita convicção.<br />
Nesse instante, um senhor forte e alto, <strong>de</strong> cabelo emplastado e vasto como um<br />
telhado, que até então permanecera próximo a dupla <strong>de</strong> mulheres observando<br />
o seu diálogo, resolveu se intrometer na conversa.<br />
- Desculpe, minha senhora, sou um homem viajado e posso afirmar, com<br />
certeza, que não existe gavião azul em nenhum lugar do mundo. Aquele<br />
pássaro pareceu-me um bicho muito raro e estranho. E acho que ele realmente<br />
escolheu a menina no meio da multidão, como uma coisa pensada.<br />
D. Violeta ouviu a observação com atenção, mas não apreciou a intervenção<br />
por lhe parecer <strong>de</strong>spolida, sendo ele um <strong>de</strong>sconhecido. Agra<strong>de</strong>ceu<br />
formalmente o comentário, pegou a menina pelo braço e se afastou a passo<br />
curto em direção à saída que, a essa altura, <strong>de</strong>volvia ao arraial os últimos<br />
espectadores que saiam <strong>de</strong>vagar comentando o episódio retardatário do<br />
pássaro. Algumas pessoas conhecidas não <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> interromper o trajeto<br />
das duas mulheres para fazer comentários sobre a cena inusitada, retardando<br />
um pouco mais sua saída.<br />
Quando chegaram próximo à abertura que ligava o interior do circo a um toldo<br />
vermelho <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> quatro metros, la<strong>de</strong>ado por tochas fumegantes<br />
cuida<strong>dos</strong>amente colocadas à distância segura da lona inflamável, d. Violeta e a<br />
filha eram parte <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> vinte ou trinta pessoas, os últimos<br />
espectadores ainda presentes. Antes <strong>de</strong> cruzar o arco da saída, Açucena ainda<br />
voltou a cabeça para o interior como se, através <strong>de</strong> uma última visão do<br />
pica<strong>de</strong>iro, quisesse reforçar na memória tudo que vivera naquela noite. Noite<br />
ímpar que certamente marcaria por algum tempo seus últimos dias mundanos,<br />
às vésperas <strong>de</strong> se internar num convento distante, quase perdido, apartado<br />
<strong>de</strong>sse mundo. Então dava passos miú<strong>dos</strong> e vagarosos como se não quisesse<br />
encerrar aquele instante, mais confuso do que mágico e que fatalmente<br />
acabaria ao <strong>de</strong>ixar aquele espaço.<br />
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Mas, aquele domingo raiou para ser inesquecível e não ia acabar assim<br />
placidamente. E não acabou pois o mais surpreen<strong>de</strong>nte ainda estava para<br />
acontecer. Sim pois eis que, <strong>de</strong> repente, um grito lacerante inundou com força<br />
o ambiente enlonado. A jovem, numa reação automática, pulou em direção à<br />
mãe buscando, instintivamente, uma guarita. D. Violeta, também assustada,<br />
virou-se incontinente na direção do grito ao mesmo tempo em que abraçava<br />
protetoramente a filha, respon<strong>de</strong>ndo com seu gesto a carência <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa. As<br />
duas mulheres abraçadas e com o peito em sobressalto, olharam na direção <strong>de</strong><br />
on<strong>de</strong> parecia ter partido o grito, buscando vislumbrar a sua causa. Não<br />
gastaram mais que frações <strong>de</strong> segun<strong>dos</strong> para encontrá-la com to<strong>dos</strong> os seus<br />
quesitos <strong>de</strong> horror. No fundo do pica<strong>de</strong>iro, <strong>de</strong>fronte a gran<strong>de</strong> cortina azul,<br />
vislumbraram uma silhueta cambaleante <strong>de</strong> mulher. O ser incerto avançou<br />
alguns passos indiretos com as duas mãos enlaçadas ao pescoço. À distância<br />
parecia que a mulher estrangulava a si mesma. Logo a reconheceram apesar<br />
da expressão torcida pela agonia e a dor. Era a mulher que pouco antes<br />
recolhera o pássaro azul e mergulhara com ele por trás do cortinando <strong>de</strong><br />
veludo. Avançava trôpega, com os olhos estufa<strong>dos</strong>, curvada à frente em<br />
precário equilíbrio. Açucena e a mãe, horrorizadas, conseguiram perceber um<br />
grosso caldo <strong>de</strong> sangue esguichando do pescoço da mulher em direção ao<br />
chão rendido à gravida<strong>de</strong> não obstante a força do jato jorrante na horizontal.<br />
Alguns funcionários do circo que no pica<strong>de</strong>iro recolhiam coisas, passada a<br />
bobeira do susto, avançaram sobre a mulher e tentaram ampará-la, mas não<br />
conseguiram. Ela caiu ao chão agonizante, em convulsão já olhando para o<br />
nada do além. O sangue em abundancia que escorria pelo pescoço e o colo,<br />
os encharcaram aumentando a tragédia da ocorrência e a horripilância da<br />
cena. As duas mulheres permaneceram petrificadas, olhando o que se passava<br />
e não estava programado. Outros integrantes do circo – artistas e serviçais -<br />
surgiram <strong>de</strong> vários cantos atraí<strong>dos</strong> pelos ruí<strong>dos</strong> <strong>de</strong> movimentos incomuns<br />
vin<strong>dos</strong> do pica<strong>de</strong>iro. De repente mais terror vinha se somar ao quadro<br />
prece<strong>de</strong>nte. Alguém surgiu do escuro, <strong>de</strong> um canto do vasto recinto e avançou<br />
arrasado e in<strong>de</strong>ciso como se estivesse embriagado. Venceu <strong>de</strong>vagar o espaço<br />
até o centro do pica<strong>de</strong>iro, chamando a atenção <strong>de</strong> to<strong>dos</strong>. Parou e a iluminação<br />
daquele ponto veio mostrar outro <strong>de</strong>talhe do terror que se suce<strong>de</strong>. É o<br />
trapezista – O Pássaro <strong>de</strong> Castela. Vestido ainda com sua roupa azul, tem a<br />
cara coberta <strong>de</strong> sangue do nariz até o pescoço. A menina ao ver aquilo não<br />
conseguiu mais conter-se, soltou um grito pavoroso e <strong>de</strong>sfaleceu inteira sobre<br />
o piso <strong>de</strong> terra e casca <strong>de</strong> arroz que vindo do pica<strong>de</strong>iro, forrava também o<br />
corredor <strong>de</strong> saída on<strong>de</strong> estavam as duas. A mãe não conseguiu ajudar muito.<br />
Sentou-se no chão ao lado da filha, fechou os olhos, cobriu o rosto com as<br />
mãos trêmulas e soluçou combalida, tragada no torvelinho das emoções <strong>de</strong><br />
noite tão singular.<br />
TERCEIRA PARTE<br />
29
Agosto é sempre poeirento em Chapadão <strong>de</strong> Deserda<strong>dos</strong>. Um clima seco <strong>de</strong><br />
serrado e pradaria, <strong>de</strong> regatos limpos e rasos, <strong>de</strong> escarpas majestosas e sopro<br />
<strong>de</strong> ventos baixos que balançam os ramos e os galhos mais <strong>de</strong>lga<strong>dos</strong> sacudindo<br />
a paisagem. Que levanta a poeira das ruas secas e seca as gargantas e<br />
incomoda os olhos ressecando os globos. Assim que naquele agosto, comum<br />
<strong>de</strong> tudo isso, Açucena Cedrus avançou pela rua <strong>de</strong>vagar, pisando com cuidado<br />
o pó vermelho do chão, procurando evitar sujar o couro <strong>dos</strong> sapatos acima da<br />
linha do solado: do bico ao salto. Era um mo<strong>de</strong>lo antigo que tinha sido da mãe,<br />
mas não carecia o <strong>de</strong>sleixo <strong>de</strong> sujá-lo. Pela mão levava o filho pequeno, único<br />
e não revelado ao mundo como tal: Cedro Cedrus, supostamente adotado pela<br />
bonda<strong>de</strong> <strong>dos</strong> Cedrus, mas seu filho <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> como se verá quando for<br />
oportuno. A exemplo da mãe, o pequeno tentava pisar leve na poeira mas não<br />
conseguia nem queria evitar aquele divertimento <strong>de</strong> fazê-la levantar e colorir o<br />
ar. A moça não ralhava mas apenas o afastava com o braço esticado,<br />
mantendo uma distância segura para preservar a barra rendada do vestido <strong>dos</strong><br />
respingos do pó. Percorrem assim, nesse cuidado que retardava o passo,<br />
algumas centenas <strong>de</strong> metros. O suficiente para levar o par a um canto mais<br />
afastado do povoado que era o rumo pretendido. Naquele lado, passado o<br />
largo da igreja, a Rua <strong>dos</strong> Cal<strong>de</strong>irões - morro acima - e o beco das lava<strong>de</strong>iras –<br />
morro virado pra baixo: as casas são pequenas, amontoadas, improvisadas <strong>de</strong><br />
barro e paus, niveladas na miséria, com telhado <strong>de</strong> folhas <strong>de</strong> coqueiro<br />
amarradas em caibros compri<strong>dos</strong> e roliços, atravessa<strong>dos</strong> na horizontal. Duas<br />
ruelas banguelas se cruzavam num espaço sem nome, on<strong>de</strong> brincavam<br />
crianças. Velhos matutavam, papagaios matraqueavam, cachorros dormiam,<br />
galinhas galinhavam com seu galo sem escolha. E a vida corria <strong>de</strong>vagar e sem<br />
o sentido que a vida precisa ter pra justificar o nascimento daquela gente e o<br />
esforço <strong>de</strong> crescer no meio <strong>de</strong> tanto perigo, solta nos cantos do mundo. Ao vêla<br />
se aproximar, uma trinca <strong>de</strong> mulheres suspen<strong>de</strong>u a prosa e a olhou e ao<br />
pequeno, estranhando a aparição. Não é comum uma visita <strong>de</strong>sse tipo. Nem<br />
podia, ali era um bairro <strong>de</strong> velhos e viúvas, fechado em si mesmo, esquecido.<br />
Era um canto <strong>de</strong> lava<strong>de</strong>iras e seu contato com o resto do povoado costumava<br />
se limitar a um trote trôpego <strong>de</strong> mulheres sem marido, com enormes pacotes<br />
<strong>de</strong> pano na cabeça: trouxas redondas na vinda, <strong>de</strong>nunciando a roupa suja e<br />
malas retanguladas na volta, com sua carga preciosa <strong>de</strong> roupas, lavadas,<br />
engomadas, passadas e cuida<strong>dos</strong>amente dobradas e redobradas num capricho<br />
fugaz, pois logo seriam <strong>de</strong>sdobradas, amassadas e sujas novamente. Tanto<br />
melhor pois era disso que viviam. As freguesas não costumavam ir ali. Quando<br />
precisavam falar com as serviçais, passavam reca<strong>dos</strong> que eram rapidamente<br />
leva<strong>dos</strong> ao <strong>de</strong>stinatário, por algum vizinho, e prontamente respondi<strong>dos</strong>.<br />
Recurso assaz comum <strong>de</strong> comunicação naquele tempo <strong>de</strong> tudo perto e sem<br />
pressa, pois atrasos não faziam diferença e ninguém se afligia por isso.<br />
A moça, com o menino quieto, preso à mão, parou no meio da rua, cautelosa,<br />
evitando uma touceira <strong>de</strong> capim à frente, que podia ocultar algum rastejante<br />
peçonhento <strong>de</strong> prontidão para o mal. Protegeu os olhos com a mão em concha,<br />
30
evitando o sol e olhou em direção aos casebres, girando levemente a cabeça<br />
<strong>de</strong> um lado ao outro, num ângulo <strong>de</strong> quarenta graus. Virou as costas e repetiu<br />
o movimento do lado oposto. Inútil, não encontrou o que procurava. A indicação<br />
era parca e as casas muito iguais. Mesma cor <strong>de</strong> barro à vista, mesma frente<br />
sem alpendre, mesma cerca <strong>de</strong> varetas <strong>de</strong> bambu, mesma miséria <strong>dos</strong><br />
miseráveis iguais e solidários no nada a repartir. Resolveu então buscar uma<br />
indicação. Foi em direção à trinca <strong>de</strong> mulheres que, à essa altura já não<br />
proseava, preferindo observar, curiosa, a aproximação da visita singular<br />
arrastando uma cria.<br />
- Boa tar<strong>de</strong>! – cumprimentou sem sorrir.<br />
- Sim, senhora – respon<strong>de</strong>u uma das mulheres – do mesmo jeito.<br />
- Eu estou procurando a cigana Azaléia Caucásia – continuou a moça.<br />
As mulheres se entreolharam estranhando a pergunta.<br />
- Tem essa pessoa aqui não - respon<strong>de</strong>u uma terceira. Aqui só tem mulher que<br />
lava roupa, menino que azucrina e velho com o pé na cova - arrematou<br />
<strong>de</strong>bochada.<br />
- Ela é prima da Orquí<strong>de</strong>a Nigina e não é daqui. Está <strong>de</strong> passagem –<br />
completou a moça, meio sem graça.<br />
Nisso alguém gritou <strong>de</strong> longe, interrompendo a breve conversação. Uma negra,<br />
alta e <strong>de</strong>lgada, postada ao lado <strong>de</strong> um tronco, acenou para a moça com um<br />
quê <strong>de</strong> agitação. Era a própria Nigina com a sua negritu<strong>de</strong> sestrosa da mina,<br />
sedutora na graça da sua raça. Ao vê-la, Açucena Cedrus acen<strong>de</strong>u um sorriso<br />
e se afastou rapidamente das mulheres, virando-lhes as costas, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
agra<strong>de</strong>cer a atenção com um discreto gesto <strong>de</strong> cabeça fugidia. Pareceu aflita<br />
para <strong>de</strong>ixar o grupo como se estivesse arrependida <strong>de</strong> ter feito a pergunta<br />
revelando mais do que <strong>de</strong>via. A trinca guardou silêncio alguns segun<strong>dos</strong> e<br />
<strong>de</strong>pois comentou baixo alguma coisa, <strong>de</strong>sairosa por certo.<br />
A moça seguiu rápido e ao alcançar a preta, agarrou-lhe um braço intimamente<br />
se sentindo mais confortável e segura. Esta, por sua vez, pegou o pequeno no<br />
colo e juntas viraram um canto da rua, sumindo da vista das outras que ainda<br />
as seguiam esticando um olhar intruso.<br />
Açucena extravasou uma aflição ao ouvido amigo.<br />
- Eu não <strong>de</strong>veria ter perguntado àquelas mulheres do jeito que perguntei. Afinal<br />
não quero que saibam que eu estive procurando uma cigana. Devia ter<br />
perguntado apenas on<strong>de</strong> era a sua casa. Fui muito burra. Você sabe que não<br />
31
quero que minha mãe saiba que eu vim aqui e quanto menos conversa melhor<br />
se cerca um segredo.<br />
- Não se preocupe, mocinha – respon<strong>de</strong>u a outra – elas não sabem da minha<br />
prima. Ninguém viu ela chegar, ninguém vai ver ela sair. Ela se mexe em<br />
segredo. Eu trabalho há muitos anos para a sua mãe, ninguém tem que<br />
estranhar você vir a minha casa.<br />
A conversa prosseguiu, <strong>de</strong> aflição espontânea e <strong>de</strong> consolo forçado, uma<br />
centena <strong>de</strong> metros. Agora já não há nem mesmo ruela. Já é só mato. Um mato<br />
ralo e um capim valente teimando em cobrir a trilha batida <strong>de</strong> pedregulhos em<br />
que o caminho se tornara. Chegaram a uma quase cabana <strong>de</strong> barro e sebe à<br />
mostra e buracos nas pare<strong>de</strong>s num conjunto lamentável. A jovem assustou-se<br />
com a pobreza estampada <strong>de</strong> forma tão contun<strong>de</strong>nte, mas disfarçou. Não era<br />
justo constranger. Nem <strong>de</strong>via, estando ali como estava, em busca <strong>de</strong> ajuda.<br />
Assim, entrou no casebre esforçando um sorriso sem gosto e sem vonta<strong>de</strong>.<br />
Guardou distância <strong>de</strong> se encostar em qualquer coisa e o mesmo procurou para<br />
o pequeno Cedro que retinha rente às dobras da saia, seguro pelos ombros, à<br />
salvo do entorno repelente. Percorreu com olhos vagarosos o que estava a sua<br />
volta. O que viu foi mais <strong>de</strong> espanto do que <strong>de</strong> horror. Os extremos da pobreza<br />
não têm fim, pensou, suspirando tenuemente com uma ponta <strong>de</strong> dó.<br />
O cômodo era pequeno, <strong>de</strong> chão batido e cobertura <strong>de</strong> folhas <strong>de</strong> macaúba.<br />
Servia <strong>de</strong> sala e quarto com um catre, ca<strong>de</strong>iras, uma mesa comprida <strong>de</strong> taboas<br />
apoiadas sobre estacas fincadas no chão. Tudo misturado sem or<strong>de</strong>m e<br />
nenhum plano possível. Um vão, sem prumo e sem portal ligava o cômodo ao<br />
resto da moradia. Uma cortina rala <strong>de</strong> pano roto e colorido servia <strong>de</strong> anteparo a<br />
resguardar as outras intimida<strong>de</strong>s da casa. Ali era cozinha e <strong>de</strong>mais serventias,<br />
fechando os tu<strong>dos</strong> da casa num resultado singelo, <strong>de</strong> falta.<br />
- Senta, – exclamou Orquí<strong>de</strong>a Nigina, <strong>de</strong>sentulhando uma ca<strong>de</strong>ira e a<br />
colocando no centro do aposento em posição <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque.<br />
- Senta que vou buscar a prima Azaléia – completou sumindo atrás do pano do<br />
vão que se abria pro fundo da tosca moradia.<br />
Açucena Cedrus obe<strong>de</strong>ceu. Sentou-se <strong>de</strong>vagar como se temesse que a<br />
ca<strong>de</strong>ira não a pu<strong>de</strong>sse sustentar. Sentindo firmeza, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um sacolejo<br />
cauteloso para testar a capacida<strong>de</strong> das pernas do assento, colocou o pequeno<br />
sobre o colo e aguardou ansiosa. Não ouviu vozes. Antes mesmo que um<br />
minuto se passasse o que ouviu foi um ruído <strong>de</strong> chocalho num batido repetido,<br />
ritmado. Incontinente, uma mulher cor <strong>de</strong> chumbo, esquálida e curvada,<br />
parecendo muito velha, carcomida pelos anos, entrou no aposento, enchendo o<br />
ambiente com sua figura estranha, mesmo pequena. O ruído veio das contas e<br />
32
ossos que trazia na forma <strong>de</strong> um colar que pendia vertical, em direção ao solo,<br />
<strong>de</strong>vido à curva acentuada da coluna da mulher e que projetava seu pescoço,<br />
exageradamente para frente. Era a tal cigana. Ergueu a mão em direção à<br />
visitante oferecendo o seu anel a ser beijado, imitando, sem propósito, a<br />
arrogância <strong>de</strong> um prelado <strong>de</strong> altas indulgências. Reverência ridícula, posto não<br />
ser este o caso <strong>de</strong>la. A moça se assustou com o gesto inesperado. Relutou um<br />
par <strong>de</strong> segun<strong>dos</strong> mas, contendo o asco com esforço, acabou beijando a pedra<br />
vermelha do enfeite vagabundo que coroava <strong>de</strong> miserável majesta<strong>de</strong> a mão<br />
cava e encardida da lamentável figura. Completada a saudação<br />
constrangedora, a cigana atravessou o resto da sala e, com certa dificulda<strong>de</strong><br />
sentou-se no catre encostado próximo à porta da rua. Olhou a criança alguns<br />
minutos, apertando os olhos como se quisesse enxergar melhor. Depois tirou<br />
um cigarro <strong>de</strong> palha que trazia na orelha, uma binga que trazia na algibeira,<br />
tirou a chama com gran<strong>de</strong> maestria, acen<strong>de</strong>u o pito e <strong>de</strong>u uma longa baforada<br />
empesteando tudo. Tapou a boca e o nariz com a mão, reteve o fumo como se<br />
quisesse com ele impregnar as entranhas e alcançar a alma. Repetiu a<br />
operação algumas vezes provocando aflição em Açucena. Depois apagou o<br />
cigarro sobre a unha e voltou o toco para o lugar <strong>de</strong> antes, sobre a orelha.<br />
Olhou firme um horizonte imaginário, arregalou os olhos o máximo que<br />
conseguiu e, em seguida, os foi fechando <strong>de</strong>vagar como se lentamente<br />
adormecesse. Esse estado letárgico durou alguns minutos. A moça aguardou<br />
paciente abraçando o filho que no colo da mãe permaneceu quieto, um tanto<br />
assustado mas sereno. De repente, a cigana abriu os olhos e começou a girálos<br />
alternando as direções numa estranha pantomima, meio cômica, meio<br />
alucinada. Em seguida começou a falar numa voz clara e num tom troante.<br />
Parecia um trecho retirando <strong>de</strong> um sermão ou coisa assim.<br />
- Só a paixão <strong>de</strong> Cristo po<strong>de</strong> purificar e tornar eterno o que não é. Seu cálice<br />
era <strong>de</strong> fel e ele o adoçou para o amor <strong>dos</strong> homens. O cálice <strong>de</strong>sse amor foi<br />
feito para gotejar, gota a gota, <strong>de</strong>stiladas, uma a uma, na seda da temperança.<br />
O cálice da paixão <strong>dos</strong> homens parece doce mas ao bebê-lo a boca enche, o<br />
caldo entorna, escorre por entre os lábios e o amor se esvai na sujeira do<br />
<strong>de</strong>sejo. É frágil o fruto que daí vem.<br />
Dito isso, calou-se e fechou os olhos novamente, voltando ao estado anterior.<br />
Açucena Cedrus ouviu tudo aquilo assustada e sem enten<strong>de</strong>r nada. Mas<br />
mesmo assim ficou imóvel, aguardando o <strong>de</strong>sdobrar. Mas não se sentiu<br />
serena. Ao contrário. Sentiu o ar pesado e o ambiente quente, o coração<br />
forçado e os pulmões tolhi<strong>dos</strong>. Apesar do hermetismo, aquelas palavras<br />
pareceram a ela um prenúncio <strong>de</strong> castigo por seus peca<strong>dos</strong> <strong>de</strong> amor. Lembrouse<br />
das longas e ininteligíveis pregações que ouvia no tempo do seu noviciado<br />
no Convento <strong>de</strong> Santa Branca <strong>dos</strong> Lírios. Lembrou do amargo <strong>de</strong>sejo que<br />
abortou sua carreira <strong>de</strong> freira. Sentiu um vazio no peito. Mas enfrentou o<br />
33
<strong>de</strong>sconforto e seguiu tentando tirar algum proveito daquela aventura que já ia<br />
pelo meio.<br />
De qualquer forma, surpreen<strong>de</strong>u-se com a correção e erudição da frase dita<br />
por pessoa <strong>de</strong> aparência tão ignorante. Mas nada comentou e nem cabia fazêlo.<br />
Aguardou alguns minutos. A cigana, contudo, permaneceu como estava e<br />
assim continuou até que Orquí<strong>de</strong>a Nigina afastou a lamentável cortina que<br />
separava a sala e o fundo da sua moradia e entrou no miserável recinto. Olhou<br />
a prima naquele estado, apertou os beiços e fez um gesto chamando a moça<br />
para segui-la em direção da rua. Abriu a porta gretada, esperou que ela<br />
passasse puxando o menino pela mão e a seguiu ganhando a clarida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
fora, afastando o <strong>de</strong>sconforto. Açucena respirou fundo, aliviada <strong>de</strong> ter <strong>de</strong>ixado<br />
aquele ambiente estranho e olhou o filho. Ele não pareceu assustado e isso a<br />
<strong>de</strong>ixou relaxada. Porém não afastou o arrependimento <strong>de</strong> ter vindo.<br />
- Sei que você não enten<strong>de</strong>u nada do que a prima disse - comentou a preta já<br />
antecipando o que lhe seria perguntado.<br />
- Sim, aqui vim para ela predizer o futuro do pequeno, mas ela pouco falou e só<br />
disse coisas sem sentido para mim. Respon<strong>de</strong>u a moça, por certo<br />
<strong>de</strong>sapontada.<br />
- É assim mesmo. É que ela estava em transe viajando no futuro. Aquelas<br />
palavras vão ser interpretadas e muito bem explicadas assim que ela voltar<br />
daquele sono profundo. Na verda<strong>de</strong> ela não estava dizendo nada, só estava<br />
repetindo o que ouvia. Ela guarda tudo na memória e <strong>de</strong>pois fica remoendo até<br />
enten<strong>de</strong>r a mensagem. Mas você po<strong>de</strong> voltar pra casa com o pequeno. A prima<br />
po<strong>de</strong> ficar horas e até dias daquele jeito e outros tanto matutando. Amanhã vou<br />
ter que levar a roupa da sua mãe e, se Deus quiser, te conto o significado<br />
daquelas palavras confusas. Ali vai estar com toda a clareza o segredo do<br />
futuro do menino. E não se esqueça, também vamos ter que combinar um<br />
agradinho pra prima.<br />
- Está bem, te espero então – respon<strong>de</strong>u a moça apressada.<br />
Tratou <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar aquele lugar com ligeireza, arrastado o pequeno Cedro pela<br />
mão. Este seguiu obediente, alheio à aflição da mãe e, mais ainda, ao<br />
significado daquela visita incomum. Sua quietu<strong>de</strong> surpreen<strong>de</strong>u. Na verda<strong>de</strong>,<br />
muito cedo na vida ele apren<strong>de</strong>ria a ficar quieto, atalhando as aflições. Talvez<br />
até tivesse aprendido ali mesmo, naquela hora, a utilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa esperta<br />
conduta, indispensável àqueles que levam a vida pelo prazer, escapando do<br />
remorso e escamoteando o pecado, pois foi assim que ele quis viver logo que<br />
<strong>de</strong>scobriu a parte doce da vida.<br />
34
Açucena apressou o passo e torceu para não encontrar ninguém pelo caminho.<br />
Foi satisfatoriamente atendida pois cruzou apenas com um ancião jogado<br />
numa tosca ca<strong>de</strong>ira, escornado e alheio ao mundo, sob a sombra <strong>de</strong> uma<br />
árvore. Cumprimentou-o respeitosa, mas ele nem respon<strong>de</strong>u, encerrado.<br />
Continuou no seu passo ligeiro, conduzindo o menino aos pulos e tropeços.<br />
Nessa ligeireza não <strong>de</strong>morou a <strong>de</strong>ixar o bairro miserável. Ao passar por uma<br />
pequena capelinha e divisar a porta aberta resolveu conter a pressa e entrar<br />
para refletir um pouco sobre as palavras da cigana enquanto podia se lembrar<br />
<strong>de</strong>las. Entrou e se assentou na primeira fileira <strong>de</strong> bancos, cautelosa e pronta<br />
para se evadir se surgisse algum constrangimento com aquela intromissão.<br />
Não havia ninguém. Colocou o pequeno Cedro sobre os joelhos e pesquisou o<br />
interior com curiosida<strong>de</strong>. Nunca tinha estado ali. O mo<strong>de</strong>sto templo era<br />
<strong>de</strong>dicada à Nossa Senhora do Rosário e servia às pie<strong>dos</strong>as almas negras<br />
daquelas bandas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século passado. À sua direita havia um altar <strong>de</strong><br />
tábuas pintadas <strong>de</strong> azul e branco, abrigando São Benedito com o menino<br />
Jesus assentado no colo. Quis entregar a ele a missão <strong>de</strong> ajudá-la a <strong>de</strong>cifrar o<br />
significado do vaticínio da cigana. Não tentou, contudo, reconstruir as frases<br />
prolixas que tinha ouvido. Apenas rezou. Mas não conseguiu imprimir doçura<br />
na mensagem que transmitiu ao santo. A idéia <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo e punição embutida<br />
nas palavras da cigana Azaléia turvaram sua oração e a fizeram se sentir<br />
indigna, imprópria <strong>de</strong> estar ali buscando a proteção das santas negritu<strong>de</strong>s,<br />
humil<strong>de</strong>s e sofredoras. Achou mais uma vez que estava fazendo algo <strong>de</strong><br />
impru<strong>de</strong>nte. Não era justo que quisesse a ajuda <strong>de</strong> um santo para enten<strong>de</strong>r<br />
uma adivinhação supersticiosa. Muitas vezes tinha ouvido sermões do padre<br />
Meldi con<strong>de</strong>nando isso. Assim resolveu interromper sua contrição e <strong>de</strong>ixar o<br />
santo em paz. Saiu do templo e apressou ainda mais os passos em busca do<br />
refúgio <strong>de</strong> casa. Não <strong>de</strong>morou a chegar. O povoado era pequeno e esticado na<br />
planura facilitando o caminhar. Teve que carregar o filho em alguns trechos<br />
pois ele teimava em se distrair com os pequenos encantos do mundo e<br />
retardava o passo.<br />
Açucena evitou contato com a mãe, atravessou o resto do dia aflita e a noite foi<br />
mal dormida, velando o canto <strong>dos</strong> galos e torcendo para que o sol não tardasse<br />
a dissolver os resquícios da madrugada. Receava ter perdido o seu tempo se<br />
expondo a uma tolice. Queria logo que o dia amanhecesse e que Nigina<br />
trouxesse a leitura do vaticínio sobre o futuro do pequeno, corrigindo a<br />
frustração. A cigana tinha acordado do transe? Tinha interpretado as<br />
misteriosas palavras? Mas teve que esperar até o meio do dia, alongando os<br />
afazeres. Foi quando a lava<strong>de</strong>ira apareceu pra saudar o compromisso com<br />
mais uma volumosa mala <strong>de</strong> roupas, como fazia todo sábado. E ainda teve que<br />
esperar ocasião propícia em que d. Violeta Cedrus não estivesse tão perto com<br />
as antenas <strong>dos</strong> ouvi<strong>dos</strong> espalmadas. A chance apareceu na hora da<br />
conferência das peças <strong>de</strong>volvidas já lavadas e passadas. Normalmente quem<br />
fazia isso era a mãe, mas Açucena se antecipou ao trabalho. Assim, no meio<br />
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<strong>de</strong> um inventário <strong>de</strong> peças <strong>de</strong> vestuário foi que tomou contato com o terrível<br />
futuro do filho. Seria breve a vida <strong>de</strong> Cedro Cedrus. Era esse o recado, curto,<br />
sem recurso e sem apelo. Mas ela não viveria o bastante para conferir isso,<br />
pois começou a morrer ali mesmo, corroída pelo lado amargo do amor, sem<br />
futuro e sem prazer, recusando cumprir sua sentença repleta <strong>de</strong> cruelda<strong>de</strong>.<br />
QUARTA PARTE<br />
Aroeira Militatus - cabo Mili – como mais era chamado, resultava ser a<br />
autorida<strong>de</strong> policial <strong>de</strong> Deserda<strong>dos</strong>, tanto máxima quanto única, pois outra não<br />
havia nem carecia. Oficial <strong>dos</strong> po<strong>de</strong>res do estado, legitimamente provido, com<br />
portaria <strong>de</strong> juiz e tudo mais, como mandava o regulamento aplicável. Ao<br />
mesmo tempo era a força e o escrivão. Quer dizer, punha as irregularida<strong>de</strong>s no<br />
papel e remetia para apreciação superior à seis léguas <strong>de</strong> distância, nas<br />
baixadas ver<strong>de</strong>jantes do vale. Quando força era pedida tinha que improvisar e<br />
requisitar a ajuda <strong>de</strong> uma trinca <strong>de</strong> compadres voluntários, contudo dispostos,<br />
sempre prontos à ação. Mas isso era tão raro que não há casos prece<strong>de</strong>ntes<br />
registra<strong>dos</strong>, fora esse que agora se dá notícia e que marcou os anais pela<br />
rarida<strong>de</strong> e relevância. No geral, era fácil a ocupação, pois a or<strong>de</strong>m naquele<br />
mundo pacato era coisa natural e a lei se sustentava por si só, planando<br />
divinamente, garantida pelos fios <strong>dos</strong> bons costumes e pelo temor a Deus e<br />
suas chamadas troantes e timoratas. De sorte que, do que ele se ocupava<br />
mesmo era <strong>de</strong> <strong>de</strong>sfilar sua farda, impecável em qualquer ocasião.<br />
Notadamente na ronda <strong>dos</strong> bolos e cafés todo final <strong>de</strong> tar<strong>de</strong>. Esperto, variava<br />
os rumos da ronda <strong>de</strong> acordo com a rosa <strong>dos</strong> ventos, alternando sabiamente a<br />
escolha da fartura das mesas <strong>dos</strong> caros anfitriões e suas dadivosas e<br />
prendadas esposas. Segunda-feira, rumo norte, pela Rua da Agonia mirando<br />
nas roscas cocadas da dona Miosótis Maltecus, servidas com requinte numa<br />
mesa guarnecida com pesa<strong>dos</strong> talheres e porcelana inglesa. Terça-feira,<br />
sudoeste, ambrosia, no ponto quanto ao doce e a consistência, nem aguada<br />
nem melosa . Quarta-feira um pouco mais longe, mas sempre valia a pena.<br />
Rumo sul, Caminho <strong>dos</strong> Esfola<strong>dos</strong>, suspiros neva<strong>dos</strong> da família Natatarius: d.<br />
Nata e suas filhas Natinha maior e Natinha menor, unidas caprichosas na<br />
culinária e na prosa. E assim ia, comendo com exagero, retardando a tar<strong>de</strong> em<br />
tão boas companhias, adiando a noite na sua solidão <strong>de</strong> solteiro, mais por<br />
comodida<strong>de</strong> do que por falta <strong>de</strong> opção. Não era gordo contudo. Nem suarento,<br />
nem bigodudo, nem <strong>de</strong> cabelos emplasta<strong>dos</strong> como convém a esse tipo <strong>de</strong><br />
personagem. No espaço das manhãs nosso valente cabo, muito responsável,<br />
assíduo e pontual, cumpria a obrigação num plantão inútil no seu escritório, se<br />
assim se po<strong>de</strong> dizer do local do seu ofício. Falo <strong>de</strong> um comodozinho<br />
improvisado, no fundo <strong>de</strong> uma serraria em ruínas. Dignas ruínas, diga-se, com<br />
suas rixas pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong> pedras fincadas para durar mais do que a própria<br />
serventia.<br />
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A falta do teto do conjunto principal não diminua em nada a majesta<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte do edifício, alto como um castelo e tão imponente quanto, caso não<br />
estivesse em ruínas. O tal comodozinho se encostava numa das pare<strong>de</strong>s<br />
externas do prédio, meio que fora <strong>de</strong> propósito para a harmonia do conjunto<br />
arruinado. Mesmo porque, mantinha teto, portas e janelas preserva<strong>dos</strong>. Tinha<br />
sido uma espécie <strong>de</strong> <strong>de</strong>pósito <strong>de</strong> ferramentas no tempo em que a serraria<br />
fungava e cortava, laminando as pobres árvores ceifadas do vale norte e<br />
arrastadas até ali à força das parelhas <strong>de</strong> burros dóceis e esforça<strong>dos</strong>.<br />
Naqueles poucos metros quadra<strong>dos</strong> <strong>de</strong> trastes e <strong>de</strong>cadências cabo Mili<br />
mantinha a honorabilida<strong>de</strong> do seu cargo escorado numa escrivaninha velha,<br />
duas ca<strong>de</strong>iras e um sofá <strong>de</strong> veludo na mesma <strong>de</strong>plorável condição. Sem<br />
esquecer do armário <strong>de</strong> portas envidraçadas e baças on<strong>de</strong> guardava meia<br />
dúzia <strong>de</strong> maços <strong>de</strong> papel contendo os únicos três inquéritos que tinha<br />
produzido em uma vida toda <strong>de</strong> prontidão: um caso escandaloso <strong>de</strong> incesto,<br />
uma <strong>de</strong>savença <strong>de</strong> herança e um caso <strong>de</strong> assombração que o padre Carvalho<br />
Meldi resolveu não assumir e remeteu à instância civil. Esse não chegou a<br />
subir pois o próprio Mili teve o bom senso <strong>de</strong> arquivá-lo argüindo incompetência<br />
<strong>de</strong> instância. Agiu bem pois o suspeito <strong>de</strong>sapareceu sem mais nem menos e,<br />
assim, ele não teve que tratar do que não conhecia e padre Meldi não teve que<br />
se <strong>de</strong>sgastar com os racionalismos cientificistas do bispo. Ninguém questionou<br />
o <strong>de</strong>spacho pois, com o sumiço do suspeito, a assombração parou <strong>de</strong><br />
assombrar, o caso se resolveu e restaurou-se a razão.<br />
Esse era o mundo singelo da autorida<strong>de</strong> policial que tinha que agir no caso<br />
escabroso e complexo do assassinato ocorrido no Circo Espanhol. E diga-se, a<br />
bem da sua venerável memória, ele agiu rápido e com notável astúcia e<br />
sangue frio. Acontece que nosso confiabilíssimo compatriota Aroeira Militatus -<br />
o cabo Mili -, como quase todo mundo, também estava presente àquele terrível<br />
e, literalmente, inesquecível episódio da noite <strong>de</strong> estréia do Circo.<br />
Deixem-me tocar nos <strong>de</strong>talhes. Vinha ele <strong>de</strong>scendo a la<strong>de</strong>ira calmamente,<br />
rumando satisfeito para casa após o espetáculo, quando recebeu a espavorida<br />
notícia <strong>de</strong> que uma mulher tinha sido <strong>de</strong>golada em pleno pica<strong>de</strong>iro. Assim que<br />
se <strong>de</strong>u conta <strong>de</strong> que tinha um escabroso caso <strong>de</strong> assassinato nas mãos, a<br />
primeira coisa que Mili pensou foi em reunir a sua guarda, quer dizer, localizar<br />
os três compadres que prometeram apoiá-lo se tivesse que entrar numa ação<br />
verda<strong>de</strong>ira para impor a autorida<strong>de</strong> do estado. Para isso tinham sido<br />
a<strong>de</strong>stra<strong>dos</strong> e sempre estavam prepara<strong>dos</strong>, malgrado a pouca <strong>de</strong>manda. Ia<br />
precisar <strong>de</strong> fato nesse caso, pois tinha ido ao circo trajado com sua farda <strong>de</strong><br />
gala, branca com frisas azuis e douradas e o cinturão <strong>de</strong> verniz reluzente, com<br />
bainha <strong>de</strong> espadim, mas sem coldre. Assim, sua velha garrucha tinha ficado no<br />
escritório, guarnecida na cinta do uniforme <strong>de</strong> batalha, impecável todavia: o tal<br />
da ronda das quitandas. Espadim não havia mesmo, a alça era só enfeite. É<br />
que o mo<strong>de</strong>lo do uniforme era muito antigo, não tinha acompanhado a<br />
mo<strong>de</strong>rnização imprimida no armamento policial pelo último governador da<br />
37
província. Aliás, essa mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> nem chegou até ali. Foram-se os espadim e<br />
não vieram as pistolas prometidas. De sorte que ele tinha que se virar mesmo<br />
era com a retro-mencionada garrucha e que, infelizmente, nem estava à mão<br />
como dito. Mas ele não se afobou, tinha cruzado casualmente com pelo menos<br />
dois <strong>dos</strong> compadres da guarda, num e noutro canto do circo e tinha certeza da<br />
ajuda que estava a precisar naquela rara emergência. Seguiu o rito em que<br />
estava treinado: puxou o apito e assoprou, ao mesmo tempo em que correu no<br />
sentido contrário do grupo que <strong>de</strong>scia em tumulto, empurrado por quem vinha<br />
atrás. Subiu a colina, buscando alcançar a lona <strong>de</strong> novo. Fiava que seria<br />
seguido pelos promitentes companheiros, atraí<strong>dos</strong> instintivamente pelo silvo<br />
agoniado do apito como tinham combinado e testado em várias simulações <strong>de</strong><br />
treinamento militar. E assim foi que funcionou <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>. Chegaram<br />
praticamente juntos à boca da entrada da gran<strong>de</strong> tenda <strong>de</strong> lona. Pela primeira<br />
vez aquilo acontecia. Pela primeira vez a força precisou ser reunida para<br />
enfrentar uma emergência <strong>de</strong> fato. E não levou mais do que <strong>de</strong>z eficientíssimos<br />
segun<strong>dos</strong>. Ali estavam Aroeira Militatus no comando, Pinus Palpius e Cerejeira<br />
Xânvilus na coadjuvância: a força policial <strong>de</strong> Deserda<strong>dos</strong> pronta para a ação. O<br />
compadre Vinhático Roxilium – <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro integrante do trio <strong>de</strong> suporte - não<br />
apareceu. Nem podia, naquele instante estava em casa <strong>de</strong> cama, abatido por<br />
uma gota que tinha cismado <strong>de</strong> lacerar-lhe o pescoço do <strong>de</strong>dão do pé direito<br />
com certa selvageria. Depois ele lamentaria não ter participado. Mas o fato é<br />
que não participou e estava faltando um quando Mili e os companheiros<br />
romperam os limites da lona do circo, limites que os separavam da noite fresca<br />
e empoeirada <strong>de</strong> estrelas que cobria o mundo. Lá estava, no centro do<br />
pica<strong>de</strong>iro, a mulher caída com a garganta rasgada <strong>de</strong> on<strong>de</strong> um resto <strong>de</strong> sangue<br />
teimava em regurgitar e escorria <strong>de</strong>vagar para uma poça borrenta do mesmo<br />
sangue já talhado. Ao lado estava o trapezista, ajoelhado, olhando o chão e<br />
com o rosto e o peito sujos daquela seiva inerte e pegajosa. Em volta, uma<br />
<strong>de</strong>zena <strong>de</strong> pessoas formando um semi-círculo contemplava a cena,<br />
estarrecida, imóvel e muda. Algumas mulheres chorava, mas nada<br />
<strong>de</strong>sesperado. Cabo Mili se aproximou em passo <strong>de</strong> comando enquanto os<br />
companheiros <strong>de</strong> tropa, três metros atrás, lhe resguardavam o costado, atentos<br />
aos <strong>de</strong>talhes. Examinou a mulher e não levou mais do uns segun<strong>dos</strong> para ter<br />
certeza do seu estado mortuário absoluto e, como tal, irreversível. Em seguida,<br />
aparentando calma, pediu uma ca<strong>de</strong>ira, colocou-a em frente ao trapezista, se<br />
assentou e perguntou a ele o que tinha acontecido. Não obteve resposta.<br />
Repetiu a pergunta algumas vezes inutilmente. Uma confissão <strong>de</strong> assassinato<br />
naquele instante abreviaria sobremaneira o seu trabalho, mas o homem<br />
continuou mudo, contemplando o chão. Mili passou os olhos no grupo <strong>de</strong><br />
pessoas que estava em volta e perguntou quem era o responsável pelo circo.<br />
Como também não obteve resposta, repetiu a pergunta em tom impaciente e<br />
enérgico, or<strong>de</strong>nando e não pedindo. Então um senhor baixo e gordo, <strong>de</strong> terno<br />
<strong>de</strong> risca <strong>de</strong> giz e ostentando uns pequenos óculos <strong>de</strong> aro dourado <strong>de</strong>u um<br />
passo à frente e se apresentou como o gerente da companhia, quer dizer,<br />
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legalmente responsável por ela. Com esse foco quis o homem, com certeza,<br />
ficar <strong>de</strong> fora <strong>de</strong> qualquer mal entendido que pu<strong>de</strong>sse envolvê-lo levianamente<br />
com o escabroso episódio. Era só um burocrata, gordo e sem <strong>de</strong>streza,<br />
equilibrando e pon<strong>de</strong>rado, preocupado com receitas e <strong>de</strong>spesas.<br />
- O senhor sabe o que aconteceu? Perguntou o cabo.<br />
- Não senhor, eu estava no escritório, longe <strong>de</strong> tudo isso. Respon<strong>de</strong>u o<br />
gerente.<br />
- Alguém aqui sabe o que aconteceu? Perguntou, <strong>de</strong>sviando os olhos do grupo<br />
e fixando-os no trapezista que continuava em transe olhando para o chão.<br />
- Acho que eu vi alguma coisa, respon<strong>de</strong>u um anão vestido <strong>de</strong> palhaço e com o<br />
rosto já livre <strong>de</strong> parte da maquiagem.<br />
Toda a gente do circo ali presente olhou para o anão com olhares <strong>de</strong><br />
reprovação e indignação como se ele estivesse quebrando algum pacto. Mas<br />
ele olhou <strong>de</strong> volta sem se intimidar. É que anão também tem seu dia <strong>de</strong><br />
rompante.<br />
- Muito bem. Então amanhã o senhor <strong>de</strong>verá comparecer ao meu escritório<br />
para prestar <strong>de</strong>poimento – disse cabo Mili satisfeito com a iniciativa da<br />
pequena criatura.<br />
- Os <strong>de</strong>mais <strong>de</strong>verão ficar à disposição e ninguém po<strong>de</strong>rá <strong>de</strong>ixar esse local. O<br />
trapezista terá que me acompanhar e ficar sob custódia até que tenha<br />
condições <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r umas perguntas. Quero que todo mundo do circo<br />
venha para cá. Meu compadre Pinus Palpius vai anotar o nome <strong>de</strong> to<strong>dos</strong>.<br />
Repito, ninguém po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar esse local.<br />
Isso dito, o cabo Aroeira Militatus se levantou, se acercou do trapezista, pegou<br />
no seu braço, pediu a ajuda <strong>de</strong> Cerejeira Xânvilus que pegou no outro braço.<br />
Assim o ergueram e o colocaram <strong>de</strong> pé. Ele se <strong>de</strong>ixou levar sem nenhuma<br />
resistência abatido e penitente. Parecia nem estar se dando conta do que<br />
estava acontecendo. Seus olhos estavam baços e, <strong>de</strong> fato, parecia difícil que<br />
alguém pu<strong>de</strong>sse enxergar qualquer coisa através <strong>de</strong> olhos naquele estado<br />
morteiro. Deram alguns passos em direção à saída quando cabo Mili se<br />
lembrou da vítima. Olhou por sobre o ombro. A pobre criatura <strong>de</strong> Deus, jazia lá<br />
no chão em posição indigna, longe do estado que é próprio <strong>de</strong> se dar aos<br />
mortos, pelo menos uma cova para <strong>de</strong>scansar em paz.<br />
- Quanto à vítima – exclamou o cabo pragmático - vocês vão ter que cuidar <strong>de</strong><br />
tudo. Aqui não temos cemitério e cada um enterra os seus no quintal. Mas aqui<br />
no terreno do circo não po<strong>de</strong>.<br />
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Essas palavras liberaram, finalmente, a morta para um enterro <strong>de</strong>scente e o<br />
corpo começou a ser levado <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> muito respeito, a <strong>de</strong>speito do cortejo<br />
estar quase todo fantasiado.<br />
Cabo Mili aguardou a retirada e <strong>de</strong>pois arrematou fechando a cena do crime:<br />
- Vou precisar requisitar um transporte, uma carroça ou coisa assim, para<br />
apressar a <strong>de</strong>scida.<br />
O gerente, que estava ansioso por se mostrar prestativo respon<strong>de</strong>u que isso<br />
não seria problema e <strong>de</strong>u comando para que aprontassem logo uma charrete.<br />
Fácil, pois cavalos e coches os circos os têm aos montes, e prontos para<br />
serem usa<strong>dos</strong>.<br />
Mili e o companheiro continuaram então rumo à saída, conduzindo os passos<br />
com uma certa dificulda<strong>de</strong> pois o custodiado mal dava conta da coor<strong>de</strong>nação<br />
das pernas, prejudicando o movimento do grupo <strong>de</strong>sigual. Enquanto isso o<br />
compadre Cerejeira, zeloso do seu serviço, ficava para arrolar os nomes <strong>de</strong><br />
to<strong>dos</strong>, pois ninguém estava livre <strong>de</strong> ser convocado para um interrogatório futuro<br />
se houvesse precisão.<br />
Um pequeno bando <strong>de</strong> curiosos que tinha retardado a volta para casa por<br />
causa do tumulto, os esperava do lado <strong>de</strong> fora. Na hora da tragédia quem<br />
restava <strong>de</strong>ntro correu para fora, quem estava do lado <strong>de</strong> fora não ousou entrar<br />
e agora ninguém ousou perguntar nada. Naquele instante apenas observaram<br />
a passagem do trapezista e sua guarda, guarnecendo pelos flancos o estado<br />
estupidificado do homem. Um ou outro soltava um discreto acento <strong>de</strong> horror ao<br />
ver os vestígios <strong>de</strong> sangue coagulado sujando da boca ao meio do peito<br />
daquela figura estranha.<br />
Açucena, restabelecida do choque da pregressa cena <strong>de</strong> horror, já tinham<br />
<strong>de</strong>scido com a mãe, amparadas por amigos. Nenhuma das duas iria conseguir<br />
dormir aquela noite. Aliás, Açucena Cedrus nunca mais seria a mesma. Tinha<br />
provado a banda da maçã pelo lado da paixão e restava rendida a disposição<br />
que se seguiu <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir o prazer prometido no pedaço que provou.<br />
A <strong>de</strong>scida aventava ser rápida com a charrete tocada por mãos hábeis e<br />
puxada por uma bela égua circense, alta e garbosa como uma bailarina e,<br />
como era <strong>de</strong>scida, a lei <strong>de</strong> Newton ajudava. Devia ser distinto o cortejo, o<br />
exagero <strong>dos</strong> enfeites da montaria, contudo, conferia a ele um acento bufo. Mas<br />
a cena era mesmo <strong>de</strong> tragédia.<br />
Assim que se ajeitou na boleia, cabo Mili se perguntou preocupado on<strong>de</strong> o<br />
trapezista podia passar a noite, confinado em segurança, pois ca<strong>de</strong>ia não<br />
havia. Ao passar pelo arco que separava a área reservada ao circo cortou os<br />
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pensamentos por um instante para ler um cartaz com o nome do trapezista em<br />
letras fulgurantes: Castanheiro Fúlvio - O Pássaro <strong>de</strong> Castela. Já sabia, mas só<br />
agora prestou atenção. Afinal aquele era o nome do suspeito principal <strong>de</strong> um<br />
crime horroroso.<br />
On<strong>de</strong> alojar Castanheiro Fúlvio, o Homem Voador. Eis um problema - pensou o<br />
cabo - sacolejando na boleia da charrete, agitada no avanço sobre a trilha<br />
enrugada, no rumo do povoado, meia légua abaixo. Não há um lugar<br />
suficientemente seguro on<strong>de</strong> o homem voador possa ficar <strong>de</strong>tido – seguiu<br />
pensando. A não ser talvez em meu próprio escritório - concluiu. Lá não há<br />
espaço, nem cama, mas para esta noite há <strong>de</strong> servir, até que se possa ajeitar<br />
coisa melhor. Assim raciocinou Mili com hábil pragmatismo. Consultou o<br />
companheiro que o acompanhava e assim ficou <strong>de</strong>cidido sem mais retardo.<br />
Mesmo porque, não havia opção à vista já que as duas únicas, digamos,<br />
repartições públicas do lugar eram o tal escritório e o salão que Sucupira<br />
Nemélio - o homem mais rico e agente público <strong>de</strong> Deserda<strong>dos</strong> - usava para o<br />
trato das coisas comunitárias. Audiência, <strong>de</strong>spachos, solenida<strong>de</strong>s cívicas,<br />
essas coisas. Impróprio, portanto, para uso policial. Promiscuida<strong>de</strong> impensável<br />
na aura <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>.<br />
Durante o resto do trajeto daquela singularíssima jornada, o trapezista<br />
continuou no mesmo estado <strong>de</strong> ler<strong>de</strong>za em que estava. Nem precisava muito<br />
zelo na custódia, estando ele naquele <strong>de</strong>lírio <strong>de</strong> pedra, com os olhos gazea<strong>dos</strong>,<br />
alheios ao que se passava, olhando pro lado <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si mesmo,<br />
procurando a alma mas sem ver nada. Assim o grupo seguiu, sacolejante, não<br />
sobressaltado contudo. A viagem não <strong>de</strong>morou visto que as ruínas da serraria<br />
e o tal escritório, ficavam no meio do caminho entre o circo e o povoado, colina<br />
abaixo num <strong>de</strong>clive mediano mas muito favorável. Cortaram o silêncio da noite<br />
por mais um quarto <strong>de</strong> hora e já lá estavam à porta do cômodo escolhido para<br />
servir <strong>de</strong> improvisada ca<strong>de</strong>ia. Não houve nenhum problema na manobra <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sembarque. A lua era cheia, o tempo fresco, a brisa amena. O trapezista até<br />
colaborou, <strong>de</strong>scendo maquinalmente o estribo da carroça sem precisar <strong>de</strong><br />
ajuda. Foi alojado na velha poltrona que era on<strong>de</strong> <strong>de</strong>via passar o resto da noite<br />
como pu<strong>de</strong>sse. E lá ficou quieto como vinha, cordado. Pássaro <strong>de</strong> triste figura,<br />
abatido e tremendamente contaminado com a suspeição <strong>de</strong> um bárbaro<br />
assassinato, cujos vestígios estavam estampa<strong>dos</strong> em todo o seu frontal, do<br />
rosto até a meta<strong>de</strong> do peito. Mili trocou <strong>de</strong> roupa, pegou a velha garrucha,<br />
conferiu a munição e coroou, finalmente, a sua autorida<strong>de</strong> pois não a há sem o<br />
respaldo da força. Na seqüência testou as tramelas das janelas e passou uns<br />
ca<strong>de</strong>a<strong>dos</strong> velhos que guardava casualmente na gaveta. Saiu e fez o mesmo<br />
com a porta, lacrando o ferrolho <strong>de</strong> fora. Parecia tudo seguro mas, mesmo com<br />
o estado letárgico do <strong>de</strong>tido, resolveu não correr risco e combinou com o<br />
prestativo assistente que montaria guarda à porta e seria rendido por ele às<br />
quatro horas da madrugada. Depois tiraria um ligeiro cochilo em casa, no<br />
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conforto da cama <strong>de</strong> casal, espaçosa pois ele era solteiro. Pretendia voltar às<br />
oito horas, ver se o suspeito já podia passar por um interrogatório. Isso<br />
acertado, o assistente <strong>de</strong> Mili – nosso bom Pinus Palpius - tomou o rumo <strong>dos</strong><br />
lampiões que piscavam a cerca <strong>de</strong> um quilômetro pra <strong>de</strong>ntro da mesma noite.<br />
Eram muitos pontos luminosos, alumiando as janelas, portas, alpendres e<br />
vielas do povoado que, àquela hora, excepcionalmente, estava todo <strong>de</strong>sperto,<br />
cochichando e agitado pela agitação <strong>de</strong> uma noite incomum. Tantos pontos<br />
flamejantes até ganhariam disputa com um bando <strong>de</strong> vaga-lumes, o que não<br />
era comum naquela hora tardia. A clarida<strong>de</strong> distante foi buscada com passos<br />
impeli<strong>dos</strong> por moto <strong>de</strong> ligeireza já que o compadre Pinus, no cumprimento da<br />
sua nobre obrigação, tinha visto muito <strong>de</strong> perto toda aquela surpreen<strong>de</strong>nte<br />
matéria. Assim pois, tinha muito para contar a compadres e comadres e<br />
urgência <strong>de</strong> aplacar a se<strong>de</strong> <strong>dos</strong> curiosos. E isso fez. Foi repetindo a história,<br />
pelas portas e janelas por on<strong>de</strong> teve que passar gastando naquele mistér<br />
falatório as poucas horas que tinha para tirar um <strong>de</strong>scanso. Não <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong><br />
acrescentar sua competente convicção <strong>de</strong> que o trapezista era mesmo o<br />
assassino da pobre mulher do circo, com que, quase to<strong>dos</strong> concordavam sem<br />
esforço <strong>de</strong> juízo, quem viu e quem não viu. Confesso que eu mesmo, faço<br />
parte <strong>de</strong>sse grupo. Mas, a bem da verda<strong>de</strong>, isso não fez diferença no<br />
seguimento da história. Assim como não fez saber o motivo do assassinato que<br />
até hoje permanece obscuro com o inquérito inconcluso pelas circunstâncias<br />
inusitadas que o cercaram <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o começo. E sinto <strong>de</strong>cepcioná-los, pois<br />
seguiremos não sabendo.<br />
A noite tinha sido longa pela sua rarida<strong>de</strong>. Ninguém conseguiu dormir direito no<br />
povoado e as conversas se esten<strong>de</strong>ram a<strong>de</strong>ntrando a madrugada, como em<br />
noite <strong>de</strong> velório. Mas o dia que surgiu compensou o tempo da espera,<br />
inundando a terra <strong>de</strong> luz e <strong>de</strong> azul como faz inexorável quase sempre.<br />
Contudo, os vestígios <strong>de</strong> um assassinato estavam frescos e os <strong>de</strong>stroços<br />
permaneciam espalha<strong>dos</strong>, incomodando. Tinham que ter cuida<strong>dos</strong>, como<br />
mandam os regulamentos <strong>dos</strong> homens e as leis imutáveis <strong>de</strong> Deus. Pois, ao<br />
crime não há água que lave, não há fogo que queime nem há tempo que<br />
esqueça. Tem que ser apurado, julgado e punido conforme o peso do caso.<br />
Cabo Mili – <strong>de</strong>pois das poucas horas <strong>de</strong> sono que tinha se reservado -<br />
acordou com esses pensamentos sábios e justos <strong>de</strong> crime e <strong>de</strong> castigo e sorriu<br />
com satisfação incontida naquela rara manhã. Ia ter um dia inteiramente<br />
diferente pela frente. Assim não tinha sido antes, nem <strong>de</strong>pois assim seria. De<br />
sorte que ele levantou animado apesar do pouco tempo <strong>de</strong> sono, vestiu-se,<br />
tomou um café miúdo, pegou sua égua castanha e rumou para a casa <strong>de</strong><br />
Sucupira Nemélio. Este o aguardava aflito, pois tinha saído do circo antes da<br />
tragédia e sabido do caso através <strong>de</strong> terceiros. Assim, contava ouvir logo a<br />
versão <strong>de</strong> quem ia tocar as investigações. Queria esclarecer alguns pontos<br />
estranhos pois tinha gente contando ter visto um pássaro dilacerando a<br />
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garganta da vítima à vista <strong>de</strong> to<strong>dos</strong>. Combinaram <strong>de</strong> ir juntos até o local em<br />
que o trapezista estava <strong>de</strong>tido. No caminho iriam conversando sobre o caso.<br />
Nemélio mandou buscar seu cavalo puro sangue que já estava arriado e<br />
mantido <strong>de</strong> prontidão, batendo os cascos e transbordando energia. Montou e<br />
seguiram juntos, trotando elegantes nas suas cavalgaduras rumo à serraria em<br />
ruínas. Era perto mas a manhã já principiava a esquentar quando apearam no<br />
<strong>de</strong>stino, com a conversa adiantada. Lá, além <strong>de</strong> Pinus Palpius que completava<br />
a guarda da noite conforme o combinado, estava também Cerejeira Xânvilus,<br />
madrugador, com a lista <strong>dos</strong> nomes das pessoas que coletara no circo, fruto<br />
zeloso naquela diligência <strong>de</strong> que fora incumbido na noite anterior. Formaram<br />
uma espécie <strong>de</strong> conselho <strong>de</strong> segurança e se puseram a examinar a lista da<br />
diligência. Tinha mais <strong>de</strong> cem nomes relaciona<strong>dos</strong>, com as respectivas funções<br />
que exerciam na companhia circense. Palhaços e bailarinas, domadores e<br />
acrobatas, serviçais e burocratas se apertavam irmana<strong>dos</strong> no rol <strong>dos</strong> suspeitos<br />
potenciais. O primeiro nome era o do gerente. Na primeira abordagem do cabo<br />
Mili ele havia dito que não sabia <strong>de</strong> nada do que tinha acontecido, mas<br />
concordaram que ele <strong>de</strong>via ser interrogado com mais <strong>de</strong>talhe e rigor,<br />
juntamente com o anão que tinha dito ter visto alguma coisa e, naturalmente o<br />
trapezista, principal suspeito do bárbaro assassinato. Xânvilus foi <strong>de</strong>spachado<br />
com a missão <strong>de</strong> trazer o dito cujo gerente e mais o anão. Partiu a galope,<br />
la<strong>de</strong>ira acima rumo ao elevado on<strong>de</strong> a lona se espalhava. Enquanto isso o<br />
cabo e o agente resolveram já começar a inquirir o trapezista e avançar o<br />
inquérito. Pinus Palpius foi encarregado <strong>de</strong> abrir a porta do escritório, vale<br />
dizer, da improvisada ca<strong>de</strong>ia. E o fez com todo o cuidado, <strong>de</strong>strancando o<br />
ferrolho com um mínimo <strong>de</strong> barulho, empurrando a porta e saltando <strong>de</strong> banda,<br />
tentando fugir da reta <strong>de</strong> um possível ataque. Enquanto isso cabo Mili se punha<br />
à frente do portal empunhando a garrucha e garantindo o revi<strong>de</strong>. A porta aberta<br />
mostrou silêncio e a escuridão do interior. Entraram <strong>de</strong>vagar acostumando as<br />
retinas. Dentro encontraram o trapezista sentado ainda na poltrona. Estava<br />
quieto, mas um olhar vivaz mostrava que ele já não estava mais no estado <strong>de</strong><br />
choque que tinha estado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que entrara no pica<strong>de</strong>iro do circo seguindo a<br />
mulher em seus passos moribun<strong>dos</strong>. O agente, o cabo e o assistente olharam<br />
um para o outro satisfeitos. Agora sim, iam po<strong>de</strong>r inquirir o suspeito e tentar<br />
clarear as sombras daquela história fantástica. Quem falou primeiro foi o cabo,<br />
na condição natural <strong>de</strong> comandante daquela operação. Postou-se a frente do<br />
homem que o acompanhou com o olhar. Perguntou seu nome, mas ele não<br />
respon<strong>de</strong>u. Perguntou <strong>de</strong> novo e <strong>de</strong> novo recebeu a mesma resposta, quer<br />
dizer nenhuma. E mais uma vez e outra sem resultado nenhum. O cabo então,<br />
com visível irritação, chamou Nemélio <strong>de</strong> lado e se puseram a conversar. Sem<br />
nenhuma ocultação pois queriam mesmo que o <strong>de</strong>tento escutasse a conversa.<br />
E ele escutou com visível interesse e sem nenhuma tensão. Trataram <strong>dos</strong><br />
requisitos para improvisarem uma espécie <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>ia. Sim, pois daquele jeito, a<br />
<strong>de</strong>tenção parecia ter que ser prolongada por uns tempos. Uma cama, restos<br />
<strong>de</strong> comida duas vezes ao dia, um par <strong>de</strong> roupas, um lençol e um cantinho para<br />
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o banho e as necessida<strong>de</strong>s. Iam ter que costurar essas coisas, tirando daqui e<br />
dali. Resumindo: ao final da conversação concluíram que o lugar da <strong>de</strong>tenção<br />
po<strong>de</strong>ria ser ali mesmo nas ruínas da serraria. A construção já não tinha mais<br />
teto mas as grossas e altas pare<strong>de</strong>s estavam sólidas e não seria difícil reforçar<br />
portas e janelas. A cama po<strong>de</strong>ria ficar <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> uma lona e, no mais, um<br />
caixote e uma latrina. Para roupas e comida podiam convocar os serviços das<br />
Filhas <strong>de</strong> Maria, sempre prontas e prestativas em nome da mãe santa que têm.<br />
Terminado o porco projeto do arremedo <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>ia, olharam o prisioneiro. Este<br />
<strong>de</strong>volveu o mesmo olhar. Na verda<strong>de</strong> até o adornou com um discreto sorriso<br />
que aumentou a irritação do cabo Mili, já então começando a se achar um tanto<br />
inoperante e meio imbecil. Ia ele tentar começar o interrogatório novamente,<br />
agora até com um par <strong>de</strong> safanões se preciso fosse. Foi quando ouviram o<br />
tropel <strong>de</strong> uma cavalgadura meio <strong>de</strong>sembestada. Era Cerejeira Xânvilus já <strong>de</strong><br />
volta e espavorido. Correram à porta. Estava sozinho. Não tinha cumprido o<br />
encargo recebido <strong>de</strong> trazer o gerente e o anão.<br />
- Cadê o pessoal que eu man<strong>de</strong>i buscar - gritou Mili redobrando a irritação pois,<br />
afinal, a manhã do dia seguinte já ia pelo meio e o inquérito do crime do dia<br />
anterior não tinha produzido ainda uma linha miserável.<br />
Cerejeira Xânvilus puxou as ré<strong>de</strong>as do animal para fazê-lo sossegar e quase<br />
<strong>de</strong>itou-o ao chão. Apeou afobado e gritou:<br />
- O povo todo sumiu, o circo está vazio!<br />
Cabo Mili quase o ergueu pelo colarinho amassado e sujo.<br />
- Como po<strong>de</strong> ser. Uma fuga coletiva?<br />
- Não sei - respon<strong>de</strong>u o compadre Cerejeira – Ninguém viu nada, todo mundo<br />
sumiu.<br />
- E a lona, equipamentos, viaturas? – Insistiu o cabo.<br />
- Isso está tudo lá, mas não achei uma alma viva, nem mesmo os bichos –<br />
completou o ajudante, atropelando as palavras e cuspindo estilhaços <strong>de</strong> saliva<br />
a perigosa distância enquanto tentava falar, explicando o inexplicável.<br />
Mili estava estupefato com aquela notícia absurda. Afinal como era possível<br />
<strong>de</strong>saparecer mais <strong>de</strong> cem criaturas, literalmente da noite para o dia? Mas não<br />
quis per<strong>de</strong>r tempo com aquela discussão inverossímil. Voltou correndo para<br />
<strong>de</strong>ntro do escritório, seguido <strong>dos</strong> companheiros. Pelo sim, pelo não, queria ter<br />
certeza <strong>de</strong> que o prisioneiro ainda estava lá. E estava. Estava lá Castanheiro<br />
Fúlvio, exato no mesmo lugar. E para surpresa geral falou pela primeira vez:<br />
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- Não se preocupem com meus companheiros, eles nada têm com essa<br />
história. Eu matei aquela mulher. Eu sou o assassino da minha bem amada<br />
Acácia Laetitia, minha doce Laé, aquela que me ensinou a voar.<br />
Aroeira Militatus olhou para Cerejeira Xânvilus que olhou para Pinus Palpius<br />
que olhou para Sucupira Nemélio. E repetiram no sentido inverso. To<strong>dos</strong> com<br />
olhares incrédulos e expressão bestificada. Era muita coisa para acontecer em<br />
menos <strong>de</strong> vinte e quatro horas no pacato arraial <strong>de</strong> Chapadão <strong>de</strong> Deserda<strong>dos</strong>.<br />
QUINTA PARTE<br />
Aos doze anos Cedro Cedrus, <strong>de</strong>pois Angélico, ficou sozinho no mundo. A mãe<br />
morreu cozida na dor <strong>de</strong> ter sabido que ele teria poucos anos <strong>de</strong> vida e isso<br />
tinha começado no dia da visita à cigana e avançava implacável. Era a<br />
seqüência das tragédias da mesma paixão que não a queriam <strong>de</strong>ixar em paz,<br />
mas finalmente <strong>de</strong>ixaria, já que nada dura mais do que <strong>de</strong>via durar, pois junta<br />
muitos <strong>de</strong>stroços no caminho. A avó <strong>de</strong>snorteou-se também sem saber o que<br />
fazer do futuro <strong>de</strong> quem não tinha futuro. Mas ele seguiu vivendo sem querer e<br />
sem saber que não podia fazer isso, pois o fim do começo não foi o começo do<br />
fim. A mãe morreu dormindo, num <strong>de</strong>zembro e, extravasando uma mágoa<br />
contida, nem se <strong>de</strong>spediu do mundo. A avó levou mais quatro longos anos para<br />
morrer, prazo em que contou com a solidarieda<strong>de</strong> e dor <strong>de</strong> primas e<br />
adjacentes, ro<strong>de</strong>ando o tempo todo o seu leito <strong>de</strong> moribunda. Pouco antes <strong>de</strong><br />
morrer Açucena tinha contado à mãe o segredo do futuro sem futuro do<br />
pequeno Cedro, o que po<strong>de</strong> ter sido a causa do cancro que se abriu na perna<br />
da pobre d. Violeta Cedrus e que acabou por comer a sua vida inteira<br />
agregando muita dor física às feridas da alma. Tinha se esquecido da história<br />
mentirosa <strong>de</strong> que o pequeno nem era seu neto. Mas nisso nunca pôs mesmo<br />
fé, assumindo as dores uma a uma, como avó verda<strong>de</strong>ira que era e se sentia<br />
apesar das provas para provar o contrário. Jazeram as duas, lado a lado,<br />
enterradas no quintal, junto a um muro <strong>de</strong> adobe carunchoso. Duas cruzes<br />
brigando com o mato, nada mais na memória. Os vestígios da tumba do dr.<br />
Umbuzeiro Cedrus já tinham se apagado, somando ao <strong>de</strong>sleixo que varreu<br />
aquela casa nos últimos anos. De certa forma ali se extinguia a dinastia <strong>dos</strong><br />
Cedrus pois o filho <strong>de</strong> Açucena a ela não daria continuida<strong>de</strong>, pelo menos não<br />
nos registros <strong>dos</strong> cartórios. Daí, oficialmente a mãe não teve neto e a avó não<br />
teve bisneto. Raízes, enfim, não marcam a nossa história e, quem sabe mais<br />
do que eu conto aqui agora, sabe que Cedro Angélico acabaria por renunciar<br />
ao lugar on<strong>de</strong> nasceu com certo radicalismo.<br />
Naquele tempo que antece<strong>de</strong>u e mesmo no que coincidiu com as mortes, o<br />
menino, apesar da ida<strong>de</strong>, ainda não tinha posto o pé na escolinha do povoado<br />
e tinha aprendido a ler e escrever em casa, apartado do mundo e livre da rotina<br />
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das obrigações e disciplinas <strong>dos</strong> dias na or<strong>de</strong>m da vida. É que a mãe e <strong>de</strong>pois<br />
a avó, como dito, não sabiam o que fazer com o presente <strong>de</strong> quem nem tinha<br />
futuro e cuidaram só do essencial, <strong>de</strong>snorteadas que estavam na sua aflição,<br />
uma <strong>de</strong> cada vez mas, somando suas penas no peso da penitência que tomou<br />
conta da casa. Não havia planos <strong>de</strong> médio e <strong>de</strong> longo prazo. De sorte que tudo<br />
que <strong>de</strong>le dizia respeito era para o imediato, para um mundo restrito <strong>de</strong> sala,<br />
quarto e quintal. Nada <strong>de</strong> prazos longos, <strong>de</strong> investimentos futuros. Cada dia<br />
guardando sentido em si mesmo. Daí pois que ele se iniciou como noviço da<br />
vida sem o senso da provisão, sem compromissos, pois compromissos<br />
pressupõem o direito <strong>de</strong> cobranças adiante e impõe o senso da escassez e a<br />
regra da economia para saldar as pendências. Há quem diga que é daí que<br />
nasce o sentido pragmático <strong>de</strong> que todo ser é dotado. Claro que, no bojo <strong>de</strong><br />
tudo isso, mantido isolado, ele também não fez amiza<strong>de</strong>s e disso <strong>de</strong>corre a<br />
exacerbação da sua veia egoísta, completando o lado mais polêmico da sua<br />
forma <strong>de</strong> ser e da vida que levou. Mas quanto mais longe do mundo, mais<br />
queria conhecê-lo, senti-lo <strong>de</strong> algum modo, e ficava tampando os vazios das<br />
horas com o segredo das letras estampadas nas almas <strong>dos</strong> velhos livros do dr.<br />
Umbuzeiro, na vasta biblioteca do fundo do corredor, or<strong>de</strong>na<strong>dos</strong> em<br />
escaninhos segundo as partes com que a alma se reparte e a maioria nem<br />
nota. O pequeno Cedro ali passava os dias na companhia <strong>dos</strong> livros numa<br />
atração anormal para uma simples criança, inda que tão diferente no sentido<br />
pedagógico e da inserção social, por via <strong>de</strong> conseqüência. Compreensível,<br />
contudo, essa atração para quem não tinha muita obrigação com que se<br />
ocupar, confinado no seu mundo <strong>de</strong> clausura, distante do mundo real. No seu<br />
imaginário universo, escolhido a bel prazer, on<strong>de</strong> o tempo não corria ou, se<br />
corria, podia correr <strong>de</strong> novo, pois é assim o feitiço da ficção. Bastava voltar as<br />
páginas. Também podia escolher as partes que convinham garimpando o<br />
prazer, pulando por cima do resto como se fosse magia. Assim a vida muito<br />
boa parecia, posto que um tanto irreal, <strong>de</strong> qualquer lado que se olhe. Mas essa<br />
era a tendência <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a concepção e o resto agregou com muita facilida<strong>de</strong>.<br />
A maioria concorda que a escola é a célula mater na formação do caráter. No<br />
caso do nosso herói, que escola não freqüentou, há mais coisas para se<br />
pensar da mais vã filosofia, pertinentes, contudo, nesse exato momento.<br />
Coisas boas e más como acontece em tudo e a que não quero imprimir meus<br />
juízos <strong>de</strong> valores, estando no meio da história e aberto às divergências. Mas<br />
uma coisa é clara como conseqüência do <strong>de</strong>talhe principal da vida <strong>de</strong> Cedro<br />
Cedrus: acabou se apegando à cultura oriental que, convenhamos, não entra<br />
na porta da escola do lado do oci<strong>de</strong>nte e vice-versa também. Vai daí que<br />
atalhou o ascetismo cristão das letras paroquiais a que estaria fadado por falta<br />
<strong>de</strong> opção e excesso <strong>de</strong> contrição. E acabou conhecendo poetas da Arábia,<br />
filósofos da China e ilumina<strong>dos</strong> da Índia e inserindo-os com letras e ilustrações<br />
na sua formação libertina, no sentido iluminista. O resultado <strong>de</strong> tanta abertura<br />
não podia ser diferente, e não foi. Cedo se convenceu que o mundo é um<br />
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jardim do prazer para ser <strong>de</strong>sfrutado, sem cercas e muros para serem<br />
escala<strong>dos</strong>. E a isso <strong>de</strong>u segmento no moto da sua vida. Se ganhou ou per<strong>de</strong>u,<br />
o leitor que o julgue com sua sabedoria, sua escolarida<strong>de</strong> e os santos<br />
ensinamentos a que foi submetido.<br />
Na parte religiosa houve dubieda<strong>de</strong>. Catecismo não houve pois ele estava<br />
inserido na gra<strong>de</strong> curricular da escolinha da paróquia que o menino não<br />
freqüentou, como dito. A mãe embutia uma doce revolta ousando pensar que<br />
Deus talvez visse no filho uma simples fruta podre caída da árvore maldita da<br />
sua paixão. Não chegava a se atrever a pensar isso com todas as letras, nem<br />
inseria essa agonia nas suas orações que nunca <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> ser freqüentes<br />
nem estavam ausentes na hora em que <strong>de</strong>ixou esse mundo com o rosário<br />
estrangulado entre os <strong>de</strong><strong>dos</strong> moribun<strong>dos</strong>, sem ter coragem <strong>de</strong> pensar para<br />
on<strong>de</strong> ia e qual a serventia da herança que <strong>de</strong>ixava. Por conta <strong>de</strong>ssa mágoa mal<br />
resolvida ia adiando a iniciação do filho nos mistérios da trinda<strong>de</strong>. D. Violeta até<br />
tentou remediar essa grave omissão mas, talvez até pensasse como a filha, e o<br />
seu magistério sagrado não foi pleno nem muito empenhado. Nem ministério<br />
chegou a ser, pois não havia um pingo <strong>de</strong> fé. Resultou <strong>de</strong> tudo isso que o<br />
menino nunca chegou a viver o conflito da balança entre as privações efêmeras<br />
da terra e os prêmios eternos do céu. E, justiça seja feita, isso em nada o<br />
<strong>de</strong>smereceu. Enfim, as luzes do oratório da alcova da avó nunca conseguiram<br />
lumiar os escuros da alma do pequeno Cedro, muito menos do Cedro adulto e<br />
distante e nem mesmo do Cedro provecto às vésperas da hora crucial <strong>de</strong> ser<br />
chamado a prestar contas ao Senhor, como acontece com to<strong>dos</strong> e que to<strong>dos</strong><br />
esquecem com muita facilida<strong>de</strong> quando estão distantes do chamamento. Mas,<br />
mesmo mais livre do que o normal nos mortais, nosso pequeno herói nem<br />
sempre podia inventar a realida<strong>de</strong> e saltar os <strong>de</strong>sígnios <strong>de</strong> Deus do jeito que<br />
lhe convinha. E aqui chamo um exemplo crucial: a morte da mãe. O<br />
incompreensível significado daquela súbita ausência o abalou como nada mais<br />
faria nas oito e meia <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> anos que viveu. Foi a coisa mais real <strong>de</strong> toda<br />
a sua existência, tão concreta quanto um murro na cara, quando menos se<br />
espera. Apesar da pouca ida<strong>de</strong> - que é quando essas coisas são absorvida<br />
com uma certa naturalida<strong>de</strong>, como to<strong>dos</strong> muito bem o sabemos - ele sentiu<br />
uma dor estranha e prematura. Pois não conseguia enten<strong>de</strong>r a partida <strong>de</strong>finitiva<br />
da mãe, que sempre estivera ali, doce e macia, ao alcance da mão e sempre a<br />
afagá-lo com o negro <strong>dos</strong> olhos e a carícia do olhar calmante que vazava e<br />
cobria, aquecendo num colo cheiroso. E ela era Açucena, tanto mãe quanto<br />
mulher e muito mais do que flor.<br />
A sucessão lenta <strong>dos</strong> dias tinha perdido o sentido sem aquela proteção, sem<br />
aquela aprovação. Isso o foi fazendo murchar numa marcha galopante,<br />
aumentando ainda mais a agonia da avó, mais fiada na trágica premonição da<br />
brevida<strong>de</strong> da vida do neto. Mas o tempo corrigiu o sofrimento, como costuma<br />
fazer. E o brilho voltou aos olhos embacia<strong>dos</strong> da cria, um pouquinho a cada<br />
dia, somando tudo no final como era antes.<br />
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Orquí<strong>de</strong>a Nigina tem a ver com o resto da história, quero dizer da narrativa<br />
sobre a formação do caráter do pequeno Cedro Cedrus, que <strong>de</strong>pois viraria<br />
Angélico, completando o ciclo como veremos na hora <strong>de</strong>vida. Ela sempre<br />
esteve perto <strong>de</strong> tudo aquilo, ajudando no trabalho pesado da casa <strong>dos</strong> Cedrus<br />
quando tinha precisão. Depois da morte <strong>de</strong> Açucena, mais ainda, pois d.<br />
Violeta tinha perdido todas as condições sobre as rotinas da existência. A casa<br />
também principiava a morrer, contaminada com o <strong>de</strong>sleixo do <strong>de</strong>snorteio <strong>de</strong><br />
quem não vê vida pela frente quando acorda <strong>de</strong> manhã. A preta assumiu as<br />
coisas como pô<strong>de</strong> e como era servida no seu berço <strong>de</strong> humilda<strong>de</strong> cheio <strong>de</strong><br />
obrigações e carente <strong>de</strong> direitos. E mais, se imiscuiu na tutela do pequeno sem<br />
ter sido convidada. Ninguém podia impedir e ela estava cismada com a morte<br />
da moça, assim tão cedo. Será que a prima Azaléia Caucásia tinha errado no<br />
vaticínio e a morte anunciada era da mãe e não do filho? Mas não pô<strong>de</strong> dirimir<br />
a dúvida pois a cigana cinzenta, carcomida e tabagista, tinha voltado pra nãosei-aon<strong>de</strong><br />
e não tinha dado notícias, lá se iam dois anos. Nigina se sentiu um<br />
pouco responsável pela morte da mãe e também pelos infortúnios do menino.<br />
Teria sido ele con<strong>de</strong>nado sem ter sido preciso? E resolveu remediar isso,<br />
pondo um <strong>de</strong>do na ferida que o <strong>de</strong>stino abria. Mesmo sem ter certeza da<br />
carência, era preciso ensinar-lhe o movimento <strong>dos</strong> braços da balança da vida e<br />
o gosto que tem cada parte da maçã do <strong>de</strong>sejo e do amor. Empenhou-se<br />
naquele renascimento como se tivesse o po<strong>de</strong>r. Gastou quatro anos nessa<br />
educação rara e extemporânea, com jeito e paciência, traduzindo e ilustrando<br />
os significa<strong>dos</strong>, enquanto d. Violeta Cedrus <strong>de</strong>finhava, alheia àquela pedagogia<br />
incomum e discreta. Deveria ter sido diferente?<br />
Não se po<strong>de</strong> julgar o mérito da preparação, pois controvérsias existem e todas<br />
com fundamentos e pitadas <strong>de</strong> bom-senso. Mas, com acerto ou não, o fato é<br />
que o menino acabou saindo da sombra funeral que pairava sobre ele, mesmo<br />
sem ter sabido se ela <strong>de</strong> fato existia. Mas foi como se soubesse, pois Cedro<br />
Cedrus, <strong>de</strong>pois Angélico nunca chegaria a ter um projeto <strong>de</strong> vida a que<br />
pu<strong>de</strong>sse seguir e viveu fazendo tratos efêmeros que lhe trouxessem prazer e<br />
ludibriassem o resto que ainda estava por vir.<br />
E assim foi a formação marcante do pequeno órfão nos primeiros doze anos <strong>de</strong><br />
vida, escorado na mágica <strong>dos</strong> livros da biblioteca do avô e no mistério das<br />
coisas que não costumam ser escritas e que as bocas passam aos ouvi<strong>dos</strong> que<br />
as <strong>de</strong>volvem às bocas, um pouco mais adiante sem se importar com o real.<br />
Decorre daí, talvez, o jeito singular da vida que viveu, no embalo do fortuito,<br />
qual pluma ao vento buscando o rumo mais fácil e não o mais indicado pela<br />
opinião da maioria.<br />
SEXTA PARTE<br />
Aos doze anos Cedro Cedrus, <strong>de</strong>pois Angélico, ficou sozinho no mundo, dizia<br />
eu ainda há pouco e agora repetindo, fechando esta parte da história. Sim, pois<br />
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nenhuma das boas primas e vizinhas quis assumir os encargos <strong>de</strong> uma criança<br />
tão órfã, num contexto tão penitente. De sorte que ele acabou tendo que ficar<br />
sob a tutela do estado. Estou exagerando pois não era oficial e me explico<br />
melhor: é que Sucupira Nemélio - o agente comunitário - mas acima <strong>de</strong> tudo<br />
comerciante <strong>de</strong> robusto cabedal - viu nele o filho que não tinha e resolveu<br />
assumi-lo, trazendo-o para <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> casa e alojando-o no peito, do lado certo<br />
e mais vazio. Nigina intermediou o negócio e foi a última coisa que fez antes <strong>de</strong><br />
fugir das suas rotinas naquela fase da vida e ir para lugar incerto, sem a rosa<br />
<strong>dos</strong> ventos, como a prima já tinha feito e criado o prece<strong>de</strong>nte. Há quem diga<br />
que a fuga tem a ver com questões <strong>de</strong> remorsos. É possível, mas é difícil<br />
afirmar com os da<strong>dos</strong> que dispomos. Fato é que aquela criatura conhecia as<br />
necessida<strong>de</strong>s <strong>dos</strong> Cedrus e <strong>dos</strong> Nemélio pois convivia em ambas as casas<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito tempo antes daqueles aconteci<strong>dos</strong>. Havia vantagens mútuas<br />
convindo na relação filial e a causa facilmente se assentou. Acabou nosso<br />
pequeno herói atrás <strong>de</strong> um balcão <strong>de</strong> secos e molha<strong>dos</strong>, encantando a<br />
freguesia com as histórias que contava no entremeio das vendas, escorado no<br />
mundo das histórias que lera e que faziam variantes os horizontes contritos da<br />
gente do povoado, massacrado pelo peso do real, sem atalho e sem solução.<br />
Era muito jeitoso com o lado doce das coisas e aplicou esse jeito no seu jeito<br />
<strong>de</strong> ven<strong>de</strong>r e no dom <strong>de</strong> convencer das necessida<strong>de</strong>s inda quando inexistentes<br />
ou falsas no sentido mais estóico. Literalmente tentava encantar os clientes e<br />
nisso foi pioneiro. Mas do resto não conhecia, não nasceu para negócios,<br />
organizar transações e administrar escassez. Muito antes pelo contrário. Tanto<br />
assim que Nemélio <strong>de</strong>ixou com ele só a conta da casa e o mister ven<strong>de</strong>dor da<br />
loja do povoado, reservando para si a incumbência do resto e que era o<br />
principal <strong>dos</strong> domínios espalha<strong>dos</strong>. Assim, como há muito vinha querendo, o<br />
negociante pô<strong>de</strong> viajar mais amiú<strong>de</strong> e se <strong>de</strong>dicar um pouco mais ao miolo <strong>dos</strong><br />
negócios, tais como os interesses imobiliários na capital, os negócios no<br />
atacado e o comércio <strong>de</strong> diamantes. E <strong>de</strong>u certo pois com esse pequeno<br />
arranjo os negócios dobraram. Treze anos <strong>de</strong> crescimento e riqueza. Mas para<br />
o jovem Cedro correram assim sem muita variação e sem nenhuma nova<br />
janela para espalhar o olhar curioso que vinha acumulando <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua<br />
orfanda<strong>de</strong> e sua <strong>de</strong>cisão, silente e natural <strong>de</strong> evitar beber do cálice das bebidas<br />
mais amargas, enquanto tivesse jeito. E ele acreditava que jeito sempre<br />
haveria.<br />
Um dia a coisa se encaixou com exata precisão e foi aí que a vida <strong>de</strong> Cedro<br />
Cedrus começou a mudar, seguindo o <strong>de</strong>stino que já estava marcado, sem<br />
ajuda <strong>de</strong> ciganos ou <strong>de</strong> outros adivinhos. Como é comum acontecer, tão<br />
marcante mudança resultou <strong>de</strong> um singelo ocorrido que, se não causasse o<br />
que causou, não teria tido registro. Falo <strong>de</strong> um jeito na coluna que colocou o<br />
mais antigo e leal criado da família Nemélio numa condição meio que<br />
entrevada, obrigando-o a conter os movimentos. Foi para trás do balcão restrito<br />
ao atendimento, <strong>de</strong>ixando à juventu<strong>de</strong> <strong>dos</strong> vinte anos do rapaz os sacolejos da<br />
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entrega das compras <strong>dos</strong> clientes na boleia <strong>de</strong> uma claudicante carroça,<br />
escorada e rangente. Nessa função das entregas Sucupira Nemélio não queria<br />
qualquer um, pois tinha tido problemas <strong>de</strong> extravios <strong>de</strong> mercadorias sem ter<br />
podido apurar com precisão o doloso ou culposo da intenção embutida no<br />
sumiço. Assim, confiou ao filho o que confiança pedia.<br />
Mas naquela segunda-feira não tinha nenhuma entrega programada e os dois<br />
estavam na venda, meio sem o que fazer, ajeitando prateleiras e espantando<br />
poeiras. Foi aí que o mordomo do marquês <strong>dos</strong> Choupos entrou, soberbo no<br />
seu paço <strong>de</strong>sfilante das estradas e das ruas européias, tão cheias <strong>de</strong><br />
civilização e encanto. O jovem Cedrus nunca o tinha visto, mas tinha ouvido<br />
falar. Adiantou-se para atendê-lo, pois sabia da fama do marquês, notório<br />
consumidor <strong>de</strong> aquém e além mar. Era rara e bem-vinda aquela aparição. As<br />
compras do nobre senhor eram espaçadas. Quando feitas, contudo,<br />
compensavam a rarida<strong>de</strong> pelo tanto e qualida<strong>de</strong>. Mas o melhor: pagas com<br />
belas moedas <strong>de</strong> ouro que valiam pelo peso muito mais que pelo cunho. Eis<br />
pois a razão do interesse justificado <strong>de</strong> Cedro Cedrus, centrado na sorte<br />
daquele dia. Afinal, ainda que um tanto <strong>de</strong>sligado do pecuniário, ele era sócio e<br />
não era burro. E também naquela vez a compra foi generosa. O mordomo<br />
puxou uma lista <strong>de</strong> molha<strong>dos</strong> entremeada <strong>de</strong> secos, coisas básicas que sabia<br />
ali encontrar <strong>de</strong> imediato para repor a <strong>de</strong>spensa do trivial na Casa <strong>dos</strong><br />
Choupos. Exibiu outra lista <strong>de</strong> coisas que teriam que ser trazidas da Europa e<br />
entregues em dois meses, mais tardar. Não haveria problemas pois Nemélio &<br />
Cedrus também prestavam esse serviço <strong>de</strong> importação com base nos negócios<br />
da capital e representante na Europa. Conferi<strong>dos</strong> os itens da lista, tudo podia<br />
ser fornecido e a transação foi ligeira. Ao final, a bela compra esperada e o<br />
compromisso <strong>de</strong> um pagamento mais belo ainda, em luzentes e pesadas<br />
moedas douradas, assim que a compra fosse entregue. Tudo isso fez nosso<br />
herói acompanhar o freguês até sua montaria e se <strong>de</strong>spedir <strong>de</strong>le com correta<br />
educação mostrando também a fidalguia que tinha <strong>de</strong> berço, raiz antiga <strong>dos</strong><br />
Cedrus que a <strong>de</strong>cadência não anulou. O mordomo pareceu gostar do<br />
tratamento, respon<strong>de</strong>ndo do mesmo jeito. O jovem voltou à loja quase<br />
saltitante, levitando na vantagem da feliz transação. A exigência <strong>de</strong> que a<br />
entrega da mercadoria local fosse feita antes do anoitecer do dia seguinte foi<br />
aceita sem ressalvas, mesmo porque, com ela vinha o pagamento, a parte<br />
melhor do trato. A entrega da encomenda, a duas léguas do povoado, seria<br />
como que uma pequena aventura para o rapaz. Ainda mais pela chance <strong>de</strong><br />
conhecer o lendário solar do marquês <strong>dos</strong> Choupos e todo o maravilhoso Vale<br />
das Santas Delícias, on<strong>de</strong> nunca tinha ido apesar da encolhida distância que o<br />
dito estava dali. Assim, incontinente, se pôs ele a carregar a encomenda para a<br />
entrega acertada, antes do mais tardar, na tar<strong>de</strong> daquele dia.<br />
Ninguém sabia muita coisa sobre o marquês. Aliás, ninguém sabia nem como<br />
ou quando ele veio parar ali naquele ermo do mundo, transplantando os seus<br />
choupos ancestrais, por cima do oceano. Diziam que ele provinha <strong>de</strong> antiga<br />
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família <strong>de</strong> fidalgos, gloriosa no tempo <strong>dos</strong> reis e arruinada quando eles também<br />
o foram por conta da revolução que iluminou a razão do mundo lavando com<br />
sangue a poeira da tradição. Devia haver um pouco <strong>de</strong> fantasia nesse<br />
assentamento, mas é fato que ninguém se lembrava <strong>de</strong> quando o solar tinha<br />
sido construído e se fora ele o seu primeiro habitante. A imponente construção<br />
sempre estivera ali no fundo do vale ver<strong>de</strong>, duas léguas do chapadão estéril<br />
on<strong>de</strong> se erguia o povoado. O Vale das Santas Delícias ficava ao norte. Seu<br />
ver<strong>de</strong>jante frescor era um estranho contraste com a ari<strong>de</strong>z do chapadão,<br />
agravado ainda mais com a <strong>de</strong>vastação da floresta do vale do lado sul, tragada<br />
pela faina das serras, serrando suas ma<strong>de</strong>iras. Ali, no meio do inverossímil<br />
vergel, nascia o regato que abastecia as necessida<strong>de</strong>s do povo <strong>de</strong><br />
Deserda<strong>dos</strong>, mas a capitação era feita longe da proprieda<strong>de</strong> do marquês, água<br />
abaixo. Quem quisesse po<strong>de</strong>ria contemplar a edificação <strong>de</strong> longe com suas<br />
torres <strong>de</strong> pedra, seus telha<strong>dos</strong> abruptos, seus vitrais colori<strong>dos</strong> e seu<br />
harmonioso excesso <strong>de</strong> janelas, altas e <strong>de</strong>lgadas, enfileiradas como sentinelas<br />
guardando um mundo diferente. Mas, impossível uma aproximação. Toda a<br />
proprieda<strong>de</strong> era cercada <strong>de</strong> uma faixa <strong>de</strong> mata <strong>de</strong>nsa <strong>de</strong> árvores intricadas e<br />
sortidas, irmanadas no seu mister <strong>de</strong>fensor, reforçadas <strong>de</strong> espinheiros e<br />
traiçoeiros peçonhentos. Para reforçar tudo isso, um muro <strong>de</strong> pedras abraçava<br />
protetor o solar e seus jardins setecentista, raros e <strong>de</strong>lica<strong>dos</strong>, jardina<strong>dos</strong> pela<br />
própria natureza no seu po<strong>de</strong>r criador sem igual. Nada crescia mais do que<br />
<strong>de</strong>via, nada secava e havia em tudo harmonia. E mais, no quesito da <strong>de</strong>fesa<br />
uma matilha vigilante, cujos uivos incessantes, a qualquer hora do dia ou da<br />
noite, intimidavam os curiosos e <strong>de</strong>sacorçoavam os atrevi<strong>dos</strong>. No máximo, por<br />
pura coincidência, alguém podia cruzar com o marquês cavalgando<br />
casualmente ao sol ameno da tar<strong>de</strong> terminal nos extremos da proprieda<strong>de</strong>,<br />
acompanhado <strong>de</strong> suas ca<strong>de</strong>las francesa, brancas e <strong>de</strong>lgadas: Juliette e<br />
Justine.<br />
E foi com elas que Cedro Cedrus <strong>de</strong>u primeiro quando cruzou o portão do muro<br />
<strong>de</strong> pedras e entrou nos jardins que cercavam o solar, trazendo a encomenda<br />
do marquês <strong>dos</strong> Choupos. A matilha não uivou e nem apareceu, como se<br />
tivesse recebido uma or<strong>de</strong>m clara nesse preciso sentido. Só as ca<strong>de</strong>las dóceis<br />
e alegres para recebê-lo. Seria aquele seu primeiro encantamento <strong>de</strong> uma<br />
série <strong>de</strong>slumbrante que estava começando e duraria alguns anos.<br />
Há vinte metros da entrada, sobre o calçamento pedregoso, estava o mordomo<br />
provedor, perfilado a esperá-lo. Sentinela parecendo um general. Fez sinal<br />
para que parasse, subiu na boleia sem ser convidado e o guiou por uma viela<br />
lateral, procurando os fun<strong>dos</strong> do amplo solar. O belo par <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>las não os<br />
acompanhou, seguindo garboso e ligeiro pela alameda principal la<strong>de</strong>ada <strong>de</strong><br />
choupos eternos. A carroça sacolejou mais cinqüenta metros sobre um<br />
calçamento pior do que o primeiro mas ainda assim transitável, melhor do que<br />
as vielas do povoado. A exuberância <strong>dos</strong> jardins, mesmo os que margeavam<br />
aquela estrada secundária, chamou a atenção do rapaz. Nunca tinha visto<br />
nada tão farto <strong>de</strong> ver<strong>de</strong>, tão enfeitado <strong>de</strong> flores, tão cheio <strong>de</strong> uma fina natureza.<br />
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No sítio do povoado, tão perto, arbustos carrasquentos, capim ralo e poeira é<br />
que era o natural. Também nunca tinha visto uma habitação tão gran<strong>de</strong> e<br />
majestosa. E concluiu, sem esforço, que um mundo melhor efetivamente existia<br />
como tinha tido notícia, além do que, até então tinha podido enxergar.<br />
Conheceu a casa pela porta da cozinha, mas nem por isso restou menos<br />
encantado. Ao contrário, ficou fortemente compelido a conhecer o resto. E<br />
pensou em arranjar um pretexto para fazer isso assim que concluísse a<br />
entrega. Ajeitou rapidamente os caixotes e pipas nas entranhas escuras e<br />
largas da <strong>de</strong>spensa. Mas não teve a menor oportunida<strong>de</strong>, a mercadoria ia<br />
sendo conferida a medida em que cada coisa era baixada e assim que o último<br />
volume foi ajeitado o mordomo fez o pagamento das moedas <strong>de</strong> ouro<br />
prometidas, mais uma a título <strong>de</strong> generosa propina. Despachou Cedro Cedrus,<br />
acompanhando-o <strong>de</strong> volta até o portão da saída e se <strong>de</strong>spediu com um gesto<br />
ininteligível. O rapaz se afastou lentamente contemplando a proprieda<strong>de</strong> por<br />
sobre o ombro. Reparou nas figuras <strong>de</strong> leões que adornavam<br />
<strong>de</strong>ssimetricamente a verga externa do portão. Rumou para casa num trote<br />
preguiçoso pensando em leões guarnecendo entradas <strong>de</strong> misteriosos solares.<br />
Prometeu a si mesmo que em breve voltaria. Vamos ver se cumpriu.<br />
SÉTIMA PARTE<br />
Aquela reunião estava muito animada para os seus precípuos motivos em que<br />
animação não cabia. Afinal, tratava-se <strong>de</strong> um assunto grave, quer dizer, o<br />
acerto <strong>dos</strong> <strong>de</strong>talhes para o confinamento seguro <strong>de</strong> Castanheiro Fúlvio, o<br />
trapezista, réu confesso do estranho assassinato <strong>de</strong> Acácia Laetitia, embebida<br />
no seu sangue num banho <strong>de</strong> violência. Nada jamais prece<strong>de</strong>nte, nem nada<br />
jamais subseqüente segundo, até agora, me é dado apurar. Mas o<br />
acontecimento tinha acendido uma gran<strong>de</strong> excitação no sono do povoado e<br />
aquilo era só a seqüência da fábula que se fez no lado real e na imaginação<br />
daquela gente contida pela mesmice. Sucupira Nemélio, na sua condição <strong>de</strong><br />
lí<strong>de</strong>r legitimamente constituído no cargo <strong>de</strong> agente comunitário por vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Sua Excelência Augusta e Serena tinha convocado a comunida<strong>de</strong> para discutir<br />
o local e as condições para que o réu restasse preso, à espera das or<strong>de</strong>ns<br />
superiores das instâncias <strong>de</strong> cima. Na vice-li<strong>de</strong>rança, como era habitual, padre<br />
Carvalho Meldi atuava, sempre muito sensato, conciliador e iluminado pelas<br />
suas orações. O projeto em discussão era aquele i<strong>de</strong>ado pelo cabo Mili, logo<br />
após a prisão. O trapezista ficaria confinado no próprio galpão da serraria em<br />
ruínas e o seu tratamento, pela via da misericórdia cristã, ficaria a cargo das<br />
pias moças <strong>de</strong> Maria. Ali estavam elas representadas por d. Dália Natatarius e<br />
d. Violeta Cedrus, eternas filhas da virgem, saltando sobre as ida<strong>de</strong>s. Mais, lá<br />
estava Mogno Pilpio, gran<strong>de</strong> mestre carpinteiro <strong>de</strong>voto <strong>de</strong> São <strong>José</strong>,<br />
convocado para opinar <strong>dos</strong> reforços em portas e janelas arruinadas pelo tempo<br />
e a falta <strong>de</strong> uso. Sem esquecer, claro, a tropa voluntária responsável pela<br />
guarda do preso, parte mais crítica da amadora <strong>de</strong>tenção. Esforça<strong>dos</strong> eram,<br />
52
to<strong>dos</strong>. O compadre Vinhático Roxílio já melhorzinho da gota espinhenta que lhe<br />
mordia o <strong>de</strong>dão, não estava presente. Não que não tivesse condição. É que<br />
tinha ficado <strong>de</strong> guarda, na custódia do preso. O projeto, em linhas gerais, foi<br />
prontamente aprovado, mesmo porque, nem outro havia para uma discussão<br />
<strong>de</strong> verda<strong>de</strong>. Assim a coisa simplificou e a animação <strong>dos</strong> <strong>de</strong>bates ficou para o<br />
zelo <strong>dos</strong> <strong>de</strong>talhes executórios da medida prisional. D. Nata não viu nenhum<br />
problema quanto a vestir e alimentar o preso por uns tempos. Concluíram que<br />
quatro famílias podiam se revezar na alimentação e que o singelo vestuário<br />
seria coberto por conta do padre Meldi e suas paroquianas, prendadas no pedir<br />
para conforto <strong>dos</strong> necessita<strong>dos</strong>. Açucena Cedrus mais as irmãs Natinha maior<br />
e Natinha menor, foram nomeadas pelas respectivas mães para cuidar <strong>de</strong> levar<br />
a alimentação do preso, duas vezes cada dia. Outras mais seriam chamadas.<br />
Quanto às instalações do arremedo <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>ia, mestre Pilpio reforçaria as<br />
tramelas, trocaria uma ou outra tábua mais carcomida e tudo mais necessário<br />
no capítulo das ma<strong>de</strong>iras. A falta <strong>de</strong> teto no galpão arruinado não chegou a<br />
preocupar pois as pare<strong>de</strong>s estavam sólidas e eram <strong>de</strong> boa altura, <strong>de</strong>sanimando<br />
as escaladas. Mas, pelo sim pelo não, se lembraram <strong>de</strong> manter o criminoso<br />
preso pelo pé em uma corrente <strong>de</strong> alcance sob medida para não tolher os<br />
movimentos nem exce<strong>de</strong>r na liberda<strong>de</strong>. Seria feita uma pequena cobertura <strong>de</strong><br />
telhas para que o trapezista pu<strong>de</strong>sse se abrigar das intempéries, quer dizer do<br />
sol inclemente pois que a chuva era rara. Um catre, uma latrina <strong>de</strong> lata num<br />
cercadinho para escon<strong>de</strong>r o pudor do banho e das necessida<strong>de</strong>s da fisiologia,<br />
na sua parte mais porca. Enfim, tudo mais ou menos como tinha sido pensado<br />
no projeto inicial, feito as pressas mas <strong>de</strong> muito pragmatismo como então se<br />
comprovou para gáudio <strong>de</strong> Mili – o i<strong>de</strong>alizador. Um intervalo <strong>de</strong> dois dias foi<br />
calculado para a expressa implantação das singulares medidas. Assim ficou<br />
tudo acertado e a assembléia se <strong>de</strong>sfez em clima <strong>de</strong> <strong>de</strong>smedida alegria como<br />
se o assunto tratasse <strong>de</strong> uma festa paroquial. O povoado se esqueceria rápido<br />
da vítima, mas levaria muitos anos para se esquecer do criminoso.<br />
OITAVA PARTE<br />
A vida <strong>de</strong> Açucena Cedrus estava fora <strong>dos</strong> eixos havia já quatro dias.<br />
Impensável às vésperas da sua viagem para o convento <strong>de</strong> Santa Branca <strong>dos</strong><br />
Lírios, mas assim era <strong>de</strong> fato e sem controle da razão pois um turbilhão se<br />
formara inteiro no povoado e nela ainda mais. O espetáculo do circo, a cena do<br />
estranho pássaro azul e da mulher moribunda, a notícia da prisão. Tudo isso<br />
tinha remoído o cotidiano, especialmente o da moça. Nela tinha feito parar o<br />
tempo e tornado o futuro sem sentido. Vinte e quatro horas da segunda-feira,<br />
mais vinte e quatro horas da terça, mais vinte e quatro da quarta, infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
minutos sucessivos e constantes. O que estaria acontecendo agora com<br />
aquele homem coberto <strong>de</strong> maravilhas e lambuzado <strong>de</strong> mistérios? A preparação<br />
do enxoval da prometida freirinha seguia nas mãos das tias, no meio <strong>de</strong> muita<br />
conversa sobre o assunto palpitante. Ela fingia interesse no labor, mas<br />
53
concentrada no assunto das conversas e esquecida da produção que então<br />
seguia lenta pela distração da conversa. A rotina da casa per<strong>de</strong>ra o interesse<br />
para ela. Arranjava visitas como há muito não fazia, farejando novida<strong>de</strong>s. As<br />
conseguia incompletas e se quedava ainda mais curiosa. Quando a mãe lhe<br />
<strong>de</strong>u a notícia do encargo na equipe <strong>de</strong> alimentação do trapezista ela sentiu que<br />
uma graça divina lhe caia no colo inquieto sob o peito palpitante. Ia po<strong>de</strong>r se<br />
aproximar, estar junto, conversar com o homem que enchia seu corpo com<br />
uma coisa quente e pulsante que nunca tinha sentido. Ainda mais assim, tão<br />
forte e <strong>de</strong> repente. Mas nem teve coragem <strong>de</strong> agra<strong>de</strong>cer a Deus, como sempre<br />
fazia, confiada na pureza <strong>de</strong> tudo o que <strong>de</strong>sejava. Nem precisava, mesmo<br />
nesse caso, pois graça mesmo não havia e muito menos pureza. Talvez fosse<br />
estigma. Isso ela não pedia. Mas não se arrepen<strong>de</strong>ria daquilo que se seguiu,<br />
abrindo o seu mundo <strong>de</strong> paixão, que o do <strong>de</strong>sejo já estava aberto e fervente.<br />
Naquele instante alvíssero, manteve a serenida<strong>de</strong>, planejando sem pensar,<br />
avançando sem sentir. Para d. Violeta mostrou apenas zelo e quis saber <strong>dos</strong><br />
<strong>de</strong>talhes da sua obrigação, compromisso pie<strong>dos</strong>o das Meninas <strong>de</strong> Maria.<br />
Afinal, foi lá que <strong>de</strong>scobriu sua santa vocação <strong>de</strong> ficar no serviço <strong>de</strong> Deus pelo<br />
resto da sua vida. Recebeu a orientação <strong>de</strong> procurar d. Nata e acertar com ela<br />
e as Natinhas. Mas nem precisou do incômodo, pois naquela tar<strong>de</strong> mesma<br />
recebeu o recado <strong>de</strong> que na segunda e na quarta-feira seguintes seria <strong>de</strong>la o<br />
encargo <strong>de</strong> levar a carida<strong>de</strong> do santo almoço para o pobre prisioneiro. Nem<br />
preciso dizer que a espera do seu turno foi a continuação do arrastar do tempo<br />
que já tinha começado muito antes. Mas para quem estava <strong>de</strong> fora o tempo<br />
correu exato como sempre corre e, <strong>de</strong>pois do domingo veio a segunda-feira,<br />
como sempre acontece. Às onze horas Açucena Cedrus já estava terminando<br />
os preparativos para sua ansiada missão. Separou a melhor parte do que havia<br />
sido preparado para o almoço da família, colocou numa vasilha <strong>de</strong> louça<br />
<strong>de</strong>corada <strong>de</strong> nobre procedência anglo-imperial, tampou com cuidado para não<br />
haver extravaso lambuzando os seus cuida<strong>dos</strong>. Fez uma trouxinha com uma<br />
pequena toalha alva <strong>de</strong> linho finamente bordada e enfiou um par <strong>de</strong> pesa<strong>dos</strong><br />
talheres <strong>de</strong> prata sob o nó. A mãe reparou no meticuloso zelo mas nada<br />
comentou. Na verda<strong>de</strong> achou cari<strong>dos</strong>o tão extremado cuidado. Pura e boa<br />
menina era a filha única <strong>dos</strong> Cedrus. Quem veio buscá-la foi o compadre<br />
Vinhático Roxílio como estava combinado. Empunhava com <strong>de</strong>streza as ré<strong>de</strong>as<br />
enceradas <strong>de</strong> uma sege, velha mas ampla e confortável, puxada por um cavalo<br />
negro fogoso. Apeou apenas para ajudá-la a embarcar. Tinha pressa pois ia<br />
assumir seu turno na guarda do preso. Recusou o convite pro cafezinho recémpassado<br />
e seguiu o <strong>de</strong>stino da sua obrigação. Tudo pareceu justo e perfeito<br />
como convinha que fosse naquela missão singular. Seguiram colina acima<br />
rumo à prisão improvisada. Vinte minutos foi o que gastaram para vencer o<br />
trajeto poeirento como era tudo por ali. À medida do avanço o coração da moça<br />
ia ficando apressado, exagerando na função <strong>de</strong> irrigar as veias do corpo e<br />
sustentar as funções <strong>de</strong> que ele era dotado. Mas ela não pensou<br />
54
particularmente em nada, senão na chance <strong>de</strong> ver o trapezista <strong>de</strong> alguma<br />
forma e ficar mais perto <strong>de</strong>le. Mais apressado ficaria seu confuso coração<br />
quando chegaram ao <strong>de</strong>stino. Ao longo do trajeto ela pouco conversou<br />
evitando extravasar curiosida<strong>de</strong> em excesso. Não conhecia o ritual do<br />
tratamento dispensado ao prisioneiro, também não quis perguntar, temendo<br />
levar água fria no que estava urdindo.<br />
Roxílio estacionou a sege <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> uma mangueira fron<strong>dos</strong>a protegendo o<br />
cavalo e o veículo do sol flamejante. Ela <strong>de</strong>sceu com cuidado, firmando um pé<br />
<strong>de</strong> cada vez no espaço exíguo <strong>dos</strong> <strong>de</strong>graus, prevenindo queda e protegendo a<br />
vasilha <strong>de</strong> algum aci<strong>de</strong>nte impensável. Não sabia, <strong>de</strong> fato, se ia po<strong>de</strong>r ter<br />
contato com o preso e aguardou, pon<strong>de</strong>rada como queria parecer. Roxílio<br />
<strong>de</strong>veria ren<strong>de</strong>r Pinus Pálpio na troca da guarda e trazia instruções do cabo Mili<br />
sobre cuida<strong>dos</strong> redobra<strong>dos</strong> <strong>de</strong> vigilância que ambos <strong>de</strong>viam observar <strong>de</strong> hora<br />
em diante. Encontrou o companheiro assentado na única poltrona do recinto,<br />
meio sonolento, <strong>de</strong>sguarnecendo a vigília. Entrou percutindo o assoalho com o<br />
salto das botas, balançando os móveis com o peso <strong>dos</strong> passos. A menina o<br />
seguiu e permaneceu em pé aguardando para saber a parte que lhe tocava<br />
naquela operação. Combinaram que Açucena po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar a matula sobre a<br />
mesa e esperar do lado <strong>de</strong> fora enquanto tratavam das tais instruções<br />
apertadas do cabo Mili. Ela obe<strong>de</strong>ceu, <strong>de</strong>ixou o pobre recinto entulhado das<br />
velharias e suas poeiras e foi se assentar num cepo encorpado, embaixo da<br />
mangueira fron<strong>dos</strong>a, ao lado da sege <strong>de</strong>susada. Sentiu-se inteiramente<br />
frustrada. Estava a poucos passos do prisioneiro mas parece que não teria<br />
nenhum contato com ele. Não podia ser assim um redondo fracasso, pensou<br />
com ansieda<strong>de</strong>. E a ansieda<strong>de</strong> empapou rapidamente os seus pensamentos e,<br />
incontinenti, na incontinência da ida<strong>de</strong> e da pesada paixão ela passou a agir<br />
para que não fosse assim. Levantou foi até a porta da miserável sala on<strong>de</strong> os<br />
dois guardas confabulavam e bateu <strong>de</strong>licadamente. Pálpio abriu e perguntou o<br />
que ela queria.<br />
- Desculpem a interrupção. É que mamãe me recomendou que não <strong>de</strong>ixasse a<br />
vasilha, pois faz falta lá em casa. Tenho que levá-la <strong>de</strong> volta ainda agora.<br />
Não era essa a rotina que vinha sendo seguida pelas meninas Natinhas,<br />
pensou Pinus Pálpio. Elas <strong>de</strong>ixavam a refeição e recolhiam a vasilha no dia<br />
seguinte sem mais outra condição. Mas a pon<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> Açucena pareceu<br />
pertinente pois ela só voltaria daí a dois dias. Conhecia os rigores <strong>de</strong> d. Violeta,<br />
nas suas instruções. Assim, sem muita reflexão, os guardiões do preso<br />
resolveram aten<strong>de</strong>r ao ardiloso apelo da inocente menina. E eis o verda<strong>de</strong>iro<br />
princípio <strong>de</strong> uma história <strong>de</strong> paixão que seguiremos contando, uma parte <strong>de</strong><br />
cada vez. Roxilio abriu a gaveta da escrivaninha, tirou uma argola <strong>de</strong> ferro com<br />
duas chaves e se dirigiu à entrada do galpão <strong>de</strong>stelhado que <strong>de</strong>tinha o<br />
trapezista. Açucena pegou a trouxinha do almoço e o seguiu triunfante. A porta<br />
55
da prisão foi aberta <strong>de</strong>vagar ao tilintar <strong>dos</strong> ferros e das rangentes ferragens,<br />
reclamando tanto tempo sem uso. O guarda entrou primeiro, com cautela<br />
examinando, as condições <strong>de</strong> risco visíveis e as invisíveis. Não as havia. A<br />
moça entrou atrás arfante e temerosa, sem saber exatamente o que ia<br />
encontrar <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tanta expectativa. O preso estava docilmente sentado no<br />
arremedo <strong>de</strong> catre que dispunha para <strong>de</strong>scansar do incerto daquela condição<br />
ingrata. Tinha uma grossa corrente enlaçada ao tornozelo e presa numa tora<br />
pela ponta oposta fixada, por seu turno, numa argola <strong>de</strong> ferro carcomida pelos<br />
tempos que passaram, mas ainda confiável. Olhou para o guarda com olhar<br />
inócuo. Com Açucena foi diferente. Pareceu surpreso com a presença. Mostrou<br />
alegria em vê-la e ensaiou um sorriso que a fez vergar por força <strong>de</strong> um<br />
estranho sentimento, meio terno e meio inquieto. Ela o olhou sem o recato que<br />
a ocasião pedia. Não <strong>de</strong>sviou os olhos seus, o que o fez se sentir confortável<br />
pela primeira vez, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que o drama da sua prisão começou. Mas não houve<br />
propriamente um bailado <strong>de</strong> olhares naquela primeva hora. Castanheiro Fúlvio<br />
– o homem voador - tinha fome e era disso que carecia cuidar naquele preciso<br />
instante. Recebeu a vasilha e os talhares. Não <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> reparar nas mãos<br />
estendidas, nas dimensões combinadas, na harmonia <strong>dos</strong> <strong>de</strong><strong>dos</strong>, no brilho e<br />
forma das unhas levemente alongadas. Imaginou a luxúria do tato, a doçura do<br />
arranhão. Mas tinha fome, como dito, e não seguiu pensando, premido pela<br />
necessida<strong>de</strong> besta e compulsiva <strong>de</strong> nutrir a carência das entranhas escuras e<br />
boçais. Agarrou o pacote ofertado, <strong>de</strong>samarrou, <strong>de</strong>stampou a terrina com<br />
cuidado, esten<strong>de</strong>u a toalha num caixote <strong>de</strong>sconjuntado, apoiou e começou a<br />
comer com certa sofreguidão e nenhuma fineza. Enquanto fazia isso, variava o<br />
feixe do olhar entre a bendita comida e os olhos da moça igualmente benditos<br />
e incrusta<strong>dos</strong> <strong>de</strong> um negro eloqüente e fundo. O alimento era banal mas os<br />
olhos eram raros e lhe pareceram tempera<strong>dos</strong> <strong>dos</strong> mais divinos sabores. Ela<br />
<strong>de</strong>volvia, olhando-o com um misto <strong>de</strong> ternura, verda<strong>de</strong>ira pieda<strong>de</strong> e salpicos<br />
concupiscentes, numa confusa mistura <strong>de</strong> paladares difusos. Mas Roxilio<br />
interrompeu implacável aquele discreto colóquio, mudo e sensual. Pediu que o<br />
prisioneiro avisasse quando tivesse terminado a refeição. Pegou no braço <strong>de</strong><br />
Açucena, conduziu-a para fora e trancou a porta novamente. Pediu a moça que<br />
ficasse ali por perto e assim que o prisioneiro avisasse o término da refeição<br />
que o fosse chamar. E assim foi. Quando voltou para recolher a vasilha o<br />
guarda nem <strong>de</strong>u oportunida<strong>de</strong> para que ela entrasse na cela novamente. Daí<br />
para a frente tudo transcorreu sem notas dignas <strong>de</strong> registro, exceto por um<br />
<strong>de</strong>talhe discreto. Quando Açucena Cedrus chegou em casa, <strong>de</strong>sfez a trouxa<br />
on<strong>de</strong> havia embalado a vasilha com a refeição do prisioneiro e encontrou uma<br />
mensagem escrita com ponta <strong>de</strong> carvão no verso do guardanapo branco. Ela<br />
leu, releu e não pô<strong>de</strong> acreditar. Pelo menos não até a noite do glorioso dia<br />
seguinte.<br />
NONA PARTE<br />
56
Como preparar uma criança para morrer?<br />
Como preparar para morrer uma criança cuja mãe <strong>de</strong>ixou-a nas mãos <strong>de</strong> uma<br />
triste orfanda<strong>de</strong> aos oito anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>? Ela mesma tinha morrido, aos vinte e<br />
sete anos, muito talvez, por ter sido incompetente para preparar a si própria<br />
para aquela terrível vicissitu<strong>de</strong>.<br />
Crianças sempre foram preparadas para a vida, não o contrário. Mas esse era<br />
o caso, raro mas real, que tinha que ser encarado e não tinha como fingir que<br />
não era assim.<br />
Orquí<strong>de</strong>a Nigina se roia com essa questão um tanto macabra, inadiável<br />
contudo. Tinha que enfrentá-la pois não conseguia <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> se sentir<br />
responsável pela situação que culminou com a morte da mãe da indigitada<br />
criança e a jogara naquela agonia, ainda mais agravada pela doença da avó,<br />
adoecida por duplo motivo.<br />
O pequeno Cedro Cedrus sofria muito mais com a ausência da mãe do que<br />
com a perspectiva <strong>de</strong> ir se juntar a ela antes da hora que seria normal. Claro,<br />
mesmo porque, ele nem sabia do vaticínio que escurecia o seu futuro. Quer<br />
dizer, em parte a solução já estava encaminhada pois a própria mãe tinha tido<br />
esse cuidado quando, ao se <strong>de</strong>spedir <strong>de</strong>le no leito <strong>de</strong> morte, resolveu levar o<br />
segredo para o túmulo, reservando para si o cruel alívio <strong>de</strong> pensar que em<br />
breve se encontrariam novamente, e seria para sempre. Mas essa fatalida<strong>de</strong><br />
não po<strong>de</strong>ria ser solução para a zelosa Nigina, <strong>de</strong>sdobrada na missão que se<br />
impusera <strong>de</strong> cuidar da criança como fosse possível em clima tão adverso. No<br />
fundo ela nem tinha tanta convicção da exatidão do vaticínio da prima<br />
Caucásia. Mas, mesmo assim, pelo lado pragmático, carecia fazê-la feliz<br />
atravessando inocente e risonha to<strong>dos</strong> os anos que viriam, ainda mais se<br />
fossem poucos.<br />
Durante algum tempo essa questão incomodou o cotidiano <strong>de</strong> Orquí<strong>de</strong>a Nigina,<br />
tempo em que o pequeno Cedro <strong>de</strong>finhava pelos cantos, contrafeito quando<br />
não <strong>de</strong>via, estando no melhor da infância e sendo ela intrinsecamente feliz pela<br />
ingenuida<strong>de</strong> das explicações em tenra ida<strong>de</strong>. Mas por fim, como diz o ditado, o<br />
que não tem solução já está solucionado. De sorte que ela resolveu curar a<br />
ferida com o ferro que feria. Quer dizer, se o mundo era um mundo <strong>de</strong><br />
sofrimento a culpa era <strong>de</strong> quem sofria, pois outros mun<strong>dos</strong> havia para quem<br />
soubesse achá-los. Com essa filosofia, da mais pura levianda<strong>de</strong>, armou sua<br />
pedagogia para ensinar ao menino o remédio para o tormento da alma. E ele<br />
estava disposto para isso, já convencido <strong>de</strong> que muitos mun<strong>dos</strong> existiam, mais<br />
ou menos reais. Isso estava nos livros que no caso <strong>de</strong>le, por estar um tanto<br />
quanto isolado, mais real os mun<strong>dos</strong> irreais tendiam a parecer.<br />
57
Aos <strong>de</strong>z anos, pelas mãos <strong>de</strong> Orquí<strong>de</strong>a Nigina, Cedro Cedrus foi introduzido<br />
nos temperos do sexo e do paladar e durante dois anos chafurdou precoce no<br />
mundo <strong>de</strong> <strong>de</strong>lícias que a sua preceptora podia proporcionar, plenamente<br />
dotada <strong>dos</strong> tantos talentos da raça para o sofrimento e o prazer, sabendo<br />
separá-los com muita sabedoria quando isso lhe convinha. Foi uma catequese<br />
radical e por certo imoral que marcou <strong>de</strong> forma in<strong>de</strong>lével o caráter do nosso<br />
herói. Nem podia ser diferente. Era um remédio perfeito para uma vida breve<br />
que na verda<strong>de</strong> não foi. Mas isso não tem importância pois nem sei se houve<br />
danos por conta do erro cronológico <strong>dos</strong> planos <strong>de</strong> Nigina, ruim nos cálculos e<br />
nas crenças, mas repleta das mais belas intenções.<br />
Com tão robustos exemplos <strong>de</strong> cama, mesa e banhos, entrou fundo nos<br />
ouvi<strong>dos</strong> da alma do pequeno que a vida não era mesmo um seco vale <strong>de</strong> sal.<br />
Dispensado pois estava, pela própria natureza, <strong>de</strong> enfrentar provações<br />
aguardando a passagem para um estado <strong>de</strong> paz que duraria para sempre,<br />
como sua mãe já tinha feito e sua avó já queria fazer, murchando sobre uma<br />
cama.<br />
E assim, com todo o empenho colocado na solução da amarga pendência,<br />
ficou então resolvida a questão da tristeza terminal que era o mais urgente e<br />
salvou o nosso herói da tragédia <strong>de</strong> uma morte prematura <strong>de</strong> fato, sem ter sido<br />
o <strong>de</strong>sígnio verda<strong>de</strong>iro nos registros <strong>de</strong> Deus.<br />
DÉCIMA PARTE<br />
Cedro Angélico queria uma aventura que marcasse o resto da sua vida e <strong>de</strong>sse<br />
a ela um emblema <strong>de</strong>finido. Depois <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar Deserda<strong>dos</strong> e o Vale das Santas<br />
Delícias tinha passado forçado pelo mundo <strong>dos</strong> negócios e anotado fracassos.<br />
A vida <strong>de</strong> artista <strong>de</strong> circo tinha sido ainda mais pífia. De tudo tinha fugido para<br />
não ser engolido, pelo menos era o que dizia a si mesmo. De sorte que a hora<br />
era agora. Ven<strong>de</strong>u o resto <strong>de</strong> tudo que tinha. – parte restante do muito que<br />
tinha herdado do pai adotivo - e seguiu o seu <strong>de</strong>stino sem saber muito qual era.<br />
Desembarcou na capital do mundo pela primeira e única vez em agosto <strong>de</strong><br />
1912. Quando foi não pensou se voltaria, mas voltou assim que pô<strong>de</strong>, pois<br />
opção não havia para quem programa um dia <strong>de</strong> cada vez, exceto viver um dia<br />
<strong>de</strong> cada vez , sem qualquer garantia <strong>de</strong> continuida<strong>de</strong>.<br />
A travessia tinha sido tranqüila no mar e absurdamente agitada a bordo como,<br />
aliás, to<strong>dos</strong> queriam e nisso se empenhavam. Era uma festa só, <strong>de</strong> dia e <strong>de</strong><br />
noite, entre os azuis do céu e do mar, diferentes nos tons, iguais no essencial<br />
das suas gran<strong>de</strong>zas esticadas com um certo exagero em cima e em baixo. No<br />
mais, as luzes flutuantes, tremulantes, agredindo a noite sobre o espelho das<br />
águas e o colorido <strong>dos</strong> balões, sempre cheios enfeitando a alegria <strong>de</strong> viver<br />
muito e imerecidamente em tão pouco tempo e espaço. No meio daquela<br />
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esbórnia não foi difícil para nosso herói fazer uma dúzia <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>s, visto<br />
que, cada festa e nova festa parecia a última da vida. Conheceu muitos outros<br />
que sentiam o mesmo, e se entendiam nessa penúria <strong>de</strong> sentimento e excesso<br />
<strong>de</strong> apetites. Acontece que a nave magnificente conduzia um grupo <strong>de</strong> gente<br />
levitante, limpa, límpida e instruída, girando o mundo ao contrário para fugir do<br />
tédio do passar das horas sob as mesmas longitu<strong>de</strong>s da manhã até a noite e a<br />
manhã seguinte. Agora, <strong>de</strong>pois <strong>dos</strong> exotismos da América meridional voltavam<br />
anima<strong>dos</strong> e felizes ao berço da civilização, cruzando o mar em um tapete<br />
mágico, lento e irresponsável.<br />
Nosso herói se imiscuiu entre eles com os talentos que tinha ou que iludia<br />
possuir, passando por alguém que podia fazer parte <strong>dos</strong> bem-aventura<strong>dos</strong> <strong>de</strong><br />
nascença ou <strong>de</strong> conquista. Riam juntos e contavam histórias <strong>de</strong> velhos reinos e<br />
<strong>de</strong> aventuras no trópico e na Arábia, viajando embala<strong>dos</strong> na fumaça do haxixe<br />
e nos vapores do absinto. Das histórias nosso herói sabia, escorado nas<br />
searas literárias <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as tenras ida<strong>de</strong>s, como visto já foi. Dos zonzos rituais<br />
ele um pouco conhecia, mas queria transbordar. E não se surpreen<strong>de</strong>u com<br />
tanta sofreguidão babada à sua volta, que <strong>de</strong>sse mundo sabia e esse mundo<br />
esperava encontrar e estava preparado. Irmana<strong>dos</strong> nessa bela hedonia<br />
brotaram as amiza<strong>de</strong>s, sólidas para aquela temporada e só para ela. Pois<br />
ninguém nessa condição se compromete mesmo com o amanhã e aceita o<br />
preço do prazer, mesmo sem saber qual é.<br />
De sorte que quando Cedro <strong>de</strong>sembarcou no velho continente, <strong>de</strong>sembarcou<br />
com ele o príncipe Pinho Tepowski das Begônias, magnífico ser humano que<br />
gostava <strong>de</strong> humanos do mesmo sexo, contido, porém, na fineza das amiza<strong>de</strong>s<br />
pela nobreza do berço. Altíssimo russo <strong>de</strong> velhos troncos arbóreos adapta<strong>dos</strong><br />
às queimações dolorosas do frio branco da estepe. O nobre amigo tinha se<br />
encantado com a fina filosofia <strong>de</strong> Cedro Angélico, interessante, ainda mais<br />
tendo vindo <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vinha, assim <strong>de</strong> repente, tão culto e tropical, ocupando<br />
espaço numa nave flutuante no lado baixo do Atlântico. Tomou <strong>de</strong><br />
encantamento por ele e prometeu guiá-lo nas <strong>de</strong>lícias da Cida<strong>de</strong> das Luzes e<br />
que já estava ali quase em frente, <strong>de</strong>pois da colina seguinte, vencido o mar e o<br />
porto, completando a travessia.<br />
A admiração teve começo por conta da performance do nosso herói num<br />
concurso, bem no meio do oceano, no cruzamento da linha que divi<strong>de</strong> os<br />
hemisférios. Elegante contenda, para gente espirituosa e letrada como ele<br />
acreditava ser e queria, e até parece que era pois, afinal, tinha gasto toda a sua<br />
fortuna lustrando o espírito e afinando o apetite, que dizer, refinando os<br />
ingredientes da mais elevada filosofia <strong>de</strong> vida. O prêmio caberia àquele que<br />
pu<strong>de</strong>sse melhor <strong>de</strong>finir a máxima do bem viver, dispondo apenas <strong>de</strong> <strong>de</strong>z<br />
minutos para con<strong>de</strong>nsar tamanha levianda<strong>de</strong>. Mas era seu tema <strong>de</strong> fé e ele se<br />
sentiu absolutamente capaz para aquele <strong>de</strong>safio. De fato, nem teve<br />
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dificulda<strong>de</strong>s. Arrebatou o premio, citando uma velha anotação que tinha feito<br />
nas tantas imersões <strong>de</strong> leitura na biblioteca do marques <strong>dos</strong> Choupos,<br />
mergulhado nos segre<strong>dos</strong> do amor e do <strong>de</strong>sejo. Ganhou um coroa <strong>de</strong> louros e<br />
muita confiança na habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dissecar certos segre<strong>dos</strong> da vida. A coroa<br />
murchou logo no dia seguinte, mas a confiança continuou o seguindo, embora<br />
nem sempre valesse.<br />
A citação que encantou a seleta platéia e arrebatou a coroa, agora abaixo<br />
transcrevo, num competente resumo, fiel aos originais, sem enxertar nada meu,<br />
embora tivesse vonta<strong>de</strong>:<br />
“Meus diletos parceiros,<br />
Penso eu que num mundo relativo e passageiro, o sentido da existência é a<br />
busca persistente do prazer. A realização do <strong>de</strong>sejo é a única razão justificável<br />
para o esforço humano sobre a terra. E para isso o homem <strong>de</strong>ve ser livre e<br />
conivente com quem também é livre, pois a liberda<strong>de</strong> se justifica em si mesma.<br />
Olhando pelo lado político o zelo da liberda<strong>de</strong> é a garantia <strong>dos</strong> meios<br />
fundamentais para o alcance do prazer próprio e do outro. Ninguém po<strong>de</strong> ter<br />
medo <strong>de</strong> ser responsável pela sua própria liberda<strong>de</strong> nem <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> estimular<br />
que o outro faça o mesmo. Pois o prazer isolado é uma ilusão passageira e<br />
ten<strong>de</strong> à frustração. A violação das leis morais não merece castigo pois elas<br />
nada mais são do que restrições que nos impe<strong>de</strong>m <strong>de</strong> alcançar o prazer. A<br />
virtu<strong>de</strong> e a lei são fantasias <strong>de</strong>stinadas a conter os corajosos e consolar os<br />
fracos. O prazer não está ao alcance <strong>dos</strong> tími<strong>dos</strong>, pois ele não é tão leviano<br />
que se ofereça <strong>de</strong> graça. A misericórdia, a gentileza e o altruísmo revelam-se<br />
muitas vezes como perversões <strong>de</strong> quem está disposto a trocar o prazer pela<br />
dor e a privação. Essa troca é uma aberração, a não ser que a dor e a privação<br />
também sejam uma fonte <strong>de</strong> prazer. O amor faz parte <strong>de</strong>ste jogo pois enseja os<br />
prazeres mais intensos. Mas ele ten<strong>de</strong> a ser imaterial, seus custos são altos e<br />
seus resulta<strong>dos</strong> são efêmeros e não raro dolorosos.(...)”<br />
Era uma mera compilação talentosa das idéias <strong>de</strong> um outro marquês um tanto<br />
ensan<strong>de</strong>cido. Mas quem percebeu se calou. De toda forma teve aplausos<br />
coniventes e seu momento <strong>de</strong> glória por conta do conteúdo, da charmosa<br />
impostação e do domínio aceitável da bela língua francesa na qual, aliás, tinha<br />
aprendido todas aquelas coisas que agora transmitia. As idéias não eram suas,<br />
como eu disse, mas era como se fossem, pela força com que à elas tinha<br />
a<strong>de</strong>rido e vinha tentando praticar. Agra<strong>de</strong>ceu com um olhar pedante e uma<br />
visível imodéstia que encantou aquela gente arrogante, imo<strong>de</strong>sta e liberal, pois<br />
o século estava no seu primeiro quarto e havia muita promessa <strong>de</strong> luz sobre o<br />
progresso das idéias e o fim das intolerâncias morais. Rara platéia,<br />
permissivos pensamentos que só o doce ócio persistente da riqueza é capaz<br />
<strong>de</strong> fermentar numa safra sempre boa. Descobriu-se capaz <strong>de</strong> muito do que<br />
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tinha vislumbrado na doce convivência com o marques <strong>dos</strong> Choupos <strong>de</strong>z anos<br />
passa<strong>dos</strong> mas que só serão conta<strong>dos</strong> alguns capítulos à frente.<br />
O príncipe, claro, patrono e entusiasta, acabou ficando em segundo lugar.<br />
Gastou uma meia lauda <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo um epicurismo meio <strong>de</strong>vasso que<br />
ninguém enten<strong>de</strong>u muito bem o que era, pela sua sutil contradição. Nem a<br />
dubieda<strong>de</strong> moral <strong>de</strong> toda aquela gente conseguiu enten<strong>de</strong>r, e nem quis se<br />
esforçar, nem tampouco carecia. O príncipe, na sua elegância <strong>de</strong> príncipe<br />
achou justíssimo o veredicto do júri, aliás as palmas do distintíssimo público,<br />
que era assim o escrutínio. Daí, a partir daquela auspiciosa contenda, Cedro<br />
Angélico passou a ser presença obrigatória na mesa <strong>de</strong> Sua Alteza, animada,<br />
elegante e cheia <strong>de</strong> <strong>de</strong>licada malícia, no meio do salão mais nobre da nobre<br />
nave que seguia riscando timidamente a superfície do mar, tolerante com<br />
aquela intromissão. Não escon<strong>de</strong>u do novíssimo amigo suas origens, nem o<br />
fato <strong>de</strong> que iria conhecer a capital do mundo pela primeira vez. Mas, revertendo<br />
a cronologia, exagerou bastante no inventário das suas posses e nos galhos da<br />
sua genealogia, na verda<strong>de</strong> cheia <strong>de</strong> árvores e flores distantes, tudo muito<br />
natural . Do que resultou julgar o príncipe tratar com gente da sua extirpe e não<br />
com gente <strong>de</strong> outra laia, como era o resto do mundo.<br />
Avenida <strong>dos</strong> Campos Elíseos Nº 202. Era o elegante en<strong>de</strong>reço do príncipe<br />
russo, seu bigodinho proustiano, sua barriga <strong>de</strong> pachá e sua arca <strong>de</strong> prazeres.<br />
A suntuosa habitação - se assim posso chamá-la tão provincianamente - tinha<br />
sido comprada <strong>de</strong> um rico português, um par <strong>de</strong> anos atrás com suas salas e<br />
banheiros cheios <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>s e classicismos visuais, numa bela<br />
combinação <strong>dos</strong> requintes e comodida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um século promissor e que ainda<br />
nem tinha tido sua primeira guerra mundial que, aliás, andava perto. Mas o<br />
príncipe tinha introduzindo uma notável melhoria ao que já era notável. Tinha<br />
mandado construir nos jardins da magnífica mansão um edifício com requintes<br />
barrocos <strong>de</strong> inspiração berniniana a que chamou “Mon Petit Trianon”, também<br />
conhecido como “A Galeria <strong>dos</strong> Prazeres”. Era ali o templo maior <strong>dos</strong><br />
hedonistas da cida<strong>de</strong> iluminada que centrava a luz do mundo. Dizem, à línguas<br />
pequenas e ouvi<strong>dos</strong> bem situa<strong>dos</strong>, que a construção foi financiada com <strong>de</strong>svios<br />
do tesouro secreto <strong>dos</strong> Romanoff <strong>de</strong> que seria ele o guardião, zelando por uma<br />
poupança que vinha sendo discretamente acumulada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o Domingo<br />
Sangrento <strong>de</strong> 1905. Mas nunca disso se soube além <strong>dos</strong> círculos fecha<strong>dos</strong> <strong>dos</strong><br />
verda<strong>de</strong>iros amigos. Assim o príncipe escapou do faro sanguinário <strong>dos</strong><br />
Bolcheviques que, se cientes, certo o caçariam e lhe dariam um final com<br />
requintes <strong>de</strong> cruelda<strong>de</strong>.<br />
Cedro Angélico aceitou a oferta da hospedagem que o príncipe lhe fizera sem<br />
qualquer afetação ou pontinha <strong>de</strong> incômodo. Mesmo porque, estava precisando<br />
<strong>de</strong> agra<strong>dos</strong> na situação em que se encontrava, com a falência anunciada. Mas,<br />
mesmo assim, prometeu que a permanência seria provisória pois pensava em<br />
se instalar <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>finitiva não muito longe dali, num amplo apartamento<br />
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que planejava comprar e habitar por aquela temporada. Pura mentira,<br />
convincente, contudo, pois que dispensava o trabalho próprio da busca <strong>de</strong> um<br />
imóvel para nada em pleno verão da Cida<strong>de</strong> das Luzes. Assim, por enquanto<br />
só as <strong>de</strong>lícias da cida<strong>de</strong>, como Sua Alteza fazia questão <strong>de</strong> patrocinar. Bom<br />
para o nosso herói pois, na verda<strong>de</strong>, seu dinheiro estava no fim e sem aquela<br />
mordomia <strong>de</strong>veria já estar arranjando uma forma <strong>de</strong> voltar aos ermos da sua<br />
terra, coisa que o repugnava naquela bendita hora.<br />
O giro maravilhoso pela cida<strong>de</strong> teria que começar com um singelo passeio<br />
matinal pelas praças e jardins, seguido <strong>de</strong> um almoço num templo<br />
gastronômico muito bem estrelado e ainda mais adornado <strong>de</strong> pratas, cristais e<br />
velu<strong>dos</strong> macios para as bundas obesas sustentarem os estômagos<br />
protuberantes ro<strong>de</strong>adas <strong>de</strong> confortos, liberando o <strong>de</strong>scanso <strong>dos</strong> pés <strong>dos</strong><br />
apertos <strong>dos</strong> sapatos medonhos <strong>de</strong> verniz daquele tempo mimoso, mais<br />
aperta<strong>dos</strong> ainda quando têm que participar da sustentação das ditas cujas<br />
bundas obesas e estômagos avantaja<strong>dos</strong>. E assim foi, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma noite<br />
amena em que o programa dominante tinha que ser uma dúzia <strong>de</strong> belas horas<br />
<strong>de</strong> sono reparador, após uma leve e ligeira refeição <strong>de</strong> frutas, carnes tenras e<br />
rasos cálices <strong>de</strong> vinho branco para não turbar a serenida<strong>de</strong> do sono, nem a<br />
envolvência <strong>dos</strong> sonhos.<br />
Sonhos, <strong>de</strong>pois <strong>dos</strong> sonhos a realida<strong>de</strong> do dia e ele se abriu esplêndido no dia<br />
seguinte ao dia antece<strong>de</strong>nte, como não tinha como não ser, sendo o universo<br />
assim tão regulado pelas regras do criador, notório conformista. Dia daqueles<br />
que fazem parecer que a gran<strong>de</strong>za do sol está em dourar as manhãs e não em<br />
ser o centro do sistema planetário on<strong>de</strong> a terra reina absoluta com seu manto<br />
azul, ver<strong>de</strong> e amarelo. Reina absoluta pois o resto não conta, o que conta é a<br />
vida contida na natureza. O príncipe Pinho Tepowski das Begônias e Cedro<br />
Angélico, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> outra frugal refeição matinal, <strong>de</strong>sceram à rua e seguiram a<br />
pé pela avenida, trilhando as calçadas cheias <strong>de</strong> árvores e canteiros <strong>de</strong> flores<br />
que exalavam cheiros e pintavam cores. Procuraram a praça do bosque com a<br />
intenção <strong>de</strong> gastar lá algum tempo amenizando a espera da hora do almoço, o<br />
ponto alto <strong>de</strong> um dia que começava singelo, resplan<strong>de</strong>cente contudo. Foi aí<br />
que nosso herói teve o primeiro contato com as promessas prazerosas que o<br />
aguardavam naquela incrível temporada, para quem estava ali por pura<br />
aventura. Falo da viscon<strong>de</strong>ssa Rosa Zilium, um <strong>dos</strong> mais belos animais<br />
falantes, pensantes e insinuantes que ele já tinha visto, cheia <strong>de</strong> viços e<br />
frescuras. Mas não trocaram nenhuma palavra. Ficaram nas formalida<strong>de</strong>s da<br />
apresentação e ele se limitou ao doce prazer <strong>de</strong> contemplá-la enquanto o<br />
príncipe a punha a par das aventuras da sua última viagem. Ela se mostrou nos<br />
seus talentos visíveis e tudo o que foi mostrado o agradou e o excitou a<br />
conhecer os talentos não mostra<strong>dos</strong>. Ele se sentiu um pouco triste quando se<br />
<strong>de</strong>spediram. Arrepen<strong>de</strong>u-se <strong>de</strong> ter perdido a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> falar com ela.<br />
Mas falar o que, naquele momento <strong>de</strong> encantamento? Melhor se encantar em<br />
silêncio.<br />
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No resto do passeio a dupla <strong>de</strong> amigos foi parando vez ou outra para pequenas<br />
conversas fúteis e inúteis, como tinha que ser em um passeio matinal naquele<br />
tipo <strong>de</strong> lugar. Isso durou o resto da manhã e, quando terminou, finalmente era<br />
hora do almoço. Falo <strong>de</strong>sse evento marcante entre o café da manhã o repasto<br />
da tar<strong>de</strong>. Justamente ele abria a festa gustativa do Paillard, o mais divino <strong>dos</strong><br />
divinos templos da adoração <strong>dos</strong> segre<strong>dos</strong> do paladar refinado. E para lá<br />
foram, pela sombra e sem pressa. A mesa do príncipe já estava arranjada no<br />
lugar <strong>de</strong> sempre, ou seja, magnificamente postada num plano mais elevado do<br />
salão já intrinsecamente elevado, sobre uma espécie <strong>de</strong> presbitério, centro das<br />
atenções daquela catedral da <strong>de</strong>gustação. Como sempre fazia, na sua<br />
arrogância legítima <strong>de</strong> príncipe pela seleção <strong>de</strong> Deus em pessoa, comandou o<br />
pedido sem dar chance <strong>de</strong> escolha para o convidado. Melhor assim pois Cedro<br />
Angélico preferia não correr o risco <strong>de</strong> mostrar ignorância quanto àquelas<br />
iguarias que <strong>de</strong> iguais não tinham nada, eram únicas na cida<strong>de</strong> e no mundo.<br />
Não que não enten<strong>de</strong>sse um pouco daquelas coisas, pois até já tinha sido<br />
empresário do ramo. Mas temia estar distante ou <strong>de</strong>satualizado em relação aos<br />
gostos da capital do mundo naquele ano <strong>de</strong> 1912.<br />
Para matar a se<strong>de</strong> que embota a sensibilida<strong>de</strong> das gustativas iniciadas nos<br />
mistérios <strong>dos</strong> gostos, primeiro um champagne Saint Marceaux levemente<br />
granitado. De entrada uma lagosta fria com molhos <strong>de</strong> ervas exóticas. Depois<br />
um pato com pimentões (gratinado aos vapores <strong>de</strong> um velho Barsac). Para<br />
acalmar a excitação da língua um borgonha do ano anterior e, para encerrar,<br />
uma singela maçã da província ao natural: orgasmo garantido. Enquanto<br />
comiam extasia<strong>dos</strong>, o príncipe pôs nosso herói a par <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> surpresa<br />
que vinha reservando com esmero <strong>de</strong>licado.<br />
- Meu caro Angélico, amanhã vamos colocar em prática a sua teoria do prazer,<br />
que aliás também é minha e por ela é que eu vivo. Você só tem que viver mais<br />
trinta horas <strong>de</strong> doce ansieda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> um pouco <strong>de</strong> temperança.<br />
Ele aceitou o <strong>de</strong>safio, com certeza. Mesmo porque nada tinha que fazer senão<br />
esperar placidamente pelo que lhe fosse oferecido. Mas, mesmo que não<br />
tivesse aceito, por hipótese absurda, essa nossa história seguiria, tal qual eu a<br />
imaginei. Também, trinta horas a mais ou a menos não fariam diferença<br />
naquela vida posta em duvida num remoto passado, distante no tempo e na<br />
geografia.<br />
Descansou a tar<strong>de</strong> toda embalado num sono <strong>de</strong> inocente e quando acordou o<br />
príncipe tinha saído. Ele não se sentiu propriamente traído, sendo <strong>de</strong>ixado pra<br />
trás, miserável e sozinho. Nem podia, sendo um hóspe<strong>de</strong> obscuro, bafejado<br />
pela sorte, falido e sem <strong>de</strong>stino. Não tendo mesmo do que se queixar, passou<br />
gran<strong>de</strong> parte da noite estalando mo<strong>de</strong>ra<strong>dos</strong> golinhos <strong>de</strong> Marceaux e<br />
vasculhando alguns <strong>dos</strong> <strong>de</strong>z mil volumes enca<strong>de</strong>rna<strong>dos</strong> <strong>de</strong> ver<strong>de</strong> da biblioteca<br />
do palacete do número 202 da Avenida <strong>dos</strong> Campos Elíseos, nobre en<strong>de</strong>reço<br />
da nobre capital do mundo civilizado. Nada do que se queixar <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>,<br />
63
sendo ele um leitor <strong>de</strong> nascença da estirpe <strong>dos</strong> Cedrus <strong>de</strong> Chapadão <strong>de</strong><br />
Deserda<strong>dos</strong>. Bom começo para uma noite que antece<strong>de</strong> promessas <strong>de</strong><br />
in<strong>de</strong>scritíveis prazeres. Mas, por estranho que pareça, não encontrou nada que<br />
tratasse do seu tema favorito. Dormiu toda a manhã <strong>de</strong>pois daquela agradável<br />
noite <strong>de</strong> leitura e bebericos que durou até o raiar da madrugada. Às treze horas<br />
foi avisado <strong>de</strong> que o almoço estava servido. O príncipe, mais uma vez não<br />
apareceu o que o fez se sentir um tanto incomodado e <strong>de</strong>sconfiado com aquela<br />
estranha mordomia. Mas, como aventureiro que era, não receou nem um<br />
pouco seguir em frente. Depois da refeição voltou à biblioteca do palacete e<br />
pegou uma antologia poética enfeixada numa luxuosa edição em papel moeda<br />
e capa <strong>de</strong> marroquim, pois que o conteúdo merecia. <strong>Poetas</strong> portugueses e<br />
brasileiros antigos o enlevaram até o meio da tar<strong>de</strong>, distraindo-o sob macios<br />
sofás. Cochilou um pouco, embalado ao som da absurda sonorida<strong>de</strong> do<br />
polêmico verso <strong>de</strong> Eureste Fenício, produzida em seus tempos indolentes <strong>de</strong><br />
Coimbra, cheios <strong>de</strong> prazeres e sonhos e ainda longe da realida<strong>de</strong> que muito o<br />
faria sofrer no fim da vida que previra efêmera, no calor da juventu<strong>de</strong>, com<br />
tanta coisa pela frente:<br />
“Por mais que os alvos cornos curve a lua (...)”<br />
Espantou o sono que teimava em lhe <strong>de</strong>rrubar as pestanas e <strong>de</strong>u uma volta<br />
pelo jardim com o livro nas mãos, parando aqui e ali, <strong>de</strong>sfrutando <strong>dos</strong> sons<br />
bucólicos <strong>dos</strong> versos árca<strong>de</strong>s sob o frescor <strong>dos</strong> ver<strong>de</strong>s ilumina<strong>dos</strong> com respeito<br />
pelo por do sol. Depois se recolheu aos lençóis <strong>de</strong> seda da sua alcova, rosnou<br />
como um gato, rolou como um cachorro, virou <strong>de</strong> bruços como um porco e<br />
dormiu até as vinte e uma hora como um animal qualquer também faria. Foi aí<br />
que bateram à sua a porta. Um serviçal entrou com uma ban<strong>de</strong>ja <strong>de</strong> prata<br />
contendo um lenço colorido <strong>de</strong> macio tecido do oriente. Colocou a ban<strong>de</strong>ja<br />
sobre uma mesinha e pediu que ele se aprontasse e <strong>de</strong>scesse. Daí há alguns<br />
minutos ia começar uma das mais fantásticas aventuras da vida <strong>de</strong> Cedro<br />
Cedrus, então já Angélico, pelos raros predica<strong>dos</strong>.<br />
DÉCIMA PRIMEIRA PARTE<br />
Açucena Cedrus não sentia tristeza nem alegria naquele exato momento.<br />
Apenas seguia o seu <strong>de</strong>stino, no começo e ora tão turbado por aquela incrível<br />
aventura que a tinha envolvido <strong>de</strong> forma tão intensa e contun<strong>de</strong>nte com o moço<br />
trapezista, há cerca <strong>de</strong> um mês, passado com aflição e sentido <strong>de</strong> <strong>de</strong>snorteio.<br />
O projeto familiar e seu <strong>de</strong> se entregar a uma vida religiosa contemplativa e<br />
alheia já não parecia a única e inquestionável opção para o resto <strong>dos</strong> seus dias<br />
que longos <strong>de</strong>veriam ainda ser, sendo ela tão viçosa. Mas seguia o seu<br />
<strong>de</strong>stino, como dito. O local do seu retiro não era perto e o caminho era penoso,<br />
<strong>de</strong> pau, pedra e sequidão, tão longe do mundo como fosse possível ser. Depois<br />
das longitu<strong>de</strong>s da planície carecia subir quatrocentos metros, ro<strong>de</strong>ando<br />
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<strong>de</strong>vagar o cone superior da Serra <strong>de</strong> Santa Branca <strong>dos</strong> Lírios até seu pico<br />
penhascoso <strong>de</strong> graníticas rochas escoradas atrevidas contra o céu, setenta<br />
léguas ao norte do Chapadão <strong>de</strong> Deserda<strong>dos</strong>. Tão perto do céu que era<br />
possível sentir o perfume <strong>de</strong> Deus, exalando nas manhãs pois, na sua mania<br />
<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>za, ele só se mostra nos altos e mesmo assim só um pouco. Saíram<br />
ao raiar do dia, num comboio <strong>de</strong> quadrúpe<strong>de</strong>s ru<strong>de</strong>s, fortes e sem pressa. A<br />
cada ano, no mês <strong>de</strong> maio, a tropa fazia o trajeto levando moças <strong>de</strong> toda parte<br />
para tentar a vida reclusa do Mosteiro das Santas Paixões, famoso pela<br />
<strong>de</strong>voção das internas e o alcance das suas orações a favor das causas<br />
impossíveis. Mas menos da meta<strong>de</strong> <strong>de</strong>las aceitava <strong>de</strong> forma permanente<br />
aquela rotina tão monótona, inda que muito eficaz ao entendimento do sentido<br />
mais profundo do amor a Deus, pois solidão e silêncio elevam a elevação até<br />
as grimpas <strong>dos</strong> azuis, atrás dois quais fica o céu. O trabalho contemplativo das<br />
freiras gozava <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> respeito no seio da Igreja e sempre que o sr. Bispo<br />
precisava <strong>de</strong> uma graça suprema recorria àquela congregação, <strong>de</strong> tão fina<br />
sintonia com os extratos das esferas superiores, pois o caro prelado era gordo<br />
e libidinoso e não conseguia muita elevação sem ajuda <strong>de</strong> terceiros.<br />
Açucena atravessou calada todas as sofridas horas que a poeirenta e<br />
sacolejante viagem tinha durado. Aliás, ela já estava assim <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o dia em que<br />
ficou sabendo da fuga do trapezista, escapando num vôo humilhante, <strong>de</strong>ixando<br />
para trás quem <strong>de</strong>via <strong>de</strong>tê-lo mas só conseguia arrastar os pés pelo chão.<br />
Tinha estado com ele na noite anterior ao anúncio do <strong>de</strong>saparecimento do<br />
próprio, o que agitou muito o povoado e a fez ficar calada complacente e<br />
conivente. Falo da noite que, durante algum tempo, ela nem tinha certeza se<br />
tinha mesmo havido ou era só o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> sonhar o que se quer que aconteça<br />
com fervor, pois a fé costuma concretar os abstratos. Talvez ficasse calada só<br />
para se concentrar na lembrança daquela noite ou no sonho que tinha sonhado<br />
sobre ela. Chegou calada e permaneceu, retardando sua inserção, pois silêncio<br />
era bem vindo naquele local contrito e <strong>de</strong> poucas idéias. Mas havia <strong>de</strong> se dar a<br />
conhecer e mostrar consi<strong>de</strong>ração pelo outros e humil<strong>de</strong> simpatia. Ficou nos<br />
primeiros dias tentando se sintonizar com sua pie<strong>dos</strong>a rotina no vetusto<br />
mosteiro <strong>de</strong> pedras e adoração, enlevo e esfolação. Aos poucos foi<br />
conseguindo conciliar os la<strong>dos</strong> daquela rara combinação do mundano com o<br />
divino e não houve propriamente drama <strong>de</strong> consciência no viço da sua alma.<br />
Mesmo porque, no fulgor <strong>dos</strong> seus <strong>de</strong>zenove anos vivi<strong>dos</strong> em mundo pequeno,<br />
Açucena Cedrus não sabia o rumo certo da vida, embora o pressentisse com<br />
alguma ansieda<strong>de</strong> e tivesse tido matéria em que pensar.<br />
No primeiro mês ela e as outras noviças tinham que passar pelo aprendizado<br />
duro das tarefas humil<strong>de</strong>s: lavar, passar e cozinhar; essas coisas terrenas<br />
puras e sempre dignas para as matronas e as virgens. Não estava<br />
acostumada. Enfim não estava acostumada com nada daquilo, nem mesmo em<br />
estar tão perto das coisas sagradas. Por isso estava assustada. E a cada<br />
65
manhã acordava se sentido no lugar errado e procurando o certo, suspeitando<br />
que ele estava no jardim, pois era lá que Deus parecia estar presente.<br />
Empregou-se em suas tarefas domésticas com um pouco <strong>de</strong> <strong>de</strong>sleixo, embora<br />
não planejasse que fosse assim, pois queria acertar e torcia para que o simples<br />
passar do tempo pusesse as coisas no lugar. Olhava as velhas irmãs e as<br />
invejava, imaginando que o tempo já tinha passado para elas e elas já eram<br />
parte natural daquela vida incomum. Mas as próprias velhas irmãs ainda<br />
estavam rezando para o tempo passar e colocar as coisas nos lugares.<br />
Coitadas, morreriam antes que isso acontecesse. Mas gozam da companhia <strong>de</strong><br />
Deus para sempre que é o que almejavam e por certo mereciam.<br />
Enquanto isso, na alvorada da sua nova vida, Açucena tinha que seguir seu<br />
batente <strong>de</strong>sgastante, da manhã até a noite, dormindo só para esperar que tudo<br />
recomeçasse exato no dia seguinte. De toda forma, ela não se importou muito<br />
em buscar as portas do céu, começando daquela forma singela, pois bem<br />
sabia que penitência e humilda<strong>de</strong> faziam parte do programa da aprendizagem<br />
no caminho da adoração. Mas, mais que isso, a ocupação das pernas, <strong>dos</strong> pés,<br />
<strong>dos</strong> braços e das mãos atenuavam o arrastar do tempo e apressavam a<br />
aceitação do costume para com aquela férrea disciplina, como ela ansiava. E<br />
assim, naquela rotina os dias passaram <strong>de</strong> fato um pouquinho mais ligeiros,<br />
mesmo sendo iguais uns aos outros e não estando ela, tão <strong>de</strong>dicada ao seu<br />
ingrato mister. Mas o rolar forçado do mecanismo do tempo não arrefeceu o<br />
turbilhão <strong>dos</strong> sentimentos e ela continuou aérea, presa à memória recente da<br />
sua vida mundana, como se nada tivesse passado ainda. De toda forma, já<br />
naquele primeiro estágio da sua reclusão, Açucena havia se <strong>de</strong>stacado. Não<br />
pela sua <strong>de</strong>dicação aos bal<strong>de</strong>s e panelas, mas ao contrário, pelo seu olhar<br />
perdido, sua doce conformação, seu semblante penitente, sempre<br />
compenetrada na capela e nas horas <strong>de</strong> contemplação no claustro ou no<br />
jardim. Era pura sauda<strong>de</strong> revirando a sua mente. Mas sua paixão mundana foi<br />
mesmo assim, confundida com a verda<strong>de</strong>ira paixão que <strong>de</strong>via impregnar cada<br />
canto daquele mosteiro. De sorte que ela, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> dois meses <strong>de</strong> trabalho<br />
serviçal, acabou incluída no primeiro grupo <strong>de</strong> noviças candidatas a terem<br />
acesso admitido na Ala da Santa Paixão. Era aí que acontecia a iniciação nos<br />
mistérios da adoração a Deus no seu estágio mais elevado. Tão elevado que<br />
alguns até confun<strong>de</strong>m com o verda<strong>de</strong>iro prazer, numa outra dimensão.<br />
A iniciação era solene e grave. Começava às quinze horas <strong>de</strong> uma sexta-feira<br />
e terminava na noite do domingo seguinte, numa vigília penitente <strong>de</strong> jejum,<br />
rezas e reflexões diante do crucificado, sofrendo e ensinando a paz. Dizem que<br />
a própria Santa Tereza <strong>de</strong> Ávila tinha revelado os passos do ritual, conforme<br />
uma sagrada visão que tivera em um <strong>dos</strong> seus múltiplos êxtases. A penitência<br />
e a inanição ajudavam na abertura da sensibilida<strong>de</strong>, como ensinava a receita<br />
da Santa.<br />
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Lá estavam Açucena Cedrus e mais três noviças <strong>de</strong>spertas para os santos<br />
sentimentos. O ritual era no terceiro andar do mosteiro a que se chegava por<br />
uma escadaria estreita que acabava numa grossa porta guardada por grossas<br />
chaves e grossas dobradiças <strong>de</strong> bronze medieval protegendo grossamente a<br />
inacessibilida<strong>de</strong> leviana ao local. As noviças cabisbaixas, em or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> contrito<br />
respeito, a<strong>de</strong>ntraram a Ala da Santa Paixão seguindo a madre em fila,<br />
movendo os pés em passo ca<strong>de</strong>nciado e balançando as pesadas vestes num<br />
balé sincronizado e um tanto cinematográfico se cinematografia houvesse<br />
naquelas bandas. O corredor era <strong>de</strong> pedra como tudo ali e havia sete gran<strong>de</strong>s<br />
portas cravadas nas laterais da ala e dispostas em espaços tais que nenhuma<br />
ficava em frente da outra. Cada qual estava i<strong>de</strong>ntificada com letras esculpidas<br />
em placas <strong>de</strong> mármore fixadas no alto <strong>dos</strong> portais <strong>de</strong> granito trabalhado:<br />
Êxtase, Agonia, Elevação, Aflição, Glorificação, Graça, Beatitu<strong>de</strong>. Nomeavam<br />
as salas que representavam cada uma das partes do aprendizado da paixão<br />
por Cristo – o Salvador.<br />
Cada uma <strong>de</strong>las teria que ser freqüentada pelas noviças ao longo <strong>dos</strong> anos,<br />
uma após outra até que sua formação estivesse completa e elas estivessem<br />
prontas e consoladas da renúncia que tinham feito aos prazeres passageiros<br />
do mundo. No fundo estava a Capela da Iniciação.<br />
As moças foram gentilmente ajoelhadas num tablado, sob o majestoso domo<br />
chanfrado que antecedia o retábulo maior. Uma doce iluminação colorida<br />
<strong>de</strong>scia do céu e penetrava por uma pequena abertura forrada <strong>de</strong> vitrais,<br />
impregnando tudo com muita inspiração. Açucena e as colegas vestiam um<br />
camisolão branco <strong>de</strong> tecido grosso e traziam um comprido véu leve preso à<br />
cabeça pelo laço <strong>de</strong> uma corda trançada <strong>de</strong> fina seda. Tolerante imitação da<br />
coroa <strong>de</strong> espinhos da paixão justificada do único que teria amado <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>,<br />
toda a humanida<strong>de</strong> a um só tempo. Caía até os pés, misturando uma fartura <strong>de</strong><br />
panos alvos instigando a opção pela pureza. Um coro <strong>de</strong> velhas e pie<strong>dos</strong>as<br />
religiosas garantia o lado sonoro do enlevo, cantando um hino dolente e triste<br />
que penetrava e confortava a alma, preparando o clima. Uma tênue iluminação<br />
<strong>de</strong> castiçais fundi<strong>dos</strong> nas pare<strong>de</strong>s laterais completava a penumbra contrita do<br />
ambiente circundante. O altar, porém, estava profusamente iluminado,<br />
irradiando uma cintilação dourada que completava tudo na inspiração divina<br />
das emanações <strong>de</strong> luz. No centro do retábulo reinava entronada a própria<br />
Santa Tereza em êxtase, inspirada na obra <strong>de</strong> Bernini da Capela Cornaro, na<br />
longínqua Itália, porém sem o anjo violento pronto para cravar a afiada seta da<br />
paixão no peito receptivo da santa, já preparada para a vida eterna.<br />
O primeiro ato era a pregação mor da Madre Coroa <strong>de</strong> Lírios Entremeada <strong>de</strong><br />
Espinhos. Para dar início a divina formação das freiras tinha que explicar as<br />
diferenças entre o <strong>de</strong>sejo e o amor, separando o joio do trigo, logo no primeiro<br />
67
capítulo do aprendizado do mistério da adoração e apontando o caminho certo.<br />
Ela o fazia <strong>de</strong> forma muito competente, escorada no entendimento <strong>de</strong>ssas<br />
coisas que foi aperfeiçoando ao passar <strong>de</strong> anos <strong>de</strong> profunda e ininterrupta<br />
contemplação da majesta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus em pessoa, dado o peso da sua<br />
autorida<strong>de</strong>. A fala inicial tinha por objetivo lançar as bases para a abertura das<br />
reflexões sobre o tema e era um resumo <strong>de</strong> revelações <strong>de</strong> santos e <strong>de</strong> teólogos<br />
que viveram ou se <strong>de</strong>bruçaram toda a vida sobre o assunto, ao longo <strong>dos</strong><br />
tempos. No meio <strong>de</strong> toda aquela consternação favorável explicou, com voz <strong>de</strong><br />
tonificação celestial, que o <strong>de</strong>sejo é a simples vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> se obter prazer<br />
efêmero e que, por isso o amor potenciado revelado na paixão lhe é<br />
infinitamente superior, pois ele é a necessida<strong>de</strong> divina e eterna <strong>de</strong> adorar. E<br />
mais explicou, esclarecendo que o <strong>de</strong>sejo sempre é buscado através <strong>de</strong> uma<br />
ação mecânica que tem começo com o seu <strong>de</strong>spertar e que tem um fim<br />
melancólico quando ele é satisfeito. Enfatizou que a paixão, ao contrário do<br />
<strong>de</strong>sejo, é infinita, tem começo mas não tem um fim previsível. Completou<br />
ensinando que a realização do <strong>de</strong>sejo é a sacieda<strong>de</strong> que leva ao enfado e que<br />
quando isso não é possível surge a frustração. Ambos são sentimentos<br />
egoístas e mesquinhos, faces abjetas do pecado.<br />
Aquilo tudo estava cheio <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>s, mas a bem da exatidão, não era o que<br />
convinha a Açucena, frágil, <strong>de</strong>samparada e inteiramente <strong>de</strong>snorteada naquele<br />
instante.<br />
À medida em que ia falando, Madre Coroa <strong>de</strong> Lírios Entremeada <strong>de</strong> Espinhos<br />
ia gazeando os olhos em busca <strong>de</strong> inspiração, tentando se sintonizar com as<br />
luzes das esferas etéreas, tão familiares para ela que muito tinha se preparado<br />
para isso, esfolando o corpo e perfumando a alma. E sempre a conseguia e<br />
chegava eloqüente no final da sua santa preleção que era quando enfatizava<br />
veemente aquela história <strong>de</strong> que a paixão nunca se realiza, pois a adoração é<br />
suprema e não tem fim. A parte mais apreciada por ela própria, e que sempre<br />
merecia seu capricho na escolha das palavras e nas modulações da voz. Era<br />
quando ensinava que a natureza infinita da adoração faz surgir o sofrimento,<br />
mas que ele, pela sua sagrada natureza, também era uma forma <strong>de</strong><br />
crescimento rumo ao divino. Na parte final e mais importante da sua catequese,<br />
explicava a santa madre que o sofrimento também é uma forma <strong>de</strong> adoração e<br />
que a paixão suprema foi aquela sofrida por Cristo para nos redimir daquele<br />
pecado que cometemos antes <strong>de</strong> nascer. E encerrava com voz doce e<br />
lacrimejante, explicando que nos nunca vamos conseguir compensar essa<br />
paixão, mas que Deus nos <strong>de</strong>us a graça divina <strong>de</strong> tentar, apaixonando-nos por<br />
ele.<br />
Ao final da pregação havia um longo momento <strong>de</strong> silêncio em que todas<br />
aquelas mulheres mergulhavam fundo no que tinham acabado <strong>de</strong> ouvir,<br />
inclusive as velhas irmãs que já tinha ouvido aquilo <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> vezes mas<br />
sempre encontravam um ângulo novo cuja polêmica lhes pu<strong>de</strong>sse preencher<br />
os vazios do silêncio do retiro. Açucena prestou muita atenção nas palavras da<br />
madre. Achou tudo meio confuso, mas sabia que ia ter que refletir sobre elas<br />
68
toda a noite e teria que <strong>de</strong>batê-las na manhã do dia seguinte, sonolenta e em<br />
lacerante jejum. Tentou repetir as palavras que ouvira e o fez várias vezes,<br />
<strong>de</strong>sconectando cada vez mais as idéias. E, à medida que a noite avançava e o<br />
sono batia, ela ia se sentindo mais confusa e agregando coisas à fala da<br />
madre, por sua conta:<br />
- O <strong>de</strong>sejo é saciado mas nunca fenece e novo ciclo recomeça, num moto<br />
eterno. Existe <strong>de</strong>sejo sem amor, mas não existe amor sem <strong>de</strong>sejo. Existe amor<br />
sem paixão, mas não existe paixão sem amor. O <strong>de</strong>sejo não <strong>de</strong>ixa lembranças,<br />
mas a paixão é in<strong>de</strong>lével. A gloria da verda<strong>de</strong>ira paixão é a adoração do divino.<br />
O <strong>de</strong>sejo intenso bestializa a paixão. O <strong>de</strong>sejo é saciado mas nunca fenece e<br />
novo ciclo recomeça, num moto eterno <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>s obscenas (...).<br />
Bem no meio da madrugada, alheia ao cantar <strong>de</strong> um monte <strong>de</strong> galos<br />
fornicadores e pagãos esperando amanhecer para caçar as galinhas, começou<br />
a cochilar e se viu nua num bosque ver<strong>de</strong> e ensolarado, passeando com um<br />
pássaro azul, docemente pousado sobre seu ombro alvo e macio. As garras do<br />
pássaro apertavam fortemente o ombro, mas não a feriam nem a<br />
<strong>de</strong>sconfortavam. Ao contrário, convidavam a penetrações mais profundas.<br />
Havia montes <strong>de</strong> flores colorindo a relva e <strong>de</strong>las saiam vapores leitosos que<br />
entravam pelas narinas inebriantes e a faziam repetir várias vezes:<br />
- O <strong>de</strong>sejo é a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> se obter prazer efêmero. O prazer é a glória da<br />
paixão. O prazer se renova na eternida<strong>de</strong> da paixão. A paixão é inesquecível.<br />
O <strong>de</strong>sejo é saciado mas nunca fenece e novo ciclo recomeça, num moto eterno<br />
<strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>s obscenas (...).<br />
O sonho se repetiu numa or<strong>de</strong>m circular mudando um ou outro <strong>de</strong>talhe. Depois<br />
ela dormiu profundamente e parou <strong>de</strong> sonhar, exausta no real e no onírico. Na<br />
verda<strong>de</strong>, literalmente <strong>de</strong>smaiou pois não podia resistir àquela inanição e àquele<br />
<strong>de</strong>sconforto, na condição <strong>de</strong>licada em que estava, precisando se alimentar<br />
duplamente.<br />
Acordou com um cheiro forte que lhe irritou as narinas e sacudiu os neurônios.<br />
Estava na sacristia da capela <strong>de</strong>itada num catre rústico coberto <strong>de</strong> panos<br />
escuros, grossos e ásperos. A irmã enfermeira tinha lhe colocado algo sob o<br />
nariz e foi o que a fez <strong>de</strong>spertar. Já tinha amanhecido.<br />
Foi examinada <strong>de</strong>talhadamente por mãos e tatos experientes, inclusive em<br />
suas partes íntimas, o que a fez chorar baixinho, comedindo os soluços.<br />
Terminado o exame lhe foi servido um café simples com bolachas e uma<br />
laranja que ela comeu <strong>de</strong>vagar embora penasse fome. Preferia uma maça mas<br />
estava meio confusa sobre qual das meta<strong>de</strong>s preferir. Nenhuma palavra foi<br />
trocada, nada inquirido, nada justificado. Terminada a refeição a irmã<br />
enfermeira recolheu a ban<strong>de</strong>ja e <strong>de</strong>ixou o recinto. Saiu fechando pesadamente<br />
69
a porta, num estrondo que soou como o começo do próprio apocalipse.<br />
Açucena Cedrus ficou sozinha. Mergulhou sob os panos <strong>de</strong>sconsoláveis da<br />
cama e ficou olhando a clarida<strong>de</strong> que entrava por uma janela rasgada no alto<br />
<strong>de</strong> uma das pare<strong>de</strong>s, querendo consolação. Não pensou em quase nada, ainda<br />
meio sonolenta. Ficou naquele estado, esperado. Quarenta minutos <strong>de</strong>pois<br />
entrou a madre, arfante e com cara carregada, saltando fora do hábito um tanto<br />
agressiva.<br />
- Minha filha, sinto muito mas você não po<strong>de</strong> ficar mais aqui. Vai ter que voltar<br />
para sua casa paterna com toda a brevida<strong>de</strong>.<br />
A mensagem era simples, fria e pragmática, direta no coração. A moça olhou a<br />
veneranda Madre Coroa <strong>de</strong> Lírios Entremeada <strong>de</strong> Espinhos sem nenhuma<br />
emoção especial diante da notícia. Sentia-se muito <strong>de</strong>sanimada e sem<br />
coragem para nada. Mas, mesmo assim, ousou perguntar o motivo. Ela<br />
respon<strong>de</strong>u sem nenhuma palavra amena, pela meta<strong>de</strong> ou indireta:<br />
- Você está grávida. Que Deus se apie<strong>de</strong> <strong>de</strong> você, pobre criatura – respon<strong>de</strong>u<br />
a religiosa juntando as palmas das mãos e inclinando a cabeça para o alto<br />
como se estivesse recomendando o perdão para aquela pecadora.<br />
Açucena pensou na visitação <strong>de</strong> Maria, mas não ousou fazer nenhuma<br />
comparação, pois os pássaros não eram anjos. Sua noite <strong>de</strong> amor não tinha<br />
sido um sonho, afinal. Tinha produzido um pequeno e secreto fruto. Uma<br />
tragédia iria começar, mas ela quase se sentiu feliz. Levantou-se sem esperar<br />
nenhuma orientação, abriu a porta e entrou no corredor da Ala da Santa Paixão<br />
quase correndo embora se sentisse fraca. Enquanto caminhava <strong>de</strong>scalça,<br />
buscando o seu quarto na clausura, foi lendo aquelas placas vetustas que<br />
i<strong>de</strong>ntificavam as salas que davam para o lúgubre corredor: Êxtase, Agonia,<br />
Elevação, Aflição, Glorificação, Graça, Beatitu<strong>de</strong>. Não era a paixão que queria<br />
viver, ainda que outra não pu<strong>de</strong>sse jamais.<br />
Tinha que esperar o próximo comboio <strong>de</strong> suprimentos do convento para <strong>de</strong>scer<br />
a serra e voltar ao seu mundo pequeno on<strong>de</strong> as pessoas costumavam ter<br />
<strong>de</strong>sejos e tentações, amores e paixões diretos e naturais. Enquanto isso ficou<br />
encerrada na sua sela, numa reclusão voluntária mas muito conveniente para<br />
to<strong>dos</strong>, pois que as pie<strong>dos</strong>as irmãs não sabiam muito bem como lidar com a<br />
virtu<strong>de</strong> da tolerância naquelas situações tão pecaminosas. Rezou muito<br />
naqueles dias e se convenceu ter aceito a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus, como boa filha <strong>de</strong><br />
Maria que era. Longe <strong>de</strong> querer competir com a excelsa Mãe <strong>de</strong> Deus, atreveu<br />
acreditar que o bendito fruto existia também para os singelos úteros das<br />
pecadoras que Cristo redimiu, especialmente para as mulheres <strong>de</strong> Chapadão<br />
<strong>de</strong> Deserda<strong>dos</strong> que, além <strong>de</strong> mulheres, eram flores, quer dizer prontas para<br />
florir a cada primavera.<br />
70
DÉCIMA SEGUNDA PARTE<br />
Aos vinte e oito anos Cedro Cedrus achou que estava na hora <strong>de</strong> cair num<br />
mundo mais distante e virar Angélico. Afinal isso estava marcado nos registros<br />
do seu <strong>de</strong>stino e estava lá para quem soubesse lê-lo com competência, sem<br />
precisar ser vate ou adivinho. Significa que para ele estava no tempo exato <strong>de</strong><br />
ampliar os horizontes das chances <strong>dos</strong> prazeres e <strong>de</strong>ixar a casa natal que já<br />
era a segunda e não tinha ainda aquietado a sua inquietu<strong>de</strong>. Já tinha passado<br />
pelo estágio <strong>de</strong> aprendizado no Solar <strong>dos</strong> Choupos e, naquele particular,<br />
apesar das maravilhas e, até por isso mesmo, já estava alcançando um grau<br />
<strong>de</strong> enfado. Aliás conseqüência da pasmaceira que a própria falta <strong>de</strong> gozos<br />
costuma exacerbar sintetizando os contrários. Assim, estava precisando <strong>de</strong><br />
uma certa reciclagem. E aí começou um novo capítulo, mas diga-se a bem da<br />
verda<strong>de</strong>, mais <strong>de</strong> suor e vicissitu<strong>de</strong>s do que <strong>de</strong> gozos propriamente referentes.<br />
O nome <strong>de</strong> Angélico lhe calhou, não pela santida<strong>de</strong> pois ele não tinha<br />
nenhuma, mas porque logo <strong>de</strong>scobriram que ele era capaz <strong>de</strong> voar na vertical,<br />
como os anjos faziam, <strong>de</strong>scendo no seu pouso suave, celestial e inverossímil.<br />
Acontece que um dia, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tanto tempo e sem mais nem menos, o Circo<br />
Espanhol voltou a Deserda<strong>dos</strong>. Claro que já não tinha o brilho do passado e<br />
chegou envergonhado e silencioso como não era o costume naquela ativida<strong>de</strong><br />
espalhafatosa em si mesma. Na verda<strong>de</strong> uma funda <strong>de</strong>cadência abria rasgos<br />
por to<strong>dos</strong> os la<strong>dos</strong>, na lona, nas roupas e nas almas daquela gente que <strong>de</strong>via<br />
ser alegre, aventurosa e saltitante, mas não era então. Os palhaços não tinham<br />
graça, os animais bravios andavam <strong>de</strong> pescoço baixo e inspiravam pena e os<br />
trapezistas não voavam como antigamente. Mas a gente do circo - filhos <strong>de</strong><br />
gente <strong>de</strong> circo que um dia tinha brilhado – teimosa e persistente itinerava <strong>de</strong><br />
um lugar a outro, seguindo sua vocação do berço <strong>dos</strong> pais, avós e mais toda a<br />
antecedência nas folhas, troncos e raízes da genealogia. Sabido é que quem<br />
nasce para o circo não nasce para nenhuma outra coisa que não seja o circo e<br />
poucos apren<strong>de</strong>m as alternativas do viver, pois nascem fecha<strong>dos</strong> na fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong><br />
do seu sangue saltimbanco.<br />
Aquela temporada não podia mesmo dar certo visto que, além da triste figura<br />
da Companhia Espanhola, algumas pessoas do povoado ainda se lembravam<br />
do passado tenebroso do circo. Uma flagrante injustiça, pois nos braços da<br />
balança, o circo foi causa mais <strong>de</strong> alegria. Mas a tragédia houve e não há como<br />
relegar. Falo, naturalmente, daquela cena horripilante, do bárbaro assassinato<br />
ocorrido há quase três décadas e <strong>dos</strong> estranhos acontecimentos que se<br />
seguiram e que já tinham virado lenda na boca <strong>dos</strong> contadores <strong>de</strong> casos <strong>de</strong><br />
Deserda<strong>dos</strong>. Assim, muitos não viam com bons olhos aquela gente <strong>de</strong> volta.<br />
Cabo Mili, claro, estava entre eles. Mas não quis reviver aquele passado sem<br />
solução, mesmo porque, já estava aposentado, imobilizado em cima <strong>de</strong> uma<br />
cama, sem ânimo para nada, sofrendo com a dor física e mais ainda com a<br />
<strong>de</strong>mora do passar das horas sem remédio para o seu mal, no escuro da<br />
71
solidão. A<strong>de</strong>mais não gostava muito <strong>de</strong> se lembrar daquele tempo pois dali<br />
nasceu muito folclore <strong>de</strong>sairoso sobre ele, que o povoado contava e ria nas<br />
rodas <strong>de</strong>scontraídas, sem hora e sem lugar. Pobre cabo, tinha sido um fiel<br />
cumpridor <strong>dos</strong> manda<strong>dos</strong> do estado e o que ia levar para o túmulo era um<br />
mal<strong>dos</strong>o <strong>de</strong>boche. Injustas bocas <strong>de</strong> escárnio, pois quem podia reter um<br />
pássaro sem dispor <strong>de</strong> gaiola.<br />
No geral, era muito contra-peso para a temporada do circo dar algum resultado<br />
positivo. De sorte que muito pouca gente se interessou pelo espetáculo, uns<br />
por <strong>de</strong>scaso, outros por indignação e outros porque os reclames mambembes<br />
não <strong>de</strong>spertaram atenção pela falta <strong>de</strong> conteúdo e a carência <strong>de</strong> cores e <strong>de</strong><br />
luxos. Assim não foi, contudo, com Cedro Cedrus, <strong>de</strong>sperto para tudo que<br />
quebrasse a rotina cochilante <strong>de</strong> Deserda<strong>dos</strong>. Naquele tempo ele já não era<br />
mais freqüentador habitual do marquês <strong>dos</strong> Choupos pois havia um certo<br />
enfado <strong>de</strong> parte <strong>dos</strong> envolvi<strong>dos</strong> naquele projeto incomum. Disso resultava<br />
então que ele andava arrastando um perigoso <strong>de</strong>sânimo, letal para a<br />
ansieda<strong>de</strong> da sua alma. Daí foi tomado <strong>de</strong> interesse pela passagem bissexta e<br />
até acabaria atado àquela troupe por uns tempos. Mas a motivação que sentiu<br />
em a<strong>de</strong>rir ao grupo não foi <strong>de</strong>vido propriamente a uma atração pela itinerância<br />
do circo. Muito menos pelo pífio espetáculo prometido à gente <strong>de</strong> Deserda<strong>dos</strong>,<br />
que ,aliás, ele nem chegou a ver <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> . Foi antes pelos predica<strong>dos</strong>,<br />
morenos e <strong>de</strong> malícias <strong>de</strong> Jasmim Laetitia, parte rara e colorida daquele grupo<br />
sem graça. Foi já na partida que aconteceu o encontro marcado pelo <strong>de</strong>stino<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o princípio <strong>dos</strong> tempos. Depois <strong>de</strong> uma curta e melancólica temporada<br />
<strong>de</strong> assentos vazios a direção do circo mostrou disposição e resolveu tentar a<br />
sorte em lugar mais populoso, arriscando contra um público mais exigente.<br />
Montaram a caravana e seguiram em lamentável cortejo, arrastando a<br />
frustração pela rua principal naquele lugar secundário, mas com fé e<br />
esperança. Foi quando ela se <strong>de</strong>sgarrou um momento, como o <strong>de</strong>stino pediu, e<br />
entrou na loja on<strong>de</strong> nosso herói trabalhava em parceria com o pai adotivo e<br />
soltava os bocejos da sua indisfarçável preguiça. Pois nesse tempo ele ainda<br />
estava sob a proteção <strong>de</strong> Sucupira Nemélio à espera <strong>de</strong> coisa mais agitada,<br />
para colorir as rotinas da vida, encurtando o dia e agilizando a chegada do<br />
futuro que ainda tinha guardado para <strong>de</strong>gustar, assaltando diuturnamente o<br />
cesto das maçãs. Permanecia muito encantado com as fontes do prazer e, em<br />
especial, com a divina natureza das mulheres, sua maciez, a harmonia <strong>dos</strong><br />
seus redon<strong>dos</strong>, a magia <strong>dos</strong> seus cheiros. Des<strong>de</strong> que passara a freqüentar a<br />
casa do marques <strong>dos</strong> Choupos, sua visão <strong>de</strong> que o mundo todo podia ser um<br />
jardim <strong>de</strong> prazeres já beirava a obsessão e aquecia as febres. Especialmente a<br />
obsessão <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprovar que ele podia não sê-lo. Carecia localizar esses oásis<br />
perenes e ele queria a aventura, estava pronto pra ela. Talvez por isso tenha<br />
exagerado na atração que aquela mulher exerceu sobre ele, tão instantânea e<br />
tão vazia <strong>de</strong> lastro, irresistível contudo. Tal qual tinha acontecido com sua mãe<br />
quando viu o Homem Voador pela primeira vez e mergulhou sem pensar nos<br />
72
labirintos da paixão. Ele estava mais interessado em colher flores nos canteiros<br />
do prazer, pelo lado do <strong>de</strong>sejo. Mas a disposição <strong>de</strong> largar tudo e seguir a força<br />
<strong>de</strong> um impulso casual era a mesma e estava no sangue, pronta a borbulhar. A<br />
moça também não resistiu a incentivar aquela relação. E nem <strong>de</strong>via pois o circo<br />
estava precisando <strong>de</strong> sangue novo para sair daquele marasmo e ela estava<br />
encarregada mesmo disso, garimpando potenciais candidatos. Não precisou<br />
muita conversa para o acerto do rumo e Cedro Cedrus e Jasmim Laetitia<br />
combinaram se encontrar daí a dois dias, no caminho poeirento que ia dar na<br />
capital da província. Ela nem chegou a acreditar que ele fosse. Mas não se<br />
incomodou: nem tinha nada a per<strong>de</strong>r e não se lembrou mais do trato assim que<br />
saiu dali. Nosso herói, ao contrário, tinha tudo a per<strong>de</strong>r se não agarrasse<br />
aquela boa oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> abrir mais um capítulo na história da sua vida.<br />
Assim não pensou em outra coisa, o resto daquele dia e o longo todo da noite.<br />
E no dia seguinte já estava se aprontando pra partida, já na chegada do sol.<br />
Pensou em se <strong>de</strong>spedir do marquês e sua pupila mas não conseguiu reunir<br />
ânimo para tanto. Tinha que ir ao contrário da sua rota, per<strong>de</strong>ndo tempo.<br />
Contentou-se em pensar que aquela convivência com o misterioso marquês<br />
tinha sido boa, mas estava na hora <strong>de</strong> acabar <strong>de</strong> vez. Tinha certeza <strong>de</strong> que<br />
sentiria falta da doce Gérbera Silente a melhor flor do jardim <strong>de</strong> <strong>de</strong>lícias do<br />
Solar <strong>dos</strong> Choupos. Isso também já estava na hora <strong>de</strong> acabar, e se consolou a<br />
si mesmo sem muita dificulda<strong>de</strong>. Com Sucupira Nemélio sabia que seria mais<br />
difícil, afinal vinha sendo um pai <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> para ele <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que ficara sozinho<br />
no mundo, vinte e três anos passa<strong>dos</strong>. Havia uma dívida a saldar, talvez. Mas<br />
simplificou as coisas da <strong>de</strong>spedida, como era do seu jeito natural. Deixou um<br />
bilhete lacônico e simplesmente se foi, levando apenas duas mudas <strong>de</strong> roupas<br />
domingueiras e uma boa economia que tinha juntado displicentemente no<br />
fundo <strong>de</strong> uma gaveta, ao longo daqueles anos. Era sócio do negócio, mas nem<br />
se lembrou disso correndo um sério risco, pois num futuro muito próximo ela <strong>de</strong><br />
muito lhe valeria. E voltaria, exato por conta <strong>de</strong>la, quatro anos <strong>de</strong>pois.<br />
Selou a égua que tinha ganhado no aniversário passado e partiu rumo ao seu<br />
novo <strong>de</strong>stino como tinha prometido a si mesmo que um dia faria. Cavalgou<br />
ligeiro para tirar o atraso e tirou. Encontrou Jasmim Laetitia à vinte léguas <strong>de</strong><br />
distância, na beirada do caminho numa espécie <strong>de</strong> acampamento. Nunca tinha<br />
ido tão longe e sentiu que era o começo <strong>de</strong> um outro ato da sua vida. Ela ficou<br />
feliz em vê-lo e o tratou com carinho <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o instante primeiro. Não teve<br />
dificulda<strong>de</strong>s em inseri-lo na troupe mambembe disposta a isso mesmo,<br />
buscando renascimento. Ao longo da viagem havia pausas freqüente para<br />
exercícios e ensaios, e nosso herói foi sendo testado na busca <strong>dos</strong> seus<br />
talentos, pois era assim que faziam, buscando novos artistas, quase a troco <strong>de</strong><br />
nada. Nem teve que penar com bosta <strong>de</strong> elefante e alfafa <strong>de</strong> camelo, pois logo<br />
se <strong>de</strong>scobriram seus predica<strong>dos</strong> voadores, inatos, inexplicáveis e raros. Tal era<br />
sua vocação que não precisou muito tempo <strong>de</strong> a<strong>de</strong>stramento e logo já estava<br />
apto para compor o espetáculo. Concebeu um número admirável pelo perfil<br />
73
incomum. E já passo a <strong>de</strong>screvê-lo, pois esse é um <strong>dos</strong> atrativos <strong>de</strong>sta história.<br />
É que ele podia <strong>de</strong>safiar a lei da gravida<strong>de</strong> no quesito relativo à velocida<strong>de</strong> <strong>dos</strong><br />
corpos que caem e se esborracham no chão. E o fazia sem esforço. Balançava<br />
assentado no trapézio ganhando velocida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pois unia os braços sobre a<br />
cabeça e saltava para o alto ganhando um impulso ace<strong>de</strong>nte difícil <strong>de</strong> explicar.<br />
Subia na vertical ganhando altura enquanto o trapézio ia e voltava. Em seguida<br />
abria os braços em cruz e <strong>de</strong>scia verticalmente sobre ele agarrando-o<br />
novamente. Parece simples na forma simplória que acabo <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver mas,<br />
teoricamente, isso era impossível <strong>de</strong> ser feito, pois o tempo que o trapézio<br />
levava para ir e voltar à posição inicial sempre tendia a ser maior do que a<br />
velocida<strong>de</strong> da queda em direção ao solo. Contrariava a lei irrevogável do velho<br />
Newton que dizia que a matéria atrai a matéria na razão direta das massas e<br />
na razão inversa do quadrado das distâncias. Diziam os entendi<strong>dos</strong> que Cedro<br />
Cedrus <strong>de</strong>scia mais <strong>de</strong>vagar do que o normal que a lei <strong>de</strong>terminava <strong>de</strong> forma<br />
inexorável, por suposto. A façanha parecia simples como eu disse, mas, teoria<br />
à parte, o efeito visual encantava o público que simplesmente sentia que algo<br />
<strong>de</strong> mágico havia ali bem no ar, acima das cabeças inclinadas apontando os<br />
respectivos queixos a contemplar o segundo homem voador <strong>de</strong> que se teve<br />
notícia. Era como se ele pu<strong>de</strong>sse retardar a queda esperando o tempo certo do<br />
trapézio retornar. Por conta disso Cedro viraria Angélico, passaria a principal<br />
atração do circo e ajudaria a infeliz companhia circense a conhecer novo surto<br />
<strong>de</strong> glória e prosperida<strong>de</strong> como show e como business. Ganhou algum dinheiro,<br />
usufruiu <strong>dos</strong> predica<strong>dos</strong> da sensual e quente Jasmim por uns tempos e<br />
guardou a in<strong>de</strong>lével convicção <strong>de</strong> que, afinal, as leis não foram criadas<br />
necessariamente para serem cumpridas, até mesmo as naturais.<br />
A temporada circense do nosso herói foi inesquecível. Mas foi relativamente<br />
curta e teve um fim melancólico. Po<strong>de</strong>ria ficar ali pelo tempo que quisesse,<br />
sendo a principal atração. Mas não ficou. É que ele e Jasmim Laetitia, <strong>de</strong>pois<br />
<strong>de</strong> muita fornicação e <strong>de</strong> um afeto sincero acabaram se sentindo mais irmãos<br />
do que amantes. E eles tinham razão. Nunca souberam disso, mas eram filhos<br />
do mesmo pai. Falo novamente do misterioso Castanheiro Fúlvio, o Homem<br />
Voador. Ele do ventre <strong>de</strong> Açucena Cedrus e ela do ventre <strong>de</strong> Acácia Laetitia, a<br />
indigitada vítima do começo <strong>de</strong>ssa história, morta pelo próprio Fúlvio sem<br />
ninguém saber porquê, e continua assim até hoje. De sorte que o afeto que<br />
havia entre eles não teve tempo <strong>de</strong> virar paixão e estacionou no <strong>de</strong>sejo,<br />
felizmente. Foi como se a própria natureza não estivesse aprovando aquela<br />
doce e concupiscente inocência carregada <strong>de</strong> prazeres. Claro que não chegou<br />
a haver o pecado do incesto, pois conhecimento não havia daquela rara<br />
condição, como acabei <strong>de</strong> dizer. Deste forma, não houve drama e nem remorso<br />
na triste separação. E cada um seguiu seu rumo tranqüilo quanto a sua moral.<br />
Assim aquele episódio nem chegou a guardar espaço na lembrança <strong>de</strong><br />
nenhum <strong>dos</strong> dois irmãos. Nenhuma lei os con<strong>de</strong>nou, nem na terra nem no céu.<br />
Nem seria sensato se assim não tivesse sido.<br />
74
DÉCIMA TERCEIRA PARTE<br />
No caminho <strong>de</strong> volta para o arraial, <strong>de</strong>pois da entrega da encomenda do<br />
marquês <strong>dos</strong> Choupos, Cedro Cedrus ia <strong>de</strong>sfiando o seu encantamento e ainda<br />
mais quando atravessou o <strong>de</strong>scampado <strong>de</strong>sencantado reparando no contraste<br />
entre a pedra e o vergel. Passou a pensar numa maneira breve <strong>de</strong> voltar<br />
àquele assombroso lugar, tão diferente da mediocrida<strong>de</strong> geral que tinha<br />
cercado a sua vida até então. Volta e meia girava a cabeça para trás para<br />
admirar aquela rara paisagem, excepcional unicida<strong>de</strong> diferenciando num<br />
distrito <strong>de</strong> coisas tão iguais, nas pessoas, nas suas obras e na natureza. Tudo<br />
ali o havia impressionado vivamente: o magnífico solar, seu misterioso dono<br />
que sequer havia visto, o ver<strong>de</strong> e cores mais <strong>dos</strong> jardins, a majesta<strong>de</strong> das<br />
galgas ca<strong>de</strong>las, o inverossímil mordomo provedor. Sentiu que muito das coisas<br />
interessantes do mundo estava encerrado ali, tão perto e tão longe. À medida<br />
que ia se afastando sentia uma certa agonia pela falta <strong>de</strong> opção para forjar um<br />
retorno tão logo fosse possível. Carecia vencer a lonjura artificial daquele<br />
isolamento pois a distância real era curta, fácil <strong>de</strong> vencer, seguindo palmos <strong>de</strong><br />
poucas léguas, montado ou mesmo à pé. Mas havia as barreiras do exílio<br />
voluntário do marquês. Não podia esperar uma nova entrega incerta para<br />
acessar aquele espaço, ainda mais como mero entregador: leva, recebe e volta<br />
sem nenhuma interação. Além do mais, essa opção não teria serventia para o<br />
motivo que guardava em mente, estável e freqüente para se realizar.<br />
Naquele certa aflição, a primeira idéia que teve foi grossa e um tanto imbecil<br />
pela contradição inserida. Pensou numa sutil invasão. Coisa como pular o muro<br />
e vencer as <strong>de</strong>fesas do bem guardado solar, uma a uma. Mas logo<br />
<strong>de</strong>sacoroçoou-se da idéia pela sua ineficácia e simplória concepção.<br />
Descoberto seria repelido, oculto não teria acesso permanente à alma daquele<br />
mundo que era o que interessava <strong>de</strong> fato. Pedir simplesmente para ser<br />
admitido também seria imbecil, sendo ele um ninguém que estaria tentando<br />
romper o exílio do marquês por simples curiosida<strong>de</strong>, sem nenhuma <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>.<br />
Trilhou o caminho <strong>de</strong> volta <strong>de</strong>vagar mas chegou <strong>de</strong> volta ao armazém ainda<br />
sem nenhuma idéia <strong>de</strong>cente. Desceu da carroça e entrou, encontrando<br />
Sucupira Nemélio aflito à sua espera. Mal pisou na soleira da porta, foi crivado<br />
com uma trinca <strong>de</strong> perguntas sucessivas que se complementavam numa<br />
mesma direção.<br />
- Correu tudo bem? Fez a entrega? Recebeu as moedas como tinha sido<br />
combinado?<br />
O rapaz estava um tanto distraído. Inda matutava no seu plano e nem ouviu as<br />
perguntas. Apenas enfiou a mão no bolso, tirou as moedas e as <strong>de</strong>spejou<br />
<strong>de</strong>vagar na mão gran<strong>de</strong> e ávida que o velho comerciante esten<strong>de</strong>u a ele. Não<br />
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chegava a ser um negócio <strong>de</strong> impacto no universo <strong>dos</strong> negócios da firma no<br />
seu portento. Mas moedas <strong>de</strong> ouro são um fantástico emblema <strong>de</strong> progresso e,<br />
por isso, fascinam através do tempo, trazendo augúrios <strong>de</strong> sossego e <strong>de</strong><br />
fartura. Assim, a medida que as moedas iam pingando na palma encurvada,<br />
Nemélio ia abrindo um sorriso alargado, canto a canto da boca, tocado pelo<br />
tilintar do metal sonoro, vil e indispensável. Embora o volume não justificasse,<br />
emborcou uma mão sobre a outra, encerrando o pequeno tesouro. Atravessou<br />
o recinto com cuidado levando a preciosa carga e foi se assentar sob uma<br />
escrivaninha que havia atrás do balcão, ainda cheio do sorriso. Aliás, aquele<br />
sorriso atravessaria a noite e boa parte da manhã do dia subseqüente.<br />
Esparramou as moedas lentamente sobre o móvel e começou a contá-las,<br />
<strong>de</strong>vagar para esten<strong>de</strong>r o prazer daquela tarefa doce e da qual ele se julgava<br />
pleno merecedor, pelo trabalho e o tino. Cedro Cedrus se assentou numa ponta<br />
do pesado balcão, balançou as pernas, olhou os bicos das botinas um instante<br />
e <strong>de</strong>pois ficou observando a contagem triunfal, mas sem maior interesse.<br />
O comerciante contou as moedas, repetiu a contagem e constatou que a havia<br />
uma moeda a mais do que o combinado.<br />
- Parece que o mordomo do marquês mandou mais dinheiro do que <strong>de</strong>via -<br />
comentou sem tirar os olhos, boca e bochechas sorri<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> cima das<br />
moedas.<br />
Na verda<strong>de</strong> a quantia estava certa. É que o rapaz, absorto na maquinação do<br />
seu plano, havia se esquecido <strong>de</strong> separar sua bela gorjeta, apartando-a do<br />
monte <strong>de</strong> moedas e a retendo consigo, como era seu direito. Mas esse<br />
<strong>de</strong>scuido foi feliz e acabou inspirando, finalmente, uma idéia para o plano <strong>de</strong><br />
voltar à casa do marquês com alguma brevida<strong>de</strong>. Exatamente por isso não<br />
disse nada sobre a correção da contagem. Seu silêncio embutia a <strong>de</strong>scoberta<br />
<strong>de</strong> um motivo, plenamente justificável e meritório para sua volta ao Solar <strong>dos</strong><br />
Choupos. Assim, largou o estágio <strong>de</strong> gestação da idéia e passou para o estágio<br />
<strong>de</strong> ação imediata. Pulou do balcão e <strong>de</strong>us três largos passos na direção do<br />
comerciante. Olhou o monte <strong>de</strong> moedas: ali estava o plano perfeito e já quase<br />
acabado. Po<strong>de</strong>ria voltar sob pretexto <strong>de</strong> <strong>de</strong>volução do dinheiro pago em<br />
excesso, ainda que tal não houvesse. Bastava um pequeno arranjo, sem danos<br />
nem prejuízos, mente aliviada e coração limpo.<br />
- Se é assim, acho que <strong>de</strong>vo voltar ao solar e <strong>de</strong>volver o troco – disse,<br />
transparecendo uma certa alegria, injustificada aos olhos do seu interlocutor.<br />
Como não po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser, Sucupira Nemélio concordou <strong>de</strong> pleno com a<br />
<strong>de</strong>cente proposta, ratificando o plano sem saber a extensão. Assim, não houve<br />
muita conversa e combinaram que no dia seguinte, logo pela manhã, o dinheiro<br />
exce<strong>de</strong>nte seria <strong>de</strong>volvido, pois quanto mais rápida a <strong>de</strong>volução maior o mérito<br />
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da honestida<strong>de</strong> da ação. Bons tempos aqueles! Cedro Cedrus gastou um<br />
tempinho mais, lapidando a verossimilhança do plano. Sendo o tal excesso sua<br />
gorjeta conscientemente recebida das mãos do próprio mordomo, claro que<br />
não havia propriamente dinheiro para ser <strong>de</strong>volvido. Desta forma, teria que<br />
recorrer às suas próprias economias para gerar uma quantia extra, exce<strong>de</strong>nte.<br />
O investimento certamente compensava, mas aí havia um problema. A<br />
mercadoria e a própria gorjeta foram pagas com moedas únicas <strong>de</strong> reluzente<br />
ouro e as suas ditas economias eram constituídas <strong>de</strong> moedas ordinárias <strong>de</strong><br />
ligas <strong>de</strong> cobre, escuras e ensebadas pelo manuseio <strong>dos</strong> anônimos do norte e<br />
do sul do pobre país on<strong>de</strong> tinha nascido. Era <strong>de</strong> fato um problema, mas não<br />
teve que per<strong>de</strong>r muito tempo com ele. Só tinha uma coisa a fazer: tentar<br />
comprar uma das tais moedas <strong>de</strong> ouro do pai adotivo e usá-la na <strong>de</strong>volução.<br />
De sorte que ele juntou uma porção aleatória das suas economias e fez a<br />
proposta alegando incontida fascinação por aquelas moedas raras e brilhantes,<br />
uma das quais gostaria <strong>de</strong> guardar para lembrar aqueles tempos felizes e a<br />
qualida<strong>de</strong> do negócio <strong>de</strong> que esteve à testa. O resultado foi melhor do que o<br />
esperado. Tocado pelo seu sensibilíssimo coração <strong>de</strong> pai retardatário mas<br />
presente, o velho Nemélio se encantou com aquela doce argumentação a<br />
propósito do fascínio das moedas e simplesmente doou ao retardatário filho<br />
uma das moedas, a título <strong>de</strong> singelíssima antecipação <strong>de</strong> herança. Assim,<br />
Cedro Cedrus formou um conjunto <strong>de</strong> duas preciosas moedas para <strong>de</strong>volver o<br />
que não era <strong>de</strong>vido, obtendo com elas a quantia mínima para garantir a<br />
credibilida<strong>de</strong> do plano que urdira.<br />
E foi com a certeza <strong>de</strong> tê-las seguramente guardadas no fundo do bolso que,<br />
no dia seguinte bem cedo, tocou para a casa do marquês. Ia ansioso mas,<br />
mesmo assim, trotava <strong>de</strong>vagar, ainda pensativo. Tinha um motivo para voltar,<br />
mas faltava o mais importante que era um motivo para ser admitido no seio<br />
naquele berço <strong>de</strong> fascínios e <strong>de</strong> mistérios, <strong>de</strong> forma permanente. Esse sim, era<br />
um <strong>de</strong>safio magnífico a reclamar seus talentos guarda<strong>dos</strong> à espera <strong>dos</strong><br />
horizontes do mundo. Não tinha nenhuma idéia quanto a esse ponto vital, mas<br />
seguia resoluto, contando um pouco com a sorte e a energia do <strong>de</strong>sejo, no seu<br />
estado mais puro. Seguiu a estrada poeirenta e quente, abafada por um ar<br />
imóvel, como era <strong>de</strong> costume nos ermos do Chapadão <strong>de</strong> Deserda<strong>dos</strong>. Ao<br />
começar a suave <strong>de</strong>scida para o Vale das Santas Delícias o clima mudou como<br />
por encanto e bateu uma brisa fresca, um hálito limpo e perfumado <strong>de</strong> coisas<br />
mais caprichadas no seio da natureza. Naquele ponto a estrada já não tinha<br />
poeira e virava um leito <strong>de</strong> pedregulhos soltos entremea<strong>dos</strong> <strong>de</strong> um musgo<br />
ver<strong>de</strong> escuro viçoso. Mais à frente começava um lajeado <strong>de</strong> pedras redondas,<br />
tão juntas e tão iguais na forma e no tamanho que parecia obra <strong>de</strong> um<br />
meticuloso arquiteto, executada por um não menos meticuloso pedreiro. Esse<br />
piso caprichoso passava <strong>de</strong>baixo do arco do portão e ia até o pátio frontal do<br />
Solar <strong>dos</strong> Choupos, abraçando uma fonte rui<strong>dos</strong>a <strong>de</strong> águas altas e vaporosas.<br />
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Magnificente harmonia <strong>de</strong> ocres, <strong>de</strong> brancos e <strong>de</strong> ver<strong>de</strong>s impressionando as<br />
retinas com matizes varia<strong>dos</strong> conforme o dia avançava.<br />
Como não podia <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser, o jovem Cedrus encontrou o portão fechado,<br />
resolutamente fechado. Os leões <strong>de</strong> pedra estavam lá, sustentando a verga do<br />
portal <strong>de</strong> cantaria, rompantes e atrevi<strong>dos</strong>. Mas, não obstante a ameaçadora<br />
figura, não faziam mais do que guardar o imponente brasão <strong>dos</strong> marqueses,<br />
pois quem impedia a entrada era mesmo o grosso e alto portão <strong>de</strong> ferro, bruto<br />
e seguro na sua serventia <strong>de</strong> barrar os intrusos <strong>de</strong> toda qualida<strong>de</strong>.<br />
Mas aquele robusto obstáculo não podia ser o ponto final da urdidura do rapaz.<br />
De sorte que ele apeou da sege com um pulo aguerrido e, mantendo a ré<strong>de</strong>a<br />
longa <strong>de</strong> couro numa das mãos, se aproximou do portão. Colou o rosto contra<br />
as ferragens trabalhadas em volteios e pontas <strong>de</strong> liz, já um tanto carcomidas<br />
pelos óxi<strong>dos</strong> vorazes e espiou por entre as gra<strong>de</strong>s. Tomou um susto ao dar <strong>de</strong><br />
cara com o mordomo do marquês, surgido exato do nada e já postado há<br />
menos <strong>de</strong> um metro, bem à sua frente, como se quisesse obstar que ele<br />
divisasse os jardins cortina<strong>dos</strong> <strong>de</strong> sol e ainda frescos pela brandura da manhã.<br />
Com certeza o onipresente homem já <strong>de</strong>via estar ali a sua espera e disposto<br />
como um aguerrido templário. De fato, das janelas mais altas da fachada do<br />
solar não era difícil avistar a <strong>de</strong>scida da estrada. Muito provavelmente alguém<br />
<strong>de</strong>via ficar ali o dia todo montando guarda para prevenir a entrada <strong>de</strong> intrusos<br />
como ele. Assim, sua aproximação não passou <strong>de</strong>spercebida. Tanto faz -<br />
pensou - juntando um pouco <strong>de</strong> ânimo para romper os aci<strong>de</strong>ntes do percurso.<br />
- O sr. <strong>de</strong>seja alguma coisa? – perguntou o mordomo num tom <strong>de</strong> voz pouco<br />
sutil quando ao incômodo da presença <strong>de</strong> quem não era mesmo esperado.<br />
A resposta veio um pouco assustada, tímida, sem autorida<strong>de</strong> e carente <strong>de</strong><br />
qualquer po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> convencimento:<br />
- Desculpe-me, eu preciso falar com o marquês sobre um equívoco que houve<br />
no pagamento da mercadoria que eu entreguei ontem.<br />
O mordomo não gostou <strong>de</strong> ouvir aquela resposta pois tinha absoluta certeza <strong>de</strong><br />
que o pagamento fora feito corretamente. Sentiu que ali podia haver algum tipo<br />
<strong>de</strong> artimanha. Mas não mostrou irritação. Ao contrário, abrandou a voz e<br />
caçoou da ingenuida<strong>de</strong> do rapaz com um sorriso discreto <strong>de</strong> ironia. Alguns<br />
segun<strong>dos</strong> mais e partiu para reduzir o assunto ao que ele era <strong>de</strong> fato, ou seja,<br />
um banal caso doméstico a pedir um <strong>de</strong>sfecho rápido e asséptico.<br />
- Po<strong>de</strong> tratar <strong>de</strong>sse assunto comigo mesmo.<br />
Era tudo o que Cedro Cedrus não queria ouvir, mas sabia que ouviria, dadas<br />
aquelas circunstâncias tão <strong>de</strong>safortunadas a cutucar-lhe as costelas,<br />
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inteiramente rendido. Apertou os lábios com força, olhou a cara sutilmente<br />
sorri<strong>de</strong>nte do mordomo e permaneceu calado, quem sabe à espera <strong>de</strong> uma<br />
idéia milagrosa que pu<strong>de</strong>sse tirá-lo daquele fiasco iminente.<br />
O mordomo não esperou que ele falasse mais coisa alguma. Enfiou a mão no<br />
bolso, tirou uma moeda <strong>de</strong> ouro e esticou o braço através da gra<strong>de</strong> do portão,<br />
fazendo-o dar um passo para trás meio que intimidado. Com a voz ainda mais<br />
branda o homem alargou a ironia do riso e falou.<br />
- Eis aqui o que corrige o tal equívoco no pagamento, qualquer que ele tenha<br />
sido.<br />
O rapaz ficou perplexo sem saber o que fazer. Tinha se preparado para<br />
<strong>de</strong>volver e não para receber. Permaneceu imóvel passando os olhos da cara<br />
do mordomo para a moeda e vice-versa. Depois <strong>de</strong> algum tempo nessa<br />
situação sem achar solução, finalmente pegou a moeda e a colocou no bolso.<br />
Esta foi se chocar indiscretamente com as outras duas que lá já estavam,<br />
tilintando <strong>de</strong> forma um tanto constrangedora. Ao ouvir o som o mordomo abriu<br />
mais ainda o sorriso, <strong>de</strong>u as costas e se afastou <strong>de</strong>vagar e sem mais nada<br />
dizer.<br />
Cedro Cedrus se sentiu humilhado. Pensou em conhecer o marquês na<br />
intimida<strong>de</strong> e nem passou do portão. Aliás, nem conseguiu dizer o que queria.<br />
Balançou entre se abalar dali apressado ou ficar um pouco mais à espera do<br />
inesperado. Colou as costas no portão inexpugnável, escorregou <strong>de</strong>vagar e se<br />
sentou no chão <strong>de</strong>sanimado. Enquanto isso o mordomo se afastou sem olhar<br />
para trás para confirmar o fracasso do atrevimento. Apesar do incômodo da<br />
posição ali ficou refestelado como se buscasse <strong>de</strong>scansar <strong>de</strong> uma longa<br />
jornada. Não foi bem assim, mas assim se sentia, carecendo <strong>de</strong> juntar um<br />
pouco <strong>de</strong> ânimo e voltar para casa, arrastando o rabo entre as pernas. Pior era<br />
o dia banal <strong>de</strong> trabalho que ainda tinha pela frente. Falta mágica nesse mundo,<br />
falta a chave do prazer, pensou, <strong>de</strong>sconsolado.<br />
Mas eis que o inesperado esperado acabou aparecendo e fez o martírio do<br />
nosso herói ter enfim um refrigério. Veio sob a inusitada forma <strong>de</strong> saliva fria e<br />
pegajosa escorrendo pelas dobras da orelha, inesperada e nojenta. Foi o<br />
segundo susto do dia e, <strong>de</strong>sta vez, literalmente pelas costas. Ao sentir aquela<br />
estranha lambida <strong>de</strong> língua gran<strong>de</strong>, lixosa e grossa o rapaz <strong>de</strong>u um pulo se<br />
afastado da gra<strong>de</strong> do portão <strong>de</strong> on<strong>de</strong> partia o ataque sorrateiro. Ali estavam as<br />
duas ca<strong>de</strong>las do marquês, dóceis e amáveis olhando para ele com as armas do<br />
crime pen<strong>de</strong>ndo vibrantes das bocarras pingantes. Refeito do susto, sorriu<br />
satisfeito, enfiou a mão pelas gretas do portão e afagou os animais que<br />
mostraram gosto nas carícias e retribuíram com as lambidas <strong>de</strong> praxe, mas<br />
<strong>de</strong>sta vez em lugar mais educado e contando com a aquiescência do<br />
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acarinhado. Afinal eis um começo, pensou, recobrando a animação e saindo do<br />
zero. Po<strong>de</strong>ria ficar ali algum tempo curtindo os animais em cima da sensação<br />
<strong>de</strong> que afinal conseguira entabular relação com alguns seres vivos que<br />
gravitavam em torno do marquês. Mas aquele colóquio não pô<strong>de</strong> durar muito.<br />
Repentinamente as ca<strong>de</strong>las se puseram alertas e viraram na direção do solar<br />
como se ouvissem um chamado, inaudível aos humanos. Cedro Cedrus se<br />
ergueu e procurou <strong>de</strong>scobrir o que havia atraído os animais <strong>de</strong> forma tão<br />
imediata. Maravilhosa surpresa! Há vinte metros estava a causa da prontidão<br />
das galgas, vestida com um tecido branco vaporoso e com os cabelos negros<br />
presos em coque no alto da cabeça. Parecia Vênus, uma fada ou coisa assim.<br />
Ela veio andando calmamente na direção do portão sem dizer uma palavra,<br />
conduzida pelo ondular sublime das pernas sob um vestido branco, jogadas<br />
uma após a outra, outra após uma com divina elegância. Ao se aproximar<br />
Cedro Cedrus pô<strong>de</strong> se <strong>de</strong>slumbrar com o sorriso e com o corpo caprichoso que<br />
o tecido leve não queria escon<strong>de</strong>r. Viu as curvas <strong>de</strong>licadas <strong>dos</strong> seios, a planura<br />
da barriga, a suavida<strong>de</strong> das ancas, o negrume da pélvis, a harmonia das<br />
pernas no sentido vertical, a brancura corada da pele. Duvidou. Mas não era<br />
um sonho, era real e cheirava bem, um cheiro verda<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> flor. Carregando<br />
tudo aquilo a onírica pessoa chegou a dois passos e encarou nosso herói<br />
redobrando o sorriso. O enlevo, como <strong>de</strong>ve ser com a contemplação primeira<br />
<strong>de</strong> uma divinda<strong>de</strong>, durou não mais do que segun<strong>dos</strong>, breves e in<strong>de</strong>léveis.<br />
Depois a criatura se voltou na direção do ponto mágico <strong>de</strong> on<strong>de</strong> tinha surgido,<br />
levando toda a sua divinda<strong>de</strong> <strong>de</strong> volta. As galgas a seguiram, uma <strong>de</strong> cada<br />
lado formando um corpo <strong>de</strong> guarda. Era Gérbera Silente - a favorita do<br />
marquês <strong>dos</strong> Choupos. Tão favorita que só tinha ela.<br />
Cedro Cedrus voltou para casa maravilhado. Não tinha alcançado o seu intento<br />
precípuo, mas tinha tido uma bela compensação: uma visão divina e uma<br />
moeda extra <strong>de</strong> ouro no bolso, somando três raros exemplares. Lembrou do<br />
riso irônico do mordomo e achou justo <strong>de</strong>volver a insolência. Gargalhou<br />
gostoso e <strong>de</strong>bochado, fazendo ecoar no vale o bem estar que estava sentido<br />
naquele justo instante. Tinha sido quase por acaso, mas foi ai que incorporou o<br />
prazer da esperteza na sua cesta <strong>de</strong> gozos. Tinha sido o primeiro e também<br />
seria o último, muitos anos <strong>de</strong>pois.<br />
DÉCIMA QUARTA PARTE<br />
Açucena Cedrus virou a costas para a porta da cozinha para que ninguém<br />
pu<strong>de</strong>sse ver o que estava fazendo. Com movimentos discretos dobrou o<br />
guardanapo com cuidado, pressionando as dobras para reduzir o volume e<br />
preservar o segredo. Enfiou-o no bolso do vestido, por <strong>de</strong>baixo do avental.<br />
Apurou o ouvido, prestou atenção no movimento das sombras e quando teve<br />
certeza <strong>de</strong> que não havia ninguém por perto, virou-se e caminhou na direção<br />
da copa. Atravessou-a <strong>de</strong>pressa e subiu as escadas se apoiando<br />
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cuida<strong>dos</strong>amente no corrimão para evitar uma queda que pu<strong>de</strong>sse chamar a<br />
atenção e por tudo a per<strong>de</strong>r, estabanadamente. Passou <strong>de</strong>fronte da porta do<br />
quarto <strong>de</strong> d. Violeta poupando o ruído <strong>dos</strong> seus passos. Pressionou o bolso<br />
com a mão sobre o avental para que o volume não <strong>de</strong>nunciasse seu precioso<br />
conteúdo e suscitasse questões. Entrou no seu quarto ofegante, fechou a<br />
porta, tirou o guardanapo do bolso e <strong>de</strong>sdobrou-o sobre a cama com cuidado<br />
como se ele enlaçasse um tesouro, e assim era. Ali estava a mensagem do<br />
trapezista prisioneiro, rabiscada em preto <strong>de</strong>lével em traços miú<strong>dos</strong>,<br />
aproveitando o espaço disponível com a máxima discrição e economia. Tinha<br />
sido escrita com a ponta fina <strong>de</strong> um graveto carbonizado, à serventia <strong>de</strong> lápis.<br />
Estava apagada em algumas vogais e outras tantas consoantes, mas dava<br />
para enten<strong>de</strong>r perfeitamente a escrita. O que ela não enten<strong>de</strong>u muito bem foi o<br />
sentido da inesperada mensagem, ainda que o conteúdo fosse claro e conciso.<br />
Ali estava escrito em letras pequenas <strong>de</strong> fôrma:<br />
“Quero encontrá-la amanhã, tar<strong>de</strong> da noite. Coloque uma toalha branca na<br />
janela do seu quarto.”<br />
O recado era claro, mas não fazia sentido. Aquele homem maravilhoso<br />
marcava um encontro com ela. Mas como seria isso possível? Ele estava<br />
preso, acorrentado pelo pé como uma ave perigosa. A toalha branca na janela<br />
sim, podia indicar o local on<strong>de</strong> ela estaria, mas como ele iria encontrá-la no<br />
meio do povoado com tão difuso sinal? Outras toalhas po<strong>de</strong>riam também<br />
pen<strong>de</strong>r <strong>de</strong> outras tantas janelas, pois que isso era comum. Além do mais, seu<br />
quarto ficava no andar <strong>de</strong> cima, sem outro acesso que não fosse pela escada<br />
que principiava na copa, bem no meio <strong>dos</strong> afazeres da casa: das leituras,<br />
costuras e futricas. Mais agitado agora com a aceleração <strong>dos</strong> corte e das<br />
costuras do enxoval conventual que, não raro, avançava pelas horas da noite<br />
Açucena teve medo do perigo contido naquela gran<strong>de</strong> ousadia. Isso era um<br />
<strong>de</strong>satino, para ele e para ela. Afinal estava às vésperas <strong>de</strong> se internar num<br />
convento, escapando das banalida<strong>de</strong>s do mundo. Mas o medo não evolui como<br />
<strong>de</strong>via e pedia o bom senso e sua alma singela, cravejada <strong>de</strong> pureza. Tornou-se<br />
em <strong>de</strong>cepção e <strong>de</strong>sviou para uma ponta <strong>de</strong> raiva e outros sentimentos<br />
mesquinhos. Aquilo podia ser uma simples brinca<strong>de</strong>ira, construída na pura<br />
malda<strong>de</strong>. Caçoava da sua inocência, do seu <strong>de</strong>slumbramento que, com<br />
certeza, ele já tinha notado. Teve vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> chorar e nem teve tempo <strong>de</strong><br />
conter a vonta<strong>de</strong>. Atirou-se <strong>de</strong> bruços na cama ao lado do guardanapo. Fechou<br />
os olhos molha<strong>dos</strong> e procurou não pensar em nada. Não queria per<strong>de</strong>r o<br />
sentido que tinha traçado para sua vida, e a jornada estava para começar no<br />
rumo do Convento <strong>de</strong> Santa Branca <strong>dos</strong> Lírios, logo na semana que vinha. Mas<br />
não conseguiu, nem por um miserável segundo, fugir da coceira da tentação<br />
que já vinha fermentando. Não podia simplesmente ignorar aquilo, nem tinha<br />
forças reunidas. Podia ser uma simples brinca<strong>de</strong>ira, mas também podia ser o<br />
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maior momento da sua vida inteira, pregressa e ainda por vir. Abriu os olhos,<br />
virou <strong>de</strong> lado, apoiou a cabeça no braço e ficou olhando o guardanapo<br />
estendido, cheio <strong>de</strong> insensatez e promessas douradas. Ficou olhando, seguiu<br />
olhando e pensando. Enquanto pensava amolecia o bom senso, para isso<br />
predisposto. O <strong>de</strong>safio atraia pela sua simplicida<strong>de</strong> e era difícil lutar contra<br />
aquelas circunstâncias. Não tinha que fazer quase nada a não ser mostrar o<br />
caminho e esperar a maravilhosa presença. Esqueceu do resto, pois era o que<br />
lhe convinha nos domínios do prazer, na soleira do <strong>de</strong>sejo, bem distante da<br />
razão e da força da penitência.<br />
E assim pensando, com nova disposição, começou a encontrar sentido no<br />
<strong>de</strong>svario. O recado dizia tar<strong>de</strong> da noite, quer dizer, <strong>de</strong>pois que tudo estivesse<br />
quieto, as comadres retiradas, sua mãe e os vizinhos dormindo. E as toalhas<br />
brancas recolhidas das janelas, protegidas do sereno. Exceto uma. A sua, a<br />
indicação do seu quarto. A seta apontando o rumo do seu coração, aberto e<br />
dadivoso. Açucena Cedrus então começou a achar racionalida<strong>de</strong> e razão no<br />
plano que à pouco a <strong>de</strong>snorteava. Do pecado, nem se lembrou. Certas coisas<br />
continuavam carecendo <strong>de</strong> convencimento e faltando explicação. Mas já não<br />
se importou e tocou a fazer a parte que lhe cabia naquela urdidura.<br />
Como não po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser- e como antes já tinha sido naquela mesma<br />
aventura - aquele dia lhe pareceu extremamente longo, cheio <strong>de</strong> horas a mais,<br />
pesadas e segurando as horas seguintes, como um cordão penitente,<br />
arrastando <strong>de</strong>vagar a sua ansieda<strong>de</strong>. Sem ver sentido em mais nada, furtou-se<br />
da banalida<strong>de</strong> das rotinas da casa e se reteve em seu quarto a pretexto <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>itar fora os guarda<strong>dos</strong> que não teriam lugar na clausura do convento nem na<br />
recriação da sua memória daquele ponto em diante, pois nova vida já estava<br />
programada. E assim passou a monotonia do dia, interrompendo o exílio só<br />
para almoçar e jantar, quer dizer, engolir a comida, pois fome não havia, com<br />
toda aquela ansieda<strong>de</strong>.<br />
A noite, como esperado, foi um tanto movimentada na casa, com as tias e<br />
vizinhas reunidas laboriosas e aflitas para terminar o enxoval no tempo e na<br />
condição em que tinham se imposto, zelosas no compromisso. Açucena, do<br />
seu quarto acompanhava os ruí<strong>dos</strong> <strong>de</strong> baixo, esperando que o silêncio<br />
pu<strong>de</strong>sse enfim atestar que to<strong>dos</strong> tinham indo embora e que a copa já era um<br />
caminho liberado para o acesso ao seu quarto. Enquanto isso relia o recado,<br />
renovando a coragem pra seguir no <strong>de</strong>satino e lapidar os <strong>de</strong>talhes do plano da<br />
magia da visita. Decidiu que só colocaria a toalha na janela <strong>de</strong>pois que<br />
reinasse silêncio absoluto na casa. Ficou em dúvida <strong>de</strong> como <strong>de</strong>veria estar<br />
quando a visita chegasse. Assentada na poltrona como uma dama majestosa,<br />
recostada na cama, dócil e inocente? De camisola, <strong>de</strong> vestido? Um traje <strong>de</strong><br />
gala, uma simples veste doméstica? Seja como for, só po<strong>de</strong>ria colocar as<br />
coisas em andamento <strong>de</strong>pois que a mãe fosse lhe dar a benção da noite, como<br />
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sempre acontecia. Assim, vestiu a camisola e se pôs novamente a revirar as<br />
gavetas num ritual sem sentido, simulando a tal organização <strong>dos</strong> guarda<strong>dos</strong> no<br />
adiantado da noite, pronta para cair num sono inocente. Era assim que queria<br />
ser encontrada pela mãe e assim foi, por volta <strong>de</strong> onze horas, o que <strong>de</strong> fato<br />
aconteceu. Logo que d. Violeta saiu do quarto Açucena Cedrus pôs o plano em<br />
andamento. Preferiu continuar <strong>de</strong> camisola. Parecia mais natural. A<strong>de</strong>mais, se<br />
aquilo fosse só uma brinca<strong>de</strong>ira, tudo pareceria menos ridículo para ela<br />
mesma. Só teria que ir dormir e fingir que nada tinha acontecido. De sorte que<br />
ela abriu a janela e esten<strong>de</strong>u a toalha branca <strong>de</strong>flagrando o processo. Colocou<br />
um peso para evitar que o vento a levasse. Desnecessário cuidado pois a brisa<br />
era leve e conivente. Mas o luar não. A lua estava cheia e a noite clara e<br />
reveladora <strong>dos</strong> escondi<strong>dos</strong>. Isso reacen<strong>de</strong>u os me<strong>dos</strong> <strong>de</strong> Açucena. Não era<br />
noite <strong>dos</strong> sorrateiros. Mas nada havia a fazer daí para a frente. Escovou os<br />
cabelos, pren<strong>de</strong>u-os com uma fita azul com serventia <strong>de</strong> dia<strong>de</strong>ma. Pingou uma<br />
rara fragrância num <strong>de</strong>do e ume<strong>de</strong>ceu a ponta <strong>de</strong> uma orelha. Repetiu e<br />
contemplou a ponta da outra. Preparou-se como noiva, como podia, com tão<br />
poucos recursos, tentando evitar o ridículo que, noiva <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> não precisa<br />
evitar. Apagou o lampião, colocou a poltrona virada para a porta, <strong>de</strong>u as<br />
costas para a janela, assentou-se e esperou. Uma hora se passou sem nada<br />
acontecer. Mas ela não se afligiu, consolava-se tentando se convencer que<br />
seria melhor se o homem não viesse mexer com os arranjos da sua vida, assim<br />
tão <strong>de</strong> repente e em tempo tão impróprio. Cochilou e <strong>de</strong>spertou uma meia<br />
dúzia <strong>de</strong> vezes, variando o <strong>de</strong>sejo e esperando sem saber se queria que aquilo<br />
acontecesse <strong>de</strong>ssa forma. Veio um cansaço natural e ela finalmente<br />
adormeceu, mergulhando num sono profundo e sonhando com o que preferia<br />
ser sonho sem o ônus do real. Sonhou que o trapezista entrou pela janela e a<br />
acordou com um leve toque no ombro fazendo-a estremecer. Sonhou que ele<br />
pegou suas mãos e a fez se levantar da poltrona <strong>de</strong>vagar. Sonhou que ele a<br />
enlaçou docemente e a beijou nos olhos, na boca e no pescoço. Ele estava nu<br />
e a <strong>de</strong>spiu <strong>de</strong>vagar. Depois se <strong>de</strong>itaram no chão e fizeram amor toda a noite,<br />
doce e <strong>de</strong>vagar, sem remorso e sem dor, banha<strong>dos</strong> pelo luar. Em seguida ele a<br />
carregou até a cama, a cobriu e saltou pela janela à fora. Ouviu-se um ruflar<br />
pesado <strong>de</strong> asas e <strong>de</strong>pois o silêncio da noite, cortado pelo canto <strong>dos</strong> galos, sem<br />
um pingo <strong>de</strong> romantismo como sói ser com o canto <strong>de</strong> galos. Mas o luar ainda<br />
estava lá entrando com a sua parte. Ela não se levantou preferindo ficar<br />
lânguida, estendida no cansaço <strong>dos</strong> <strong>de</strong>sejos sonha<strong>dos</strong> e realiza<strong>dos</strong> como se<br />
fossem reais. Sonhou que adormecia e parava <strong>de</strong> sonhar.<br />
Acordou com a mãe batendo na porta do quarto no adiantado da manhã, com o<br />
sol já alto e atrevido, caçoando da preguiça. Acordou e sorriu feliz com o<br />
encantamento do sonho. Doce e prazeroso, limpo e sem vestígios. E assim<br />
ficou por uns dias, negando para si mesma, uma a uma, as evidências <strong>de</strong> que<br />
aquilo não tinha sido um sonho mas um <strong>de</strong>lírio <strong>de</strong> prazer, vibrante e real. Por<br />
isso nem quis se assustar com a notícia <strong>de</strong> que o trapezista tinha escapado da<br />
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prisão sem <strong>de</strong>ixar nenhum tipo <strong>de</strong> rastro, vexando o cabo Mili e sua guarda<br />
improvisada. Todo mundo sabia como ele tinha escapado, confirmando a<br />
suspeita <strong>de</strong> que ele podia voar. Cabo Mili evitou mencionar essa versão no seu<br />
relatório oficial, mas não evitou o <strong>de</strong>boche pelo fracasso inexplicável da sua<br />
singela obrigação.<br />
Açucena Cedrus pagaria resignada o preço da sua paixão alucinada e fugaz.<br />
Foi caro e lhe encurtou a vida. Mas <strong>de</strong>la ninguém nunca ouviu a queixa <strong>de</strong> que<br />
não tinha valido a pena.<br />
DÉCIMA QUINTA PARTE<br />
A intensa iluminação da alameda interna que levava ao “Mon Petit Trianon”,<br />
quer dizer, a pequena galeria <strong>dos</strong> prazeres do príncipe Pinho Tepowski das<br />
Begônias, ofuscava a semi-penumbra <strong>dos</strong> aposentos frontais do palacete do<br />
número 220 da avenida <strong>dos</strong> Campos Elíseos, na parte mais nobre da Cida<strong>de</strong><br />
das Luzes. Penetrava incontida, colorida, reta e tremulante através <strong>dos</strong> vitrais<br />
<strong>dos</strong> inúmeros janelões da fachada da suntuosa construção e já espalhava um<br />
clima inebriante antes mesmo do inicio da fantástica noite que estava<br />
prometida para dali a pouco. Era cedo, contudo, e prevalecia uma certa<br />
tranqüilida<strong>de</strong> em tudo, pois que as preparações tinham sido feitas no <strong>de</strong>correr<br />
da tar<strong>de</strong> e estavam prontas. As comidas já estavam preparadas, as bebidas<br />
postas para gelar como convinha a cada tipo e os músicos já estavam nos seus<br />
postos afinando <strong>de</strong>talhes. Mas, para a festa propriamente dita, ainda era cedo,<br />
como dito. Daí porque ainda não havia convida<strong>dos</strong> quando Cedro Angélico<br />
<strong>de</strong>sceu <strong>dos</strong> seus aposentos vestido com um traje híbrido, meio exótico e meio<br />
europeu também, trazendo envolto no pescoço o lenço colorido que lhe tinha<br />
sido oferecido ao toalete, três quartos <strong>de</strong> horas antes. Tremia <strong>de</strong> curiosida<strong>de</strong> e<br />
dilatava as pupilas <strong>de</strong> pura excitação, antevendo a noite <strong>de</strong> <strong>de</strong>lícias que estava<br />
para acontecer dali à pouco. Não esperava nada menos do que isso naquele<br />
soberbo templo hedonista, conforme promessa <strong>de</strong> seu sumo sacerdote. Assim<br />
que acabou <strong>de</strong> <strong>de</strong>scer as escadarias, caracoladas <strong>de</strong> pedra rosa polida, o<br />
mordomo do príncipe lhe entregou um cálice <strong>de</strong> absinto precedido <strong>de</strong> um piscar<br />
<strong>de</strong> olho maroto, conivente e um tanto enxerido. Depois lhe indicou o salão on<strong>de</strong><br />
os convida<strong>dos</strong> <strong>de</strong>viam se agrupar a espera da abertura do gran<strong>de</strong> festival <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>lícias. Ele se assentou numa poltrona, pousou o cálice sobre uma mesa e se<br />
pôs a fazer nada, esperando e examinando os <strong>de</strong>talhes barrocos da sala:<br />
móveis, estuques <strong>de</strong> volteios em alto e baixo relevo, murais bucólicos <strong>de</strong><br />
faunos e ninfas se aquecendo e cortina<strong>dos</strong> <strong>de</strong> veludo e outros panos pesa<strong>dos</strong>,<br />
barrocamente arranja<strong>dos</strong> do seu jeito singular. Mas não <strong>de</strong>morou muito<br />
naquela contemplação e já os primeiros convida<strong>dos</strong> começaram a chegar e se<br />
acomodar na mesma sala e do mesmo jeito, sorvendo suas bebidas com uma<br />
certa discrição. Aliás, como era recomendado, pois havia um cerimonial que se<br />
<strong>de</strong>via cumprir para gozar o festival com correta elegância. To<strong>dos</strong> os homens<br />
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estavam <strong>de</strong> preto e traziam um lenço como o seu envolto ao pescoço. As<br />
mulheres traziam um broche <strong>de</strong> penas coloridas, colocado on<strong>de</strong> cada uma<br />
quisesse. Todas vestiam o mesmo mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> vestido. A vestimenta era<br />
fornecida pelo príncipe e, assim como o lenço <strong>dos</strong> homens, servia <strong>de</strong> ingresso<br />
à festa.<br />
Cerca <strong>de</strong> quarenta minutos foram gastos naquela aglomeração vestibular, até<br />
que Sua Alteza o príncipe Pinho Tepowski das Begônias apareceu solene e<br />
pedante como era esperado e ele fazia questão. Vinha acompanhado <strong>de</strong> um<br />
fra<strong>de</strong> ru<strong>de</strong>mente vestido, gran<strong>de</strong> e obeso, quer dizer, tanto largo quanto<br />
comprido, aparência que,aliás, contradizia-lhe o nome. Claro que a companhia<br />
do príncipe causou surpresa aos menos habituais, dado o propósito sabido<br />
daquele ajuntamento e ser um fra<strong>de</strong>; por certo, uma presença estranha numa<br />
festa, obscena pelos excessos que embutia. Era frei Eucalipto Latinol, membro<br />
eventual daquela singular irmanda<strong>de</strong>, doutorado em filosofia <strong>dos</strong> prazeres, fiel<br />
aos seus votos <strong>de</strong> pobreza e castida<strong>de</strong>, mas refinando glutão. Por incrível que<br />
pareça era ele a primeira atração, pois que a festa ia ser antecedida <strong>de</strong> um<br />
pouco <strong>de</strong> filosofia mundana e isso era com ele mesmo. Sim, pois como dizia o<br />
outro marquês – o <strong>de</strong> Sa<strong>de</strong> -, mesmo numa orgia é preciso haver um pouco <strong>de</strong><br />
método. Daí, coube ao bom fra<strong>de</strong> falar um pouco sobre os propósitos daquela<br />
celebração para que to<strong>dos</strong> soubessem como se comportar, saboreando melhor<br />
os tantos e varia<strong>dos</strong> <strong>de</strong>sfrutes daquela noite, enfartando os senti<strong>dos</strong> e<br />
lambuzando os <strong>de</strong>sejos com sabedoria e supremo refinamento. A maioria não<br />
era neófita, mas aquele intróito nunca era dispensado. Nenhum<br />
constrangimento para o fra<strong>de</strong> sapiente, pois Deus era sua paixão maior e ele<br />
sabia adorá-Lo e explicar as contradições por Ele ter dotado o ser humano <strong>de</strong><br />
tantos santos senti<strong>dos</strong>. No fundo, acreditava honestamente que sua palavra,<br />
tão longe do púlpito, trazia muita ajuda à sua catequese. Não vou entrar nos<br />
méritos da idéia nem tentar enten<strong>de</strong>r os meandros da contradição, sendo mero<br />
escriba da história.<br />
O príncipe e seu singular acompanhante atravessaram o salão até o fundo<br />
on<strong>de</strong> havia um tablado <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira revestido <strong>de</strong> couro ver<strong>de</strong>, fixado com<br />
gran<strong>de</strong>s taxas <strong>de</strong> bronze exagera<strong>dos</strong> pois eram <strong>de</strong> mera <strong>de</strong>coração. Lá<br />
chegando, o fra<strong>de</strong> subiu os <strong>de</strong>graus arrastando a barra do hábito e tomou<br />
posição atrás <strong>de</strong> um pequeno parlatório. Foi feito silêncio e ele, risonho e cheio<br />
<strong>de</strong> fraternal simpatia, se empenhou no seu discurso. Disse que,<br />
fisiologicamente, o prazer é a sensação resultante da tentativa <strong>de</strong> sacieda<strong>de</strong> do<br />
apetite neuro-sensorial do ser humano e que ele é capaz <strong>de</strong> satisfazer tanto o<br />
<strong>de</strong>sejo quanto o amor, com perfeita competência. A diferença é moral e está<br />
nas conseqüências. A satisfação do <strong>de</strong>sejo se faz através do gozo que leva à<br />
sacieda<strong>de</strong> mas nunca ao contentamento e há sempre o risco <strong>de</strong> surgir o<br />
sentimento do pecado. A satisfação do amor se faz através da adoração que<br />
leva ao contentamento mas nunca à sacieda<strong>de</strong> e há sempre o risco <strong>de</strong><br />
surgimento do sentimento do remorso. Ambas as seqüelas do prazer, contudo,<br />
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têm o seu remédio. O antídoto do remorso é o altruísmo pois, no amor, <strong>de</strong>ve<br />
prevalecer o compromisso e a oferta. Ao contrário do que vai com o amor, no<br />
<strong>de</strong>sejo o prazer é um fim em si mesmo. Ele é pontual, quase sempre casual e<br />
nem sempre comungável. Por isso o seu antídoto é o egoísmo, pois ele reforça<br />
a falta <strong>de</strong> compromisso e <strong>de</strong> reciprocida<strong>de</strong>, potenciando a amoralida<strong>de</strong> e<br />
vencendo o sentimento <strong>de</strong> pecado.<br />
Nesse ponto o fra<strong>de</strong> fez um silêncio curto, olhou a platéia, criando um clima<br />
para entrar <strong>de</strong> fato com a sua catequese. Em seguida colocou sua polêmica<br />
favorita sobre o tema, manobrando com suma <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za para não escorregar<br />
no piso liso da contradição ou ser mal compreendido:<br />
.- O que <strong>de</strong>vemos escolher, o remorso ou o pecado?<br />
E continuou, risonho, sem esperar resposta e sem resolver a polêmica como<br />
aliás, queria mesmo fazer:<br />
– Depen<strong>de</strong> do preço que se quer pagar por aquilo que se quer comprar.<br />
Fez uma pausa e puxou a seqüência da idéia:<br />
- Mas, essa polêmica não nos <strong>de</strong>ve inquietar nem um pouco, pois, pelo menos<br />
nesse preciso instante, to<strong>dos</strong> nos já fizemos nossas opções levemente<br />
egoístas – arrematou o bom fra<strong>de</strong>, agora exagerando no riso e constrangendo<br />
os mais sensíveis.<br />
Fez uma segunda pausa, sorveu um gole <strong>de</strong> vinho para limpar a garganta e<br />
estimular as idéias finais e acrescentou puxando a conclusão da palestra:<br />
- Meu caros amigos, não é possível se organizar uma festa do amor, pela sua<br />
própria natureza. No amor o prazer acontece todo dia – enquanto dura - nas<br />
coisas sublimes e nas banais. O amor não se enquadra no tempo, não tem<br />
começo nem fim programado. Vai daí que é impossível organizá-lo, <strong>de</strong>dicar a<br />
ele um festival ou coisa <strong>de</strong>ssa natureza.<br />
E concluiu, fechando finalmente o intróito bacante:<br />
- Quanto aos <strong>de</strong>sejos, contudo, organizamos uma noite inteira <strong>de</strong> gozos para<br />
satisfazê-los com todo o requinte, estimulando a excitação, assumindo a<br />
tentação e arrematando na paz da sacieda<strong>de</strong>.<br />
- Quanto ao pecado, que cada um cui<strong>de</strong> <strong>dos</strong> seus.<br />
Assim, foi a fala do fra<strong>de</strong>, incomodando alguns, indiferente à maioria que,<br />
eufórica e ansiosa, não estava dando a mínima bola para aquela falação<br />
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essencialmente moralista. Mas, <strong>de</strong> certa forma, a abertura singular era como<br />
uma bênção, indispensável àquela celebração; olhando pelo lado teológico e<br />
pela eventual necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conforto moral <strong>de</strong> uns e <strong>de</strong> outros. Assim se<br />
justificava. A<strong>de</strong>mais, dava muita satisfação ao que, no fundo, não passava <strong>de</strong><br />
um festim nababesco<br />
Debaixo <strong>de</strong> aplausos <strong>de</strong> algum discreto comentário <strong>de</strong>sairoso, frei Eucalipto<br />
Latinol <strong>de</strong>ixou a tribuna e foi substituído pelo príncipe que passou umas<br />
questões <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m à fina platéia. Ele agra<strong>de</strong>ceu as gradas presenças <strong>de</strong><br />
damas e cavaleiros e explicou o programa da festa. Era sempre o mesmo, mas<br />
isso não <strong>de</strong>sagradava nem afastava os habituais, muito antes pelo contrário,<br />
to<strong>dos</strong> queriam voltar. Claro, um ou outro nunca mais aparecia, <strong>de</strong>ixando para<br />
sempre a santa fraternida<strong>de</strong>. Mas, asseguro, não eram <strong>de</strong>ficiências da festa em<br />
si. É que o prazer também cansa e o <strong>de</strong>sejo fenece quando per<strong>de</strong> a rarida<strong>de</strong>. E<br />
nesse ponto é que a catequese do santo fra<strong>de</strong> fazia o seu sentido, resolvendo<br />
a polêmica, pelo menos para ele.<br />
- Caros amigos – começou o anfitrião – po<strong>de</strong> parecer, em princípio, que os<br />
<strong>de</strong>sejos variam enormemente <strong>de</strong> pessoa para pessoa. Mas se vocês prestarem<br />
atenção não é bem assim. Salvo alguns <strong>de</strong>svios pouco saudáveis, to<strong>dos</strong> nós<br />
temos os mesmos <strong>de</strong>sejos e eles estão conti<strong>dos</strong> nos limites da nossa<br />
capacida<strong>de</strong> natural <strong>de</strong> sentir prazer. Notem que temos a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sentir<br />
fundamentalmente dois tipos <strong>de</strong> prazeres e eles são a origem <strong>de</strong> to<strong>dos</strong> os<br />
nossos <strong>de</strong>sejos saudáveis. Falos <strong>dos</strong> velhos prazeres da carne e do espírito.<br />
Foi com base neles que organizei o meu singelo,“Petit Trianon”, lugar central<br />
da nossa celebração, para on<strong>de</strong> vamos passar agora sem mais embromação.<br />
Isso dito, <strong>de</strong>sceu da tribuna sob reverentes aplausos, atravessou o salão<br />
seguido pelo fra<strong>de</strong> bonachão e fez sinal para que to<strong>dos</strong> os seguissem, no que<br />
foi alegremente obe<strong>de</strong>cido. Ao encontrar Cedro Angélico no meio da gente, um<br />
tanto <strong>de</strong>slocado, fez sinal para que ele caminhasse a seu lado, lugar <strong>de</strong> alto<br />
<strong>de</strong>staque, o que fez com que ele sorrisse prazeroso, antecipando com<br />
singeleza os gozos que esperava dali a pouco. Nosso herói aproveitou para<br />
cumprimentar frei Latinol e dizer a ele, <strong>de</strong> forma um tanto ina<strong>de</strong>quada pela<br />
precipitação, que nunca tinha conhecido o amargor do pecado, o que <strong>de</strong>u<br />
margem para que o fra<strong>de</strong> louvasse a sua santida<strong>de</strong> com uma espetada <strong>de</strong><br />
ironia. Enquanto isso o grupo <strong>de</strong> convida<strong>dos</strong> os seguia. Percorreram a alameda<br />
iluminada com archotes colori<strong>dos</strong> e entraram no templo <strong>dos</strong> prazeres do<br />
príncipe. Embora to<strong>dos</strong> tivessem as mentes alteradas pelo álcool e o fumo<br />
reinava o comedimento e tinha que ser assim pelas regras adotadas. Quem<br />
mostrasse excesso <strong>de</strong> entusiasmo nunca mais seria admitido e isso significava<br />
banimento das altas rodas da Cida<strong>de</strong> das Luzes, condição impensável àquela<br />
gente.<br />
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O pequeno mas suntuoso palacete era uma construção <strong>de</strong> dois andares em<br />
estilo barroco italiano, inspirada em Borromini, guardando harmonia com o<br />
estilo do resto da vasta habitação. Ao vestíbulo, abraçava uma escadaria que<br />
<strong>de</strong>scia <strong>de</strong> ambos os la<strong>dos</strong>, ligando um piso muito liso, enxadrezado, a um<br />
balcão <strong>de</strong> gra<strong>de</strong>s <strong>de</strong> metal brilhante cuida<strong>dos</strong>amente polido, resplan<strong>de</strong>cendo<br />
qual ouro, mas que não era. Lá em cima estava a ala <strong>dos</strong> prazeres da carne.<br />
Duas portas altas e imponentes separavam esses quentes prazeres. Na verga<br />
uma placa <strong>de</strong> metal, com letras em relevo i<strong>de</strong>ntificava cada um <strong>de</strong>les: à direita<br />
a Luxuria, à esquerda a Degustação. Mas não foi por ali que começaram. Em<br />
frente a entrada do vestíbulo, <strong>de</strong>baixo do balcão, havia um corredor. No arco<br />
estava a i<strong>de</strong>ntificação da ala <strong>dos</strong> prazeres do espírito e mais abaixo, um<br />
subtítulo: “Galeria das Artes”. E foi por ele que o anfitrião entrou, conduzindo os<br />
convida<strong>dos</strong> felizes e excita<strong>dos</strong>. Antes, porém, mostrou meia dúzia <strong>de</strong> mesas e<br />
ca<strong>de</strong>iras em um <strong>dos</strong> la<strong>dos</strong> do vestíbulo explicando que ali se po<strong>de</strong>ria consultar<br />
o programa das ativida<strong>de</strong>s da noite e po<strong>de</strong>riam ser feitas as inscrições para as<br />
apresentações e <strong>de</strong>bates na sala <strong>de</strong> Literatura. O corredor não era longo,<br />
estava guarnecido <strong>de</strong> pe<strong>de</strong>stais e estátuas e terminava numa sala com<br />
aparadores repletos <strong>de</strong> bebidas e iguarias para aguçar o espírito, ativar a libido<br />
e aplacar pequenas fomes prematuras. Ali havia duas portas discretas, uma <strong>de</strong><br />
cada lado, em simetria preservando a harmonia da pare<strong>de</strong> que as continham<br />
com toda a dignida<strong>de</strong>. No portal <strong>de</strong> cada qual havia uma pequena inscrição.<br />
Numa estava escrito “Esperteza” e a outra indicava um prosaico toalete, pois<br />
eles também resultam ser importantes em noitadas <strong>de</strong> prazeres quando o<br />
corpo <strong>de</strong>jeta mais do que seria o usual. Ao longo do corredor da galeria havia<br />
outras portas mais suntuosas com a i<strong>de</strong>ntificação <strong>dos</strong> prazeres do espírito que<br />
guardavam: Música, Pintura e Literatura. Não havia nenhuma placa proibindo<br />
fumar, pois naquele tempo não tinha disso e o fumo era um prazer onipresente,<br />
sem riscos <strong>de</strong> contágio nem agressões às narinas que, com o passar do<br />
tempo, muito frágeis se tornaram.<br />
Feitas as explicações pelo orgulhoso anfitrião, estavam libera<strong>dos</strong> os prazeres<br />
do andar <strong>de</strong> baixo e cada um se dirigiu para on<strong>de</strong> queria. Os prazeres <strong>de</strong> cima<br />
seriam libera<strong>dos</strong> <strong>de</strong>pois, quando os <strong>de</strong>sejos para eles estivessem mais<br />
aqueci<strong>dos</strong>. Nessa movimentação meio confusa <strong>de</strong> abertura do magnífico<br />
evento Cedro Angélico per<strong>de</strong>u o príncipe <strong>de</strong> vista e se sentiu um pouco<br />
abandonado, injusta condição, ainda mais sendo ele um convidado especial,<br />
único na posição condição precípua <strong>de</strong> hóspe<strong>de</strong> <strong>de</strong> Sua Alteza. Sozinho sentiu<br />
curiosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> saber o que havia na sala da Esperteza, pois <strong>de</strong>la o príncipe<br />
não tinha falado e esse era um prazer a que ele não se furtava no dia a dia.<br />
Qual seria o prazer específico ali presente, atrás da dubieda<strong>de</strong> do nome? Foi<br />
conferir. Era uma sala <strong>de</strong> jogos <strong>de</strong> carta, tão somente. Mesas redondas com<br />
seus panos ver<strong>de</strong>s e <strong>de</strong>coração escorada nas espadas. copas, ouros e paus,<br />
pintas imortais do baralho, como sempre. A diferença existente é que, quem<br />
ganhasse através <strong>de</strong> uma jogada <strong>de</strong> blefe, recebia o prêmio dobrado, dobrando<br />
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o prazer <strong>de</strong> ter sido esperto, mais do que os outros espertos. Como não<br />
gostasse <strong>de</strong> jogo, um exagero pareceu ao nosso herói a inclusão daquele<br />
prazer cotidiano num local tão refinado. Já ia abandonando a sala quando<br />
avistou, numa das mesas, a viscon<strong>de</strong>ssa Rosa Zilium bela e esperta gazela no<br />
meio <strong>de</strong> velhos lobos mal<strong>dos</strong>os. Ficou muito contente <strong>de</strong> vê-la e mudou pronto<br />
<strong>de</strong> idéia, pois prazer melhor não havia, mesmo que fosse para simples<br />
contemplação. Aliás, aquele feliz encontro esperava, exato naquela festa, mais<br />
do que em qualquer outro lugar. Tinha perdido a chance com ela aquele dia no<br />
parque e agora queria reverter a ler<strong>de</strong>za. Aproximou-se e a cumprimentou meio<br />
formal, ligeiramente acanhado, sem conseguir dissimular esta pífia condição.<br />
Ela respon<strong>de</strong>u com um aceno e um sorriso essencialmente educado. Não<br />
havia lugares à mesa e se ele quisesse ficar ali teria que ser em pé<br />
atrapalhando o jogo e disputando espaço com os serviçais. De sorte que Cedro<br />
Angélico se sentiu meio imbecil com aquela aproximação atabalhoada,<br />
<strong>de</strong>spediu-se e se afastou maldizendo a sua burrice no salão da esperteza. Mais<br />
uma vez tinha jogado fora uma oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se achegar à viscon<strong>de</strong>ssa;<br />
condição indispensável, enfim, para alcançar os recônditos da fêmea. Saiu e,<br />
meio <strong>de</strong>sanimado com seu medíocre começo, resolveu ficar em torno do bufê<br />
provando das iguarias com um certo <strong>de</strong>sinteresse, forçando o apetite. No fundo<br />
tinha esperança <strong>de</strong> que a viscon<strong>de</strong>ssa não <strong>de</strong>morasse a sair. E. <strong>de</strong> fato, foi o<br />
que aconteceu. Rosa Zilium saiu como a viscon<strong>de</strong>ssa que era, enchendo o<br />
ambiente, tomando espaço às outras mulheres, sem ser preciso esforço.<br />
Aproximou-se <strong>de</strong>le e tomou a iniciativa <strong>de</strong> trocarem algumas palavras banais.<br />
Mas a coisa evoluiu e acabou que ficaram juntos, compartilhando prazeres,<br />
sem compromisso nenhum. Mas, vamos por partes, seguindo <strong>de</strong>vagar pois<br />
que a noite foi longa e o conluio não foi assim tão pleno como pô<strong>de</strong> parecer<br />
nessa narração tão genérica. Começaram pelo salão <strong>de</strong> música on<strong>de</strong> optaram<br />
pela seção da câmara <strong>de</strong>dicada a Mozart on<strong>de</strong> sopranos árabes inusita<strong>dos</strong><br />
cantavam árias da “Die Zauberflote”, maravilhando ouvi<strong>dos</strong> e enlevando<br />
espíritos ao nível mais alto do gozo. Gente tinha que alcançava o êxtase pois<br />
amava aquela peça <strong>de</strong> fato. Mas não era apropriado tamanha elevação numa<br />
festa pontual.<br />
Em seguida participou <strong>de</strong> um <strong>de</strong>bate na sala <strong>de</strong> literatura sobre a obra <strong>de</strong> Eça,<br />
parte final da primeira parte do evento literário. Depois, como estava<br />
programado, ia ser aberta, finalmente, a parte <strong>de</strong> cima do palacete, dando lugar<br />
à celebração <strong>dos</strong> prazeres exuberantes da carne. Mais uma vez o príncipe<br />
tinha explicações a dar, embora a maioria ali já conhecesse as regras <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os<br />
primeiros festivais, e elas não mudavam pois já eram perfeitas para aquilo que<br />
serviam. Mas seguiu-se o ritual, já que <strong>de</strong>le o príncipe não abria mão e tinha<br />
todo o direito dado a fortuna que gastava para encantar os amigos, saciandolhes<br />
os apetites com fineza. De sorte que todo mundo se reuniu no vestíbulo<br />
novamente e o anfitrião, mais uma vez, supriu seus felizes convida<strong>dos</strong> <strong>de</strong> todas<br />
as informação requeridas para assegurar o sucesso intrínseco e o extrínseco<br />
89
do singular evento, inesquecível mas sem compromissos e peca<strong>dos</strong>, como era<br />
o princípio do prazer no fremir do <strong>de</strong>sejo.<br />
Impoluto, <strong>de</strong>sta vez olhando seus submissos e gratos convida<strong>dos</strong> do alto do<br />
balcão do vestíbulo, o príncipe explicou que os eventos da luxúria e da<br />
<strong>de</strong>gustação seguiriam paralelos como <strong>de</strong>via ser e cada dileto convidado<br />
po<strong>de</strong>ria resolver qual seqüência adotar pois que nesse particular sempre houve<br />
controvérsia e até um pouco <strong>de</strong> lenda e superstição. No salão da <strong>de</strong>gustação<br />
seriam servidas peças das culinárias francesa e italiana e uma ou outra iguaria<br />
exótica. No salão da luxúria teria lugar exibições eróticas, levemente<br />
pornográficas, inda que sempre sutis, pois que erotismo pe<strong>de</strong> <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za e<br />
prolongamento do pipocar do <strong>de</strong>sejo, afastando a grosseria. Claro, havia<br />
aposentos provi<strong>de</strong>nciais reserva<strong>dos</strong> para quem quisesse chegar a extremos.<br />
Mas nada <strong>de</strong> sujeira pelos cantos, numa festa elegante. Havia uma regra, única<br />
mas fundamental: to<strong>dos</strong> <strong>de</strong>viam usar máscaras pois as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>veriam<br />
ser preservadas, zelando pelos altos princípios filosóficos da festa. Finalizando,<br />
em tom <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>ira, o príncipe <strong>de</strong>cretou que eventuais amores <strong>de</strong>correntes<br />
<strong>de</strong> intercursos carnais aconteci<strong>dos</strong> no evento seriam consi<strong>de</strong>ra<strong>dos</strong> <strong>de</strong> enorme<br />
mau gosto, pois, o prazer, pelo lado do gozo, não <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>ixar seqüelas. Foi<br />
informado também que as seções na galeria das artes seriam reiniciadas,<br />
<strong>de</strong>pois das primeiras rodadas <strong>de</strong> licores digestivos e <strong>de</strong> maçu<strong>dos</strong> charutos <strong>de</strong><br />
origem tropical, curti<strong>dos</strong> em ilhas calientes.<br />
Terminada a explicação, finalmente a <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira, Cedro Angélico que estava ao<br />
lado da viscon<strong>de</strong>ssa, ficou aguardando que iniciativa sua bela acompanhante<br />
iria tomar, para então fazer o mesmo pois já se sentia o par escolhido. Ela<br />
apertou sua mão e sorriu conivente, poupando palavras como vinha fazendo<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o princípio do encontro, injetando mistério naquela relação singular.<br />
Apenas tirou duas pequenas penas amarelas da bolsa, entregou uma a ele.<br />
Combinaram que as usariam nas máscaras para garantir a i<strong>de</strong>ntificação no<br />
meio da multidão anônima. Ela subiu as escadas pelo lado esquerdo e, sem<br />
qualquer constrangimento, entrou pela porta da Sala da Luxúria. Nosso herói<br />
aguardou alguns minutos e a seguiu, garboso no papel <strong>de</strong> macho escolhido.<br />
Penetrou na sala ofegante atrás <strong>de</strong> uma discreta pena amarela, junto a qual<br />
pu<strong>de</strong>sse encontrá-la e com ela partilhar as <strong>de</strong>lícias extremadas da luxúria<br />
Havia uma ante-sala on<strong>de</strong> ele recebeu a máscara e enfiou a pena,<br />
dissimulando como se fosse apertar a presilha. Colocou-a e penetrou no salão<br />
principal. Estava escuro e havia umas espécies <strong>de</strong> tabla<strong>dos</strong> ilumina<strong>dos</strong> on<strong>de</strong><br />
pessoas se exibiam, aguçando o apetite com certa libertinagem. Procurou-a<br />
ansioso, mas não pô<strong>de</strong> ter a certeza <strong>de</strong> que a tinha encontrado, pois ela não se<br />
revelou como ele esperava e o que mais havia eram penas inseridas nas<br />
máscaras com o mesmo propósito i<strong>de</strong>ntificativo, muitas das quais amarelas.<br />
Satisfez seus <strong>de</strong>sejos obscenos por quase todo o resto da noite, procurando a<br />
certeza que ela pu<strong>de</strong>sse ter sido uma <strong>de</strong> suas parceiras <strong>de</strong> penas <strong>de</strong><br />
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canarinho. Mas também não <strong>de</strong>sprezou penas vermelhas, ver<strong>de</strong>s e azuis, pois<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma certa altura o que o guiava era o cheiro e cor já não mais<br />
importava.<br />
No final da noite, alvorada anunciada, encontrou a viscon<strong>de</strong>ssa no salão <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>gustação <strong>de</strong>vorando iguarias ao lado do fra<strong>de</strong>, fresca como a manhã que já<br />
se anunciava e rindo com as piadas do santo homem, singularíssima figura <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>staque do evento. Ela não lhe <strong>de</strong>u atenção. De repente se levantou e, sem<br />
olhá-lo, <strong>de</strong>ixou o aposento no seu andar magnífico <strong>de</strong> viscon<strong>de</strong>ssa que podia<br />
ser rainha pela sua majesta<strong>de</strong>. Saiu sem nenhum pecado, exatamente como<br />
tinha entrado. Nunca mais ele a viu.<br />
Cedro Angélico encerrou <strong>de</strong> maneira melancólica o dia mais extraordinário da<br />
sua vida tão cheio <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejos magnificamente satisfeitos, especialmente os da<br />
carne: estrebuchado na cama, com a cabeça girando e o olhar olhando a<br />
manhã, mas quase sem vê-la apesar do excesso <strong>de</strong> clarida<strong>de</strong>. Adormeceu<br />
rapidamente, mas cheio <strong>de</strong> frustrações e uma certa raiva fermentando.<br />
Acordou no meio da tar<strong>de</strong> convencido <strong>de</strong> que o amor não vale a pena, afinal.<br />
Tinha razão o marques libertino antes <strong>de</strong> tornar-se piegas: ele estraga o prazer<br />
e ainda <strong>de</strong>ixa seqüelas.<br />
DÉCIMA SEXTA PARTE<br />
Quando a notícia da herança lhe chegou às mãos nosso herói estava mesmo<br />
precisando muito <strong>de</strong>la. Naquele tempo ele já tinha se afastado da troupe do<br />
Circo Espanhol e se separado para sempre <strong>de</strong> Jasmim Laetitia sua irmã por<br />
parte <strong>de</strong> pai, condição não sabida, nem por ele, nem por ela. Fazia triste figura,<br />
qual um d. Quixote sem causa e sem nobreza, montado no seu cavalo também<br />
<strong>de</strong> triste figura, dada a condição do cavaleiro. Estava meio que vagando a<br />
esmo, <strong>de</strong> lugar em lugar, sem saber muito o que queria e muito menos<br />
sabendo o que podia esperar da sua peregrinação infiel. Comerciante já tinha<br />
sido, mas não tinha como continuar por falta <strong>de</strong> capital. Os tantos livros que já<br />
tinha lido não lhe tinham serventia naquele exato momento, nem sua filosofia<br />
podia ensinar. Vivia então da sua habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> trair a gravida<strong>de</strong> da terra,<br />
enfrentando as alturas em pequenos serviços que exigissem coragem.<br />
Consertava telha<strong>dos</strong>, <strong>de</strong>sentupia as calhas, limpava o cimo das torres e<br />
lustrava os seus sinos, visando pequenos retornos para a comida e a cama.<br />
Era <strong>de</strong>stro no mister pois não temia cair. Ia on<strong>de</strong> ninguém ia, por isso tinha lá o<br />
seu diferencial. Eis um gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sperdício para seu talento natural. Mas não<br />
pensava em voltar a ser trapezista, pois não era o seu fim e nem estava<br />
interessado em pequenas melhorias. Também não queria voltar para a casa<br />
<strong>dos</strong> Nemélio. Não fazia sentido, para o orgulho que punha nas suas<br />
convicções. Foi um período difícil e estava apren<strong>de</strong>ndo as agruras da vida,<br />
vivendo o essencial, apartado <strong>dos</strong> prazeres que se tinha prometido. Pelo<br />
91
menos estava distante do peso <strong>dos</strong> tratos e compromissos, contudo não era<br />
suficiente. Mas nem chegou a apren<strong>de</strong>r com muito convencimento essa<br />
amarga lição, pois a notícia da herança mudou o seu <strong>de</strong>stino, abrindo-lhe um<br />
banquete fasto e diuturno, casando direitinho com o futuro que queria. Não<br />
<strong>de</strong>morou a esquecer a figura lamentável que fazia, com pouca dignida<strong>de</strong>,<br />
batendo <strong>de</strong> porta em porta a procura <strong>de</strong> serviço; comendo em qualquer canto,<br />
dormindo sem po<strong>de</strong>r escolher um teto sobre a cabeça adornada com cabelos<br />
cheios <strong>de</strong> pavios e a barba <strong>de</strong>sgrenhada. Seria a vez primeira nessa triste<br />
condição, mas não seria a última, pois a vida é longa e cheia <strong>de</strong> esquinas.<br />
Tanto que, dá margem para especular se nosso herói tinha cumprido o seu<br />
projeto naquela altura da vida. Mas no geral, viveu bem e, <strong>de</strong> toda forma,<br />
ninguém ouviu qualquer lamúria, mesmo na melancolia <strong>dos</strong> seus dias <strong>de</strong><br />
velhice. É que ele tinha aprendido a sabedoria <strong>de</strong> esperar, enquanto o tempo<br />
avançava.<br />
Assim que chegou a notícia da herança, Cedro Angélico agra<strong>de</strong>ceu o augúrio<br />
ao <strong>de</strong>us da boa fortuna, amaldiçoou a vida que vinha levando e se pôs a<br />
caminho, mirando o sol que acabava <strong>de</strong> raiar. Ven<strong>de</strong>u a cavalgadura e, com o<br />
dinheiro apurado, pô<strong>de</strong> seguir alegre e recostado no conforto das melhores<br />
opções para alcançar o arraial <strong>de</strong> Chapadão <strong>de</strong> Deserda<strong>dos</strong> com uma certa<br />
ligeireza. Não tinha pensado em voltar, pelo menos por enquanto. Mas eis a<br />
roda da vida rodando como é servida. De toda forma um retorno triunfante para<br />
assumir sua herança na terra <strong>dos</strong> <strong>de</strong>serda<strong>dos</strong>, quer dizer, na terra <strong>dos</strong><br />
preteri<strong>dos</strong> às fortunas que outros tiveram a bonda<strong>de</strong> <strong>de</strong> juntar para o nosso<br />
<strong>de</strong>leite.<br />
Era uma quarta-feira <strong>de</strong> abril quando chegou, tendo o dia <strong>de</strong>clinando na curva<br />
do seu final e a sombra da noite já chegando e confundindo as diferenças das<br />
coisas e das pessoas numa mistura cinzenta. Assim pô<strong>de</strong> chegar sem<br />
<strong>de</strong>spertar interesse, que era o que queria. Mas logo no dia seguinte a notícia<br />
espalhou, ficando ele cercado <strong>de</strong> toda a atenção da gente do povoado,<br />
agra<strong>de</strong>cendo o carinho e contando as histórias do tempo da sua ausência. Ao<br />
velho padre Carvalho Meldi, na condição <strong>de</strong> testamenteiro fiel, coube<br />
sacramentar o mandado da herança. Em assim sendo, no meio <strong>de</strong> muita gente,<br />
no recinto do armazém inserido no inventário <strong>dos</strong> bens, <strong>de</strong>sdobrou o<br />
testamento e leu a vonta<strong>de</strong> do morto, <strong>de</strong>stinando tudo que era seu para o filho<br />
adotivo. Todo mundo já sabia, pois o conteúdo do precioso papel circulou pela<br />
gente do povoado, sem nenhuma restrição. Foi aí que uma irmã <strong>de</strong> d. Violeta<br />
Cedrus tomou a incumbência <strong>de</strong> mandar-lhe o precioso recado, o que fez com<br />
sucesso, rastreando o rumo do parente com notável competência. Cumpriu-se<br />
assim a vonta<strong>de</strong> do falecido, sem nenhum aci<strong>de</strong>nte. Generoso coração <strong>de</strong><br />
Sucupira Nemélio que tinha <strong>de</strong>sprezado, com a pureza do mesmo, a falta <strong>de</strong><br />
motivos para a ausência do her<strong>de</strong>iro, <strong>de</strong>ixando-o sem companhia nos seus<br />
anos <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iros, viúvo e solitário. Belo gesto, elogiado por to<strong>dos</strong>, elevando<br />
92
ainda mais a sauda<strong>de</strong> que o <strong>de</strong>funto <strong>de</strong>ixava. E lá estava, magnífica cesta <strong>de</strong><br />
riquezas, repleta <strong>de</strong> móveis, e <strong>de</strong> imóveis aqui e acolá, títulos, créditos,<br />
moedas e papéis que a to<strong>dos</strong> surpreen<strong>de</strong>u pela sua abundância, mesmo se<br />
sabendo que ele era o homem mais rico <strong>de</strong> que se podia lembrar em boa parte<br />
da província. Um verda<strong>de</strong>iro baú aberto a adornar a vida do nosso herói, no<br />
meio da mocida<strong>de</strong>. Ali estava o moto para movimentar as engrenagens da sua<br />
vida como tinha almejado <strong>de</strong>pois do aprendizado com o marquês <strong>dos</strong> Choupos<br />
e sua bela pupila, sempre doce e quase nua, exalando um perfume<br />
inexplicável, sendo ela o que era: mais mulher do que flor.<br />
Nosso herói recebia os afagos da gente do povoado e se ria por <strong>de</strong>ntro muito<br />
mais do que por fora. E dizia a si mesmo, conversando com as entranhas <strong>de</strong><br />
uma forma <strong>de</strong>bochada:<br />
- Bem aventura<strong>dos</strong> os <strong>de</strong>serda<strong>dos</strong> e a sua mansa humilda<strong>de</strong>, pois <strong>de</strong>les é o<br />
reino <strong>dos</strong> céus. Fico eu cá na terra com os louros da fortuna e as chaves das<br />
alcovas.<br />
Mas por mais que <strong>de</strong>sprezasse toda aquela puxação, nosso herói não<br />
conseguiu fugir <strong>de</strong> um “Te Deum Laudamos”, entoado em louvor pela sua boa<br />
fortuna na Matriz <strong>de</strong> Deserda<strong>dos</strong> sob os zelos <strong>de</strong>dica<strong>dos</strong> do padre Carvalho<br />
Meldi, mais uma vez. E lá estava jubilosa, tentando colaborar com a santa<br />
louvação, toda a gente do lugar que sabia da sua história e nela tinha vivido <strong>de</strong><br />
uma forma ou <strong>de</strong> outra. Tinha vindo até gente <strong>de</strong> quem nunca mais se tinha<br />
ouvido falar como Azaléia Caucásia e a prima Orquí<strong>de</strong>a Nigina, a cigana<br />
embusteira e <strong>de</strong> faro apurado para cheirar as boas oportunida<strong>de</strong>s. Cabo<br />
Aroeira Militatus, não pô<strong>de</strong> participar dado seu estado entrevado, mas se fez<br />
representar pelos membros da sua guarda <strong>de</strong> voluntários Pinus Palpius,<br />
Cerejeira Xânvilus e Vinhático Roxilio, <strong>de</strong>crépitos mas cumpridores. Também<br />
não podiam faltar as velhas amigas e vizinhas <strong>dos</strong> Cedrus: d. Miosótis<br />
Maltecus, d. Dália Natatarius entre outras tantas sobreviventes. Quase to<strong>dos</strong><br />
na mais avançada ida<strong>de</strong>, sau<strong>dos</strong>os da memória <strong>dos</strong> Cedrus e <strong>de</strong> Sucupira<br />
Nemélio e felizes com o presente do her<strong>de</strong>iro, bastardo mas bafejado pela<br />
sorte, <strong>de</strong> forma inesperada outra vez.<br />
À noite - acalmado o povoado na sua tanta alegria pela fortuna alheia – Cedro<br />
Angélico não dormiu muito bem, excitado que estava com as chances do futuro<br />
imediato. Ficou girando no re<strong>de</strong>moinho <strong>de</strong> imagens frenéticas <strong>de</strong> palácios e<br />
festins, inseridas em sonos entrecorta<strong>dos</strong>, espocando em flashes intermitentes.<br />
A noite já se <strong>de</strong>sfazia quando sossegou e conseguiu dormir sem sonhos,<br />
esfriando a agitação. Assim, na manhã do dia seguinte em que tinha ficado rico<br />
<strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, Cedro Angélico ficou retido no ninho da cama e levantou tar<strong>de</strong>,<br />
lambuzado com a preguiça <strong>dos</strong> ricos <strong>de</strong> berço. Passou o resto do dia <strong>de</strong><br />
pijamas, lambiscando o capricho das quitandas, dispensando as visitas e<br />
93
conferindo o inventário <strong>dos</strong> bens que tinha herdado. Surpreen<strong>de</strong>u-se com a sua<br />
exuberância e diversificação. Não havia sinais exteriores <strong>de</strong> toda aquela<br />
riqueza, nem mesmo para ele que tinha passado duas dúzias <strong>de</strong> anos vivendo<br />
no íntimo daquela casa. Mas lá estavam <strong>de</strong>s<strong>de</strong> imóveis na capital, a créditos,<br />
ações, robustos <strong>de</strong>pósitos e lotes <strong>de</strong> pedras preciosas guardadas em cofres<br />
bancários. Benditas engrenagens para mover a sua vida com opulência e<br />
prazer, saciando as partes mais sensíveis do seu corpo e da alma que vai<br />
<strong>de</strong>ntro conduzindo-o com sabedoria, mesmo quando há excessos.<br />
Pensava em não se <strong>de</strong>morar muito tempo naquele lugarejo estancado, se<br />
<strong>de</strong>sfazendo das raízes para sempre e centrando a sua vida em negócios na<br />
capital. Chegou a pensar em visitar o Solar <strong>dos</strong> Choupos, mas não foi adiante.<br />
Tinha outros passos a dar. Eram no mesmo caminho, mas a direção era outra.<br />
Nunca mais voltaria a Chapadão <strong>de</strong> Deserda<strong>dos</strong>. Por ironia do nome, foi ali<br />
naquele ermo árido e austero, on<strong>de</strong> estava fadado a passar uma vida sem<br />
sentido, que o mundo abriu-se para ele. Ali tinha sido previsto que ele teria<br />
poucos anos <strong>de</strong> vida e ali, em poucos anos da sua vida, tinha conseguido obter<br />
dois preciosos e inespera<strong>dos</strong> lega<strong>dos</strong>: a herança <strong>de</strong> Sucupira Nemélio e a arte<br />
do acesso às <strong>de</strong>licadas sutilezas do prazer que tinha aprendido no Solar <strong>dos</strong><br />
Choupos. Justamente um doce projeto <strong>de</strong> vida e os meios raros <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r<br />
colocá-lo em andamento. Nunca mais se esqueceria <strong>dos</strong> gozos que emanavam<br />
<strong>de</strong> Gérbera Silente. Talvez passasse a vida buscando encontrá-los em todas<br />
as mulheres. Mas não pô<strong>de</strong> procurá-la novamente. Teria sido mau aluno se o<br />
fizesse.<br />
DÉCIMA SÉTIMA PARTE<br />
-“As criaturas humanas certamente foram criadas por um <strong>de</strong>us hedonista<br />
risonho e obeso. Só sendo assim ele teria tido tanto capricho em dotá-las <strong>de</strong><br />
tão refinadas capacida<strong>de</strong>s para <strong>de</strong>sfrutar do prazer e do <strong>de</strong>leite em suas tantas<br />
formas, concretas e abstratas. Os senti<strong>dos</strong> e as percepções com que foram<br />
equipadas tornam essas frágeis criaturas infinitamente superiores a todas as<br />
<strong>de</strong>mais formas <strong>de</strong> vida, atingindo a perfeição da natureza. O seu tempo <strong>de</strong><br />
permanência nesse mundo representa apenas a reserva que lhes foi concedida<br />
para <strong>de</strong>sfrutarem das maravilhosas capacida<strong>de</strong>s que possuem. É esse o<br />
sentido <strong>de</strong> viver”.<br />
Cedro Cedrus tomou contato com essas idéias do marquês <strong>dos</strong> Choupos, já<br />
nos primeiros dias em que começou a freqüentar o solar do Vale das Santas<br />
Delícias. Elas passaram a exercer enorme influência sobre ele ao longo da<br />
vida, como já vimos, um pouco. Mas não causaram tanto impacto no começo,<br />
justo é dizer. Talvez nem tivesse prestado muita atenção, tão encantado que<br />
estava com a sua admissão naquele círculo radicalmente fechado, concentrado<br />
94
nas coisas mais aparentes que lhe fartavam os senti<strong>dos</strong> mais banais sem se<br />
preocupar com as essências. Foi aos poucos que ele digeriu as máximas do<br />
marquês, fez as suas seleções e as incorporou ao seu projeto <strong>de</strong> vida. Está<br />
certo que a forma <strong>de</strong>licada com que as idéias foram passadas da primeira vez,<br />
e repassadas algumas vezes <strong>de</strong>pois, pesou na influência. Mas o que pesou<br />
mais no começo foram mesmo as <strong>de</strong>lícias que escapavam <strong>de</strong> Gérbera Silente<br />
por on<strong>de</strong> quer que ela fosse e que ele queria <strong>de</strong>sfrutar a todo custo, as<br />
abstratas e as concretas. Nada mais eficaz do que a teoria e a prática<br />
conjugadas para formar um bom aluno. Mas também não <strong>de</strong>vemos nos<br />
esquecer <strong>dos</strong> inocentes saraus ao ar livre e das iguarias da mesa sempre<br />
posta, sempre farta e variada, a adornar a selvageria da fome tornando-a doce<br />
e sofisticada. Santo jardim <strong>de</strong> <strong>de</strong>lícias.<br />
A influência do marquês, a bem da verda<strong>de</strong>, foi marcante mas, como dito, não<br />
foi absorvida <strong>de</strong> uma vez, nem naquele lugar. Nosso herói até teve que contar<br />
com o correr da ida<strong>de</strong> para evoluir a base <strong>de</strong> alguns conceitos, enten<strong>de</strong>ndo, só<br />
mais tar<strong>de</strong>, o princípio da relativida<strong>de</strong> que, ao tempo do seu aprendizado, já<br />
estava contaminando os princípios hedonistas do marquês. A bem da<br />
fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> aos fatos, esse relativismo veio do envelhecimento do próprio<br />
marquês, pois à medida que suas capacida<strong>de</strong>s iam <strong>de</strong>caindo, mais platônico<br />
ele ia ficando, levitando na beleza muito mais do que imergindo na orgia. Aliás,<br />
morreu tranqüilo e sereno, embevecido com a glória <strong>dos</strong> resplendores <strong>de</strong> Deus,<br />
embora O tivesse tentado negar a maior parte da vida. Uma santa <strong>de</strong>cadência,<br />
com certeza.<br />
Toda a aventura que fez do nosso herói, o herói que resulta ser nesse registro;<br />
começou numa tar<strong>de</strong> pachorrenta. O dia <strong>de</strong>ixo <strong>de</strong> dar, pela absoluta<br />
irrelevância que tem o calendário nesse nível <strong>de</strong> <strong>de</strong>talhe. Mas, justo na tar<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sse dia, estava ele sonolento, batendo os olhos baixos, fingindo conferir<br />
umas notas <strong>de</strong> compras, assentado na escrivaninha, por <strong>de</strong>trás do balcão<br />
comprido, escuro grosseiro, <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira trabalhada com <strong>de</strong>sleixo. Naquele<br />
estado e naquela posição não viu quando o mordomo do marquês ocupou a<br />
soleira da porta sem fazer qualquer ruído. Quem percebeu a chegada primeiro<br />
foi Sucupira Nemélio que, <strong>de</strong> um <strong>dos</strong> la<strong>dos</strong> da entrada, em cima <strong>de</strong> um<br />
tamborete, conferia as prateleiras, arredondado o inventário do estoque, como<br />
sempre fazia com gran<strong>de</strong> excesso <strong>de</strong> zelo e imensidão <strong>de</strong> avareza. O<br />
comerciante estranhou e se preocupou com a visita. Tinha ficado sabendo que<br />
o mordomo vinha fazendo perguntas sobre seu filho à gente do povoado.<br />
Também pouco tempo havia corrido <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que ele tinha vindo com uma<br />
extensa lista <strong>de</strong> compras. Tudo já tinha sido entregue, inclusive a parte <strong>dos</strong><br />
importa<strong>dos</strong>. Na verda<strong>de</strong>, fazia menos <strong>de</strong> três meses, quando o normal seria<br />
uma compra por ano. Assim, a visita era mesmo estranha. Mas, claro, como<br />
bom comerciante que era, para ele um bom cliente vinha sempre em primeiro<br />
lugar e entrava quando quisesse. Desta forma, <strong>de</strong>sceu cauteloso do banco e se<br />
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adiantou para cumprimentá-lo, saudando sua vinda, extemporânea em tudo.<br />
Não conseguiu seu intento pois o visitante o ignorou inteiramente. Nem entrou<br />
no recinto. Apenas fez um gesto, chamando Cedro Cedrus com um sinal <strong>de</strong><br />
mão, vigoroso e um tanto arrogante. Depois girou rapidamente o corpo<br />
esquálido e <strong>de</strong>ixou a soleira rumo à rua. O rapaz, que já tinha espantado a<br />
preguiça com a surpresa da visita, se pôs <strong>de</strong> pé e olhou o pai adotivo com uma<br />
interrogação estampada no semblante, já agora bastante mais animado,<br />
vencida a ler<strong>de</strong>za do cochilo. Nemélio fez um gesto positivo liberando o<br />
chamado, encostou-se no balcão e aguardou, curioso mas sem fazer<br />
previsões. Caso as tivesse feito, com certeza erraria, por falta <strong>de</strong> referência. É<br />
que nem ele - nem ninguém - podia imaginar que o assunto da aparição da<br />
figura singular do mordomo do marquês era a entrega <strong>de</strong> um convite raríssimo.<br />
E isso Cedro Cedrus não escon<strong>de</strong>u do seu caro protetor, revelando o<br />
conteúdo, assim que retornou da conversa reservada e rápida que tinha<br />
acontecido num canto do alpendre.. Simplesmente ele estava sendo convidado<br />
para visitar o Solar <strong>dos</strong> Choupos em dia e hora aprazíveis: uma manhã <strong>de</strong><br />
domingo. A princípio o bom comerciante não enten<strong>de</strong>u muito bem aquela<br />
inusitada situação, mas logo se alegrou com a rarida<strong>de</strong> do fato. Até se tornou<br />
conivente, encantando-se com a <strong>de</strong>ferência. Combinaram sigilo, temendo uma<br />
onda <strong>de</strong> cochichos e malda<strong>de</strong>s já que todo mundo estranhava o marques, pelo<br />
seu isolamento, o mistério <strong>dos</strong> seus hábitos e as velhas falações. Não ele,<br />
com certeza, pois tinha lá seus puros interesses no trato com o marquês. Aliás<br />
um fidalgo <strong>de</strong> raízes européias, do velho tronco <strong>dos</strong> Choupos: incontestável<br />
nobreza. Talvez tivessem enxergado no jovem algo muito especial. E isso<br />
certamente ele era. Por isso mesmo o trouxe para <strong>de</strong>ntro da sua casa,<br />
entronando-o como o filho que não teve, por mais que tivesse tentado enxertar<br />
sementes nas entranhas petrificadas da esposa, santa e <strong>de</strong>dicada, contudo,<br />
<strong>de</strong>ficiente na cama, dificultando tudo pela falta <strong>de</strong> estímulo. Mas o especial que<br />
pesava nesse caso, nosso puro Nemélio não tinha imaginação. Isso, todavia,<br />
não põe <strong>de</strong>mérito nos outros predica<strong>dos</strong> do rapaz que foram reconheci<strong>dos</strong> <strong>de</strong><br />
forma tão sutil e tão cheia <strong>de</strong> acasos.<br />
A manhã do domingo do convite raiou, tendo o sábado prece<strong>de</strong>nte lhe dado o<br />
lugar como tinha que ser no moto do calendário. Nosso herói não dormiu mal<br />
nem acordou cedo. Ao contrário, repousou com toda a serenida<strong>de</strong> como faz um<br />
guerreiro na noite do dia em que venceu a batalha. O convite não marcava<br />
hora e ele não queria chegar muito cedo como um paspalho incontido que mal<br />
tinha podido esperar a chegada do momento.<br />
Mesmo aos domingos, antes <strong>de</strong> ir à missa, Sucupira Nemélio dava uma<br />
passada no barracão <strong>de</strong> mercadorias para conferir se tudo estava certo.<br />
Verificava sinais <strong>de</strong> arrombamento nas portas e tramelas e sinais <strong>de</strong><br />
atrevimento <strong>de</strong> roedores nos sacos <strong>de</strong> cereais. Examinava buracos no teto e<br />
infiltrações nas pare<strong>de</strong>s, numa rotina banal, mas essencial à tranqüilida<strong>de</strong> do<br />
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<strong>de</strong>scanso do domingo. Naquela manhã em particular ele tinha quebrado essa<br />
rotina. Reteve-se à mesa do café um pouco mais, esperando que o filho<br />
adotivo <strong>de</strong>scesse para estarem juntos. Estava curioso em saber o motivo do<br />
inesperado convite do marquês <strong>dos</strong> Choupos. O rapaz não <strong>de</strong>morou a <strong>de</strong>scer e<br />
ficou satisfeito <strong>de</strong> encontrá-lo à sua espera pois também tinha coisas que<br />
<strong>de</strong>sejava saber. Queria saber mais sobre a misteriosa figura do marquês, antes<br />
<strong>de</strong> se aventurar <strong>de</strong>sprotegido em seus domínios. Conversaram, cada um<br />
tentando matar sua curiosida<strong>de</strong> com o outro. Mas nem o jovem sabia muito<br />
bem porque estava sendo merecedor da honraria do convite, nem nosso bom<br />
comerciante sabia muito sobre a vida do nobre <strong>dos</strong> Choupos. Aliás, ninguém<br />
por ali sabia. A única ligação entre a vila e o solar, eram exatamente as vindas<br />
do mordomo para as compras esporádicas <strong>de</strong> mantimentos. E nesses contatos<br />
não havia muita conversa, além do comercial. Pairava mistério, sempre foi<br />
assim e, até então, não precisou ser diferente. De sorte que, ao final do<br />
colóquio, um e outro permaneceram na santida<strong>de</strong> das suas ignorâncias e foi<br />
com elas que um partiu pro sacrifício sacro da missa e o outro partiu para os<br />
mistérios excitantes do solar, cravado majestoso, bem no centro imaginário <strong>de</strong><br />
um vale <strong>de</strong> <strong>de</strong>lícias. Nosso herói seguiu num trote indolente e<br />
<strong>de</strong>scompromissado, pronto para um domingo. Queria ter tempo para serenar a<br />
própria ansieda<strong>de</strong>, convencendo a si mesmo <strong>de</strong> que merecia aquilo <strong>de</strong> alguma<br />
maneira. Vestido todo <strong>de</strong> branco, trazia um pouco <strong>de</strong> uma aura <strong>de</strong> noivo e era<br />
assim, talvez, que se sentisse <strong>de</strong> fato, meio entre o receio e o prenúncio do<br />
gozo. A chegada foi tranqüila. Encontrou o portão do solar aberto e os leões <strong>de</strong><br />
pedra mansos como nunca. Cruzou o limiar <strong>de</strong>vagar esperando uma aparição<br />
repentina do mordomo, sorrateiro guardião, atento e extensivo nos quatro<br />
cantos <strong>de</strong> entre muros da vasta proprieda<strong>de</strong>. Mas, alguns metros adiante, o<br />
que primeiro encontrou foram as duas ca<strong>de</strong>las, brancas e esguias; correndo ao<br />
seu encontro. O cavalo se assustou com os animais e quase jogo-o ao chão. O<br />
inci<strong>de</strong>nte fê-lo se dar conta <strong>de</strong> que po<strong>de</strong>ria estar montando um in<strong>de</strong>sejável<br />
intruso, eqüino e obtuso. Resolveu então apear e seguir caminhando, <strong>de</strong>ixando<br />
a montaria presa num galho <strong>de</strong> árvore, suarenta, faminta e inútil para o resto do<br />
dia, como o quadrúpe<strong>de</strong> que era. Seguiu pisando firme o solo lajeado da<br />
alameda la<strong>de</strong>ada <strong>de</strong> choupos vigorosos e impecáveis, acompanhando as duas<br />
ca<strong>de</strong>las que pareciam servir <strong>de</strong> guias instruídas e <strong>de</strong>vidamente autorizadas<br />
para formar um cortejo. Estava exultante <strong>de</strong> ter voltado àquele lugar, ainda<br />
mais <strong>de</strong> modo tão favorável e nobre. Já tinha trilhado uma centena <strong>de</strong> metros<br />
quando Gérbera Silente surgiu <strong>de</strong> entre duas colunas espessas <strong>de</strong> ciprestes.<br />
Trajava o mesmo mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> vestimenta <strong>de</strong> quando a viu pela primeira vez,<br />
leve e diáfana, em cor suave, contrastando com o ver<strong>de</strong> forte das ramagens e<br />
impondo a sua magnificência humana sobre a natureza. Ofereceu a mão e ele<br />
que a tomou com gentil e embargado encanto. Seguiram assim<br />
mancomuna<strong>dos</strong> e completos, inserido um no outro em tão curto espaço <strong>de</strong><br />
tempo. Seguiram a seqüência do caminho que ia dar numa fonte circular <strong>de</strong><br />
pedras, cercada <strong>de</strong> muretas baixas adornadas com coruchéus e festões <strong>de</strong><br />
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escura cantaria talcosa, antigas e nobres, trazidas <strong>de</strong> longe para enfeitar. Lá<br />
estava o marquês <strong>dos</strong> Choupos absorto na leitura <strong>de</strong> um livro, sob a sombra <strong>de</strong><br />
uma barraca <strong>de</strong> tecido grosso amarelo, cercado se sucos e iguarias tão<br />
coloridas que ao jovem causaram dúvidas se eram enfeites ou comestíveis. O<br />
anfitrião convidou-o a se assentar e lhe esten<strong>de</strong>u uma das travessas daquelas<br />
coisas coloridas dirimindo a sua dúvida quanto à serventia das mesmas.<br />
- São ao mesmo tempo uma festa aos olhos e ao paladar, multiplicando o<br />
prazer – disse o marquês amavelmente.<br />
Cedro Cedrus aceitou a rara oferenda, sorriu e ficou aguardando a próxima<br />
iniciativa do marques, enquanto <strong>de</strong>gustava a iguaria <strong>de</strong>vagar, mostrando fineza<br />
no trato. Ele, porém, apenas voltou à leitura, <strong>de</strong>ixando o convidado um tanto<br />
constrangido. Ainda mais assim se sentiu, pois a moça <strong>de</strong>ixou-os a sós e se<br />
afastou sem dizer nada, o que, aliás, era uma das suas marcas. Aquela<br />
situação durou perturbadores quinze eternos minutos, tempo em que nosso<br />
herói gastou lendo e relendo o dorso do livro que o marquês sustentava adiante<br />
do rosto: “Justine ou os Infortúnios da Virtu<strong>de</strong>”.<br />
Findo esse tempo <strong>de</strong> penosa passagem o nobre senhor, com toda a nobreza<br />
da sua senhoria, fechou o livro, colocou-o sobre a mesa e finalmente falou. Era<br />
uma simples saudação, curta e direta mas maravilhosa no conteúdo, melhor do<br />
que o esperado.<br />
- Meu caro jovem, olhe à sua volta. Este é o Solar <strong>dos</strong> Prazeres. A casa<br />
libertina <strong>de</strong> adoração ardorosa aos <strong>de</strong>sejos refina<strong>dos</strong>. Você teve o privilégio <strong>de</strong><br />
ser escolhido para provar das coisas <strong>de</strong>ste mundo raro.<br />
Dito isso se levantou e, girando o corpo <strong>de</strong>vagar, olhou em volta <strong>de</strong> si mesmo<br />
como se tentasse contemplar o mundo <strong>de</strong> que falava. Mas esse não era<br />
propriamente visível. Depois se <strong>de</strong>teve examinado o semblante do jovem e<br />
continuou.<br />
- Mas para ser efetivamente admitido você terá que mostrar capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
enten<strong>de</strong>r que mundo é esse <strong>de</strong> que eu falo.<br />
Cedro Cedrus ouviu aquelas palavras absolutamente extasiado, e isso já era<br />
um prazer, mal tendo começado aquela aventura. Ser admitido no solar do<br />
marquês era tudo em que vinha pensando nos últimos tempos e nem tinha<br />
chegado a <strong>de</strong>finir exatamente o que esperava encontrar ali. Nem precisava ter<br />
ouvido promessas <strong>de</strong> prazer mas elas redobraram o entusiasmo.<br />
Ia aceitar <strong>de</strong> pronto o <strong>de</strong>safio da admissão, mas nem foi preciso. Isso já estava<br />
implícito no ritual daquela iniciação. De outra forma, nem teria como sair dali<br />
sem mais nem menos, pois que, o marques acabara <strong>de</strong> revelar o segredo do<br />
solar. Uma revelação que podia revoltar as cercanias, como revoltou o mundo<br />
98
nos tempos da Inquisição e da queima das bruxas. Assim o que se seguiu da<br />
fala do nobre senhor <strong>dos</strong> choupos, <strong>de</strong> antigas raízes provenientes da Europa,<br />
foi apenas <strong>de</strong> caráter informativo, passando as formalida<strong>de</strong>s do processo<br />
vestibular <strong>de</strong> admissão. Das conseqüências da não admissão o nobre não<br />
falou, mas po<strong>de</strong>mos imaginar que o mordomo do marquês também fosse<br />
versado nas artes do extermínio<br />
Mas, voltemos ao processo da iniciação pela fala do marquês:<br />
- Gérbera Silente irá conduzi-lo até a biblioteca do solar. Localize os livros que<br />
acha que <strong>de</strong>ve ler. Você <strong>de</strong>verá <strong>de</strong>scobrir as diferenças recônditas entre o<br />
amor e o <strong>de</strong>sejo. A capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> distinguir essas diferenças é essencial para<br />
a habilitação aos gozos <strong>de</strong>ssa casa. Se mostrar que é capaz disso será<br />
admitido, se não, terá tido a honra <strong>de</strong> ter podido tentá-lo. Terá sido, <strong>de</strong> certo,<br />
uma gran<strong>de</strong> honra, mesmo que você nunca viesse ter a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> contar<br />
a história a alguém.<br />
Assim que o marquês acabou <strong>de</strong> falar a moça reapareceu, sutil na sua leveza<br />
mágica, como sempre. Ofereceu novamente a mão a Cedro Cedrus, que nem<br />
teve tempo <strong>de</strong> pensar nas palavras finais <strong>de</strong> seu anfitrião. Seguiram em direção<br />
à entrada principal do solar. Enquanto caminhavam o rapaz pensou em<br />
perguntar alguma coisa sobre o marquês, sondando melhor o que estava apara<br />
acontecer. Mas <strong>de</strong>sistiu pois, embora a moça volta e meia se virasse para ele<br />
exibindo um belo sorriso <strong>de</strong> satisfação e simpatia, ele sentiu que não seria<br />
a<strong>de</strong>quado estragar aquele momento com alguma pergunta prosaica <strong>de</strong><br />
curiosida<strong>de</strong> leviana. Assim, se contentou em analisar rapidamente a figura do<br />
nobre <strong>dos</strong> Choupos que, aliás, estava vendo pela primeira vez. Chamava<br />
especial atenção a antiguida<strong>de</strong> do traje e do penteado. Parecia uma figura<br />
pinçada diretamente do século XVIII, com véstia, calção, meias três/quartos,<br />
pescocinho enlaçado numa gravata <strong>de</strong> seda preta e os cabelos brancos<br />
estica<strong>dos</strong> e presos num comprido rabo <strong>de</strong> cavalo. Uma figura muito antiga e<br />
respeitável, por certo. E era tudo, por enquanto. Logo po<strong>de</strong>ria conhecê-lo muito<br />
melhor, bastava ir <strong>de</strong>vagar.<br />
A biblioteca do solar estava instalada num amplo aposento do primeiro andar,<br />
cheio <strong>de</strong> mesas compridas e poltronas macias para os êxtases e fadigas das<br />
jornadas <strong>de</strong> leitura, navegando as idéias e as imagens como cada um é<br />
servido. Estantes <strong>de</strong> mogno natural se estendiam até o teto e estavam cobertas<br />
<strong>de</strong> livros enca<strong>de</strong>rna<strong>dos</strong> em couro, protegi<strong>dos</strong> com zelo para vazar os séculos.<br />
Nosso herói não precisou se per<strong>de</strong>r naquele emaranhando <strong>de</strong> ensaios e<br />
fábulas e girar atrás da coisa certa. Lembrou-se <strong>de</strong> imediato do livro que o<br />
marquês estava lendo: “Justine ou os Infortúnios da Virtu<strong>de</strong>”. Assim, procurou<br />
primeiro o marquês <strong>de</strong> Sa<strong>de</strong>. Depois Epicuro, Ovídio, Omar Khayyam e o rei<br />
Salomão com suas taças <strong>de</strong> umbigos concuspicentes. Gastou quatro dias<br />
99
completos na companhia <strong>de</strong>sses nobres cavalheiros e <strong>de</strong> outros tanto quanto,<br />
tentando completar a contento a sua fascinante tarefa, alternando euforia e<br />
cansaço. Nessa jornada uma coisa chamou a atenção do rapaz: notou que os<br />
livros do marquês <strong>de</strong> Sa<strong>de</strong> estavam autografa<strong>dos</strong> pelo próprio e que ele os<br />
<strong>de</strong>dicava a si mesmo. Mais tar<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> folhear muito aqueles livros,<br />
notaria que a caligrafia do autor era extremamente parecida com a do próprio<br />
marquês <strong>dos</strong> Choupos, mas não per<strong>de</strong>u tempo especulando sobre isso, pois já<br />
estava convencido da proximida<strong>de</strong> <strong>dos</strong> dois.<br />
Ao final da imersão na biblioteca Cedro Cedrus produziu duas laudas e meia e<br />
se sentiu pronto a se submeter ao teste da admissão, como tanto ansiava e se<br />
sentia capaz, afinal. Registrou a produção num pergaminho muito maior do que<br />
o tamanho do texto exigia, enrolou-o com cuidado e enviou ou juízo do fidalgo<br />
do solar<br />
Não <strong>de</strong>u outra, o marquês abonou a admissão e, mais ainda a aprovaria, a<br />
doce musa silente que era parte fundamental do processo seletivo na parte do<br />
<strong>de</strong>sejo e nada se resolvia sem a sua aprovação. Como pouco se falava do<br />
amor naquela casa, pouca coisa se dava a revelar quanto ao papel daquela<br />
preciosa princesa nessa parte. Nem teria cabimento pois o amor é seletivo pela<br />
própria natureza e não se reduz a regras com facilida<strong>de</strong>. Também ainda era<br />
cedo e Cedro Cedrus tendia, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então, a não sentir especial atração por<br />
essa parte da maçã.<br />
Na mesma noite da aprovação nosso herói já foi sendo inserido na prática que<br />
era o lado bom <strong>de</strong> toda aquela afetação. Mas a primeira sessão foi mo<strong>de</strong>rada,<br />
como <strong>de</strong>vem ser os princípios. Começou com uma singela <strong>de</strong>gustação <strong>de</strong><br />
vinhos e carnes tenras, pois é por aí que os prazeres começam e se temperam,<br />
usufruindo das suas tantas alegrias. Depois um sarau refinado e elegante com<br />
leitura <strong>de</strong> poemas preferi<strong>dos</strong> <strong>de</strong> uns e outros e as filosofias do marquês,<br />
encerrando o ritual na sua primeira sessão.<br />
E as noites e dias se suce<strong>de</strong>ram num crescendo vertiginoso, visto lento, porém,<br />
pela energia supitante do nosso jovem noviço, louco pelo início <strong>dos</strong> exercícios<br />
do sexo. Compreensível que fosse assim naquela ida<strong>de</strong> vigorosa em que ele<br />
se encontrava. Mas, pura ansieda<strong>de</strong> contudo, pois logo na segunda semana já<br />
tiveram começo as sessões sensuais, plenas e salutares. Todo um jogo <strong>de</strong><br />
luxúria, <strong>de</strong> carícias sutis, <strong>de</strong> violações a distância. Também <strong>dos</strong> tatos, também<br />
do gosto das seivas, também das penetrações, que ninguém é <strong>de</strong> ferro e,<br />
afinal, Gérbera Silente estava ali para isso mesmo, com todo o meu respeito.<br />
Mas <strong>de</strong>sse jogo – saibam to<strong>dos</strong> – o marquês não participava, senão<br />
observando, satisfazendo-se no puro visual e, às vezes, até um pouco<br />
distraído. Aquilo causou surpresa ao nosso herói, mas ele guardou a<br />
100
estranheza. Nem podia ser diferente naquele estágio em que estava, quase um<br />
estranho ainda naquele esplendoroso universo, suave, quente e irrenunciável.<br />
Nosso heroi passou a freqüentar a casa do marques com bastante<br />
regularida<strong>de</strong>, compensando o que almejara com ardor e isso foi abrindo a ele<br />
as portas do solar, uma a uma. Praticamente <strong>de</strong>spendia to<strong>dos</strong> os domingos<br />
nesse raro lazer <strong>de</strong> profana sagração, da manhã até a noite. Nunca foi mesmo<br />
<strong>de</strong> freqüentar a missa e por isso Sucupira Nemélio não lhe pedia explicações<br />
pela ausência sistemática do ofício dominical e nem cobrava a companhia<br />
perdida. No geral, não havia prejuízo pois companheirismo havia no essencial<br />
e isso satisfazia a velhice do pai adotivo, sempre cheio <strong>de</strong> abnegação para com<br />
ele.<br />
Como não po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser, foi numa manhã do dia do santo <strong>de</strong>scanso<br />
que o jovem aprendiz chegou perto <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r a i<strong>de</strong>ologia do marques no<br />
estágio em que estava, já próximo do fim da vida. É que a freqüência da<br />
presença semanal estreitou as intimida<strong>de</strong>s entre o moço e o velho e predispôs<br />
que isso afinal acontecesse. O mestre estava fazendo o seu repasto matinal<br />
sozinho à beira do lago quando Cedro Cedrus chegou. Tentou passar<br />
<strong>de</strong>spercebido preferindo a companhia da moça e das galgas ca<strong>de</strong>las, trocando<br />
carinho com essas fêmeas maravilhosas, ao ar livre, aquecido pelo sol. Mas o<br />
marquês o chamou e o convidou a se assentar e acompanhá-lo na refeição.<br />
Comeram em silêncio alguns minutos. Cabia ao senhor <strong>dos</strong> Choupos começar<br />
qualquer conversação e o rapaz esperou que isso se <strong>de</strong>sse. E ele o fez, alguns<br />
minutos <strong>de</strong>pois. Parecia que tinha gasto o preâmbulo <strong>de</strong> silêncio pensando<br />
com cuidado no que iria dizer. A voz era mansa como <strong>de</strong> costume, mas ele<br />
parecia cansado e até triste. Essa pífia disposição estampada no semblante<br />
passou a fazer sentido quando ele começou a falar. O marquês abriu a sua<br />
alma como não era usual na sua pedagogia, nem era esperado naquela<br />
circunstância tão bucólica, com tanta vida emanando da natureza e enchendo o<br />
ambiente <strong>de</strong> paz. Contou que já tinha vivido uma vida longa e cheia <strong>de</strong><br />
aventuras, sempre mirando o prazer através do <strong>de</strong>sejo. Disse que sempre fora<br />
radical nas suas convicções e sempre procurou viver <strong>de</strong> acordo com elas. Por<br />
conta disso tinha vivido toda sorte <strong>de</strong> perseguições e intolerâncias e<br />
sofrimentos concretos, encerrado em masmorras. Mas havia vencido todas<br />
pela sua força mental e seu instinto natural e foi com eles que veio dar naquele<br />
lugar tão longe da sua pátria e do seu berço cultural. Revelou que não<br />
esperava mais nada além <strong>de</strong> encerrar os seus dias como tinha vivido: saciando<br />
seus <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> forma abusiva, sem reprimi-los ou arrefecê-los na insensatez<br />
da austerida<strong>de</strong> e do comedimento. Sempre tinha achado que o amor estraga o<br />
<strong>de</strong>sejo e sempre procurou se afastar <strong>de</strong>le. Mas agora, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tanto tempo<br />
<strong>de</strong> tenaz perseverança, estava abalado nas suas crenças fundamentais. Tinha<br />
se esquecido do lado político da sua pregação que era <strong>de</strong> on<strong>de</strong> <strong>de</strong>via provir a<br />
sua força primeva. Havia se tornando um velho carente, sentimental e imbecil.<br />
101
Temia pelo <strong>de</strong>sfecho da sua biografia, tão duramente construída em luta feroz<br />
contra a intolerância e a ignorância <strong>dos</strong> virtuosos e <strong>dos</strong> fracos <strong>de</strong> espírito.<br />
Sentia-se frustrado e não era justo que viesse a morrer assim <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter<br />
passado quase toda a sua vida saciando os seus <strong>de</strong>sejos e não ter sentido<br />
nenhum enfado.<br />
Depois do inesperado <strong>de</strong>sabafo o marquês se calou e olhou longe como se<br />
acabasse <strong>de</strong> fazer uma pesada confissão a um austero vigário <strong>de</strong> al<strong>de</strong>ia.<br />
Deixou uma incômoda interrogação parada no ar, resistindo ao sopro da brisa<br />
fresca da manhã. Nosso herói esperou algum tempo, <strong>de</strong>sejando a<br />
continuida<strong>de</strong> da revelação prenunciada. Mas o silêncio persistiu e assim<br />
continuou até que o marquês se pôs a cochilar prosaicamente, frustrando a sua<br />
curiosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aprendiz e <strong>de</strong>ixando-o um tanto <strong>de</strong>solado. Levantou-se <strong>de</strong>vagar<br />
e se afastou andando <strong>de</strong> costas por alguns metros na fé do fim do cochilo e<br />
continuação da conversa. Depois se virou e seguiu na direção do solar. Pensou<br />
em procurar Gérbera Silente mas <strong>de</strong>sistiu em seguida. Preferiu vagar pelos<br />
jardins e pensar nas palavras do marquês <strong>dos</strong> Choupos que acabara <strong>de</strong> ouvir<br />
um tanto <strong>de</strong>sapontado. Vagou um pouco pelas alamedas mas nem <strong>de</strong>morou<br />
muito para chegar a uma conclusão. Sim era exatamente isso: o pobre<br />
marques <strong>dos</strong> Choupos, tinha aprendido há muitos anos atrás que o amor<br />
estraga o prazer, agora vinha praticando essa equação ao avesso, numa<br />
inversão melancólica.<br />
O marques da libertinagem, da voluptuosida<strong>de</strong>, da <strong>de</strong>vassidão, da<br />
obscenida<strong>de</strong>, da impieda<strong>de</strong> e da blasfêmia tinha <strong>de</strong> transformado num reles<br />
amante platônico, incapaz para o prazer físico, renunciando ao gozo na<br />
<strong>de</strong>gustação da maçã, prostrado na adoração a uma mulher muitos anos mais<br />
jovem. Talvez até tivesse atingido um estágio superior, superando a venal<br />
<strong>de</strong>selegância <strong>dos</strong> cheiros, <strong>dos</strong> suores, <strong>dos</strong> flui<strong>dos</strong>. Pelo outro lado, talvez<br />
nunca tivesse sido amado na vida e vivesse expiando os peca<strong>dos</strong> do passado<br />
à sombra <strong>de</strong>ssa maldição.<br />
Mas as revelações da ruína <strong>dos</strong> lastros do marquês não abalaram as<br />
convicções do nosso herói. Aliás, até penso que ela não teria <strong>de</strong>pendido muito<br />
daquele aprendizado para tê-las formado. Ou por outra, até po<strong>de</strong> ter se julgado<br />
capaz <strong>de</strong> superar a maestria do marquês, abalada com o tempo. E sua vida,<br />
vivida até o fim com uma certa coerência, disso po<strong>de</strong> ter sido uma prova.<br />
Contudo, posso assegurar, que nada naquilo – digo, da inversão do marquês -<br />
incomodava o nosso herói no instante presente e ele não per<strong>de</strong>u tempo<br />
buscando aprofundar as explicações ou se afligir por não as ter encontrado.<br />
Muito antes pelo contrário. Mesmo porque, no resto todo o marquês estava<br />
certo: o prazer antes <strong>de</strong> tudo, seja da forma que for. Cedro Cedrus selecionou<br />
as lições do seu preceptor que lhe interessavam e mergulhou nelas com<br />
sofreguidão o quanto pô<strong>de</strong>, ajudado naquele tempo pela inesquecível Gérbera<br />
Silente, sempre inesquecível e sempre silenciosa, exalando <strong>de</strong>sejos e saciando<br />
102
prazeres especialmente os que exacerbavam os tatos, os suspiros e os gritos<br />
primais. Mas, claro, precedi<strong>dos</strong> da excitação das expectativas que é a essência<br />
da luxúria. Foram os melhores anos da sua vida. Amá-la, contudo, não pô<strong>de</strong>.<br />
Ficou um vazio no seu aprendizado, na teoria e na prática, mas ele, com<br />
certeza, jamais seria capaz <strong>de</strong> admitir isso.<br />
DÉCIMA OITAVA PARTE<br />
O que mais agradou Cedro Angélico no conjunto da herança havida do<br />
precioso pai adotivo foi um sobrado <strong>de</strong> esquina, muito bem situado, bem no<br />
centro, na capital da província. Era perfeito para abrigar pelo menos três <strong>dos</strong><br />
quatro ramos <strong>de</strong> negócio que intencionava explorar, naquela altura da vida,<br />
principiando o seu projeto central, na seqüência da existência, numa etapa<br />
muito mais auspiciosa do que antes. Quando chegou já encontrou propostas<br />
para ven<strong>de</strong>r o imóvel, mas nem quis saber, já tinha planos maduros para ele,<br />
antes mesmo <strong>de</strong> chegar. Daí que, do que cuidou primeiro foi da <strong>de</strong>socupação<br />
do imóvel. A<strong>de</strong>mais, já tinha disposto das havenças da parte da vila <strong>de</strong><br />
Deserda<strong>dos</strong>, urbanas e rurais, mas não era só compulsão. É que, para eles,<br />
não havia direta aplicação no conjunto do que queria fazer. Sendo assim,<br />
imóveis, mercadorias e contas a receber que eram muitas, centradas na sua<br />
vila natal e nas suas cercanias, viraram dinheiro vivo na brevida<strong>de</strong> possível.<br />
Com as dívidas duvi<strong>dos</strong>as nem quis se preocupar pois aquilo era miu<strong>de</strong>za no<br />
conjunto da fortuna. Mas, na verda<strong>de</strong>, mais tar<strong>de</strong> até correria atrás <strong>de</strong>ssas<br />
migalhas como vamos ver na temporalida<strong>de</strong> correta.<br />
No geral houve perda na transação apressada da parte <strong>de</strong>sprezada da<br />
herança, pois ninguém ali naquele povoado perdido tinha cabedal grosso o<br />
suficiente para arcar com o valor merecido <strong>dos</strong> tantos bens do sau<strong>dos</strong>o<br />
Sucupira Nemélio. Até teve que ser formado uma espécie <strong>de</strong> consórcio,<br />
juntando gente interessada naquela ocasião favorável pela ojeriza e a pressa<br />
do dono em mudar <strong>de</strong> ramo e lugar. Ocasião e negócios sempre andam<br />
ombrea<strong>dos</strong> e isso foi feito, e por ai se selou a ruptura final do nosso herói com<br />
o seu passado naquela vila medíocre, on<strong>de</strong> tinha vivido o primeiro quarto <strong>de</strong><br />
vida. Aliás, assim já teria sido, não fosse a herança dadivosa que tinha<br />
provocado o retorno impensado, inevitável contudo.<br />
O projeto do negócio <strong>de</strong> Cedro Angélico era singelo, contudo crucial pelo peso<br />
da sua essência, posto que nele pensava com uma certa persistência, ainda<br />
que adiável, pois condição <strong>de</strong> fazer, até então não havia. Mas, em havendo, já<br />
estava resolvido: tinha mesmo que inserir um pouco mais <strong>de</strong> prazer no banal<br />
<strong>dos</strong> dias sucessivos por on<strong>de</strong> a vida rolava, quase sempre sem sentido. Foi<br />
essa a viga central da motivação, quando nosso herói se instalou na capital,<br />
ampliando o horizonte como tinha almejado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os tempos ditosos que<br />
103
passou à sombra <strong>dos</strong> choupos <strong>de</strong>lga<strong>dos</strong> e altos em tão gratas companhias,<br />
num passado <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong>.<br />
A herança incluía três belos imóveis na capital. Havia entre eles uma quinta<br />
afastada que nosso herói escolheu para morar e passar seus doces<br />
recolhimentos, que eles também haviam e se faziam precisos e preciosos. Ali<br />
até tentou produzir um pouco <strong>de</strong> poesia. Mas nesse tipo <strong>de</strong> criação nunca pôs<br />
muito empenho. Sabia-se limitado e o produto se per<strong>de</strong>u por falta <strong>de</strong><br />
entusiasmo, quem sabe até merecido. Mas, justiça seja feita, teve muita<br />
limitação no plano da sua obra, pois <strong>de</strong> amor evitava falar e isso embota o<br />
estro.<br />
Outro <strong>dos</strong> bens herda<strong>dos</strong> acabou em serventia diversa daquela que <strong>de</strong>veria por<br />
<strong>de</strong>stinação <strong>de</strong> origem, ru<strong>de</strong> por excelência. Exigiu ampla reforma gerida com<br />
muito capricho que o negócio pedia pela sua natureza. Falo <strong>de</strong> um amplo<br />
galpão na entrada do cais, na área on<strong>de</strong> os marinheiros se curavam da solidão<br />
do mar, que navegar é preciso mas viver também é quando o mar se liquefaz<br />
em excesso e trás sauda<strong>de</strong>s da terra.<br />
O terceiro bem <strong>de</strong> herança era o dito sobrado <strong>de</strong> esquina retro e supra<br />
mencionado. Ali ele instalou o coração <strong>dos</strong> negócios sonha<strong>dos</strong>. No andar <strong>de</strong><br />
baixo montou uma vasta e ecumênica livraria, maior do que toda a cultura da<br />
capital somada e reunida. Ao lado uma câmara <strong>de</strong> música com seu pequeno<br />
auditório e um palco <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte, ao estilo italiano. No andar <strong>de</strong> cima um<br />
restaurante. Requintado ambiente, cheio <strong>de</strong> refina<strong>dos</strong> manjares a dourar os<br />
apetites. No armazém do cais um magnífico bor<strong>de</strong>l, cheio <strong>de</strong> <strong>de</strong>usas virginais e<br />
<strong>de</strong> putas assumidas, orgulhosas <strong>de</strong> o serem e competentes também, pois que<br />
só assim há orgulho para qualquer profissão. Eis a perfeita conjugação <strong>de</strong><br />
trabalho e prazeres, nunca dantes conseguida, ainda que a receita resultasse<br />
banal, tão ao alcance da mão para quem não a tinha pequena, quer dizer,<br />
apoiada no lastro <strong>de</strong> uma pequena fortuna.<br />
À livraria chamou “Panis Spiriti”, ao salão <strong>de</strong> música “Auditus Deorum”, ao<br />
restaurante chamou “Palatum Eruditum” e ao bor<strong>de</strong>l chamou <strong>de</strong> “Feminae<br />
Superbae”. Para este último até tinha pensado em alguma coisa composta com<br />
a palavra “phallus” mas <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>sistiu, seria <strong>de</strong> um certo mau-gosto. Nem foi<br />
muito original nos batismos, mas tinha o charme do arremedo <strong>de</strong> latim ainda<br />
que um tanto imperfeito, pois nessa matéria ele não tinha tido muita chance no<br />
seu auto-didatismo, escorado na biblioteca do avô e em muitos galicismos.<br />
Forçoso admitir que os nomes eram sonoros e impressionavam o público em<br />
geral, chamando sua atenção pela sofisticação. Logo, porém, os<br />
freqüentadores divorciaram os compostos reduzindo-os a “Spiriti”, “Auditus”,<br />
“Palatum” e” Feminae”, e corrigiu o pedantismo, pelo menos um pouco.<br />
Contudo, a essência não era o nome e sim o diferencial que Cedro Angélico<br />
imprimiu ao seu feixe interligado <strong>de</strong> negócios. Claro, compelido muito mais pela<br />
libertina veia hedonista do que pelo tino comercial que, aliás, acho que não<br />
104
tinha nenhum. Mas era assim que ele achava valer a pena viver. A livraria era<br />
mais uma biblioteca do que uma loja. Não vendia livros, ao invés disso, alugava<br />
horas <strong>de</strong> leitura. Seu forte eram os livros raros, enca<strong>de</strong>rna<strong>dos</strong> em luxo e<br />
dispostos por assunto. Havia uma sala reservada para <strong>de</strong>bates, conforme um<br />
programa previamente elaborado pelo próprio proprietário e por uma horda <strong>de</strong><br />
poetas vagabun<strong>dos</strong> que logo ganharam a sua amiza<strong>de</strong>. O público não era <strong>dos</strong><br />
mais extensos, mas era gente fiel. Havia uma conta corrente e os<br />
freqüentadores podiam quitar suas horas <strong>de</strong> leitura no fim do mês. Sempre <strong>de</strong>u<br />
prejuízo, mas ali também nosso herói se divertia, especialmente ao cair da<br />
tar<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> <strong>de</strong>gustar um almoço <strong>de</strong> raríssimo quilate no andar <strong>de</strong> cima e<br />
<strong>de</strong>scer as escadas com <strong>de</strong>sleixada preguiça.<br />
Montar o restaurante foi muito trabalhoso, mais ainda supri-lo no dia-a-dia.<br />
Pessoal <strong>de</strong> formação em culinária francesa, não era <strong>de</strong> se encontrar naquelas<br />
distantes paragens, assim sem mais nem menos. Nem os finos ingredientes e<br />
produtos que tinham que vir <strong>de</strong> longe a custos avulta<strong>dos</strong>, pelos sucessivos<br />
transbor<strong>dos</strong>. Mas o resultado do esforço <strong>de</strong> Cedro Angélico fascinou os<br />
entendi<strong>dos</strong> e lhe valeu notas <strong>de</strong> entusiasmos na imprensa local, durante um<br />
certo tempo. Teria sido ele – mais tar<strong>de</strong> reconhecido – o inventor do autoserviço,<br />
só que com extremo requinte. E lá estavam expostas as iguarias sobre<br />
mesas espaçosas, com placas indicativas e na seqüência correta para a plena<br />
satisfação <strong>dos</strong> <strong>de</strong>sejos do paladar ao nível das divinda<strong>de</strong>s – não as gregas,<br />
claro, que essas só comiam ambrosia, nauseante pela freqüência exagerada<br />
do doce, todo dia; melando o paladar. Placas luzentes penetravam os olhos e<br />
dirigiam as mãos <strong>de</strong> garfos e colheres, que o <strong>de</strong>sejo apontava e o estômago<br />
aceitava com prazer, completando o ciclo que Deus criou com capricho,<br />
especialmente para quem conhece a seqüência. Hors d’oeuvre, entrée, plat <strong>de</strong><br />
résistance, entre-mets, <strong>de</strong>ssert e seus tantos <strong>de</strong>talhes divinos espalha<strong>dos</strong> nas<br />
ban<strong>de</strong>jas e inseri<strong>dos</strong> nos segre<strong>dos</strong> tempera<strong>dos</strong> <strong>dos</strong> huitres, potages, poissons,<br />
gibiers, fromages, mousses e , claro, vins, champagne et liqueurs.<br />
Mas tinha um <strong>de</strong>talhe um tanto <strong>de</strong>sagradável no meio <strong>de</strong> tanta elevação ao<br />
<strong>de</strong>us da <strong>de</strong>gustação. É que com tanto requinte, sustentado com tanta<br />
dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> matéria prima e i<strong>de</strong>m <strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>-obra, os preços cobra<strong>dos</strong><br />
tinham que ser eleva<strong>dos</strong>. Vai daí que pouca gente podia alimentar tanto luxo<br />
para se alimentar, pois que o prazer <strong>de</strong> comer fica em segunda plano quando<br />
ruge a fome e nessa, a banalida<strong>de</strong> do pão nosso, também conta. E tem que<br />
contar todo dia glorioso ou frugal. De sorte que, salvo pelas novida<strong>de</strong>s das<br />
primeiras semanas o Palatum Eruditum vivia às moscas. Força <strong>de</strong> expressão,<br />
claro, pois elas não eram admitidas no recinto, no salão nem na cozinha.<br />
Isso posto, posso dizer que no alegre casarão do prazer multiplicado, o que<br />
dava mesmo algum retorno era a câmara <strong>de</strong> música misturando os gostos e<br />
popularizando partes <strong>de</strong> óperas e operetas que era o que mais gente atraia nas<br />
sessões vesperais. Mas ali o gosto era italiano e o momento <strong>de</strong> exaltação era a<br />
105
sessão noturna com o recital <strong>de</strong> castratos, diretamente da pátria, em sessões<br />
variadas.<br />
Por último o fabuloso bor<strong>de</strong>l. De outro igual não se tinha notícia nem entre os<br />
fornicadores mais viaja<strong>dos</strong>. Era coisa original naqueles tempos recata<strong>dos</strong>,<br />
misturando shows picantes <strong>de</strong> excitação, com simples fornicação. Aqueles em<br />
amplos salões almofada<strong>dos</strong>, tenuemente ilumina<strong>dos</strong> e estes em quartinhos<br />
confortáveis e discretos dota<strong>dos</strong> <strong>de</strong> maravilhosos bidês <strong>de</strong> latão<br />
resplan<strong>de</strong>cente para limpar as seqüelas e os peca<strong>dos</strong>. Causou também sua<br />
gran<strong>de</strong> sensação e durou um pouco mais do que o Palatum com toda a sua<br />
fineza. Mas também espantou pelos preços cobra<strong>dos</strong>: um mundo inteiro <strong>de</strong><br />
fêmeas soberbas ro<strong>de</strong>adas <strong>de</strong> músicos, cenários, eunucos e serviçais to<strong>dos</strong><br />
soma<strong>dos</strong> numa folha <strong>de</strong> papel, lembrando os pagamentos <strong>de</strong>vi<strong>dos</strong> pelos<br />
serviços presta<strong>dos</strong>. Tudo muito produzido aguçando o <strong>de</strong>sejo, redobrando o<br />
prazer e encarecendo o coito. Enfim a realida<strong>de</strong> do mundo perturbando o<br />
erotismo <strong>dos</strong> sonhos.<br />
No princípio houve certa sensação com todas as novida<strong>de</strong>s do pacote <strong>de</strong><br />
prazeres <strong>de</strong> Cedro Angélico. Nem podia ser diferente, era muita ousadia para<br />
uma capital <strong>de</strong> província <strong>de</strong> segunda importância no conjunto da nação. O<br />
pequeno gran<strong>de</strong> mundo local se entusiasmou e houve momentos <strong>de</strong> glória para<br />
o bouquet <strong>de</strong> prazeres, pois aquilo virou moda nas esferas <strong>de</strong> cima. Ricos<br />
comerciantes, jornalistas, <strong>de</strong>puta<strong>dos</strong> e juízes, escritores irmana<strong>dos</strong> na doce<br />
peregrinação, da livraria ao restaurante, <strong>de</strong>pois a sala <strong>de</strong> músicas e finalmente<br />
o bor<strong>de</strong>l, coroando a alegria sem medo <strong>de</strong> congestão. Senhoras também<br />
podiam, mas até um certo ponto que pra tudo há o limite. Todavia, não havia<br />
conflito no arranjo permissivo, pois as damas se recolhiam mais cedo, lascivas<br />
na quentura das suas alcovas aconchegadas e sussurrantes à distância <strong>dos</strong><br />
mari<strong>dos</strong>, mansamente cornea<strong>dos</strong>, num festival <strong>de</strong> adultérios sagra<strong>dos</strong>.<br />
Mas, a bem da verda<strong>de</strong>, os belos templos <strong>de</strong> prazeres, monumentos<br />
hedonistas <strong>de</strong> uma certa obsessão, nem tiveram trajetória marcante. Bateu um<br />
certo cansaço no entusiasmo inicial pois lastro mesmo não havia para aquelas<br />
finezas da carne e do espírito. Foram muitas as razões que nem cabe<br />
enumerar. Justo pensar até que possa ter havido um certo boicote, pois no<br />
fundo o mundo sempre con<strong>de</strong>na a exacerbação do <strong>de</strong>sejo e a busca do prazer<br />
pelo lado menos nobre. De sorte que os negócios <strong>de</strong>finharam com uma certa<br />
rapi<strong>de</strong>z, frustrando o nosso herói bem no meio da vida. Está certo que, para<br />
Cedro Angélico, era muito gratificante passar a noite e o dia naqueles<br />
ambientes tão gra<strong>dos</strong> e varia<strong>dos</strong>, saciando os <strong>de</strong>sejos como quem<br />
simplesmente respira, e ainda ganhar dinheiro, se isso fosse possível. Mas,<br />
coitado do nosso herói, a vida não é tão simples como queremos que seja.<br />
Des<strong>de</strong> a expulsão <strong>de</strong> Adão que Deus quis separar as coisas em seus <strong>de</strong>vi<strong>dos</strong><br />
lugares, achando que sofrimento também tem o seu lugar. Vai daí que foi curta<br />
a trajetória <strong>de</strong> Cedro Angélico no mundo empresarial. Mas ele era teimoso e<br />
morreu como queria viver. Resultou que ele ven<strong>de</strong>u tudo que restava,<br />
106
esqueceu o lado amargo e foi conhecer a Europa e seus refina<strong>dos</strong> prazeres,<br />
poli<strong>dos</strong> ao longo <strong>dos</strong> séculos pela civilização. Contudo antes <strong>de</strong> assumir o<br />
fracasso <strong>dos</strong> negócios teve que reagir, pois dinheiro, até por extinto, ninguém<br />
se conforma que acabe, pois quando acaba, muita coisa costuma acabar junto.<br />
É pestilento o bafo da <strong>de</strong>cadência e disso ele já tinha provado, ainda que tão a<br />
sério não tivesse levado a lição, como habituava fazer com o lado sombrio das<br />
coisas. De sorte que, assim que constatou que os negócios iam muito mal, pois<br />
as contas teimavam em não fechar no final <strong>de</strong> cada mês, Cedro Angélico<br />
pensou numa gran<strong>de</strong> promoção para animar a gula e a concupiscência <strong>dos</strong><br />
clientes fugidios. Era seu modo <strong>de</strong> reagir, sempre adornando e dourando as<br />
soluções, apartado da <strong>dos</strong>e <strong>de</strong> amargor <strong>dos</strong> problemas. Assim, não pensou em<br />
cortar <strong>de</strong>spesas e acertar <strong>de</strong>sacertos. Ao contrário, mais ia ter que gastar,<br />
aumentando a taxa <strong>de</strong> risco, numa mórbida ousadia. Pensou em promover um<br />
gran<strong>de</strong> festival, <strong>de</strong> alcance mundial. Um congresso do prazer, com teoria e<br />
prática finamente integradas. Po<strong>de</strong>ria trazer da Europa praticantes notáveis.<br />
Po<strong>de</strong>ria trazer, sobretudo, o marques <strong>dos</strong> Choupos na condição <strong>de</strong> patrono,<br />
acompanhando <strong>de</strong> Gérbera Silente na condição <strong>de</strong>la mesma, vale dizer,<br />
magnífica fêmea, digo mais, a própria “Femina Superba” corporificada. A<br />
lembrança do marques e da sua pupila reacen<strong>de</strong>ram nele o odor excitante <strong>de</strong><br />
velhas e doces recordações carregadas <strong>de</strong> luxuria e gula, raízes <strong>dos</strong> seus<br />
rumos futuros. Há mais <strong>de</strong> quinze anos não os via. Como estaria ela? Madura<br />
e bela. Plenamente investida das cre<strong>de</strong>nciais <strong>de</strong> Ovídio para o ápice do amor,<br />
na cali<strong>de</strong>z das carnes ainda tenras e se<strong>dos</strong>as, preservadas nos seus óleos<br />
naturais, dispostos a temperar a mecânica <strong>dos</strong> tatos. Havia contradições ainda<br />
por ser testadas.<br />
A idéia agiu nele como uma fornalha areada a expandir os vapores e exigir o<br />
escape, ameaçando explodir. Assim, logo no dia seguinte ao dia da idéia,<br />
concebida sem muita vacilação, montou no melhor cavalo e partiu em trote<br />
acelerado no rumo do Vale das Santas Delícias, seu berço <strong>de</strong> nascimento, no<br />
sentido da existência escolhida.<br />
Pobre do nosso herói, encontrou o solar em ruínas. Nem móveis, nem livros,<br />
nem cristais, nem prataria. Nem um ramo <strong>de</strong> alegria. Nem sinal <strong>de</strong> um ser<br />
vivente e a natureza estava falida. As fontes haviam secado, espantando as<br />
suas ninfas. O sol parecia mais frio e o silêncio abafava o canto <strong>dos</strong><br />
passarinhos. Pensou em ir até o povoado saber <strong>de</strong> alguma coisa sobre a ruína<br />
do solar, contudo <strong>de</strong>sistiu. Seria inútil e injusto com o marquês e os lustros da<br />
sua longa história.<br />
Mas não foi ali, nem na falência fatal que <strong>de</strong>struiu as posses no nosso herói,<br />
que o prazer acabou. Pois as maças têm sementes e brotam em todo lugar<br />
para serem <strong>de</strong>gustadas em suas duas meta<strong>de</strong>s.<br />
DÉCIMA NOVA PARTE<br />
107
Toda a história contada, uma história não seria se não tivesse acontecido o que<br />
agora é lembrado com uma certa brevida<strong>de</strong>. Foi então que nosso herói quase<br />
viu se cumprir aquele presságio antigo carregado <strong>de</strong> tragédias do seu tempo <strong>de</strong><br />
infância, passado na tristeza <strong>de</strong> um futuro sem promessa <strong>de</strong> ter continuida<strong>de</strong>.<br />
Bem podia ter morrido, <strong>de</strong>ssa vez <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, sem visões turvas <strong>de</strong> ciganas<br />
suspeitíssimas, na sua premonição sem fé e nem pieda<strong>de</strong>. Digo da quase<br />
vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus que, se fosse mesmo vonta<strong>de</strong>, não havia escapatória. Morria<br />
mesmo. Mas, claro, <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> não foi, posto que houvesse o susto e ele<br />
marcasse a memória por uns tempos. Como podia ser diferente com tanta<br />
febre malsã e as entranhas contraídas, estranguladas em cólicas e cheias <strong>de</strong><br />
sujida<strong>de</strong>s intestinais? Um mal perigoso que envenena o sangue e confun<strong>de</strong> o<br />
organismo, murchando a pessoa, sem vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> comer pra não correr o risco<br />
outra vez. Foi assim que aconteceu naquele tempo com nosso Cedro Angélico,<br />
até então tão viçoso – apesar da meia ida<strong>de</strong> que já tinha - com suas seivas <strong>de</strong><br />
árvore robusta e orgulhosa e coberto <strong>de</strong> peles e pelos saudáveis no lugar <strong>de</strong><br />
cascas e folhas. Dava no mesmo, e foi isso que o salvou.<br />
Tinha voltado da Europa em completa ruína, selando em melancolia sua<br />
carreira solo no mundo <strong>dos</strong> negócios. Sozinho não podia dar certo, dado sua<br />
inclinação obsessiva para os gozos da vida, pesando contra a prudência no<br />
braço <strong>de</strong>sigual da balança da provisão. Carente <strong>de</strong> alternativas e com<br />
dificulda<strong>de</strong>s até para o elementar da sobrevivência resolveu ir a campo nos<br />
ermos <strong>de</strong> Deserda<strong>dos</strong>, a cobrar dívidas antigas do negócio do armazém do<br />
caro pai adotivo, correndo atrás <strong>dos</strong> rescal<strong>dos</strong> da herança recebida e<br />
dilapidada agora. Migalhas do tempo <strong>de</strong> “Nemélio & Cedrus” que tinha<br />
<strong>de</strong>sprezado na abundância da fortuna quando a tinha recebido opulenta e<br />
virgem, há mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos atrás. Mas se as dívidas <strong>dos</strong> velhos clientes <strong>de</strong><br />
um negócio <strong>de</strong>funto <strong>de</strong> fato não prescrevia, porque haveria <strong>de</strong> perdoá-las<br />
estando necessitado? Evitou Deserda<strong>dos</strong> por que lá tinha <strong>de</strong>cidido que não<br />
mais voltaria. Mas havia muitos outros negócios antigos nas vilas e povoa<strong>dos</strong><br />
das cercanias e foi lá que mirou o foco da sua ação cobradora.<br />
A viagem, extemporânea e sem anúncio, acabou acontecendo num mês<br />
incomum, copioso <strong>de</strong> chuvas como não <strong>de</strong>via nem se tinha memória para o<br />
mesmo. Nunca antes tinha havido, nem <strong>de</strong>pois. Uma certa anomalia do clima<br />
que até po<strong>de</strong> ter vindo <strong>de</strong> excessos no comportamento <strong>dos</strong> homens, como nos<br />
tempos da bíblia. Mas não se po<strong>de</strong> afirmar, pois o povo seguia correto suas<br />
vidas santas e medíocres <strong>de</strong> sempre. Contudo o tempo quis ser diferente e<br />
<strong>de</strong>u-se então a maior temporada chuvosa <strong>de</strong> que se tem registro naqueles<br />
lugares <strong>de</strong> poucas veias <strong>de</strong> rios e <strong>de</strong> nuvens escassas, num céu azul<br />
persistente. Mas, <strong>de</strong> fato aconteceu, e a causa não importa. O que era riacho<br />
virou rio e o que era rio ultrapassou o caudal <strong>de</strong> cada dia banal. A água caiu do<br />
céu como Deus fosse servido e que, aliás, sempre faz o que quer e às vezes<br />
exagera. Correu – a água, bem entendido, pois Deus não precisa correr, já está<br />
em todo lugar - com a fúria que lhe é peculiar, mesmo sem motivo, tão<br />
108
enfazeja que é. E subiu, muito além do razoável espantando o sossego e<br />
<strong>de</strong>sconstruindo. Ninguém se preparou por ali, pois não era o costume.<br />
Portanto, não se evitou o incômodo e a seqüência <strong>de</strong> perdas.<br />
E foi numa <strong>de</strong>ssas, no meio <strong>de</strong> uma jornada carregada <strong>de</strong> imprudência para os<br />
riscos da ocasião, que Cedro Angélico ficou isolado por uma enchente<br />
repentina. Por conseqüência, passou uma semana inteira comendo comida<br />
estragada e bebendo água barrenta catada no rio raivoso e sujo por causa<br />
disso. Mas, como é comum <strong>de</strong> acontecer, <strong>de</strong>pois voltou o azul do céu e assim<br />
permaneceu e está até hoje, com pouca interrupção. Mas não resgatou os<br />
estragos que a água <strong>de</strong>ixou com a frialda<strong>de</strong> e a força. De sorte que quando ele<br />
conseguiu chegar na vila <strong>de</strong> Sacramento já ardia <strong>de</strong> febre, <strong>de</strong>volvendo para<br />
fora tudo o que engolia empurrado, a custo <strong>de</strong> muita repugnância. Sem falar da<br />
flatulência, que isso era problema <strong>dos</strong> outros que andaram por perto, mesmo<br />
sem um convite. Bem feito quem sabe, então. A lama engoliu as passagens e<br />
respingou <strong>de</strong> sujeiras os cantos to<strong>dos</strong> e isso foi muito pior, como se houvesse<br />
<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m e um pouco <strong>de</strong> <strong>de</strong>sleixo na vila inteira. Tudo estava <strong>de</strong>sse jeito<br />
quando ele arribou, mesmo que um tanto pra baixo por causa <strong>de</strong> tanta <strong>de</strong>sanda<br />
na harmonia intestinal. Da boca do estômago até o anel do dito cujo, tinha tido<br />
sofrimento.<br />
Havia um comerciante da vila na sua dorida lista <strong>de</strong> débitos. Desconfortável pro<br />
cobrador, muito mais pro <strong>de</strong>vedor, pois que o débito <strong>de</strong>sconforta mesmo os<br />
mais <strong>de</strong>scansa<strong>dos</strong>. Falo <strong>de</strong> Jatobá Malesco <strong>de</strong> quem, aliás, já falei, mesmo<br />
sem dar precisão ao nome. Morava com sua jovem mulher num sobrado um<br />
tanto avantajado: na parte <strong>de</strong> cima; que na <strong>de</strong> baixo era a loja <strong>dos</strong> secos e <strong>dos</strong><br />
molha<strong>dos</strong>. O débito retardatário não tinha morrido mas houve uma inversão,<br />
pois ao vê-lo naquele estado <strong>de</strong>plorável, mal sustentado nas pernas,<br />
resolveram acolhê-lo e tratar a doença com toda a santida<strong>de</strong>, mesmo não<br />
tendo santo que proteja os cobradores. E assim foi, por quinze dias segui<strong>dos</strong>.<br />
Tempo em que Anémola Malesco, a mulher do comerciante, se <strong>de</strong>sdobrou em<br />
<strong>de</strong>svelos. Tantos que a carida<strong>de</strong>, a bem da boa verda<strong>de</strong>, nem <strong>de</strong> tanto carecia.<br />
Pia obrigação transpassada <strong>de</strong> rubra e quente concupiscência. Pois ela era<br />
carente na sua juventu<strong>de</strong>, acanhada nas suas necessida<strong>de</strong>s, tendo para<br />
satisfazê-las um homem muito mais velho. Foram quinze dias <strong>de</strong> sofrimento<br />
mais um átimo <strong>de</strong> prazer, um <strong>de</strong>pois do outro que, para o segundo é preciso<br />
estar atento e forte. Numa seqüência, um tanto <strong>de</strong>sajuizada por suposto, mas,<br />
nunca esquecida por certo. Exceto muitos anos <strong>de</strong>pois, quando a memória já<br />
tinha se arrefecido e não mais tinha valia, como a brasa se torna carvão.<br />
Estou a vê-los com a curiosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> autor que me é facultada, por mérito e por<br />
direito, não por mera levianda<strong>de</strong>. Vejo então, e vos conto, o que passo a narrar.<br />
109
Cedro Angélico, já não era rapaz, mas tinha as seivas preservadas pois punha<br />
nisso muito do sentido da vida, no meio da carida<strong>de</strong> da família acolhedora<br />
Tinha ele sido alojado num quarto confortável, na parte da frente do sobradão<br />
<strong>dos</strong> Malescos, com varanda arejada <strong>de</strong> frente para a outra frente, do lado<br />
oposto da rua, um segundo sobradão, quase cópia do primeiro. Pela parte <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>ntro, a porta do aposento dava para um corredor lateral e o acesso era<br />
discreto, apartado das intimida<strong>de</strong>s da casa on<strong>de</strong> vivia o casal na sua rotina <strong>de</strong><br />
harmonia e <strong>de</strong> certos <strong>de</strong>sencontros, pois havia diferenças mui difíceis <strong>de</strong><br />
acertar. Perfeito aposento para a função a que se <strong>de</strong>stinava <strong>de</strong> servir <strong>de</strong><br />
pousada para os viajantes casuais, <strong>de</strong> passagem abreviada em negócios <strong>de</strong><br />
interesse do comerciante Malesco. Agora era um tanto diferente, servindo a<br />
uma convalescença sem tempo <strong>de</strong> duração. Tinha alguns inconvenientes para<br />
essa outra <strong>de</strong>stinação: como o doente estava preso na cama, tudo tinha que<br />
ser levado a ele escada acima, pois que as serventias da casa ficavam<br />
embaixo, na parte <strong>de</strong>trás. Mas bem cuidavam <strong>dos</strong> serviços <strong>de</strong> limpar e dar <strong>de</strong><br />
comer, com doçura e disposição d. Anémola Malesco, secundada por sua<br />
serviçal Begônia Paçante, fêmea <strong>de</strong> boa ida<strong>de</strong>, confiável e presente, tão<br />
competente com as coisas doméstica que nem precisava <strong>de</strong> mando. Uma<br />
pessoa <strong>de</strong> casa pelo tempo em que já estava com a família, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> nascida. As<br />
duas mulheres se revezavam no paciente afazer. Uma dupla combinada como<br />
era comum no serviço do dia-a-dia da casa. E assim tudo correu nas duas<br />
primeiras semanas, com o doente avançando na melhora. Corava e se<br />
animava passando a reparar nos predica<strong>dos</strong> da dona da casa. Falo da beleza<br />
da cara, do cheiro <strong>dos</strong> cabelos, do redondo e do macio das partes ocultas e do<br />
novelo <strong>de</strong> pelos das partes mais ocultas ainda. Mas, por certo se ofereciam,<br />
escondidas entre as pernas ou anunciadas sutis em contornos suaves,<br />
levantando as barras rendadas do peitilho atrevido inda que bem comportado.<br />
Ela, também, não gastou muito tempo para parar <strong>de</strong> se preocupar com as<br />
entranhas e começar a se preocupar com as partes externas do homem, da<br />
ponta do cabelo até a ponta do pé. Assim, logo se estabeleceu uma<br />
comunicação e havia uma recíproca, forte e silenciosa como é a erupção do<br />
<strong>de</strong>sejo, no seu jeito mais natural, sem tempo <strong>de</strong> maturar, pois disso não carece<br />
como <strong>de</strong>sejo que é.<br />
Resultou <strong>de</strong> toda essa coisa que numa noite qualquer, já tar<strong>de</strong>, d. Anémola<br />
quis mudar a rotina do serviço e assumir tudo sozinha como vinha planejando<br />
quase sem pensar noutra coisa, compelida <strong>de</strong> forma um tanto selvagem. Tinha<br />
que ser assim, pois aquele tipo <strong>de</strong> coisa ela <strong>de</strong>cididamente não queria<br />
compartilhar com nenhuma outra fêmea. E temia que sua fiel serviçal estivesse<br />
pensando o mesmo. Mas ela era mais forte e afastou o perigo aferrolhado a<br />
porta do quarto da pobre rival em tudo inferior. Afastou o perigo mas levantou<br />
a suspeita pois Begônia Paçante já via a intenção e não teve dúvida da autoria<br />
do seu solerte confinamento quando, após o ruído do ferrolho, escutou o<br />
farfalhar do vestido <strong>de</strong> seda, comprido e rodado, varrendo o entorno. O mesmo<br />
que tinha passado no ferro quente a pedido da patroa, aten<strong>de</strong>ndo uma<br />
110
<strong>de</strong>manda repentina sem motivo aparente, bem no meio da tar<strong>de</strong> e nem era<br />
domingo. O marido, coitado, nem careceu <strong>de</strong> cuidado, roncando como estava<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> às nove da noite, era o felino amansado e com o guizo no pé.<br />
O plano começou já na hora do jantar. Depois do repasto, quase sempre frugal,<br />
Jatobá Malesco costumava sorver um pequeno cálice <strong>de</strong> licor <strong>de</strong> jenipapo para<br />
melhor acomodar a comida e dormir com mais conforto e profundida<strong>de</strong>.<br />
Preferia beber uma coisa mais forte, mas sua jovem esposa era contra e<br />
segurava essa singela vonta<strong>de</strong>, tal uma samaritana zelosa da saú<strong>de</strong> do marido,<br />
como se com ele quisesse viver muitos anos. Naquela vez, porém, compelida<br />
pelo ardil, ela inverteu as priorida<strong>de</strong>s. Fingiu estar distraída, pegou um cálice<br />
maior, encheu <strong>de</strong> conhaque, colocou na frente do marido e, alegando uma<br />
urgência na cozinha, saiu apressada <strong>de</strong>ixando a garrafa ao alcance do marido<br />
com toda facilida<strong>de</strong>. Não <strong>de</strong>u outra, o pobre, sorveu três goles rapidamente.<br />
Quando ela voltou, tamancando o assoalho para anunciar o retorno e facilitar o<br />
embuste, encontrou-o sorrindo, feliz, se sentindo muito ágil e esperto. Não <strong>de</strong>u<br />
meia hora e o pobre homem já estava na cama, pronto para um sono profundo<br />
e um inocente <strong>de</strong>spertar <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> um par <strong>de</strong> cornos; primeiro, único mas<br />
ainda assim, um par <strong>de</strong> cornos, verda<strong>de</strong>iros e para sempre.<br />
Na etapa seguinte Begônia Paçante era afastada do páreo com aquela<br />
providência <strong>de</strong> ser trancada no quarto, submetida a um recolhimento forçado.<br />
Com o marido escornado e a criada confinada, a jovem senhora subiu arfante<br />
as escadas inebriada pelas expectativas do prazer, prescindindo da legitimação<br />
do amor. Mas tudo era vermelho e ela foi em frente. O primeiro empecilho não<br />
houve: a luz escapando pela fresta <strong>de</strong>baixo da porta anunciava que ele estava<br />
acordado, com certeza esperado. Anémola Malesco bateu suavemente e<br />
entrou em seguida sem esperar por resposta, pronta para as bodas do pecado.<br />
Deitado na cama Cedro Angélico lia um livro, sorvendo as letras tremulantes<br />
sob o lume instável <strong>de</strong> um pequeno lampião <strong>de</strong> campanha. Meta<strong>de</strong> <strong>de</strong> baixo<br />
coberta pelo lençol, dorso <strong>de</strong>scoberto exibindo a rigi<strong>de</strong>z muscular <strong>dos</strong> homens<br />
que voam, conserva<strong>dos</strong> e prontos, mesmo na meia ida<strong>de</strong>. Tirou os olhos do<br />
livro que lia e olhou, simplesmente olhou para ela. Palavra não foi dita, nem<br />
palavra carecia. Queriam a mesma coisa e nem precisou haver um acordo,<br />
pois um pacto tácito <strong>de</strong> luxuria já havia, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> alguns dias. Ele esten<strong>de</strong>u a mão<br />
para ela e a guiou a se sentar na borda da cama. Fê-la <strong>de</strong>spir-se <strong>de</strong>vagar,<br />
<strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> suspiros, pois os sons fazem parte, da mesma forma que os<br />
cheiros. Depois a induziu a andar nua pela casa, arrostando um perigo picante,<br />
silencioso e obsceno que fervilhou o <strong>de</strong>sejo. Em seguida brincou com seus<br />
pelos e novelos: os lisos e os hirsutos. Resumindo: o inesquecível intercurso<br />
durou enquanto a noite durou e to<strong>dos</strong> os cantos das carnes e das almas<br />
entrelaçadas que podiam dar prazer – e são muitos – foram meticulosamente<br />
explora<strong>dos</strong>. No fim a exaustão e todas as suas sujeiras, sujas mas laváveis e<br />
santas.<br />
111
No dia seguinte Cedro Angélico não foi mais encontrado, no quarto, na<br />
povoação ou cercanias. Por muito tempo, <strong>de</strong>le nem eu mais ouvi falar.<br />
Começava o terço final da sua vida, a parte mais obscura, que <strong>de</strong>ixo ao leitor a<br />
tarefa <strong>de</strong> recriar numa outra ocasião. Partiu sem agra<strong>de</strong>cer tantos favores<br />
impagáveis. Deixou um maço <strong>de</strong> recibos quitando as dívidas que tinha para<br />
cobrar do marido. Não se sabe se houve ironia, mas o pobre ficou muito<br />
agra<strong>de</strong>cido. Claro, no geral, Cedro Angélico <strong>de</strong>ixou muito mais do que isso.<br />
Aquela competente libertinagem acabou sendo o mais apaixonado banquete da<br />
vida <strong>de</strong> Anêmola Malesco. Nem tinha como não ser. Não <strong>de</strong> doce recordação,<br />
contudo, mas <strong>de</strong> lascas cortantes <strong>de</strong> sofrimento pacientemente curtido pela<br />
vida à fora, que a paixão costuma cobrar as suas dívidas. Pois que a outra<br />
mulher - Begônia Paçante – também espetada na paixão, não aceitou a parte<br />
que lhe tocou na repartição do vinho no cálice daquela concupiscência.<br />
Enquanto jazia na frigi<strong>de</strong>z escura do seu quarto, contida pela manobra solerte<br />
da patroa tresloucada <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo, sorveu <strong>de</strong>vagar a sua parte e resolveu se<br />
vingar com requintes <strong>de</strong> cruelda<strong>de</strong>. Tomou para si o fruto do adultério, como se<br />
seu tivesse sido, o ventre fecundado.<br />
EPÍLOGO<br />
Pelo menos dois meses era o que Açucena Cedrus teria que esperar até que<br />
pu<strong>de</strong>sse voltar para casa e cumprir seu <strong>de</strong>creto <strong>de</strong> expulsão. Era então que a<br />
próxima condução regular viria ter no Mosteiro das Santas Paixões e na volta<br />
po<strong>de</strong>ria levá-la até Chapadão <strong>de</strong> Deserda<strong>dos</strong>, no seu calvário <strong>de</strong> volta à casa<br />
paterna carregando o seu <strong>de</strong>satino no ventre. Essa espera seria sua maior<br />
penitência, suprema coroação do martírio da sua vergonha. Sentia-se como se<br />
fosse guardada prisioneira sem ter tido a chance <strong>de</strong> um julgamento justo.<br />
Nesse tempo teria que ficar isolada na clausura, sem qualquer contato com as<br />
rotinas do convento. Enquanto isso esfolava as mãos com as contas do rosário,<br />
rezando dia e noite e pedido perdão para o seu pecado, provindo das<br />
cegueiras do amor e revelado ao mundo nas circunstâncias mais perversas.<br />
Eram tantos os espinhos da sua condição no silencio daquela expiação que ela<br />
nem tinha pensado ainda no que diria a pobre d. Violeta. Mas fiava que sua<br />
mãe transbordava <strong>de</strong> santa misericórdia como coisa natural e saberia enten<strong>de</strong>r<br />
a virtu<strong>de</strong> das suas razões. Felizmente nem precisou por à prova a misericórdia<br />
da mãe em tão acentuado grau <strong>de</strong> perigo <strong>de</strong> não se fazer merecida. E foi aí<br />
que o padre Ipê Náltio entrou nessa história com sua sabedoria a serviço <strong>de</strong><br />
Deus e ao lado <strong>dos</strong> pecadores, atenuando os sofrimentos da terra, na incerteza<br />
do céu. Era ele o vigário <strong>de</strong> Santa Branca <strong>dos</strong> Lírios, capelão do convento por<br />
legal <strong>de</strong>corrência da primeira condição. Vida dura e corrida, intercalando<br />
missas e ofícios na se<strong>de</strong> da paróquia e na capela do convento, subindo e<br />
<strong>de</strong>scendo dia sim, dia não, no seu cavalo <strong>de</strong> São Jorge. Confessor austero e<br />
sereno, se convenceu da brandura <strong>dos</strong> peca<strong>dos</strong> <strong>de</strong> Açucena e resolveu<br />
perdoá-la, como era sua obrigação nos misteres do sagrado sacramento da<br />
112
confissão. Resolveu mais, resolveu ajudá-la. Aliás, isso já tinha feito antes e<br />
isso ainda faria, pois aqueles casos não eram assim tão raros naqueles ermos<br />
e tempos. Mas ele era seletivo, ajudando apenas aquelas pobres meninas cujo<br />
fundo da alma pu<strong>de</strong>sse enxergar e, isso sim, era muito mais raro <strong>de</strong> acontecer.<br />
De sorte que o padre sugeriu à madre superiora que a moça seguisse com ele<br />
até o povoado <strong>de</strong> Santa Branca <strong>dos</strong> Lírios on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>ria casualmente encontrar<br />
meios <strong>de</strong> voltar para casa mais cedo, encurtando a agonia da espera e o<br />
incômodo <strong>de</strong> ficar ali, no meio do cotidiano das freiras, marcando-o como se<br />
fosse uma nódoa. A boa madre prontamente ace<strong>de</strong>u, pois também queria<br />
encurtar aquela situação que perturbava a santa paz do convento e a pureza<br />
do lugar. Na verda<strong>de</strong> o plano do padre era muito mais abrangente do que a<br />
princípio parecia e muito mais cheio da melhor das pieda<strong>de</strong>s. Não era só a<br />
questão do tempo <strong>de</strong> espera da condução, mas também a questão da condição<br />
<strong>de</strong> espera do tempo <strong>de</strong> procriar.<br />
Protegido pela sacra inviolabilida<strong>de</strong> do próprio confessionário – e mesmo assim<br />
falando baixinho – padre Ipê havia proposto a Açucena que ficasse morando<br />
com ele por uns tempos até que a criança nascesse e, assim, ela pu<strong>de</strong>sse<br />
voltar para casa, com o pequeno aninhado nos braços, condição muito mais<br />
digna do que fazê-lo com ela escondida na barriga, sem ter muito como<br />
explicar aquela protuberância fora <strong>de</strong> tempo e lugar. Certamente seria um<br />
choque para d. Violeta, com ou sem a pieda<strong>de</strong> que nela era intrínseca. No<br />
momento da proposta Açucena se assustou e refugou, temendo as intenções<br />
<strong>de</strong>sse excesso <strong>de</strong> bonda<strong>de</strong>. Mas logo <strong>de</strong>pois aceitou, corrigindo com a razão o<br />
sentimento <strong>de</strong> pena e <strong>de</strong> punição com que vinha julgando a si mesma no meio<br />
daquele turbilhão. E fez bem pois, ao contrário do que po<strong>de</strong>m estar pensando<br />
os leitores mais maliciosos, o bom padre se revelou um fraterno protetor. E<br />
mais, encheu Açucena <strong>de</strong> paz e <strong>dos</strong> mais sábios conselhos, preparando-a para<br />
a volta à vida mundana na nefanda condição <strong>de</strong> mãe <strong>de</strong> um pequeno bastardo,<br />
gerado numa noite <strong>de</strong> amor, fugaz e confundida com os sonhos, arrefecendo o<br />
prazer, mais distante do peso das coisas reais e <strong>de</strong> contas a prestar.<br />
A execução do pie<strong>dos</strong>o plano teve princípio <strong>de</strong> forma natural e insuspeita<br />
numa manhã ensolarada e serena que prometia um dia radiante <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
tantos outros sombrios. O padre e a moça seguiram monta<strong>dos</strong> em suas<br />
respectivas cavalgaduras e a <strong>de</strong>scida foi lenta pois ela não estava acostumada<br />
com aquele transporte ru<strong>de</strong> no lombo <strong>de</strong> um animal. Iam, um ao lado do outro<br />
e, assim, pu<strong>de</strong>ram conversar ao longo do trajeto. A bem da verda<strong>de</strong> quem<br />
conversou mesmo foi o padre, pois Açucena ficou retraída, reservada a escutálo.<br />
Mas se sentiu confortável com os rumos da conversa. Esperava ter que<br />
ouvir um ou outro sermão e estava preparada e disposta. Temia ainda pelo<br />
pedido <strong>de</strong> uma compensação por aquela proteção. Mas, nada <strong>de</strong> sermão,<br />
proposta in<strong>de</strong>cente ou coisa que assim parecesse. Ao contrário, o que ouviu<br />
revelava uma pessoa doce e compreensível. Até um tanto herética e<br />
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<strong>de</strong>bochada, muito diferente da imagem que to<strong>dos</strong> tinham do capelão do<br />
convento, cheio <strong>de</strong> ralhas e contrições e da suprema autorida<strong>de</strong> da cabeleira<br />
branca e meio rala. Mas nada disso agora correspondia, no meio do sol e do<br />
dia. Ele se mostrava afável e brincalhão, reparando nas <strong>de</strong>lícias singelas da<br />
natureza e interpretando os caprichos <strong>de</strong> Deus <strong>de</strong> uma forma engraçada,<br />
revelando uma alma brincalhona por trás da preta e sufocante sotaina, surrada<br />
e cheia <strong>de</strong> caspa e fios brancos perdi<strong>dos</strong> do alto da cabeça alargando a<br />
tonsura <strong>de</strong> uma forma cruel.<br />
Chegaram na boca da noite, com o jantar já cheiroso <strong>de</strong> sabores e no ponto <strong>de</strong><br />
terminar, assim que o padre mandasse. Escorreram a poeira numa bacia <strong>de</strong><br />
água morna e, à mesa, a conversa continuou no mesmo tom leve e ameno,<br />
sem nenhum assunto dominante, sem nada que pu<strong>de</strong>sse pesar na hora da<br />
digestão. O padre chegou a fazer piadas com as coisas do convento,<br />
satirizando os narizes das monjas e fazendo a moça estampar uma gostosa<br />
alegria, coisa rara <strong>de</strong> uns tempos para cá. De sorte que, quando Açucena se<br />
recolheu ao conforto da cama <strong>de</strong>signada, ela se sentia quase feliz. O quarto<br />
era limpo e arejado, se sentia segura, estava saciada da fome e principiava a<br />
estancar finalmente o sangramento da alma, macerada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> algumas<br />
semanas. Enquanto o sono não vinha repassou o dia com um sorriso nos<br />
beiços, serena e agra<strong>de</strong>cida. Dormiu bem e acordou muito menos incomodada<br />
com os peca<strong>dos</strong> do <strong>de</strong>sejo e as chagas da paixão, à sua conveniência. E<br />
sentiu que podia muito bem passar ali um ano tranqüilo a espera do seu filho.<br />
De fato tinha razão e o vigário muito ajudou enchendo a sua alma <strong>de</strong> uma<br />
teologia do perdão que ensinava que o amor transformado em paixão não<br />
admite a presença do pecado. Decorre <strong>dos</strong> ensinamentos <strong>de</strong> padre Ipê Náltio,<br />
portanto, o esquema que ela <strong>de</strong>senhou na última página do seu breviário e que<br />
consultava toda noite, <strong>de</strong>pois da sua contrita e fervorosa oração, pedindo força<br />
para o bom entendimento do lado mais secreto <strong>dos</strong> ensinamentos <strong>de</strong> Cristo:<br />
paixão > adoração > re<strong>de</strong>nção<br />
<strong>de</strong>sejo > gozo > pecado.<br />
Não fora simples <strong>de</strong>sejo mas verda<strong>de</strong>ira paixão a causa da sua inaudita<br />
aventura nos braços do trapezista voador. Seu caso se enquadrava então na<br />
parte superior da equação do venerando e sábio padre. Não duvidando disso -<br />
e evitando fazê-lo - se quedou em paz e assim ficou enquanto esteve sob a<br />
custódia do religioso se preparando para voltar e recomeçar a vida no caminho<br />
natural.<br />
E assim, em paz, tentava se convencer que estava quando, <strong>de</strong>sceu na porta <strong>de</strong><br />
sua casa com os peitos incha<strong>dos</strong> <strong>de</strong> leite e o pequeno Cedro Cedrus aninhado<br />
nos braços, <strong>de</strong>vidamente ungido com os óleos do batismo e uma certidão<br />
arranjada pelo nosso bom protetor atestando pai e mãe <strong>de</strong>sconheci<strong>dos</strong> e<br />
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atizado com o sobrenome Cedrus pela graça <strong>de</strong> Açucena, amorosa mãe<br />
adotiva mas, no real, oferecida ao holocausto das maledicências sobre as<br />
mães carentes <strong>de</strong> mari<strong>dos</strong>. Tinha também uma carta minuciosa assinada pelo<br />
reverendo que contava a versão da história respaldada no perdão. No período<br />
<strong>de</strong> ausência, d. Violeta e a filha trocaram cartas freqüentes como se tudo<br />
estivesse normal. É que, nosso padre Ipê era quem transportava a<br />
correspondência entre o mosteiro e o povoado <strong>de</strong> Santa Branca <strong>dos</strong> Lírios.<br />
Assim, garantiu a certeza do fluxo entre o remetente e o <strong>de</strong>stinatário, sem erro<br />
ou ruptura. Mas nenhuma carta seguiu com esse estrito propósito e a pobre<br />
senhora não foi avisada do retorno prematuro da filha. Nem era conveniente<br />
essas coisas no papel, antecipando agonia por falta <strong>de</strong> explicação. Daí o susto<br />
que tomou. Nem carece <strong>de</strong>screvê-lo, é fácil <strong>de</strong> imaginar. Mas o que importa,<br />
afinal, é que, com jeito e com cautela, a filha foi escaldando a história e d.<br />
Violeta, por Cedrus que era também, se quedou conformada com tudo e com a<br />
frustração do projeto divino bruscamente interrompido. Perante as ouriçadas e<br />
perspicazes vizinhas até <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u eloqüente a opção <strong>de</strong> Açucena <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar o<br />
convento assumindo a criação do <strong>de</strong>safortunado órfão, abandonado na porta<br />
do mosteiro numa brava noite <strong>de</strong> chuva, <strong>de</strong>baixo da frialda<strong>de</strong> <strong>dos</strong> respingos e<br />
do vento. E assumiu o pequeno, na sua parte <strong>de</strong> avó, com muita convicção e<br />
terna <strong>de</strong>dicação. Assim, em pouco tempo, a casa <strong>dos</strong> Cedrus foi tomada <strong>de</strong><br />
uma singela alegria, aberta e sem vergonha, como lar abençoado. Pena que a<br />
pobre moça tivesse que privar o filho do seu próprio leite, escon<strong>de</strong>ndo suas<br />
fontes e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong> outras. Coitada, isso acentuou nela o prenúncio <strong>de</strong> um<br />
castigo que também se agregou à penitência do seu pecado, perdoado sem<br />
toda a convicção que Açucena queria.<br />
No mais, o tempo passou como costuma fazer e as coisas se arranjaram na<br />
vida do nosso herói como estava escrito e me foi dado contar com toda a<br />
isenção, fiel ao peso <strong>dos</strong> fatos. Açucena Cedrus a esposa <strong>de</strong> um dia, a mãe<br />
amorosa, a mulher apaixonada, a amante irreal, nunca sossegaria inteiramente<br />
sua alma e, na sua curta vida, viveria momentos <strong>de</strong> agonia, tentando se<br />
perdoar do pouco que havia feito mas que não <strong>de</strong>via ter feito aos olhos puros<br />
<strong>de</strong> Deus, na sua órbita mais santa.<br />
Cedro Angélico viveria muitos anos e, ao contrário da mãe, teria todo o tempo<br />
do mundo para separar o amor e o <strong>de</strong>sejo, e preferir o segundo se esquivando<br />
do primeiro, achando que isso valia a solidão. Como ela, peca<strong>dos</strong> não cometeu<br />
e morreria convencido <strong>de</strong> que <strong>de</strong>gustou a melhor parte da maçã, evitando o<br />
sofrimento como pô<strong>de</strong>, sorvendo a vida pelo seu lado mais doce.<br />
Há uma lacuna <strong>de</strong> trinta e cinco anos na narrativa da vida <strong>de</strong> Cedro Cedrus,<br />
<strong>de</strong>pois Angélico. Não tive ânimo <strong>de</strong> pesquisar esse período obscuro estando<br />
tão longe no tempo e no espaço e um tanto carente <strong>de</strong> fé na crença <strong>de</strong> que o<br />
esforço <strong>de</strong>spendido na diferenciação das meta<strong>de</strong>s do prazer possa ter alguma<br />
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importância. Mas posso assegurar que, nesse período, nosso herói teve um<br />
longo período <strong>de</strong> gozos, refina<strong>dos</strong> ou grosseiros, breves ou pontuais; pois a<br />
vida é assim. Acabou daquele jeito, no seu <strong>de</strong>leite final, feliz com a sua<br />
esperteza, <strong>de</strong>selegante e rasteira.<br />
Açucena Cedrus não teve lacunas na sua vida: foi curta e intensa como, no<br />
essencial, aqui foi narrado. Abreviada nos exageros do amor e da paixão, foi<br />
intensa <strong>de</strong> fato, pois foi por conta <strong>de</strong> tudo isso que morreu antes do que podia<br />
se tivesse evitado o <strong>de</strong>scuido no exame das maçãs. Cedro Cedrus, <strong>de</strong>pois<br />
Angélico, morreu sem ter tido tempo <strong>de</strong> pensar se errou na opção. Devem estar<br />
ambos no céu.<br />
Eis a forma que encontrei para expor as partes da fruta vermelha, em forma <strong>de</strong><br />
coração. O leitor que julgue a valia das opções com seu fino paladar,<br />
temperado nos prazeres que provou, pois não há quem isso não tenha feito; os<br />
santos e os pecadores<br />
Qualquer que seja sua escolha, hei <strong>de</strong> dar-lhe razão.<br />
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A DEGUSTAÇÃO DA<br />
MAÇA OU OS<br />
INFORTÚNIOS DO<br />
PRAZER é um romance<br />
que mescla a ficção do<br />
realismo fantástico com<br />
algumas divagações<br />
filosóficas <strong>de</strong> fundo<br />
hedonista. Na forma, há<br />
um ritmo ligeiramente<br />
inspirado na linguagem da<br />
literatura <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l e, no<br />
conteúdo, transparece uma<br />
clara homenagem a<br />
autores como Guimarães<br />
Rosa e Eça <strong>de</strong> Queiroz. Um<br />
misterioso marquês <strong>de</strong><br />
Sa<strong>de</strong> ressuscitado e<br />
<strong>de</strong>caído é,<br />
indisfarçadamente, uma<br />
das personagens principais.<br />
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