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Que América Latina se sincere - Acervo Paulo Freire

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autópsia realizada na Argentina, confirmadas por uma <strong>se</strong>gunda autópsia realizada no<br />

Uruguai 20 .<br />

Uma intensidade me “tomou” quando escutei pela primeira vez candombe. Os<br />

tambores ecoaram em meu peito como uma extensão da batida do coração. Percebi uma<br />

densidade diferente. Anos depois, a leitura do Atlântico negro de Paul Gilroy me levou a<br />

uma reflexão sobre a densidade das memórias da escravidão nas culturas expressivas afro-<br />

atlânticas produzidas “nas vísceras de um corpo alternativo de expressão cultural e política<br />

que considera o mundo criticamente do ponto de vista de sua transformação<br />

emancipadora” (2001, p. 99). Utopia que <strong>se</strong> inicia na densidade da história de um povo de<br />

quem lhe foi negada por muito tempo sua humanidade e <strong>se</strong>u poder de fala. Embora fos<strong>se</strong><br />

indizível, o terror racial da escravidão não era inexprimível e os traços residuais de sua<br />

expressão necessariamente dolorosa ainda contribuem para memórias históricas inscritas e<br />

incorporadas “no cerne volátil da criação cultural afro-atlântica” (GILROY, 2001).<br />

A história do candombe como prática cultural vinculada aos africanos escravizados<br />

e <strong>se</strong>us descendentes no Rio de la Plata apre<strong>se</strong>ntava-<strong>se</strong> opaca para mim, motivo que<br />

despertou um <strong>se</strong>ntimento de injustiça. Por que fomos privados dela? A única imagem dos<br />

negros em Buenos Aires que identificava em minhas lembranças referia-<strong>se</strong> às imagens da<br />

época colonial, a personagens “congelados” no tempo e no espaço que apareciam no relato<br />

histórico oficial transmitido pelos textos escolares: mulheres negras vendendo mazamorra<br />

e homens negros vendendo velas, tocando e dançando candombes na Plaza de la Victoria<br />

lá pelo ano de 1810, quando <strong>se</strong> de<strong>se</strong>nvolvia a chamada Revolução de Maio, em que os<br />

negros apareciam como espécie de estátuas de cera, ornamentando a paisagem branca das<br />

disputas independentistas.<br />

Minha in<strong>se</strong>rção no mundo do candombe <strong>se</strong> deu através de apreender e me empapar<br />

dos detalhes, do ethos. O momento do templado dos tambores era especial: a roda, as<br />

conversas, os risos em torno da fogueira e dos tambores deitados na rua, aquecendo-<strong>se</strong> para<br />

transformar sua matéria mundana em cavalo da ancestralidade. A mesma <strong>se</strong>nsação<br />

prazerosa e de entrega experimentei anos depois com as religiões de matriz africana no<br />

Brasil e no Uruguai.<br />

Na etapa inicial de pesquisa, trabalhei junto a um grupo de afro-uruguaios na<br />

Argentina que legitimava o candombe como cultura expressiva negra em Buenos Aires,<br />

20 Na primeira autópsia, a morte alegada é por alto consumo de cocaína. Na <strong>se</strong>gunda, pode-<strong>se</strong> comprovar que<br />

o cadáver apre<strong>se</strong>ntava lesões por golpes, não registradas na primeira autópsia.<br />

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