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OS EVENTOS NESSE LIVRO SÃO REAIS.<br />

NOMES E LUGARES FORAM MUDADOS PARA PROTEGER OS SEIS<br />

LORIEN QUE CONTINUAM ESCONDIDOS.<br />

ENCARE ESSE COMO SEU PRIMEIRO AVISO.<br />

OUTRAS CIVILIZAÇÕES EXISTEM.<br />

ALGUMAS DELAS PROCURAM TE DESTRUIR.<br />

A porta começa a balançar. Ela é fina e fraca, feita de pedaços de bambu<br />

amarrados com tiras esfarrapadas de corda. O tremor é sutil e pára quase<br />

imediatamente. Eles levantam as cabeças para ouvir; um garoto de catorze<br />

anos e um homem de cinqüenta, que todos pensam que é pai do menino, mas<br />

que, na verdade, nasceu próximo a uma floresta diferente, em um planeta<br />

diferente, a centenas de anos-luz de distância. Eles estão deitados sem camisa<br />

em lados opostos da cabana; mosquiteiros cobrem cada cama. Eles ouvem um<br />

barulho distante que parece com o som de algum animal quebrando galhos,<br />

mas que, nesse caso, soa como se uma árvore inteira estivesse sendo<br />

quebrada.<br />

— O que foi isso?- o garoto pergunta.<br />

— Shh- o homem responde.<br />

Eles ouvem o som dos insetos, nada mais. O homem vira-se em direção ao<br />

lado da cabana onde a trepidação recomeça. Um tremor longo, mais firme e<br />

outro barulho, dessa vez mais próximo. O homem coloca seus pés no chão e<br />

caminha lentamente para a porta. Silêncio. Ele respira profundamente à<br />

medida que move sua mão devagar em direção ao trinco. O garoto senta-se.<br />

— Não - o homem sussurra e naquele instante a lâmina de uma espada, longa<br />

e reluzente, feita de um material branco brilhante não encontrado na Terra,<br />

atravessa a porta e afunda no peito do homem. A lâmina projeta-se quinze<br />

centímetros além de suas costas e rapidamente é puxada. O homem grunhe. O<br />

garoto arfa. O homem toma fôlego e profere uma palavra: “Corra”. Ele cai sem<br />

vida no chão.<br />

O garoto salta da cama, irrompendo pela parede dos fundos. Ele não se<br />

incomoda em usar a porta ou uma janela; ele literalmente corre em direção à<br />

parede, a qual se despedaça como se fosse feita de papel, embora, na<br />

realidade, seja de um mogno africano forte e duro. Ele rompe pela noite no<br />

Congo, saltando por cima de árvores, correndo numa velocidade em torno de


100 km/h. Sua visão e audição são sobre-humanas. Ele esquiva-se das<br />

árvores, rasga videiras enlaçadas, salta sobre córregos com um único passo.<br />

Passos pesados estão logo atrás dele, tornando-se mais próximos a cada<br />

segundo. Seus perseguidores também possuem habilidades. E eles têm algo<br />

com eles. Algo que ele apenas imagina o que é, que ele nunca acreditou que<br />

veria na Terra.<br />

O barulho aproxima-se. O garoto ouve um rugido baixo e intenso. Ele sabe: o<br />

que está atrás dele está tornando-se mais veloz. Ele vê uma clareira na floresta<br />

a sua frente. Quando chega lá, o garoto vê um enorme desfiladeiro de 100<br />

metros de extensão e 100 metros de profundidade, com um rio em sua base.<br />

As margens do rio são cobertas com imensas pedras. Pedras que o<br />

despedaçariam, caso ele caísse em cima. Sua única chance é atravessar o<br />

desfiladeiro. Ele terá um pequeno trecho de corrida para ganhar impulso e<br />

apenas uma chance. Uma chance para salvar sua vida. Mesmo para ele, ou<br />

para qualquer outro parecido com ele na Terra, é um salto praticamente<br />

impossível. Voltar para trás, ir para baixo ou tentar lutar contra eles significaria<br />

uma morte certa. Ele tem apenas uma opção.<br />

Há um rugido ensurdecedor atrás dele. Eles estão entre seis e nove metros de<br />

distância. Ele volta cinco passos para trás e corre- e assim que chega à borda,<br />

ele decola e começa a voar sobre o desfiladeiro. Ele permanece no ar três ou<br />

quatro segundos. Ele grita; seus braços estendidos para frente, esperando pela<br />

salvação ou pelo final. Ele atinge o chão e caiu para frente, parando na base de<br />

uma árvore gigantesca. Ele sorri. O garoto não consegue acreditar no que fez,<br />

que sobreviveu. Não querendo que o vejam e sabendo que precisa ficar mais<br />

distante deles, o garoto levanta-se. Ele tem que continuar correndo.<br />

Ele vira-se em direção a floresta. Ao mesmo tempo em que se movimenta, uma<br />

mão enorme envolve sua garganta. Ele é levantado do chão. Ele debate-se,<br />

chuta, tenta afastar-se, mas sabe que é em vão, que tudo está terminado. Ele<br />

deveria ter imaginado que eles estariam em ambos os lados de desfiladeiro e<br />

que, uma vez que o encontrassem, ele não escaparia. O Mogadorian levanta o<br />

garoto tão alto que pode ver seu peito e o amuleto que está pendurado em seu<br />

pescoço; amuleto que somente ele e os indivíduos de sua espécie podem usar.<br />

O Mogadorian arranca o amuleto e coloca-o em algum lugar dentro do manto<br />

negro que está vestindo e, quando sua mão ressurge, está segurando a<br />

espada de metal branco reluzente. O garoto olha dentro dos olhos negros<br />

enormes, profundos e sem emoção do Mogadorian e diz:<br />

— Os Legados vivem. Eles se encontrarão e, quando estiverem prontos, te<br />

destruirão.


O Mogadorian solta uma risada desagradável, de zombaria. Ele levanta a<br />

espada, a única arma no universo que pode quebrar o feitiço que tem protegido<br />

o garoto até aquele momento, e que ainda protege os outros. A lâmina inflama<br />

em uma chama prateada à medida que é apontada para o céu, como se<br />

estivesse viva, pressentindo sua missão e animando-se por antecipação. No<br />

momento em que desce, um arco de luz atravessa a escuridão da floresta e o<br />

garoto ainda acredita que uma parte dele sobreviverá e voltará para casa. Ele<br />

fecha seus olhos um pouco antes da espada colidir com ele. E então termina.<br />

Capítulo 1<br />

NO COMEÇO, NÓS ÉRAMOS NOVE. Nós partimos quando éramos jovens,<br />

quase muito jovens para lembrar.<br />

Quase.<br />

Disseram-me que o chão tremia, que os céus estão cheios de luzes e<br />

explosões. Nós estávamos naquele período de duas semanas no ano em que<br />

as duas luas repousavam em lados opostos do horizonte. Era uma época de<br />

celebração, e, em um primeiro momento, as explosões foram confundidas com<br />

fogos de artifício. Mas não eram. Estava quente, uma brisa suave soprava da<br />

água. Sempre me contavam do tempo: que estava calor... existia uma brisa<br />

suave. Eu nunca entendi porque isso importava.<br />

O que eu lembro mais vividamente é o jeito como minha avó estava naquele<br />

dia. Inquieta e triste. Havia lágrimas em seus olhos. Meu avô estava atrás<br />

dela. Eu lembro o modo como os óculos dele captavam a luz do céu. Houve<br />

abraços, palavras ditas por cada um deles. Não me lembro quais foram. Nada<br />

me assombra mais.<br />

Levou um ano para chegarmos aqui. Eu tinha cinco anos quando isso ocorreu.<br />

Nós tínhamos que nos assimilar à cultura daqui, antes de retornar a Lorien,<br />

quando fosse possível viver lá novamente. Nós nove deveríamos nos espalhar<br />

e tomar cada um seu próprio caminho. Por quanto tempo, ninguém sabia.<br />

Ainda não sabemos. Nenhum deles sabe onde estou e eu não sei onde eles<br />

estão ou como são agora. Esse é o modo como nos protegemos, pois o feitiço<br />

que foi colocado sobre nós quando partimos- um feitiço garantindo que só<br />

poderemos ser mortos na ordem dos nossos números- necessita que fiquemos<br />

separados. Se nos unirmos, o feitiço é quebrado.<br />

Quando um de nós é encontrado e morto, uma cicatriz circular aparece no<br />

tornozelo direito dos que ainda permanecem vivos. No nosso tornozelo<br />

esquerdo há uma pequena cicatriz- formada quando o feitiço foi lançado- igual<br />

a do amuleto que cada um de nós usa. As cicatrizes circulares são outra parte


do feitiço. Um sistema de alerta que nos revela quando encontramos uns com<br />

os outros ou quando seremos os próximos que eles procurarão. A primeira<br />

cicatriz apareceu quando eu tinha nove anos. Ela me acordou, queimando em<br />

minha carne. Nós vivíamos no Arizona, em uma pequena cidade na fronteira<br />

com o México. Eu acordei gritando no meio da noite, em agonia, aterrorizado<br />

pelo modo como a cicatriz queimava o meu corpo. Foi o primeiro sinal de que<br />

os Mogadorians finalmente nos encontraram na Terra, e o primeiro sinal de que<br />

nos estávamos em perigo. Até o momento em que a cicatriz apareceu, eu tinha<br />

quase me convencido que minhas memórias estavam erradas, que as coisas<br />

que Henri havia me contado eram mentira. Eu queria ser uma criança normal<br />

vivendo uma vida normal, mas depois eu soube, que apesar de qualquer<br />

dúvida ou discussão, que eu não era. Nós nos mudamos para Minnesota no dia<br />

seguinte.<br />

A segunda cicatriz apareceu quando eu tinha doze anos. Eu estava na escola,<br />

no Colorado, participando de um campeonato de soletrar. Tão logo a dor<br />

começou, eu já sabia o que estava acontecendo, o que tinha acontecido com o<br />

Número 2. A dor era excruciante, mas tolerável dessa vez. Eu teria<br />

permanecido no palco, mas o calor incendiou minha meia. O professor que<br />

estava comandando o campeonato apagou o fogo com um extintor de incêndio<br />

e apressou-se em me levar para o hospital. O médico no pronto-socorro viu a<br />

primeira cicatriz e chamou a polícia. Quando Henri apareceu, eles ameaçaram<br />

prendê-lo por maus-tratos. Mas, como ele não estava perto de mim quando a<br />

segunda cicatriz apareceu, eles o liberaram. Nós pegamos o carro e fomos<br />

embora, dessa vez para Maine. Nós deixamos tudo o que tínhamos, exceto o<br />

baú Loric que Henry levava em todas as mudanças. Todas as vinte-e-uma<br />

mudanças, até aquele momento.<br />

A terceira cicatriz apareceu a uma hora atrás. Eu estava sentando em um<br />

barco que pertence aos pais do garoto mais popular da minha escola, e onde<br />

sem o conhecimento deles, o filho estava dando uma festa. Eu nunca havia<br />

sido convidado antes para nenhuma festa da escola. Eu sempre me mantive<br />

sozinho, porque sabia que a qualquer momento partiria. Mas eu tinha ficado<br />

quieto por dois anos. Henri não tinha visto notícias de que os Mogadorians<br />

estariam atrás de nós, ou de que deveríamos ficar alertas em relação a eles.<br />

Então, fiz alguns amigos. E um deles me apresentou ao garoto que estava<br />

dando a festa. Todos nos encontramos nas docas. Havia três geladeiras,<br />

música, garotas que eu admirava há muito tempo, mas com quem nunca tinha<br />

falado, mesmo querendo. Nós partimos das docas e percorremos uns 800<br />

metros no Golfo do México. Eu estava sentado com meus pés na água,<br />

conversando com uma garota atraente, de cabelos negros e olhos azuis,<br />

chamada Tara, quando senti que tinha começado. A água ao redor da minha<br />

perna começou a ferver e meu tornozelo incandesceu no local onde a cicatriz<br />

estava surgindo. O terceiro símbolo Lorien, o terceiro aviso. Tara começou a


gritar e as pessoas começaram a se reunir ao meu redor. Eu sabia que não<br />

havia como explicar aquilo. E eu sabia que teríamos que partir imediatamente.<br />

Os riscos eram maiores naquele momento. Eles encontraram o Número 3,<br />

onde quer que ele ou ela estivesse, e o Número 3 estava morto. Então, eu<br />

acalmei Tara, beijei sua bochecha, disse que tinha sido muito bom conhecê-la<br />

e que desejava que ela tivesse uma vida longa e bela. Pulei do barco e<br />

comecei a nadar, submerso todo o tempo- exceto para respirar uma vez no<br />

meio do caminho- tão rápido quanto eu pude até chegar à margem. Eu corri<br />

paralelamente a estrada, no meio das árvores, me movendo na mesma<br />

velocidade que os carros. Quando cheguei em casa, Henri estava olhando o<br />

banco de dados de exploradores e monitores, que ele usava para pesquisar<br />

notícias do resto do mundo e as atividades policiais da nossa área. Ele soube<br />

sem que eu dissesse nenhuma palavra e logo levantou minhas calças<br />

molhadas para ver as cicatrizes.<br />

No começo éramos um grupo de nove.<br />

Três morreram.<br />

Seis de nós ainda permanecem.<br />

Eles estão nos caçando e não pararão até matar todos nós.<br />

Eu sou o Número Quatro.<br />

Eu sei que serei o próximo.<br />

Capítulo 2<br />

EU PERMANEÇO NO MEIO DA ESTRADA E ENCARO A CASA. Ela é rosa,<br />

parecendo um glacê de bolo, situada a uns três metros do chão sobre palafitas<br />

de madeira. Uma palmeira oscila na frente. Atrás da casa, um píer estende-se<br />

vinte metros dentro do Golfo do México. Se a casa fosse um quilômetro e meio<br />

mais para o sul, o píer estender-se-ia sobre o oceano Atlântico.<br />

Henry sai da casa carregando as últimas caixas, algumas que nem foram<br />

desempacotadas da nossa última mudança. Ele tranca a porta, depois deixa as<br />

chaves na caixa de correio ao lado. São duas horas da manhã. Ele está<br />

usando shorts cáqui e uma camiseta pólo preta. Ele está muito bronzeado, com<br />

um rosto não barbeado que parece abatido. Ele também está triste por ter que<br />

partir. Ele lança as últimas caixas atrás do caminhão, junto com o resto de<br />

nossas coisas.<br />

— É isso- ele diz.<br />

Eu confirmo com a cabeça. Nós paramos, observamos a casa e escutamos o<br />

vento passando pelas folhas da palmeira. Estou segurando um saco com aipo.


— Sentirei saudades desse lugar- eu digo- Bem mais do que dos outros.<br />

— Eu também.<br />

— Hora de queimar?<br />

— Sim, você quer fazer isso, ou quer que eu faça?<br />

— Eu faço.<br />

Henri pega sua carteira e a coloca no chão. Eu pego a minha e faço o mesmo.<br />

Ele vai em direção ao caminhão e volta com os passaportes, certidões de<br />

nascimento, cartões do seguro social, talões de cheque, cartões de crédito e de<br />

banco e também os coloca no chão. Todos os documentos e materiais<br />

relacionados à nossa identidade aqui, que são falsificados. Eu trago do<br />

caminhão uma pequena garrafa com gasolina que guardamos para<br />

emergências. Eu despejo a gasolina em cima da pilha de papéis. Meu nome<br />

atual é Daniel Jones. Minha história é que cresci na Califórnia e me mudei para<br />

cá devido ao trabalho do meu pai como programador de computadores. Daniel<br />

Jones está a ponto de desaparecer. Eu acendo um fósforo e lanço-o no chão; a<br />

pilha pega fogo. Outra vida minha, terminada. Como sempre fazemos, Henri e<br />

eu ficamos parados observando o fogo. Adeus, Daniel- eu penso- foi bom te<br />

conhecer. Quando o fogo diminui, Henri olha para mim.<br />

— Temos que ir.<br />

— Eu sei.<br />

— Essas ilhas nunca foram seguras. É muito difícil partir rapidamente, muito<br />

difícil escapar daqui. Foi tolice nossa vir para cá.<br />

Eu confirmo. Ele está certo, e eu sei disso. Mas, estou relutante em partir. Nós<br />

viemos para cá porque eu quis, e pela primeira vez, Henri me deixou escolher<br />

para onde iríamos. Nós ficamos aqui por nove meses, e esse foi o período mais<br />

longo que nós permanecemos em um lugar desde que partimos de Lorien. Eu<br />

sentirei saudades do sol e do calor. Sentirei saudades da lagartixa que eu via<br />

todas as manhãs na parede enquanto tomava meu café da manhã. Embora<br />

haja literalmente milhões de lagartixas no sul da Florida, eu juro que essa me<br />

seguia até a escola e parecia estar em todos os lugares em que eu estava.<br />

Sentirei saudades das trovoadas que pareciam surgir do nada, do modo como<br />

tudo ficava calmo e quieto de manhã cedo, horas antes das andorinhas<br />

chegarem. Sentirei saudades dos golfinhos que, algumas vezes, se<br />

alimentavam no pôr-do-sol. Sentirei saudades até do cheiro de enxofre


proveniente do apodrecimento das algas na base da colina, que enchia a casa<br />

e penetrava nos nossos sonhos enquanto dormíamos.<br />

— Livre-se do aipo. Estarei esperando no caminhão- Henri diz- Está na hora.<br />

Eu entro em um bosque localizado a direita do caminhão. Já há três cervos<br />

esperando. Esvazio o saco de aipo em suas patas, agacho e acaricio cada um<br />

deles. Eles deixam; já faz muito tempo que eles superaram o medo. Um deles<br />

levanta sua cabeça e olha para mim. Olhos negros e inexpressivos me fitam.<br />

Eu sinto quase como se ele quisesse me dizer algo. Um arrepio percorre minha<br />

espinha. Ele abaixa a cabeça e continua comendo.<br />

— Boa sorte, pequenos amigos- eu digo. Vou para o caminhão e me acomodo<br />

no banco de passageiros.<br />

Nós vemos a casa tornando-se pequena nos retrovisores laterais até que Henri<br />

entra na estrada principal e a casa desaparece. É sábado. Me pergunto o que<br />

aconteceu na festa sem mim. O que eles comentaram sobre o modo como fui<br />

embora e o que dirão na segunda-feira quando virem que eu não fui à escola.<br />

Gostaria de poder dizer adeus. Nunca mais verei ninguém que eu conheci aqui.<br />

Nunca mais falarei com nenhum deles. E eles nunca saberão quem eu sou e<br />

porque parti. Depois de alguns poucos meses, ou talvez poucas semanas,<br />

nenhum deles provavelmente pensará em mim.<br />

Antes de pegarmos a estrada, Henri pára o caminhão para abastecer.<br />

Enquanto ele mexe na bomba de combustível, eu começo a olhar um atlas que<br />

nós guardamos entre os assentos do caminhão. Nós temos esse atlas desde<br />

que chegamos a esse planeta. Nele há linhas desenhadas ligando todos os<br />

lugares onde já moramos. Nesse momento, há linhas cruzando todo os<br />

Estados Unidos. Nós sabemos que deveríamos nos livrar do atlas, mas ele é a<br />

única recordação que temos de nossa vida juntos. Pessoas normais guardam<br />

fotos, vídeos e diários; nós temos o atlas. Quando o pego, observo que Henri<br />

desenhou uma nova linha partindo da Flórida em direção a Ohio. Quando eu<br />

penso em Ohio, imagino vacas, milho e pessoas agradáveis. Eu sei que as<br />

placas dos carros de Ohio dizem: O CORAÇÃO DE TODOS. O que “todos”<br />

significa, eu não sei, mas espero descobrir.<br />

Henri volta para o caminhão. Ele comprou dois copos de soda e um saco de<br />

batatinhas. Ele começa a dirigir em direção a U.S. 1, a qual nos levará para o<br />

norte. Ele apanha o atlas.<br />

— Você acha que tem pessoas em Ohio?- eu brinco.<br />

Ele ri.


— Eu imagino que pelo menos algumas. E nós teremos muita sorte se<br />

encontrarmos carros e uma TV lá.<br />

Eu assinto. Talvez não será tão ruim quanto eu imagino.<br />

— O que você acha do nome “John Smith”?- eu pergunto.<br />

— É o que você escolheu?<br />

— Acho que sim- eu digo. Eu nunca fui John ou Smith antes.<br />

— Não podia ser mais comum. Eu diria que é um prazer conhecê-lo, Sr. Smith.<br />

Eu sorrio.<br />

— Sim, acho que gosto de “John Smith”.<br />

— Criarei seu perfil quando pararmos.<br />

Um quilômetro e meio mais tarde e estamos fora da ilha, cruzando a ponte. A<br />

água passa embaixo de nós. Ela está calma e a luz da lua cintila nas pequenas<br />

ondas, criando manchas brancas em suas cristas. À direita é o oceano, à<br />

esquerda o golfo; na essência são a mesma água, porém com dois nomes<br />

diferentes. Eu tenho vontade de chorar, mas não choro. Não que eu esteja tão<br />

triste em deixar a Florida, mas estou cansado de fugir. Cansado de inventar um<br />

novo nome a cada seis meses. Cansado de casas novas, escolas novas. Me<br />

pergunto se um dia será possível pararmos.<br />

Capítulo 3<br />

PARAMOS PARA COMPRAR ALIMENTOS, GASOLINA E CELULARES<br />

NOVOS. Vamos até uma parada de caminhões, onde comemos carne cozida,<br />

macarrão e queijo, uma das poucas coisas que Henri reconhece como sendo<br />

superior ao que tínhamos em Lorien. Enquanto comemos, ele cria novos<br />

documentos em seu laptop, usando os novos nomes. Ele os imprimirá quando<br />

chegarmos e antes de qualquer um nos conhecer, seremos quem dizemos ser.<br />

— Você tem certeza sobre John Smith?- ele diz.<br />

— Sim.<br />

— Você nasceu em Tuscaloosa no Alabama.<br />

Eu rio.<br />

— De onde você tirou isso?<br />

Ele ri e aponta duas mulheres sentadas em uma mesa próxima. As duas são<br />

extremamente gostosas. Uma delas está com uma camiseta em que se lê<br />

FAZEMOS MELHOR EM TUSCALOOSA.


— E da próxima vez é para lá que nós vamos- ele diz.<br />

— Por mais estranho que possa parecer, espero que fiquemos em Ohio por<br />

bastante tempo.<br />

— Verdade. Você gosta da idéia de Ohio?<br />

— Eu gosto da idéia de fazer alguns amigos, ou de freqüentar a mesma escola<br />

mais do que alguns meses, de talvez realmente ter uma vida. Eu comecei a<br />

fazer isso na Florida. Foi legal e, pela primeira vez desde que chegamos à<br />

Terra, eu me senti quase normal. Eu gostaria de encontrar um lugar e lá<br />

permanecer.<br />

Henri parece pensativo.<br />

— Você olhou suas cicatrizes hoje?<br />

—Não, por quê?<br />

— Porque isso não é sobre você. É sobre a sobrevivência da sua espécie, que<br />

foi quase que totalmente extinta; é sobre te manter vivo. A todo o momento que<br />

um de nós morre- a todo o momento que um de vocês, os Garde, morre-<br />

nossas chances diminuem. Você é o Número Quatro, você é o próximo na<br />

ordem. Tem uma espécie inteira de assassinos cruéis te perseguindo. Nós<br />

partiremos ao primeiro sinal de problemas e eu não vou discutir isso com você.<br />

Henri dirige o tempo todo. Contando as paradas e a criação dos nossos<br />

documentos, já se passam 30 horas. Gasto a maior parte do tempo cochilando<br />

ou jogando vídeo-game. Devido aos meus reflexos, eu posso zerar a maioria<br />

dos jogos rapidamente. O máximo que eu gasto em um jogo é um dia. O que<br />

eu mais gosto são os jogos de guerras de alienígenas e os espaciais. Finjo que<br />

estou de volta a Lorien, lutando contra os Mogadorians, derrubando-os e<br />

transformando-os em cinzas. Henri acha isso esquisito e tenta me<br />

desencorajar. Ele diz que precisamos viver no mundo real, onde guerra e morte<br />

não são fingimento. Quando termino meu último jogo, eu olho para cima. Estou<br />

cansado de ficar sentado no caminhão. O relógio no painel indica 07h58min.<br />

Eu bocejo, esfregando os olhos.<br />

— Falta muito?<br />

— Estamos quase lá- Henri diz.<br />

Está escuro lá fora, mas há um brilho pálido a oeste. Nós passamos por<br />

fazendas com cavalos e gado, depois por campos vazios, e depois deles há<br />

árvores tão longe quanto os olhos podem ver. É exatamente o que Henri quer,<br />

um lugar quieto para passarmos despercebidos. Uma vez por semana, ele<br />

percorre a internet por seis, sete, oito horas para atualizar a lista de possíveis<br />

casas no país para morarmos, que se encaixam nos seguintes critérios:


isolada, rural e com disponibilidade imediata. Ele me diz que fez três tentativas-<br />

uma na Dakota do Sul, uma no Novo México e uma no Arkansas- até alugar a<br />

casa para onde estamos indo.<br />

Poucos minutos mais tarde nós vemos as luzes dispersas que anunciam a<br />

cidade. Passamos por uma placa que diz:<br />

BEM-VINDOS A PARAÍSO, OHIO- POPULAÇÃO: 5.243 hab.<br />

— Uau- eu digo- Esse lugar consegue ser menor do que aquele em que<br />

moramos em Montana.<br />

Henri está sorrindo.<br />

— Você acha que o paraíso é para quem?<br />

— Vacas, talvez? Espantalhos?<br />

Passamos por um posto de gasolina, um lava-rápido, um cemitério. Depois as<br />

casas começam; casas de madeira separadas umas das outras mais ou menos<br />

uns 10 metros. Decorações de Halloween estão penduradas nas janelas da<br />

maioria delas. Há caminhos cruzando os pequenos jardins, ligando as portas<br />

da frente das casas à calçada. Existe uma rotatória no centro da cidade e no<br />

meio dela há uma estátua de um homem em um cavalo segurando uma<br />

espada. Henri pára. Quando olhamos para aquilo, nós rimos, esperando que<br />

ninguém mais com espadas apareça por aqui. Ele continua a rotatória e o<br />

sistema de GPS no painel diz para fazermos uma curva. Vamos para oeste,<br />

fora da cidade.<br />

Dirigimos por seis quilômetros antes de virarmos à esquerda e entrarmos em<br />

uma estrada de cascalhos. Passamos por campos abertos que provavelmente<br />

ficam cheios de milho no verão e depois atravessamos uma floresta densa por<br />

aproximadamente um quilômetro e meio. E, então, chegamos. Coberta pela<br />

vegetação, há uma rústica caixa de correio prata com letras pretas pintadas ao<br />

lado em que se lê 17 OLD MILL RD.<br />

— A casa mais próxima é a três quilômetros- Henri diz, virando.<br />

Ervas-daninhas cresceram em todo o caminho de cascalho, o qual também<br />

está coberto de buracos cheios de água suja. Ele pára e desliga o caminhão.<br />

— Que carro é aquele?- eu digo, apontando para o utilitário preto que está na<br />

frente de onde Henri estacionou o caminhão.<br />

— Suponho que seja da corretora imobiliária.<br />

A casa está encoberta pelas árvores. No escuro, parece misteriosa, como se a<br />

última pessoa que viveu aqui fugiu ou foi expulsa. Eu saio do caminhão. O


motor ainda ruge e eu posso sentir o calor saindo dele. Eu pego minhas malas<br />

e fico lá esperando.<br />

— O que você acha?- Henri pergunta.<br />

A casa tem um andar. Ripas de madeira. A maior parte da pintura branca está<br />

lascada. Uma das janelas da frente está quebrada. O telhado é coberto com<br />

telhas pretas, que parecem deformadas e frágeis. Três degraus de madeira<br />

levam a uma pequena varanda na qual há cadeiras cambaleantes. O quintal é<br />

grande e bagunçado. Há muito tempo que a grama foi cortada.<br />

— Parece o paraíso- eu digo.<br />

Nós caminhamos para a casa juntos. Enquanto andamos, uma mulher loira<br />

bem-vestida mais ou menos da idade de Henri aparece na porta. Ela está<br />

usando um terninho e segurando uma prancheta e uma pasta; um Black Berry<br />

está preso em sua cintura. Ela sorri.<br />

— Sr Smith?<br />

—Sim- Henri diz.<br />

— Sou Annie Hart, corretora imobiliária da Paradise Realty. Nós nos falamos<br />

por telefone. Tentei ligar para o senhor mais cedo, mas seu celular parecia<br />

estar desligado.<br />

— Sim, com certeza. Infelizmente a bateria acabou no caminho.<br />

— Ah, odeio quando isso acontece- ela diz, caminha até nós e aperta a mão de<br />

Henri. Ela pergunta meu nome e eu digo a ela, embora eu esteja tentado, como<br />

sempre estou, a dizer-lhe apenas “Quatro”. Enquanto Henri assina o contrato,<br />

ela pergunta minha idade e me diz ter uma filha da mesma idade, que estuda<br />

na escola da cidade. Ela é muito animada, amigável e claramente ama<br />

conversar. Henri devolve para ela o contrato e nós três entramos na casa.<br />

Lá dentro a maior parte da mobília está coberta por lençóis brancos. Os móveis<br />

que não estão cobertos têm uma espessa camada de pó e insetos mortos. As<br />

telas nas janelas parecem quebráveis ao toque e as paredes estão cobertas de<br />

painéis de madeira baratos. Há dois quartos, uma cozinha pequena forrada<br />

com linóleo verde-limão, um banheiro. A sala de estar é grande e retangular,<br />

situada na parte da frente da casa. Há uma lareira no canto mais distante. Eu<br />

vou até o quarto menor e lanço minha mala sobre a cama. Há um enorme<br />

pôster desbotado de um jogador de futebol americano usando um uniforme<br />

laranja-brilhante. Ele está no meio de um passe e parece que está prestes a<br />

ser esmagado por um homem enorme com um uniforme preto e dourado. No<br />

pôster está escrito: BERNIE KOSAR ,QUARTERBACK ,CLEVELAND BROWN.<br />

— Venha dizer boa-noite para a Sra. Hart- Henri grita da sala.


A Sra Hart está parada na porta junto com Henri. Ela me diz que devo procurar<br />

sua filha na escola; que talvez possamos ser amigos. Eu sorrio e digo que sim,<br />

que seria legal. Depois que ela vai embora, nós imediatamente começamos a<br />

descarregar o caminhão. Dependendo de quão rápido temos que partir de um<br />

lugar, nós viajamos mais leves- levando apenas as roupas do corpo, o laptop<br />

de Henri e o detalhadamente entalhado baú Loric que é levado para qualquer<br />

lugar que vamos- ou podemos carregar algumas outras coisas- geralmente os<br />

computadores e equipamentos extras do Henri, os quais ele usa para montar<br />

um perímetro de segurança e procurar na rede por notícias e eventos<br />

relacionados a nós. Dessa vez trouxemos o baú, dois computadores muito<br />

potentes, quatro monitores e quatro câmeras. Nós também trouxemos algumas<br />

roupas, embora a maioria das roupas que usávamos na Flórida não seja<br />

apropriada para Ohio. Henri leva o baú para seu quarto e nós colocamos todos<br />

os equipamentos no porão, onde possíveis visitantes não verão. Uma vez que<br />

tudo está dentro da casa, começamos a instalar as câmeras e ligar os<br />

monitores.<br />

— Nós não teremos internet até amanhã de manhã. Mas se você quiser ir à<br />

escola amanhã, posso imprimir todos seus novos documentos.<br />

— Se eu ficar, terei que te ajudar a limpar esse lugar e terminar as instalações?<br />

— Sim.<br />

— Vou para a escola- eu digo.<br />

— Então é bom você ter uma boa noite de sono.<br />

Capítulo 4<br />

OUTRA IDENTIDADE NOVA, OUTRA ESCOLA NOVA. Eu perdi as contas de<br />

quantas escolas já freqüentei ao longo dos anos. Quinze? Vinte? Sempre uma<br />

cidade pequena, uma escola pequena, sempre a mesma rotina. Novos alunos<br />

chamam atenção. Ás vezes, eu questiono nossa estratégia de nos<br />

escondermos em cidades pequenas, porque nelas é difícil, quase impossível,<br />

passar despercebido. Mas eu conheço a lógica de Henri: é impossível para<br />

eles passarem despercebidos também.<br />

A escola é a cinco quilômetros da nossa casa. Henri me leva de caminhão de<br />

manhã. A escola é menor do que a maioria das outras que freqüentei e é<br />

simples, com um andar, grande e rebaixada. Um mural de um pirata com uma<br />

faca entre os dentes cobre a parede externa, ao lado da porta de entrada.<br />

— Então você é um pirata agora?- Henry diz ao meu lado.<br />

— Parece que sim- eu respondo.<br />

— Você sabe o que fazer- ele diz


— Essa não é minha primeira vez.<br />

— Não mostre sua inteligência. Isso fará com que eles se ofendam com você.<br />

— Não sonharia com isso.<br />

— Não se destaque ou chame muita atenção.<br />

— Serei apenas uma mosca na parede.<br />

— E não machuque ninguém. Você é muito mais forte do que eles.<br />

— Eu sei.<br />

— O mais importante: fique sempre preparado. Preparado para partir a<br />

qualquer momento. O que tem na sua mochila?<br />

— Suprimento de frutas secas e castanhas para cinco dias. Meias extras e<br />

roupas quentes. Capa de chuva. Um GPS portátil. Uma faca disfarçada de<br />

caneta.<br />

— Mantenha com você em todos os momentos- ele respira profundamente- e<br />

fique de olho em todos os sinais. Seus Legados vão aparecer a qualquer hora.<br />

Esconda-os a todo custo e me ligue imediatamente.<br />

— Eu sei, Henri.<br />

— A qualquer hora, John- ele repete- Se seus dedos começarem a<br />

desaparecer, ou se você começar a flutuar, ou tremer violentamente, se você<br />

perder o controle dos músculos ou começar a ouvir vozes que ninguém mais<br />

ouve. Qualquer uma dessas coisas, me liga.<br />

Eu bato na minha mochila.<br />

— Meu celular está bem aqui.<br />

— Estarei esperando aqui depois da escola. Boa sorte lá, amigo.<br />

Eu sorrio para ele. Ele tem cinqüenta anos, o que significa que ele tinha<br />

quarenta quando chegamos. Tendo essa idade, a adaptação foi muito difícil<br />

para ele. Ele ainda fala com um sotaque Loric acentuado, que às vezes é<br />

confundido com francês. Foi um bom álibi no começo, então ele se nomeou<br />

Henri e permanece com esse nome, apenas mudando o sobrenome para<br />

combinar com o meu.<br />

— Lá vou eu colocar ordem nessa escola- eu digo.<br />

— Seja bom.


Eu caminho em direção à construção. Como na maioria das escolas de ensino<br />

médio, existem vários grupos de jovens do lado de fora. Eles estão divididos<br />

em panelinhas, os atletas e as líderes de torcida, os garotos da banda<br />

carregando instrumentos, os nerds com seus óculos, notebooks e BlackBerris,<br />

os maconheiros de lado, alheios a todos os outros. Um garoto, com óculos<br />

grossos, está sozinho. Ele tem um telescópio portátil e está observando o céu,<br />

que está quase totalmente encoberto pelas nuvens. Reparo uma garota tirando<br />

fotos, se movendo facilmente de um grupo para outro. Ela é chocantemente<br />

bonita com seu cabelo liso e loiro passando dos ombros, pele marfim, maçãs<br />

do rosto salientes e suaves olhos azuis. Todo mundo parece conhecê-la e a<br />

cumprimenta, e ninguém se recusa a ser fotografado por ela.<br />

Ela me vê, sorri e acena. Pergunto-me por que e viro-me para ver se não há<br />

ninguém atrás de mim. Há apenas dois jovens discutindo a lição de casa de<br />

matemática. Viro-me de volta. A garota caminha em minha direção, sorrindo.<br />

Eu nunca vi uma garota tão bonita, muito menos conversei com uma e<br />

definitivamente nunca recebi um sorriso e um aceno, como se fossemos<br />

amigos. Fico imediatamente nervoso e começo a corar. Mas, eu também sou<br />

desconfiado e fui treinado para ser assim. À medida que chega perto de mim,<br />

ela levanta a câmera e começa a tirar fotos. Levanto minhas mãos e escondo<br />

meu rosto. Ela abaixa a câmera e sorri.<br />

— Não seja tímido.<br />

— Eu não sou. Só estou tentando proteger a lente da sua câmera. Minha<br />

imagem pode quebrá-la.<br />

Ela ri.<br />

— Com essa carranca é possível mesmo. Tente sorrir.<br />

Eu sorrio, levemente. Estou nervoso a ponto de explodir. Posso sentir meu<br />

pescoço queimando, minhas mãos ficando quentes.<br />

— Esse não é um sorriso verdadeiro- ela diz, provocando- Sorrir envolve<br />

mostrar os dentes.<br />

Eu dou um sorriso amplo e ela tira fotos. Geralmente não permito que tirem<br />

fotos minhas. Se elas terminarem na internet ou no jornal, eu posso ser achado<br />

mais facilmente. As duas vezes em que fui fotografado, Henri ficou furioso,<br />

pegou as fotos e as destruiu. Se ele souber o que eu estou fazendo agora, terei<br />

um grande problema. No entanto, eu não posso evitar- a garota é tão linda e<br />

charmosa. Enquanto ela tira fotos, um cachorro vem correndo até mim. É um<br />

beagle, com orelhas de abano escuras, peito e patas brancas e um corpo preto<br />

magro. Ele está sujo como se tivesse sido abandonado. Ele se esfrega em<br />

minhas pernas e choraminga, tentando chamar minha atenção. A garota acha<br />

isso fofo e me faz ajoelhar para que ela possa tirar fotos minhas com o


cachorro. Quando ela começa a fotografar, ele se afasta. Toda hora que ela<br />

tenta novamente, ele se move mais para longe. Ela finalmente desiste e tira<br />

algumas outras fotos de mim. O cachorro fica sentando uns 10 metros distante,<br />

nos observando.<br />

— Você conhece aquele cachorro?- ela pergunta.<br />

— Nunca vi antes.<br />

— Com certeza ele gostou de você. Você é o John, certo?<br />

Ela estendeu a mão.<br />

— Sim- eu digo- Como você sabe?<br />

— Eu sou Sarah Hart. Minha mãe é sua corretora imobiliária. Ela me disse que,<br />

provavelmente, você estaria começando a freqüentar a escola hoje, e que eu<br />

deveria te procurar. Você é o único garoto novo que apareceu hoje.<br />

Eu rio.<br />

— É, eu conheci sua mãe. Ela é simpática.<br />

— Você vai apertar minha mão?<br />

Ela ainda está com a mão estendida. Eu sorrio e aperto, e é literalmente uma<br />

das melhores sensações que eu já tive.<br />

— Uau- ela diz.<br />

— O quê?<br />

— Sua mão está quente. Realmente quente, como se você estivesse com febre<br />

ou algo assim.<br />

— Acho que não.<br />

Ela solta minha mão.<br />

— Talvez você apenas tenha o sangue quente.<br />

— Sim, talvez.<br />

Um sinal soa a distância e Sarah me diz que é o sinal de aviso. Nós temos<br />

cinco minutos para entrar na sala. Nos despedimos e eu fico olhando-a se<br />

afastar. Logo depois, alguma coisa bate em meu cotovelo. Eu me viro e vejo<br />

um grupo de jogadores de futebol, todos vestindo jaquetas do time passando<br />

por mim. Um deles me olha furiosamente e eu percebo que foi ele quem bateu<br />

em mim com sua mochila enquanto passava. Duvido que tenha sido um<br />

acidente e começo a segui-los. Eu sei que não farei nada, mesmo podendo. Eu


só não gosto de valentões. À medida que eu os sigo, o garoto com camiseta da<br />

NASA se aproxima.<br />

— Eu sei que você é novo, então vou te deixar por dentro - ele diz.<br />

— Do quê?<br />

— Aquele é Mark James. Ele é o cara por aqui. O pai dele é xerife da cidade e<br />

ele é a estrela do time de futebol. Ele namorava a Sarah, quando ela era líder<br />

de torcida, mas ela saiu do grupo e largou ele. Ele não superou isso. Se eu<br />

fosse você, não me meteria com ele.<br />

— Obrigado.<br />

O garoto se apressa pelo corredor. Eu vou em direção a sala do diretor, para<br />

me matricular nas aulas e poder começá-las. Eu olho para trás para ver se o<br />

cachorro ainda está lá. Ele está sentado no mesmo local, me observando.<br />

O nome do diretor é Sr. Harris. Ele é gordo e quase totalmente careca, exceto<br />

por uns poucos fios longos de cabelo atrás e dos lados da sua cabeça. Sua<br />

barriga cai sobre seu cinto. Seus olhos são pequenos e redondos, bem<br />

próximos um do outro. Ele sorri para mim do outro lado da mesa e o sorriso<br />

dele parece engolir seus olhos.<br />

— Então você é um estudante do 2º ano vindo de Santa Fe?- ele pergunta.<br />

Eu confirmo e digo que sim, mesmo que nós nunca estivemos em Santa Fé, ou<br />

no Novo México, para começar. Uma mentira simples para não sermos<br />

rastreados.<br />

— Isso explica o bronzeado. O que te traz a Ohio?<br />

— O trabalho do meu pai.<br />

Henri não é meu pai, mas eu sempre digo que é para não gerar suspeitas. Na<br />

verdade, ele é meu Keeper, o que pode ser melhor compreendido na Terra<br />

como guardião. Em Lorien havia dois tipos de cidadãos, sendo que um dos<br />

tipos desenvolve Legados, ou poderes, os quais podem ser bem variados,<br />

passando por invisibilidade, capacidade de ler mentes, voar ou usar os<br />

elementos naturais como fogo, vento ou raios. Os que possuíam Legados eram<br />

chamados de Garde e os que não possuíam eram conhecidos como Cepan, ou<br />

Keepers. Eu sou um membro dos Garde. Henri é um Cepan. Para todo Garde é<br />

atribuído um Cepan até certa idade. Os Cepans nos ajudam a entender a<br />

história de nosso planeta e desenvolver nossos poderes. Os Cepan e os<br />

Garde- um grupo para conduzir o planeta, e outro para defendê-lo.


O Sr. Harris assente.<br />

— E o que ele faz?<br />

— Ele é escritor. Ele queria viver em uma cidade pequena e quieta para<br />

finalizar o trabalho que está desenvolvendo- eu digo, usando nossa história de<br />

cobertura padrão.<br />

O Sr. Harris assente e semicerra os olhos.<br />

— Você parece ser um jovem forte. Você planeja praticar esportes aqui?<br />

— Gostaria, se eu pudesse. Mas, eu tenho asma, senhor- eu digo; minha<br />

desculpa usual para evitar qualquer situação que possa revelar minha força e<br />

velocidade.<br />

— Sinto muito ouvir isso. Nós estamos procurando atletas talentosos para o<br />

time de futebol - ele diz e olha para a estante na parede, no topo da qual há<br />

uma troféu de futebol gravado com a data do ano anterior- Nós ganhamos a<br />

Conferencia Pioneer- ele diz, irradiando orgulho.<br />

Ele se estica, puxa duas folhas de papel de um arquivo ao lado de sua mesa e<br />

entrega-as para mim. A primeira é o meu cronograma, que tem poucos horários<br />

livres. A segunda é uma lista das disciplinas optativas disponíveis. Eu escolho<br />

as aulas e preencho a folha, depois a devolvo para ele. Ele me dá algumas<br />

orientações, falando pelo que parecem horas, comentando cada página do<br />

manual do estudante, com detalhes meticulosos. Um sinal soa e depois outro.<br />

Quando ele finalmente termina, me pergunta se tenho alguma dúvida e eu digo<br />

que não.<br />

— Excelente. Faz meia hora que começou a segunda aula, e você escolheu<br />

astronomia com a Sra. Burton. Ela é uma ótima professora, uma das melhores.<br />

Ela já ganhou um prêmio estadual, assinado pelo próprio governador.<br />

— Que legal – eu digo.<br />

Depois que o Sr. Harris luta para sair da cadeira, nós saímos de sua sala e<br />

caminhamos pelo corredor. Os sapatos dele quicam pelo chão recentemente<br />

encerado. O ar cheira tinta fresca e produtos de limpeza. Armários cobrem as<br />

paredes, muitas das quais têm cartazes de apoio ao time de futebol. Não há<br />

mais de vinte salas de aula no prédio inteiro. Eu as conto enquanto andamos.<br />

— Chegamos- o Sr. Harris diz. Ele estende sua mão. Eu a aperto. - Estamos<br />

felizes em ter você aqui. Gosto de pensar que somos uma família unida. Estou<br />

contente de recebê-lo nela.<br />

— Obrigado- eu digo.


O Sr. Harris abre a porta e coloca sua cabeça dentro da sala. Só naquele<br />

momento eu percebo que estou um pouco nervoso, que há algum sentimento<br />

de desorientação dentro de mim. Minha perna direita está tremendo; eu estou<br />

com um frio na barriga. Não entendo por quê. Certamente não é a expectativa<br />

de entrar em minha primeira aula. Eu já fiz isso tantas vezes que nem me sinto<br />

mais nervoso. Eu respiro fundo e tento me acalmar.<br />

— Sra Burton, desculpe interrompê-la. Seu novo aluno está aqui.<br />

— Oh, ótimo! Mande-o entrar- ela diz com uma voz muito alta de entusiasmo.<br />

O Sr. Harris abre a porta e eu entro. A sala é um quadrado perfeito, cheia com<br />

25 pessoas mais ou menos, sentadas em carteiras retangulares do tamanho<br />

aproximadamente de mesas de cozinha, sendo três pessoas por carteira.<br />

Todos os olhos estão em mim. Olho para eles antes de olhar para a Sra.<br />

Burton. Ela tem aproximadamente sessenta anos e está usando um suéter de<br />

lã pink e óculos vermelhos de plástico pendurados por uma corrente em seu<br />

pescoço. Ela dá um grande sorriso. Seu cabelo é grisalho e enrolado. As<br />

palmas das minhas mãos estão suadas e eu sinto meu rosto corar. Espero não<br />

estar vermelho. O Sr. Harris fecha a porta.<br />

— E qual é o seu nome?- ela pergunta.<br />

Do jeito agitado que eu estou, quase falo “Daniel Jones”, mas me refreio a<br />

tempo. Respiro fundo e respondo “John Smith”<br />

— Ótimo! E você veio de onde?<br />

— Flo- eu começo, mas me seguro novamente antes da palavra se formar<br />

completamente.- Santa Fe.<br />

— Classe, vamos dar um boas-vindas caloroso para ele.<br />

Todos batem palmas. A Sra. Burton indica para que eu me sente em um lugar<br />

vago no meio da sala entre dois outros alunos. Me sinto aliviado por ela não ter<br />

me feito mais perguntas. Ela se vira para retornar a sua mesa e eu começo a<br />

caminhar pela sala, em direção a Mark James, que está sentado em uma mesa<br />

com Sarah Bart. Quando eu passo, ele estica o pé e me dá uma rasteira. Eu<br />

cambaleio, mas me mantenho em pé. Risadas baixas percorrem toda a sala. A<br />

Sra Burton olha ao redor.<br />

— O que aconteceu?- ela pergunta.<br />

Eu não respondo, em vez disso encaro Mark. Toda escola tem um brigão, um<br />

valentão, ou qualquer outro nome que você queira dar, mas nenhum se<br />

materializou tão rápido. Seu cabelo é preto, cheio de gel, cuidadosamente<br />

espetado em todas as direções, com costeletas meticulosamente cortadas e,<br />

em sua face, a barba está por fazer. Sobrancelhas espessas apresentam-se


sobre seus olhos escuros. Pela sua jaqueta do time, eu vejo que ele é<br />

veterano e em cima da data, seu nome está escrito em letras douradas.<br />

Continuamos nos encarando e a sala emite um som de entusiasmo.<br />

Eu olho meu lugar que está a três mesas de distância, depois olho novamente<br />

para Mark. Eu poderia literalmente quebrá-lo no meio se eu quisesse. Podia<br />

atirá-lo na cidade mais próxima. Se ele tentasse fugir, eu poderia ultrapassar<br />

seu carro e jogá-lo em cima de uma árvore. Mas, juntamente com minha<br />

reação extrema, as palavras de Henri ecoam em minha mente: “Não se<br />

destaque ou chame muita atenção”. Eu sei que devo seguir o conselho dele e<br />

ignorar o que aconteceu, como sempre fiz no passado. Nisso somos bons,<br />

misturarmo-nos com o ambiente e viver nas sombras. Mas eu estou um pouco<br />

fora do normal, e antes de ter a chance de pensar duas vezes, já fiz a<br />

pergunta.<br />

— Você quer alguma coisa?<br />

Mark olha em volta para o resto da sala, se ajeita na cadeira, depois me olha<br />

novamente.<br />

— Do que você está falando?<br />

—Você colocou seu pé na minha frente quando eu estava passando. E você<br />

esbarrou em mim lá fora. Imagino que você queira alguma coisa.<br />

— O que está acontecendo?- a Sra. Burton pergunta atrás de mim. Olho por<br />

cima do ombro para ela.<br />

— Nada- eu respondo. Depois me viro para Mark.- Certo?<br />

Suas mãos seguram a mesa, mas ele permanece em silêncio. Seus olhos<br />

ficam fechados, até ele soltar um suspiro e desviar o olhar.<br />

— Foi o que eu pensei- eu digo para ele e continuo andando. Os outros alunos<br />

não sabem como reagir e a maioria continua me olhando até eu sentar em<br />

minha carteira entre uma garota ruiva com sardas e um garoto gordo que me<br />

olha boquiaberto.<br />

A Sra. Burton vai para a frente da sala. Ela parece um pouco confusa, mas logo<br />

balança os ombros e começa a explicar a razão pela qual existem anéis em<br />

Saturno e que eles são compostos na sua maioria de partículas de gelo e<br />

poeira. Depois de um momento paro de prestar atenção nela e olho para os<br />

alunos. Um novo grupo de pessoas das quais terei que me manter distante.<br />

Sempre existe uma linha tênue entre interagir um pouco e manter o mistério,<br />

sem se tornar estranho e conseqüentemente desprezado. Eu já tinha feito um<br />

trabalho horrível hoje.


Inspiro profundamente e expiro devagar. Eu ainda sinto um frio na barriga,<br />

minha perna ainda treme de maneira incômoda. Minhas mãos estão quentes.<br />

Mark James está sentado três mesas na minha frente. Ele se vira uma vez e<br />

olha para mim; depois sussurra alguma coisa no ouvido de Sarah. Ela se vira.<br />

Ela parece legal, mas o fato de que ela o namorava e que está sentada com<br />

ele me surpreende. Ela sorri calorosamente para mim. Eu queria sorrir de volta,<br />

mas estou congelado. Mark tenta novamente falar-lhe algo, mas ela balança a<br />

cabeça e o empurra. Minha audição é muito melhor que a humana, se eu me<br />

concentrar, mas eu estou tão confuso com o sorriso dela que não consigo.<br />

Queria ter ouvido o que ela disse.<br />

Eu abro e fecho minhas mãos. As palmas estão suadas e começam a queimar.<br />

Outra respiração profunda. Minha visão está embaçada. Cinco minutos se<br />

passam, depois dez. A Sra. Burton ainda está falando, mas eu não consigo<br />

ouvir o que ela diz. Mantenho minhas mãos fechadas, depois as reabro.<br />

Quando faço isso, minha respiração fica presa na garganta. Um brilho fraco<br />

aparece na palma da minha mão direita. Olho para ele, chocado, maravilhado.<br />

Depois de alguns segundos, o brilho começa a ficar mais forte.<br />

Fecho minhas mãos. Meu medo inicial é que algo tenha acontecido com algum<br />

dos outros. Mas o que poderia ter acontecido? Nós não podemos ser mortos<br />

fora de ordem. Esse é o modo como o feitiço funciona. Mas isso significa que<br />

eles não podem ser feridos? Algum deles teve a mão direita cortada? Não tem<br />

como eu saber. Mas se algo tivesse acontecido, eu teria sentido as cicatrizes<br />

no meu tornozelo. Só então que eu percebo: meu primeiro Legado está se<br />

formando.<br />

Eu pego meu telefone da mochila e mando uma mensagem de texto para Henri<br />

que diz VNEHA, embora eu quisesse escrever VENHA. Estou muito atordoado<br />

para mandar alguma coisa mais. Fecho minhas mãos e coloco-as no colo. Elas<br />

estão queimando e tremendo. Abro minhas mãos. A palma da minha mão<br />

esquerda está vermelha e a da direita ainda está brilhando. Olho para o relógio<br />

na parede e vejo que a aula está quase terminando. Se eu puder sair dali, eu<br />

encontrarei uma sala vazia, ligarei para Henri e perguntarei para ele o que está<br />

acontecendo. Começo a contar os segundos: 60, 59, 58. Parece que minhas<br />

mãos vão explodir. Concentro-me na contagem. 40, 39. Elas estão formigando<br />

agora, como se pequenas agulhas estivessem enfiadas na palma. 38, 37. Abro<br />

meus olhos e olho para frente, me concentrando em Sarah com a esperança<br />

de me distrair olhando para ela. 15, 14. Olhar para ela faz piorar. As agulhas<br />

parecem pregos agora. Pregos que foram colocados em uma fornalha e<br />

aquecidos até incandescerem. 8, 7.<br />

O sinal toca e, em um segundo, estou de pé e fora da sala, andando rápido<br />

entre os outros estudantes. Eu estou tonto, instável sobre meus pés. Continuo<br />

andando pelo corredor, sem idéia de aonde vou. Posso sentir que alguém está


me seguindo. Pego meu cronograma do meu bolso traseiro e olho o número do<br />

meu armário. Por sorte, meu armário está bem a minha direita. Paro nele e<br />

encosto minha cabeça na porta de metal. Balanço minha cabeça, percebendo<br />

que na minha pressa em sair da sala eu esqueci minha mochila lá com meu<br />

celular dentro. Então, alguém me empurra.<br />

— Qual é, valentão?<br />

Eu cambaleio e olho para trás. Mark está lá, sorrindo para mim.<br />

— Alguma coisa errada?- ele pergunta.<br />

— Não – eu respondo.<br />

Minha cabeça está girando. Sinto como se estivesse a ponto de desmaiar. E<br />

minhas mãos estão em chamas. Seja lá o que estiver acontecendo, não podia<br />

ocorrer em uma hora pior. Ele me empurra de novo.<br />

— Não é tão valente sem professores por perto?<br />

Estou muito desequilibrado para permanecer de pé, tropeço e caio no chão.<br />

Sarah aparece na frente de Mark.<br />

— Deixe-o em paz- ela diz.<br />

— Isso não é da sua conta- ele fala.<br />

— Certo. Você vê um garoto novo conversando comigo e imediatamente tenta<br />

começar uma briga com ele. Esse é apenas um exemplo do porquê nós não<br />

estamos mais juntos.<br />

Começo a levantar. Sarah se abaixa para me ajudar e no momento em que ela<br />

me toca, a dor em minhas mãos aumenta, parecendo que há relâmpagos na<br />

minha cabeça. Viro-me e começo a andar depressa, na direção oposta à sala<br />

de astronomia. Eu sei que todos pensarão que sou um covarde por fugir, mas<br />

estou sentindo que vou desmaiar. Eu agradecerei Sarah e me ocuparei do<br />

Mark, mais tarde. Nesse momento, só preciso achar uma sala com a chave na<br />

porta.<br />

Chego no fim do corredor, o qual cruza com a entrada principal da escola.<br />

Penso nas orientações do Sr. Harris, que incluíam a localização das várias<br />

salas no prédio. Se eu me lembro corretamente, o auditório, a sala da banda e<br />

a sala de artes estão no fim desse corredor. Corro em direção a elas o mais<br />

rápido que posso no estado em que estou. Atrás de mim, eu posso ouvir Mark<br />

gritando comigo e Sarah gritando com ele. Eu abro a primeira porta que<br />

encontro, entro e fecho a porta atrás de mim. Felizmente ela tem um trinco e eu<br />

posso trancá-la.


Eu estou em uma sala escura. Tiras de negativos de fotos estão penduradas<br />

em linhas para secar. Desmorono no chão. Minha cabeça gira e minhas mãos<br />

queimam. Desde a primeira vez que eu vi a luz, tinha fechado minhas mãos.<br />

Agora, olho para elas e vejo que minha mão direita ainda está brilhando,<br />

pulsando. Começo a entrar em pânico.<br />

Sento-me no chão, o suor arde meus olhos. Minhas duas mãos estão<br />

terrivelmente doloridas. Eu esperava pelos meus Legados, mas não tinha idéia<br />

que eles incluiriam isso. Eu abro minhas mãos e a palma da minha mão direita<br />

está reluzindo e a luz tornando-se mais concentrada. A mão esquerda está<br />

piscando fracamente; a sensação de ardor quase insuportável. Eu queria que<br />

Henri estivesse aqui. Espero que ele esteja chegando.<br />

Fecho meus olhos e passo meus braços ao redor do meu corpo. Balanço-me<br />

para frente e para trás no chão. Tudo dentro de mim é dor. Eu não sei quanto<br />

tempo se passou. Um minuto? Dez minutos? O sinal toca, sinalizando o<br />

começo da próxima aula. Eu posso ouvir as pessoas conversando do lado de<br />

fora da porta. A porta balança várias vezes, mas ela está trancada e ninguém<br />

consegue entrar. Só continuo me balançando, com os olhos fechados<br />

fortemente. Batidas na porta. Vozes abafadas que eu não compreendo. Eu<br />

abro meus olhos e posso ver que o brilho das minhas mãos ilumina a sala<br />

inteira. Fecho minhas mãos e tento fazer com que a luz desapareça, mas ela<br />

escapa pelos espaços entre meus dedos. A porta começa a balançar de<br />

verdade. O que eles pensarão da luz em minhas mãos? Não há como<br />

escondê-la. Como eu poderei explicá-la?<br />

— John? Abra a porta, sou eu- uma voz diz.<br />

Uma onda de alívio me percorre. A voz de Henri, a única voz no mundo inteiro<br />

que eu quero ouvir.<br />

Capítulo 5<br />

ARRASTO-ME ATÉ A PORTA E A DESTRANCO. ELA SE ABRE. Henri está<br />

coberto de terra, vestindo roupas de jardinagem como se estivesse trabalhando<br />

do lado de fora de nossa casa. Eu estou tão feliz de vê-lo que tenho o impulso<br />

de pular e abraçá-lo e até tento fazer isso, mas estou tão tonto que caio no<br />

chão.<br />

— Está tudo bem aqui?- o Sr. Harris pergunta ao lado de Henri.<br />

— Está tudo bem. Apenas nos dê um minuto, por favor- Henri responde.<br />

— Precisa que eu chame uma ambulância?<br />

— Não.


A porta se fecha. Henri olha para minhas mãos. A luz na mão direita está<br />

brilhando fortemente, enquanto a esquerda está mais fraca, como se estivesse<br />

apenas tentando se firmar. Henri dá um sorriso amplo; sua face brilha como um<br />

farol.<br />

— Ahhh, obrigado Lorien- ele suspira. Depois pega um par de luvas de couro<br />

de jardinagem do seu bolso traseiro.- Que sorte grande que eu estava<br />

trabalhando no jardim. Coloque-as.<br />

Coloco-as e elas escondem completamente a luz. O Sr. Harris abre a porta e<br />

põe a cabeça para dentro.<br />

— Sr. Smith? Está tudo bem?<br />

— Sim, está tudo bem. Apenas nos dê mais trinta segundos- Henri diz e olha<br />

de volta para mim.- Seu diretor se intromete muito.<br />

Inspiro profundamente e expiro.<br />

— Eu entendo o que está acontecendo, mas por que isso?<br />

— Seu primeiro Legado.<br />

— Eu sei disso, mas por que as luzes?<br />

— Vamos falar sobre isso no caminhão. Você consegue caminhar?<br />

— Acho que sim.<br />

Ele me ajuda a levantar. Eu ainda estou desequilibrado, ainda tremendo. Eu<br />

me apoio em seu antebraço.<br />

— Tenho que pegar minha mochila antes de irmos embora- eu digo.<br />

— Onde ela está?<br />

— Eu deixei na sala de aula.<br />

— Que número?<br />

— Dezessete.<br />

— Vou te levar para o caminhão, depois volto para pegá-la.<br />

Coloco meu braço direito ao redor dos ombros dele. Ele me segura colocando<br />

seu braço esquerdo em minha cintura. Embora o segundo sinal já tenha<br />

tocado, ainda posso ouvir pessoas no corredor.<br />

— Você precisa caminhar o mais normal que puder.


Respiro profundamente. Tento juntar todas as poucas forças que eu tenho para<br />

enfrentar a longa caminhada para fora da escola.<br />

— Vamos lá- eu digo.<br />

Limpo o suor da minha testa e sigo Henri para fora da sala escura. O Sr. Harris<br />

ainda está na porta.<br />

— Apenas uma crise forte de asma- Henri diz ao passar por ele.<br />

Umas vinte ou mais pessoas também estão na porta e a maioria tem câmeras<br />

fotográficas penduradas no pescoço, esperando para entrar na sala para a aula<br />

de fotografia. Felizmente Sarah não está entre elas. Eu caminho o mais<br />

firmemente que posso, um pé de cada vez. A saída da escola é a 30 metros.<br />

São muitos passos. As pessoas cochicham.<br />

— Que cara esquisito.<br />

— Será que ele vai continuar vindo para a escola?<br />

— Espero que sim, ele é tão fofo.<br />

— O que você acha que ele estava fazendo numa sala escura para ficar com o<br />

rosto tão vermelho?- eu ouço. Todos riem. Do mesmo modo que podemos<br />

focar nossa audição, também podemos deixar de ouvir, o que nos ajuda<br />

quando tentamos nos concentrar em um ambiente com muitos ruídos e<br />

confusão. Então, me isolo do barulho e sigo atrás de Henri. Cada passo que eu<br />

dou parece dez, mas finalmente chegamos à porta. Henri a mantêm aberta<br />

para mim e eu tento caminhar até o caminhão, o qual está estacionado em<br />

frente à escola. Nos últimos 20 passos, tenho que me segurar nos ombros dele<br />

novamente. Ele abre a porta do caminhão e eu entro.<br />

— Você disse 17?<br />

— Sim.<br />

— Você deveria ter mantido a mochila com você. São os pequenos erros que<br />

levam aos grandes. Não podemos cometer nenhum.<br />

— Eu sei. Me desculpe.<br />

Ele fecha a porta e volta para o prédio. Eu me debruço no banco e tento<br />

acalmar minha respiração. Ainda sinto o suor em minha testa. Me sento e<br />

abaixo a aba protetora contra o sol, de maneira a me olhar no espelho. Meu<br />

rosto está mais vermelho do que eu pensei, meus olhos um pouco úmidos. Mas<br />

apesar da dor e do cansaço, eu sorrio. Finalmente, eu penso. Depois de anos<br />

de espera, depois de anos em que minhas únicas defesas contra os<br />

Mogadorians foram a inteligência e a discrição, meu primeiro Legado apareceu.


Henri sai da escola carregando minha mochila. Ele caminha até o caminhão,<br />

abre a porta e joga minha mochila no banco.<br />

— Obrigado- eu digo.<br />

— De nada.<br />

Quando estamos fora do terreno da escola, eu tiro as luvas e olho minhas<br />

mãos. A luz na mão direita está começando a se concentrar em um feixe, como<br />

em uma lanterna, só que mais brilhante. O ardor está começando a diminuir.<br />

Minha mão esquerda ainda brilha fracamente.<br />

— Fique com as luvas até chegarmos em casa- Henri diz.<br />

Coloco as luvas novamente e olho para ele. Ele está sorrindo orgulhosamente.<br />

— Foi uma merda de espera longa- ele diz.<br />

— Ahm?- eu perguntei.<br />

Ele me olha.<br />

— Uma merda de espera longa- ele diz novamente- pelos seus Legados.<br />

Eu rio. Entre todas as coisas que Henri aprendeu a dominar enquanto está na<br />

Terra, palavrões não estavam inclusos.<br />

— Uma maldita espera longa- eu corrigi.<br />

— Sim, foi o que eu disse.<br />

Ele vira em nossa rua.<br />

— Então, o que vem depois? Isso significa que eu serei capaz de atirar lasers<br />

com a mão ou algo assim?<br />

Ele sorri.<br />

— Seria bom se fosse assim, mas não.<br />

— Bem, então o que eu serei capaz de fazer com a luz? Quando eu estiver<br />

sendo perseguido, me virarei e ofuscarei os olhos deles? Daí eles se<br />

acovardarão ou algo assim?<br />

— Paciência- ele diz- Você ainda não está pronto para compreender isso.<br />

Apenas vamos para casa.<br />

Nesse momento, me lembro de algo que quase faz com que eu pule do meu<br />

banco.<br />

— Isso significa que nós finalmente abriremos o baú?


Ele confirma e sorri.<br />

— Muito em breve.<br />

— Legal!- eu digo. O baú de madeira detalhadamente entalhado tem me<br />

assombrado a vida inteira. É uma caixa frágil com símbolos Loric dos lados, da<br />

qual Henri guardava completo segredo. Ele nunca me disse o que há dentro, e<br />

ele é impossível de abrir, o que eu sabia, pois tinha tentado inúmeras vezes e<br />

nunca conseguido. Ele é mantido fechado por um cadeado que não tem<br />

entrada para nenhuma chave.<br />

Quando chegamos em casa, posso ver no que Henri estava trabalhando. As<br />

três cadeiras da varanda da frente haviam sido limpas e todas as janelas estão<br />

abertas. Dentro da casa, os lençóis que cobriam a mobília foram retirados, e a<br />

superfície de alguns móveis está limpa. Eu coloco minha mochila em cima da<br />

mesa da cozinha e a abro. Frustro-me imediatamente.<br />

— Filho da mãe- eu digo.<br />

— O quê?<br />

— Meu telefone não está aqui.<br />

—Onde está, então?<br />

— Eu tive um pequeno desentendimento com um garoto chamado Mark<br />

James, essa manhã. Ele provavelmente pegou.<br />

— John, você ficou na escola por uma hora e meia. Como já conseguiu arranjar<br />

um desentendimento? Você sabe que isso não é certo.<br />

— É o ensino médio. Eu sou o aluno novo. Foi fácil.<br />

Henri tira seu celular do bolso e disca meu número. Depois fecha o celular.<br />

— Está desligado- ele diz.<br />

— É claro que está.<br />

Ele me encara.<br />

— O que aconteceu?- ele me pergunta em uma voz que eu reconheço como<br />

sendo a voz que ele usa quando está considerando outra mudança.<br />

— Nada. Só uma discussão idiota. Eu provavelmente derrubei o celular no<br />

chão quando fui colocá-lo na mochila.- eu digo, mesmo sabendo que isso não<br />

aconteceu- Eu não estava muito bem. Provavelmente, ele está esperando por<br />

mim no “achados e perdidos”.<br />

Ele olha ao redor e suspira.


— Alguém viu suas mãos?<br />

Olho para ele. Seus olhos estão vermelhos, mais vermelhos do que quando ele<br />

me deixou na escola. Seu cabelo está despenteado e seu olhar está caído<br />

como se ele estivesse a ponto de desmoronar de exaustão a qualquer<br />

momento. A última vez que ele dormiu foi na Florida, dois dias atrás. Eu não sei<br />

como ele ainda está de pé.<br />

— Ninguém viu.<br />

— Você foi para a escola por uma hora e meia. Seu primeiro Legado apareceu,<br />

você esteve próximo de uma briga, e você deixou sua mochila na sala de aula.<br />

Não foi exatamente o que combinamos.<br />

— Não foi nada. Certamente não é algo importante o suficiente para nos<br />

mudarmos para Idaho, Kansas ou para qualquer que seja a próxima droga de<br />

lugar para que vamos.<br />

Henri estreita os olhos, considerando o que ele tinha testemunhado e decidindo<br />

se tinha sido o suficiente para justificar uma mudança.<br />

— Agora não é momento de sermos descuidados.- ele diz.<br />

—Há discussões em todas escolas todos os dias. Eu te garanto, eles não vão<br />

nos rastrear porque um valentão arranjou confusão com o aluno novo.<br />

— As mãos do garoto novo não brilham em todas as escolas.<br />

Eu suspiro.<br />

— Henri, você parece que está a ponto de morrer. Tire uma soneca. Nós<br />

podemos decidir depois que você tiver dormido um pouco.<br />

— Nós temos muito o que conversar.<br />

— Eu nunca te vi tão cansado antes. Durma algumas horas. Nós conversamos<br />

depois.<br />

Ele concorda.<br />

— Uma soneca provavelmente me fará bem.<br />

Henri vai para seu quarto e fecha a porta. Eu caminho para fora e ando um<br />

pouco pelo quintal. O sol está atrás das árvores e há uma brisa agradável. As<br />

luvas ainda estão em minhas mãos. Eu tiro-as e coloco-as no meu bolso<br />

traseiro. Minhas mãos estão do mesmo jeito que antes. Verdade seja dita,<br />

apenas metade de mim está excitada com a chegada do meu primeiro Legado<br />

após muitos anos de espera impaciente. A outra metade de mim está<br />

deprimida. Nossas constantes mudanças têm me esgotado, e a partir de agora


será impossível eu me misturar ou permanecer em um só lugar por qualquer<br />

período de tempo. Será impossível fazer amigos ou me sentir a vontade em<br />

algum lugar. Eu estou cansado de nomes falsos e mentiras. Estou cansado de<br />

sempre ter que olhar para trás para ver se estou sendo seguido.<br />

Eu me abaixo e toco as três cicatrizes no meu tornozelo direito. Três cicatrizes<br />

que representam três mortos. Nós estamos ligados uns aos outros mais do que<br />

pela espécie. Enquanto toco as cicatrizes, eu tento imaginar quem eles foram,<br />

se foram homens ou mulheres, onde eles moraram, quantos anos tinham<br />

quando morreram. Tento me lembrar das outras crianças na nave comigo e<br />

numerar cada uma. Eu imagino como seria conhecê-los, sair com eles. O que<br />

nós teríamos feito se ainda estivéssemos em Lorien. Como seria se o futuro de<br />

toda nossa espécie não dependesse da sobrevivência de tão poucos de nós.<br />

Como seria se todos nós não estivéssemos encarando a morte na mão dos<br />

nossos inimigos.<br />

É terrível saber que eu sou o próximo. Mas nós sempre estivemos à frente<br />

deles, nos mudando, fugindo. Mesmo que eu tenha enjoado de me mudar, eu<br />

sei que essa é a única razão pela qual ainda estamos vivos. Se pararmos, eles<br />

nos encontrarão. E agora que eu sou o próximo na contagem, eles sem dúvida<br />

intensificaram a busca. Certamente eles devem saber que estamos nos<br />

tornando mais fortes, desenvolvendo nossos Legados.<br />

Além disso, há a outra cicatriz no outro tornozelo, formada quando o feitiço foi<br />

lançado, naqueles momentos preciosos antes de partirmos de Lorien. É a<br />

marca que nos liga.<br />

Capítulo 6<br />

ENTRO NA CASA E DEITO NO COLCHÃO SEM LENÇÓIS EM MEU<br />

QUARTO. A manhã me esgotou e eu deixo meus olhos se fecharem. Quando<br />

eu os reabro, o sol está incidindo no topo das árvores. Eu saio do quarto. Henri<br />

está na mesa da cozinha com seu laptop aberto e eu sei que ele está olhando<br />

as notícias, como ele sempre faz, procurando por informações ou reportagens<br />

que possam nos dizer onde os outros estão.<br />

— Você dormiu?- eu pergunto.<br />

— Não muito. Nós temos internet agora e eu não checo as notícias desde que<br />

saímos da Flórida. Isso está me atormentando.<br />

— Algo importante?- eu pergunto.<br />

Ele balança os ombros.


— Um jovem de catorze anos na África caiu de uma janela no 4º andar e saiu<br />

sem nenhum arranhão. Há um jovem de quinze anos em Bangladesh<br />

afirmando ser o Messias.<br />

Eu rio.<br />

— Eu sei que o de 15 anos não é um de nós. Alguma chance do outro ser?<br />

— Não. Sobreviver de uma queda do 4º andar não é um feito tão grande, e,<br />

além disso, em primeiro lugar nenhum de nós seria tão descuidado a esse<br />

ponto.- ele responde e pisca o olho.<br />

Eu sorrio e sento-me em frente a ele. Ele fecha o computador e coloca as mãos<br />

na mesa. Seu relógio indica 11:36. Nós estamos em Ohio por mais ou menos<br />

metade de um dia e muita coisa já aconteceu. Eu mantenho as palmas das<br />

minhas mãos para cima. Elas se apagaram um pouco desde a última vez que<br />

eu as olhei.<br />

— Você sabe o que tem?<br />

— Luzes em minhas mãos.<br />

Ele ri.<br />

— Isso é chamado de Lumen. Você logo será capaz de controlar a luz.<br />

— Realmente espero que sim, porque nosso disfarce estará acabado se eu<br />

não apagá-las logo. Só não vejo a vantagem disso.<br />

— Há mais no Lumen do que simples luzes. Eu juro.<br />

— O que mais tem?<br />

Ele vai para o seu quarto e volta com um isqueiro em sua mão.<br />

— Você lembra bem de seus avôs?- ele pergunta. Nossos avôs são aqueles<br />

que nos criam. Nós vemos pouco nossos pais até a idade de 25 anos quando<br />

temos nossos próprios filhos. A expectativa de vida para um Loric é de<br />

aproximadamente 200 anos, muito maior que a dos humanos, e quando as<br />

crianças nascem, tendo os pais entre 25 e 35 anos, elas são criadas pelos<br />

mais velhos enquanto os pais continuam treinando seus Legados.<br />

— Um pouco. Por quê?<br />

— Porque seu avô tinha esse mesmo dom.<br />

— Eu não me lembro nunca de ver as mãos dele brilhando- eu digo.<br />

Henri ri.


— Ele nunca deve ter tido razão para usá-lo.<br />

— Maravilha- eu digo- parece um belo dom para se ter, um que nunca usarei.<br />

Ele balança sua cabeça.<br />

— Me dê sua mão.<br />

Eu estendo minha mão direita e ele agita o isqueiro sobre ela, depois o move<br />

de maneira que o fogo toque a ponta do meu dedo. Eu puxo minha mão.<br />

— O que você está fazendo?<br />

— Confie em mim- ele diz.<br />

Estendo a mão novamente para ele. Ele a segura e agita o isqueiro sobre ela<br />

novamente. Ele olha em meus olhos. Depois sorri. Eu olho para baixo e vejo<br />

que ele está segurando a chama sobre a ponta do meu dedo médio. Eu não<br />

sinto nada. Instintivamente, puxo minha mão. Toco meu dedo. Ele não parece<br />

diferente de antes.<br />

— Você sentiu aquilo?<br />

— Não.<br />

— Me dê sua mão de novo- ele diz- e me diga quando sentir algo.<br />

Ele começa a colocar a chama na ponta do meu dedo novamente, depois a<br />

move bem devagar até a palma da minha mão. Eu sinto uma cócega leve onde<br />

a chama toca na minha pele, nada mais. Somente quando o fogo alcança meu<br />

pulso, que eu começo a sentir que está queimando. Eu puxo meu braço.<br />

— Ai.<br />

— Lumen- ele diz.- Você está se tornando resistente ao fogo e ao calor. Suas<br />

mãos tornaram-se naturalmente, mas teremos que treinar o resto do seu corpo.<br />

Um sorriso se abre em meu rosto.<br />

— Resistente ao fogo e ao calor- eu digo- Então eu nunca mais poderei ser<br />

queimado?<br />

— Digamos que sim.<br />

— Isso é incrível!<br />

— No final das contas não é um Legado tão ruim, né?<br />

— Não é ruim de tudo- eu concordo- Agora sobre essas luzes? Elas vão se<br />

apagar?


— Elas vão. Provavelmente após uma boa noite de sono, quando sua mente<br />

esquecer que elas estão acesas- ele diz.- Mas você terá que ser cuidadoso por<br />

um tempo. Um desbalanço emocional poderá fazer com que elas se acendam<br />

novamente, se você ficar excessivamente nervoso, irado ou triste.<br />

— Por quanto tempo?<br />

— Até você aprender a controlá-las- ele fecha os olhos e esfrega o rosto com<br />

as mãos.- Bom, vou tentar dormir novamente. Nós conversamos sobre o seu<br />

treinamento daqui a algumas horas.<br />

Depois que ele sai, eu permaneço na mesa da cozinha, abrindo e fechando as<br />

mãos, inspirando profundamente e tentando me acalmar para que as luzes se<br />

apaguem. É claro que não funciona.<br />

A casa ainda está inteira bagunçada, tirando as poucas coisas que Henri fez<br />

enquanto eu estava na escola. Eu diria que ele está inclinado a decidir partir,<br />

mas não a um ponto em que não possa ser convencido a ficar. Talvez se<br />

acordar e encontrar a casa limpa e em ordem, ele possa tomar a decisão certa.<br />

Começo pelo meu quarto. Tiro a poeira, lavo as janelas e varro o chão. Quando<br />

tudo está limpo, eu coloco lençóis, travesseiros e cobertas em minha cama,<br />

depois penduro e dobro minhas roupas. O guarda-roupa é velho e fraco, mas<br />

eu o encho e depois coloco alguns poucos livros que tenho em cima dele. E o<br />

resultado é um quarto limpo, com tudo o que eu tenho arrumado.<br />

Vou para a cozinha, guardo as louças e limpo os armários. Isso me dá trabalho<br />

e eu posso parar de pensar em minhas mãos, mesmo porque, enquanto eu<br />

limpo, eu penso em Mark James. Pela primeira vez na minha vida inteira, eu<br />

enfrentei alguém. Foi algo que eu sempre desejei, mas nunca fiz, pois queria<br />

seguir o conselho de Henri de me manter quieto. Sempre tentei adiar uma nova<br />

mudança por quanto tempo eu conseguisse. Mas hoje tinha sido diferente. Há<br />

uma satisfação muito grande em ser empurrado por alguém e reagir<br />

empurrando de volta. E depois há o caso do celular, que foi roubado. Com<br />

certeza, podemos comprar um novo, mas onde está a justiça nisso?<br />

Capítulo 7<br />

EU ACORDO ANTES DO DESPERTADOR. A CASA ESTÁ FRESCA E<br />

SILENCIOSA. Tiro minhas mãos de debaixo das cobertas. Elas estão normais,<br />

sem luzes, sem brilho. Eu levanto da cama e vou para a sala. Henri está na<br />

mesa da cozinha, lendo o jornal local e tomando café.<br />

— Bom dia- ele diz- Como se sente?<br />

— Extremamente bem.<br />

Sirvo-me de uma tigela de cereal e sento-me na frente dele.


— O que você vai fazer hoje?- eu pergunto.<br />

—Uma viagem curta. Nós estamos ficando sem dinheiro. Eu estou pensando<br />

em fazer uma retirada no banco.<br />

Lorien é (ou era, dependendo do ponto de vista) um planeta rico em recursos<br />

naturais. Alguns desses recursos eram pedras preciosas e metais. Quando<br />

partimos, foi dado a cada Cepan um saco cheio de diamantes, esmeraldas e<br />

rubis para serem vendidos quando chegássemos à Terra. Henri vendeu e<br />

depositou o dinheiro em uma conta de banco no exterior. Eu não sei quanto de<br />

dinheiro há lá e nunca perguntei. Mas eu sei que é o suficiente para nos<br />

sustentar por dez vidas, se não mais. Henri faz retiradas mais ou menos uma<br />

vez por ano.<br />

— Mas, eu não sei- ele continua- Eu não quero estar muito longe, caso mais<br />

alguma coisa aconteça hoje.<br />

Não querendo dar muita importância para o que aconteceu ontem, eu jogo a<br />

frase:<br />

—Ficarei bem. Vá fazer o saque.<br />

Eu olho para a janela. Está amanhecendo e uma pálida luz cobre tudo. O<br />

caminhão está coberto de orvalho. Já é tempo, uma vez que estamos entrando<br />

no inverno. Eu não tenho nhenhuma jaqueta e meus agasalhos estão<br />

pequenos.<br />

— Parece que está frio lá fora- eu digo- Talvez devêssemos comprar roupas<br />

logo.<br />

Ele confirma.<br />

— Eu estava pensando nisso na noite passada e é por isso que eu preciso ir ao<br />

banco.<br />

— Então vá- eu digo- Nada vai me acontecer hoje.<br />

Eu termino de comer a tigela de cereal, coloco a louça suja na pia e vou tomar<br />

banho. Dez minutos depois, já estou vestido com calça jeans e uma blusa<br />

quente preta, com as mangas arregaçadas até meu cotovelo. Eu olho no<br />

espelho e depois para minhas mãos. Eu me sinto calmo. Preciso permanecer<br />

desse jeito.<br />

No caminho para a escola, Henri me dá um par de luvas.<br />

— Tenha certeza de sempre mantê-las com você. Nunca se sabe.<br />

Coloco-as no meu bolso traseiro.


— Não precisarei delas. Me sinto muito bem.<br />

Vários ônibus estão enfileirados na frente da escola. Henri para ao lado do<br />

prédio.<br />

— Não gosto do fato de você estar sem celular- ele diz- Tem muitas coisas que<br />

podem dar errado.<br />

— Não se preocupe. Logo o terei de volta.<br />

Ele suspira e balança a cabeça.<br />

— Não faça nada estúpido. Estarei bem aqui no fim do dia.<br />

— Não farei- eu digo, e desço do caminhão. Ele vai embora.<br />

Dentro da escola, os corredores estão cheios; alunos mexendo nos armários,<br />

conversando, rindo. Alguns olham para mim e cochicham. Eu não sei se é por<br />

causa da briga ou da sala escura. É mais provável que eles estejam<br />

cochichando sobre as duas coisas. É uma escola pequena, e em escolas<br />

pequenas há poucas coisas que todo mundo não saiba prontamente.<br />

Quando chego à entrada principal, eu viro a direita e encontro meu armário.<br />

Está vazio. Eu tenho quinze minutos antes da aula do 2º ano começar.<br />

Caminho até a sala de aula apenas para ter certeza que sei onde é e depois<br />

vou até a secretaria. A secretária sorri quando entro.<br />

— Olá- eu digo- Eu perdi meu celular ontem e eu gostaria de saber se alguém<br />

o trouxe para o “achados e perdidos”.<br />

Ela balança a cabeça.<br />

— Não, infelizmente nenhum celular foi trazido.<br />

— Obrigado.- eu digo.<br />

Lá fora, no corredor, não vejo Mark em nenhum lugar. Eu escolho uma direção<br />

e começo a andar. As pessoas ainda estão me encarando e cochichando, mas<br />

isso não me incomoda. Eu o vejo quinze metros a minha frente. De repente,<br />

sinto a adrenalina me invadir. Olho para minhas mãos. Elas estão normais.<br />

Tenho medo de que elas acendam e esse medo pode ser exatamente o<br />

estímulo para que isso ocorra.<br />

Mark está encostado em um armário, com seus braços cruzados, no meio de<br />

um grupo de cinco garotos e duas meninas, todos conversando e rindo. Sarah<br />

está sentada no parapeito de uma janela, uns quatro metros distante. Ela<br />

parece novamente radiante com seu cabelo loiro preso em um rabo-de-cavalo,<br />

vestindo uma saia e um suéter cinza. Ela está lendo um livro, mas levanta a<br />

cabeça quando eu caminho em direção a eles.


Eu paro próximo ao grupo, encaro Mark e espero. Ele me nota após cinco<br />

segundos.<br />

— O que você quer?- ele pergunta.<br />

— Você sabe o que eu quero.<br />

Nossos olhos permanecem fixos. O grupo ao nosso redor aumenta para dez<br />

pessoas, depois vinte. Sarah se levanta e caminha até o meio da multidão.<br />

Mark está usando sua jaqueta do time e seu cabelo preto está cuidadosamente<br />

desarrumado para parecer que ele apenas levantou da cama e se vestiu.<br />

Ele desencosta do armário e vem em minha direção. Quando ele está a<br />

centímetros de mim, para. Nossos peitos quase se tocam e o cheiro picante da<br />

sua colônia enche minhas narinas. Ele é provavelmente um seis centímetros<br />

mais alto do que eu. Nossa estrutura corporal é parecida. Mal sabe ele que há<br />

algo dentro de mim que ele não tem. Eu sou mais rápido e muito mais forte.<br />

Esse pensamento traz um sorriso confiante ao meu rosto.<br />

— Você acha que vai conseguir ficar um pouco mais na escola hoje? Ou você<br />

vai fugir de novo como um bicha?<br />

Risadas vêm da multidão.<br />

— Vamos ver, não?<br />

— Sim, nós vamos.- ele diz e chega mais perto.<br />

— Quero meu celular de volta- eu digo.<br />

— Não estou com seu celular.<br />

Balanço minha cabeça para ele.<br />

—Duas pessoas me disseram que te viram pegá-lo- eu minto.<br />

Pelo jeito com que suas sobrancelhas enrugam, eu percebo que deduzi certo.<br />

— Sim, e se tiver sido eu? O que você vai fazer?<br />

Há provavelmente umas 30 pessoas ao nosso redor agora. Eu não tenho<br />

dúvida de que toda a escola saberá o que aconteceu nos primeiros dez<br />

minutos da primeira aula.<br />

— Você foi avisado- eu digo.- Você tem até o fim do dia.<br />

Viro-me e saio.<br />

— Ou o quê?- ele grita atrás de mim. Eu não tenho idéia do que. Deixo-o<br />

esperando a resposta. Meus punhos estão cerrados e eu percebo que eu


confundi a adrenalina com os nervos. Por que eu estou tão nervoso? O<br />

desconhecido? O fato de pela primeira vez eu ter confrontado alguém? A<br />

possibilidade das minhas mãos brilharem? Provavelmente as três alternativas.<br />

Vou para o banheiro, entro em um reservado vazio e tranco a porta atrás de<br />

mim. Abro minhas mãos. Há uma luz fraca na direita. Fecho meus olhos e<br />

suspiro, me concentrando em respirar devagar. Um minuto depois a luz ainda<br />

está ali. Balanço minha cabeça. Eu não achava que o Legado seria tão<br />

sensível. Permaneço no reservado. Uma fina camada de suor cobre minha<br />

testa; minhas duas mãos estão quentes, mas felizmente a esquerda ainda está<br />

normal. As pessoas entram e saem do banheiro, mas eu fico ali esperando. A<br />

luz continua acesa. Felizmente, o sinal da primeira aula toca e o banheiro fica<br />

vazio.<br />

Balanço minha cabeça de desgosto e aceito o inevitável. Eu não estou com<br />

meu celular e Henri está indo para o banco. Eu estou sozinho com minha<br />

própria estupidez e não tenho ninguém para culpar além de mim mesmo. Pego<br />

as luvas do meu bolso traseiro e coloco-as. Luvas de couro de jardinagem. Se<br />

eu estivesse vestindo sapatos de palhaço com calças amarelas, pareceria<br />

menos ridículo. Dificilmente passarei despercebido. Percebo que devo desistir<br />

do Mark. Ele ganhou. Ele pode ficar com meu celular; eu e Henri compraremos<br />

outro a noite.<br />

Saio do banheiro e caminho pelo corredor vazio até minha sala. Todos me<br />

encaram quando eu entro, depois olham minhas luvas. Não há como escondêlas.<br />

Eu pareço um idiota. Eu sou um alienígena, tenho poderes extraordinários,<br />

com outros ainda por vir, e posso fazer coisas que os humanos nem sonham,<br />

mas eu ainda pareço um idiota.<br />

Sento-me no meio da sala. Ninguém me diz nada e estou muito atordoado para<br />

ouvir o que o professor diz. Quando o sinal toca, eu junto minhas coisas,<br />

coloco-as na mochila e ponho as alças no meu ombro. Eu ainda estou usando<br />

as luvas. Quando saio da sala, dou uma olhada na mão direita. Ainda está<br />

brilhando.<br />

Caminho pelo corredor com passos firmes. Respirando devagar. Estou<br />

tentando esvaziar minha mente, mas isso não está funcionando. Quando entro<br />

na outra sala, Mark está sentado no mesmo lugar do dia anterior, com Sarah<br />

ao seu lado. Ele zomba de mim. Na sua tentativa de parecer corajoso, ele não<br />

nota minhas luvas.<br />

— E aí, fujão? Ouvi falar que o time de cross-country está procurando por<br />

novos membros.<br />

— Não seja idiota- Sarah diz para ele. Olho para ela enquanto passo por sua<br />

carteira, dentro de seus olhos azuis que fazem com que eu me sinta tímido e


embaraçado, que me fazem corar. O lugar em que me sentei no dia anterior<br />

está ocupado, então vou mais para o fundo. A classe enche e o garoto do dia<br />

anterior, que me alertou sobre o Mark, senta perto de mim. Ele está vestindo<br />

outra camiseta preta com o logotipo da NASA no meio, calças militares e um<br />

par de tênis da Nike. Tem um cabelo desgrenhado cor de areia e seus olhos<br />

castanhos são aumentados pelos óculos. Ele pega um caderno cheio de<br />

diagramas de constelações e planetas. Ele olha para mim e não tenta esconder<br />

o fato de que está me encarando.<br />

— Como vai?- eu pergunto.<br />

Ele balança os ombros.<br />

— Por que você está usando luvas?<br />

Eu abro minha boca para responder, mas a Sra. Burton começa a aula.<br />

Durante a maior parte do tempo, o garoto ao meu lado desenha figuras que<br />

parecem ser sua interpretação de como são os marcianos. Corpos pequenos;<br />

cabeças, mãos e olhos grandes. As mesmas representações estereotipadas<br />

que geralmente aparecem nos filmes. No final de cada desenho ele escreve<br />

seu nome em letras pequenas: SAM GOODE. Ele percebe que estou<br />

observando e eu olho para frente.<br />

Enquanto a Sra. Burton fala sobre as 61 luas de Saturno, eu olho para a<br />

cabeça de Mark. Ele está debruçado sobre sua carteira, escrevendo. Depois<br />

ele senta-se direito e passa um bilhete para Sarah. Ela devolve para ele sem<br />

ler. Isso me faz sorrir. A Sra. Burton apaga as luzes e começa a passar um<br />

vídeo. Os planetas em rotação sendo projetados na tela em frente à classe me<br />

fazem pensar em Lorien. Ele é um dos 18 planetas habitáveis no universo. A<br />

Terra é outro. E Mogadorian, infelizmente, outro.<br />

Lorien. Eu fecho meus olhos e me permito lembrar. Um planeta velho, centenas<br />

de eras mais velho que a Terra. Todos os problemas que a Terra possuía-<br />

poluição, superpopulação, aquecimento global, escassez de alimentos- Lorien<br />

também tinha. Em certo momento, vinte e cinco mil anos atrás, o planeta<br />

começou a morrer. Isso foi muito antes da possibilidade de se viajar através do<br />

universo e as pessoas de Lorien tinham que fazer alguma coisa para<br />

sobreviverem. Lenta, mas seguramente elas assumiram um compromisso de<br />

que mudariam seu modo de vida, acabando com todas as coisas nocivas-<br />

armas, bombas, venenos químicos, poluentes- para garantir que o planeta<br />

permanecesse auto-sustentável para sempre. Ao longo do tempo, os danos<br />

começaram a ser revertidos. Com as vantagens evolutivas, após milhares de<br />

anos, certos cidadãos- os Garde- desenvolveram poderes para protegerem o<br />

planeta e ajudá-lo. É como se os meus ancestrais Lorics tivessem sido<br />

recompensados por sua previdência, por seu respeito.


A Sra. Burton acende as luzes. Eu abro meus olhos e olho o relógio. A aula<br />

está prestes a acabar. Sinto-me calmo novamente e percebo que tinha me<br />

esquecido completamente das minhas mãos. Respiro profundamente e puxo a<br />

luva para dar uma olhada na mão direita. A luz se apagou! Sorrio e tiro as duas<br />

luvas. Novamente normal. Eu tenho mais seis aulas no dia. Eu tenho que<br />

permanecer em paz em todas elas.<br />

A primeira metade do dia transcorre sem incidentes. Eu continuo calmo e<br />

também não tenho outros encontros com Mark. No almoço, encho minha<br />

bandeja com o básico, depois encontro uma mesa vazia no fundo do refeitório.<br />

Eu estou no meio de um pedaço de pizza, quando Sam Goode, o garoto da<br />

minha aula de astronomia, senta-se na minha frente.<br />

— Você vai realmente brigar com Mark depois da escola?- ele pergunta.<br />

Balanço minha cabeça.<br />

— Não.<br />

— É o que as pessoas estão dizendo.<br />

— Elas estão erradas.<br />

Ele suspira e começa a comer. Um minuto depois, ele pergunta:<br />

— Onde as luvas foram parar?<br />

— Eu as tirei. Minhas mãos não estão mais frias.<br />

Ele abre a boca para responder, mas uma almôndega gigante, que eu tenho<br />

certeza que estava direcionada para me acertar, vem do nada e bate atrás da<br />

cabeça dele. Seu cabelo e seus ombros ficam cobertos de pedaços de carne e<br />

molho de espaguete. Algumas gotas respingam em mim. No momento em que<br />

eu começo a me limpar, uma segunda almôndega cruza o ar e me acerta na<br />

bochecha. Ouvi-se “ooh” em todo o refeitório.<br />

Levanto-me e limpo um lado do meu rosto com um guardanapo. A raiva<br />

percorre meu corpo. Naquele instante não me preocupo com minhas mãos.<br />

Elas podem brilhar mais do que o sol e eu e Henri termos que partir nessa<br />

mesma tarde, caso aconteça. Mas não existe nenhuma chance no mundo de<br />

eu deixar isso passar. Tudo havia terminado depois do que aconteceu de<br />

manhã... mas agora não mais.<br />

— Não- Sam diz- Se você brigar, eles nunca mais te deixarão em paz.


Começo a andar. Um silêncio se instala no refeitório. Centenas de pares de<br />

olhos se concentram em mim. Meu rosto fica com uma expressão raivosa. Sete<br />

pessoas estão sentadas na mesa de Mark, todos garotos. Todos os sete se<br />

levantam quando eu me aproximo.<br />

— Algum problema?- um deles me pergunta. Ele é grande, com aparência de<br />

um atacante ofensivo. Pêlos vermelhos crescem em suas bochechas e no seu<br />

queixo, parecendo que ele está deixando a barba crescer. Isso faz seu rosto<br />

parecer sujo. Como os outros, ele está usando uma jaqueta do time. Ele cruza<br />

os braços e permanece no meu caminho.<br />

— Isso não tem a ver com você- eu digo.<br />

— Para chegar nele, você vai ter que passar por mim.<br />

— É o que eu farei, se você não sair do meu caminho.<br />

— Não acho que você consiga- ele diz.<br />

Dou uma joelhada diretamente em seus testículos. Sua respiração fica presa<br />

na garganta e seu corpo se dobra. O refeitório inteiro sobressalta-se.<br />

— Eu te avisei- eu digo. Passo por cima dele e caminho em direção a Mark.<br />

Assim que o alcanço, sou agarrado por trás. Fecho minhas mãos, pronto para<br />

me virar, mas no último segundo percebo que é o funcionário do refeitório.<br />

— Já foi o suficiente, garotos.<br />

— Olhe o que ele acabou de fazer com o Kevin, Sr. Johnson.- Mark diz. Kevin<br />

ainda está no chão, se segurando. Seu rosto está vermelho-beterraba.- Mande<br />

ele para a diretoria.<br />

— Cale a boca, James. Todos vocês quatro vão. Não pense que eu não vi você<br />

jogando aquelas almôndegas.- ele diz, e olha para Kevin ainda no chão-<br />

Levante-se.<br />

Sam aparece do nada. Ele tentou limpar a sujeira do seu cabelo e dos seus<br />

ombros. Os pedaços maiores foram retirados, mas ele ainda está manchado de<br />

molho. Eu não sei por que ele está aqui. Olho para minhas mãos, pronto para<br />

fugir ao primeiro sinal de luz, mas para minha surpresa, elas estão apagadas.<br />

Será por que eu não havia previsto aquela situação, permitindo-me aproximarse<br />

dele sem que meus nervos estivessem pré-estimulados? Eu não sei.<br />

Kevin se levanta e olha para mim. Ele está trêmulo, ainda tendo dificuldade<br />

para respirar. Ele se agarra no ombro de um garoto ao lado para se apoiar.<br />

— Você pagará por isso- ele diz.


— Duvido- eu digo. Eu ainda estou com o rosto contorcido de raiva, ainda<br />

coberto de comida. E não estou me importando em me limpar.<br />

Nós quatro vamos para a sala do diretor. O Sr. Harris está sentado atrás de<br />

sua mesa comendo uma comida preparada no microondas, com um<br />

guardanapo pendurado no pescoço.<br />

— Desculpe interromper. Tivemos uma pequena discussão durante o almoço.<br />

Tenho certeza que esses garotos ficarão felizes em te explicar.- o funcionário<br />

do refeitório diz.<br />

O Sr. Harris suspira, tira o guardanapo do pescoço e joga-o no lixo. Ele<br />

empurra seu almoço para o lado com as costas da mão.<br />

— Obrigado, Sr. Johnson.<br />

O Sr. Johnson sai, fechando a porta da sala atrás dele, e nós quatro nos<br />

sentamos.<br />

— Então, quem quer começar?- o diretor diz com uma voz irritada.<br />

Eu permaneço em silêncio. Os músculos do rosto do Sr. Harris estão<br />

flexionados. Olho para minhas mãos. Ainda apagadas. Por via das dúvidas,<br />

posiciono as palmas viradas para minha calça. Depois de dez segundos de<br />

silêncio, Mark começa.<br />

— Alguém o acertou com uma almôndega. Ele pensou que fosse eu, então deu<br />

uma joelhada nas bolas do Kevin.<br />

— Preste atenção na sua linguagem- Mr. Harris diz, e depois se vira para<br />

Kevin.- Você está bem?<br />

Kevin, que ainda está com o rosto vermelho, confirma.<br />

— Então, quem atirou a almôndega?- o Sr. Harris me pergunta.<br />

Eu não digo nada, ainda fervendo, irritado com toda aquela cena. Respiro<br />

profundamente para tentar me acalmar.<br />

—Não sei- eu digo. Minha raiva alcançou novos níveis. Eu não quero brigar<br />

com Mark na frente do Sr. Harris, eu prefiro cuidar da situação sozinho, longe<br />

da sala do diretor.<br />

Sam me olha surpreso. O Sr. Harris levanta suas mãos, frustrado.<br />

— Bem, então, por que vocês estão aqui?<br />

— É uma boa pergunta- Mark diz- Nós estávamos simplesmente almoçando.<br />

Sam falou.


— Mark jogou a almôndega. Eu o vi atirando, Sr. Harris.<br />

Eu olho para Sam. Eu sabia que ele não tinha visto nada, porque ele estava de<br />

costas da primeira vez e na segunda, estava ocupado se limpando. Mas, eu<br />

estou impressionado com o fato dele ter dito aquilo, de ficar ao meu lado,<br />

mesmo sabendo que isso o colocará em perigo com Mark e seus amigos. Mark<br />

olha-o com uma cara feia.<br />

— Convenhamos, Sr. Harris- Mark alega- Eu tenho uma entrevista com a<br />

Gazeta amanhã, e um jogo na sexta-feira. Eu não tenho tempo de me<br />

preocupar com bobagens como essa. Estou sendo acusado de algo que não<br />

fiz. É difícil me concentrar com esse tipo de merda acontecendo.<br />

— Cuidado com a sua língua!- o Sr. Harris grita.<br />

— É verdade.<br />

— Acredito em você- o diretor diz, e suspira pesadamente. Ele olha para Kevin,<br />

que ainda está esforçando-se para recuperar o fôlego.- Você precisa ir para a<br />

enfermaria?<br />

— Eu ficarei bem- Kevin diz.<br />

O Sr. Harris confirma.<br />

— Vocês dois: esqueçam do incidente no refeitório, e Mark, mantenha-se<br />

concentrado. Nós demoramos muito para conseguir essa reportagem. Eles<br />

devem nos colocar na primeira página. Imagine isso, a primeira página da<br />

Gazeta.- ele diz e sorri.<br />

— Obrigado- Mark diz- Estou muito animado para isso.<br />

— Certo. Agora, vocês dois podem sair.<br />

Eles vão e o Sr. Harris olha duro para Sam. Sam o encara.<br />

— Diga-me, Sam. E eu quero a verdade. Você viu Mark jogar a almôndega?<br />

Os olhos de Sam se estreitam. Ele não desvia o olhar.<br />

— Sim.<br />

O diretor balança a cabeça.<br />

— Não acredito em você, Sam. E por isso, aqui está o que faremos- ele olha<br />

para mim- Então, uma almôndega foi jogada...<br />

—Duas- Sam interrompe.<br />

— O quê?! - o Sr. Harris pergunta, novamente encarando Sam.


— Duas almôndegas foram jogadas, não uma.<br />

O Sr. Harris bate sua mão na mesa.<br />

— Quem se importa com quantas foram jogadas! John, você atacou o Kevin.<br />

Olho por olho. Agora vamos esquecer isso. Você me entendeu?<br />

Seu rosto está vermelho e eu sei que é inútil discutir.<br />

— Sim- eu digo.<br />

— Não quero vê-los aqui novamente-ele diz- Vocês dois estão dispensados.<br />

Nós saímos da sala dele.<br />

— Por que você não falou para ele sobre seu celular?- Sam pergunta.<br />

— Porque ele não se importa. Ele só quer voltar para seu almoço- eu digo- E<br />

seja cuidadoso- falo para ele- Você está na mira do Mark agora.<br />

Depois do almoço, tenho aula de economia doméstica- não porque eu<br />

necessariamente me preocupo em cozinhar, mas porque é isso ou o coro. E<br />

embora eu tenha muita força e muitos poderes que são considerados<br />

excepcionais na Terra, cantar não está entre eles. Então eu vou para a aula de<br />

economia doméstica e me sento em um lugar. É uma sala pequena e antes do<br />

sinal tocar, Sarah entra na sala e senta-se ao meu lado.<br />

— Olá- ela diz.<br />

— Olá.<br />

Meu rosto cora e meus ombros enrijecem. Pego um lápis e começo a girar-lo<br />

na minha mão direita, enquanto minha mão esquerda segura os cantos do meu<br />

caderno. Meu coração acelera. Por favor, que minhas mãos não brilhem. Dou<br />

uma espiada na palma da minha mão e respiro com alivio, porque ainda ela<br />

está normal. Fique calmo, eu penso. Ela é apenas uma garota.<br />

Sarah está me olhando. Tudo dentro de mim parece estar derretendo. Ela deve<br />

ser a garota mais bonita que eu já vi.<br />

— Me desculpe por Mark estar sendo um idiota com você- ela diz.<br />

Eu balanço os ombros.<br />

— Não é sua culpa.<br />

— Vocês não vão brigar de verdade mais tarde, vão?


— Eu não quero.- eu digo.<br />

Ela balança a cabeça.<br />

— Ele consegue ser um idiota total. Sempre tentando mostrar que manda.<br />

— É um sinal de insegurança- eu digo.<br />

—Ele não é inseguro. Somente um idiota.<br />

Com certeza, ele é. Mas eu não quero discutir com Sarah. Além disso, ela fala<br />

com tanta certeza que eu quase duvido de mim mesmo.<br />

Ela olha as manchas de molho de espaguete que secaram na minha blusa,<br />

depois se aproxima e tirou um pedaço grande de almôndega do meu cabelo.<br />

— Obrigado.- eu digo.<br />

Ela suspira.<br />

— Sinto muito por isso ter acontecido- ela olha em meus olhos- Você sabe que<br />

não estamos mais juntos?<br />

— Não?<br />

Ela balança a cabeça. Estou intrigado pelo fato de ela ter sentido a<br />

necessidade de deixar aquilo claro para mim. Depois de dez minutos de<br />

explicações de como preparar panquecas- nenhum dos quais eu realmente<br />

escuto- a professora, Sra. Benshoff, monta duplas e deixa Sarah e eu juntos.<br />

Nós entramos em uma porta no fundo da sala que leva à cozinha, a qual é três<br />

vezes maior do que a sala de aula. Há dez mini-cozinhas diferentes, contendo<br />

geladeiras, armários, pias e fornos. Sarah caminha até uma, pega um avental<br />

em uma gaveta e o coloca.<br />

— Você pode amarrá-lo para mim?- ela pede.<br />

Eu puxo muito o cordão e tenho que amarrá-lo novamente. Eu posso sentir o<br />

contorno da parte inferior das costas dela contra meus dedos. Quando o<br />

avental dela está amarrado, começo a amarrar o meu.<br />

— Aqui, bobo- ela diz, pega o cordão e amarra para mim.<br />

— Obrigado.<br />

Eu tento quebrar o primeiro ovo, mas faço isso com muita força e praticamente<br />

todo o conteúdo cai para fora da tigela. Sarah ri. Ela me dá um novo ovo e<br />

segura minha mão na dela, me mostrando como quebrar o ovo na borda da<br />

tigela. Ela continua segurando minha mão por um segundo a mais do que o<br />

necessário, depois tira a sua. Ela olha para mim e sorri.


— É assim.<br />

Enquanto ela mistura a massa, mechas do seu cabelo caem em seu rosto. Eu<br />

quero desesperadamente pega-las e colocá-las atrás de sua orelha, mas não<br />

faço isso. A Sra. Benshoff entra em nossa cozinha para avaliar nosso<br />

progresso. Até aquele momento está bom, o que é tudo graças a Sarah, já que<br />

eu não tenho idéia do que estou fazendo.<br />

— Até agora, o que você achou de Ohio?- Sarah pergunta.<br />

— É legal. Eu só poderia ter tido um primeiro dia de aula melhor.<br />

Ela sorri.<br />

— O que aconteceu? Fiquei preocupada com você.<br />

— Você acreditaria se eu te disesse que já fui um alienígena?<br />

— Cala a boca- ela diz brincando- O que realmente aconteceu?<br />

Eu ri.<br />

— Eu tenho asma forte. Por alguma razão, eu tive uma crise ontem.- eu digo, e<br />

me sinto triste por ter que mentir. Eu não queria que ela visse fraqueza em<br />

mim, principalmente uma fraqueza que nem é verdadeira.<br />

— Bem, fico feliz que esteja melhor.<br />

Nós fazemos quatro panquecas. Sarah as empilha em um prato. Ela despeja<br />

uma quantidade absurda de xarope de bordo sobre elas e me dá um garfo. Eu<br />

olho para os outros alunos. A maioria está comendo em dois pratos. Eu corto<br />

um pedaço.<br />

— Nada mau- eu digo enquanto mastigo.<br />

Eu não estou com fome, mas ajudo-a a comer o resto. Nós alternamos<br />

pedaços até que o prato fica vazio. Quando terminamos, eu estou com dor de<br />

estômago. Depois, ela lava a louça e eu seco. Quando o sinal toca, nós saímos<br />

da sala juntos.<br />

— Sabe, você não é tão ruim para um aluno do segundo-ano- ela diz e me<br />

cutuca- Não me importo com o que dizem.<br />

— Obrigado, e você não é tão ruim para uma- seja lá o que você for.<br />

— Eu sou do terceiro ano.<br />

Nós caminhamos alguns passos em silêncio.<br />

— Você realmente não vai brigar com Mark no fim do dia, vai?


— Eu preciso do meu celular de volta. Além disso, olhe para mim.- eu digo e<br />

aponto minha blusa.<br />

Ela suspira. Eu paro no meu armário. Ela repara o número.<br />

— Bem, você não deveria- ela diz.<br />

— Eu não quero.<br />

Ela revira os olhos.<br />

— Garotos e suas brigas. De qualquer forma, te vejo amanhã.<br />

— Tenha um bom resto de dia- eu digo.<br />

Depois da nona aula, história americana, eu caminho devagar para meu<br />

armário. Penso em sair da escola, discretamente, sem procurar Mark. Mas<br />

depois percebo que fazendo isso, eu sererei rotulado para sempre como<br />

covarde.<br />

Abro meu armário e o encho com os livros que eu não preciso, esvaziando<br />

minha mochila. Depois, apenas permaneço ali e sinto o nervosismo começar a<br />

tomar conta de mim. Minhas mãos ainda estão normais. Penso em colocar as<br />

luvas apenas por precaução, mas não coloco. Respiro profundamente e fecho<br />

a porta do armário.<br />

— Oi- eu ouço, a voz me surpreende. É Sarah. Ela olha para trás, depois olha<br />

novamente para mim.- Tenho uma coisa para você.<br />

— Não são mais panquecas, são? Ainda estou sentindo que vou explodir.<br />

Ela ri nervosa.<br />

— Não são panquecas. Mas se eu te der, você tem que me prometer que não<br />

vai mais brigar.<br />

— Ok.- eu digo.<br />

Ela olha para trás novamente e rapidamente abre o bolso da frente de sua<br />

mochila. Ela pega meu celular e me dá.<br />

— Como você pegou isso?<br />

Ela balança os ombros.<br />

— Mark sabe?<br />

— Não. Então, você ainda vai dar uma de valentão?- ela pergunta.<br />

— Acho que não.


— Certo.<br />

— Obrigado.- eu digo. Eu não consigo acreditar que ela esforçou tanto para me<br />

ajudar- ela mal me conhece. Mas eu não estou reclamando.<br />

— De nada- ela diz, depois se vira e corre pelo corredor. Fico olhando ela por<br />

todo caminho, sem conseguir parar de sorrir. Quando vou em direção a saída<br />

encontro Mark James e oito amigos no lobby.<br />

— Bem, bem, bem- Mark diz- Realmente, chegou ao fim do dia, hum?<br />

— Certamente que sim. E olha o que eu encontrei- eu digo, segurando meu<br />

celular no alto para ele ver. Seu semblante cai. Passo por ele e saio do prédio.<br />

Capítulo 8<br />

HENRI ESTÁ ESTACIONADO EXATAMENTE ONDE DISSE QUE ESTARIA.<br />

Eu subo no caminhão ainda sorrindo.<br />

— Teve um bom dia?- ele pergunta.<br />

— Nada mal. Peguei meu celular de volta.<br />

— Sem briga?<br />

— Nenhuma importante.<br />

Ele olha para mim desconfiado.<br />

— Eu vou querer saber o que isso significa?<br />

— Provavelmente não.<br />

— De qualquer modo, suas mãos se acenderam?<br />

— Não- eu menti- Como foi seu dia?<br />

Ele pega a rua ao redor da escola.<br />

— Foi bom. Dirigi por uma hora e meia até Columbus depois de te deixar na<br />

escola.<br />

— Por que Columbus?<br />

— Pois há bancos grandes lá. Eu não queria gerar suspeitas, sacando uma<br />

quantidade de dinheiro maior do que a cidade inteira possui.<br />

Eu assinto.<br />

— Bem pensado.<br />

Ele entra na rodovia.


— Então, você vai me falar qual é o nome dela?<br />

— Ahn?- eu pergunto.<br />

— Tem que existir uma razão para esse seu sorriso ridículo. A razão mais<br />

óbvia é uma garota.<br />

— Como você saberia?<br />

— John, meu amigo, em Lorien esse velho Cepan aqui era um conquistador.<br />

— Não vem com essa- eu digo- não existem conquistadores em Lorien.<br />

Ele acena com a cabeça, confirmando.<br />

— Você prestou atenção.<br />

Os Loric são um povo monogâmico. Quando nos apaixonamos, é para a vida<br />

toda. O casamento é realizado por volta da idade de 25 anos, e não tem nada a<br />

ver com a lei. É baseado em compromisso e promessa, mas do que em<br />

qualquer outra coisa. Henri foi casado por vinte anos antes de partir comigo.<br />

Dez anos se passaram, mas eu sei que, a cada dia, ele ainda sente saudades<br />

da sua esposa<br />

— Então, quem é ela?- ele pergunta.<br />

— O nome dela é Sarah Hart. Ela é a filha da corretora imobiliária de quem<br />

você comprou a casa. Ela está em duas aulas comigo. Ela é do terceiro-ano.<br />

Ele assente.<br />

— Bonita?<br />

— Totalmente. E esperta.<br />

— Sim- ele diz lentamente- Eu espero isso há muito tempo. Apenas lembre-se<br />

que nós poderemos partir a qualquer momento.<br />

— Eu sei.- eu digo, e no resto do caminho para casa ficamos em silêncio.<br />

Quando chegamos em casa, o baú Loric está em cima da mesa. É do tamanho<br />

de um aparelho de microondas, quase perfeitamente quadrado, 45 cm de<br />

largura por 45 cm de comprimento. A excitação percorre meu corpo. Caminho<br />

até ele e seguro o cadeado em minhas mãos.<br />

— Acho que estou mais animado para aprender como abrir isso do que para<br />

saber o que realmente tem aí dentro.- eu digo.


— Sério? Bem, então eu posso te mostrar como destrancá-lo e depois nós<br />

trancamos de novo, esquecendo de olhar dentro.<br />

Eu sorrio para ele.<br />

— Não seja precipitado. Vamos lá. O que tem dentro?<br />

— É a sua Herança.<br />

— O que isso quer dizer, minha Herança?<br />

— A Herança é dada para cada Garde no seu nascimento, para ser usado por<br />

seu ou sua Protetor(a), quando o Garde está começando a desenvolver seus<br />

Legados.<br />

Eu assinto com alegria.<br />

— Então, o que é?<br />

— Sua Herança.<br />

A resposta evasiva dele me frustra. Eu pego o cadeado e tento forçá-lo a abrir,<br />

como eu sempre tentava fazer. É claro que nada acontece.<br />

— Você não pode abri-la sem mim, nem eu sem você.- Henri diz.<br />

— Bem, então como abrimos isso? Não há abertura para chave.<br />

— Pela vontade.<br />

— Ah, vamos lá, Henri. Deixe de ser tão misterioso.<br />

Ele tira o cadeado da minha mão.<br />

— O cadeado se abre somente quando estamos juntos, e somente após o seu<br />

primeiro Legado aparecer.<br />

Ele caminha até a porta da frente e estica sua cabeça para fora, depois fecha a<br />

porta e a tranca. Ele volta.<br />

— Pressione a palma da sua mão contra o lado do cadeado- ele diz e assim eu<br />

faço.<br />

— Está quente- eu digo.<br />

— Certo. Isso significa que você está pronto.<br />

— E agora?<br />

Ele pressiona a palma de sua mão contra o outro lado do cadeado e entrelaça<br />

seus dedos nos meus. Um segundo se passa. O cadeado abre-se.


—Incrível- eu digo.<br />

— O baú é protegido por um feitiço Loric, assim como você. Ele não pode ser<br />

quebrado. Você poderia passar um rolo compressor por cima dele e mesmo<br />

assim ele não seria danificado. Somente podemos abri-lo juntos. A não ser que<br />

eu morra; nesse caso você pode abrir sozinho.<br />

— Bem- eu digo- espero que isso não aconteça.<br />

Eu tento levantar a tampa do baú, mas Henri detém.<br />

— Ainda não- ele diz.- Há coisas ai dentro que você não está pronto para ver.<br />

Vá sentar-se no sofá.<br />

— Henri, vamos lá.<br />

— Apenas confie em mim- ele diz.<br />

Eu balanço minha cabeça e vou me sentar. Ele abre a caixa e tira uma pedra<br />

de mais ou menos 15 cm de comprimento e 5 cm de espessura. Ele tranca o<br />

baú e depois traz a pedra para mim. Ela é perfeitamente lisa e alongada, clara<br />

no exterior, mas turva no centro.<br />

— O que é isso?- eu pergunto.<br />

— Um cristal Loric.<br />

— Para que serve?<br />

— Segure-o- ele diz, estendendo-o para mim. No segundo em que minhas<br />

mãos entram em contato com o cristal, luzes em suas palmas se acendem.<br />

Elas estão até mais brilhantes do que no dia anterior. A pedra começa a<br />

aquecer-se. Levanto-a para olhar mais de perto. A massa turva no centro é um<br />

redemoinho, girando em torno de si mesmo como uma onda. Também posso<br />

sentir o amuleto pendurado em meu pescoço se aquecendo. Estou<br />

emocionado com todos esses novos eventos. Eu passei minha vida inteira<br />

esperando impaciente pela chegada dos meus poderes. Certamente, houve<br />

vezes em que eu desejei que eles nunca chegassem, principalmente porque<br />

poderíamos nós estabelecer em algum lugar e viver uma vida normal- mas<br />

naquele momento- segurando um cristal que contem o que parecia ser uma<br />

bola de fumaça em seu centro, sabendo que minhas mãos são resistentes ao<br />

aquecimento e ao fogo e que mais Legados estão por vir, me dando um poder<br />

maior (o poder que me permitirá lutar)- bem, tudo é muito legal e excitante. Eu<br />

não consigo tirar o sorriso do meu rosto.<br />

— O que está acontecendo com ele?


— Ele está unido ao seu Legado. Seu toque o ativou. Se você não tivesse<br />

desenvolvido o Lumen, o cristal se acenderia do modo como suas mãos estão<br />

acesas. Como você desenvolveu, suas mãos se acendem.<br />

Eu encaro o cristal, examinando o circulo nebuloso e o brilho.<br />

— Vamos começar?- Henri pergunta.<br />

Eu consinto, rapidamente.<br />

— É claro que sim.<br />

O dia tornou-se frio. A casa está silenciosa a não ser por rajadas de vento<br />

ocasionais que chacoalham as janelas. Eu estou deitado de costas em cima da<br />

mesa de centro de madeira. Minhas mãos estão suspensas do lado. A qualquer<br />

momento, Henri fará uma fogueira abaixo delas. Minha respiração está lenta e<br />

constante, como Henri me instruiu.<br />

— Você tem que manter seus olhos fechados- ele diz- Apenas ouça o vento.<br />

Você deverá sentir uma leve ardência em seus braços quando eu arrastar o<br />

cristal por eles. Ignore essa sensação o máximo que você puder.<br />

Eu escuto o vento soprando nas árvores lá fora. Eu posso, de alguma forma,<br />

senti-las balançarem e penderem.<br />

Henri começa pela minha mão direita. Ele pressiona o cristal contra seu dorso,<br />

depois o arrasta pelo meu pulso e pelo meu antebraço. Há uma ardência, como<br />

ele havia avisado, mas não suficiente para me fazer puxar o braço.<br />

— Deixe sua mente vagar, John. Vá aonde você precisa ir.<br />

Eu não sei sobre o que ele está falando, mas tento esvaziar minha mente e<br />

respirar lentamente. De repente, sinto que estou me afastando dali. Vindo de<br />

algum lugar, posso sentir o calor do sol no meu rosto, e o vento soprando bem<br />

mais quente do que o vento que sopra além de nossas paredes. Quando abro<br />

os olhos, não estou mais em Ohio.<br />

Estou acima de uma vasta área de árvores, com nada além de floresta até<br />

onde eu posso enxergar. Céu azul, o sol brilhando, um sol com o dobro do<br />

tamanho do sol da Terra. Uma brisa leve e quente bagunça meu cabelo.<br />

Embaixo, rios cortam desfiladeiros profundos que se encontram no meio da<br />

vegetação. Eu estou flutuando acima de um deles. Animais de todas as formas<br />

e tamanhos- alguns alongados e magros, alguns com braços curtos e corpos<br />

robustos, alguns com cabelo e outros com pele escura que parece áspera ao<br />

toque- estão bebendo a água fresca das margens do rio. Há uma curva na<br />

linha do horizonte, e eu sei que estou em Lorien. É um planeta dez vezes


menor do que a Terra e é possível ver a curvatura da sua superfície ao olhar de<br />

uma certa distância.<br />

De alguma forma, sou capaz de voar. Vou para cima e giro no ar, depois vôo<br />

como um torpedo para baixo e acompanho com velocidade a superfície do rio.<br />

Os animais levantam suas cabeças e me olham com curiosidade, mas não com<br />

medo. Lorien em seus primórdios, coberto de florestas, habitado por animais.<br />

De certa forma, é como eu imagino que a Terra era a milhões de anos atrás,<br />

quando a natureza governava a vida de suas criaturas, antes dos humanos<br />

chegarem e começarem a governar a natureza. Lorien em seus primórdios; eu<br />

sei que nem de longe parece com o que Lorien é hoje. Eu devo estar revivendo<br />

uma lembrança. Certamente não é uma lembrança minha, é?<br />

E depois o dia dá espaço para escuridão. Distante, uma bela exibição de fogos<br />

de artifício começa, cruzando alto no céu com formas de animais e árvores; o<br />

céu escuro, a lua e milhões de estrelas servem como um pano de fundo<br />

brilhante.<br />

—Eu posso sentir o desespero deles- eu ouço de algum lugar. Viro e olho ao<br />

meu redor. Não há ninguém ali.- Eles sabem onde um dos outros está, mas o<br />

feitiço permanece. Eles não podem tocá-la sem te matarem antes. Mas eles<br />

continuam seguindo-a.<br />

Eu vôo mais alto, depois mergulho para baixo, procurando a origem daquela<br />

voz. De onde ela está vindo?<br />

—Agora é o momento em que temos que ser mais cautelosos. Agora é o<br />

momento em que temos que estar à frente deles.<br />

Sigo em direção aos fogos de artifício. A voz me irrita. Talvez, o barulho alto<br />

prevalecerá sobre aquela voz.<br />

— Eles esperavam matar todos nós bem antes que seus Legados se<br />

desenvolvessem. Mas nos mantivemos escondidos. Nós temos que ficar<br />

calmos. Os três primeiros entraram em pânico. Os três primeiros estão mortos.<br />

Nós temos que ser espertos e cautelosos. Quando entramos em pânico,<br />

cometemos erros. Eles sabem que cada vez ficará mais difícil para eles quanto<br />

mais desenvolvidos vocês estiverem, e quando vocês estiverem<br />

completamente prontos, a guerra será travada. Nós os enfrentaremos e<br />

buscaremos nossa vingança, e eles sabem disso.<br />

Eu vejo bombas vindas do alto caírem sobre a superfície de Lorien. As<br />

explosões balançam o chão e o ar; gritos são carregados pelo vento; rajadas<br />

de fogo consumem o chão e as árvores. A floresta queima. Deve haver<br />

milhares de naves diferentes, todas mergulhando do céu sob a superfície de<br />

Lorien. Soldados Mogadorian saltam, carregando armas e granadas muito mais<br />

potentes do que as utilizados nas guerras da Terra. Eles são mais altos do que


nós, mas se parecem conosco, exceto pelo rosto. Eles não tem pupilas e suas<br />

íris são de uma forte coloração magenta, sendo em alguns deles negra.<br />

Círculos escuros e pesados rodeiam seus olhos e sua pele é pálida - quase<br />

descolorida, cheia de equimoses. Os dentes deles brilham entre os lábios que<br />

parecem nunca se fechar, dentes que parecem muito polidos, chegando a um<br />

ponto não natural.<br />

As bestas de Mogadore saem das naves logo depois, com o mesmo olhar<br />

gélido. Algumas delas são maiores do que uma casa e mostram seus dentes<br />

cortantes, rugindo tão alto a ponto de fazer meus ouvidos doerem.<br />

— Nós fomos descuidados, John. Essa é a razão pela qual fomos derrotados<br />

tão facilmente.- ele diz. Agora, eu sei que a voz que tenho ouvido é de Henri.<br />

Mas ele não está em nenhum lugar em que possa ser visto, e eu não consigo<br />

desviar meus olhos da matança e da destruição abaixo de mim para procurar<br />

por ele. As pessoas estão correndo por toda a parte, lutando. Tanto<br />

Mogadorians quanto Lorics estão morrendo. Mas os Loric estão perdendo a<br />

batalha contra as bestas, as quais estão matando nosso povo às dúzias:<br />

cuspindo fogo, rangendo os dentes, balançando ferozmente os braços e as<br />

caudas. O tempo está correndo, passando muito mais rápido do que o normal.<br />

Quanto tempo já passou? Uma hora? Duas?<br />

Os Garde lideram o combate, usando seus Legados ao máximo. Alguns estão<br />

voando, alguns são capazes de correr muito rápido a ponto de tornarem-se<br />

vultos, e alguns podem desaparecer completamente. Lasers são atirados por<br />

mãos; corpos são envolvidos pelas chamas; nuvens de tempestades são<br />

conjugadas a ventos fortes por aqueles que conseguem controlar o clima. Mas,<br />

mesmo assim, eles estão perdendo. Estão em menor número: para cada 500<br />

Mogadorian há 1 Garde. Seus poderes não são suficientes.<br />

— Nossa guarda foi derrotada. Os Mogadorians planejaram bem, nos atacando<br />

no momento exato em que estávamos mais vulneráveis, quando os anciões<br />

tinham partido. Pittacus Lore, o maior deles, o líder, os convocou antes do<br />

ataque. Ninguém sabe o que aconteceu com eles, para onde eles foram, ou se<br />

ainda estão vivos. Talvez os Mogadorians os pegaram primeiro, e uma vez que<br />

os anciões estão fora do caminho, eles nos atacaram. Tudo o que realmente<br />

sabemos é que havia uma coluna de luz branca cintilante, que cortava o céu<br />

até onde os olhos podiam ver no dia em que os anciões se reuniram. Ela durou<br />

um dia inteiro, depois desapareceu. Nós, como um povo, deveríamos ter<br />

reconhecido isso como um sinal de que algo está errado, mas não foi o que<br />

aconteceu. Nós não podemos culpar ninguém além de nós mesmos pelo<br />

ocorrido. Tivemos sorte de conseguir enviar alguns de nós para fora do<br />

planeta, principalmente nove jovens Garde que, algum dia, continuarão a<br />

batalha e manterão a nossa espécie viva.


Distante, uma nave sobe rapidamente pelo céu, seguida por um rastro azul. Eu<br />

a assisto, do meu lugar privilegiado, cruzar o céu até desaparecer. Há algo<br />

familiar naquilo. Logo, eu percebo: eu estou na nave e Henri também. É a nave<br />

nos levando até a Terra. Os Loric deviam saber que seriam derrotados. Por<br />

que outro motivo nos mandariam para longe?<br />

Massacre inútil. É como tudo isso parece para mim. Eu pouso no chão e passo<br />

através de uma bola de fogo. A raiva percorre meu corpo. Homens e mulheres<br />

estão morrendo, Garde e Cepan, juntamente com crianças indefesas. Como<br />

aquilo pode ser tolerado? Como o coração dos Mogadorians pode ser tão<br />

insensível a ponto de fazer tudo isso? E por que eu estou sendo poupado?<br />

Eu ataco um soldado próximo a mim, mas atravesso-o e caio no chão. Tudo o<br />

que eu estou testemunhando já aconteceu. Sou um espectador de nossa<br />

própria derrota e não há nada que eu possa fazer.<br />

Viro-me e encaro uma besta que deve ter uns doze metros de altura, ombros<br />

largos, olhos vermelhos e chifres de seis metros de comprimento. De seus<br />

dentes longos e afiados cai saliva. Ela solta um rugido e ataca.<br />

A besta me atravessa, mas mata dúzias de Lorics atrás de mim. De uma vez,<br />

todos eles morrem. A besta continua se movendo, matando mais Lorics.<br />

Além da cena de destruição, eu ouço um barulho de arranhão, que não vem da<br />

carnificina que ocorre em Loric. Eu estou vagando, ou voltando. Duas mãos<br />

pressionam meus ombros para baixo. Meus olhos se abrem e eu estou de volta<br />

à nossa casa em Ohio. Meus braços estão suspensos dos lados da mesa de<br />

centro. Centímetros abaixo deles há dois caldeirões de fogo, e minhas mãos e<br />

pulsos estão completamente submergidos nas chamas. Porém, não sinto os<br />

efeitos disso. Henri está em pé, perto de mim. O barulho que eu ouvi um<br />

minuto atrás está vindo da varanda da frente.<br />

— O que é isso?- eu sussurro, me sentando.<br />

— Eu não sei- ele diz.<br />

Nós dois ficamos em silêncio, nos esforçando para ouvir. Três novos arranhões<br />

na porta. Henri olha para mim.<br />

— Há alguém lá fora- ele diz.<br />

Eu olho no relógio na parede. Aproximadamente, uma hora se passou. Eu<br />

estou suando, com a respiração descompassada, agitado pelas cenas de<br />

carnificina que acabei de testemunhar. Pela primeira vez em minha vida, eu<br />

realmente entendo o que aconteceu em Lorien. Antes de hoje a noite, os<br />

eventos eram apenas parte de outra história, não diferente de muitos livros que


eu li. Mas agora eu vi o sangue, as lágrimas e a morte. Eu vi a destruição. É<br />

uma parte de quem eu sou.<br />

Do lado de fora, está escuro. Três outros arranhões na porta, um gemido baixo.<br />

Nós dois nos sobressaltamos. Eu imediatamente lembro-me dos rugidos baixos<br />

que ouvi vindos das bestas.<br />

Henri corre até a cozinha e apanha uma faca da gaveta ao lado da pia.<br />

— Vá para trás do sofá.<br />

— O quê, por quê?<br />

— Porque eu estou dizendo.<br />

— Você acha que essa pequena faca vai derrubar um Mogadorian?<br />

— Se eu acertar ele diretamente no coração, sim. Agora vá.<br />

Eu pulo da mesa de centro e me agacho atrás do sofá. Os dois caldeirões de<br />

fogo ainda estão acesos; fracas visões de Lorien ainda percorrem minha<br />

mente. Um rosnado impaciente vem do outro lado da porta da frente. Não há<br />

dúvidas que alguém, ou alguma coisa, está lá fora. Meu coração dispara.<br />

— Mantenha-se abaixado- Henri diz.<br />

Levanto minha cabeça para que eu possa espreitar por cima do encosto do<br />

sofá. Penso em todo aquele sangue. Certamente eles sabiam que seriam<br />

derrotados. Mas, de qualquer forma, eles lutaram até o fim, morrendo para<br />

salvar uns aos outros, morrendo para salvar Lorien. Henri segura a faca<br />

firmemente. Ele alcança lentamente a maçaneta de bronze. A raiva percorre<br />

meu corpo. Eu desejo que seja um deles. Deixe um Mogadorian atravessar<br />

aquela porta. Ele encontrará um oponente a altura.<br />

Não há como eu continuar atrás desse sofá. Eu me estico e pego um dos<br />

caldeirões, coloco minha mão dentro dele e tiro um pedaço de madeira<br />

incandescente e pontiagudo. Ele é frio ao toque, mas o fogo queima nele, e<br />

espalha-se pela minha mão. Eu seguro o pedaço de madeira como um punhal.<br />

Deixe que eles venham, eu penso. Não haverá mais fugas. Henri olha para<br />

mim, respira profundamente e abre a porta da frente.<br />

Capítulo 9<br />

Todos os músculos do meu corpo estão flexionados, todos tensos. Henri pula<br />

para a porta, e eu estou pronto para segui-lo. Eu posso sentir o tum-tum-tum no<br />

meu peito. As articulações de meus dedos estão brancas, segurando o pedaço<br />

de madeira que ainda está queimando. Uma rajada de vento entra pela porta e<br />

o fogo se espalha pela minha mão e sobe até meu pulso. Ninguém está lá. De<br />

repente, o corpo de Henri relaxa e ele ri, olhando para seus pés. Lá, olhando


para Henri com a parte de cima dos olhos, está o mesmo beagle que eu vi na<br />

escola ontem. O cachorro abana seu rabo e mexe suas patas no chão. Henri<br />

se abaixa e o afaga; em seguida o cachorro se desvencilha de Henri e trota<br />

para dentro da casa com a língua balançando.<br />

— O que ele está fazendo aqui?- eu pergunto.<br />

— Você conhece esse cachorro?<br />

— Eu o vi na escola. Ele ficou me seguindo ontem, depois que você me deixou<br />

lá.<br />

Eu coloco o pedaço de madeira de volta no caldeirão e limpo minha mão na<br />

calças jeans, deixando um rastro de cinzas negras na parte da frente da calça.<br />

O cachorro senta aos meus pés e olha para cima com expectativa, com seu<br />

rabo batendo contra o chão duro de madeira. Eu sento no sofá e assisto ambos<br />

os caldeirões queimarem. Agora que a excitação da situação acabou, minha<br />

mente volta para o que eu acabei de presenciar em minha visão. Eu ainda<br />

posso escutar os gritos em meus ouvidos, ainda vejo o modo como o sangue<br />

brilha na grama sob a luz do luar, os corpos e as árvores derrubadas, o brilho<br />

avermelhado nos olhos das bestas de Mogadore e o terror nos olhos dos Loric.<br />

Eu olho para Henri.<br />

— Eu vi o que aconteceu. Pelo menos, o começo de tudo.<br />

Ele assente.<br />

— Eu imaginei que você veria.<br />

— Eu pude ouvir a sua voz. Você estava falando comigo?<br />

— Sim.<br />

— Eu não compreendo- eu digo- Foi um massacre. Havia muito ódio neles para<br />

que seu interesse fosse apenas nossos recursos. Havia algo mais do que isso.<br />

Henri suspira e senta na mesa de centro em frente a mim. O cachorro pula no<br />

meu colo. Eu o afago. Ele está imundo; sinto seu pêlo duro e oleoso em minhas<br />

mãos. Na frente da sua coleira, há uma etiqueta anexada com o formato de<br />

uma bola de futebol americano. É uma etiqueta velha, com a maior parte da<br />

sua coloração marrom desgastada. Eu a pego em minha mão, há o número 19<br />

de um lado e o nome BERNIE KOSAR do outro.<br />

—Bernie Kosar- eu digo. O cachorro abana o rabo.- Acho que esse é o nome<br />

dele, o mesmo do cara do pôster na minha parede. É um nome popular por<br />

aqui. – Passo minha mão pelas costas do cão- Ele não parece ter uma casa-<br />

eu digo- e ele está faminto.- De alguma forma posso deduzir isso.


Henri assente. Ele olha para Bernie Kosar. O cachorro se estica, descansa seu<br />

queixo sob as patas e fecha os olhos. Eu acendo o isqueiro e passo a chama<br />

pelos meus dedos, pela palma da minha mão e depois pelo lado interno do<br />

meu braço. Somente quando a chama está à 2 ou 3 cm do meu ombro, eu<br />

sinto queimar. Seja lá o que Henri fez, funcionou e minha resistência<br />

aumentou. Eu me pergunto quanto tempo levará até meu corpo inteiro se tornar<br />

resistente.<br />

— Então, o que aconteceu?- eu pergunto.<br />

Henri respira profundamente.<br />

— Eu tive aquelas visões também. São tão reais, como se você realmente<br />

estivesse lá.<br />

— Eu nunca tive consciência de quão ruim foi tudo aquilo. Quero dizer, eu sei<br />

que você me contou, mas eu não compreendi verdadeiramente até que vi com<br />

meus próprios olhos.<br />

— Os Mogadorians são diferentes de nós, dissimulados e manipuladores,<br />

desconfiados de quase tudo. Eles têm certos poderes, mas não como os<br />

nossos. Eles vivem em bandos, em cidades lotadas. Quanto mais densamente<br />

povoadas, melhor. Essa é a razão pela qual você e eu estamos fora das<br />

grandes cidades agora, mesmo sabendo que se vivêssemos em uma, seria<br />

mais fácil nos misturar. Porém, seria infinitamente mais fácil para eles se<br />

misturarem também.<br />

— Quase cem anos atrás, Mogadore começou a morrer, assim como<br />

aconteceu com Lorien 25 mil anos antes. Entretanto, eles não agiram da forma<br />

como agimos - não entenderam o que fazer, como a população humana está<br />

começando a entender agora. Eles ignoraram. Mataram seus oceanos e<br />

encheram os rios e lagos com esgoto e lixo, para continuar aumentando suas<br />

cidades. A vegetação começou a morrer, o que fez com que os herbívoros<br />

morressem e os carnívoros não ficaram atrás. Eles perceberam que tinham que<br />

fazer algo drástico.<br />

Henri fecha seus olhos e permanece em silêncio por um minuto inteiro.<br />

— Você sabe qual é o planeta habitável mais próximo de Mogadore?- ele<br />

finalmente pergunta.<br />

— Sim, é Lorien. Ou era, eu acho.<br />

Henri assente.<br />

— Sim, é Lorien. E eu tenho certeza que você sabe agora que eram dos<br />

nossos recursos que eles estavam atrás.


Eu confirmo com a cabeça. Bernie Kosar levanta sua cabeça e solta um grande<br />

bocejo. Henri esquenta um filé de frango cozido no microondas, o corta em<br />

tiras, em seguida carrega o prato para o sofá e o coloca em frente ao cachorro.<br />

Ele come com ferocidade, como se não estivesse se alimentando há dias.<br />

— Há um grande número de Mogadorians na Terra- Henri continua- Eu não sei<br />

quantos estão aqui, mas eu posso senti-los enquanto durmo. Algumas vezes<br />

posso vê-los em meus sonhos. Eu nunca entendo onde eles estão, ou o que<br />

estão dizendo. Mas eu os vejo. E não acho que vocês seis são a única razão<br />

para haver tantos deles aqui.<br />

— O que você quer dizer? Por que outra razão eles estariam aqui?<br />

Henri olha em meus olhos.<br />

— Você sabe qual é o segundo planeta habitável mais próximo de Mogadore?<br />

Eu assinto.<br />

— É a Terra, não é?<br />

— Mogadore é duas vezes maior do que Lorien, mas a Terra é cinco vezes<br />

maior que Mogadore. Em termos de defesa, a Terra é melhor preparada contra<br />

um ataque, devido ao seu tamanho. Os Mogadorians precisam conhecer esse<br />

planeta melhor antes que possam atacar. Eu não sou capaz de te dizer por que<br />

fomos derrotados tão facilmente, pois ainda há muitas coisas que não<br />

compreendo. Mas eu posso dizer, com certeza, que parte do motivo foi uma<br />

combinação do conhecimento deles sobre nosso planeta e nosso povo e do<br />

fato de não termos outras defesas além da nossa inteligência e dos Legados<br />

dos Garde. Diga o que quiser dos Mogadorians, mas eles são estrategistas<br />

brilhantes quando entram em uma guerra.<br />

Nós ficamos em silêncio; o vento ainda soprando lá fora.<br />

— Eu não acho que eles estão interessados em tomar os recursos da Terra-<br />

Henri diz.<br />

Eu suspiro e olho para ele.<br />

— Por que não?<br />

— Mogadore ainda está morrendo. Mesmo que eles tenham resolvido os<br />

problemas mais urgentes, a morte do planeta é inevitável, e eles sabem disso.<br />

Acho que eles querem fazer da Terra o seu lar permanente.


Eu dou banho em Bernie Kosar, depois do jantar, usando xampu e<br />

condicionador. Eu o escovo com um pente velho esquecido pelo último<br />

inquilino em uma das gavetas. Sua aparência e cheiro são muito melhores do<br />

que antes, mas sua coleira ainda fede. Eu a jogo fora. Antes de ir para a cama,<br />

eu seguro a porta da frente aberta para ele, mas ele não está interessado em<br />

voltar lá para fora. Ao invés disso, ele se deita no chão e apóia o queixo nas<br />

patas da frente. Posso sentir sua vontade de permanecer na casa conosco.<br />

Pergunto-me se ele pode sentir minha vontade que ele fique também.<br />

— Acho que temos um novo animal de estimação- Henri diz.<br />

Eu sorrio. Desde quando eu o vi mais cedo, esperava que Henri me deixasse<br />

ficar com ele.<br />

— Parece que sim- eu digo.<br />

Meia hora depois, me arrasto para a cama e Bernie Kosar vem comigo, se<br />

encolhendo como uma bola nos meus pés. Ele está roncando dentro de<br />

minutos. Deito-me de costas por algum tempo, olhando para a escuridão, com<br />

um milhão de pensamentos diferentes inundando minha cabeça. Imagens da<br />

guerra: os olhares vorazes e famintos dos Mogadorians; os olhares raivosos e<br />

firmes das bestas; a morte e o sangue. Penso na beleza de Lorien. Esse<br />

planeta um dia será habitável novamente ou eu e Henri continuaremos<br />

esperando aqui na Terra para sempre?<br />

Tento tirar os pensamentos e imagens da minha mente, mas não consigo<br />

deixá-los de fora por muito tempo. Levanto-me e ando um pouco. Bernie Kosar<br />

levanta a cabeça e me olha, mas depois a abaixa e cai novamente no sono. Eu<br />

suspiro e pego meu celular do criado-mudo, a fim de verificar se Mark James<br />

não bagunçou nada. O número de Henri ainda está aqui, mas já não é mais<br />

meu único contato. Outro número, escrito abaixo do nome “Sarah Hart” foi<br />

adicionado. Depois do último sinal tocar e antes de vir até meu armário, Sarah<br />

adicionou seu número em meu celular.<br />

Fecho meu celular, coloco-o no criado-mudo e sorrio. Dois minutos se passam<br />

e eu olho o celular novamente para ter certeza que não estava vendo coisas.<br />

Não estava. Fecho e coloco-o de novo no criado-mudo, somente para pega-lo<br />

cinco minutos depois para olhar o número dela outra vez. Não sei quanto<br />

tempo demora até eu adormecer, mas eu finalmente durmo. Quando acordo de<br />

manhã, meu celular ainda está em minha mão, repousando sobre meu peito.<br />

Capítulo 10<br />

BERNIE KOSAR ESTÁ ARRANHANDO A PORTA DO MEU QUARTO<br />

QUANDO ACORDO. Deixo-o sair da casa. Ele ronda o quintal, correndo por<br />

toda sua extensão com o nariz no chão. Depois que percorre os quatro cantos<br />

do quintal, ele foge e desaparece no mato. Fecho a porta e vou tomar banho.


Saio dez minutos depois e ele está novamente dentro de casa, sentado no<br />

sofá. Ele abana seu rabo quando me vê.<br />

— Você o deixou entrar?- pergunto para Henri, que está na mesa da cozinha<br />

com seu laptop aberto e quatro jornais empilhados na sua frente.<br />

— Sim.<br />

Depois de um café-da-manhã rápido, nós saímos. Bernie Kosar corre à nossa<br />

frente, depois pára e senta-se, olhando para a porta do passageiro no<br />

caminhão.<br />

— Isso é meio esquisito, você não acha?- eu digo.<br />

Henri encolhe os ombros.<br />

— Aparentemente, não é a primeira vez que ele passeia de carro. Deixe-o<br />

entrar.<br />

Abro a porta e ele pula para dentro. Ele senta-se no banco do meio com sua<br />

língua balançando. Quando saímos da garagem, ele vem para meu colo e<br />

coloca as patas na janela. Eu abaixo o vidro e ele coloca metade do corpo fora<br />

do caminhão, com a boca ainda aberta e o vento balançando suas orelhas.<br />

Cinco quilômetros depois, Henri chega à escola. Abro a porta e Bernie Kosar<br />

pula para fora antes de mim. Coloco-o de volta no caminhão, mas ele<br />

novamente pula para fora. Coloco-o no caminhão de novo e o impeço de sair<br />

até conseguir fechar a porta. Ele se equilibra apenas com as patas traseiras; as<br />

patas dianteiras estão na borda da porta, já que a janela permanece aberta.<br />

Dou um tapinha na cabeça dele.<br />

— As luvas estão com você?- Henri pergunta.<br />

—Sim.<br />

— Celular?<br />

—Sim.<br />

— Como se sente?<br />

— Me sinto bem- eu digo.<br />

— Ok. Me ligue se tiver qualquer tipo de problema.<br />

Ele vai embora e Bernie Kosar me olha da janela traseira até que o caminhão<br />

desaparece em uma curva.<br />

Sinto um nervosismo parecido com o do dia anterior, mas por razões<br />

diferentes. Metade de mim quer ver Sarah logo, embora metade de mim espera<br />

não vê-la de modo algum. Não sei o que dizer a ela. E se eu não conseguir


pensar em nada e ficar lá parecendo um idiota? E se ela estiver com Mark<br />

quando eu a ver? Devo cumprimentá-la e arriscar outra briga, ou apenas<br />

passar por ela e fingir que não os vi? No mínimo, vou vê-los na segunda aula.<br />

Não há como fugir disso.<br />

Caminho para meu armário. Minha mochila está cheia de livros que eu deveria<br />

ter lido na noite passada, mas os quais eu nem abri. Muitos pensamentos e<br />

imagens se passam em minha cabeça. Eles não se foram, e é difícil imaginar<br />

que um dia sairão da minha mente. Foi muito diferente do que eu imaginava. A<br />

morte não é como aparece nos filmes. Os sons, as imagens, os cheiros. Tão<br />

diferentes.<br />

No meu armário, eu noto imediatamente que algo está errado. O trinco de<br />

metal está coberto de barro, ou algo que se parece com barro. Não tenho<br />

certeza se devo abri-lo, mas, em seguida, respiro profundamente e forço o<br />

trinco para cima.<br />

O armário está cheio até a metade de estrume e no momento em que eu abro<br />

a porta, grande parte cai no chão, cobrindo meus sapatos. O cheiro é horrível.<br />

Eu bato a porta para fechar. Sam Goode estava atrás da porta e sua aparição<br />

repentina vindo do nada me assusta. Ele parece desolado, vestindo uma<br />

camiseta branca da NASA muito pouco diferente da que estava usando ontem.<br />

— Oi Sam.- eu digo<br />

Ele olha para o monte de estrume no chão, depois de volta para mim.<br />

— Você também?- pergunto.<br />

Ele confirma com a cabeça.<br />

— Vou para a sala do diretor. Você quer vir?<br />

Ele balança a cabeça, depois se vira e vai embora sem dizer uma palavra. Vou<br />

para a sala do Sr. Harris, bato na porta, depois entro sem esperar por sua<br />

resposta. Ele está sentado atrás da sua mesa, vestindo uma gravata cheia de<br />

desenhos do mascote da escola, com nada menos que vinte cabeças de pirata<br />

minúsculas. Ele sorri orgulhosamente para mim.<br />

— Hoje é um grande dia, John- ele diz. Eu não sei sobre o que ele está<br />

falando- Os repórteres da Gazeta deverão estar aqui em uma hora. Primeira<br />

página!<br />

Daí eu me lembro da grande entrevista de Mark James para o jornal local.<br />

— O senhor deve estar muito orgulhoso.- digo.


— Me orgulho de cada um dos estudantes de Paraíso.- o sorriso não sai de<br />

seu rosto. Ele se inclina para trás na cadeira, entrelaça os dedos e descansa<br />

as mãos sobre a barriga.- O que eu posso fazer por você?<br />

— Apenas queria que o senhor soubesse que meu armário estava cheio de<br />

estrume essa manhã.<br />

— O que você quer dizer com “cheio”?<br />

— Quero dizer que o armário inteiro estava cheio de estrume.<br />

— De estrume?- ele pergunta confusamente.<br />

— Sim.<br />

Ele ri. Surpreendo-me com sua total falta de consideração e a raiva surge em<br />

mim. Meu rosto está quente.<br />

— Queria que o senhor soubesse para que o armário pudesse ser limpo. O<br />

armário de Sam Goode estava cheio de estrume também.<br />

Ele suspira e balança a cabeça.<br />

— Mandarei o Sr. Hobbs, o zelador, vir imediatamente e nós faremos uma<br />

investigação completa.<br />

— Nós dois sabemos quem fez isso, Sr. Harris.<br />

Ele dá um sorriso condescendente para mim.<br />

— Eu cuidarei da investigação, Sr. Smith.<br />

Não há nada mais a dizer, então eu saio da sala do diretor e vou ao banheiro<br />

para jogar um pouco de água fria no rosto e nas mãos. Eu tenho que me<br />

acalmar. Não quero ter que usar as luvas novamente hoje. Talvez eu não<br />

devesse fazer nada, apenas deixar rolar. Quando acabará? E, além disso,<br />

existe outra escolha? Estou derrotado e meu único aliado é um aluno do<br />

segundo ano de cinqüenta quilos com uma inclinação para assuntos<br />

extraterrestres. Talvez essa não seja a verdade absoluta- talvez eu tenha outro<br />

aliado: Sarah Hart.<br />

Olho para baixo. Minhas mãos estão bem, sem brilho. Saio do banheiro. O<br />

zelador já está limpando o estrume do meu armário, retirando os livros e os<br />

colocando no lixo. Passo por ele, entro na sala e espero a aula começar.<br />

Regras gramaticais são explicadas, sendo o principal tema a diferença entre<br />

um gerúndio e um verbo, e a razão pela qual um gerúndio não é um verbo.<br />

Presto mais atenção do que no dia anterior, mas quando o fim da aula se<br />

aproxima começo a ficar nervoso com a próxima aula. Mas não porque verei<br />

Mark... porque verei Sarah. Ela sorrirá para mim novamente hoje? Penso que


será melhor se eu chegar antes dela, me sentar em meu lugar e vê-la entrar na<br />

sala. Desse jeito, posso ver se ela me cumprimentará primeiro.<br />

Quando o sinal toca, eu me arremesso para fora da sala e corro pelo corredor.<br />

Sou o primeiro a entrar na aula de astronomia. A sala se enche e Sam senta ao<br />

meu lado novamente. Antes do sinal tocar, Sarah e Mark entram juntos. Ela<br />

está vestida com uma camisa de botões branca e calça preta. Ela sorri para<br />

mim antes de se sentar. Sorrio de volta. Mark, no entanto, não olha em minha<br />

direção. Eu ainda posso sentir o cheiro de estrume nos meus sapatos, ou<br />

talvez o odor esteja vindo de Sam.<br />

Ele tira uma revista da sua mochila com o título “Eles estão entre nós” na capa.<br />

A revista aparenta ter sido impressa em algum porão. Sam abre em um artigo<br />

no meio da revista e começa a ler atentamente.<br />

Olho para Sarah que está quatro carteiras na minha frente, com seu cabelo<br />

preso em um rabo-de-cavalo. Eu posso ver sua nuca fina. Ela cruza as pernas<br />

e senta reta na cadeira. Eu desejo estar sentado ao lado dela, poder pegar e<br />

segurar sua mão na minha. Desejo que já seja a oitava aula. Pergunto-me se<br />

serei seu parceiro em Adm.Doméstica novamente.<br />

A Sra. Burton inicia sua explicação. Ela ainda está no tema Saturno. Sam pega<br />

uma folha de papel e começa a escrever descontroladamente, parando<br />

algumas vezes para consultar um artigo na revista que está aberta ao seu lado.<br />

Olho por cima do seu ombro e leio o título: “Cidade de Montana inteira<br />

abduzida por alienígenas.”<br />

Antes da noite passada, eu nunca consideraria tal teoria. Mas Henri acredita<br />

que os Mogadorians estão conspirando para dominar a Terra, e eu devo admitir<br />

que embora a teoria na revista de Sam seja ridícula, em seus princípios não<br />

está errada. Eu sei, pois Loric visitou a Terra muitas vezes antes de haver vida<br />

nesse planeta. Nós vimos o desenvolvimento da Terra, a assistimos através<br />

dos tempos de crescimento e abundância, quando tudo se transformava, e nas<br />

eras glaciais, quando nada mais acontecia. Nós ajudamos os humanos, os<br />

ensinamos a fazer fogo, demos a eles ferramentas para desenvolverem a fala e<br />

a linguagem, razão pela qual nossa linguagem é tão parecida com os idiomas<br />

da Terra. E mesmo que nós nunca tenhamos abduzido os humanos, isso não<br />

significa que a abdução nunca tenha acontecido. Olho para Sam. Eu nunca<br />

tinha conhecido alguém com tamanha fascinação por alienígenas a ponto de<br />

ler e tomar notas de teorias conspiratórias.<br />

Logo depois a porta abre-se e o Sr. Harris coloca sua cabeça para dentro, com<br />

um sorriso.


— Desculpe interromper, Sra. Burton. Tenho que roubar Mark de você. Os<br />

repórteres da Gazeta estão aqui para entrevista-lo para o jornal- ele diz alto<br />

suficiente para que toda a sala ouça.<br />

Mark se levanta, pega sua mochila e casualmente sai da sala. Na porta, eu<br />

vejo o Sr. Harris dar um tapinha em suas costas. Depois olho novamente para<br />

Sarah, desejando poder sentar no lugar vazio ao seu lado.<br />

A quarta aula é educação física. Sam está na minha turma. Depois de trocar de<br />

roupa, nós nos sentamos lado a lado no chão do ginásio. Ele está usando<br />

tênis, shorts e uma camiseta duas ou três vezes maior que seu tamanho. Ele<br />

parece com uma cegonha, só pele e ossos, bem magro apesar de ser baixinho.<br />

O professor de ginástica, Sr. Wallace, está imóvel em nossa frente, seus pés<br />

separados na distância da largura dos ombros, suas mãos segurando o quadril.<br />

— Tudo bem, rapazes, ouçam. Essa é provavelmente a última chance que<br />

teremos de trabalhar ao ar livre, então façam valer a pena. Corrida de 1,5 km,<br />

tão rápido quanto puderem. Seus tempos serão anotados e arquivados para<br />

quando corrermos essa distância novamente na primavera. Então se esforcem.<br />

A pista externa é feita de borracha sintética. Ela circunda o campo de futebol e<br />

além dela há um bosque, o qual eu imagino que leva à nossa casa, embora<br />

não tenha certeza. O vento está frio e arrepia os braços de Sam. Ele os<br />

esfrega.<br />

— Você já fez essa corrida antes?- pergunto.<br />

Sam assente.<br />

— Nós corremos na segunda semana de aula.<br />

— Qual foi seu tempo?<br />

— Nove minutos e cinqüenta e quatro segundos.<br />

Olho para ele.<br />

— Achei que garotos esqueléticos seriam mais rápidos.<br />

— Cala a boca.- ele diz.<br />

Corro lado a lado com Sam, atrás da multidão. Quatro voltas. Esse é o número<br />

de voltas necessário para completar 1,5 km. Na metade do caminho começo a<br />

me afastar de Sam. Pergunto-me quão rápido eu poderia correr 1,5 km se eu<br />

realmente tentasse. Dois minutos, talvez um, talvez menos?<br />

O exercício é prazeroso, e sem prestar muita atenção, começo a liderar a<br />

corrida. Depois diminuo a velocidade e finjo estar entrando em exaustão.


Quando faço isso, vejo um vulto marrom e branco vir correndo entre os<br />

arbustos na entrada da arquibancada em minha direção. Minha mente está<br />

pregando peças em mim, penso. Olho para frente e continuo correndo. Passo<br />

pelo professor. Ele está segurando um cronômetro. Ele grita palavras de<br />

incentivo, mas está olhando atrás de mim, para longe da pista. Sigo seus olhos.<br />

Eles estão fixados em um vulto marrom e branco. Ele continua vindo em minha<br />

direção e, repentinamente, as imagens do dia anterior voltam a minha mente.<br />

As bestas Mogadorians. Havia bestas pequenas também, com dentes que<br />

brilhavam na luz como lâminas de barbear, criaturas rápidas com intenção de<br />

matar. Começo a correr rápido.<br />

Corro até metade da pista em uma corrida mortal antes de virar-me. Não há<br />

nada atrás de mim. Acho que escapei dessa. Vinte segundos se passam. Virome<br />

de volta e a coisa está bem na minha frente. Deve ter cortado caminho pelo<br />

campo. Fico imobilizado na pista e minha visão se foca. É Bernie Kosar! Ele<br />

está sentado no meio da pista com a língua balançando e o rabo abanando.<br />

— Bernie Kosar- eu grito- Quase morri de susto!<br />

Volto a correr em um ritmo lento e Bernie Kosar segue ao meu lado. Espero<br />

que ninguém tenha visto quão rápido corri. Depois paro e me curvo, como se<br />

estivesse tendo câimbras e não conseguisse recuperar o fôlego. Ando um<br />

pouco. Depois corro mais um pouco. Antes de terminar a segunda volta, duas<br />

pessoas já me passaram.<br />

— Smith! O que aconteceu? Você estava ganhando de todos!- Sr. Wallace grita<br />

quando passo por ele.<br />

Respiro com dificuldade, para que ele perceba.<br />

— Eu... tenho... asma- digo.<br />

Ele balança a cabeça, desaprovando.<br />

— E eu aqui pensando que teria o campeão da corrida do estado de Ohio em<br />

minha sala.<br />

Eu balanço os ombros e sigo em frente, parando de vez em quando para<br />

caminhar. Bernie Kosar permanece ao meu lado, algumas vezes andando,<br />

algumas vezes trotando. Quando começo a última volta, Sam me alcança e<br />

corremos juntos. Seu rosto está vermelho.<br />

— Então, o que você estava lendo na aula de astronomia hoje?- pergunto-<br />

Cidade de Montana inteira abduzida por alienígenas?<br />

Ele sorri para mim.<br />

— Sim, essa é a teoria- ele diz timidamente, meio que envergonhado.


— Por que uma cidade inteira seria abduzida?<br />

Sam encolhe os ombros e não responde.<br />

— Não, de verdade?- pergunto<br />

— Você realmente quer saber?<br />

— Claro.<br />

— Bem, a teoria é que o governo permitiu as abduções alienígenas em troca<br />

de sua tecnologia.<br />

— Sério? Que tipo de tecnologia?- pergunto.<br />

—Chips para supercomputadores, fórmulas para mais bombas e tecnologia<br />

sustentável. Coisas como essas.<br />

— Tecnologia sustentável em troca de espécimes vivos? Estranho. Por que os<br />

alienígenas querem abduzir os humanos?<br />

— Para que possam nos estudar.<br />

— Mas, por quê? Quero dizer, qual é a possível razão deles?<br />

— Quando o fim chegar, eles saberão nossas fraquezas e serão capazes de<br />

nos derrotar com facilidade<br />

Surpreendo-me com sua resposta, mas somente porque as cenas da noite<br />

anterior continuam em minha mente, me lembrando das armas que vi os<br />

Mogadorians usarem e das bestas enormes.<br />

— Não seria fácil para eles,uma vez que já tem bombas e tecnologia superior a<br />

nossa?<br />

— Bem, algumas pessoas parecem pensar que eles esperam que nos<br />

matemos primeiro.<br />

Olhei para Sam. Ele estava sorrindo para mim, tentando decidir se eu estava<br />

levando aquela conversa a sério.<br />

— Por que eles querem que nos matemos primeiro? Qual o interesse deles?<br />

— Porque eles são invejosos.<br />

— Inveja de nós? Devido a nossa aparência melhor?<br />

Sam ri.<br />

— Algo assim.


Eu assinto. Nós corremos em silêncio por um minuto e eu posso perceber que<br />

Sam está tendo dificuldades, respirando pesadamente.<br />

— Como você se interessou por tudo isso?<br />

Ele encolhe os ombros.<br />

— É apenas um hobby.- ele diz, embora eu tenha a sensação que ele está<br />

escondendo alguma coisa de mim.<br />

Nós terminamos o percurso em oito minutos e cinqüenta e nove segundos,<br />

melhor do que o último tempo de corrida de Sam. Bernie Kosar segue a turma<br />

de volta para a escola. Os outros o afagam, e quando entramos no prédio ele<br />

tenta vir conosco. Eu não sei como ele sabia onde eu estava. Ele pôde<br />

memorizar o caminho da escola esta manhã quando viemos? Esse<br />

pensamento parece ridículo.<br />

Ele permanece na porta. Vou para o corredor dos armários com Sam e no<br />

segundo em que ele recupera o fôlego, começa a falar de toneladas de teorias<br />

conspiratórias, uma após a outra, sendo a maioria de dar risada. Gosto dele e o<br />

acho divertido, mas algumas vezes desejo que ele pare de falar.<br />

---------------------------------------------------------------------------------------------------------<br />

Quando a aula de Adm. Doméstica começa, Sarah não está na sala. A Sra.<br />

Benshoff dá instruções nos primeiros dez minutos e depois nós vamos para a<br />

cozinha. Eu entro na minicozinha, resignado com o fato de que terei que<br />

cozinhar sozinho hoje, e logo que esse pensamento me ocorre, Sarah chega.<br />

— Perdi algo interessante?- ela pergunta.<br />

— Uns dez minutos de tempo de qualidade comigo- digo com um sorriso.<br />

Ela ri.<br />

— Fiquei sabendo o que aconteceu com seu armário essa manhã. Me<br />

desculpe.<br />

— Você colocou o estrume lá?-pergunto.<br />

Ela ri novamente.<br />

— Não, claro que não. Mas eu sei que eles estão te atormentando por minha<br />

causa.<br />

— Eles têm sorte de eu não usar meus superpoderes e jogá-los no município<br />

mais próximo.<br />

Ela segura meu bíceps, brincando.


— Certo, com esses músculos enormes. Seus superpoderes. Garoto, eles tem<br />

sorte.<br />

Nosso projeto do dia é fazer bolinhos de mirtilo. Assim que começamos a<br />

misturar a massa, Sarah começa a me contar sobre sua história com Mark.<br />

Eles namoraram por dois anos, mas quanto mais tempo ficavam juntos, mais<br />

ela se afastava de seus pais e de seus amigos. Ela era a namorada de Mark,<br />

nada mais. Ela percebeu que tinha começado a mudar, a adotar algumas<br />

atitudes parecidas com as dele em relação às pessoas: ser mesquinha e<br />

julgadora, achar que era melhor do que os outros. Ela também começou a<br />

beber e suas notas caíram. No fim do ano escolar passado, seus pais a<br />

mandaram morar com uma tia no Colorado, durante o verão. Quando ela<br />

chegou lá, começou a fazer longas caminhadas nas montanhas, tirando fotos<br />

da paisagem com a câmera de sua tia. Ela se apaixonou pela fotografia e teve<br />

o melhor verão de todos os tempos, percebendo que a vida era muito mais que<br />

ser uma líder-de-torcida e namorar o quarterback do time de futebol. Quando<br />

ela voltou para casa, terminou com Mark, saiu do grupo e fez uma promessa<br />

que seria boa e gentil com todos. Mark não superou isso. Ela diz que ele ainda<br />

a considera sua namorada e acredita que ela voltará para ele. Ela me conta<br />

que a única coisa dele da qual sente falta são os cachorros, com os quais ela<br />

sempre saia quando ia à casa dele.Então, contei a ela sobre Bernie Kosar, e<br />

sobre como ele apareceu na porta de casa inesperadamente depois daquela<br />

manhã na escola.<br />

Enquanto conversamos, nós trabalhamos. Em certo momento, vou até o forno<br />

sem luvas de cozinha e retiro as formas de bolinhos. Ela vê o que fiz e me<br />

pergunta se estou bem, e eu finjo que me machuquei, balançando as mãos<br />

como se tivessem sido queimadas, embora eu não tenha sentido nada. Nós<br />

vamos para a pia e Sarah joga água morna em minhas mãos para tentar<br />

melhorar a ardência que nem está lá. Quando ela olha minha mão, apenas<br />

encolho os ombros. No momento em que estamos polvilhando os bolinhos com<br />

açúcar, ela me pergunta sobre meu celular e me diz que percebeu que havia<br />

um único contato nele. Digo a ela que é o número de Henri e que perdi meu<br />

antigo celular com todos meus outros contatos. Ela me pergunta se deixei uma<br />

namorada para trás quando me mudei. Digo que não e ela sorri, o que faz meu<br />

coração derreter. Antes da aula terminar, ela me fala que haverá uma festa de<br />

Halloween na cidade e diz que espera me ver lá, que talvez nós pudéssemos ir<br />

juntos. Digo que sim, que seria legal, e finjo estar calmo, embora meu coração<br />

esteja flutuando.<br />

Capítulo 11<br />

IMAGENS SURGEM PARA MIM, EM MOMENTOS ALEATÓRIOS,<br />

GERALMENTE QUANDO MENOS ESPERO. Algumas vezes, elas são<br />

pequenas e fugazes- minha avó segurando um copo de água e abrindo a boca


para dizer algo- mas eu nunca sei quais são as palavras, pois a imagem<br />

desaparece tão rapidamente quanto surgiu. Algumas vezes elas são mais<br />

duradouras, mais realistas- meu avô me empurrando em um balanço. Posso<br />

sentir a força de seus braços a medida que ele me empurra, o frio na minha<br />

barriga quando o movimento fica mais rápido. Minha risada carregada pelo<br />

vento. Depois a imagem acaba. Algumas vezes eu me lembro explicitamente<br />

de imagens do meu passado, me lembro que elas fizeram parte dele. Mas<br />

outras vezes, elas são novas para mim, como se nunca tivessem acontecido<br />

antes.<br />

Na sala de estar, com Henri passando o cristal Loric por cada um dos meus<br />

braços e minhas mãos mergulhadas nas chamas, eu vejo o seguinte: eu sou<br />

mais novo- três, talvez quatro anos- e estou correndo no nosso quintal da<br />

frente, no qual a grama foi recém-cortada. Ao meu lado, há um animal com<br />

corpo de cachorro, mas com pêlos de tigre. Sua cabeça é redonda, seu corpo<br />

tem a forma de barril e repousa sobre pernas curtas. Diferente de qualquer<br />

animal que eu já tenha visto. Ele se agacha, posicionado para pular em mim.<br />

Não consigo parar de rir. Daí ele pula e eu tento segurá-lo, mas sou muito<br />

pequeno e nós dois caímos na grama. Nós nos empurramos. Ele é mais forte<br />

do que eu. Depois ele salta no ar, e ao invés de cair de volta no chão como eu<br />

esperava, ele se transforma em um pássaro e voa ao meu redor, pairando além<br />

do meu alcance. Ele voa em círculos, em seguida desce e se atira entre<br />

minhas pernas, e aterrissa a seis metros de distância de mim. Ele se<br />

transforma em um animal que parece um macaco sem rabo, se agacha e<br />

investe contra mim.<br />

Nesse momento, um homem chega andando. Ele é jovem e está vestido com<br />

uma roupa de borracha prateada e azul apertada em seu corpo, o tipo de roupa<br />

que eu já vi mergulhadores usarem. Ele fala comigo em um idioma que não<br />

entendo. Ele diz o nome: “Hadley” e acena com a cabeça para o animal.<br />

Hadley corre para ele, seu corpo mudando da forma de macaco para algo<br />

maior, como se fosse um urso com uma juba de leão. Suas cabeças estão na<br />

mesma altura, e o homem coça a região abaixo do queixo de Hadley. Em<br />

seguida, meu avô sai da casa. Ele parece mais jovem, mas eu sei que ele deve<br />

ter no mínimo uns cinqüenta anos.<br />

Ele aperta a mão do homem. Eles conversam, mas não entendo o que estão<br />

dizendo. Depois o homem olha para mim, sorri, levanta suas mãos e<br />

repentinamente estou fora do chão, voando pelo ar. Hadley me segue, como<br />

um pássaro novamente. Estou no total controle do meu corpo, mas o homem<br />

controla para onde vou, movendo sua mão para a esquerda ou para a direita.<br />

Hadley e eu brincamos no ar, ele me fazendo cócegas com seu bico, eu<br />

tentando segurá-lo. E aí meus olhos se abrem e a imagem se vai.


— Seu avô podia ficar invisível quando quisesse.- ouvi Henri dizer, e fechei<br />

meus olhos novamente. O cristal continuava no meu braço, espalhando a<br />

proteção contra o fogo para o resto do meu corpo- Esse é um dos Legados<br />

mais raros, desenvolvido apenas em 1% do nosso povo, e ele era um deles.<br />

Ele podia fazer a si mesmo e tudo o que tocasse desaparecer completamente.<br />

— Uma vez ele queria pregar uma peça em mim, antes de eu saber quais<br />

Legados ele tinha. Você tinha três anos e eu tinha acabado de começar a<br />

trabalhar com a sua família. No dia anterior, tinha sido a primeira vez que eu<br />

havia ido a sua casa e quando cheguei na sua rua, para o meu segundo dia, a<br />

casa não estava lá. Havia uma garagem, um carro, e a árvore, mas nenhuma<br />

casa. Pensei que eu tinha errado o caminho. E continuei, passando por ela.<br />

Depois, quando percebi que tinha ido muito longe, voltei e lá, a alguns metros,<br />

estava a casa que eu jurava não ter visto antes. Então, caminhei até ela, mas<br />

quando cheguei mais perto, a casa tinha desaparecido novamente. Só fiquei<br />

ali, olhando para o local onde eu sabia que a casa deveria estar, mas onde<br />

apenas se via as árvores. Então, continuei andando. Somente na terceira vez<br />

que voltei, seu avô fez a casa reaparecer de vez. Ele não conseguia parar de<br />

rir. Nós rimos sobre aquele dia por um ano e meio, todo o tempo até que o final<br />

chegou.<br />

Quando abro meus olhos, estou de volta ao campo de batalha. Mais explosões,<br />

fogo e morte.<br />

— Seu avô era um homem bom- Henri diz- Ele amava fazer as pessoas rir,<br />

amava contar piadas. Eu não me lembro de nenhuma vez em que sai da sua<br />

casa sem uma dor no estômago de tanto rir.<br />

O céu tinha se tornado vermelho. Uma arvore atravessa o ar, arremessada<br />

pelo homem de prateado e azul, aquele que vi na casa. Ela acerta dois<br />

Mogadorians e eu quero aplaudir a vitória. Mas qual razão há para celebrar?<br />

Não importa quantos Mogadorians eu veja morrer, o fim daquele dia não<br />

mudará. Os Loric ainda serão derrotados, até o ultimo deles será morto. Eu<br />

serei enviado para a Terra.<br />

— Eu nunca vi aquele homem ficar nervoso. Quando todos perdiam a razão,<br />

quando o stress se espalhava por todos, seu avô continuava calmo. Nesses<br />

momentos, geralmente ele soltava uma de suas melhores piadas e todos<br />

voltavam a rir.<br />

As pequenas bestas atacam as crianças. Elas estão indefesas, segurando<br />

fogos de artifício da celebração nas mãos. Essa é a razão pela qual estamos<br />

perdendo- somente alguns poucos Loric estão lutando contra as bestas, e o<br />

resto está tentando salvar as crianças.


— Sua avó era diferente. Ela era quieta e reservada, muito inteligente. Desse<br />

modo, eles se completavam, seu avô despreocupado, sua avó trabalhando por<br />

trás das cortinas para que tudo saísse como planejado.<br />

Alto no céu, eu ainda posso ver o rastro de fumaça azul da nave que nos<br />

transporta para a Terra, carregando nós Nove e nossos Keepers. Sua presença<br />

incomoda os Mogadorians.<br />

— E havia ainda Julianne, minha esposa.<br />

Longe, há uma explosão, como as que ocorrem na Terra após a decolagem de<br />

um foguete. Outra nave sobe no céu, com um rastro de fogo atrás dela. Lenta<br />

inicialmente, ela vai tomando velocidade. Estou confuso. Nossas naves não<br />

usam fogo para a decolagem, elas não usam óleo nem gasolina. Elas emitem<br />

um pequeno rastro azul de fumaça que vem dos cristais usados para<br />

propulsioná-las, nunca fogo como essa última. A segunda nave é lenta e<br />

desajeitada se comparada a primeira, mas ela se move, subindo no ar,<br />

ganhando velocidade. Henri nunca mencionou uma segunda nave. Quem está<br />

nela? Onde ela está indo? Os Mogadorians gritam e apontam para ela.<br />

Novamente, isso os inquieta e por um breve momento os Loric avançam.<br />

— Ela tinha os olhos mais verdes que eu já havia visto, de um verde brilhante<br />

que parecia esmeraldas, além de um coração tão grande como o planeta<br />

inteiro. Sempre ajudando os outros, constantemente trazendo animais para<br />

casa e cuidando deles. Nunca saberei o que ela viu em mim.<br />

As bestas maiores voltaram, aquelas com olhos vermelhos e chifres enormes.<br />

Saliva misturada com sangue cai dos seus dentes que são afiados e tão<br />

grandes que não cabem em suas bocas. O homem de prateado e azul está<br />

bem em frente a elas. Ele tenta suspender as feras do chão com seus poderes<br />

e consegue levantá-las alguns metros, mas elas se debatem e ele não<br />

consegue suspende-las mais. As bestas rugem, se balançam, e caem<br />

novamente no chão. Elas tentam neutralizar os poderes do homem, mas não<br />

podem. O homem as suspende novamente. Suor e sangue brilham sob a luz<br />

do luar em seu rosto. Em seguida, ele abaixa suas mãos e as feras caem para<br />

o lado. O chão treme. Trovões e relâmpagos enchem o céu, mas a chuva não<br />

vem com eles.<br />

— Ela dormia até tarde, e eu sempre acordava antes dela. Eu me sentava no<br />

escritório e lia o jornal, fazia o café-da-manhã, saia para uma caminhada.<br />

Algumas vezes eu voltava e ela ainda estava dormindo. Eu ficava impaciente,<br />

mal podia esperar para começarmos o dia juntos. Ela me fazia sentir bem<br />

apenas estando ao meu lado. Eu entrava e tentava acordá-la. Ela puxava os<br />

cobertores em cima da cabeça e resmungava para mim. Quase toda a manhã,<br />

a mesma coisa.


As bestas se debatem, mas o homem ainda está no controle. Outro Garde se<br />

junta a ele, cada um usando um poder sobre a besta mamute; relâmpagos e<br />

fogo chovem sobre ela, raios lasers vem de todas as direções. Alguns Garde<br />

fazem estragos não sendo vistos, permanecendo longe das bestas e<br />

segurando suas mãos para o alto, concentrados. Uma nuvem grande,<br />

crescente e brilhante, contendo algum tipo de energia dentro, surge em um céu<br />

anteriormente sem nuvens. Todos os Garde estavam trabalhando nisso, todos<br />

tentando criar uma tempestade cataclísmica. E no final, um enorme raio cai e<br />

acerta a besta. E ela morre.<br />

— O que eu podia fazer? O que qualquer um podia? No total, havia dezenove<br />

de nós na nave. Nove crianças e nove Cepan, escolhidos apenas por estarmos<br />

no local correto naquela noite, e o piloto que nos trouxe. Nós Cepan não<br />

podíamos lutar, e que diferença faria se pudéssemos? Os Cepan são<br />

burocratas, com a função de manter o planeta funcionando, ensinar e treinar<br />

novos Garde para que possam entender e controlar seus poderes. Nós nunca<br />

tivemos a função de lutadores. Teria sido ineficaz. Teriamos morrido como todo<br />

o resto. Tudo o que podíamos fazer era partir. Partir com vocês para sobreviver<br />

e um dia restaurar a glória do planeta mais belo de todo o universo.<br />

Eu fecho meus olhos e quando os reabro a guerra acabou. Sobe fumaça da<br />

terra, de entre os mortos e dos que estão morrendo. Árvores quebradas,<br />

florestas queimadas, nada fica a salvo dos poucos Mogadorians que<br />

sobreviveram para contar a história. O sol se põe para o sul e um brilho pálido<br />

crescente cobre a terra árida de vermelho. Pilhas de corpos, nem todos<br />

intactos, nem todos inteiros. No topo de uma pilha está o homem de prateado e<br />

azul, morto como o resto. Não há marcas visíveis em seu corpo, mas ele está<br />

morto do mesmo jeito.<br />

Meus olhos se abrem. Não consigo respirar e minha boca está seca.<br />

— Aqui- Henri diz. Ele me ajuda a descer da mesa de centro, guia-me para a<br />

cozinha e puxa uma cadeira para mim. Lágrimas começam a cair dos meus<br />

olhos, mesmo que eu tente segura-las. Henri me traz um copo de água e eu<br />

tomo cada gole dela, sem parar. Devolvo-lhe o copo e ele o enche novamente.<br />

Abaixo minha cabeça, ainda com dificuldade para respirar. Eu bebo o segundo<br />

copo, depois olho para Henri.<br />

— Por que você nunca me contou sobre a segunda nave?-pergunto.<br />

— Sobre o que você está falando?<br />

— Havia uma segunda nave- digo.<br />

— Onde havia uma segunda nave?


— Em Lorien, no dia em que partimos. Uma segunda nave decolou depois de<br />

nós.<br />

— Impossível.<br />

— Por que é impossível?<br />

— Porque as outras naves foram destruídas. Vi com meus próprios olhos.<br />

Quando os Mogadorians aterrissaram, eles primeiramente destruíram nossas<br />

naves. Nós viajamos na única nave que sobreviveu ao ataque deles. Foi um<br />

milagre conseguirmos sair.<br />

— Eu vi uma segunda nave. Estou te dizendo. No entanto, não era como as<br />

outras. Ela funcionava com combustível; havia uma bola de fogo atrás dela.<br />

Henri me observa atentamente. Ele está pensando; suas sobrancelhas estão<br />

enrugadas.<br />

— Tem certeza, John?<br />

— Sim.<br />

Ele encosta na cadeira, olha para a janela. Bernie Kosar está no chão, nos<br />

encarando.<br />

— Ela decolou de Lorien- eu digo- Eu vi seu percurso inteiro até ela<br />

desaparecer.<br />

— Isso não faz sentido- Henri diz- Não sei como pode ser possível. Não havia<br />

nenhuma outra nave.<br />

— Havia uma segunda nave.<br />

Nós permanecemos em um longo silêncio.<br />

— Henri?<br />

— Sim?<br />

— O que havia naquela nave?<br />

Ele fixa seu olhar em mim.<br />

— Não sei- ele diz- Realmente não sei.<br />

----------------------------------------------------------------------------------------------------------<br />

Nós nos sentamos na sala de estar; há fogo na lareira; Bernie Kosar está no<br />

meu colo. Um ocasional estalo dos troncos quebra o silêncio.


— Liga- eu digo e estalo meus dedos. Minha mão direita se ilumina, não tão<br />

brilhante como eu já vi antes, mas próximo a isso. No pequeno período desde<br />

que Henri começou a me treinar, comecei a aprender a controlar o brilho. Eu<br />

posso concentrá-lo, fazê-lo aumentar como as luzes de uma casa, ou restringilo<br />

e focá-lo como uma lanterna. Minha habilidade em dominar esse Legado<br />

está se desenvolvendo mais rápido do que eu esperava. A mão esquerda ainda<br />

brilha mais fracamente que a direita, mas está se desenvolvendo também.<br />

Estalo meus dedos e digo “Liga” apenas para impressionar, pois não preciso<br />

fazer isso para controlar a luz, ou para ligá-la. O controle vem de dentro e exige<br />

tão pouco esforço quanto contrair um dedo ou piscar um olho.<br />

— Quando você acha que os outros Legados se desenvolverão?- pergunto.<br />

Henri levanta os olhos do jornal.<br />

— Logo.- ele diz.- O próximo Legado deverá aparecer ainda esse mês, não<br />

importa qual seja. Você apenas deve estar atento. Nem todos os poderes são<br />

tão óbvios como as suas mãos.<br />

— Quanto tempo demorará para todos aparecerem?<br />

Ele encolhe os ombros.<br />

— Algumas vezes leva dois meses, outras vezes um ano. Isso varia de Garde<br />

para Garde. Mas não importa o período, o seu Legado principal será o último a<br />

se desenvolver.<br />

Fecho meus olhos e encosto no sofá. Eu penso sobre meu Legado principal,<br />

aquele que me permitirá lutar. Não tenho certeza do que quero que ele seja.<br />

Lasers? Controle da mente? A habilidade de controlar o clima como eu vi o<br />

homem de prateado e azul fazer? Ou algo mais obscuro, mais sinistro, como a<br />

habilidade de matar sem tocar?<br />

Passo minha mão nas costas de Bernie. Olho para Henri. Ele está usando uma<br />

touca e um par de óculos na ponta do nariz, parecendo um ratinho de histórias<br />

infantis.<br />

— Por que estávamos na pista de pouso aquele dia?- pergunto.<br />

— Nós fomos a uma exibição aérea. Depois que terminou, nós fomos fazer um<br />

passeio em algumas naves.<br />

— Essa foi realmente a única razão?<br />

Ele vira-se para mim e confirma com a cabeça. Ele engole seco e isso me faz<br />

imaginar que ele está escondendo alguma coisa de mim.


— Bem, como foi decidido que nós partiríamos?- pergunto.- Quero dizer,<br />

certamente um plano como esse precisaria de mais que um aviso de alguns<br />

minutos, certo?<br />

— Nós decolamos após três horas do inicio da invasão. Você não se lembra de<br />

nada disso?<br />

— Muito pouco.<br />

— Nós encontramos seu avô na estátua de Pittacus. Ele me entregou você e<br />

me disse para te levar à pista de pouso, que essa era nossa única chance.<br />

Havia uma parte subterrânea na pista. Ele disse que sempre houve um plano<br />

de contingência caso algo do tipo ocorresse, mas isso nunca havia sido levado<br />

a sério, pois a possibilidade de um ataque era absurda. Justamente como seria<br />

aqui, na Terra. Se você dissesse a algum humano agora que há a possibilidade<br />

de um ataque de alienígenas, bem, ele riria de você. Não era diferente em<br />

Lorien. Perguntei como ele sabia do plano e ele não respondeu, apenas sorriu<br />

e me disse adeus. Fazia sentido que ninguém soubesse realmente do plano,<br />

ou somente alguns soubessem.<br />

Eu assinto.<br />

— Então foi assim, vocês surgiram com um plano de vir para a Terra?<br />

— Claro que não. Um dos Anciões do planeta nos encontrou na pista. Foi ele<br />

que lançou o feitiço que marcou seus tornozelos e os uniu, e deu a cada um de<br />

vocês um amuleto. Ele disse que vocês eram crianças especiais, abençoadas,<br />

o que eu acho que é por vocês terem tido a chance de escapar. Nós<br />

inicialmente planejamos decolar e esperar lá em cima a invasão acabar,<br />

esperar nosso povo lutar e vencer. Mas isso nunca aconteceu...- ele diz, as<br />

palavras se arrastando. Em seguida, ele suspira- Nós permanecemos em órbita<br />

por uma semana. Foi o tempo que os Mogadorians levaram para despojar<br />

Lorien de tudo. Depois disso, ficou claro que não voltaríamos e nós seguimos<br />

para a Terra.<br />

— Por que ele não lançou um feitiço para que nenhum de nós fosse morto,<br />

independente dos números?<br />

— Nem tudo pode ser feito, John. Você está falando de invencibilidade. Isso<br />

não é possível.<br />

Eu assinto. O feitiço por si só já ajuda muito. Se um dos Mogadorians tentar<br />

nos matar fora de ordem, todo o mal que tentar fazer será revertido para ele.<br />

Se ele tentasse atirar em minha cabeça, a bala entraria em sua própria cabeça.<br />

Mas não mais. Agora, se eles me pegarem, eu morro.


Fico em silêncio por um momento pensando sobre tudo isso. A pista de pouso.<br />

O único ancião remanescente que lançou o feitiço sobre nós, Loridas, que<br />

agora está morto. Os anciões foram os primeiros a habitar Lorien, os que<br />

fizeram do planeta o que ele era. Existiam dez no início, e eles continham todos<br />

os Legados dentro de si. Tão antigos, há muito tempo eles se pareciam mais<br />

com um mito do que com algo baseado na realidade. Fora Loridas, ninguém<br />

sabia o que tinha acontecido com o resto deles, se estavam mortos.<br />

Tento me lembrar de orbitarmos o planeta esperando para ver se podíamos<br />

voltar, mas não me lembro de nada disso. Posso apenas evocar pequenas<br />

partes da viagem. O interior da nave em que viajamos era circular e aberto,<br />

fora dois banheiros que tinham portas. Havia camas em um lado; o outro lado<br />

era dedicado a exercícios e jogos, para que não ficássemos muito impacientes.<br />

Não me lembro como eram os outros. Não me lembro dos jogos que jogamos.<br />

Me lembro de ter ficado entediado; um ano inteiro que passei dentro de uma<br />

nave com outras dezessete pessoas. Havia um bichinho de pelúcia com o qual<br />

eu dormia a noite, e embora eu tenha certeza que essa memória é equivocada,<br />

a imagem desse animal sempre volta a minha mente.<br />

— Henri?<br />

— Sim?<br />

— Tenho visto imagens de um homem com uma roupa prateada e azul. Vi ele<br />

em nossa casa, e na batalha. Ele podia controlar o clima. E depois o vi morto.<br />

Henri assente.<br />

— Toda vez que você viajar de volta, será para as cenas que tiveram mais<br />

relevância para você.<br />

— Ele era meu pai, não era?<br />

— Sim- ele disse- Não era esperado que ele aparecesse, mas ele aparecia de<br />

qualquer forma. Ele sempre estava perto de você.<br />

Eu suspiro. Meu pai tinha lutado bravamente, matando a besta e muitos<br />

soldados. Mas, no fim, isso não foi suficiente.<br />

— Nós realmente temos chance de vencer?<br />

— O que você quer dizer?<br />

— Nós fomos derrotados tão facilmente. Que esperança há de um final<br />

diferente se nos encontrarem? Mesmo quando todos desenvolvermos nossos<br />

poderes, e finalmente nos juntarmos e estivermos prontos para a batalha, que<br />

esperança nos temos contra coisas como aquelas?


— Esperança?- ele diz- Há sempre esperança, John. Nem todos os poderes<br />

apareceram. Não temos todas as informações. Não. Não desista ainda da<br />

esperança. É a última coisa que você deve perder. Quando você perde a<br />

esperança, perde tudo. E quando você pensa que tudo está perdido, quando<br />

tudo está terrível e desolador, há sempre a esperança.<br />

Capítulo 12<br />

EU E HENRI VAMOS PARA A CIDADE NO SÁBADO PARA O DESFILE DE<br />

HALLOWEEN, QUASE DUAS SEMANAS DEPOIS DE CHEGARMOS EM<br />

PARAÍSO. Acho que a solidão está começando a tomar conta de nós. Não que<br />

nós não costumássemos nos sentir solitários. Nós nos sentíamos. Mas a<br />

solidão em Ohio é diferente do que na maioria dos outros lugares. Ela provoca<br />

um certo silêncio, um certo isolamento.<br />

É um dia frio; o sol espreita intermitentemente através das espessas nuvens<br />

brancas, deslizando por cima delas. A cidade está agitada. Todas as crianças<br />

estão fantasiadas. Compramos uma coleira para Bernie Kosar, o qual está<br />

usando uma capa do Super-Homem estendida sobre suas costas, com um<br />

grande “S” no peito. Ele não parece impressionar com isso. Ele não é o único<br />

cachorro fantasiado de super-herói.<br />

Eu e Henri ficamos na calçada em frente ao Hungry Bear, o restaurante no<br />

centro da cidade, para assistir o desfile. Na janela da frente do restaurante está<br />

pendurado um recorte da reportagem de Mark James para a Gazeta. Ele foi<br />

fotografado na frente da linha de cinqüenta-jardas do campo de futebol,<br />

vestindo a jaqueta do time, com seus braços cruzados, seu pé direito em cima<br />

de uma bola de futebol e um sorriso torto confiante em seu rosto. Até eu tenho<br />

que admitir que ele impressiona.<br />

Henri me vê encarando o jornal.<br />

— É seu amigo, certo?- ele me pergunta com um sorriso. Henri agora sabe da<br />

história, desde a briga iminente, passando pelo estrume de vaca até a paixão<br />

que eu sinto pela sua ex-namorada. Desde que descobriu essas coisas, Henri<br />

se refere a ele apenas como meu amigo.<br />

— Meu melhor amigo- corrijo ele.<br />

Nesse momento, a banda começa. Está no começo do desfile, seguida por<br />

vários carros alegóricos com tema do Halloween, um dos quais está levando<br />

Mark e alguns outros jogadores de futebol. Alguns eu reconheço das aulas,<br />

alguns não. Eles lançam punhados de doces para as crianças. Então Mark me<br />

avista e cutuca o garoto ao seu lado- Kevin, o cara no qual dei uma joelhada no<br />

refeitório. Mark aponta para mim e diz algo. Ambos riem.<br />

— É ele?- Henri pergunta.


— É ele.<br />

— Parece um idiota.<br />

— Eu te disse.<br />

Depois vêm as líderes de torcida, caminhando, todas uniformizadas, com os<br />

cabelos amarrados, sorrindo e acenando para a multidão.<br />

Sarah está caminhando ao lado delas, tirando fotos. Elas as fotografa em ação,<br />

quando estão pulando ou fazendo suas acrobacias. Embora ela esteja vestindo<br />

calça jeans e não esteja maquiada, ela é muito mais bonita do que qualquer<br />

uma das outras. Nós temos conversando cada vez mais na escola, e não<br />

consigo parar de pensar nela. Henri me vê encarando-a.<br />

Em seguida, ele olha novamente para o desfile.<br />

—É ela?<br />

— É ela.<br />

Ela me vê e acena, depois aponta para sua câmera, o que significa que ela<br />

viria até aqui, mas que quer continuar tirando fotos. Eu sorrio e assinto.<br />

— Bem- Henri diz- Eu certamente posso ver o charme dela.<br />

Nós assistimos o desfile. O prefeito de Paraíso passa, sentando no banco de<br />

trás de um conversível vermelho. Ele joga mais doces para as crianças. Haverá<br />

um monte de crianças hiperativas hoje, eu penso.<br />

Sinto um tapinha em meu ombro e me viro.<br />

— Sam Goode. E aí?<br />

Ele balança os ombros.<br />

— Nada. E você?<br />

— Assistindo o desfile. Esse é meu pai, Henri.<br />

Eles apertam as mãos. Henri diz:<br />

— John me falou muito sobre você.<br />

— Sério?- Sam pergunta com um sorriso torto.<br />

— Sério- Henri responde. Em seguida, ele detém-se por um minuto e um<br />

sorriso toma forma em seu rosto- Sabe, eu estive lendo. Talvez você já tenha<br />

ouvido, mas você sabia que os alienígenas são a razão de existirem<br />

tempestades? Eles as criam para poderem entrar em nosso planeta sem serem


notados. A tempestade é uma distração, e os raios que você vê, na realidade,<br />

são naves entrando na atmosfera terrestre.<br />

Sam sorri e coça sua cabeça.<br />

— Fala sério.- ele diz.<br />

Henri encolhe os ombros.<br />

— Foi o que eu ouvi.<br />

— Tudo bem.- Sam diz, disposto a disputar com Henri- Bem, você sabia que os<br />

dinossauros, na verdade, não foram extintos? Os alienígenas ficaram tão<br />

fascinados com eles que decidiram reunir todos e levá-los para seu planeta.<br />

Henri balança a cabeça.<br />

— Dessa eu não sabia- ele diz- Você sabia que o monstro do Lago Ness era,<br />

na realidade, um animal do planeta Trafalgra? Eles o trouxeram para a Terra<br />

em um experimento, para ver se ele podia sobreviver, o que ele fez. Mas<br />

quando o descobriram, os alienígenas tiveram que o levar de volta, razão pela<br />

qual ele nunca mais foi visto.<br />

Eu ri, não da teoria, mas do nome Trafalgra. Não há nenhum planeta chamado<br />

Trafalgra e eu me pergunto se Henri inventou isso na hora.<br />

— Você sabia que as pirâmides do Egito foram construídas por alienígenas?<br />

— Já ouvi isso.- Henri diz, sorrindo. Isso é engraçado para ele, porque embora<br />

as pirâmides do Egito não tenham sido construídas realmente por alienígenas,<br />

em sua construção foi utilizado o conhecimento e a ajuda de Lorien.- Você<br />

sabia que é previsto que o mundo acabe em 21 de Dezembro de 2012?<br />

Sam assente e sorri.<br />

— Sim, já ouvi isso. A suposta data de vencimento da Terra, o fim do<br />

calendário Maia.<br />

— Data de vencimento?- eu interrompo- Como o “melhor se usado antes de tal<br />

data” que vem impresso nas caixas de leite? A Terra vai coalhar?<br />

Rio da minha própria piada, mas Sam e Henri não prestam atenção.<br />

Em seguida, Sam diz:<br />

— Você sabia que os círculos nas plantações foram originalmente utilizados<br />

como instrumentos de navegação para a espécie alienígena Agharian? Mas<br />

isso foi a milhares de anos atrás. Hoje, eles são criados apenas por<br />

fazendeiros entediados.


Rio novamente. Eu tenho vontade de perguntar que tipos de pessoas criam<br />

conspirações alienígenas se são os fazendeiros entediados que desenham<br />

círculos nas plantações, mas não pergunto.<br />

— E sobre os Centuri?- pergunta Henri- Você sabe sobre eles?<br />

Sam balança a cabeça.<br />

— Eles são uma espécie de alienígenas que vive no núcleo da Terra. São<br />

contenciosos, estão em constante discórdia uns com os outros, e quando eles<br />

tem guerras civis, a superfície da Terra balança descontroladamente. Nesses<br />

momentos é que ocorrem terremotos e explosões vulcânicas. O tsunami de<br />

2004? Tudo por causa do desaparecimento da filha do rei de Centuri.<br />

— Eles a encontraram?- pergunto.<br />

Henri balança a cabeça, olha para mim e depois para Sam, que ainda está<br />

sorrindo por causa da disputa.<br />

—Eles nunca a encontraram. Pesquisadores acreditam que ela foi capaz de<br />

mudar de forma e que está vivendo em algum lugar na América do Sul.<br />

A teoria de Henri é tão boa, que eu acho que não há como ele ter inventado tão<br />

rápido. Fico parado ali e realmente começo a ponderá-la, embora nunca tenha<br />

ouvido falar de alienígenas chamados Centuri e mesmo tendo certeza que<br />

nada vive no núcleo da Terra.<br />

— Você sabia...- Sam para. Eu acho que Henri o derrotou, e tão logo esse<br />

pensamento me passa na cabeça, Sam diz algo tão assustador que uma onda<br />

de terror me atinge.<br />

— Você sabia que os Mogadorians estão em busca da dominação do universo,<br />

que eles já dizimaram um planeta e querem fazer da Terra o próximo? Eles<br />

estão aqui procurando as fraquezas humanas, para que possam explorá-las<br />

quando a guerra começar.<br />

Minha boca se abre e Henri encara Sam, atônito. Ele está segurando a<br />

respiração. Sua mão vai se apertando ao redor do copo de café, até um ponto<br />

em que eu fico com medo de que o copo amasse, caso ele aperte um pouco<br />

mais. Sam olha para Henri, depois para mim.<br />

— Vocês parecem que viram um fantasma. Isso significa que eu ganhei?<br />

— Onde você ouviu isso?- pergunto. Henri me olha tão ferozmente que desejo<br />

ter ficado em silêncio.<br />

— Na “Eles estão entre nós”.


Henri ainda não sabe como responder. Ele abre a boca para falar, mas nada<br />

sai. Em seguida, uma pequena mulher atrás de Sam interrompe.<br />

— Sam- ela diz. Ele vira-se e olha para ela- Onde você esteve?<br />

Sam balança os ombros.<br />

— Eu estava bem aqui.<br />

Ela suspira, depois diz para Henri:<br />

— Olá, sou a mãe de Sam.<br />

— Henri- ele diz, e aperta a mão dela- Prazer em te conhecer.<br />

Ela arregala os olhos, surpresa. Algo no sotaque de Henri a anima.<br />

—Ah bon! Vous parlez francais? C’est super! J’ai personne avec qui je peux<br />

parler francais depuislong-temps. (Oh, você fala francês? Isso é ótimo. Faz<br />

tempo que não encontro alguém que fale francês.)<br />

Henri sorri.<br />

— Me desculpe. Eu, realmente, não falo francês, embora eu saiba que meu<br />

sotaque soa como francês.<br />

— Não?- ela está desapontada- Que droga, eu aqui pensando que alguma<br />

dignidade tinha finalmente chegado a essa cidade.<br />

Sam olha para mim e revira os olhos.<br />

— Tudo bem, Sam, vamos indo- ela diz.<br />

Ele encolhe os ombros.<br />

— Vocês vão ao parque e ao passeio mal-assombrado?<br />

Eu olho para Henri, depois para Sam.<br />

— Sim, certamente.- eu digo- Você vai?<br />

Ele balança os ombros.<br />

— Bem, tente nos encontrar lá então se puder- digo.<br />

Ele sorri e assente.<br />

— Ok, legal.<br />

— Hora de ir, Sam. E acho que não vai dar para você ir ao parque. Preciso da<br />

sua ajuda em casa.- a mãe dele diz. Ele começa a dizer algo, mas ela vai<br />

embora. Ele a segue.


— Uma mulher muito agradável- Henri diz sarcasticamente.<br />

— Como você inventou tudo aquilo?- pergunto.<br />

A multidão começa a migrar para a rua principal, na direção contrária a<br />

rotatória. Eu e Henri seguimos para o parque, onde será servida cidra e<br />

comida.<br />

— Quando você mente por muito tempo, começa a se acostumar a isso.<br />

Eu concordo.<br />

— Então, o que você acha?<br />

Ele inspira profundamente e expira. Está frio o suficiente para que eu possa ver<br />

sua respiração.<br />

— Não tenho idéia. Não sei o que pensar nesse momento. Ele me pegou<br />

desprevenido.<br />

— Ele pegou nós dois desprevenidos.<br />

— Nós teremos que dar uma olhada na revista de onde ele tirou essa<br />

informação, descobrir quem está escrevendo e onde ela está sendo escrita.<br />

Ele olha para mim com expectativa.<br />

— O quê?<br />

— Você vai ter que arranjar uma cópia.- ele diz.<br />

— Eu arranjarei- digo- Mas ainda não faz sentido. Como alguém pode saber<br />

daquilo?<br />

— Essa informação está sendo fornecida de algum lugar.<br />

— Você acha que é algum de nós?<br />

— Não.<br />

— Você acha que são eles?<br />

— Pode ser. Eu nunca pensei em checar esses trapos de teorias de<br />

conspiração. Talvez, eles pensem que nós lemos isso e que podem nos<br />

encontrar se vazarem esse tipo de informação.- ele para, pensando por um<br />

minuto- Droga, John, eu não sei. No entanto, temos que olhar isso a fundo.<br />

Com certeza, não é coincidência.<br />

Nós caminhamos em silêncio, ainda um pouco aturdidos, com possíveis<br />

explicações rodando em nossas mentes. Bernie Kosar trota entre nós, com sua


língua pendurada e a capa caindo para um lado, arrastando na calçada. Ele é<br />

um grande sucesso entre as crianças e muitas delas nos param para afagá-lo.<br />

O parque localiza-se na extremidade sul da cidade. Em seu limite ao longe, há<br />

dois lagos adjacentes separados por uma estreita faixa de terra que se projeta<br />

em uma floresta, localizada atrás dos lagos. O parque possui três campos de<br />

baseball, um playground e um grande pavilhão onde voluntários estão servindo<br />

cidra e pedaços de torta de abóbora. Três vagões cheios de feno estão ao lado<br />

de uma estrada de cascalho, com um grande cartaz onde se lê:<br />

MORRA DE MEDO<br />

PASSEIOS MAL-ASSOMBRADOS DE HALLOWEEN<br />

COMEÇO AO PÔR DO SOL<br />

$5 POR PESSOA.<br />

A estrada de cascalho torna-se de barro antes de chegar ao bosque, cuja<br />

entrada está decorada com recortes de fantasmas e caricaturas de duendes.<br />

Parece que o percurso mal-assombrado atravessa o bosque. Olho ao redor,<br />

procurando por Sarah, mas não a vejo em lugar nenhum. Me pergunto se ela<br />

virá.<br />

Eu e Henri entramos no pavilhão. As líderes de torcida estão de um lado,<br />

algumas fazendo desenhos de Halloween no rosto das crianças e outras<br />

vendendo cupons de rifa para um sorteio a ser realizado às seis horas da tarde.<br />

— Oi John- escuto atrás de mim. Viro-me para trás e lá está Sarah, segurando<br />

sua câmera- Gostou do desfile?<br />

Sorrio para ela e deslizo minhas mãos para dentro dos bolsos. Há um pequeno<br />

fantasma branco pintado em sua bochecha.<br />

— Ei, você- digo- Eu gostei. Acho que estou me acostumando com o charme<br />

dessa pequena cidade de Ohio.<br />

— Charme? Você quer dizer monotonia, certo?<br />

Balanço os ombros.<br />

— Não sei, isso aqui não é ruim.<br />

— Ei, é o pequeno garoto da escola. Me lembro de você- ela diz, curvando-se<br />

para afagar Bernie Kosar. Ele balança seu rabo descontroladamente, pula e<br />

tenta lamber o rosto dela. Sarah ri. Olho por cima do meu ombro. Henri está a<br />

seis metros de distância, conversando com a mãe de Sam em uma das mesas<br />

de piquenique. Estou curioso para saber sobre o que estão falando.


— Acho que ele gosta de você. O nome dele é Bernie Kosar.<br />

— Bernie Kosar? Isso não é nome para um cachorro adorável. Olhe para essa<br />

capa. Tão fofa.<br />

— Sabe, se você ficar elogiando tanto ele, vou começar a ter ciúmes do meu<br />

próprio cachorro.- digo.<br />

Ela sorri e se põe de pé.<br />

— Então, você vai comprar uma rifa minha ou não? É para reconstruir um<br />

abrigo para animais, de uma organização sem fins lucrativos, que foi destruído<br />

em um incêndio no mês passado no Colorado.<br />

— Sério? Como uma garota de Paraíso, em Ohio, descobriu um abrigo para<br />

animais no Colorado?<br />

— É da minha tia. Convenci todas as líderes de torcida a participar. Nós<br />

faremos uma viagem e auxiliaremos na construção. Estaremos ajudando os<br />

animais e tendo folga da escola aqui em Ohio por uma semana. É uma<br />

situação em que se une o útil ao agradável.<br />

Eu imagino Sarah usando um capacete, segurando um martelo. Esse<br />

pensamento traz um sorriso para meu rosto.<br />

— Então você está me dizendo que terei que cozinhar sozinho por uma<br />

semana inteira?- finjo um suspiro exasperado e balanço minha cabeça- Não sei<br />

se posso apoiar essa viagem agora, mesmo sendo pelos animais.<br />

Ela ri e dá um soco em meu braço. Pego minha carteira e dou a ela cinco<br />

dólares por seis cupons.<br />

— Esses seis darão boa sorte- ela diz.<br />

— Darão?<br />

— Claro. Você os comprou de mim, bobo.<br />

Nesse momento, por cima do ombro de Sarah, eu vejo Mark e o resto dos<br />

garotos do carro alegórico entrar no pavilhão.<br />

— Você vai ao passeio mal-assombrado esta noite?- Sarah pergunta.<br />

— Sim, eu estava pensando sobre isso.<br />

— Você deveria ir, é divertido. Todo mundo vai. E é realmente muito<br />

assustador.


Mark vê eu e Sarah conversando e fecha a cara. Ele vem caminhando em<br />

nossa direção. A mesma roupa de sempre- jaqueta do time, calça jeans, cabelo<br />

cheio de gel.<br />

—Você vai?- pergunto para Sarah.<br />

Antes dela poder responder, Mark interrompe:<br />

— Gostou do desfile, John?- ele pergunta. Sarah rapidamente se vira e o<br />

encara.<br />

— Gostei muito.- respondi.<br />

— Você vai ao passeio mal-assombrado essa noite ou tem muito medo?<br />

Sorrio para ele.<br />

—Pra falar a verdade, eu vou.<br />

— Você vai ter um colapso como na escola e fugir do bosque chorando feito<br />

um bebê?<br />

— Não seja idiota, Mark- Sarah diz.<br />

Ele olha para mim, fervendo por dentro. Com a multidão ao nosso redor, não<br />

há nada que ele possa fazer sem criar uma cena- e, de qualquer forma, não<br />

acho que ele faria algo.<br />

— Tudo em seu tempo apropriado- Mark diz.<br />

— É isso que você acha?<br />

—O que é seu está chegando.- ele diz.<br />

— Isso pode ser verdade- eu digo- Mas não virá de você.<br />

— Parem!- Sarah grita. Ela se coloca entre nós, empurrando-nos com as mãos.<br />

As pessoas estão olhando. Ela olha ao redor, envergonhada por estarmos<br />

chamando atenção, e em seguida, fecha a cara inicialmente para Mark e<br />

depois para mim.<br />

— Bem, obrigada. Vocês, garotos, briguem se é o que querem fazer. Boa sorte<br />

com isso.- Sarah diz, se vira e vai para longe. Observo ela partir. Mark não.<br />

— Sarah- eu chamo, mas ela continua andando e desaparece ao sair do<br />

pavilhão.<br />

— Em breve- Mark diz.<br />

Olho de volta para ele.


— Duvido.<br />

Ele volta para seu grupo de amigos. Henri vem em minha direção.<br />

— Não acho que ele estava perguntando da lição de casa de matemática de<br />

ontem, estava?<br />

— Quase- digo.<br />

— Eu não me preocuparia com ele- Henri diz- Ele parece ser do tipo que só<br />

fala.<br />

— Não estou preocupado- digo, e depois olho para o local onde Sarah<br />

desapareceu.- Devo ir atrás dela?- pergunto e olho para ele, suplicando para a<br />

parte dele que uma vez foi casada e se apaixonou, a parte que ainda sente<br />

saudades da esposa todos os dias e não para a parte dele que quer me manter<br />

a salvo e escondido.<br />

Ele confirma com a cabeça.<br />

— Sim- ele diz com um suspiro- Por mais que eu odeie admitir, você<br />

provavelmente deve ir atrás dela.<br />

Capítulo 13<br />

CRIANÇAS CORRENDO, GRITANDO, NOS ESCORREGADORES E NAS<br />

BARRAS DE FERRO. Cada criança com uma sacola de doces em sua mão e<br />

com a boca cheia de doces também. Crianças vestidas como personagens de<br />

desenhos animados, monstros, vampiros ou fantasmas. Todos os habitantes<br />

de Paraíso devem estar no parque, nesse momento. E no meio de toda essa<br />

loucura, eu vejo Sarah, sentada sozinha e lentamente se impulsionando em um<br />

balanço.<br />

Eu traço meu caminho entre gritos e guinchos. Quando Sarah me vê, ela sorri;<br />

seus grandes olhos azuis parecendo faróis.<br />

— Precisa de um empurrão?- pergunto.<br />

Ela inclina a cabeça para o balanço ao seu lado e eu sento.<br />

— Tudo bem?- pergunto.<br />

— Sim, estou bem. Ele apenas me desgasta. Sempre agindo de forma tão<br />

agressiva e se achando tão importante quando está com os amigos.<br />

Ela gira no balanço até que a corda fique bem esticada, depois levanta os pés<br />

e roda, inicialmente devagar, mas depois ganhando velocidade. Ela ri o tempo<br />

todo, com seu cabelo loiro voando atrás dela. Faço a mesma coisa. Quando o<br />

balanço finalmente para, o mundo continua girando.


— Onde está Bernie Kosar?<br />

— Deixei-o com Henri- eu digo.<br />

—Seu pai?<br />

—Sim, meu pai.- eu estou constantemente fazendo isso, chamando Henri pelo<br />

nome quando eu deveria dizer: “pai”.<br />

A temperatura está diminuindo rapidamente, e as articulações da minha mão<br />

segurando as correntes do balanço estão ficando brancas e frias. Nós<br />

observamos as crianças correndo enlouquecidas ao nosso redor. Sarah olha<br />

para mim e seus olhos parecem mais azuis do que nunca na luz do crepúsculo.<br />

Nosso olhar permanece fixo, um apenas olhando para o outro, nenhuma<br />

palavra sendo dita, mas muito se passando entre nós. As crianças parecem<br />

desaparecer ao fundo. Daí, ela sorri timidamente e olha para longe.<br />

— Então, o que você vai fazer?- pergunto.<br />

— Sobre o quê?<br />

— Mark.<br />

Ela encolhe os ombros.<br />

— O que posso fazer? Eu já terminei com ele. Sempre digo para ele que não<br />

estou interessada em voltarmos a ficar juntos.<br />

Eu assinto. Não estou certo de como responder a isso.<br />

— Mas, de qualquer forma, eu provavelmente deveria tentar vender o resto<br />

desses cupons. Falta somente uma hora para a rifa.<br />

— Você quer alguma ajuda?<br />

— Não, tudo bem. Você tem que se divertir. Bernie Kosar provavelmente está<br />

sentindo sua falta agora. Mas você, definitivamente, tem que ir ao passeio malassombrado.<br />

Talvez nós possamos ir juntos, ok?<br />

— Vamos.- eu digo. Uma felicidade floresce dentro de mim, mas tento mantê-la<br />

escondida.<br />

— Vejo você daqui a pouco.<br />

— Boa sorte com os cupons.<br />

Ela estende o braço, pega minha mão e a segura por uns três segundos.<br />

Depois ela a solta, pulado balanço e sai apressada. Sento no balanço dela,<br />

balançando-me suavemente, aproveitando o vento que eu não sentia a muito<br />

tempo, porque passamos o último inverno na Florida e o penúltimo no Texas.


Quando volto para o pavilhão, Henri está sentado em uma mesa de<br />

piquenique, comendo um pedaço de torta, com Bernie Kosar deitado aos seus<br />

pés.<br />

— Como foi?<br />

— Bom- eu digo com um sorriso.<br />

Vindos de algum lugar, fogos de artifício alaranjados e azuis sobem e<br />

explodem no céu. Isso me faz pensar em Lorien e nos fogos de artifício que vi<br />

no dia da invasão.<br />

— Você pensou mais um pouco sobre a segunda nave que eu vi?<br />

Henri olha ao redor para certificar-se que não há ninguém escutando. Nós<br />

temos uma mesa de piquenique apenas para nós, posicionada numa<br />

extremidade distante da multidão.<br />

— Um pouco. No entanto, ainda não faço idéia do que isso significa.<br />

— Você acha que ela pode ter vindo para cá?<br />

— Não. Não seria possível. Se ela funcionava com combustível, não poderia<br />

ter viajado tão longe sem reabastecer.<br />

Sento-me por um momento.<br />

—Gostaria que pudesse.<br />

— Pudesse o quê?<br />

— Ter vindo para cá, conosco.<br />

— É um belo desejo- Henri diz.<br />

Uma hora mais ou menos se passou e eu vejo os jogadores de futebol, com<br />

Mark na frente, caminhando na grama. Eles estão vestidos de múmias, zumbis,<br />

fantasmas, sendo vinte-e-cinco no total. Eles sentam-se nas arquibancadas do<br />

campo de futebol mais próximo e as líderes de torcida que estavam pintando o<br />

rosto das crianças, começaram a maquiar Mark e seus amigos para completar<br />

suas fantasias. Somente nesse momento, percebo que Mark e seus amigos<br />

serão aqueles que assustarão no passeio mal-assombrado, aqueles que nos<br />

esperarão no bosque.<br />

— Viu aquilo?- pergunto para Henri.<br />

Henri olha para eles todos e assente, depois pega seu café e toma um grande<br />

gole.


— Você está pensando se ainda deve ir ao passeio?- ele pergunta.<br />

— Não- eu digo- Eu vou de qualquer jeito.<br />

— Imaginei que iria.<br />

Mark está vestido como uma espécie de zumbi, vestindo roupas pretas<br />

esfarrapadas, maquiagem preta e cinza no rosto com manchas vermelhas em<br />

lugares aleatórios para simular sangue. Quando sua fantasia está completa,<br />

Sarah vai em sua direção e diz algo. A voz dele se eleva, mas não consigo<br />

escutar o que ele está dizendo. Seus movimentos são agitados e ele fala tão<br />

rápido que posso supor que ele está tropeçando em suas próprias palavras.<br />

Sarah cruza os braços e balança a cabeça para ele. O corpo dele fica tenso.<br />

Me endireito para levantar, mas Henri segura meu braço.<br />

— Não- ele diz- Ele apenas está a afastando ainda mais.<br />

Olho para eles e desejo mais do que tudo ouvir o que está sendo dito, mas há<br />

muitas crianças gritando em volta para que eu possa me concentrar. Quando a<br />

gritaria pára, eles estão olhando um para o outro, Mark com uma cara fechada<br />

cheia de dor e Sarah com um sorriso incrédulo. Em seguida, ela balança a<br />

cabeça e se vai.<br />

Olho para Henri.<br />

— O que devo fazer agora?<br />

— Nada- ele diz- nada.<br />

Mark caminha de volta para seus amigos, com a cabeça baixa, carrancudo.<br />

Alguns deles olham em minha direção. Sorrisos afetados aparecem. Depois,<br />

eles começam a caminhar para a floresta. Numa marcha lenta e metódica,<br />

vinte-e-cinco garotos fantasiados desaparecem na distância.<br />

Para matar o tempo, eu caminho de volta para o centro da cidade com Henri e<br />

nós jantamos no Hungry Bear. Quando voltamos para o parque, o sol já se pôs<br />

e o primeiro trailer com feno empilhado, puxado por um trator verde, está sendo<br />

levado para o bosque. A multidão se dispersou consideravelmente e as<br />

pessoas restantes são alunos do ensino-médio e adultos espirituosos, que<br />

totalizam mais ou menos cem pessoas. Procuro por Sarah entre elas, mas não<br />

a vejo. O próximo trailer parte em dez minutos. De acordo com o panfleto, o<br />

passeio inteiro dura meia hora; o trator atravessa o bosque lentamente,<br />

gerando expectativas, depois pára e os ocupantes do trailer descem e seguem<br />

uma trilha diferente à pé, momento no qual os sustos começam.


Eu e Henri permanecemos em um local abaixo do pavilhão e eu novamente<br />

olho a longa fila de pessoas esperando sua vez. Ainda não a vejo. Nesse<br />

momento, meu celular vibra no meu bolso. Não consigo me lembrar da última<br />

vez que meu telefone tocou sem ser o Henri me ligando. No identificador de<br />

chamadas se lê SARAH HART. A agitação percorre meu corpo. Ela deve ter<br />

adicionado meu número em seu celular no mesmo dia em que adicionou o<br />

número dela no meu.<br />

— Alô?- eu digo.<br />

— John?<br />

— Sim.<br />

— Oi, é a Sarah. Você ainda está no parque?- ela diz. Ela soa como se sua<br />

ligação para mim fosse normal, como se eu não devesse pensar duas vezes<br />

sobre ela já ter o meu número mesmo eu nunca tendo o dado para ela.<br />

— Sim.<br />

— Ótimo! Vou estar de volta em cinco minutos. Os passeios já começaram?<br />

— Sim, alguns minutos atrás.<br />

— Você não foi ainda, foi?<br />

— Não.<br />

— Ah, legal! Me espere para irmos juntos.<br />

— Sim, com certeza.- eu digo- O segundo está para sair.<br />

— Perfeito! Estarei aí a tempo para o terceiro.<br />

— Vejo você, então.<br />

Eu desligo, com um enorme sorriso no rosto.<br />

— Seja cuidadoso lá- Henri diz.<br />

—Serei.<br />

Nesse momento paro e tento trazer leveza a minha voz.<br />

— Você não precisa ficar por aqui. Com certeza, posso arranjar uma carona<br />

para casa.<br />

— Estou desejando permanecer e poder viver nessa cidade, John. Mesmo<br />

sendo, provavelmente, mais esperto da nossa parte ir embora depois das<br />

coisas que já aconteceram. Mas você vai ter que me ver no meio das suas


coisas. E essa é uma delas. Não gosto nenhum pouco do modo como aqueles<br />

garotos te olharam mais cedo.<br />

Eu assinto.<br />

— Ficarei bem.- eu digo.<br />

—Tenho certeza que sim. Mas em todo o caso, estarei bem aqui esperando.<br />

Eu suspiro.<br />

— Tudo bem.<br />

Sarah surge cinco minutos depois com uma amiga bonita que eu já tinha visto<br />

antes, mas a quem nunca fui apresentado. Ela tinha trocado de roupa. Estava<br />

com uma calça jeans, um suéter de lã e uma jaqueta preta. Ela tinha limpado a<br />

pintura de fantasma da sua bochecha direita e seu cabelo está solto, caindo<br />

sobre seus ombros.<br />

— Ei, você- ela diz.<br />

— Oi.<br />

Ela envolve seus braços ao meu redor, numa tentativa de abraço. Posso sentir<br />

o perfume vindo do seu pescoço. Depois ela se afasta.<br />

— Olá, pai do John- ela diz para Henri- Essa é minha amiga, Emily.<br />

— Prazer em conhecê-las.- Henri diz- Então vocês vão partir para o terror<br />

desconhecido?<br />

— Pode apostar que sim- Sarah diz.- Vai ficar tudo bem com esse daqui lá?<br />

Não quero ele ficando apavorado.- Sarah diz para Henri, apontando para mim<br />

com um sorriso.<br />

Henri ri e posso dizer que ele já gosta de Sarah.<br />

— É melhor você ficar por perto em todo o caso.<br />

Ela olha por cima de seu ombro. O terceiro trailer está um quarto cheio.<br />

— Manterei ele em segurança.- ela diz- É melhor nós irmos.<br />

— Se divirtam- Henri diz.<br />

Sarah me surpreende ao segurar minha mão e nós três andamos depressa<br />

para o vagão de feno localizado a uns cem metros do pavilhão. Há uma fila de<br />

mais ou menos trinta pessoas. Nós entramos no fim dela e começamos a


conversar, embora eu esteja com um pouco de vergonha e na maior parte do<br />

tempo apenas escuto as duas garotas conversando. Enquanto estamos<br />

esperando, vejo Sam pairando ao nosso lado como se estivesse ponderando<br />

se deveria ou não se aproximar.<br />

— Sam!- eu grito com mais entusiasmo do que pretendia. Ele tropeça- Quer vir<br />

ao passeio conosco?<br />

Ele dá de ombros.<br />

— Vocês se importam?<br />

— Venha- Sarah diz e acena para ele entrar na fila. Ele fica próximo a Emily,<br />

que sorri para ele. Ele imediatamente começa a corar e eu fico muito feliz com<br />

o fato dele ir conosco. De repente, um garoto segurando um radiocomunicador<br />

vem em nossa direção. Reconheço-o do time de futebol.<br />

— Oi, Tommy- Sarah diz para ele.<br />

— Oi- ele diz.- Têm quatro lugares vagos nesse trailer. Vocês querem ir?<br />

— Sério?<br />

— Sim.<br />

Saímos da fila e entramos no trailer, onde nós quatro sentamos juntos em um<br />

fardo de feno. Acho estranho Tommy não ter pedido nossos bilhetes. Também<br />

estou curioso para saber por que ele nos deixou furar completamente a fila.<br />

Algumas das pessoas esperando nos olham com desaprovação. Não posso<br />

dizer que as culpo.<br />

— Aproveitem o passeio- Tommy diz com uma risada do tipo que vejo as<br />

pessoas usarem quando algo de ruim acontece com quem elas desprezam.<br />

— Isso foi estranho- eu digo.<br />

Sarah dá de ombros.<br />

— Ele provavelmente tem uma queda pela Emily.<br />

— Meu Deus, espero que não.- Emily diz e depois coloca a mão sobre a boca.<br />

Observo Tommy de onde estou. O trailer está apenas metade cheio, o que é<br />

outra coisa que acho estranha uma vez que há muitas pessoas esperando.<br />

O trator nos puxa, dando solavancos ao longo do caminho e anda em direção a<br />

entrada do bosque, na qual pessoas escondidas emitem sons desagradáveis.<br />

A mata é densa e nenhuma luz penetra nela a não ser aquela proveniente da<br />

frente do trator. Uma vez que não tivermos essa luz, eu penso, não haverá<br />

nada além da escuridão. Sarah segura minha mão novamente. Ela está fria ao


toque, mas uma sensação de calor me inunda. Ela se inclina para mim e<br />

sussurra:<br />

— Estou um pouco assustada.<br />

Imagens de fantasmas surgem dos arbustos mais baixos e fora da trilha,<br />

zumbis fazendo caretas se inclinam nas árvores. O trator pára e seu farol se<br />

apaga. Em seguida, o farol pisca intermitentemente por dez segundos. Não há<br />

nada assustador nisso e somente quando ele pára, entendo seu propósito:<br />

nossos olhos demoram alguns segundos para se acostumar e não<br />

conseguimos ver nada. Um grito atravessa a noite e Sarah se encosta em mim<br />

a medida que algo paira ao nosso redor. Mantenho meus olhos semicerrados<br />

para tentar enxergar e vejo que Emily se moveu para perto de Sam, e que ele<br />

está com um sorriso enorme. Eu, na realidade, também estou um pouco<br />

assustado. Coloco meu braço cuidadosamente ao redor de Sarah. Uma mão<br />

roça em nossas costas e Sarah agarra firmemente a minha perna. Alguns<br />

outros gritos. Com uma sacudida, o trator volta a funcionar e continua a moverse<br />

para a frente; não vemos nada além dos contornos das árvores iluminados<br />

pela sua luz.<br />

Nos movemos por mais três ou quatro minutos. A expectativa aumenta, assim<br />

como o medo premente de ter que caminhar de volta toda a distância que já<br />

percorremos. Em seguida, o trator chega a uma clareira circular e pára.<br />

— Todos para fora- o motorista grita.<br />

Quando a última pessoa sai, o trator vai embora. Sua luz diminui à distância e<br />

depois desaparece, não deixando nada além da noite e nenhum som além dos<br />

que nós mesmos produzimos.<br />

— Merda- alguém diz, e todos nós rimos.<br />

No total, somos onze. Uma luz se acende, nos mostrando o caminho, depois se<br />

apaga. Fecho meus olhos para me concentrar na sensação dos dedos de<br />

Sarah entrelaçados nos meus.<br />

— Não sei por que faço isso todo ano- Emily diz nervosa, com seus braços<br />

cruzados em torno de si.<br />

As outras pessoas começaram a trilha e nós a seguimos. Algumas luzes<br />

piscam ocasionalmente para nos manter no caminho. Os outros estão muito a<br />

frente, de maneira que não podemos vê-los. Eu mal consigo ver o chão aos<br />

meus pés. Três ou quatro gritos, repentinamente, soam a nossa frente.<br />

— Ah, não- Sarah diz e aperta minha mão- Parece que há problemas a frente.


Nesse momento, algo pesado cai sobre nós. As duas garotas gritam e Sam<br />

grita em seguida. E tropeço e caio no chão, ralando o joelho, emaranhado em<br />

seja lá que droga de coisa. Percebo, então, que é uma rede!<br />

— Que droga é essa?- Sam grita.<br />

Eu rasgo o fio retorcido, mas no segundo em que estou livre, sou empurrado<br />

com força. Alguém me agarra e me arrasta para longe das garotas e de Sam.<br />

Me liberto e me levanto, mas imediatamente sou novamente atingido por trás.<br />

Isso não faz parte do passeio.<br />

— Me largue- uma das garotas grita. Um homem ri em resposta. Não consigo<br />

ver nada. As vozes das garotas estão ficando cada vez mais distantes de mim.<br />

— John?- Sarah chama.<br />

— Onde você está, John?- Sam grita.<br />

Vou em direção a eles, mas sou novamente golpeado. Não, isso não está<br />

certo. Sou derrubado. Não sinto mais o vento, quando caio no chão. Levantome<br />

rapidamente e tento recuperar o fôlego, segurando em uma árvore como<br />

apoio. Retiro a sujeira e as folhas da minha boca.<br />

Fico lá por alguns segundos e não escuto um único som além da minha própria<br />

respiração forçada. Justo no momento em que acho que fui deixado sozinho,<br />

alguém me empurra com os ombros e eu vôo para a árvore mais próxima.<br />

Minha cabeça bate contra o tronco e por um momento vejo estrelas. Estou<br />

surpreso com a força da pessoa. Coloco a mão em minha testa e sinto sangue<br />

em meus dedos. Olho ao redor novamente, mas não consigo ver nada além do<br />

contorno das árvores.<br />

Ouço o grito de uma das meninas, seguido pelo som de luta. Cerro meus<br />

dentes. Estou tremendo. Há pessoas escondidas nas árvores ao meu redor?<br />

Não sei dizer. Mas eu sinto um par de olhos em mim, vindo de algum lugar.<br />

— Me larga- Sarah grita. Ela está sendo arrastada para longe, posso dizer que<br />

para bem longe.<br />

— Ok- eu digo para a escuridão, para as árvores. A raiva percorre meu corpo.-<br />

Você quer jogar?- eu digo, mais alto dessa vez. Alguém ri próximo a mim.<br />

Dou um passo em direção ao som. Sou empurrado novamente, mas recupero o<br />

equilíbrio antes de cair. Lanço um soco a cegas e as costas da minha mão<br />

raspam na casca de uma árvore. Não há nada a fazer. Qual a vantagem em ter<br />

os Legados se eles nunca podem ser usados quando necessário? Mesmo se<br />

isso significar que eu e Henri teremos que carregar o caminhão essa noite e<br />

fugir para outra cidade, no mínimo terei feito o que eu precisava fazer.


— Você quer jogar?- grito novamente.- Eu posso jogar também!<br />

Um filete de sangue escorre pelo lado do meu rosto. Ok, eu penso, vou fazer<br />

isso. Eles podem fazer o que quiserem comigo, mas eles não vão arrancar um<br />

único fio de cabelo da Sarah. Ou do Sam. Ou da Emily.<br />

Respiro profundamente e a adrenalina percorre meu corpo. Um sorriso<br />

malicioso toma forma e meu corpo parece ficar maior, mais forte. Minhas mãos<br />

se acendem e o brilho ilumina a noite; o mundo, de repente, flameja.<br />

Olho ao redor. Movo minhas mãos em direção as árvores e corro pela noite.<br />

Capítulo 14<br />

KEVIN SAI DE TRÁS DAS ÁRVORES, VESTIDO DE MÚMIA. Foi ele quem me<br />

atacou. As luzes o desorientam e ele parece confuso, tentando descobrir de<br />

onde elas estão vindo. Ele está usando óculos de visão noturna. Então, essa é<br />

a razão pela qual eles são capazes de nos ver, eu penso. Onde eles os<br />

arranjaram?<br />

Ele investe contra mim e no último segundo eu desvio do seu ataque e dou<br />

uma rasteira nele.<br />

— Me largue- eu ouço vindo da trilha. Eu olho ao redor e balanço minhas luzes<br />

por entre as árvores, mas nada se movimenta. Não sei dizer se a voz é de<br />

Sarah ou de Emily. Uma risada de homem a acompanha.<br />

Kevin tenta se levantar, mas eu chuto o lado do seu corpo antes que ele se<br />

ponha de pé. Ele cai novamente no chão com um “Ummpf”. Eu tiro os óculos<br />

de seu rosto e os jogo o mais longe possível, sabendo que eles aterrissarão no<br />

mínimo a um quilometro e meio de distância, ou talvez três ou cinco<br />

quilômetros, pois estou tão irado que não consigo controlar minha força. Em<br />

seguida, corro pelo bosque antes de Kevin conseguir sentar-se.<br />

A trilha vira para a esquerda, depois para a direita. Minhas mãos se iluminam<br />

apenas quando preciso enxergar. Sinto que estou perto. Logo depois, vejo Sam<br />

a frente, em pé, com os braços de um zumbi ao seu redor. Três outros zumbis<br />

estão por perto.<br />

O zumbi o solta.<br />

— Relaxe, nós estamos apenas brincando. Se você não resistir, não iremos te<br />

machucar- ele diz para Sam- Sente-se ou algo do tipo.<br />

Eu ilumino minhas mãos e pisco as luzes nos olhos deles, a fim de cegá-los. A<br />

pessoa mais próxima vem em minha direção; eu me viro e bato na lateral do<br />

seu rosto, fazendo-o cair imóvel no chão. Seus óculos caem no meio de um


arbusto crescido e desaparecem. A segunda pessoa tenta me agarrar em um<br />

abraço de urso, mas eu me livro de seu aperto e o derrubo no chão.<br />

— Que merda está acontecendo?- ele diz, confuso.<br />

Eu o empurro e ele bate contra uma arvore a seis metros de distância. O<br />

terceiro rapaz vê isso e foge. Apenas sobra o quarto, aquele que estava<br />

segurando Sam. Ele levanta suas mãos como se eu tivesse apontando uma<br />

arma para seu peito.<br />

— Isso não foi idéia minha- ele diz.<br />

— O que ele planejou?<br />

— Nada, cara. Nós apenas queríamos fazer uma brincadeira com vocês,<br />

assustá-los um pouco.<br />

— Onde eles estão?<br />

— Eles deixaram Emily ir. Sarah está na trilha, um pouco a frente.<br />

— Me dê seus óculos.- eu digo.<br />

— De jeito nenhum, cara. Eles foram emprestados da polícia. Vou me meter<br />

em confusão.<br />

Caminho em direção a ele.<br />

— Tudo bem- ele diz. Ele os tira e os estende para mim. Eu os lanço com mais<br />

força ainda do que joguei os últimos. Espero que eles aterrissem na cidade<br />

mais próxima. Deixe que eles expliquem isso para a polícia.<br />

Seguro a camisa de Sam com minha mão direita. Não consigo ver nada sem<br />

acender minhas luzes. Somente nesse momento percebo que deveria ter<br />

ficado com os dois óculos para podermos usá-los. Mas não fiquei, então respiro<br />

profundamente e deixo minha mão esquerda se acender e começar a nos guiar<br />

no caminho. Se Sam acha isso suspeito, ele não se manifesta.<br />

Paro para escutar. Nada. Nós continuamos em frente, caminhando por entre as<br />

árvores. Desligo a luz.<br />

— Sarah- eu grito.<br />

Paro para escutar e não ouço nada além do vento balançando os arbustos e da<br />

respiração pesada de Sam.<br />

— Quantas pessoas estão com Mark?- pergunto.<br />

— Cinco, mais ou menos.


— Você sabe em que direção eles foram?<br />

— Eu não vi.<br />

Nós continuamos e eu não tenho idéia em que direção estamos indo. Longe,<br />

escuto o rugido do motor do trator. O quarto passeio está começando. Me sinto<br />

agitado por dentro e quero correr, mas sei que Sam não pode me acompanhar.<br />

Ele já está respirando com dificuldade e mesmo que eu esteja suando, a<br />

temperatura é de apenas 7ºC. Ou talvez eu esteja confundindo sangue com<br />

suor. Não sei dizer.<br />

A medida que passamos por uma grande arvore com tronco nodoso, sou<br />

agarrado por trás. Sam grita no momento em que um soco me acerta na parte<br />

de trás da cabeça e eu fico momentaneamente atordoado, mas, em seguida,<br />

eu giro e seguro o garoto pela garganta e ilumino seu rosto. Ele tenta afastar<br />

meus dedos, mas é inútil.<br />

— O que Mark está planejando?<br />

— Nada- ele diz.<br />

— Resposta errada.<br />

Eu o empurro em direção a árvore mais próxima a um metro e meio, depois o<br />

seguro e o levanto, tirando seus pés do chão, com minha mão novamente em<br />

seu pescoço. Suas pernas chutam descontroladamente, me acertando, mas eu<br />

contraio meus músculos de maneira que os chutes não produzam nenhum<br />

dano.<br />

— O que ele está planejando fazer?<br />

Eu o abaixo até que seus pés toquem o chão sólido, afrouxando meu aperto<br />

para que ele possa falar. Sinto que Sam está ouvindo, absorvendo isso tudo,<br />

mas não há nada que eu possa fazer a esse respeito.<br />

— Nós apenas queríamos assustar vocês- ele arfa.<br />

— Eu juro que vou te quebrar no meio, se você não me disser a verdade.<br />

— Ele acha que os outros estão arrastando vocês dois para as corredeiras<br />

Shepherd. É pra onde ele levou Sarah. Ele queria que ela o visse batendo em<br />

você, e depois ele deixaria você ir.<br />

— Me leve pra lá.- eu digo.<br />

Ele tropeça para a frente e eu apagoi minhas luzes. Sam segura em minha<br />

camisa e segue atrás de nós. Enquanto caminhamos por uma pequena clareira<br />

iluminada pela luz da lua, posso ver que ele está olhando para minhas mãos.


— São luvas- eu digo- Kevin Miller estava usando-as. Algum tipo de objeto de<br />

Halloween.<br />

Ele assente, mas posso dizer que ele está em pânico. Caminhamos por<br />

aproximadamente um minuto até que ouvimos o som de água correndo bem a<br />

nossa frente.<br />

— Me dê seus óculos- digo para o garoto que está nos guiando.<br />

Ele hesita e eu torço seu braço. Ele se contorce de dor e rapidamente os tira de<br />

seu rosto.<br />

— Pegue-os, pegue-os.- ele grita.<br />

Quando eu os coloco, o mundo se transforma em uma sombra verde. Empurro<br />

o garoto fortemente e ele cai no chão.<br />

— Venha- eu digo para Sam, e nós seguimos para a frente, deixando o garoto<br />

para trás.<br />

A frente, vejo o grupo. Eu conto oito garotos, e mais a Sarah.<br />

— Posso vê-los agora. Você quer esperar aqui ou vir comigo? A coisa pode<br />

ficar feia.<br />

— Quero ir.- Sam diz. Posso dizer que ele está com medo, embora eu não<br />

saiba se é por causa do que ele me viu fazer ou por causa dos jogadores de<br />

futebol a nossa frente.<br />

Eu ando o resto do caminho o mais silenciosamente que eu posso, com Sam<br />

na ponta dos pés atrás de mim. Quando estamos a poucos metros, Sam<br />

tropeça em um galho.<br />

— John?- Sarah pergunta. Ela está sentada em uma grande pedra com seus<br />

joelhos encostados no peito e seus braços em torno de si. Ela não está usando<br />

óculos e vagueia o olhar em nossa direção.<br />

— Sim- eu digo- E Sam.<br />

Ela sorri.<br />

— Eu disse pra você- ela fala, e eu suponho que ela esteja se dirigindo a Mark.<br />

A água que eu ouvi não é nada além de um riacho balbuciante. Mark vem em<br />

minha direção.<br />

— Ok, ok, ok- ele diz.<br />

— Cala a boca, Mark- eu digo- Estrume no meu armário é uma coisa, mas você<br />

foi longe demais agora.


— Você acha? São oito contra dois.<br />

— Sam não tem nada a ver com isso. Você tem medo de me enfrentar<br />

sozinho?- eu digo- O que você estava esperando que acontecesse? Você<br />

tentou seqüestrar duas pessoas. Você realmente acha que eles ficarão em<br />

silêncio?<br />

— Sim, eu acho. Quando elas me verem chutando seu traseiro.<br />

— Você está delirando- eu digo, e me viro para os outros- Para aqueles de<br />

vocês que não quiserem cair na água, sugiro que vão embora agora. Mark vai<br />

cair, não importa o que fizerem. Ele perdeu a chance de permutar.<br />

Todos eles riem. Um deles pergunta o que “permutar” significa.<br />

— Agora é a última chance de vocês- eu digo.<br />

Todos eles permanecem firmes.<br />

— Que seja.- eu digo.<br />

Uma agitação nervosa se instala no meio do meu peito. A medida que eu dou<br />

uma passo em direção a Mark, ele caminha para trás e tropeça em seus<br />

próprios pés, caindo no chão. Dois garotos vem em minha direção, ambos<br />

maiores que eu. Um se lança contra mim, mas eu evito seu soco e bato em sua<br />

barriga. Ele se dobra, com as mãos segurando o estômago. Empurro o<br />

segundo garoto e seus pés deixam o chão. Ele aterrissa com um baque a um<br />

metro e meio, e o impulso o lança na água. Ele se levanta, chapinhando. Os<br />

outros permanecem parados, chocados. Sinto que Sam move-se em direção a<br />

Sarah. Agarro o primeiro cara e o arrasto pelo chão. Ele chuta o ar<br />

errantemente, mas não acerta em nada. Quando chegamos a margem do<br />

riacho, eu o levanto pelo cós da calça jeans e o jogo na água. Outro cara<br />

investe contra mim. Eu meramente me esquivo e ele cai de cara no riacho.<br />

Três já foram, faltam quatro. Me pergunto quanto Sarah e Sam podem ver sem<br />

os óculos.<br />

— Caras, vocês estão fazendo isso muito fácil para mim- eu digo- Quem é o<br />

próximo?<br />

O maior do grupo me dá um soco que nem chega perto de me acertar, embora<br />

eu o oponha tão rapidamente que seu cotovelo me acerta o rosto e os óculos<br />

saiam do meu rosto. Os óculos caem no chão. Agora, posso ver apenas<br />

sombras. Dou um soco e acerto o garoto na boca; ele cai no chão como um<br />

saco de batatas. Ele parece sem vida, e eu temo ter batido muito forte nele.<br />

Tiro os óculos de seu rosto e os coloco.<br />

-- Outros voluntários?


Dois deles mantêm as mãos levantadas em sinal de rendição; o terceiro<br />

permanece com a boca aberta parecendo um idiota.<br />

-- Sobrou você, Mark<br />

Mark vira-se, como se pretendesse correr, mas eu me precipito para a frente e<br />

o seguro antes que ele possa fugir, puxando seus braços e exercendo pressão<br />

sobre sua nuca. Ele se contorce de dor.<br />

-- Isso acaba agora, você me entende?<br />

Eu aperto mais forte e ele grunhe de dor.<br />

-- Seja o que for que você tenha contra mim, esqueça agora. Isso inclui Sam e<br />

Sarah. Você entende?<br />

Aperto ainda mais forte. Temo que se apertar mais, seu ombro saia do lugar.<br />

-- Eu disse, você me entende?<br />

-- Sim!<br />

Eu o arrasto até Sarah. Sam está sentado na pedra ao lado dela agora.<br />

-- Peça desculpas!<br />

-- Que isso, cara. Você já venceu.<br />

Aperto mais forte.<br />

-- Me desculpe!- ele grita.<br />

-- Fale como se realmente se importasse.<br />

Ele respira profundamente.<br />

-- Me desculpe- ele diz.<br />

-- Você é um imbecil, Mark- Sarah diz, e dá um tapa forte no rosto dele. Ele se<br />

estica, mas estou o segurando firme e não há nada que ele possa fazer.<br />

Arrasto ele para a água. O resto dos garotos permanece assistindo em choque.<br />

O garoto que eu havia derrubado está sentado, coçando a cabeça, como se<br />

estivesse tentando entender o que aconteceu. Suspiro de alivio por ele não<br />

estar machucado muito seriamente.<br />

--Você não vai dizer uma palavra sobre isso, me entende?- eu digo com a voz<br />

baixa para apenas Mark ouvir- Tudo o que aconteceu essa noite, morre aqui.<br />

Juro, se eu ouvir alguma palavra a esse respeito na escola na próxima<br />

semana, isso não será nada comparado ao que acontecerá com você. Você<br />

me entende? Nem uma única palavra.


-- Você realmente acha que eu diria alguma coisa?- ele pergunta.<br />

-- Certifique-se que seus amigos farão o mesmo. Se eles disserem uma única<br />

palavra, vou atrás de você.<br />

-- Nós não diremos nada- ele fala.<br />

Eu o solto, coloco meu pé em sua bunda e o empurro de cara para a água.<br />

Sarah está na pedra com Sam ao seu lado. Ela me abraça forte quando chego<br />

perto dela.<br />

-- Você sabe kung fu ou algo do tipo?- ela pergunta.<br />

Eu rio, nervoso.<br />

-- Você conseguiu ver muito?<br />

-- Não muito, mas eu sei o que aconteceu. Quer dizer, você treinou nas<br />

montanhas sua vida inteira ou o quê? Não entendo como você fez aquilo.<br />

-- Eu apenas estava com medo que algo acontecesse com você, eu acho. E<br />

sim, há um passado de vinte anos em treinamento intenso de artes marciais no<br />

Himalaia.<br />

-- Você é surpreendente- Sarah ri- Vamos sair daqui.<br />

Nenhum dos garotos disse uma palavra para nós. Depois de três metros,<br />

percebo que não tenho idéia para onde estou indo, então dou os óculos para<br />

Sarah nos guiar no caminho.<br />

-- Eu não consigo acreditar nessa merda- Sarah diz- Quer dizer, que imbecil!<br />

Espere até eles terem que explicar isso para a polícia. Não vou deixar eles<br />

escaparem dessa.<br />

-- Você realmente vai a policia? O pai de Mark é o xerife, afinal. – eu digo.<br />

-- Por que eu não levaria isso a diante? Bobagem! O emprego do pai de Mark é<br />

aplicar a lei, mesmo quando seu próprio filho a quebra.<br />

Balanço os ombros na escuridão.<br />

-- Acho que eles já foram punidos.<br />

Mordo meu lábio, aterrorizado com a idéia de ter a polícia envolvida. Se eles<br />

aparecerem, terei que partir, não tem jeito. Nós já teremos carregado o<br />

caminhão e partido para outra cidade, dentro de uma hora se Henri tomar<br />

conhecimento disso. Eu suspiro.


-- Você não acha?- pergunto- Quer dizer, eles já perderam a maior parte dos<br />

óculos de visão noturna. Eles terão que explicar isso. Para não mencionar a<br />

água extremamente gelada.<br />

Sarah não diz nada. Nós caminhamos em silêncio e eu rezo para ela estar<br />

considerando os méritos de deixar isso passar.<br />

Finalmente, o fim do bosque chega a nosso campo de visão. A luz vinda do<br />

parque nos alcança. Quando paro, Sarah e Sam olham para mim. Sam<br />

caminhou em silêncio o tempo todo e eu espero que seja porque ele não pôde<br />

ver realmente o que acontecia; a escuridão, pelo menos uma vez, servindo<br />

como uma aliada inesperada; ou que talvez ele ainda esteja um pouco abalado<br />

com tudo.<br />

-- Isso é com vocês- eu digo- mas, eu sou a favor de deixar esse assunto<br />

morrer. Eu realmente não quero ter que falar com a policia sobre o que<br />

aconteceu.<br />

As luzes caem sobre o rosto incrédulo de Sarah. Ela balança a cabeça.<br />

-- Eu acho que ele está certo- Sam diz- Não quero ter que sentar e escrever<br />

uma declaração estúpida pela próxima meia hora. Eu ficarei encrencado; minha<br />

mãe pensa que eu fui para a cama a uma hora atrás.<br />

-- Você mora perto daqui?- pergunto.<br />

Ele confirma.<br />

-- Sim, e eu vou embora antes que ela vá olhar meu quarto. Vejo vocês por aí.<br />

Sem outras palavras, Sam sai rápido. Ele está claramente agitado.<br />

Provavelmente, ele nunca esteve em uma briga antes e certamente ele nunca<br />

havia sido seqüestrado e atacado no bosque. Tentarei conversar com ele<br />

amanhã. Se ele viu algo que não devia, o convencerei que seus olhos<br />

pregaram peças nele.<br />

Sarah vira meu rosto em sua direção e segue a linha do meu machucado com<br />

o polegar, movendo-o muito suavemente pela minha testa. Depois, ela passa o<br />

dedo pelas minhas sobrancelhas, olhando em meus olhos.<br />

-- Obrigada por hoje a noite. Eu sabia que você apareceria.<br />

Balanço os ombros.<br />

-- Eu não deixaria ele te assustar.<br />

Ela sorri e eu posso ver seus olhos brilhando na luz da lua. Ela se aproxima e<br />

quando eu percebo o que está para acontecer, minha respiração fica presa na<br />

garganta. Ela pressiona seus lábios nos meus e tudo dentro de mim parece


uborizar. É um beijo suave, duradouro. Meu primeiro. Depois ela se afasta e<br />

seus olhos me observam. Eu não sei o que dizer. Um milhão de pensamentos<br />

diferentes passam pela minha cabeça. Sinto minhas pernas tremerem eu<br />

quase não sou capaz de permanecer de pé.<br />

-- Eu soube que você era especial desde a primeira vez que te vi- ela diz.<br />

-- Senti o mesmo por você.<br />

Ela se estica e me beija de novo; sua mão tocando levemente minha bochecha.<br />

Nos primeiros segundos, me perco na sensação de seus lábios nos meus e no<br />

pensamento que eu estou com essa linda garota.<br />

Ela se afasta e nós dois sorrimos um para o outro, não dizendo nada, olhando<br />

um nos olhos do outro.<br />

-- Bem, acho que é melhor vermos se Emily ainda está aqui- Sarah diz após<br />

dez segundos- Ou então estarei abandonada.<br />

-- Tenho certeza que ela está- digo.<br />

Nós caminhamos de mãos dadas até o pavilhão. Não consigo parar de pensar<br />

em nossos beijos. O quinto trator faz barulho ao longo da trilha. O trailer está<br />

cheio e ainda há uma fila de dez pessoas mais ou menos esperando sua vez.<br />

Depois de tudo que aconteceu no bosque, com a mão quente de Sarah na<br />

minha, o sorriso não deixa meu rosto.<br />

Capítulo 15<br />

A PRIMEIRA NEVASCA CAI DUAS SEMANAS DEPOIS. Uma pequena<br />

quantidade de neve, apenas suficiente para cobrir o caminhão com uma<br />

camada fina. Logo depois do Halloween, uma vez que o cristal Loric espalhou o<br />

Lumen por todo o meu corpo, Henri começou meu treinamento real. Nós<br />

trabalhamos todos os dias, sem falta, passando pelo clima frio e chuva e agora<br />

pela neve. Embora ele não diga, acredito que ele está impaciente para que eu<br />

esteja preparado. Começou com olhares desconcertados, suas sobrancelhas<br />

enrugando enquanto ele mordia o lábio inferior, seguiu-se com suspiros<br />

profundos e noites eventualmente sem dormir, o assoalho rangendo sob seus<br />

pés enquanto eu estava deitado acordado em meu quarto, até chegar onde<br />

estamos agora, um desespero inerente na voz tensa de Henri.<br />

Nós estamos no quintal dos fundos, separados três metros, encarando um ao<br />

outro.<br />

-- Não estou inspirado, hoje- eu digo.<br />

-- Eu sei que não, mas temos que trabalhar de qualquer maneira.<br />

Eu suspiro e olho no meu relógio. São quatro horas.


-- Sarah estará aqui às seis- digo.<br />

-- Eu sei- Henri diz- É por isso que temos que nos apressar.<br />

Ele segura uma bola de tênis em cada mão.<br />

-- Está pronto?- ele pergunta.<br />

-- Tão pronto como sempre estarei.<br />

Ele lança a primeira bola no ar, e a medida que ela atinge seu ápice, tento<br />

conjurar um poder profundo dentro de mim para que ela não caia. Eu não sei<br />

como fazer isso, apenas que devo ser capaz de fazê-lo, com tempo e prática,<br />

como Henri diz. Todos os Garde desenvolvem a habilidade de mover objetos<br />

com sua mente. Telecinese. E, ao invés de me deixar descobrir isso sozinho, -<br />

como aconteceu com minhas mãos- Henri parece obcecado em acordar o<br />

poder de onde quer que seja a caverna onde ele está hibernando.<br />

A bola cai como as milhares de bolas lançadas antes dela, sem uma única<br />

interrupção, saltando duas vezes, e depois pára na grama coberta de neve.<br />

Solto um suspiro profundo.<br />

-- Não estou no clima, hoje.<br />

-- De novo- Henri diz.<br />

Ele lança a segunda bola. Eu tento movê-la, pará-la, com tudo dentro de mim<br />

se esforçando para fazer apenas essa coisa idiota mover-se um centímetro<br />

para a direita ou para a esquerda, mas não tenho sorte. Ela cai no chão,<br />

também. Bernie Kosar, que está nos assistindo, vai até ela, a pega e vai para<br />

longe.<br />

-- Isso virá no seu próprio tempo- digo.<br />

Henri balança a cabeça. Os músculos da sua mandíbula estão flexionados.<br />

Seu mau humor e impaciência estão me atingindo. Ele observa Bernie Kosar<br />

trotar com a bola, depois suspira.<br />

-- O quê?- eu digo.<br />

Ele balança a cabeça novamente.<br />

-- Vamos continuar tentando.<br />

Ele caminha para dentro e pega outra bola. Então, ele a arremessa no ar.<br />

Tento pará-la, mas, é claro que ela cai.<br />

-- Talvez amanhã- eu digo.


Henri assente e olha para o chão.<br />

-- Talvez amanhã.<br />

Estou coberto de suor, lama e neve derretida depois de nosso trabalho ao ar<br />

livre. Henri me cobrou mais do que o normal hoje, e veio até mim com uma<br />

agressão que somente pode ser revestida de pânico. Além da prática de<br />

telecinese, na maioria das nossas sessões há exercícios de luta- combate<br />

corpo-a-corpo, luta livre, artes marciais mixas- seguidos por fundamentos de<br />

concentração- calma sob pressão, controle da mente, como identificar medo<br />

nos olhos do adversário e reconhecer a melhor forma de abordá-lo. Mas, não<br />

foi o treinamento intenso que Henri me deu, e sim seu olhar. Um olhar<br />

angustiado, tingido por medo, aflição, desapontamento. Não sei se ele está<br />

apenas preocupado com meu progresso, ou se é algo mais profundo, mas<br />

essas sessões estão me deixando exausto- emocionalmente e fisicamente.<br />

Sarah chega exatamente na hora. Vou para fora e a beijo no momento em que<br />

ela chega na varanda da frente. Pego o casaco dela e o penduro, quando<br />

entramos. Nossa prova de adm. doméstica é na semana que vem, e foi idéia<br />

dela cozinhar o prato, antes de termos que prepará-lo na sala de aula. No<br />

momento em que começamos a cozinhar, Henri pega sua jaqueta e sai para<br />

uma caminhada. Ele leva Bernie Kosar e fico agradecido pela privacidade. Nós<br />

fazemos peito de frango cozido com batatas e vegetais no vapor, e a refeição<br />

fica muito melhor do que eu tinha imaginado. Quando está tudo pronto, nós três<br />

nos sentamos e comemos juntos. Henri fica em silêncio na maior parte do<br />

jantar. Eu e Sarah quebramos o silêncio incômodo, com conversas banais,<br />

sobre a escola, sobre irmos ao cinema no próximo sábado. Henri raramente<br />

tira os olhos de seu prato, a não ser para dizer quão maravilhosa está a<br />

refeição.<br />

Quando o jantar termina, eu e Sarah lavamos as louças e vamos para o sofá.<br />

Sarah trouxe um filme e nós assistimos na nossa pequena TV, mas Henri na<br />

maior parte do tempo olha para a janela. No meio do filme, ele se levanta com<br />

um suspiro e caminha para fora. Sarah e eu observamos ele sair. Nós estamos<br />

de mãos dadas, e ela está com a cabeça encostada em meu ombro. Bernie<br />

Kosar está sentado ao lado com a cabeça no colo dela; um cobertor envolve<br />

ambos. Pode estar frio e ventando lá fora, mas está quente e aconchegante na<br />

nossa sala de estar.<br />

— Seu pai está bem?- Sarah pergunta.


— Não sei. Ele anda agindo estranho.<br />

—Ele estava bem quieto durante o jantar.<br />

— Sim, vou ver como ele está. Volto logo.- eu digo e sigo Henri para fora da<br />

casa. Ele está em pé na varanda- olhando longe, na escuridão.<br />

— Então, o que está acontecendo?- pergunto.<br />

Ele olha para o alto, contemplando as estrelas.<br />

— Sinto que algo não está certo- ele diz.<br />

— O que você quer dizer?<br />

— Você não vai gostar.<br />

— Ok. Me deixe saber o que é.<br />

— Eu não sei quanto tempo mais devemos permanecer aqui. Não parece<br />

seguro para mim.<br />

Meu coração desmorona e eu permaneço em silêncio.<br />

— Eles estão agitados, e acho que estão se aproximando. Posso sentir isso.<br />

Não acho que estamos seguros aqui.<br />

— Não quero partir.<br />

— Eu sei que não.<br />

— Nós estamos escondidos.<br />

Henri olha para mim com a sobrancelha levantada.<br />

— Não se ofenda, John, mas é difícil acreditar que você tem se mantido nas<br />

sombras.<br />

— Me mantenho oculto nas coisas mais relevantes.<br />

Ele concorda.<br />

— Acho que descobriremos isso.<br />

Ele caminha para a extremidade da varanda e segura o corrimão da escada.<br />

Me posiciono ao seu lado. Novos flocos de neve começam a cair, pontinhos<br />

brilhantes brancos em uma noite escura.<br />

— E isso não é tudo- Henri diz.<br />

— Não achei que fosse.


Ele suspira.<br />

— Você já deveria ter desenvolvido a telecinese. Ela geralmente surge junto<br />

com o primeiro Legado. Muito raramente ela aparece depois, e quando isso<br />

acontece, não demora mais que uma semana.<br />

Olho para ele. Seus olhos estão cheios de ansiedade e vincos de preocupação<br />

atravessam sua testa.<br />

— Seus Legados vêm de Lorien. Sempre.<br />

— O que você está tentando me dizer?<br />

— Eu não sei o que devemos esperar de agora em diante.- ele diz e faz uma<br />

pausa- Uma vez que não estamos mais no nosso planeta, não sei se o resto<br />

dos seus Legados aparecerá. E se isso acontecer, não temos esperança de<br />

lutar contra os Mogadorians, muito menos de derrotá-los. E se não podemos<br />

derrotá-los, nunca poderemos voltar.<br />

Observo a neve cair, incapaz de decidir se devo estar preocupado ou aliviado,<br />

já que, talvez, isso trará um fim para nossas mudanças e nós finalmente<br />

poderemos nos fixar. Henri aponta para as estrelas.<br />

— Exatamente lá- ele diz- exatamente lá é Lorien.<br />

Sem dúvida, eu sei muito bem onde é Lorien sem que ninguém me diga. Há<br />

uma certa atração, um certo modo como meus olhos sempre gravitam para o<br />

lugar onde, a bilhões de quilômetros de distância, Lorien está. Tento pegar um<br />

floco de neve com a ponta da minha língua, em seguida, fecho meus olhos e<br />

respiro o ar frio. Quando eu reabro os olhos, me viro e vejo Sarah pela janela.<br />

Ela está sentada em cima das pernas; a cabeça de Bernie Kosar ainda está em<br />

seu colo.<br />

— Você já pensou em apenas permanecer aqui, mandar Lorien para o inferno<br />

e construir uma vida na Terra?- pergunto para Henri.<br />

— Nós partimos quando você era muito jovem. Imagino que você não se<br />

lembra muito, lembra?<br />

— Realmente, não- eu digo- Apenas algumas visões aparecem para mim de<br />

tempos e tempos. Embora eu não saiba dizer se são coisas que me lembro ou<br />

coisas que vi durante nosso treinamento.<br />

— Acho que você não se sentiria desse jeito se pudesse lembrar.<br />

— Mas, não me lembro. Não é essa a questão?<br />

— Talvez- ele diz- Mas você querendo ou não voltar, os Mogadorians não<br />

pararão de te procurar. E se nós formos descuidados e permanecermos aqui,


pode ter certeza que nos encontrarão. E quanto mais cedo eles aparecerem,<br />

mais fácil será para eles matar a nós dois. Não há como mudar isso. Não tem<br />

jeito.<br />

Eu sei que ele está certo. De algum modo, assim como Henri, posso sentir<br />

tudo, no fim da noite quando os pêlos no meu braço se eriçam, quando um<br />

calafrio percorre minha espinha mesmo quando não estou com frio.<br />

— Você se arrepende de ter ficado comigo tanto tempo?<br />

— Se me arrependo? Porque você acha que eu me arrependeria?<br />

— Porque não há nada para nós quando retornarmos. Sua família está morta.<br />

A minha também. Em Lorien, a vida está em reconstrução. Se não fosse por<br />

mim, você poderia facilmente criar uma nova identidade aqui e passar o resto<br />

dos seus dias fazendo parte de algo. Você poderia ter amigos, talvez se<br />

apaixonar de novo.<br />

Henri ri:<br />

— Eu já estou apaixonado. E continuarei apaixonado até o dia em que eu<br />

morrer. Não acho que você entenda isso. Lorien é diferente da Terra.<br />

Eu suspiro, exasperado.<br />

— Ainda assim, você poderia fazer parte de algum lugar.<br />

— Sou parte de algum lugar. De Paraíso, Ohio, bem agora, com você.<br />

Balanço a cabeça.<br />

— Você entendeu o que eu quis dizer, Henri.<br />

— Do que você acha que sinto falta?<br />

— Uma vida.<br />

— Você é minha vida, querido. Você e minhas lembranças são minha única<br />

ligação com o passado. Sem você não tenho nada. Essa é a verdade.<br />

Nesse momento a porta se abre atrás de nós. Bernie Kosar vêm trotando para<br />

fora na frente de Sarah, que permanece na soleira, metade para fora e metade<br />

para dentro.<br />

— Vocês dois realmente vão me fazer assistir o filme sozinha?- ela pergunta.<br />

Henri sorri para ela.<br />

— Não sonhe com isso.- ele diz.


Depois do filme, eu e Henri levamos Sarah para casa. Quando chegamos lá,<br />

acompanho-a até a porta da frente e nós permanecemos na varanda, sorrindo<br />

um para o outro. Dou um beijo de boa noite nela, um beijo demorado enquanto<br />

seguro suas mãos suavemente nas minhas.<br />

— Vejo você amanhã- ela diz, apertando minhas mãos.<br />

— Tenha bons sonhos.<br />

Ando de volta para o caminhão. Henri sai da frente da casa de Sarah e dirige<br />

para nossa casa. Não posso evitar uma sensação de medo, enquanto me<br />

lembro das palavras de Henri no dia em que ele me buscou na escola no meu<br />

segundo dia: “Apenas lembre-se que nós poderemos partir a qualquer<br />

momento.” Ele está certo, eu sei, mas nunca me senti desse jeito em relação a<br />

alguém antes. Como se eu estivesse flutuando no ar quando nós estamos<br />

juntos, e apavorado quando estamos separados, como agora, apesar de ter<br />

passado as últimas duas horas com ela. Sarah dá sentido as nossas fugas, a<br />

nos escondermos, uma razão que transcende a mera sobrevivência. Uma<br />

razão para vencer. E eu sei que posso estar colocando a vida dela em risco por<br />

estar com ela- bem, isso me aterroriza.<br />

Quando chegamos, Henri vai até seu quarto e volta trazendo o baú. Ele o<br />

coloca na mesa da cozinha.<br />

— Sério?- pergunto.<br />

Ele confirma.<br />

— Tem uma coisa aqui que venho querendo te mostrar a anos.<br />

Eu mal posso esperar para ver o que mais há no baú. Nós abrimos o cadeado<br />

juntos e ele levanta a tampa de modo que não consigo espreitar dentro. Henri<br />

tira um saco de veludo, fecha o baú e o tranca.<br />

— Isso não tem a ver com os seus Legados, mas da última vez que abrimos o<br />

baú, o coloquei dentro porque já estava com a sensação ruim que venho<br />

sentindo. Se os Mogadorians nos capturarem, eles nunca serão capazes de<br />

abrir isso.- ele disse e apontou para o baú.<br />

— Então, o que tem no saco?<br />

— O sistema solar- ele diz.<br />

— Se não faz parte dos meus Legados, por que você nunca me mostrou?<br />

— Porque você precisava pelos menos desenvolver um Legado para ativá-lo.


Ele abre espaço na mesa da cozinha e depois senta na minha frente com o<br />

saco em seu colo. Ele sorri para mim, percebendo meu entusiasmo. Em<br />

seguida, ele se abaixa e retira sete esferas de vidro de tamanhos variados do<br />

saco. Ele as aproxima do rosto, segurando em suas mãos em forma de<br />

concha, e as sopra. Pequenos flashes de luz saem delas, então ele as joga<br />

para cima e repentinamente elas ganham vida, permanecendo suspensas<br />

acima da mesa da cozinha. As esferas de vidro são uma réplica do nosso<br />

sistema solar. A maior delas, do tamanho de uma laranja- o sol de Lorien-<br />

permanece no meio, emitindo a mesma quantidade de luz que uma lâmpada e<br />

parece conter lava. As outras esferas orbitam ao seu redor. As que estão mais<br />

próximas ao sol movem-se mais rápidas, enquanto as mais distantes parecem<br />

apenas arrastar-se. Todas elas giram; dias começam e terminam em uma<br />

hipervelocidade. A quarta esfera contada a partir do sol é Lorien. Nós<br />

observamos ela se mover, observamos sua superfície começar a tomar forma.<br />

Ela é do tamanho aproximado de uma bola de tênis. A réplica não deve estar<br />

em escala, pois na realidade Lorien é bem menor que nosso sol.<br />

— O que está acontecendo?- pergunto.<br />

— A esfera está tomando a forma de como é Lorien nesse exato momento.<br />

— Como isso é possível?<br />

— É um lugar especial, John. Existe uma velha magia em suas profundezas. É<br />

de lá que seus Legados vêm. É o que dá vida e realidade aos objetos contidos<br />

na sua herança.<br />

— Você acabou de dizer que isso não tem a ver com meus Legados.<br />

— Não, mas eles vieram do mesmo lugar.<br />

Detalhes são formados, montanhas crescem, vincos profundos cortam a<br />

superfície onde eu sei que rios deveriam correr. E depois pára. Procuro por<br />

qualquer tipo de cor, qualquer movimento, algum vento soprando pelo planeta.<br />

Mas não há nada. O planeta inteiro é um fragmento monocromático cinza e<br />

preto. Não sei o que eu esperava ver, o que eu desejava. Movimento de algum<br />

tipo, uma alusão de fertilidade. Meu ânimo desmorona. Em seguida, a<br />

superfície se turva e eu posso ver além dela; no núcleo, um pequeno brilho<br />

começa a se formar. Brilha, em seguida escurece, depois brilha novamente<br />

como se simulasse o batimento cardíaco de um animal adormecido.<br />

— O que é aquilo?<br />

— O planeta ainda vive e respira. Retirou-se para dentro de si, aguardando o<br />

momento certo. Hibernando, se você preferir. Mas acordará qualquer dia.<br />

— O que te faz ter tanta certeza?


— Há um pequeno brilho bem aqui- ele diz- Isso é esperança, John.<br />

Observo. Sinto um prazer incalculável em olhar para aquele brilho. Eles<br />

tentaram dizimar nossa civilização, e o planeta também, entretanto ele ainda<br />

brilha. Sim, eu penso, há sempre esperança, como Henri diz o tempo todo.<br />

— Isso não é tudo.<br />

Henri se levanta, estala os dedos e os planetas param de se mover. Ele<br />

aproxima seu rosto a poucos centímetros de Lorien, e em seguida, posiciona<br />

as mãos em concha ao redor da boca e novamente sopra a esfera. Manchas<br />

verdes e azuis aparecem na esfera e começam a desaparecer quase que<br />

imediatamente à medida que a névoa da respiração de Henri evapora.<br />

— O que você fez?<br />

— Acenda as suas mãos ao redor da esfera- ele diz.<br />

Faço-as brilharem e quando eu envolvo a esfera, o verde e o azul retornam,<br />

porém permanecem apenas se mantenho minhas mãos ao redor do planeta.<br />

— Lorien era desse jeito no dia anterior à invasão. Você pode ver como tudo<br />

era bonito? Eu mesmo, algumas vezes, me esqueço.<br />

É bonito. Tudo verde e azul, suntuoso e viçoso. A vegetação parece se agitar<br />

sob rajadas de vento, que, de algum modo, posso sentir. Leves ondulações<br />

aparecem na água. O planeta está realmente vivo, florescente. Mas, quando<br />

apago minha luz e tudo isso desaparece, voltam as sombras cinzentas.<br />

Henri aponta um local na superfície da esfera.<br />

— Bem aqui- ele diz- é onde decolamos no dia da invasão. Depois ele move o<br />

dedo um centímetro para o lado- E aqui era onde ficava o Museu de<br />

Exploração Loric.<br />

Eu assinto e olho para o local onde ele aponta. Mais cinza.<br />

— O que os museus têm a ver com isso?- pergunto. Sento de volta na cadeira.<br />

É difícil olhar para a esfera e não sentir tristeza.<br />

Ele olha para mim.<br />

— Tenho pensado muito sobre o que você viu.<br />

— Uh-huh- digo, incentivando-o a continuar.<br />

— Era um museu enorme, dedicado apenas a evolução das viagens espaciais.<br />

Uma das alas do prédio continha foguetes antigos, usados há milhares de<br />

anos. Foguetes que funcionavam a base de um combustível conhecido apenas<br />

em Lorien.- ele diz e para, olhando novamente para a pequena esfera de vidro


suspensa meio metro acima da nossa mesa. – Agora, se o que você viu, de<br />

fato ocorreu, se uma segunda nave conseguiu decolar e escapar de Lorien<br />

durante o auge da guerra, ela teria que estar alojada no museu. Não há outra<br />

explicação para isso. Ainda é difícil para mim acreditar que ela teria funcionado,<br />

e se funcionou, que chegou muito longe.<br />

— Então, se ela não teria chegado muito longe, por que você ainda está<br />

pensando nisso?<br />

Henri balança a cabeça.<br />

— Sabe, realmente eu não tenho certeza. Talvez porque eu estive errado<br />

antes. Talvez porque eu desejo estar errado agora. E, bem, se de qualquer<br />

forma isso ocorreu, ela teria vindo para cá, o planeta habitável mais próximo de<br />

Lorien, além de Mogadore. E isso assumindo, em primeiro lugar, que havia<br />

pessoas na nave, que ela não estava apenas cheia de artefatos ou até mesmo<br />

vazia, e teria sido lançada apenas para enganar os Mogadorians. Mas eu acho<br />

que havia no mínimo um Loric dentro da nave, porque tenho certeza que naves<br />

desse tipo não funcionam sozinhas.<br />

Outra noite de insônia. Fico sem camisa na frente do espelho, encarando meu<br />

reflexo, com as luzes das minhas mãos ligadas. “Eu não sei o que devemos<br />

esperar de agora em diante.”, Henri disse hoje. A luz do núcleo de Lorien ainda<br />

brilha, e os objetos que trouxemos de lá ainda funcionam, então por que a<br />

magia teria acabado? E os outros; eles estão tendo os mesmos problemas?<br />

Eles estão sem seus Legados?<br />

Me flexiono em frente ao espelho, depois soco o ar, desejando que o espelho<br />

se quebre ou que faça algum barulho. Mas nada acontece. Apenas me vejo,<br />

parecendo um idiota em pé sem camisa, lutando contra eu mesmo na<br />

escuridão, enquanto Bernie Kosar me observa da cama. É quase meia-noite e<br />

não me sinto cansado. Bernie Kosar pula da cama, senta ao meu lado e<br />

observa meu reflexo. Sorrio para ele e ele abana o rabo.<br />

— E você?- pergunto para Bernie Kosar- Tem algum poder especial? É um<br />

super-cão? Preciso colocar a capa novamente em você para que voe pelo ar?<br />

Seu rabo continua balançando e ele arranha o chão enquanto olha para mim.<br />

Levanto-o acima da minha cabeça e vôo com ele pelo quarto.<br />

— Olhem! É Bernie Kosar, o magnífico super-cão.<br />

Ele se contorce em minhas mãos, então eu o coloco no chão. Ele cai de lado,<br />

com seu rabo batendo no colchão.


— Bem, amigo, um de nós deve ter superpoderes. E não parece que vai ser<br />

eu. A menos que voltarmos para a Idade das Trevas e eu puder fornecer luz<br />

para o mundo. Caso contrário, receio que sou inútil.<br />

Bernie Kosar rola até ficar de costas e me encara com seus grandes olhos,<br />

esperando que eu afague sua barriga.<br />

Capítulo 16<br />

SAM ESTÁ ME EVITANDO. Na escola ele desaparece assim que me vê, ou<br />

sempre assegura estarmos em grupo. Diante do pedido de Henri- que está<br />

desesperado para colocar as mãos na revista de Sam, depois de vasculhar<br />

toda a internet e não achar nada parecido com ela- decido ir a sua casa, sem<br />

avisar. Henri me dispensa após o treinamento do dia. Sam mora no subúrbio<br />

de Paraíso, em uma pequena e modesta casa. Ninguém responde quando bato<br />

na porta, então tento abri-la. Está destrancada, então a abro e entro na casa.<br />

Um carpete felpudo marrom cobre o chão e fotos de Sam quando era mais<br />

jovem estão penduradas nas paredes, em painéis de madeira. Ele, sua mãe e<br />

um homem que imagino ser seu pai, usando óculos tão grossos como os de<br />

Sam. Olho mais de perto. Parecem ser o mesmo par de óculos.<br />

Ando pelo corredor até encontrar uma porta que deve ser a do quarto de Sam,<br />

onde uma placa em que se lê ENTRE POR SUA CONTA E RISCO está<br />

pendurada. A porta abre com um ruído e eu espreito lá dentro. O quarto está<br />

muito limpo, tudo está conscientemente no lugar. Sua cama de solteiro está<br />

arrumada, com uma colcha preta onde está representado o planeta de Saturno.<br />

Fronhas combinando. As paredes estão cobertas com pôsteres. Há dois da<br />

NASA, um do filme Alien, um de Star Wars e um de um alienígena verde<br />

escuro em um fundo negro. No meio do quarto, pendurado por uma linha<br />

visível, está o sistema solar, todos os nove planetas e o sol. Isso me fez<br />

lembrar do que Henri me mostrou no começo da semana. Sam ficaria maluco<br />

se visse a mesma coisa. E, então, vejo Sam debruçado sobre uma pequena<br />

mesa de carvalho, com fones de ouvido. Empurro a porta e ele olha por cima<br />

do ombro. Ele não está de óculos, e sem eles seus olhos parecem menores e<br />

brilhantes, quase como um personagem de desenhos animados.<br />

— E aí?- pergunto casualmente, como se eu fosse à sua casa todos os dias.<br />

Ele parece chocado e assustado e freneticamente tira os fones de ouvido e<br />

abre uma gaveta. Olho na sua mesa e vejo que ele está lendo um fascículo de<br />

Eles Estão Entre Nós. Quando o olho novamente, ele está apontando uma<br />

arma para mim.<br />

— Uau- eu digo, e instintivamente levanto minhas mãos- O que está<br />

acontecendo?


Ele se levanta. Suas mãos estão tremendo. A arma está apontada para meu<br />

peito. Acho que ele enlouqueceu.<br />

— Me diga o que você é.- ele diz.<br />

— Do que você está falando?<br />

— Eu vi o que você fez no bosque. Você não é humano.- Eu tive medo disso,<br />

dele ter visto mais do que eu desejava.<br />

— Isso é loucura, Sam! Eu entrei em uma briga. Eu pratico artes marciais há<br />

anos.<br />

— Suas mãos se acenderam como se fossem lanternas. Você conseguia<br />

arremessar pessoas como se elas não fossem nada. Aquilo não foi normal.<br />

— Não seja ridículo- eu disse, minhas mãos ainda levantadas.- Olhe para elas.<br />

Você consegue ver alguma luz? Eu te disse, eram as luvas que Kevin estava<br />

usando.<br />

— Eu perguntei para o Kevin! Ele me disse que não estava usando luvas.<br />

— Você realmente acha que ele te contaria a verdade depois do que<br />

aconteceu? Abaixe a arma.<br />

— Me diga! O que você é?<br />

Reviro meus olhos.<br />

— Sim, eu sou um alienígena, Sam. Eu sou de um planeta há milhões de<br />

quilômetros daqui. Tenho super-poderes. É isso que você queria ouvir?<br />

Ele me encara, suas mãos ainda estão tremendo.<br />

— Você percebe como isso soa ridículo? Deixe de ser louco e abaixe a arma.<br />

— O que você acabou de dizer é verdade?<br />

—Que você está sendo ridículo? Sim, é verdade. Você é muito obcecado com<br />

esse assunto. Você vê alienígenas e teorias conspiratórias em todas as partes<br />

da sua vida, incluindo em seu único amigo. Agora pare de apontar essa arma<br />

idiota para mim.<br />

Ele me encara, e eu posso dizer que ele está pensando no que eu disse.<br />

Depois ele suspira e abaixa a arma.<br />

— Sinto muito- ele diz.<br />

Respiro profundamente, nervoso.<br />

— Você deve sentir mesmo. Em que merda você estava pensando?


— Não estava carregada.<br />

— Você deveria ter me falado antes- eu digo- Por que você quer tanto acreditar<br />

nessas coisas?<br />

Ele balança a cabeça e coloca a arma de volta na gaveta. Fico em silêncio um<br />

minuto para tentar me acalmar e tento parecer descontraído, como se o que<br />

tivesse acabado de acontecer não fosse grande coisa.<br />

— O que você está lendo?- pergunto.<br />

Ele balança os ombros.<br />

— Mais coisas de alienígenas. Talvez eu devesse parar um pouco.<br />

— Ou apenas encará-las como ficção ao invés de realidade.- eu digo- O<br />

material deve ser bem convincente. Posso ver?<br />

Ele estende o último fascículo de Eles Estão Entre Nós e eu sento na beirada<br />

de sua cama. Acho que ele já se acalmou o suficiente para não apontar uma<br />

arma para mim de novo. Novamente, é uma fotocópia ruim, com a impressão<br />

ligeiramente desalinhada com o papel. Não é muito grossa- oito páginas, doze<br />

no máximo, impressas em folhas sulfites. A data na parte de cima é<br />

DEZEMBRO. Deve ser o fascículo mais recente.<br />

— Isso é bem estranho, Sam Goode- digo.<br />

Ele sorri.<br />

— Pessoas estranhas gostam de coisas estranhas.<br />

— Onde você consegue isso?- pergunto.<br />

— Eu assino.<br />

— Eu sei, mas como?<br />

Sam balança os ombros.<br />

— Não sei. Apenas começou a chegar um dia.<br />

— Você assina alguma outra revista? Talvez eles pegaram seu contato de lá.<br />

— Eu fui a uma convenção uma vez. Acho que me inscrevi para algum sorteio<br />

ou algo do tipo quando estava lá. Não me lembro. Sempre achei que foi de lá<br />

que pegaram meu endereço.<br />

Examino a capa. Não há um website indicado em nenhum lugar, e eu nem<br />

esperava que houvesse, considerando que Henri já vasculhou a internet de<br />

cima a baixo. Li o título do artigo principal.


SEU VIZINHO É UM ALIENÍGENA ?<br />

DEZ MANEIRAS EFICAZES DE DESCOBRIR.<br />

No meio do artigo, há uma foto de um homem segurando um saco de lixo em<br />

uma mão e a tampa do latão na outra. Ele está em pé no fim de uma avenida e<br />

podemos considerar que ele está no meio do ato de colocar o saco de lixo<br />

dentro do latão. Embora a publicação seja toda em preto e branco, há um certo<br />

brilho nos olhos do homem. É uma imagem medonha- como se alguém tivesse<br />

tirado a foto de um vizinho suspeito e depois contornado seus olhos com um<br />

lápis. Isso me fez rir.<br />

— Que foi?- Sam pergunta.<br />

— É uma imagem horrível. Parece que saiu do Godzilla.<br />

Sam olha para ela. Depois balança os ombros.<br />

— Não sei.- ele diz- Pode ser real. Como você mesmo disse, eu vejo<br />

alienígenas em todos os lugares, em tudo.<br />

— Mas achei que alienígenas fossem daquele jeito- eu digo e inclino a cabeça<br />

em direção ao pôster na sua parede.<br />

— Não acho que todos sejam assim- ele diz- Como você disse, você é um<br />

alienígena com super-poderes e você não é daquele jeito.<br />

Nós dois rimos, e me pergunto como vou me livrar dessa. Espero que Sam<br />

nunca descubra que eu estava dizendo a verdade. Entretanto, parte de mim<br />

quer contar para ele- sobre mim, Henri, Lorien- e me pergunto qual seria sua<br />

reação. Ele acreditaria em mim?<br />

Vasculho o fascículo para achar a página com dados de publicação que todas<br />

as revistas e jornais possuem. Não há nenhuma aqui, apenas mais histórias e<br />

teorias.<br />

— Não há uma página com dados de publicação.<br />

— O que isso quer dizer?<br />

— Você sabia que todas as revistas e jornais sempre tem uma página listando<br />

os editores, escritores, onde foi impressa e tudo mais? Sabe, “Para sugestões,<br />

nosso contato”. Todas as publicações tem isso, mas essa não.<br />

— Eles tem que se proteger no anonimato- Sam diz.<br />

— Do quê?<br />

— Alienígenas- ele diz, e sorri, como se reconhecesse o absurdo disso.


— Você tem o fascículo do mês passado?<br />

Ele pega-o em seu guarda-roupa. Eu folheio rapidamente, desejando que o<br />

artigo sobre os Mogadorians esteja nessa edição e não na do mês anterior. E<br />

então, eu acho na página 4.<br />

A ESPÉCIE MOGADORIAN PROCURA DOMINAR A TERRA.<br />

A espécie alienígena Mogadorian, do planeta Mogadore na 9º Galáxia, tem<br />

estado na Terra há dez anos. É uma espécie perversa em busca da dominação<br />

do universo. Há rumores que já dizimaram outro planeta não tão diferente da<br />

Terra, e estão planejando descobrir as fraquezas do nosso planeta para<br />

dominá-lo posteriormente.<br />

(mais informações na próxima edição)<br />

Leio o artigo três vezes. Eu esperava que houvesse mais informações além<br />

daquelas que Sam já tinha dito, mas não tenho sorte. E não existe 9º Galáxia.<br />

Me pergunto de onde tiraram isso. Vasculho a edição recente duas vezes. Não<br />

há nenhuma referência aos Mogadorians. Meu primeiro pensamento é que não<br />

havia mais nada para publicar, nenhuma notícia nova. Mas não acredito que<br />

tenha sido isso. Meu segundo pensamento é que os Mogadorians leram o<br />

artigo, e liquidaram o problema, seja ele qual fosse.<br />

— Você pode me emprestar isso?- pergunto, segurando o último fascículo.<br />

Ele consente.<br />

— Mas seja cuidadoso com ele.<br />

Três horas mais tarde, às oito horas, a mãe de Sam ainda não está em casa.<br />

Pergunto para Sam onde ela está e ele balança os ombros, dando a entender<br />

que ele não sabe e que sua ausência não é nenhuma novidade. Na maioria do<br />

tempo, apenas jogamos vídeo-game e assistimos TV. No jantar comemos<br />

comidas congeladas, preparadas no microondas. O tempo todo em que estou<br />

lá, ele não usa óculos nenhuma vez, o que é estranho já que nunca o vi sem<br />

eles antes. Mesmo quando corremos na aula de educação física, ele os usava.<br />

Pego os óculos de cima da sua cômoda e os coloco. O mundo se torna<br />

instantaneamente um borrão e sinto dor de cabeça quase que imediatamente.<br />

Olho para Sam. Ele está sentado de pernas cruzadas no chão, encostado em<br />

sua cama, com um livro de alienígenas no colo.<br />

— Meu Deus, sua visão é assim tão ruim?- pergunto.<br />

Ele olha para mim.


— Eles eram do meu pai.<br />

Eu os tiro.<br />

— Você precisa mesmo de óculos, Sam?<br />

Ele balança os ombros.<br />

— De verdade, não.<br />

— Então por que você usa?<br />

— Eles eram do meu pai.<br />

Coloco-os novamente.<br />

— Uau, não sei como você consegue andar em linha reta com eles.<br />

— Meus olhos estão acostumados.<br />

— Você sabe que eles podem prejudicar sua visão se você continuar usandoos,<br />

não sabe?<br />

— Então serei capaz de ver o que meu pai via.<br />

Tiro-os e os coloco no lugar onde estavam. De verdade, não entendo porque<br />

Sam os usa. Por razões sentimentais? Será que ele acha que isso realmente<br />

vale a pena?<br />

— Onde seu pai está, Sam?<br />

Ele olha para mim.<br />

— Eu não sei- ele diz.<br />

— O que você quer dizer?<br />

— Ele desapareceu quando eu tinha 7 anos.<br />

— Você não sabe para onde ele foi?<br />

Ele suspira, abaixa a cabeça e retoma a leitura. Obviamente, ele não quer falar<br />

sobre isso.<br />

— Você acredita nessas coisas?- ele me pergunta após alguns minutos de<br />

silêncio.<br />

— Alienígenas?<br />

— É.<br />

— Sim, eu acredito em alienígenas.


— Você acha que eles realmente abduzem pessoas?<br />

— Não tenho idéia. Acho que é uma teoria que não podemos descartar. Você<br />

acredita que eles abduzem?<br />

Ele assente.<br />

— Na maioria dos dias. Mas, às vezes, essa idéia parece simplesmente<br />

ridícula.<br />

— Não entendo.<br />

Ele olha para mim.<br />

— Acho que meu pai foi abduzido.- ele diz.<br />

Ele fica tenso assim que as palavras saem da sua boca e um olhar de<br />

vulnerabilidade aparece em seu rosto. Isso me faz pensar que ele já dividiu<br />

essa teoria com alguém antes, cuja reação não foi nada solidária.<br />

— Por que você acha isso?<br />

— Porque ele simplesmente desapareceu. Ele foi á mercearia comprar leite e<br />

pão, e nunca mais voltou. Seu caminhão estava estacionado no lado de fora da<br />

mercearia, mas ninguém o viu. Ele apenas sumiu, e seus óculos estavam na<br />

calçada, perto do caminhão.- ele pára por um segundo- Fiquei com medo de<br />

que você estivesse aqui para me abduzir também.<br />

É uma teoria difícil de acreditar. Como ninguém viu o pai dele sendo abduzido<br />

se esse incidente teria acontecido bem no centro da cidade? Talvez o pai dele<br />

tivesse alguma razão para partir e planejou seu próprio desaparecimento. Não<br />

é difícil desaparecer; eu e Henri temos feito isso nos últimos dez anos. Mas, de<br />

repente, o interesse de Sam por alienígenas faz sentido perfeitamente. Talvez<br />

Sam apenas queira ver o mundo como seu pai via, mas talvez parte dele<br />

realmente acredita que a última visão de seu pai foi capturada nos óculos, de<br />

alguma forma foi gravada nas lentes. Talvez ele acha que com persistência,<br />

algum dia, ele, eventualmente, chegará a ver, e que a última visão de seu pai<br />

confirmará o que já está em sua mente. Ou talvez, ele acredita que se procurar<br />

de verdade, finalmente se deparará com um artigo que provará que seu pai foi<br />

abduzido, e não somente isso, que ele também pode ser salvo.<br />

E quem sou eu para dizer que um dia ele não encontrará essa prova?<br />

— Eu acredito em você.- digo- Eu acho que as abduções alienígenas são<br />

perfeitamente possíveis.<br />

Capítulo 17


NO DIA SEGUINTE ACORDO MAIS CEDO DO QUE O NORMAL, me arrasto<br />

para fora da cama e saio do meu quarto. Encontro Henri sentado na mesa<br />

lendo jornal com o laptop aberto. Como o sol ainda está escondido, a casa está<br />

escura, a única luz vem da tela do computador.<br />

- Alguma coisa?<br />

- Nah, nada demais.<br />

Acendo a luz da cozinha. Bernie Kosar começa a arranhar a porta da frente e<br />

eu abro. Ele dispara para o quintal e começa a patrulhar como faz toda manhã,<br />

cabeça erguida, trotando em volta do perímetro enquanto procura por alguma<br />

coisa suspeita. Ele fareja em lugares aleatórios. Uma vez satisfeito de que tudo<br />

está em seu devido lugar, ele dispara até as árvores e desaparece.<br />

Duas edições de Eles Estão Entre Nós estão sobre a mesa da cozinha, a<br />

original e uma cópia que Henri fez para guardar. Uma lupa entre elas.<br />

- Alguma coisa única na original?<br />

- Não.<br />

- Então, e agora? – eu pergunto.<br />

- Bem, eu tive alguma sorte. Eu cruzei referencias de alguns dos outros artigos<br />

na edição e consegui algumas pistas, uma que me levou ao site pessoal de um<br />

homem. Mandei um email.<br />

Encaro Henri.<br />

- Não se preocupe. – ele diz. – Eles não podem rastrear emails. Pelo menos<br />

não da maneira que eu enviei.<br />

- Como você enviou?<br />

- Eu reencaminhei eles através de vários servers de cidades pelo mundo, de<br />

modo que a localização original se perde no meio do caminho.<br />

- Impressionante.<br />

Bernie Kosar arranha a porta pelo lado de fora e eu o deixo entrar. O relógio no<br />

microondas mostra 5:59, eu tenho duas horas antes de ter que ir para escola.<br />

- Você tem certeza de que nós devemos ir adiante com isso? – eu pergunto. –<br />

Quero dizer, e se isso for uma armadilha? E se eles estão simplesmente<br />

tentando nos atrair?<br />

Henri assente. – Sabe, se o artigo tivesse mencionado alguma coisa sobre nós,<br />

isso teria me feito parar. Mas não mencionou. Falava apenas sobre eles<br />

invadirem a Terra do mesmo jeito que fizeram em Lorien. Ainda há tanto sobre


isso que nós não entendemos. Você estava certo há algumas semanas quando<br />

disse que nós fomos derrotados facilmente. Nós não fomos. Isso não faz<br />

sentido. Tudo isso sobre o desaparecimento dos Anciões também não faz<br />

sentido. Até tirar você e as outras crianças de Lorien, o que eu nunca<br />

questionei, é estranho. E enquanto você está vendo o que aconteceu – eu<br />

também tenho essas visões – algo está faltando na equação. Se algum dia nós<br />

voltarmos, acho que é uma obrigação entender o que aconteceu para prevenir<br />

que aconteça outra vez. Você conhece o ditado: Quem não entende história<br />

está condenado a repeti-la. E quando ela se repete, os riscos são dobrados.<br />

- Tudo bem. – eu digo. – Mas de acordo com o que você disse no sábado à<br />

noite, as chances de nós voltarmos parecem diminuir a cada dia. Então,<br />

considerando isso, você acha que vale a pena?<br />

Henri dá de ombros. – Ainda há outros cinco lá fora. Quem sabe eles já<br />

receberam os Legados. Quem sabe é só o seu que está meramente atrasado.<br />

Eu penso que o melhor é ter planos para todas as possibilidades.<br />

- Então o que você está pensando em fazer?<br />

- Apenas uma ligação. Estou curioso para ouvir o que essa pessoa sabe. Me<br />

pergunto o que fez ele não continuar com a história. Uma das duas<br />

possibilidades: ou ele não encontrou mais informações e perdeu o interesse, ou<br />

alguém o encontrou antes da publicação.<br />

Suspiro. – Bem, tenha cuidado. – eu digo.<br />

Coloco de calça e casaco de moletom por cima de duas camisas, amarro o<br />

cadarço e faço alongamento. Jogo na minha mochila as roupas que vou vestir<br />

na escola, junto com a toalha, um sabonete e um pote pequeno de shampoo<br />

para tomar quando chegar lá. Agora toda manhã eu vou correndo para escola.<br />

Henri aparentemente acredita que o exercício adicional vai ajudar no meu<br />

treino, mas a razão verdadeira é que ele espera que isso ajude na transição do<br />

meu corpo e acorde os meus Legados de seu sono, se é que eles estão<br />

realmente dormindo.<br />

Olho para baixo onde está Bernie Kosar. – Pronto pra correr, garoto? Hein?<br />

Quer sair para correr?<br />

O rabo dele balança e ele gira em círculos.<br />

- Vejo você depois da escola.<br />

- Tenha uma boa corrida. – diz Henri. – Tome cuidado no caminho.


Nós caminhamos para fora e o ar frio e refrescante nos encontra. Bernie Kosar<br />

excitado late algumas vezes. Eu começo com uma corrida leve, indo pela rua,<br />

para fora da estrada de cascalho, o cachorro trotando ao meu lado da melhor<br />

maneira que pode, eu imagino. Leva uns quatrocentos metros para esquentar.<br />

- Pronto para acelerar, garoto?<br />

Ele não me dá atenção, apenas continua trotando com a língua balançando,<br />

parecendo tão feliz quanto poderia estar.<br />

- Beleza, então aqui vamos nós.<br />

Começo a aumentar a velocidade, passando a correr, logo em seguida Faço<br />

Bernie Kosar comer poeira. Olho para trás e ele está correndo o mais rápido<br />

que pode, mas eu ainda estou avançando na frente dele. O vento atravessando<br />

os meus cabelos, as árvores passando em uma mancha. Isso é maravilhoso.<br />

Então Bernie Kosar dispara para dentro da floresta e desaparece de vista. Não<br />

tenho certeza se devo parar e esperar por ele. Então eu viro de volta e Bernie<br />

Kosar pula para fora das árvores três metros na minha frente.<br />

Olho para ele e ele para mim, a língua para fora da boca, um brilho nos olhos.<br />

- Você é um cachorro estranho, sabia disso?<br />

Depois de cinco minutos a escola entra no meu campo de visão. Eu corro pelo<br />

último quilômetro, me esforçando, fazendo o máximo que posso, aproveitando<br />

que ainda é muito cedo e não há ninguém do lado de fora que possa ver. Ao<br />

chegar, paro com os meus dedos entrelaçados por trás da minha cabeça,<br />

pegando ar. Bernie Kosar chega trinta segundos depois e senta me olhando.<br />

Ajoelho e faço carinho nele.<br />

- Bom trabalho, amigão. Acho que nós temos um novo ritual da manhã.<br />

Puxo minha mochila de sobre o meu ombro, abro o zíper, e pego um pacote de<br />

tiras de bacon e as dou a ele. Ele devora.<br />

- Tudo bem, garoto. Vou entrar. Vai pra casa. Henri está esperando.<br />

Ele me assiste por um segundo e depois vai embora trotando em direção a<br />

casa. A compreensão dele me deixa completamente impressionado. Depois eu<br />

viro e vou caminhando até o prédio para tomar banho.<br />

Eu sou a segunda pessoa a entrar em astronomia. Sam é a primeira, já<br />

sentado na cadeira de sempre no fundo da sala.


- Whoa. – eu digo. – Sem óculos. O que aconteceu?<br />

Ele dá de ombros. – Pensei sobre o que você disse. Provavelmente é idiotice<br />

minha usar.<br />

Sento ao lado dele e sorrio. É difícil imaginar que um dia vou me acostumar<br />

com os olhos dele parecendo tão brilhantes. Eu devolvo a ele a edição de Eles<br />

Estão Entre Nós. Ele joga na mochila. Aponto pra Sam como se a minha mão<br />

fosse uma arma e o cutuco.<br />

- Bang! – digo.<br />

Ele começa a rir. E eu começo também. Nenhum de nós consegue parar. Toda<br />

vez que um está perto de conseguir o outro começa a rir e tudo outra vez. As<br />

pessoas ficam olhando para nós quando eles entram. Então aparece Sarah.<br />

Ela entra sozinha, andando sem pressa até nós, o rosto expressando confusão.<br />

Senta ao meu lado.<br />

- Do que vocês estão rindo?<br />

- Não sei muito bem. – eu digo e então começo a rir mais um pouco.<br />

Mark é a última pessoa a chegar. Ele senta na cadeira de costume, mas em<br />

vez de Sarah, hoje uma outra garota senta ao lado. Acho que ela é sênior.<br />

Sarah procura minha mão por baixo da mesa e a segura.<br />

-Quero falar com você uma coisa. – ela diz.<br />

- O que?<br />

- Eu sei que está em cima da hora, mas meus pais estão convidando você e o<br />

seu pai para o jantar de Ação de Graças amanhã.<br />

- Sério? Isso é ótimo. Eu tenho que perguntar, mas nós não temos plano, então<br />

acho que a resposta é sim.<br />

Ela sorri. – Ótimo.<br />

- Somos só nós dois, então normalmente nós nem fazemos nada no dia de<br />

Ação de Graças.<br />

- Bem, nós realmente comemoramos. E meus dois irmãos vêm da faculdade.<br />

Eles querem te conhecer.<br />

- Como eles sabem de mim?<br />

- Como você acha?<br />

A professora entra e Sarah pisca o olho, então nós dois começamos a copiar.


Henri está me esperando como sempre, Bernie Kosar em pé no assento de<br />

passageiro. Ela começa a balançar o rabo quando me vê, fazendo barulho<br />

quando bate na porta. Eu entro.<br />

- Athens. – diz Henri.<br />

- Athens?<br />

- Athens, Ohio.<br />

- Por quê?<br />

- É onde as edições de Eles Estão Entre Nós estão sendo escritas, e<br />

impressas. É de onde estão enviando.<br />

- Como você descobriu?<br />

- Tenho minhas formas.<br />

Olho para ele.<br />

- Tudo bem, tudo bem. Foram três emails e cinco ligações, mas agora eu tenho<br />

um número. – Ele olha para mim. – Em outras palavras, não foi tão difícil<br />

descobrir com um pouco de esforço.<br />

Eu apenas aceno com a cabeça. Eu sei o que ele está me dizendo. Os<br />

Mogadorians poderiam encontrar isso tão facilmente quando ele conseguiu. O<br />

que significa, é claro, que a escala agora aponta em direção à segunda<br />

possibilidade de Henri – que alguém chegou ao editor antes da história inteira<br />

se desenvolver.<br />

- Athens fica muito longe?<br />

- Duas horas de carro.<br />

- Você vai pra lá?<br />

- Espero que não. Vou ligar antes.<br />

Quando chegamos em casa Henri imediatamente pega o telefone e senta na<br />

mesa da cozinha. Eu sento na frente dele e escuto.<br />

- Sim, eu estou ligando para perguntar sobre um artigo na edição de Eles Estão<br />

Entre Nós do último mês.<br />

Uma voz profunda responde do outro lado. Eu não consigo ouvir o que está<br />

sendo dito.


Henri sorri. – Sim. – ele diz, depois pausa.<br />

- Não, eu não sou um assinante. Mas um amigo meu é.<br />

Outra pausa. – Não, obrigado.<br />

Ele acena com a cabeça.<br />

- Bem, eu estou curioso sobre um artigo escrito sobre os Mogadorians. Não<br />

teve seguimento na edição desse mês como eu esperava.<br />

Eu me curvo para frente e me esforço para ouvir, meu corpo tenso e rígido.<br />

Quando a resposta vem a voz parece tremida, perturbada. Depois o telefone<br />

fica mudo.<br />

- Alô?<br />

Henri afasta o telefone do ouvido, olha e depois tenta ouvir outra vez.<br />

- Alô? – ele diz novamente.<br />

Então desliga o celular e coloca sobre a mesa. Ele olha para mim.<br />

- Ele disse, “não ligue outra vez”. E depois desligou na minha casa.<br />

Capítulo 18<br />

DEPOIS DE DISCUTIR POR MUITAS HORAS, Henri acorda na manhã<br />

seguinte e imprime as direções passo a passo daqui até Athens, Ohio. Ele me<br />

diz que vai estar em casa antes da hora de irmos para o jantar de Ação de<br />

Graças na casa de Sarah, e depois me entrega um pedaço de papel com o<br />

endereço e número do telefone do lugar.<br />

- Tem certeza que vale a pena? – pergunto.<br />

- Nós temos que entender o que está acontecendo.<br />

Eu suspiro. – Acho que nós dois sabemos o que está acontecendo.<br />

- Talvez. – ele diz, com tanta autoridade que nenhuma incerteza acompanha a<br />

palavra.<br />

- Você sabe o que me diria se os papéis estivessem invertidos, certo?<br />

Henri sorri. – Sim, John. Eu sei o que eu diria. Mas acho que isso vai nos<br />

ajudar. Eu quero descobrir o que eles fizeram para assustar tanto esse homem.<br />

Eu quero saber se eles mencionaram algo sobre nós, se eles estão nos<br />

procurando por meios que nós nem imaginamos. Isso vai nos ajudar a


continuar escondidos, a estar um passo a frente deles. E se esse homem os<br />

viu, vamos saber como eles são.<br />

- Nós já sabemos com o que eles são.<br />

- Nós sabíamos como eram quando nos atacaram, por volta de dez anos atrás,<br />

mas eles podem ter mudado. Faz muito tempo que eles estão na Terra agora.<br />

Eu quero saber como estão se misturando.<br />

- Mesmo se nós soubermos como eles são, quando nós os vermos,<br />

provavelmente já vai ser tarde mais.<br />

- Talvez, talvez não. Se eu vejo um, vou tentar matá-lo. Não há garantias de<br />

que ele vai poder me matar. – ele diz, dessa vez com incerteza e nenhuma<br />

autoridade.<br />

Eu desisto. Não gosto nem um pouco dele ir até Athens enquanto eu fico<br />

sentado em casa esperando. Mas eu sei que as minhas objeções vão continuar<br />

a entrar por uma orelha e sair pela outra.<br />

- Tem certeza que vai voltar a tempo? – eu pergunto.<br />

- Eu estou indo agora, então devo chegar lá pelas nove. Duvido que eu fique<br />

por mais de uma hora, duas no máximo. Devo chegar por volta de uma da<br />

tarde.<br />

- Então pra que me entregou isso? – eu pergunto, e mostro o pedaço de papel<br />

com o endereço e o número do telefone.<br />

Ele dá de ombro. – Bem, nunca se sabe.<br />

- E é precisamente por isso que eu não acho que você deva ir.<br />

- Touché. – ele diz, terminando a discussão. Ele recolhe os papeis da mesa,<br />

levanta e coloca a cadeira no lugar.<br />

- Vejo você à tarde.<br />

- Beleza. – digo.<br />

Ele vai caminhando para a caminhonete e entra. Bernie Kosar e eu vamos<br />

atrás até a varanda da frente e ficávamos vendo ele se afastar. Não sei por<br />

que, mas estou com uma sensação ruim. Espero que ele volte.<br />

Esse vai ser um dia longo. Um daqueles que o tempo fica devagar e cada<br />

minuto parece dez, cada hora parece vinte. Jogo videogame, fico na internet.


Procuro por notícias que podem estar relacionadas a um de nós. Não encontro<br />

nada, o que me deixa feliz. Isso significa que todos nós estamos fora do radar.<br />

Evitando os inimigos.<br />

Toda hora pego o celular pra ver se tem alguma notícia. Mando uma<br />

mensagem para Henri ao meio dia. Ele não responde. Faço um lanche e<br />

alimento Bernie, depois mando outra. Nenhuma resposta. Começo a ficar meio<br />

nervoso com a incerteza. Henri nunca deixou de responder imediatamente.<br />

Talvez o celular só esteja desligado. Ou talvez a bateria tenha acabado. Tento<br />

me convencer com essas possibilidades, mas no fundo eu sei que nenhuma<br />

delas é verdade.<br />

Quando dá duas em ponto começo a ficar preocupado. Realmente preocupado.<br />

Nós deveríamos chegar na casa dos Hart em uma hora. Henri sabe que o<br />

jantar é importante para mim, ele nunca faltaria. Entro no chuveiro com a<br />

esperança de que quando sair, Henri vai estar me esperando sentado na<br />

cozinha enquanto bebe um café. Ligo a água quente no máximo, apesar de<br />

também não me incomodar com o frio. Não sinto nada. Meu corpo é<br />

impermeável ao calor. Sinto como se água morna estivesse jorrando pela<br />

minha pele, chego a sentir falta do calor. Eu adorava tomar banho quente. Ficar<br />

embaixo do chuveiro até não poder mais. Com os olhos fechados aproveitando<br />

a sensação da água batendo contra a minha cabeça e descendo pelo meu<br />

corpo. Isso costumava me afastar da vida. Eu podia esquecer um pouco sobre<br />

quem e o que eu sou.<br />

Quando saio do chuveiro abro o meu armário e procuro as melhores roupas<br />

que eu tenho, o que não é nada especial: calça cáqui, uma camisa de abotoar,<br />

um suéter. Por nós estarmos sempre mudando de lugar, tudo o que eu tenho<br />

são tênis de corrida, o que é tão ridículo que até me faz rir – pela primeira vez<br />

no dia inteiro. Vou até o quarto de Henri e procuro no armário dele. Encontro<br />

um par de mocassins que cabe em mim. Ver todas as roupas dele só me deixa<br />

mais preocupado, mais angustiado. Eu quero acreditar que é só um imprevisto<br />

e ele está demorando mais do que havia planejado, mas nesse caso ele teria<br />

me avisado. Algo está errado.<br />

Vou até a porta frente, onde Bernie está sentado olhando pela janela. Ele olha<br />

para mim e choraminga. Eu faço carinho na cabeça dele e volto para o meu<br />

quarto. Olho para o relógio. Quase três horas. Olho o meu celular. Nenhuma<br />

mensagem, nada. Decido ir até a casa de Sarah e, se eu não ouvir nada de<br />

Henri até às cinco, invento um plano. Talvez eu diga que Henri está doente e<br />

que eu estou meio mal também. Ou, quem sabe, eu diga que a caminhonete<br />

quebrou no meio do caminho e eu tenho que ir ajudar Henri. Com sorte, ele<br />

aparece e nós só temos um bom jantar de Ação de Graças. Na verdade, se<br />

acontecer, esse será o primeiro que temos. Se não, eu digo algo a eles. Eu<br />

terei que fazer isso.


Sem a caminhonete eu decido ir correndo. Provavelmente nem vou suar e<br />

ainda chego mais rápido do que conseguiria de carro. Além disso, por causa do<br />

feriado as ruas devem estar vazias. Digo tchau para Bernie, falo que volto mais<br />

e vou embora. Corro na margem dos campos, através das árvores. A sensação<br />

de queimar a energia é boa. Isso diminui a minha ansiedade. Algumas vezes<br />

vou o mais rápido que posso, o que provavelmente é algo entre noventa e<br />

centro e vinte quilômetros por hora. O som também é ótimo, o mesmo que<br />

escuto quando coloco a cabeça para fora da janela quando estamos dirigindo<br />

na estrada. Me pergunto quão rápido eu vou correr aos vinte, ou vinte e cinco<br />

anos.<br />

Paro de correr a cerca de cem metros da casa de Sarah. Não estou nem<br />

respirando rápido. Conforme ando pela rua vejo Sarah olhando pela janela. Ela<br />

sorri e acena, abrindo a porta da frente no momento que eu piso na varanda.<br />

- E aí, gato. – ela diz.<br />

Eu viro e olho por cima dos meus ombros fingindo que ela está falando com<br />

outra pessoa. Então eu viro de volta e pergunta se ela está falando comigo. Ela<br />

ri.<br />

- Seu bobo. – ela diz, e dá um soco no meu braço antes de me puxar para<br />

perto e me dar um beijo demorado. Eu respiro fundo e posso sentir o cheiro de<br />

comida: peru temperado, batatas doces, couve de bruxelas, torta de abóbora.<br />

- O cheiro é bom. – eu digo.<br />

- Minha mãe está na cozinha o dia inteiro.<br />

- Mal posso esperar para provar.<br />

- Cadê o seu pai?<br />

- Ele teve um problema. Deve chegar daqui a pouco.<br />

- Ele está bem?<br />

- Aham, nada demais.<br />

Nós entramos e ela me leva para conhecer o lugar. É uma ótima casa. Uma<br />

clássica casa de família com quartos no segundo andar, um sótão onde fica o<br />

quarto de um dos irmãos dela, e todos os outros lugares – a sala de estar, sala<br />

de jantar, cozinha e sala de TV – no primeiro andar. Quando chegamos ao<br />

quarto dela, ela fecha a porta e me beija. Eu estou surpreso, mas eletrizado.<br />

- Eu estive esperando para fazer isso durante o dia todo. – ela diz suavemente<br />

quando se afasta. Quando ela vira em direção à porta, eu a puxo de volto e a<br />

beijo novamente.


- E eu já estou beijando para te beijar mais depois. – sussurro. Ela sorri e dá<br />

um soco no meu braço.<br />

Nós voltamos para o primeiro andar e ela me leva para a sala de TV, onde os<br />

dois irmãos mais velhos, que vieram da faculdade para o fim de semana, estão<br />

assistindo futebol com o pai. Sento com eles, enquanto Sarah vai para cozinha<br />

ajudar a mãe e a irmã mais nova com o jantar. Nunca fui muito chegado a<br />

futebol. Acho que por causa do modo como eu e Henri vivemos, eu nunca fui<br />

realmente muito chegado a alguma coisa fora da nossa vida. Minhas<br />

preocupações foram sempre me encaixar seja lá onde nós estivéssemos e<br />

depois estar preparado para ir a qualquer outro lugar. Os irmãos dela e o pai,<br />

todos jogaram futebol na escola. Eles amam isso. E no jogo de hoje, um dos<br />

irmãos dela junto com o pai torce por um time, enquanto o outro irmão torce<br />

pelo outro. Está claro que eles fazem isso há anos, provavelmente a vida<br />

inteira, e é visível que estão se divertindo muito. Isso me faz desejar que Henri<br />

e eu tivéssemos algo, fora os meus treinos e nossa vida de estar sempre<br />

correndo e se escondendo, que nós dois gostássemos para nos divertir juntos.<br />

Isso me faz desejar que eu estivesse um pai e irmãos reais para passar o<br />

tempo junto.<br />

Em meia hora a mãe de Sarah nos chama para o jantar. Olho meu celular e<br />

ainda nada. Antes de nós sentarmos vou até o banheiro e tento ligar para<br />

Henri, vai direto para a caixa de mensagens. É quase cinco em ponto e eu<br />

estou começando a entrar em pânico. Volto para a mesa, onde todos estão<br />

sentados. A mesa parece impressionante. Há flores no centro, com jogos<br />

americanos colocados meticulosamente na frente de cada cadeira. Pratos<br />

servidos de comida estão colocados pela mesa, o peru no centro em frente ao<br />

lugar de Sr. Hart. Logo depois que eu sento, Sra. Hart entra na sala. Ela tirou o<br />

avental e está vestindo saia e suéter lindos.<br />

- Teve notícias do seu pai? – ela pergunta.<br />

- Acabei de tentar falar com ele. Ele, ahn... vai chegar atrasado e disse para<br />

nós não esperarmos. Ele sente muito pelo inconveniente. – eu digo.<br />

Sr. Hart começa a cortar o peru. Sarah sorri para mim através da mesa, o que<br />

me faz sentir melhor por meio segundo. A comida começa a ser passada e eu<br />

pego pequenas porções de tudo. Não acho que vou conseguir comer muito. Eu<br />

mantenho meu celular no meu colo, e já coloquei para vibrar caso alguém ligue<br />

ou mande mensagem. A cada segundo que passa, porém, eu não acredito que<br />

isso vá acontecer, ou que eu vou ver Henri outra vez. A ideia de viver sozinho –<br />

com os meus Legados se desenvolvendo, e sem ninguém para explicá-los ou<br />

me treinar, de viver por minha conta, de ter que me esconder sozinho, de<br />

encontrar meu próprio caminho, de lutar com os Mogadorians, lutar até eles<br />

estejam derrotados ou eu morto – me apavora.


O jantar parece que nunca vai acabar. O tempo está devagar outra vez. A<br />

família inteira da Sarah me enche de perguntas. Eu nunca estive em uma<br />

situação em que tantas coisas foram perguntadas por tantas pessoas em um<br />

tempo tão curto. Eles perguntam sobre o meu passado, os lugares que vivi,<br />

sobre Henri, sobre a minha mãe – quem, como eu sempre digo, morreu quando<br />

eu era bem pequeno. É a única resposta que há o mínimo fio de verdade. Eu<br />

não tenho nem ideia se minhas respostas fazem sentido. O celular na minha<br />

perna parece pesar uns mil quilos. Não vibra. Apenas fica lá.<br />

Depois do jantar, e antes da sobremesa, Sarah pede para todos irem lá fora no<br />

quintal para que ela tire algumas fotos. Enquanto nós vamos para o lado de<br />

fora, Sarah pergunta se há algo errado. Digo a ela que estou preocupado com<br />

Henri. Ela tenta me acalmar e diz que está tudo bem, mas não funciona. Se<br />

teve algum efeito, foi me fazer ficar pior. Eu tento imaginar onde ele está e o<br />

que ele está fazendo, e a única imagem que eu consigo pensar é dele na frente<br />

dos Mogadorians, parecendo apavorado, e sabendo que está prestes a morrer.<br />

Enquanto nós nos juntamos para as fotos, eu começo a entrar em pânico.<br />

Como posso chegar à Athens? Eu poderia correr, mas seria difícil encontrar o<br />

caminho, especialmente porque eu teria que evitar o tráfico e ficar longe das<br />

maiores estradas. Eu poderia pegar um ônibus, mas demoraria muito. Eu<br />

poderia pedir a Sarah, mas isso envolveria um monte de explicações, inclusive<br />

dizer a ela que eu sou um alienígena e que acredito que Henri foi sequestrado<br />

ou assassinado por alienígenas inimigos que estão me procurando para fazer o<br />

mesmo. Não é a melhor ideia.<br />

Enquanto posamos a urgência de ir embora começa a me deixar desesperado,<br />

mas tenho que dar um jeito de fazer isso sem que Sarah ou a família dela<br />

fiquem ressentidas comigo. Eu gosto na câmera, focando diretamente<br />

enquanto tento pensar na desculpa que causará a menor quantidade de<br />

perguntas. O pânico total já está me torturando agora. Minhas mãos começam<br />

a tremer. Elas ficam quentes. Olho para ver se há algum sinal de luz. Não há,<br />

mas quando levanto a cabeça outra vez percebo que a câmera está tremendo<br />

nas mãos de Sarah. Eu sei que de algum modo eu estou fazendo isso, mas<br />

não faço ideia de como ou do que posso fazer para parar. Um calafrio percorre<br />

as minhas costas. O ar fica preso na minha garganta no instante em que as<br />

lentes de vidro da câmera racham e se estilhaçam. Sarah grita e joga a câmera<br />

no chão, olhando confusa. A boca aberta, lágrimas nos olhos.<br />

Os pais dela saem correndo para ver se ela está bem. Eu apenas continuo em<br />

pé chocado. Eu não tenho certeza do que fazer. Em parte estou abatido por<br />

causa da câmera dela, por ela estar triste, mas eu também estou eletrizado por<br />

minha telecinese ter claramente chegado. Será que posso controlar? Henri vai<br />

entrar em êxtase quando descobrir. Henri. O pânico retorno. Fecho minhas<br />

mãos com força. Eu preciso sair daqui. Eu preciso encontra-lo. Se os


Mogadorians estiverem com ele, o que eu espero que não seja verdade, vou<br />

matar cada um daqueles malditos para trazê-lo de volta.<br />

Pensando rápido, eu caminho até Sarah e a afasto dos pais, que estão<br />

examinando a câmera numa tentativa de entender o que aconteceu.<br />

- Acabei de receber uma mensagem de Henri. Eu sinto muito, mas tenho que ir.<br />

Ela está claramente distraída, olhando de mim para os pais.<br />

- Ele está bem?<br />

- Sim, mas eu tenho que ir, ele precisa de mim. – ela apenas assente e nos<br />

beijamos gentilmente. Espero que não seja pela ultima vez.<br />

Agradeço aos pais e irmãos dela e vou embora antes que eles possam<br />

perguntar demais. Atravesso a casa e, uma vez na porta, começo a correr.<br />

Para voltar pego a mesma rota que usei para chegar na casa de Sarah mais<br />

cedo. Fico longe das estradas principais, correndo entre as árvores. Levo<br />

poucos minutos. Escuto Bernie Kosar arranhando a porta enquanto corro rua<br />

acima. Ele está claramente ansioso, como se também sentisse que algo está<br />

errado.<br />

Vou direto para o meu quarto. Pego na minha mochila o pedaço de papel<br />

contendo o número de telefone e o endereço que Henri me deu antes de sair.<br />

Eu ligo para o número. Uma gravação começa. “O número chamado está<br />

desligado ou fora da área de cobertura”. Eu olho para o pedaço de papel e<br />

tento o número outra vez. A mesma gravação.<br />

- Merda! – eu berro. Chuto a cadeira e ela sai voando através da cozinho até a<br />

sala de estar.<br />

Ando até o meu quarto. Volto. Ando até lá outra vez. Fito o espelho. Meus<br />

olhos estão vermelhos e lágrimas estão brotando, mas nenhuma está caindo.<br />

Minhas mãos tremendo. Fúria, raiva e o terrível medo da morte de Henri me<br />

consumindo. Fecho os olhos com força e empurro toda a destruição para o<br />

centro do meu estômago. Com uma explosão repentina eu grito e abro os<br />

olhos, jogando minhas mãos para frente na direção do espelho. O vidro se<br />

estilhaça, apesar de eu estar a três metros de distância. Olho para o que<br />

aconteceu. A maior parte do espelho ainda está presa à parede. O que<br />

aconteceu na casa de Sarah não foi apenas acaso.<br />

Olho para os cacos no chão. Eu estendo o braço para frente, enquanto me<br />

concentro em um caco em particular, tentando movimentá-lo. Minha respiração<br />

está controlada, mas todo o medo e raiva ainda estão em mim. Medo é uma<br />

palavra muito simples. Terror. É isso que eu sinto.


O caco não se move de primeira, mas depois de quinze segundos começa a<br />

tremer. Devagar no inicio, depois rapidamente. E então eu lembro. Henri disse<br />

que normalmente são emoções que despertam os Legados. Com certeza é o<br />

que está acontecendo agora. Faço esforço para levantar o caco. Gotas de suor<br />

surgindo na minha testa. Eu concentro com tudo o que posso, apesar de todo o<br />

resto que está acontecendo. É uma luta até para respirar. Em um devagar<br />

eterno o caco começa a levantar. Um centímetro. Dois centímetros. Está a um<br />

metro acima do chão, continuando a subir, meu braço direito estendido e<br />

levantando junto com o caco, até que ele esteja na altura dos olhos. Mantenho<br />

assim. Se ao menos Henri pudesse ver isso, eu penso. E em um flash, através<br />

da excitação e felicidade da nova descoberta, o pânico e o medo retornam.<br />

Olho para o caco, a madeira da parede refletida nele parece antiga e frágil.<br />

Madeira. Antiga e frágil.<br />

que o caco de vidro está na altura dos olhos. Mantenho isso assim. Se ao<br />

menos Henri pudesse ver isso, eu penso. E em um flash, através da excitação<br />

da minha felicidade da nova descoberta, pânico e medo retornam. Olho para o<br />

caco, do modo que isso reflete a madeira da parede parecendo antiga e frágil<br />

no reflexo. Madeira. Antiga e frágil. E então de repente meu olhos se<br />

arregalam, mais do que em qualquer outra vez na minha vida.<br />

O Baú!<br />

Henri disse: “Apenas nós dois, juntos, podemos abrir isso. A não ser que eu<br />

morra; aí você poderá abrir sozinho.”.<br />

Deixo o caco cair e corro do meu quarto para o de Henri. A Baú está no chão<br />

ao lado da cama dele. Eu agarro, corro para a cozinha e jogo na mesa. O<br />

cadeado na forma do emblema Loric está olhando para mim.<br />

Eu sento na mesa e fito o cadeado. Meus lábios estão tremendo. Eu tento<br />

acalmar minha respiração, mas é inútil; meu peito está pesado como se eu<br />

tivesse acabado de terminar uma corria de vinte quilômetros. Eu estou com<br />

medo da ideia de sentir o clique nas mãos. Eu respiro fundo e fecho meus<br />

olhos.<br />

- Por favor, não abra. – eu digo.<br />

Seguro o cadeado. Eu aperto os mais forte que posso, o ar preso, minha visão<br />

embaçada, meus músculos no antebraço flexionados e tensionados.<br />

Esperando o clique. Segurando o cadeado e esperando o clique.<br />

Só que não houve um clique.<br />

Solto e me jogo na cadeira, segurando minha cabeça nas mãos. Uma pequena<br />

luz de esperança. Eu passo as mãos pelo meu cabelo e deixo. No balcão a<br />

dois metros está uma colher suja. Eu foco nela e esfrego as mãos na roupa, a


colher sai voando. Henri ficaria feliz. Henri, eu pendo, onde está você?Em<br />

algum lugar e ainda vivo. Eu estou indo te buscar.<br />

Eu disco o número de Sam, o único amigo que eu tenho além de Sarah em<br />

Paraíso, o único amigo que eu já tive, para ser honesto. Ele atende na segunda<br />

chamada.<br />

- Alô?<br />

Eu fecho os olhos e aperto a ponte do nariz. Respiro fundo. A tremedeira volta,<br />

se é que ela foi embora.<br />

- Alô? – ele diz novamente.<br />

- Sam.<br />

- E. – ele diz, então, - Nossa, você parece mal. Está tudo bem?<br />

- Não. Eu preciso da sua ajuda.<br />

- Ahn? O que aconteceu?<br />

- Será que a sua mãe pode te trazer aqui?<br />

- Ela não está aqui. Ela está fazendo um turno no hospital porque recebe em<br />

dobro nos feriados. O que está acontecendo?<br />

- As coisas estão ruins, Sam. Eu preciso de ajuda.<br />

Silêncio outra vez, e depois, – Vou chegar aí o mais rápido que puder.<br />

- Sério?<br />

- Até mais.<br />

Fecho o celular e deito a cabeça sobre a mesa. Athens, Ohio. É onde Henri<br />

está. De um jeito ou de outro, é onde eu tenho que chegar.<br />

E preciso chegar rápido.<br />

Capítulo 19<br />

ENQUANTO ESPERO POR SAM ANDO PELA casa levantando no ar objetos<br />

inanimados sem tocá-los: uma maçã da bancada da cozinha, um garfo dentro<br />

da pia, um pequeno vaso de planta perto da janela da frente. Eu só consigo<br />

levantar coisas pequenas, e elas se levantam um tanto tímidas. Quando eu<br />

tento algo mais pesado – uma cadeira, uma mesa – nada acontece.


As três bolas de tênis que eu e Henri usamos para o treino estão em uma cesta<br />

do outro lado da sala de estar. Trago uma delas para mim, e quando ela passa<br />

pelo campo de visão de Bernie Kosar ele levanta atento. Então eu a jogo longe<br />

sem nem tocá-la e ele sai correndo atrás; mas antes que ele consiga pegá-la,<br />

eu faço voltar, ou se ele arranja uma forma de segurá-la, eu a tiro de sua boca,<br />

tudo isso enquanto eu fico sentado em uma cadeira da sala de estar. Isso tira a<br />

minha atenção de Henri, do que pode ter acontecido com ele e da culpa pelas<br />

mentiras que eu vou ter que dizer a Sam.<br />

Ele levou vinte e cinco minutos para vir correndo de bicicleta pelos seis<br />

quilômetros até a minha casa. Eu consigo ouvi-lo pedalando na rua. Ele pula<br />

fora da bicicleta, que cai no chão enquanto ele corre e entra pela porta da<br />

frente sem nem bater, ofegante. O rosto dele está mBaúdo de suor. Ele olha<br />

em volta e analisa a cena.<br />

- Então, o que foi? – pergunta.<br />

- Isso vai soar absurdo para você. – eu digo. – Mas você vai ter que prometer<br />

que vai me levar a sério.<br />

- Do que você está falando?<br />

Do que eu estou falando? Eu estou falando de Henri. Que ele desapareceu por<br />

falta de cuidado, a mesma falta de cuidado que ele viveu pregando contra. Eu<br />

estou falando sobre o fato de que quando você apontou uma arma para mim,<br />

eu disse a verdade. Eu sou um alienígena. Henri e eu viemos para a Terra dez<br />

anos atrás, e nós começamos a ser caçados por uma raça de alienígenas<br />

ameaçadora. Eu estou falando sobre Henri pensar que pode evita-los se os<br />

conhecer um pouco mais. E agora ele se foi. É disso que eu estou falando,<br />

Sam. Você entende? Mas não, eu não posso dizer a ele essas coisas.<br />

- Meu pai foi capturado, Sam. Eu não tenho muita certeza sobre quem, ou o<br />

que estão fazendo com ele. Mas algo aconteceu, e eu acho que ele está sendo<br />

mantido como prisioneiro. Ou pior.<br />

Um sorriso surge no rosto dele. – Pare com isso. – ele diz.<br />

Eu balanço a cabeça e fecho os olhos. A gravidade da situação está outra vez<br />

tornando difícil respirar. Eu viro e fito Sam com uma expressão de suplica.<br />

Lágrimas enchendo os meus olhos.<br />

- Eu não estou brincando.<br />

O rosto de Sam demonstra surpresa. – Está querendo dizer o quê? Quem o<br />

capturou? Onde é que ele está?


- Ele rastreou o escritor de um dos artigos da sua revista até Athens, Ohio, e foi<br />

lá hoje. Ele foi e ainda não voltou. O celular dele está desligado. Acho que<br />

aconteceu algo com ele. Algo ruim.<br />

Sam fica mais confuso. – O quê? Por que ele se importaria com isso? Tem<br />

alguma coisa que eu não estou entendendo. É só uma revista idiota.<br />

- Eu não sei, Sam. Ele gosta de você. E ele ama alienígenas e teorias de<br />

conspiração e todas essas coisas. – eu digo, pensando rápido. – Isso sempre<br />

foi um hobbie idiota dele. E aí um dos artigos o deixou interessado e acho que<br />

ele queria saber mais, então foi até lá.<br />

- Foi o artigo dos Mogadorians?<br />

Eu concordo com um aceno. – Como você sabe?<br />

- Porque parecia que ele tinha visto um fantasma quando eu falei disso no<br />

Halloween. – ele diz, e balança a cabeça. – Mas por que alguém se importaria<br />

se ele fizesse perguntas sobre esse artigo idiota?<br />

- Eu não sei. Quer dizer, imagino que essas pessoas não são lá as mais<br />

normais do mundo. Provavelmente eles são paranoicos e alucinados. Talvez<br />

eles pensem que ele é um alienígena, a mesma razão que você apontou uma<br />

arma para mim. Ele deveria estar em casa por volta de uma e o celular está<br />

desligado. É tudo o que eu posso dizer.<br />

Eu levanto e ando até a mesa da cozinha. Pego o pedaço de papel com o<br />

endereço e o número do telefone que Henri me deu.<br />

- É o endereço de onde ele foi hoje. – eu digo. – Tem ideia de onde isso fica?<br />

Ele olha para o papel, depois para mim.<br />

- Você quer ir lá?<br />

- Não sei mais o que fazer.<br />

- Por que você não pode simplesmente ligar para a polícia e dizer o que<br />

aconteceu?<br />

Eu sento no sofá, pensando na melhor maneira de responder. Eu queria poder<br />

dizer a verdade, que na melhor das nossas chances com o envolvimento da<br />

polícia seria eu ter que ir embora com Henri. Na pior das hipóteses, nós dois<br />

seríamos questionados, talvez até tendo que gravar as digitais, sendo<br />

empurrados para dentro de uma burocracia retrógrada, o que daria aos<br />

Mogadorians a chance de agir. E se nos encontrarem, a morte é quase certa.


- Ligar para quais policiais? Os de Paraíso? O que você acha que eles fariam<br />

se eu dissesse a verdade? Poderia levar dias para que eles levassem a sério, e<br />

eu não tenho dias.<br />

Sam dá de ombros. – Eles poderiam levar a sério. Além disso, e se só o carro<br />

parou, ou o celular quebrou? Ele pode estar a caminho de casa agora.<br />

- Talvez, mas acho que não. Algo está errado, e eu tenho que chegar lá o mais<br />

cedo possível. Ele deveria estar em casa horas atrás.<br />

- Talvez ele tenha sofrido um acidente.<br />

Eu balanço a cabeça. – Talvez você esteja certo, mas eu não acho que esteja.<br />

E se ele estiver em perigo, então nós estamos perdendo tempo.<br />

Sam olha para folha. Ele morde o lábio e fica em silêncio por quinze segundos.<br />

- Bem, eu sei vagamente como chegar à Athens. Mas não tenho ideia de como<br />

chegar nesse endereço quando estivermos lá.<br />

- Posso imprimir direções da internet. Não estou preocupado com isso. O que<br />

me preocupa é como vamos chegar lá. Eu tenho cento e vinte dólares no meu<br />

quarto. Posso pagar alguém para nos levar até lá, mas não tenha ideia de a<br />

quem eu poderia pedir. Não é como se houvesse um monte de taxis em<br />

Paraíso, Ohio.<br />

- Nós podemos pegar nossa caminhonete.<br />

- Que caminhonete?<br />

- Estou falando da do meu pai. Nós ainda temos. Está na garagem. Não foi<br />

tocada desde que ele desapareceu.<br />

Olho para ele. – Está falando sério?<br />

Ele assente.<br />

- Faz quanto tempo isso? Ela ainda funciona?<br />

- Oito anos. Por que não funcionaria? Era praticamente nova quando ele<br />

comprou.<br />

- Calma aí, deixa eu ver se entendi direito. Você está sugerindo que a gente<br />

dirija por conta própria, eu e você, duas horas até Athens?<br />

Um sorriso torto surge nos lábios de Sam. – É exatamente o que eu estou<br />

sugerindo.<br />

Sentado no sofá, inclino o corpo para frente. Não consigo resistir, acabo<br />

sorrindo também.


- Você sabe a merda que vai dar se nós formos pegos? Nenhum de nós tem<br />

carteira de motorista.<br />

Sam assente. – Minha mãe vai me matar, e talvez te mate também. E ainda<br />

tem a lei. Mas aham, se você realmente acha que seu pai está com problemas,<br />

que outra opção nós temos? Se os papeis tivessem invertidos, e fosse o meu<br />

pai em perigo, eu já estaria lá.<br />

Olho para Sam. Não há nem um pouco de hesitação no rosto dele e ele está<br />

sugerindo que a gente dirija ilegalmente até uma cidade a duas horas de<br />

distância, e sem mencionar que nenhum de nós sabe dirigir e nós não temos<br />

ideia do que esperar quando chegar lá. E ainda assim Sam está disposto.<br />

Aliás, foi ideia dele.<br />

- Beleza então, vamos dirigir até Athens. – eu digo.<br />

Jogo meu celular na mochila, confiro se está fechada e em ordem. Depois eu<br />

ando pela casa, absorvendo tudo como se essa pudesse ser a última vez que<br />

eu vejo qualquer uma dessas coisas. É um pensamento bobo, e eu sei que eu<br />

estou sendo um pouco sentimental, mas estou nervoso e isso meio que me<br />

acalma. Pego coisas aleatórias, depois as coloco de volta no lugar. Depois de<br />

cinco minutos estou pronto.<br />

- Vamos lá. – eu digo para Sam.<br />

- Quer ir na parte de trás da minha bicicleta?<br />

- Você pedala, eu vou correndo atrás.<br />

- E a sua asma?<br />

- Acho que vou ficar bem.<br />

Nós vamos. Sam sobe na bicicleta. Ele tenta correr o máximo possível, mas<br />

não está em boa forma. Eu mantenho uma leve corrida alguns passos atrás e<br />

finjo que estou com falta de ar. Bernie nos segue também. Quando chegamos<br />

à casa dele, Sam já está pingando suor. Ele corre para o quarto e volta com<br />

uma mochila, deixando-a em cima do balcão e depois vai trocar a roupa.<br />

Decido espiar dentro. Há um crucifixo, alguns dentes de alho, uma estaca de<br />

madeira, um martelo, uma bola de SillyPutty, que é uma substância plástica<br />

melequenta parecida com a Geleca, e um canivete.<br />

- Você sabe que essas pessoas não são vampiros, certo? – eu digo quando<br />

Sam volta.


- Aham, mas nunca se sabe. Eles são provavelmente loucos, como você disse.<br />

- E mesmo se nós estivéssemos caçando vampiros, o que você acha que vai<br />

fazer com SillyPutty?<br />

Ele dá de ombros. – Só queria estar preparado.<br />

Encho uma tigela de água para Bernie Kosar e ele bebe tudo imediatamente.<br />

Troco de roupas no banheiro e pego o papel mostrando como chegar lá na<br />

mochila. Depois volto e caminho pela casa até a garagem, que está escura e<br />

com cheiro de gasolina e cortador de grama velho. Sam acende a luz. Várias<br />

ferramentas enferrujaram com a falta de uso estão penduradas na parede de<br />

pregos. A caminhonete está no centro da garagem, sob uma grande capa azul<br />

que está coberta por uma grossa camada de poeira.<br />

- Quanto tempo faz desde a última vez que tiraram essa capa?<br />

- Não desde que meu pai desapareceu.<br />

Pego uma ponta, Sam pega a outra, e juntos nós a tiramos, depois coloco em<br />

um canto. Sam observa a caminhonete, os olhos grandes, um sorriso no rosto.<br />

A caminhonete é pequena e de um azul escuro, tem espaço dentro para<br />

apenas duas pessoas, ou talvez uma terceira se não se importarem com o<br />

desconforto de alguém sentado no meio. Vai ser perfeito para Bernie Kosar.<br />

Nenhuma poeira dos últimos oito anos conseguiu entrar na caminhonete, então<br />

ela brilha como se tivesse acabado de ser encerada. Jogo minha mochila no<br />

fundo.<br />

- A caminhonete do meu pai. – Sam diz orgulhoso. – Todos esses anos, ainda<br />

parece a mesma.<br />

- Nossa carruagem dourada. – eu digo. – Você tem as chaves?<br />

Ele caminha até a lateral da garagem e pega um chaveiro em um gancho da<br />

parede. Eu destranco a porta da garagem e abro.<br />

- Quer fazer pedra-papel-tesoura pra ver quem dirige? – eu pergunto.<br />

- Nem. – Sam diz, abre a porta do lado do motorista e entra atrás do volante. A<br />

ignição estala e finalmente começa. Ele abaixa o vidro.<br />

- Acho que meu pai ficaria orgulhoso se me visse dirigindo isso. – ele diz.<br />

Eu sorrio. – Também acho que ficaria. Agora, sai que eu vou fechar a porta.<br />

Ele respira fundo, e depois vai apertando o acelerador para ir saindo<br />

lentamente, timidamente, aos poucos da garagem. Ele pisa no freio com tanta<br />

força e tão rápido que a caminhonete para com violência.


- Você ainda não saiu totalmente. – eu digo.<br />

Ele tira lentamente o pé do freio e então sai devagar pelo resto do caminho.<br />

Bernie Kosar pula e entra sem nem ser chamado, entro logo ao lado dele. As<br />

mãos de Sam pálidas fechadas em volta do volante, posicionadas como sugere<br />

a cartilha.<br />

- Nervoso? – pergunto.<br />

- Apavorado.<br />

- Você vai conseguir. – eu digo. – Nós dois já vimos isso ser feito mil vezes<br />

antes.<br />

Ele assente. – Tudo bem. Pra que lado eu viro?<br />

- Nós realmente vamos fazer isso?<br />

- Sim. – ele diz.<br />

- Então, nós viramos para direita. – eu digo. – e seguimos para sair da cidade.<br />

Nós dois colocamos os cintos de segurança. Abro o vidro deixando só uma<br />

fresta, o suficiente para que Bernie Kosar possa colocar a cabeça para fora, o<br />

que ele faz imediatamente, ficando com as patas de trás no meu colo.<br />

- Cara… Eu estou com muito medo. – Sam diz.<br />

- Eu também.<br />

Ele respira fundo, segura o ar nos pulmões, e depois solta lentamente.<br />

- E... aqui... vamos... nós. – ele diz, tirando o pé do freio ao dizer a última<br />

palavra. A caminhonete vai chacoalhando rua abaixo. Ele aperta freio com tudo<br />

e nós derrapamos antes de parar. Depois ele começa a avançar aos poucos<br />

outra vez, bem devagar, até nós chegarmos ao final da rua, ele olha para os<br />

dois lados e então vira a esquina. Novamente, devagar no início e então<br />

ganhando velocidade. Ele está tenso, inclinado para frente, mas depois de um<br />

quilômetro um sorriso começa a ganhar forma em seu rosto e ele senta direito.<br />

- Não é tão difícil.<br />

- Você tem o dom.<br />

Ele mantém a caminhonete perto da linha pintada no lado direito da estrada.<br />

Ele fica rígido cada vez que um carro passa na direção oposta, mas depois de<br />

um tempo relaxa e dá pouca atenção. Ele faz uma curva, depois outra, e em<br />

vinte cinco minutos nós entramos na interestadual.


- Não acredito que estamos fazendo isso. – ele diz, finalmente quebrando o<br />

silêncio. – É a coisa mais louca que eu já fiz, sem dúvidas.<br />

- Eu também.<br />

- Tem algum plano para quando chegarmos?<br />

- Nada por enquanto. Espero que a gente encontre logo para ir embora de uma<br />

vez. Não faço ideia se é uma casa, um prédio de escritório ou o que for. Eu não<br />

sei nem se Henri está lá.<br />

Ele assente. – Você acha que ele está bem?<br />

- Eu não tenho ideia. – eu digo.<br />

Eu respiro fundo. Ainda temos uma hora e meia na estrada, depois chegamos<br />

a Athens.<br />

E então nós vamos encontrar Henri.<br />

Capítulo 20<br />

NÓS DIRIGIMOS PARA O SUL ATÉ QUE, ACONCHEGADA na base das<br />

Montanhas do Alpalaches, Athens fica a vista: uma pequena cidade emergindo<br />

entre as árvores. Na pouca luz eu posso ver um rio enroscando-se gentilmente<br />

em volta da cidade como se a segurasse em concha, servindo de borda para o<br />

leste, o sul e oeste, no norte há colinas e árvores. A temperatura está<br />

relativamente quente para novembro. Nós passamos pelo estádio de futebol da<br />

universidade. Uma arena de domo branco fica um pouco depois.<br />

- Pega essa saída. – eu digo.<br />

Sam guia a caminhonete para fora da interestadual e vira a direita para<br />

Richland Avenue. Nós dois estamos felizes por termos conseguido vir direto,<br />

sem sermos pegos.<br />

- Então é assim que é uma cidade universitária, hein?<br />

- Acho que sim. – Sam diz.<br />

Edifícios e dormitórios nos cercam. A grama é verde, meticulosamente aparada<br />

mesmo para o mês de novembro. Nós subimos uma colina íngreme.<br />

- No topo fica a Court Street. Viramos à esquerda.<br />

- Estamos muito longe? – Sam pergunta.<br />

- Menos de um quilômetro.


- Quer passar pela rua de carro antes?<br />

- Não. Acho que nós devemos estacionar na primeira oportunidade e depois ir<br />

andando.<br />

- Nós dirigimos Court Street abaixo, que é a via principal no centro da cidade.<br />

Tudo está fechado por causa do feriado – livrarias, cafés, bares. Então eu vejo,<br />

exposto como uma joia.<br />

- Pare! – eu falo.<br />

Sam afunda o pé no freio.<br />

- Quê?!<br />

Um carro buzina atrás de nós.<br />

- Nada, nada. Continue dirigindo. Vamos estacionar.<br />

Nós passamos por mais um bloco até encontrar um uma vaga para parar.<br />

Suponho que seja uma caminhada de cinco minutos no máximo até lá.<br />

- O que foi aquilo? Eu quase morri de susto.<br />

- Era a caminhonete de Henri. – eu digo.<br />

Sam assente. – Por que às vezes você o chama de Henri?<br />

- Eu não sei, eu só faço. Meio que uma brincadeira entre nós. – eu digo, e olho<br />

para Bernie Kosar. – Acha que demos levá-lo?<br />

Sam dá de ombros. – Ele pode acabar atrapalhando.<br />

Dou a Bernie Kosar alguns biscoitos e o deixo na caminhonete com a janela<br />

aberta um pouco. Ele não fica feliz e começa a ganir e arranhar a janela, mas<br />

não acho que nós vamos demorar. Eu e Sam caminhamos de voltar para Court<br />

Street, as alças da minha mochilas passadas pelos meus ombros, Sam<br />

segurando a dele na mão. Ele pegou SillyPutty e está apertando isso como as<br />

pessoas fazem com aquelas bolas de espuma quando estão estressados. Nós<br />

chegamos à caminhonete de Henri. A porta está trancada. Não há nada<br />

importante nos assentos ou no painel.<br />

- Bem, isso significa duas coisas. – eu digo. – Henri ainda está aqui e seja lá<br />

quem esteja com ele, não descobriu o carro ainda, o que significa que ele não<br />

foi interrogado. Não que ele fosse dizer algo.<br />

- O que ele poderia dizer se fosse interrogado?


Por um breve momento eu tinha esquecido que Sam não sabe nada sobre as<br />

verdadeiras razões de Henri para estar aqui. Eu já deixei escapar e o chamei<br />

de Henri. Eu preciso ser cuidadoso para não revelar nada mais.<br />

- Eu não sei. – eu digo. – Quer dizer, vai saber que tipo de perguntar esses<br />

malucos estão fazendo.<br />

- Tudo bem, e agora?<br />

Eu pego o mapa com o endereço que Henri me deu essa manhã. – Nós<br />

andamos. – eu digo.<br />

Nós caminhamos de volta pelo caminho que viemos. Os edifícios acabam e as<br />

casas começam. Desalinhadas e de aparência suja. Em pouco tempo nós<br />

alcançamos o endereço e paramos.<br />

Olho para o pedaço de papel, depois para a casa. Respiro fundo.<br />

- É aqui. – digo.<br />

Ficamos em pé olhando a casa de dois andares com revestimento de vinil<br />

cinza. O caminho na frente leva a uma varanda sem pintura, onde este<br />

pendurado um balanço quebrado meio torto para um lado. A grama é longa e<br />

malcuidada. Parece inabitada, mas há um carro na garagem atrás. Eu não sei<br />

o que fazer. Pego o meu celular. São 11:11. Ligo para Henri mesmo sabendo<br />

que ele não vai atender. É uma tentativa de estabilizar meu estado mental,<br />

para inventar um plano. Eu não tinha pensado nisso tão a frente, e agora que a<br />

realidade está aqui minha mente está em branco. Minha ligação vai direto para<br />

caixa de mensagens.<br />

- Me deixa ir bater na porta. – Sam diz.<br />

- E dizer o que?<br />

- Eu não sei, o que vier na minha cabeça.<br />

Mas ele nem teve chance, logo depois um homem saiu pela porta da frente. Ele<br />

é grande, no mínimo 1,90, cem quilos. Ele tem um cavanhaque e a cabeça é<br />

raspada. Ele está vestindo botas de trabalho, jeans azul, e um moletom preto<br />

puxado até os cotovelos. Há uma tatuagem em seu antebraço direito, mas eu<br />

estou muito longe para ver o que é. Ele cospe no quintal, depois vira e tranca a<br />

porta da frente, saindo da varanda e vindo na nossa direção. Eu me endireito<br />

quando ele se aproxima. A tatuagem é de um alienígena segurando um buquê<br />

de tulipas em uma mão como se estivesse oferecendo para alguma entidade<br />

invisível. O homem passa direto por nós sem dizer uma palavra. Sam e eu<br />

viramos para assisti-lo ir.<br />

- Você viu a tatuagem? – eu pergunto.


- Aham. E é demais para o estereótipo de que nerds magrelos são os únicos<br />

fascinados por alienígenas. Esse homem é gigante, e ele parece... do mal.<br />

- Pegue o meu celular, Sam.<br />

- Que? Por quê? – ele pergunta.<br />

- Você tem que seguir ele. Pega o meu celular. Eu vou entrar na casa. É óbvio<br />

que não há ninguém lá, ou ele não teria trancado a porta. Henri pode estar aí<br />

dentro. Ligo pra você logo que eu puder.<br />

- Como você vai me ligar?<br />

- Eu não sei. Vou dar um jeito. Aqui. – relutantemente ele pega o celular.<br />

- E se Henri não estiver lá?<br />

- É por isso que eu quero que você siga esse cara. Ele pode está indo até<br />

Henri agora.<br />

- E se ele voltar?<br />

- Nós vamos dar um jeito. Mas você tem que ir agora. Eu prometo, te ligo na<br />

primeira chance.<br />

Sam vira e olha para o homem. Ele está cinquenta metros na frente agora.<br />

Depois olha de volta para mim.<br />

- Tudo bem, eu vou fazer isso. Tome cuidado lá dentro.<br />

- Tenha cuidado também. Não o perca de vista. E não deixe ele te ver.<br />

- Isso não tem nem chances de acontecer.<br />

Ele vira e se apressa para acompanhar o homem. Eu os assisto ir, uma vez<br />

que eles somem de vista, eu caminho em direção à casa. As janelas estão<br />

escuras, cada uma coberta com uma veneziana branca. Não consigo ver lá<br />

dentro. Ando em volto em direção a parte de trás. Há um pátio de concreto<br />

pequeno que leva à porta de trás, que está trancada. Continuo pelo resto do<br />

caminho em volta da casa. Está coberto por ervas daninhas e arbustos que<br />

continuaram depois do verão. Eu tento abrir uma janela. Trancada. Todas elas<br />

estão trancadas. Eu deveria quebrar uma? Procuro por pedras entre uns<br />

arbustos, encontro uma e a faço levitar, mas uma ideia passa pela minha<br />

cabeça, uma ideia tão louca que deve funcionar.<br />

Largo a pedra e caminho de volta para a porta dos fundos. Ela tem uma tranca<br />

comum, sem qualquer complicação. Respiro fundo, fecho os olhos em<br />

concentração, e seguro a maçaneta. Tendo abrir sacudindo. Meus<br />

pensamentos correndo da cabeça, para o coração e então para o estômago;


cada parte centralizando-se ali. Seguro com mais força, o ar preso em<br />

antecipação enquanto tento visualizar o interior da tranca funcionando. De<br />

repente, sinto e escuto um clique sob a minha mão que está segurando a<br />

maçaneta. Um sorriso surge no meu rosto. Giro a maçaneta e a porta abre.<br />

Não posso acreditar que consigo destrancar portas só de imaginar como<br />

funciona.<br />

A cozinha é surpreendentemente limpa, bem cuidada, a pia livre de pratos<br />

sujos. Há um pão de forma no balcão. Caminho por um corredor estreito até a<br />

sala de estar, onde as paredes são cobertas por pôsteres de esporte e banners<br />

e há uma tela grande de TV no canto. A porta de um quarto está meio aberta à<br />

esquerda. Coloco minha cabeça para dentro. Está uma confusão, cobertor<br />

jogado de qualquer jeito na cama, uma massa de coisas sobre a cômoda. O<br />

cheiro ruim de roupa suja molhada de suor.<br />

Na frente da casa, perto da porta, uma escada leva ao segundo andar. Começo<br />

a subir. O terceiro degrau range embaixo do meu pé.<br />

- Oi? – uma voz grita no segundo andar.<br />

Eu congelo, prendendo o ar.<br />

- Frank, é você?<br />

Fico em silêncio. Escuto alguém levantar de uma cadeira, depois o barulho dos<br />

passos ocos no chão de madeira enquanto se aproxima. Um homem aparece<br />

no alto da escada. Cabelos escuros desgrenhados, costeletas e a barba não<br />

feita. Não tão grande quando o homem que eu vi saindo antes, mas também<br />

não é exatamente pequeno.<br />

- Que isso? Quem é você?! – ele pergunta.<br />

- Eu estou procurando por um amigo meu. – eu digo.<br />

O rosto se transforma, uma expressão de raiva surgindo. Ele some e reaparece<br />

cinco segundos depois com um bastão de baseball.<br />

- Como você entrou aqui? – ele pergunta.<br />

- Eu largaria o bastão se fosse você.<br />

- Como é que você entrou aqui?<br />

- Eu sou mais rápido do que você e muito mais forte.<br />

- Ah, é. Claro que é.<br />

- Estou procurando um amigo meu. Ele veio aqui essa manhã. Quero saber<br />

onde ele está.


- Você é um deles, não é?<br />

- Não sei de quem você está falando.<br />

- Você é um deles! – ele grita. Ele segura o bastão como um jogador de<br />

baseball, as dobras dos dedos brancas em volta da extremidade mais fina do<br />

bastão, pronto para bater. Há medo genuíno nos olhos dele. O maxilar<br />

comprimido com força. – Você é um deles! Por que você ainda não nos deixou<br />

em paz?!<br />

- Eu não sou um deles. Eu vim aqui por causa do meu amigo. Me diz onde ele<br />

está.<br />

- Seu amigo é um deles!<br />

- Não, ele não é.<br />

- Então você sabe de quem eu estou falando?<br />

- Sim.<br />

Ele desce um degrau.<br />

- Eu estou te avisando. – eu digo. – Largue o bastão e me diz onde ele está.<br />

A incerteza dessa situação faz minhas mãos tremerem, o fato de que ele está<br />

com um bastão e eu não tenho nada a não ser as minhas habilidades. Fico<br />

nervoso por causa do medo nos olhos dele. Ele desce outro degrau. Há apenas<br />

mais seis entre nós.<br />

- Eu vou arrancar a sua cabeça. Isso deve servir como mensagem aos seus<br />

amigos.<br />

- Eles não são meus amigos. Eu posso garantir a você que você vai estar<br />

fazendo um favor a eles se me machucar.<br />

- Vamos ver, então. – ele diz.<br />

Ele vem correndo escada abaixo. Não há nada que eu possa fazer, a não ser<br />

reagir. Ele golpeia com o bastão. Eu abaixo e isso bate na parede com um<br />

baque, deixando um buraco no painel de madeira. Ergo o corpo e o levanto no<br />

ar, apertando o pescoço dele com uma mão, a outra segurando embaixo de<br />

seu braço, carregando-o de volta para o segundo andar. Ele se debate,<br />

chutando as minhas pernas e virilha. O bastão cai de sua mão. Vai rolando<br />

fantasmagoricamente escada abaixo e então escuto uma janela quebrar atrás<br />

de mim.<br />

O segundo andar é uma grande área aberta. Está escuro. Edições de Eles<br />

Estão Entre Nós vão cobrindo as paredes e, quando terminam, começa


parafernália de alienígenas – mas diferente das de Sam, os pôsteres são de<br />

fotografias reais tiradas ao longo dos anos, tão embaçadas e granuladas que é<br />

difícil entender, a maioria é de manchas brancas com o fundo preto. O domo de<br />

uma alienígena de borracha com um laço no pescoço está no canto. Alguém<br />

acrescentou um sombreiro mexicano à cabeça dele. Há estrelas que brilham no<br />

escuro presas ao teto. Elas parecem deslocadas, como se fossem algo<br />

pertencente ao quarto de uma menininha de dez anos.<br />

Jogo o homem no chão. Ele se arrasta para longe e levanta. Ao ver que ele<br />

está fazendo isso, concentro meu poder no meu estômago e direciono para ele,<br />

com um gesto forte de arremessar, e ele sai voando para trás até bater contra<br />

uma das paredes.<br />

- Onde ele está? – eu pergunto.<br />

- Eu nunca vou te dizer. Ele é um de vocês.<br />

- Eu não sou quem você pensa que eu sou.<br />

- Vocês nunca vão vencer! Deixe a Terra em paz!<br />

Levanto a mão e aperto o pescoço dele. Posso sentir os tendões flexionados<br />

embaixo da minha mão, mesmo que eu nem esteja tocando-o. Ele não<br />

consegue respirar e está ficando com o rosto vermelho. Eu solto.<br />

- Vou perguntar de novo.<br />

- Não vou falar.<br />

Aperto com força, sufocando-o outra vez, mas agora não solto quando o rosto<br />

dele fica vermelho, pelo contrário, aperto mais forte. Quando largo ele começa<br />

a chorar e eu me sinto mal pelo que fiz. Mas ele sabe onde Henri está, fez algo<br />

com ele. Minha simpatia acaba tão rápido quanto surge.<br />

Depois que ele recupera o ar diz entre choros: - Ele está lá embaixo.<br />

- Onde? Eu não o vi.<br />

- No porão. A porta é atrás o banner do Steelers na sala de estar.<br />

Disco o número do meu celular no telefone que está na parede atrás de uma<br />

escrivaninha. Sam não responde. Então arranco da parede e quebro ao meio.<br />

- Me dê seu celular. - eu digo.<br />

- Eu não tenho um.<br />

Vou até o domo do alienígena e pego o laço.<br />

- Ah, qual é, cara. - ele implora.


- Cale a boca. Você sequestrou meu amigo. Você prendeu ele aqui contra a<br />

própria vontade. Você tem sorte de eu só estar te amarrando.<br />

Coloco os braços dele para trás e amarro o laço em volta com força, depois<br />

prendo à cadeira. Não acho que isso vai segurá-lo por muito tempo. Passo<br />

silver tape na boca dele para que não berre e vou lá embaixo procurar. Arranco<br />

o banner do Steelers da parede, revelando uma porta escura que está<br />

trancada. Para destrancar faço o mesmo que fiz com a outra. Um lance de<br />

escadas de madeira leva ao escuro absoluto.<br />

O cheiro de mofo chega ao meu nariz. Eu acendo a luz e começo a descer,<br />

devagar, aterrorizado com o que eu posso encontrar. Os cantos cheios de teias<br />

de aranha. Eu alcanço o fim e imediatamente sinto a presença de mais alguém,<br />

alguém ali comigo. Eu fico rígido, respiro fundo, e então viro.<br />

Lá, no canto do porão, está Henri.<br />

- Henri!<br />

Ele aperta os olhos por causa da luz, ajustando-os. Uma tira de silver tape está<br />

sobre a boca dele. As mãos estão amarradas atrás, os tornozelos presos às<br />

pernas da cadeira que ele está sentado. O cabelo dele está desgrenhado e do<br />

lado direito do rosto há uma linha de sangue seco, quase preto. Ver isso me<br />

enche de raiva.<br />

Corro até Henri e tiro a fita da boca dele. Ele respira fundo.<br />

- Graças a deus. - ele diz. A voz fraca. - Você estava certo, John. Foi bobeira<br />

vir aqui. Me desculpe. Eu deveria ter ouvido.<br />

- Shh. - eu digo.<br />

Eu abaixo e começo a desamarrar os tornozelos dele. Ele está com cheiro de<br />

urina.<br />

- Fui pego em uma emboscada.<br />

- Quantos eram? - eu pergunto.<br />

- Três.<br />

- Eu amarrei um deles lá em cima. - eu digo.<br />

Solto os tornozelos dele. Ele estica as pernas e deixa o ar escapar com o<br />

alívio.<br />

- Fiquei nessa droga de cadeira o dia inteiro.<br />

Começo a trabalhar para livrar as mãos dele.


- Meu Deus, como é que você chegou aqui? – ele pergunta.<br />

- Sam e eu viemos juntos. Nós dirigimos.<br />

- Está brincando?<br />

- Não tinha outro jeito.<br />

- O que você dirigiu?<br />

- A caminhonete velha do pai dele.<br />

Henri fica em silêncio um minuto enquanto pondera o que isso significa.<br />

- Ele não sabe de nada. - eu digo. - Eu disse a ele que alienígenas é um hobbie<br />

seu, nada mais.<br />

Ele assente. - Bem, estou feliz por você ter feito isso. Onde ele está agora?<br />

- Seguindo um deles. Não sei onde foram.<br />

Escutamos o piso ranger acima de nós. Levanto, as mãos de Henri<br />

desamarradas apenas pela metade.<br />

- Você ouviu isso? – eu sussurro.<br />

Nós dois olhamos para a porta prendendo a respiração.<br />

Vemos um pé no degrau mais alto, e outro. Então de uma só vez o homem alto<br />

que passou por nós mais cedo, o que Sam estava seguindo, surge.<br />

- A festa acabou, pessoal. – ele diz. Apontando uma arma para o meu rosto. –<br />

Agora, se afaste.<br />

Levanto as mãos para frente, dou um passo para trás. Penso em usar os meus<br />

poderes para afastar a arma, mas e se de alguma forma eu causo um tiro por<br />

acidente? Eu ainda não tenho confiança com as minhas novas habilidades. É<br />

muito arriscado.<br />

- Eles nos disseram que vocês poderiam vir. Que vocês se pareceriam como<br />

humanos. Que vocês eram o inimigo real. – o homem diz.<br />

- Do que você está falando? – eu pergunto.<br />

- Eles estão delirando. – Henri diz. – Eles acham que nós somos os inimigos.<br />

- Cale a boca! - o homem grita.<br />

Ele dá três passos na minha direção. Depois muda e aponta a arma<br />

diretamente para Henri.<br />

- Um movimento em falso e eu atiro. Está entendendo?


- Sim. – eu digo.<br />

- Agora, pegue isso. – ele diz. Ele pega um rolo de fita em uma prateleira<br />

próxima e joga na minha direção. Enquanto isso se move no ar, eu faço parar,<br />

suspendido a cerca de dois metros e meio do chão, na metade do caminho<br />

entre nós. Faço com que ela vire bem rápido. O homem apenas observa,<br />

confuso.<br />

- Que merd... ?<br />

Enquanto ele está distraído, estendo meu braço na direção dele em um gesto<br />

de jogar. O rolo de fita voa de volta e atinge o nariz dele. O sangue começa a<br />

jorrar e ele acaba deixando a arma cair quando tenta pegá-la, ela cai no chão e<br />

dispara. Aponto a mão para bala e faço com que pare, atrás de mim escuto<br />

Henri rir. Faço a bala se mover de modo que ela fique na frente do rosto do<br />

homem.<br />

- Ei, bonzão. – eu digo.<br />

Ele abre os olhos e vê a bala no ar, bem em frente ao seu rosto.<br />

- Você vai ter que se esforçar mais.<br />

Eu deixo a bala cair no chão ao pé dele. Ele vira para correr, mas o puxo de<br />

volta através do porão e o empurro contra uma larga coluna de sustentação.<br />

Ele apaga e escorrega para o chão. Pego a fita e o amarro à coluna. Depois de<br />

verificar que está preso, viro para Henri e termino de soltá-lo.<br />

- John, acho que essa é a melhor surpresa que eu já tive na minha vida inteira.<br />

– ele diz em um sussurro, tanto alívio na voz que eu acho que ele vai chorar.<br />

Eu sorrio com orgulho. - Obrigado. Apareceu no jantar.<br />

- Sinto muito por ter perdido isso.<br />

- Disse a eles que você estava ocupado.<br />

Ele sorri.<br />

- Graças a Deus o Legado veio. - ele diz, e eu percebo que o estresse da<br />

formação dos meus Legados - ou o medo deles não se formarem – tiveram<br />

muito mais peso para Henri do que eu imaginei.<br />

- O que aconteceu com você? - eu pergunto.<br />

- Bati na porta. Todos os três estavam em casa. Quando entrei um deles bateu<br />

com algo atrás da minha cabeça. Depois eu acordei nessa cadeira. - Ele<br />

balança a cabeça e diz uma longa série de palavras em Loric que eu sei que<br />

são xingamentos. Eu termino de desamarrá-lo e ele levanta e estica as pernas.


- Nós precisamos sair daqui. - ele diz.<br />

- Nós temos que encontrar Sam.<br />

Então nós o ouvimos.<br />

- John, você está aí embaixo?<br />

Capítulo 21<br />

TUDO FICA DEVAGAR. VEJO UMA SEGUNDA PESSOA no alto da escada.<br />

Sam se assusta e dá um grito que mais parece um ganido, eu viro para ele,<br />

silêncio enchendo meus ouvidos junto ao zumbido discordante que vem com a<br />

câmera lenta. O homem atrás dele o empurra com tanta força que faz seus pés<br />

saírem do chão e, quando tocá-lo outra vez, vai ser nos pés da escada, onde o<br />

piso de concreto o espera. Assisto enquanto ele desliza pelo ar, balançando os<br />

braços e com uma expressão de terror no rosto. Sem nem pensar, meus<br />

instintos tomam conta, eu levanto as mãos bem no último segundo e consigo<br />

segurá-lo, sua cabeça a meros cinco centímetros acima do piso do porão.<br />

Coloco Sam no chão gentilmente.<br />

- Merda. - Henri diz.<br />

Sam senta e engatinha para trás como um caranguejo até alcançar a parede<br />

de concreto cinza. Está com os olhos arregalados, fitando os degraus, a boca<br />

aberta abrindo e fechando, mas nenhuma palavra chegar a se formar. O<br />

homem que o empurrou está em pé no alto da escada tentando entender,<br />

assim como Sam, o que acabou de acontecer. Esse deve ser o terceiro.<br />

- Sam, eu tentei- – digo.<br />

O homem lá em cima vira e tenta correr, mas o faço descer dois degraus. Sam<br />

olha o homem ser segurado por uma força invisível, depois para o meu braço<br />

estendido na direção dele. Ele está chocado e sem palavras.<br />

Pego a fita adesiva, faço o homem levantar do chão e carrego para o segundo<br />

andar, mantendo-o suspendido por todo caminho. Ele grita palavrões enquanto<br />

o prendo na cadeira, mas não escuto nenhum porque minha mente está muito<br />

ocupada correndo atrás de um modo para explicar a Sam o que aconteceu de<br />

aconteceu.<br />

- Cale a boca. - digo.<br />

O homem começa a despejar outra sequência de xingamentos. Já tive o<br />

bastante, coloco a fita na boca dele, calando-o, e volto para o porão. Henri está<br />

em pé perto de Sam, que ainda está sentado lá, com o mesmo olhar vazio no<br />

rosto.


- Eu não entendi - ele diz. - O que acabou de acontecer?<br />

Henri e eu trocamos um olhar. Dou de ombros.<br />

- Me diz o que aconteceu. - Sam diz, a voz implorando a nós, tingida com<br />

desespero para saber a verdade, para saber que ele não é louco e que ele não<br />

imaginou o que acabou de ver.<br />

Henri suspira e balança a cabeça. Então diz:<br />

- Pra que continuar com isso?<br />

- Isso o que? - pergunto.<br />

Henri me ignora, em vez disso vira para Sam. Ele contrai os lábios, olha para o<br />

homem jogado na cadeira para ter certeza de que ainda está apagado, e<br />

depois de para Sam outra vez. - Nós não somos quem você pensa que somos.<br />

- diz, e pausa. Sam fica em silêncio, fitando Henri. Não consigo ler o rosto dele,<br />

então não tenho ideia do que Henri vai dizer – se vai novamente inventar uma<br />

história bem elaborada ou, pela primeira vez, dizer a verdade – e é por essa<br />

última opção que estou esperando. Henri olha para mim e eu aceno a cabeça<br />

em acordo.<br />

- Nós viemos para Terra dez anos atrás de um planeta chamado Lorien. Nós<br />

tivemos que vir porque ele foi destruído pelos habitantes de outro planeta, o<br />

Morgadore. Eles fizeram isso por causa dos nossos recursos naturais, porque<br />

eles já transformaram o próprio planeta em uma fossa de decadência. Nós<br />

estamos aqui para no esconder até que possamos voltar para Lorien, o que<br />

nós vamos fazer um dia. Mas nós fomos seguidos por eles, os Mogadorians.<br />

Eles estão nos caçando. Além disso, acredito que eles estejam aqui para tomar<br />

conta da Terra também, e é por isso que eu vim até aqui hoje, para entender<br />

um pouco mais.<br />

Sam não diz nada. Se tivesse sido eu a dizer isso tudo, tenho certeza de que<br />

ele não acreditaria em mim, de que poderia ficar irritado, mas foi Henri quem<br />

disse a ele, e eu sempre senti certa integridade em Henri, e não tenho dúvidas<br />

de que Sam também sente isso. Ele olha para mim.<br />

- Eu estava certo: você é um alienígena. Você não estava zoando quando disse<br />

isso. - Sam diz para mim.<br />

- Sim, você estava certo.<br />

Ele olha de volta para Henri. - E aquelas histórias que você me disse no<br />

Halloween?


- Não. Aquelas eram só aquilo. - Henri diz. - Histórias ridículas que me fazem rir<br />

quando eu tropeço nelas pela internet, nada mais. Mas o que eu te disse agora<br />

é a pura verdade.<br />

- Bem... - Sam começa a dizer, mas a frase perde o rumo, ele abre e fecha a<br />

boca atrás de palavras. - O que acabou de acontecer?<br />

Henri me indica. - John está no processo de desenvolver certos poderes.<br />

Telecinese é um deles. Quando você foi empurrado, John te salvou.<br />

Sam sorri, me observando. Quando olho para ele, ele acena com a cabeça.<br />

- Eu sabia que você era diferente. - diz.<br />

- Desnecessário dizer. - Henri diz para Sam. - Você vai ter que ficar quieto<br />

sobre isso. - depois olha para mim. - Nós precisamos de informações e temos<br />

que sair daqui. Provavelmente eles já estão por perto.<br />

- Os caras lá em cima ainda devem estar conscientes.<br />

- Vamos lá falar com eles.<br />

Henri se adianta, pega a arma do chão e puxa o pente. Está carregada. Ele<br />

remove todas as balas e as coloca em uma prateleira próxima, depois empurra<br />

o pente de volta e coloca a arma no cós do jeans. Ajudo Sam a ficar em pé e<br />

nós três vamos para o segundo andar. O homem que eu trouxe com telecinese<br />

ainda está lutando para se soltar. O outro está sentado imóvel. Henri vai até<br />

ele.<br />

- Você foi avisado. - Henri diz.<br />

O homem apenas assente.<br />

- Agora você vai falar. - Henri diz, e tira a fita da boca do homem. - E se você<br />

não... - Ele puxa o percussor da arma e aponta para o peito do homem. - Quem<br />

visitou você?<br />

- Havia três deles. - ele diz.<br />

- Bem, há três de nós. E daí? Continue falando.<br />

- Eles me disseram que se vocês aparecessem e eu falasse algo, eles iam me<br />

matar. - o homem diz. - Eu não vou dizer mais nada.<br />

Henri pressiona o cano da arma contra a testa dele. Por alguma razão fico<br />

desconfortável com isso. Estico o braço e abaixo a arma para que aponte<br />

apenas para o chão. Henri me olha com curiosidade.<br />

- Há outros modos. - eu digo.


Henri dá de ombros e deixa a arma apontada para baixo - O chão é seu. - ele<br />

diz.<br />

Paro a uns dois metros na frente do homem. Ele me olha com medo. Ele é<br />

pesado, mas depois de pegar Sam enquanto ainda praticamente voava até o<br />

chão, eu sei que posso levantá-lo. Eu mantenho meus braços para frente,<br />

tensionando meu corpo em concentração. Nada no início, mas depois bem<br />

devagar ele começa a sair do chão. O homem se debate, mas está preso à<br />

cadeira com a fita e não há nada que ele possa fazer. Eu me concentro com<br />

tudo o que tenho, e ainda posso ver pelo canto dos olhos que Henri está<br />

sorrindo orgulhoso, e Sam também. Ontem eu não podia levantar uma bola de<br />

tênis; agora eu estou levantando uma cadeira onde um homem de noventa<br />

quilos está sentado. Quão rápido o Legado se desenvolveu.<br />

Quando já levantei até o nível dos nossos rostos, viro a cadeira e ele fica<br />

pendurado de cabeça para baixo.<br />

- Qual é, cara?! - ele berra.<br />

- Comece a falar.<br />

- Não! - ele berra outra vez. - Eles falaram que vão me matar.<br />

Largo a cadeira e ela cai. O homem grita, mas pego antes que ele bata no<br />

chão. Faço ele subir de volta.<br />

- Havia três deles! - ele grita, falando rápido. - Eles apareceram no mesmo dia<br />

que nós enviamos as revistas. Eles apareceram naquela noite.<br />

- Como eles eram? - Henri pergunta.<br />

- Como fantasmas. Eles eram pálidos, quase albinos. Eles usavam óculos de<br />

sol, mas quando nós não falamos um deles tirou. Eles tinham olhos negros e<br />

dentes afiados, mas não parecia natural como os de animais. Era como se<br />

tivessem sido quebrados e esculpidos. Todos estavam vestindo sobretudo<br />

comprido e chapéu, como se tivessem saído de um filme antigo de espião. O<br />

que mais você quer saber?<br />

- Por que eles vieram?<br />

- Eles queriam saber a fonte da nossa história. Nós dissemos a eles. Um<br />

homem ligou, disse que tinha uma exclusiva para nós, começou a falar rápido,<br />

cuspindo as palavras com raiva, sobre um grupo de alienígenas que queriam<br />

destruir a nossa civilização. Mas ele ligou no dia que estávamos imprimindo,<br />

então em vez de escrever a história toda, nós colocamos um pequeno resumo<br />

e falamos que teria mais no próximo mês. Ele falava tão rápido que era difícil<br />

acompanhar o que ele dizia. Nós estávamos pensando em ligar para ele na


noite seguinte, só que isso não aconteceu, em vez disso os Mogadorians<br />

apareceram.<br />

- Como vocês souberam que eles eram Mogadorians?<br />

- Quem mais você acha que poderia ser? Nós escrevemos sobre a raça de<br />

alienígenas Mogadorian e, olhe só, de repente um grupo de alienígenas<br />

aparece na nossa porta querendo saber onde conseguimos a história. Não foi<br />

muito difícil descobrir.<br />

O homem é pesado e está ficando difícil segurá-lo. Minha testa está ensopada<br />

de suor e até respirar é um esforço. Faço com que ele fique de cabeça para<br />

cima outra vez, logo começando a abaixá-lo. Quando está a um metro do chão<br />

eu solto e ele aterrissa com um Oomphf. Apoio as mãos nos joelhos e pego ar.<br />

- Qual é, cara?! Eu estava respondo as suas perguntas. - ele diz.<br />

- Me desculpe. - digo. - Você é muito pesado.<br />

- E essa foi a única vez que eles vieram? - Henri diz.<br />

O homem balança a cabeça. - Eles voltaram.<br />

- Por quê?<br />

- Para ter certeza de que nós não publicamos mais nada. Eles não acreditaram<br />

em nós, mas o homem que nos ligou nunca mais atendeu, então não tínhamos<br />

mais nada para publicar.<br />

- O que aconteceu com ele?<br />

- O que você acha? - o homem pergunta.<br />

Henri assente e diz: - Então eles sabiam onde o homem vivia?<br />

- Eles tinham o número de telefone que nós deveríamos usar para ligar. Tenho<br />

certeza de que deram um jeito.<br />

- Eles te ameaçaram?<br />

- Meu Deus, e como! Eles destruíram nosso escritório. Eles ferraram com a<br />

minha mente. Não tenho sido o mesmo desde então.<br />

- O que eles fizeram com a sua mente?<br />

Ele fecha os olhos e respira fundo.<br />

- Eles não pareciam nem reais. - ele diz. - Quer dizer, aparecem esses três<br />

homens na nossa frente falando em vozes ásperas e profundas, todos vestindo<br />

sobretudo, chapéu e óculos de sol, mesmo que estivesse à noite. Parecia que


eles estavam vestidos para festa de Halloween ou algo assim. Era até<br />

engraçados e eles pareciam meio que fora do lugar, então de cara eu ri... – ele<br />

diz, a voz desaparecendo.<br />

- Mas no segundo que eu ri soube que tinha cometido um erro. Os outros dois<br />

Mogadorians vieram na minha direção sem os óculos. Tentei parar de olhar,<br />

mas eu não pude. Aqueles olhos. Eu tinha que olhar, como se algo estivesse<br />

me puxando. Foi como ver a morte. Minha própria morte, e a morte de todas as<br />

pessoas que eu conheço e amo. As coisas não eram mais engraçadas. Eu não<br />

só tive que testemunhar as mortes, como tive que sentir. A incerteza. A dor. O<br />

terror completo e absoluto. Eu não estava mais nessa sala. E então vieram<br />

coisas que eu sempre temi quando criança. Imagens de animais de pelúcia que<br />

ganhavam vida, com dentes afiados nas bocas, as garras eram como lâminas<br />

de navalha. As coisas comuns de que toda criança tem medo. Lobisomens.<br />

Palhaços demoníacos. Aranhas gigantes. Eu vi todas pelos olhos de uma<br />

criança, e elas me aterrorizaram absolutamente. E a cada vez que uma dessas<br />

coisas me mordia, eu podia sentir os dentes rasgarem a carne do meu corpo,<br />

eu podia sentir o sangue saindo das minhas feridas. Não conseguia nem parar<br />

de gritar.<br />

- Você pelo menos tentou lutar?<br />

- Eles tinham duas dessas pequenas coisas com cara de doninha, gordas, com<br />

pernas curtas. Não eram maiores do que um cachorro. As bocas espumando.<br />

Um dos homens estava segurando na coleira, mas dava para ver que elas<br />

estavam famintas por nós. Eles disseram que iam soltá-las se nós<br />

resistíssemos. Estou te dizendo, cara, aquelas coisas não eram da Terra. Se<br />

fossem cachorros, grande coisa, nós poderíamos nos defender. Mas acho que<br />

aquelas coisas poderiam nos comer inteiros a despeito do nosso tamanho. E<br />

elas estavam forçando para se soltar, rosnando, tentando nos pegar.<br />

- Então você falou?<br />

- Sim.<br />

- Quando eles voltaram?<br />

- Na noite antes da última revista sair, pouco mais de uma semana atrás.<br />

Henri vira para mim com um olhar preocupado. Apenas uma semana atrás os<br />

Mogadorians estavam a menos de 200 quilômetros de onde nós vivemos. Eles<br />

podem ainda estar aqui em algum lugar, talvez monitorando o escritório. Quem<br />

sabe é por causa disso que Henri sentiu a presença deles há pouco tempo.<br />

Sam está perto de mim, tentando absorver toda a história.<br />

- Por que eles não simplesmente te mataram como fizeram com a sua fonte?


- Sei lá, como que é que eu vou saber? Talvez porque nós publicamos uma<br />

revista respeitável.<br />

- Como o homem que ligou sabia sobre os Mogadorians?<br />

- Ele disse que capturou e torturou um deles.<br />

- Onde?<br />

- Eu não sei. O código do telefone dele era de uma área próxima a Columbus.<br />

Muito ao norte daqui. Talvez a noventa ou cento e vinte quilômetros ao norte.<br />

- Você falou com ele?<br />

- Aham. E eu não tinha certeza se ele era louco ou não, mas já tinha ouvido<br />

rumores sobre algo assim. Ele começou a contar sobre eles quererem acabar<br />

com a nossa civilização. Às vezes ele falava tão rápido que era difícil encontrar<br />

sentido no meio do que dizia. Uma coisa que ele ficava repetindo era que eles<br />

estavam aqui caçando algo, ou alguém. Então ele começava a falar números,<br />

como se tivesse contando ou sei lá.<br />

Meus olhos se arregalaram. - Que números? O que eles significam?<br />

- Não tenho ideia. Como eu disse, ele estava falando tão rápido que isso foi<br />

tudo o que conseguimos fazer para escrever.<br />

- Vocês escreveram enquanto ele falava? - Henri pergunta.<br />

- Claro que sim. Nós somos jornalistas. - ele diz incrédulo. - Vocês acham que<br />

nós inventamos as histórias que escrevemos?<br />

- Aham, eu acho. - Henri diz.<br />

- Você ainda tem as notas que escreveu? - eu digo.<br />

Ele olha para mim e assente. - Estou te dizendo, elas são inúteis. A maior parte<br />

do que eu escrevi são rabiscos sobre o plano deles de destruir a raça humana.<br />

- Eu preciso ver. – praticamente grito. - Onde, onde elas estão?<br />

Ele faz um gesto na direção a uma escrivaninha contra uma das paredes.<br />

- Na escrivaninha. Nos post it, esses papeizinhos de lembrete que grudam.<br />

Caminho até lá, a escrivaninha está coberta com papeis, começo a procurar<br />

pelos post it. Encontro algumas notas bem vagas sobre a esperança dos<br />

Mogadorians de conquistar a Terra. Nada concreto, nenhum plano ou detalhe,<br />

apenas algumas palavras indistintas:<br />

"Excesso demográfico"


"Recursos da Terra"<br />

"Guerra biológica?"<br />

"O Planeta Mogadore"<br />

Encontro a nota que estou procurando. Leio com cuidado três ou quatro vezes.<br />

PLANETA LORIEN?O LORIC?<br />

1-3 MORTOS<br />

4?<br />

7 RASTREADO NA ESPANHA<br />

9 FUGINDO NA A.S.<br />

(DO QUE ELE ESTÁ FALANDO? O QUE ESSES NÚMEROS TÊM A VER<br />

COM INVADIR A TERRA?)<br />

- Por que tem uma interrogação depois do número 4? - eu pergunto.<br />

- Porque ele disse algo sobre isso, mas falou muito rápido e eu não consegui<br />

entender.<br />

- Você só pode estar brincando.<br />

Ele balança a cabeça. Eu suspiro. Sorte a minha, eu penso. A única coisa dita<br />

sobre mim é a única coisa que não foi escrita.<br />

- O que significa AS? - pergunto.<br />

- América do Sul.<br />

- Ele falou onde na América do Sul?<br />

- Não.<br />

Aceno com a cabeça e fito o pedaço de papel. Queria ter ouvido a conversa,<br />

queria ter feito perguntas. Os Mogadorians sabem mesmo onde o Sete está?<br />

Eles estão mesmo seguindo ele ou ela? Se sim, o Feitiço Loric ainda funciona.<br />

Dobro os papeizinhos e guardo no bolso de trás.<br />

- Você sabe o que os números significam? - ele pergunta.<br />

Eu balanço a cabeça. - Não tenho ideia.<br />

- Não acredito em você. - ele diz.<br />

- Cale a boca. - Sam diz, e cutuca a barriga dele com a ponta mais grossa do<br />

bastão.


- Há algo mais que você possa me dizer? - eu pergunto.<br />

Ele pensa sobre isso por um momento, então diz: - Acho que luz forte os<br />

incomoda. Parece que causa dor quando tiram os óculos escuros.<br />

Nós ouvimos um barulho no andar de baixo. Como se alguém tentasse abrir<br />

devagar a porta. Olhamos um para o outro. Olho para o homem na cadeira.<br />

- Quem é? - digo em voz baixa.<br />

- Eles.<br />

- Quê?<br />

- Eles falaram que iam ficar de olho. Que eles sabiam que alguém poderia vir.<br />

Nós ouvimos o som baixo de passos no primeiro andar.<br />

Henri e Sam trocam olhares, ambos aterrorizados.<br />

- Por que você não nos disse?<br />

- Eles falaram que iam me matar. E a minha família.<br />

Corro para a janela, olho para os fundos. Nós estamos no segundo andar. É<br />

uma queda de seis metros até o chão. Há uma cerca em volta do quintal. Ripas<br />

de madeira de dois metros e meio. Volto rápido para as escadas, espio<br />

embaixo. Vejo três figuras enormes, em longos sobretudos pretos, chapéus<br />

pretos e óculos escuros. Eles estão carregando espadas longas e reluzentes.<br />

Não há jeito de voltar pela escada. Meus Legados estão ficando fortes, mas<br />

não fortes o suficiente para vencer três Mogadorians. A única maneira de sair é<br />

por uma das janelas ou através da pequena varanda na frente da sala. As<br />

janelas são menores, mas o quintal vai nos permitir escapar sem sermos<br />

vistos. Se nós sairmos pela frente, vamos ficar mais visíveis. Eu escuto um<br />

barulho vindo do porão e os Mogadorians falando uns com os outros em uma<br />

linguagem horrível e gutural. Dois deles se movem em direção ao porão<br />

enquanto o terceiro vai em direção à escada que leva até nós.<br />

Tenho um ou dois segundos para agir. As janelas vão quebrar se formos por<br />

elas. Nossa única chance é a porta que leva à varanda do segundo andar. Abro<br />

usando telecinese. Está escuro lá fora. Escuto os passos subindo a escada. Eu<br />

puxo Sam e Henri para mim e jogo cada um sobre os meus ombros como<br />

sacos de batatas.<br />

- O que você está fazendo? - sussurra Henri.<br />

- Não tenho ideia. - digo. - Mas espero que funcione.


Assim que vejo o topo do chapéu do primeiro Mogadorian, eu disparo na<br />

direção da porta e pouco antes do parapeito da varanda, pulo. Nós voamos<br />

para dentro do céu da noite. Por dois ou três segundos nós ficamos flutuando.<br />

Vejo carros se movendo na rua abaixo de nós. Vejo pessoas nas calçadas.<br />

Não sei onde nós vamos aterrissar, ou se o meu corpo vai suportar todo o peso<br />

que estou carregando quando acontecer. Quando nós atingimos o telhado de<br />

uma casa do outro lado da rua eu praticamente desabo, com Sam e Henri<br />

sobre mim. Fico sem ar, e parece que minhas pernas estão quebradas. Sam<br />

começa a levantar, mas Henri o puxa de volta. Ele me arrasta para a ponta do<br />

telhado e pergunta se eu posso usar minha telecinese para colocar os dois lá<br />

embaixo. Eu posso e faço. Ele me diz para pular. Levanto sobre as minhas<br />

pernas que estão vacilantes e ainda machucadas, e, bem antes de pular, viro e<br />

vejo os três Mogadorians em pé na varanda do outro lado da rua, parecendo<br />

confusos. As espadas estão reluzindo. Sem perder nem mais um segundo, nós<br />

vamos embora sem que eles nos vejam.<br />

Nós chegamos à caminhonete de Sam. Henri e ele tiveram que me ajudar a<br />

andar. Bernie está lá nos esperando. Nós decidimos deixar para trás a<br />

caminhonete de Henri porque é mais fácil eles conseguirem rastreá-la. Nós<br />

saímos de Athens e Henri começa a dirigir de volta para Paraíso, que<br />

realmente vai ser um depois da noite que tivemos.<br />

Henri começa do início, dizendo tudo a Sam. Ele não para até estarmos<br />

entrando na nossa rua. Ainda está de noite. Sam olha para mim.<br />

- Inacreditável. - ele diz, e sorri. - É a coisa mais legal que eu já ouvi. - eu olho<br />

para ele e vejo a confirmação que ele sempre procurou na vida, alguma<br />

afirmação de que o tempo que ele gastou com o nariz enfiado tabloides de<br />

conspiração, procurando por pistas sobre o desaparecimento de seu pai, não<br />

foi em vão.<br />

- Você é mesmo resistente a fogo? - ele pergunta.<br />

- Sim. - eu digo.<br />

- Cara, isso é tão legal!<br />

- Obrigado, Sam.<br />

- Você pode voar? - ele pergunta. Primeiro eu penso que ele está zoando, mas<br />

depois vejo que não.<br />

- Eu não posso voar. Eu sou resistente a fogo e minhas mãos podem acender<br />

como luzes. Eu tenho telecinese, que eu só aprendi a usar ontem. Mais


Legados devem vir em breve. Pelo menos nós achamos que sim. Mas eu não<br />

tenho ideia do que eles vão ser até eles realmente se desenvolverem.<br />

- Espero que você aprenda a ficar invisível. - Sam diz.<br />

- Meu avô podia. E qualquer coisa que ele tocasse também ficava invisível.<br />

- Sério?<br />

- Aham.<br />

Ele começa a rir.<br />

- Eu ainda não acredito que vocês dois foram dirigindo sozinhos por todo o<br />

caminho até Athens. - Henri diz. - Vocês são realmente incríveis. Quando nós<br />

paramos para abastecer eu vi que a placa expirou há quatro anos. Eu<br />

realmente não faço ideia de como vocês conseguiram chegar lá sem serem<br />

parados.<br />

- Bem, vocês podem contar comigo daqui pra frente. - Sam diz. - Eu vou fazer o<br />

que for preciso para ajudar a pará-los. Especialmente porque eu aposto que<br />

foram eles que pegaram meu pai.<br />

- Obrigado, Sam. - Henri diz. - A coisa mais importante que você pode fazer é<br />

guardar o nosso segredo. Se qualquer pessoa descobrir sobre, pode levar à<br />

nossa morte.<br />

- Não se preocupe. Nunca vou dizer pra ninguém. Não quero que John use os<br />

poderes dele em mim.<br />

Nós rimos e agradecemos a Sam outra vez e ele vai embora. Henri e eu<br />

entramos. Mesmo que eu tenha dormido no caminho de volta, eu ainda estou<br />

exausto. Eu deito no sofá. Henri senta na cadeira à minha frente.<br />

- Sam não vai dizer nada. - digo.<br />

Ele não responde, apenas fita o chão.<br />

- Eles não sabem que estamos aqui. - digo.<br />

Ele olha para mim.<br />

- Eles não sabem. - eu digo. - Se soubessem estariam nos seguindo agora.<br />

Ele fica em silêncio. Eu não posso aceitar isso.<br />

- Eu não vou embora de Ohio só por causa de especulação.<br />

Henri levanta.


- Estou feliz que você tenha feito um amigo. E eu acho que a Sarah é incrível.<br />

Mas não podemos ficar. Vou começar a empacotar as coisas. - ele diz.<br />

- Não.<br />

- Quando nós terminarmos eu vou até a cidade e compro um carro novo. Nós<br />

precisamos sair daqui. Eles podem não ter nos seguidos, mas eles sabem o<br />

quão perto estavam de nos pegar, e que eles ainda podem estar perto. Eu<br />

acredito que o homem que ligou para a revista pegou mesmo um deles. Essa<br />

foi a história dele, de que ele capturou um e torturou até ele falar e depois o<br />

matou. Nós não sabemos que tipo de tecnologia de rastreamento eles têm,<br />

mas eu não acho que vai demorar a nos encontrarem. E quando conseguirem,<br />

nós vamos morrer. Seus Legados estão emergindo, e sua força está<br />

crescendo, mas você não está nem perto de estar preparado para lutar com<br />

eles.<br />

Ele sai da sala. Eu sento. Eu não quero ir embora. Eu tenho um amigo de<br />

verdade pela primeira vez na minha vida. Um amigo que sabe quem eu sou e<br />

não está assustado, não pensa que eu sou louco. Um amigo que está inclinado<br />

a lutar comigo, e entrar em perigo comigo. E eu tenho uma namorada. Alguém<br />

que quer ficar comigo, mesmo sem saber quem eu sou. Alguém que me deixa<br />

feliz, alguém por quem eu lutaria, ou entraria em perigo para proteger. Nem<br />

todos os meus legados emergiram, mas eu tenho o bastante. Eu derrubei três<br />

homens adultos. Eles nem tiveram uma chance. Foi como lutar com crianças<br />

pequenas. Eu poderia ter feito o que quisesse com eles. E agora nós também<br />

sabemos que os humanos podem lutar, capturar, machucar e matar os<br />

Mogadorians. Se eles conseguem, então eu definitivamente consigo. Não<br />

quero ir embora. Eu tenho um amigo, eu tenho uma namorada. Eu não vou<br />

embora.<br />

Henri volta para a sala. Ele está carregando a BaúLoric que é o nosso<br />

bemmais valioso.<br />

- Henri. - eu digo.<br />

- Sim?<br />

- Nós não vamos embora.<br />

- Sim, nós vamos.<br />

- Você pode ir se quiser, mas eu vou morar com Sam. Eu não vou embora.<br />

- Não é uma decisão sua.<br />

- Não é? Eu pensei que fosse eu que estivesse sendo caçado. Eu pensei que<br />

fosse eu que estivesse em perigo. Você poderia ir embora bem agora e os<br />

Mogadorians nunca procurariam por você. Você poderia viver uma vida normal,


oa e longa. Você poderia fazer o que quisesse. Eu não. Eles vão estar sempre<br />

atrás de mim. Eles vão estar sempre tentando me encontrar e me matar. Eu<br />

tenho quinze anos. Eu não sou mais uma criança. É uma decisão minha.<br />

Ele me olha por um minuto. - Foi um bom discurso, mas não muda nada.<br />

Arrume as suas coisas. Nós vamos embora.<br />

Levanto a minha mão e aponto para ele, erguendo-o do chão. Ele está tão<br />

chocado que não diz nada. Faço Henri flutuar e levo para o canto da sala, bem<br />

perto do teto.<br />

- Nós vamos ficar. - eu digo.<br />

- Me coloque no chão, John.<br />

- Vou te colocar no chão quando você concordar em ficar.<br />

- É muito perigoso.<br />

- Nós não sabemos disso. Eles não estão em Paraíso. Eles podem não ter<br />

ideia de onde estamos.<br />

- Me coloque no chão.<br />

- Não até que você concorde em ficar.<br />

- ME COLOQUE NO CHÃO.<br />

Eu não respondo. Apenas o seguro lá. Ele se debate, lutando, tenta empurrar a<br />

parede e o teto, mas não pode se mover. Meu poder o prende no lugar. E eu<br />

me sinto forte fazendo isso. Mais forte do que já senti na minha vida inteira.<br />

Não vou embora. Eu não vou fugir. Eu amo minha vida em Paraíso. Eu amo ter<br />

amigos de verdade, e eu amo minha namorada. Eu estou pronto para lutar pelo<br />

que eu amo, seja com os Mogadorians ou com Henri.<br />

- Você sabe que você não vai descer até que eu te faça descer.<br />

- Você está agindo como uma criança.<br />

- Não, eu estou agindo como alguém que está começando a perceber quem é<br />

e o que pode fazer.<br />

- E você vai mesmo me manter aqui?<br />

- Até que eu acabe dormindo ou ficando cansado, mas volto a fazer depois que<br />

descansar um pouco.<br />

- Ótimo. Nós podemos ficar. Com certas condições.<br />

- Quais?


- Me coloque no chão antes.<br />

Abaixo Henri e coloco no chão. Ele me abraça. Eu estou surpreso; achei que<br />

ele ia ficar irritado. Ele me solta e senta no sofá.<br />

- Eu estou orgulhoso do quão longe você foi. Eu passei muitos anos esperando<br />

e preparando para que essas coisas acontecessem, para que os seus Legados<br />

chegassem. Você sabe que a minha vida inteira é dedicada para te manter<br />

seguro, e te fazer forte. Eu nunca me perdoaria se algo acontecesse com você.<br />

Se você morresse sob os meus cuidados, eu não teria certeza de como<br />

seguiria em frente. Uma hora os Mogadorians vão nos encontrar, eu quero<br />

estar preparado quando eles chegarem. Não acho que você já esteja, mesmo<br />

que você ache que sim. Você ainda tem um longo caminho pela frente. Nós<br />

podemos ficar aqui, por enquanto, se você concordar que o treino vem<br />

primeiro. Antes de Sarah, antes de Sam, antes de tudo. E que no primeiro sinal<br />

deles estarem por perto, ou estarem no nosso rastro, nós vamos embora, sem<br />

perguntas, sem brigas, sem me fazer levitar até o teto e me manter lá.<br />

- Fechado. - eu digo, e sorrio.<br />

Capítulo 22<br />

O INVERNO CHEGOU CEDO E COM TODA A FORÇA em Paraíso, Ohio.<br />

Primeiro veio o vento, depois o frio, e então a neve. Era bem suave no começo,<br />

mas em seguida surgiram verdadeiras nevascas, enterrando toda a cidade a<br />

ponto do barulho irritante dos tratores ser tão presente quanto o próprio vento,<br />

que deixa neve salpicada em todo lugar. A escola está cancelada por dois dias.<br />

A neve perto das estradas vai da cor branca até a preta bem escura e,<br />

eventualmente, acaba derretendo e formando poças de lama que se recusam a<br />

secar. Henri e eu passamos o tempo livre treinando, às vezes dentro de casa,<br />

às vezes fora. Já consigo fazer malabarismo com três bolas sem tocá-las, o<br />

que significa que posso levantar mais de um objeto ao mesmo tempo. Agora<br />

também já consigo levantar as coisas maiores e mais pesadas, como a mesa<br />

da cozinha, o trator que Henri comprou na semana passada e a nossa nova<br />

caminhonete, que é exatamente igual à antiga e à milhões de outras picapes<br />

espalhadas pela América. Se eu consigo levantar fisicamente, usando o meu<br />

corpo, então eu posso levantar com a minha mente. Henri acredita que<br />

eventualmente a força da mente irá ultrapassar a do corpo.<br />

No quintal as árvores ficam em volta de nós como vigias, seus galhos<br />

congelados como se fossem de vidro, e uma boa quantidade de neve<br />

acumulada sobre cada uma. A neve está batendo nos nossos joelhos, a não<br />

ser no pequeno pedaço que Henri limpou. Bernie Kosar fica assistindo da


varanda de trás. Ele não está nem um pouco de interessado em se misturar<br />

com a neve.<br />

- Você tem certeza, Henri? – eu pergunto.<br />

- Você precisa aprender a lidar com isso de todos os modos. – ele diz. Sobre<br />

seu ombro, assistindo agitado de curiosidade, está Sam. É a primeira vez que<br />

ele vai me ver treinando.<br />

- Por quanto tempo vai ficar pegando fogo? – pergunto.<br />

- Não sei.<br />

Estou vestindo uma espécie de traje altamente inflamável feito na maior parte<br />

por fibras naturais enchBaúdas em óleos, alguns deles vão queimando<br />

lentamente, outros não. Quero que jogue fogo de uma vez só para me livrar<br />

desses cheiros que estão fazendo meus olhos encherem de água. Eu respiro<br />

fundo.<br />

- Está pronto? – ele pergunta.<br />

- Tão pronto quanto sempre vou estar.<br />

- Não respire. Você não é imune nem à fumaça nem ao gás, se respirar vai<br />

queimar seus órgãos internos.<br />

- Isso é meio ridículo, não faz sentido. – eu digo.<br />

- É parte do seu treinamento. Saber agir sob pressão. Você tem que aprender a<br />

fazer várias coisas enquanto estiver pegando fogo.<br />

- Mas por quê?<br />

- Porque quando chegar a hora de lutar, o número deles vai ser bem maior. O<br />

fogo vai ser um dos seus grandes aliados na guerra. Você precisa aprender a<br />

lutar pegando fogo.<br />

- Ugh.<br />

- Se der errado, você pula na neve e rola.<br />

Olha para Sam, um sorriso se espalha no rosto dele. Ele está segurando um<br />

extintor de fogo vermelho nas mãos, caso seja necessário.<br />

- Eu sei. – eu digo.<br />

Todos nós ficamos em silêncio esperando Henri se entender com os fósforos.<br />

- Tá parecendo o Pé-grande vestindo essa coisa. – Sam diz.<br />

- Vai pastar, Sam.


- Vamos lá. – Henri diz.<br />

Respiro fundo pouco antes dele tocar com o fósforo no traje. O fogo se espalha<br />

pelo meu corpo. Não é muito fácil continuar com os olhos abertos, mas fico<br />

mesmo assim. As chamas sobem até quase três metros acima de mim. O<br />

mundo inteiro fica envolvido em tons fortes de laranja, vermelho e amarelo que<br />

dançam no meu campo de visão. Sinto o calor, mas apenas de leve como se<br />

sentisse os raios de sol em um dia de verão. Nada mais.<br />

- Vai! – Henri berra.<br />

Abro os braços, esticando para cada lado do corpo, olhos bem abertos, ar<br />

preso. É como se eu estivesse flutuando. Entro na neve profunda que logo<br />

começa a chiar derretendo embaixo de meus pés, um leve vapor sobe<br />

enquanto eu ando. Estendo a mão direita para frente e levanto um bloco de<br />

cimento, parece mais pesado do que o normal. Isso é por que não estou<br />

respirando? Por causa do nervosismo com o fogo?<br />

- Não perca tempo! – Henri berra.<br />

Arremesso o mais forte que eu posso contra uma árvore morta a uns quinze<br />

metros. O impacto forte faz com que ela quebre em milhões de pequenos<br />

pedaços, deixando uma mBaú na madeira. Depois levanto três bolas de tênis<br />

enchBaúdas de gasolina. Faço com que elas girem no ar, uma após a outra.<br />

Trago elas na minha direção. Ela pegam fogo e eu continuo fazendo<br />

malabarismo com elas – enquanto isso, levanto um cabo de vassoura longo e<br />

fino. Fecho os olhos. Meu corpo está esquentando. Me pergunto se estou<br />

suando. Se estiver, o suor deve estar evaporando no instante em que alcança<br />

a superfície da minha pele.<br />

Cerro os dentes e abro os olhos. Impulsiono meu corpo para frente e direciono<br />

todo o meu poder no centro da vassoura. Ela explode, partindo-se em<br />

pequenos pedaços. Não deixo nenhuma deles cair no chão; em vez disso, os<br />

mantenho flutuando, todos juntos parecendo uma nuvem de pó. Trago até mim<br />

e deixo queimar. A madeira estourando através da luz trêmula e do zumbido<br />

das chamadas. Forço os pedaços a se juntarem novamente em uma<br />

compactada lança de fogo, parece algo que saiu direto das profundezas do<br />

inferno.<br />

- Perfeito! – Henri berra.<br />

Um minuto passa. Meus pulmões começam a queimar por causa do fogo, por<br />

causa da falta de ar. Coloco tudo o que eu sou na lança e arremesso com tanta<br />

força que ela dispara através do ar como uma bala e acerta uma árvore, umas<br />

cem faíscas voam se espalhando por tudo em volta e, quase que na hora, se<br />

extinguem. Eu esperava que a árvore morta pegasse fogo, mas não aconteceu.


Eu também deixei cair as bolas de tênis. Elas estão chiando na nevem a uns<br />

dois metros de mim.<br />

- Esqueça as bolas. – Henri berra. – A árvore. Pegue a árvore.<br />

A árvore morta é meio bizarra, seu tronco retorcido faz uma sombra contra o<br />

mundo de branco ao redor. Fecho os olhos. Não posso prender por muito mais<br />

tempo a respiração. Frustração e raiva começam a crescer, abastecidos pelo<br />

fogo, pelo desconforto da roupa e os objetivos que eu não completei. Foco em<br />

um grande galho que sai do tronco da árvore e tento quebrá-lo, mas não solta.<br />

Eu cerro os dentes com as sobrancelhas franzidas, finalmente escuto um<br />

estalo, soando através do ar como um tiro de espingarda, e o galho dispara até<br />

mim. Seguro. Queime, penso. Ele deve ter uns seis metros de comprimento.<br />

Finalmente pega fogo e eu faço subir uns doze ou quinze metros no ar acima<br />

de mim e, sem tocar, faço ir direto para o chão como se estivesse cravando a<br />

minha bandeira como algum guerreiro do Tempo Antigo no topo de uma colina<br />

depois de vencer a guerra. O galho balança para frente e para trás fumegando,<br />

chamas dançando ao longo da metade mais alta. Eu abro minha boca e<br />

instintivamente respiro, as chamas se precipitam para dentro; em um instante a<br />

queimação se espalha por todo lugar dentro de mim. Eu estou tão chocado e<br />

dói tanto que eu não sei o que fazer.<br />

- A neve! A neve! – Henri berra.<br />

Mergulho de cabeça e começo a rolar. O fogo vai embora quase que<br />

imediatamente, mas continuo rolando e tudo o que eu escuto é o chiado da<br />

neve contra o meu traje esfarrapado enquanto fios de vapor e fumaça sobem<br />

de mim. Sam finalmente consegue fazer o extintor funcionar e descarrega<br />

sobre mim um pó grosso que só me deixa com mais dificuldade de respirar.<br />

- Não. – eu berro.<br />

Ele para. Eu fico deitado tentando respirar, mas cada inalação traz uma dor nos<br />

pulmões que repercute por todo o meu corpo.<br />

- Droga, John. Não era pra você respirar. – Henri diz, em pé sobre mim.<br />

- Foi sem querer.<br />

- Você está bem? – Sam pergunta.<br />

- Meus pulmões estão queimando.<br />

Tudo está embaçado, difícil de enxergar, mas devagar o mundo começa a<br />

entrar em foco. Continuo deitado lá, olhando para o céu cinza e os flocos de<br />

neve que caem tristemente sobre nós.<br />

- Como eu fui?


- Nada mal para a primeira vez.<br />

- Nós vamos fazer isso de novo, não vamos?<br />

- Às vezes, sim.<br />

- Isso foi louco, muito bom. – Sam diz.<br />

Eu suspiro, depois tento respirar fundo, o ar vem com dificuldade. – Isso foi<br />

uma droga.<br />

- Você foi bem para a sua primeira vez. – Henri diz. – Você não pode esperar<br />

que tudo aconteça com facilidade.<br />

Deitado no chão, eu concordo. Fico deitado lá por mais um ou dois minutos e<br />

depois Henri estende a mão e me ajuda a levantar, finalizando o nosso dia de<br />

treinamento.<br />

Acordo no meio da noite dois dias depois, 2:27 no relógio. Posso ouvir Henri<br />

trabalhando na mesa da cozinha. Me arrasto para fora da cama e saio do<br />

quarto. Ele está debruçado sobre um documento, usando óculos bifocais e<br />

segurando uma espécie de selo com pinças. Ele olha para mim.<br />

- Está fazendo o que? – eu pergunto.<br />

- Criando documentos para você.<br />

- Pra que?<br />

- Fique pensando sobre você e o Sam tendo que ir me buscar dirigindo. Acho<br />

que é uma bobeira nossa continuar usando a sua idade real enquanto nós<br />

podemos mudar facilmente de acordo com as nossas necessidades.<br />

Pego a certidão de nascimento que já está pronta. O nome escrito é James<br />

Hughes. A data de nascimento me faz um ano mais velho. Eu estaria com<br />

dezesseis e poderia dirigir. Então eu me inclino e olho o para o que ele está<br />

criando. O nome escrito é JobieGrey, dezoito anos, legalmente adulto.<br />

- Por que nós não pensamos nisso antes? – eu pergunto.<br />

- Nós nunca tivemos um motivo para fazer.<br />

Papeis de diferentes formas, tamanhos e densidades estão espalhados pela<br />

mesa, uma grande impressora ao lado. Há vidros de tinta, selos de borracha,<br />

selos oficiais e coisas de metal que parecem placas, várias ferramentas que


parecem pertencer a um consultório de dentista. O processo de criação sempre<br />

serão obscuros para mim.<br />

- Nós vamos mudar minha idade agora?<br />

Henri balança a cabeça. – É tarde demais para mudar a sua idade em Paraíso.<br />

Esses são mais para o futuro. Quem sabe o que vai acontecer que vai dar a<br />

você razão para usá-los.<br />

A ideia de ter que me mudar no futuro me deixa enjoado. Eu preferiria continuar<br />

para sempre com quinze anos e sem poder dirigir do que mudar para um novo<br />

lugar.<br />

Sarah volta do Colorado uma semana antes do Natal. Não a vejo faz oito dias.<br />

Parece um mês para mim. A van vai deixar todas as garotas na escola e uma<br />

das amigas dela vai dar carona direto para cá. Quando escuto os pneus vindo<br />

pela estrada eu vou encontra-la com um abraço e um beijo, levantando-a do<br />

chão e girando no ar. Ela esteve dentro do avião e depois de um carro pelas<br />

últimas dez horas, está vestindo uma calça de moletom, não está usando<br />

maquiagem e o cabelo está preso em um rabo de cabelo, ainda assim é a<br />

garota mais linda que eu já vi e não quero deixa-la ir embora. Fitamos um o<br />

olho do outro sob o luar e tudo o que nós fazemos é sorrir.<br />

- Sentiu falta de mim? – ela pergunta.<br />

- Cada segundo de cada dia.<br />

Ela beija a ponta do meu nariz.<br />

- Também senti sua falta.<br />

- Então agora os animais tem um abrigo novamente? - pergunto.<br />

- Ah, John, foi maravilhoso! Você tinha que estar lá. Havia umas trinta pessoas<br />

ajudando todas as vezes, todo o tempo. O prédio ficou em pé tão rápido e está<br />

muito melhor do que antes. Nós também construímos uma dessas árvores para<br />

gatos em um dos cantos, e eu juro o que durante o tempo inteiro que estivemos<br />

lá, havia gatos brincando nela.<br />

Eu sorrio. – Parece ótimo. Também queria ter estado lá.<br />

Pego a mala dela e nós entramos juntos na casa.<br />

- Onde está Henri? – ela pergunta.


- Foi comprar alguma coisa pra comer. Eles saiu há dez minutos mais ou<br />

menos.<br />

Ela se adianta pela sala de estar e deixa o casaco na parte de trás de uma<br />

cadeira a caminho do meu quarto. Ela senta na ponta da minha cama e tira os<br />

sapatos.<br />

- O que você acha que nós deveríamos fazer? – ela pergunta.<br />

Fico lá, olhando para ela. Ela está vestindo um suéter vermelho de capuz com<br />

um zíper descendo na frente, está fechado só até a metade. Ela sorri e olha<br />

para mim pelo alto dos olhos.<br />

- Vem aqui. - ela diz, e estica as mãos para mim.<br />

Eu vou até lá e ela segura minha mão nas delas. Ela olha para mim e aperta os<br />

olhos por causa da luz no alto. Eu estalo os dedos com a minha mão livre e a<br />

luz apaga.<br />

- Como você fez isso?<br />

- Mágica. – eu digo.<br />

Eu sento junto a ela. Ela coloca uns fios de cabelo soltos por trás da orelha,<br />

depois se inclina e me beija no rosto. E então ela segura o meu queixo, me<br />

puxa para mais perto e me beija outra vez, de um modo suave, delicado. Meu<br />

corpo inteiro formiga em resposta. Ela se afasta, a mão ainda no meu rosto. Ela<br />

traça a minha sobrancelha com o polegar.<br />

- Eu realmente senti falta de você. – ela diz.<br />

- Eu também.<br />

Um momento de silêncio passa. Sarah morde o lábio inferior.<br />

- Mal podia esperar para chegar aqui. – ela diz. – Durante o tempo inteiro que<br />

eu estive no Colorado, eu só conseguia pensar em você. Mesmo quando eu<br />

estava brincando com os animais, eu estava desejando que você estivesse lá<br />

comigo brincando com eles. E quando nós finalmente fomos embora essa<br />

manhã, a viagem foi um inferno mesmo que cada quilômetro que passássemos<br />

fosse outro quilômetro mais perto de você.<br />

Ela sorri, fazendo isso mais com os olhos do que com os lábios, que se movem<br />

só um pouco, sem nem mostrar os dentes. Ela me beija outra vez, um beijo que<br />

começa de um modo lento e demorado e depois vai em frente. Nós dois<br />

estamos sentados na ponta da cama, a mão dela no meu rosto, a minha na<br />

parte de baixo das costas dela. Eu posso sentir os contornos firmes abaixo das<br />

pontas dos meus dedos, posso sentir o gloss de morango nos lábios dela. Eu a<br />

puxo para mim. Sinto como se não pudesse chegar perto o suficiente mesmo


que nossos corpos estejam pressionados um contra o outro. Minhas mãos<br />

percorrem as costas dela, a pele lisa como porcelana. As mãos dela<br />

entrelaçadas no meu cabelo, nós dois respiramos pesadamente. Nós caímos<br />

de lado na cama. Nossos olhos fechados. Eu fico abrindo os meus para vê-la.<br />

O quarto está escuro a não ser pela luz da lua que entra pelas janelas. Ela me<br />

pega olhando e para o beijo. Encosta a testa na minha e olha para mim.<br />

Ela coloca a mão na minha nuca e me puxa, tudo de uma vez e nós voltamos a<br />

nos beijar. Envolvidos. Unidos. Nossos braços apertados em volta do outro.<br />

Minha mente livre de qualquer praga que costumam visita-la e de cada<br />

pensamento sobre os outros planetas, minha mente livre da caçada e da<br />

perseguição dos Mogadorians. Sarah e eu na cama nos beijando, nos<br />

desmanchando um no outro. Nada mais no mundo importa.<br />

E então a porta abre na sala de estar. Nós dois damos um pulo.<br />

- Henri chegou. – eu digo.<br />

Levantamos e começamos a desamassar a roupa com pressa, sorrindo, um<br />

segredo compartilhado entre nós que nos faz rir enquanto caminhamos para<br />

fora do quarto de mãos dadas. Henri está colocando um saco do que comprou<br />

na mesa da cozinha.<br />

- Oi, Henri. – Sarah diz.<br />

Ele sorri para ela. Ela solta a minha mão e vai até lá abraçá-lo, depois começa<br />

a falar sobre a viagem para o Colorado. Eu vou lá fora pegar o resto das<br />

compras. Respiro o ar gelado, tento sacudir para fora do meu corpo a tensão<br />

do que acabou de acontecer, e o desapontamento por Henri chegar em casa<br />

justo agora. Minha respiração ainda está pesada quando pego o resto das<br />

coisas e as carrego para casa. Sarah está dizendo a Henri sobre alguns gatos<br />

que estavam no abrigo.<br />

- E você não trouxe um deles para nós?<br />

- Ah, Henri, você sabe que eu ficaria feliz em trazer um deles se você tivesse<br />

me dito. – Sarah diz, com os braços cruzados na frente do peito com o quadril<br />

levemente inclinado para o lado.<br />

Ele sorri para ela. – Eu sei que você teria feito.<br />

Henri fica guardando as coisas e eu e Sarah vamos para o ar frio lá fora para<br />

caminhar antes que a mãe dela venha busca-la. Bernie Kosar vem com a<br />

gente. Ele pega a liderança e corre na frente. Sarau e eu de mãos dadas,<br />

andando através do quintal, a temperatura pouco acima de congelar. A neve<br />

derretendo, o chão molhado e lamacento. Bernie Kosar desaparece por um


tempo nas árvores e depois volta correndo. A parte de baixo do corpo toda<br />

suja.<br />

- Que horas sua mãe vem? – eu pergunto.<br />

Ela olha o relógio. – Vinte minutos.<br />

Eu aceno com a cabeça. – Eu estou tão feliz que você voltou.<br />

- Eu também.<br />

Nós vamos até a extremidade das árvores, mas está muito escuro para entrar.<br />

Em vez disso nós andamos pelo perímetro do quintal, de mãos dadas,<br />

ocasionalmente parando para trocar beijos testemunhados pelas estrelas e a<br />

lua. Nenhum de nós fala sobre o que acabou de acontecer, mas é óbvio que<br />

não sai da nossa cabeça. Quando damos a primeira volta a mãe de Sarah<br />

entra na rua. Ela está adiantada dez minutos. Sarah corre para abraçá-la. Vou<br />

dentro de casa buscar a mala de Sarah. Depois nós nos despedimos e eu vou<br />

caminhando até a estrada para assistir as luzes de trás do carro sumirem na<br />

distância. Fico em pé do lado de fora por um tempo e depois Bernie Kosar e eu<br />

voltamos para dentro. Henri está no meio da preparação do jantar. Dou um<br />

banho no cachorro. Quando termino o jantar está pronto.<br />

Sentamos na mesa e comemos, nem uma palavra sendo dita. Não consigo<br />

parar de pensar nela. Olho desinteressadamente para o meu prato. Não estou<br />

com fome, mas tento forçar a comida abaixo de qualquer forma. Dou um jeito<br />

de dar algumas mordidas, depois empurro o prato para frente e fico sentado lá<br />

em silêncio.<br />

- Então você vai me dizer? – Henri pergunta.<br />

- Dizer o que?<br />

- O que você está pensando.<br />

Dou de ombros. – Eu não sei.<br />

Ele assente e volta a comer. Eu fecho os olhos. Ainda posso sentir o cheiro de<br />

Sarah no colarinho da minha camisa e ainda posso sentir a mão dela no meu<br />

corpo. Os lábios nos meus, a textura do cabelo dela quando eu passo a mão.<br />

Tudo o que eu consigo pensar é sobre o que ela deve estar fazendo, e como<br />

eu queria que ela ainda estivesse aqui.<br />

- Você acha que nós podemos ser amados? – pergunto.<br />

- Do que você está falando?<br />

- Pelos humanos. Você acha que nós podemos ser amados, tipo, amados de<br />

verdade por eles?


- Acho que eles podem nos amar como amam uns aos outros, especialmente<br />

se eles não sabem o que nós somos, mas não acho possível que um humano<br />

ame do modo que você poderia amar um Loric. – ele diz.<br />

- Por quê?<br />

- Porque lá no fundo nós somos diferentes deles. E nós amamos diferente. Um<br />

dos dons que o nosso planeta nos deus foi amar completamente. Sem ciúme,<br />

insegurança ou medo. Sem mesquinharia. Sem raiva. Você pode ter<br />

sentimentos fortes por Sarah, mas não são o que você poderia sentir por uma<br />

garota Loric.<br />

- Não há muitas garotas Loric disponíveis para mim.<br />

- Mais uma razão para ser cuidadoso com Sarah. Em algum ponto, se nós<br />

durarmos o bastante, vamos precisar restaurar a nossa raça e povoar<br />

novamente o nosso planeta. Obviamente você ainda está longe de se<br />

preocupar com isso, mas eu não contaria com Sarah como a sua parceira.<br />

- O que acontece se a gente tentar ter filhos com humanos?<br />

- Já aconteceu muitas vezes antes. Normalmente isso resulta em humanos<br />

excepcionais e dotados. Na verdade, algumas das grandes figuras nas<br />

histórias da Terra foram produto entre humanos e os Loric, incluindo Buddha,<br />

Aristóteles, Julius Cesar, Alexandre - o Grande, Genghis Khan, Leonardo da<br />

Vinci, Isaac Newton, Thomas Jefferson e Albert Einstein. Muitos dos antigos<br />

deuses gregos, que a maioria das pessoas acreditaram ser mitológicos, foram<br />

na verdade filhos de humanos com Loric, principalmente porque era muito mais<br />

comum naquela época nós estarmos nesse planeta porque estávamos<br />

ajudando a desenvolver as civilizações. Afrodite, Apolo, Hermes e Zeus foram<br />

todos reais, e tinham um parente Loric.<br />

- Então é possível.<br />

- Isso era possível. Na nossa situação atual é impulsivo e impraticável. Na<br />

realidade, eu não sei o número dela, ou tenho ideia alguma de onde ela está,<br />

uma das crianças que vieram à Terra com a gente era a filha de um dos<br />

melhores amigos dos seus pais. Eles costumavam brincar que vocês dois iam<br />

terminar juntos. Eles deviam estar certos.<br />

- Então o que eu faço?<br />

- Aproveita o tempo com Sarah, mas não fique muito preso a ela, e não deixe<br />

que ela fique muito presa a você.<br />

- Sério?


- Confie em mim, John. Se você nunca acreditou em outra palavra que eu<br />

disse, então acredite nessa.<br />

- Eu acredito nas palavras que você diz mesmo que eu não queira.<br />

Henri pisca pra mim. – Muito bom. – ele diz.<br />

Depois eu vou para o meu quarto e ligo para Sarah. Penso sobre o que Henri<br />

me disse antes de fazer isso, mas não há muito que eu possa fazer. Eu estou<br />

preso a ela. Acho que estou apaixonado por ela. Nós conversamos por duas<br />

horas. É meia noite quando a ligação termina. Então eu deito na cama sorrindo<br />

para a escuridão.<br />

Capítulo 23<br />

O DIA SE TORNOU ESCURO. A NOITE QUENTE carrega um vento suave e<br />

em todo o céu se espalham aleatórios flashes de luz, as nuvens ganhando tons<br />

brilhantes de azul, vermelho e verde. Fogos de artifício no começo. Fogos de<br />

artifícios que precedem algo mais, algo mais barulhento, mais ameaçador, os<br />

oohs e aahs viram berros agudos e gritos. O caos se instala. Pessoas<br />

correndo, crianças chorando. Eu, em pé em meio a tudo isso, assistindo sem o<br />

benefício de poder fazer algo para ajudar. Os soldados e bestas começam a<br />

surgir na cena de todas as direções como eu já vi acontecer, o contínuo cair de<br />

bombas com estrondos tão altos que machucam os ouvidos, os ecos que eu<br />

sinto até dentro do estômago. É tão atordoante que faz meus dentes doerem. E<br />

depois os lorics reagem com tanta intensidade, com tanta coragem, que me<br />

sinto orgulhoso por estar entre eles, por ser um deles.<br />

Então eu vou embora, sendo arrastado através do ar em uma velocidade que<br />

faz o mundo embaixo passar como um borrão de modo que eu não consigo<br />

focar em nada. Quando paro novamente, estou em pé em uma pista de<br />

decolagem de qualquer aeroporto. Um nave prata está a cinco metros de mim<br />

e quatorze ou mais pessoas estão subindo a rampa para a entrada. Duas<br />

pessoas já estão lá dentro, paradas na porta olhando para o céu, uma garota<br />

muito nova e uma mulher da idade de Henri. Um Henri muito mais jovem do<br />

que agora está perto de mim. Ele também está olhando para o céu. Abaixada<br />

de joelhos na minha frente está minha avó, apertando os meus ombros. Meu<br />

avô em pé atrás dela, o rosto sério, distraído, as lentes dos óculos dele<br />

refletindo as luzes do céu.<br />

- Volte para nós, ouviu? Volte para nós. – minha avó diz, terminando o que<br />

dizia. Eu queria poder ter ouvido as palavras que vieram antes dessas. Até<br />

agora eu nunca tinha lembrado de nada que tenham falado para mim nessa<br />

noite. Mas agora eu tenho algo. Meu eu de quatro anos não responde. Meu eu<br />

de quatro anos está muito assustado. Ele não entende o que está


acontecendo, por que a urgência e o medo nos olhos de todos a sua volta.<br />

Minha avó me puxa para um abraço e depois solta. Ela levanta e fica de costas<br />

para evitar que eu a veja chorando. Meu eu de quatro anos sabe que ela está<br />

chorando, mas não sabe por que.<br />

Depois é o meu avô, que está coberto de suor, sujeira e sangue. Claramente<br />

esteve lutando, e seu rosto está contorcido de tensão, pronto para lutar mais,<br />

pronto para fazer o que puder no esforço para sobreviver. Ele e o planeta. Ele<br />

abaixa sobre o joelho como a minha avó. Pela primeira vez eu olho em volta.<br />

Montes de metais amassados, blocos de concretos, grandes buracos no chão<br />

onde as bombas caíram. Fogo espalhado, vidro estilhaçado, sujeira, árvores<br />

despedaçadas. E no meio de tudo isso um único nave, ileso, é o que nós<br />

vamos embBaúr.<br />

- Nós temos que ir! – alguém grita. Um homem, cabelos e olhos negros. Eu não<br />

sei quem ele é. Henri olha para ele e assente. As crianças sobem a rampa.<br />

Meu avô me olha com seriedade. Ele abre a boca para falar. Mas antes que as<br />

palavras saiam eu sou arrastado para longe novamente, levado através do ar,<br />

o mundo embaixo passando como um borrão. Eu tento entender o que vejo,<br />

mas estou me movimentando muito rápido. As únicas imagens discerníveis são<br />

das bombas, continuamente caindo, um grande espetáculo de fogo em todas<br />

as cores varrendo o céu da noite e as perpétuas explosões que o ocorrem a<br />

seguir.<br />

Então eu paro outra vez.<br />

Estou dentro de um edifício amplo que eu nunca vi antes. É silencioso. O teto é<br />

em cúpula. O chão é uma grande superfície de concreto do tamanho de um<br />

campo de futebol. Não há janela, mas ainda assim o som das bombas<br />

conseguem penetrar, ecoando nas paredes a minha volta. Bem no meio do<br />

prédio, alto e imponente, sozinho, está um foguete branco que se estende até o<br />

ponto mais alto do teto.<br />

Então uma porta se abre fazendo barulho em um canto distante. Minha cabeça<br />

vira imediatamente para ver. Dois homens entram, agitados, falando alto e<br />

rápido. Um monte de animais vem logo atrás correndo. Quinze, mais ou<br />

menos, mudando de forma toda hora. Voando, correndo, em duas pernas,<br />

depois quatro. No final da fila, está um terceiro homem que fecha a porta ao<br />

passar. O primeiro deles alcança a nave espacial, abre uma espécie de porta<br />

de alçapão na parte inferior da nave, e começa a guiar os animais para dentro.<br />

- Vai! Vai! Subindo e entrando, subindo e entrando. – ele berra.<br />

Os animais vão, todos mudando de forma enquanto entram. Depois que o<br />

último animal passa o homem se impulsiona para dentro. Os outros dois<br />

começam a jogar bolsas e caixas para ele. Leva uns dez minutos para colocar


tudo a bordo. Depois os três se espalham em volta do foguete, preparando-o.<br />

Os homens estão suando, se movendo de um modo frenético até que tudo<br />

fique pronto. Logo antes dos três entrarem no foguete, alguém corre até eles<br />

com um embrulho que parece ser uma criança enrolada, apesar de eu não<br />

conseguir ver bem o bastante para afirmar. Eles pegam seja lá o que for isso e<br />

entram. A porta bate fechando atrás deles e está selada. Os minutos passam.<br />

As bombas agora devem estar bem perto daqui. Vindo de lugar nenhum uma<br />

explosão ocorre dentro do prédio e eu vejo o início do fogo saindo da parte de<br />

baixo do foguete, um fogo que cresce rápido, um fogo que consome tudo<br />

dentro do prédio. Um fogo que consome até a mim.<br />

Meus olhos abrem de repente. Eu estou de volta à minha casa, em Ohio,<br />

deitado na cama. O quarto está escuro, mas eu posso sentir que não estou<br />

sozinho. Uma figura se move, uma sombra passa pela cama. Eu fico rígido,<br />

pronto para acender as minhas mãos, pronto para jogar o que for contra a<br />

parede.<br />

- Você estava falando. – Henri diz. – Agora enquanto estava dormindo, você<br />

estava falando.<br />

Eu acendo as minhas mãos. Ele está em pé próximo à cama, vestindo calças<br />

de pijama e uma camisa branca. O cabelo dele está desgrenhado; os olhos<br />

vermelhos de sono.<br />

- O que eu estava falando?<br />

- Você disse "Subindo e entrando, subindo e entrando". O que estava<br />

acontecendo?<br />

- Eu estava em Lorien.<br />

- Em um sonho?<br />

- Acho que não. Eu estava lá, da mesma forma que antes.<br />

- O que você viu?<br />

Levanto e me ajeito na cama para apoiar as costas contra a parede.<br />

- Os animais. – eu digo.<br />

- Que animais?<br />

- Na nave que eu vi decolar. A antiga, no museu. No foguete que saiu depois<br />

da gente. Eu vi animais serem colocados nela. Não muitos. Quinze, talvez.<br />

Com três outros Loric. Não acho que eles sejam Garde. Há algo mais. Uma<br />

trouxa. Parecia um bebê, mas não posso afirmar.<br />

- Por que você não acha que eles eram Garde?


- Eles colocaram suprimentos no foguete, cinquenta ou mais caixas e malas de<br />

mão. Eles não usaram telecinese.<br />

- No foguete dentro do museu?<br />

- Acho que era o museu. Eu estava dentro de um prédio grande com teto em<br />

cúpula e não tinha nada dentro a não ser a pedra. Eu só posso supor que seja<br />

o museu.<br />

Henri assente. – Se eles trabalhavam no museu, então eles podem mesmo ser<br />

Cêpan.<br />

- Estavam embBaúndo animais. – eu digo. – Animais que podem mudar de<br />

forma.<br />

- Chimæra. – Henri diz.<br />

- Quê?<br />

- Chimæra. Animais de Lorien que podem mudar de forma. Eles eram<br />

chamados de Chimæra.<br />

- Isso é o que Hadley era? – eu pergunto, lembrando da visão eu tive algumas<br />

semanas atrás, a visão de estar brincando no quintal na casa dos meus<br />

anciões quando fui erguido no ar por um homem vestindo um traje azul e prata.<br />

Henri sorri. – Você se lembra do Hadley?<br />

Eu concordo. – Eu vi do mesmo modo que vi todo o resto.<br />

- Está tendo as visões mesmo quando nós não treinamos?<br />

- Às vezes.<br />

- Quão frequente?<br />

- Henri, quem se importa com as visões? Por que eles estavam colocando no<br />

foguete aqueles animais? O que um bebê estava fazendo com eles, ou aquilo<br />

era mesmo um bebê? Onde eles foram? Qual propósito eles poderiam ter?<br />

Henri pensa sobre isso por um momento. Ele troca o peso do corpo para a<br />

perna direita. – Provavelmente o mesmo propósito que nós tínhamos. Pense<br />

sobre isso, John. De que outra forma os animais poderiam repovoar Lorien?<br />

Eles também precisavam ir para alguma espécie de santuário. Tudo foi<br />

destruído. Não apenas pessoas, mas também os animais, e toda vida vegetal.<br />

Talvez a trouxa fosse apenas outro animal. Um frágil, ou talvez um mais novo.<br />

- Bem, onde eles poderiam ir? Que outro santuário existe sem ser a Terra?


- Acho que eles foram para alguma das estações espaciais. Um foguete com o<br />

combustível de Loric poderia ser capaz de chegar a essa distância. Talvez eles<br />

pensaram que a invasão seria por pouco tempo e acharam que poderiam<br />

esperar ali. Quer dizer, eles podem viver na estação espacial por tanto tempo<br />

quando os suprimentos durarem.<br />

- Há estações especiais perto de Lorien?<br />

- Sim, duas delas. Bem, havia duas delas. Eu tenho certeza de que a maior das<br />

duas foi destruída nos mesmo tempo da invasão. Nós perdemos contato com<br />

ela menos de dois minutos depois da primeira bomba cair.<br />

- Por que você não mencionou isso antes, quando eu te disse pela primeira vez<br />

sobre o foguete?<br />

- Eu pensei que estava vazio, que decolou como uma espécie de distração. E<br />

eu acho que se uma estação espacial foi destruída, a outra também foi. A<br />

viagem deles, infelizmente, provavelmente foi em vão, seja lá qual for o seu<br />

objetivo.<br />

- Mas e se eles voltaram quando ficaram sem suprimentos? Você acha que<br />

eles poderiam sobreviver em Lorien? – eu pergunto em desespero. Eu já sei a<br />

resposta, já sei o que Henri vai dizer, mas eu pergunto de qualquer forma<br />

tentando me prender a alguma espécie de esperança de que nós não estamos<br />

sozinhos nisso tudo. Que talvez, em algum lugar bem longe, há outros como<br />

nós, esperando, monitorando o planeta para que eles, também, possam um dia<br />

retornar e nós não estejamos sozinhos.<br />

- Não. Não há água lá agora. Você viu isso. Nada, além de um espaço<br />

devastado e infrutífero. E nada pode sobreviver sem água.<br />

Eu suspiro e escorre de volta para cama. Deixo a cabeça cair no travesseiro.<br />

Qual é o ponto em argumentar? Henri está certo e eu sei disso. Eu mesmo vi<br />

isso. Se os globos que ele tirou do Baú são confiáveis, então Lorien não é nada<br />

mais do que um lugar infrutífero, entulhado. O planeta ainda está vivo, mas na<br />

superfície não há nada. Nem água. Nem plantas. Nem vida. Nada além de<br />

sujeiras e pedras e os restos da civilização que uma vez existiu.<br />

- Você não viu nada mais? – Henri pergunta.<br />

- Eu vi a gente no dia que fomos embora. Todos nós no nave logo antes de<br />

decolar.<br />

- Foi um dia triste.<br />

Eu concordo. Henri cruza os braços e olha através da janela, perdido em<br />

pensamentos. Respiro fundo. – Onde estava a sua família durante tudo isso? –<br />

eu pergunto.


Minhas mãos apagaram por uns bons dois ou três minutos, mas eu posso ver<br />

os brancos dos olhos de Henri me fitando.<br />

- Não comigo, não naquele dia. – ele diz.<br />

Nós dois ficamos em silêncio por um tempo e então Henri muda de posição.<br />

- Bem, vou voltar para cama. – ele diz, finalizando a conversa. – Durma um<br />

pouco.<br />

Depois dele ir embora eu fico deitado pensando nos animais, no foguete, na<br />

família de Henri e em como eu tenho certeza de que ele nunca teve a chance<br />

de se despedir. Eu sei que não vou conseguir voltar a dormir. Eu nunca<br />

consigo quando essas imagens me visitam, quando eu vejo a tristeza de Henri.<br />

Esse deve ser um pensamento constante na cabeça dele, como seria para<br />

qualquer um que foi embora sob as mesmas circunstâncias, deixando a única<br />

casa que você já aconteceu, fazendo isso com a consciência de que nunca<br />

mais verá as pessoas que ama outra vez.<br />

Pego meu celular e mando uma mensagem para Sarah. Eu sempre faço isso<br />

quando eu não consigo dormir, ou ela faz quando é o contrário. Então nós<br />

conversamos pelo tempo que for até ficarmos cansados. Vinte segundo depois<br />

que eu aperto o botão de enviar ela liga.<br />

- Ei, você. – eu atendo.<br />

- Não consegue dormir?<br />

- Não.<br />

- O que foi? – pergunta. Ela boceja do outro lado da linha.<br />

- Só estava sentido a sua falta. Estou deitado na cama olhando o teto faz uma<br />

hora.<br />

- Seu bobo. Você me viu tipo a seis horas atrás.<br />

- Eu queria que você ainda estivesse aqui. – eu digo. Ela geme lamentando. Eu<br />

posso ouvir o sorriso através da escuridão. Fico de lado e seguro o telefone<br />

entre a orelha e o meu travesseiro.<br />

- Bem, eu também queria ainda estar aí.<br />

Nós conversamos por vinte minutos. Na outra metade da ligação nós apenas<br />

ficamos deitados ouvindo a respiração do outro. Eu me sinto melhor depois de<br />

falar com Sarah, mas acho ainda mais difícil voltar a dormir.<br />

Capítulo 24


PELA PRIMEIRA VEZ, DESDE QUE CHEGAMOS A OHIO, AS COISAS<br />

parecem ficar devagar por um tempo. Escola terminou sem nenhum grande<br />

acontecimento e nós temos onze dias de volta nas férias de inverno. Sam e<br />

sua mãe estão passando grande parte desse tempo visitando uma tia em<br />

Illinois. Sarah ficou em casa. Nós passamos o Natal juntos. Nos beijamos<br />

quando os fogos começaram na meia noite do Ano Novo. Mesmo com a neve e<br />

o frio, ou até para diminuir o efeito disso, nós saímos para uma longa<br />

caminhada na floresta atrás da minha casa, de mãos dadas, nos beijando,<br />

respirando no ar gelado abaixo do céu cinzento do inverno. Estamos passando<br />

mais e mais tempo juntos. Não há um dia que tenha passado durante as férias<br />

que nós não nos encontrávamos pelo menos uma vez.<br />

Nós caminhamos de mãos dadas embaixo de uma espécie de guarda-chuva<br />

branco da neve acumulada sobre os galhos das árvores acima de nós. Ela está<br />

com a câmera e uma hora ou outra para tirando fotos. A maior parte da neve<br />

no chão está intacta a não ser na trilha que nós fizemos andando. Agora nós a<br />

usamos como guia para voltar. Bernie Kosar na frente, avançando aqui e ali em<br />

alguns arbustos, procurando coelhos nos pequenos aglomerados de arbustos<br />

espinhosos, caçando esquilos no alto das árvores. Sarah está usando<br />

protetores de ouvido pretos. Ela está com as bochechas e a ponta do nariz<br />

vermelhos de frio, fazendo com que seus olhos fiquem ainda mais azuis. Fico<br />

olhando para ela.<br />

- O quê? – ela pergunta, sorrindo.<br />

- Estou apenas admirando a vista.<br />

Ela rola os olhos. A floresta na maior parte é densa, mas há uma ou outra<br />

clareira pelas quais nós passamos às vezes. Não tenho certeza de até onde as<br />

árvores vão em qualquer uma das direções, em todas as caminhadas nós<br />

ainda não alcançamos o fim.<br />

- Aposto que aqui é lindo no verão. – Sarah diz. – Nós provavelmente podemos<br />

fazer piquenique nessas clareiras.<br />

Uma dor se forma no meu peito. O verão está ainda a cinco meses de distância<br />

e se Henri e eu estivermos aqui em Maio, fará sete meses que estamos em<br />

Ohio. Isso já é quase o máximo de tempo que ficamos em um lugar.<br />

- Aham. – eu concordo.<br />

Sarah olha para mim. – Quê?<br />

Eu olho pra ela confuso. – O que quer dizer com "que"?


- Isso não foi muito convincente. – ela diz. Uma massa confusa de corvos<br />

passam voando acima de nossas cabeças, guinchando de um modo<br />

barulhento.<br />

- Eu só queria que fosse verão agora.<br />

- Eu também. Eu não acredito que nós vamos ter que voltar para escola<br />

amanhã.<br />

- Ugh, não me lembre disso.<br />

Nós entramos em outra clareira, maior do que as outras, quase que um círculo<br />

perfeito com uns trinta metros de diâmetro. Sarah solta a minha mão, corre<br />

para o meio, e se joga no chão, rindo. Ela rola para ficar de costas e começa a<br />

fazer um anjo de neve. Eu caio perto dela e faço o mesmo. As pontas dos<br />

nossos dedos mal se tocando enquanto fazemos as asas. Nós levantamos.<br />

- É como se nós estivéssemos segurando as asas. – ela diz.<br />

- Isso é possível? – eu pergunto. – Quer dizer, como a gente poderia voar se<br />

tivesse com as asas presas?<br />

- Claro que é possível. Anjos podem fazer qualquer coisa.<br />

Então ela vira e me abraça. O rosto gelado contra o meu pescoço me faz<br />

entortar o corpo fugindo dela.<br />

- Ahh! Seu rosto parece um gelo.<br />

Ela ri. – Vem me esquentar.<br />

Pego Sarah nos braços e a beijo sob o céu aberto, as árvores nos cercando.<br />

Não há sons, a não ser dos pássaros e do ocasional monte de neve que cai de<br />

um dos galhos próximos. Dois rostos gelados pressionados com força juntos.<br />

Bernie Kosar vem trotando, ofegante, língua pendurada, rabo balançando. Ele<br />

late e senta na neve nos olhando, a cabeça meio virada para o lado.<br />

- Bernie Kosar! Você estava caçando coelhos? – Sarah pergunta.<br />

Ele late duas vezes, sai correndo e pula nela. Late outra vez e depois<br />

abaixando, olhando para cima com expectativa. Ela pega um galho no chão,<br />

sacode para tirar a neve e então arremessa entre as árvores. Ele sai correndo<br />

atrás e desaparece de vista. Dez segundos depois ele surge entre as árvores,<br />

mas em vez de retornar por onde saiu, ele está do lado oposto. Sarah e eu<br />

viramos para vê-lo.<br />

- Como ele fez isso? – ela pergunta.<br />

- Não sei. – eu digo. – Ele é um cachorro peculiar.


- Você ouviu isso, Bernie Kosar? Ele acabou de te chamar de peculiar!<br />

Ele deixa o galho nos pés dela. Nós caminhamos de volta na direção de casa,<br />

de mãos dadas, o dia já está próximo de escurecer. Bernie Kosar trota perto de<br />

nós durante todo o caminho, a cabeça virando de um lado para o outro como<br />

se estivesse nos guiando de volta, nos mantendo salvos seja lá do que poderia<br />

ou não se esconder na escuridão além do nosso campo de visão.<br />

Cinco jornais estão empilhados na mesa da cozinha, Henri no seu computador,<br />

a luz do teto acesa.<br />

- Alguma coisa? – pergunto por hábito, nada mais. Não há uma história que<br />

promete há meses, o que é uma coisa boa, mas não consigo deixar de esperar<br />

por algo toda vez que eu pergunto.<br />

- Pra falar a verdade, sim, acho que sim.<br />

Eu fico agitado e dou a volta na mesa para olhar por cima do ombro de Henri e<br />

ver o que tem na tela do computador. – O quê?<br />

- Houve um terremoto na Argentina ontem à noite. Uma garota de dezesseis<br />

anos resgatou um homem idoso de uma pila de destroços em uma pequena<br />

cidade perto da costa.<br />

- Número Nove?<br />

- Bem, eu certamente acho que ela é uma de nós. Se ela é a Número Nove ou<br />

não, não dá para dizer.<br />

- Por quê? Não há nada extraordinário em tirar um homem do meio de<br />

destroços.<br />

- Olhe. – Henri diz, e rola a página para o início do artigo. Há uma foto de uma<br />

grande placa de concreto que tem pelo menos trinta centímetros de espessura<br />

e três metros de comprimento e largura. – É isso o que ela levantou para salválo.<br />

Deve pesar umas cinco toneladas. E olhe isso, - ele diz, e rola para a parte<br />

de baixo da página. Seleciona a última frase. Está escrito: “Sofia García não foi<br />

encontrada para comentar”.<br />

Leio a sentença três vezes. – Ela não pôde ser encontrada. – eu digo.<br />

- Exatamente. Ela não negou se negou a comentar; ela simplesmente não foi<br />

encontrada.<br />

- Como eles sabem o nome dela?


- É uma cidade pequena, menos de um terço do tamanho de Paraíso. Quase<br />

todo mundo poderia saber o nome dela.<br />

- Ela foi embora, não foi?<br />

Henri assente. – Acho que sim. Provavelmente antes do jornal ser publicado.<br />

Esse é o lado ruim das cidades pequenas; é impossível permanecer<br />

despercebido.<br />

Eu suspiro. – Também é difícil para os Mogadorians ficarem despercebidos.<br />

- Precisamente.<br />

- Que droga pra ela. – eu digo, e levanto. – Vai saber o que ela pode ter<br />

deixado para trás.<br />

Henri me olha com uma expressão cética, abre a boca para dizer algo, mas<br />

então pensa melhor e volta para o computador. Eu vou para o meu quarto.<br />

Arrumo minha mochila com uma muda nova de roupas e os livros que vou<br />

precisar para o dia. De volta à escola. Não estou muito ansioso, mas vai ser<br />

legal ver Sam outra vez, faz uma semana que nós não nos encontramos.<br />

- Tudo bem. – eu digo. – Estou indo.<br />

- Tenha um bom dia. Tome cuidado.<br />

- Vejo você à tarde.<br />

Bernie Kosar sai correndo da casa na minha frente. Ele está uma bola de<br />

energia essa manhã. Acho que ele estava ansioso para nossas corridas da<br />

manhã, o fato de nós não fazermos isso há uma semana e meia o deixou louco<br />

de vontade para voltar. Ele consegue me acompanhar durante a maior parte.<br />

Quando chegamos, faço carinho nele e coço atrás de suas orelhas.<br />

- Pronto, garoto, vai pra casa. – eu digo. Ele vira e começa a trotar de volta.<br />

Vou tomar o meu banho. Quando termino os outros estudantes estão<br />

começando a chegar. Vou para o corredor, paro no meu armário, depois vou<br />

até o de Sam. Dou um tapa nas costas dele. Ele se assusta, mas abre um<br />

grande sorriso ao ver que sou eu.<br />

- Por um segundo pensei que eu ia ter que chutar alguém. – ele diz.<br />

- Foi apenas eu, meu amigo. Como foi em Illinois?<br />

- Ugh. – ele diz, e rola os olhos. – Minha tia me fez beber chá e assistir reprises<br />

de Os Pioneiros quase que todo dia.<br />

Eu rio. – Isso soa terrível.


- E foi, confie em mim. – ele diz, e pega algo na mochila. – Isso estava na caixa<br />

de correio quando eu voltei.<br />

Ele me entrega a última edição de Eles Estão Entre Nós. Começo a folhear.<br />

- Não há nada sobre nós ou os Mogadorians. – ele diz.<br />

- Bom. – eu digo. – Eles devem estar com medo da gente depois de você<br />

passar lá.<br />

- Aham, é claro.<br />

Por cima do ombro de Sam eu vejo Sarah vindo na nossa direção. Mark James<br />

a interrompe no meio do caminho e entrega a ela algumas folhas de papel<br />

laranja. Depois ela continua o caminho.<br />

- Oi, gata. – eu digo quando ela nos alcança. Ela fica na ponta dos pés para me<br />

beijar. Os lábios delas tem gosto do brilho labialde morango.<br />

- Oi, Sam. Como você está?<br />

- Bem, e você? – ele responde. Agora parece estar mais tranquilo com ela.<br />

Antes do incidente com Henri, que foi a um mês e meio atrás, estar na<br />

presença de Sarah o teria feito ficar desconfortável, e ele não seria capaz de<br />

fitar os olhos dela ou saber o que fazer com as mãos. Agora ele olha para ela e<br />

sorri, falando com confiança.<br />

- Ótima. – ela diz. – Me falaram para dar a vocês dois isso.<br />

Ela nos entrega duas das folhas laranja que Mark acabou de dar a ela. É um<br />

convite para uma festa no próximo sábado à noite na casa dele.<br />

- Eu estou convidado? – Sam pergunta.<br />

Sarah assente. – Nós três estamos.<br />

- Você quer ir? – eu pergunto.<br />

- Acho que a gente podia passar lá.<br />

Eu concordo. – Está interessado, Sam?<br />

Ele olha para algo atrás de Sarah e de mim. Eu viro para ver para onde ele<br />

está olhando, ou melhor, para quem. Em um armário do outro lado do corredor<br />

está Emily, a garota que estava no Halloween com a gente, e quem Sam tem<br />

desejado desde então. Quando ela passa vê que Sam está olhando e sorri<br />

educadamente.<br />

- Emily? – eu falo para Sam.


- Emily o que? – Sam pergunta, olhando para mim.<br />

Olho para Sarah. – Acho que Sam gosta de Emily Knapp.<br />

- Eu não gosto. – ele diz.<br />

- Eu poderia chamar ela para ir na festa com a gente. – Sarah diz.<br />

- Você acha que ela iria? – Sam pergunta.<br />

Sarah olha para mim. – Bem, talvez eu não deva convidar já que Sam não<br />

gosta dela.<br />

Sam sorri. – Tá, tá bom. Eu só, eu não sei.<br />

- Ela fica perguntando por que você nunca ligou depois do Halloween. Ela meio<br />

que gosta de você.<br />

- Isso é verdade. – eu digo. – Eu escutei ela dizer isso.<br />

- Por que você não me disse? – Sam pergunta.<br />

- Você nunca perguntou.<br />

Sam olha para o flyer que está segurando. – Então é nesse sábado?<br />

- Sim.<br />

Ele olha para mim. – Então nós vamos.<br />

Dou de ombros. – Estou dentro.<br />

Henri está me esperando quando o último sinal toca. Como sempre, Bernie<br />

Kosar está no assento de passageiro e quando ele me vê, seu rabo começa a<br />

balançar uns duzentos quilômetros por hora. Pulo para dentro da caminhonete.<br />

Henri passa a marcha e começa a dirigir para casa.<br />

- Há um artigo de continuação daquele sobre a garota na Argentina. – Henri<br />

diz.<br />

- E?<br />

- Apenas um pequeno artigo dizendo que ela desapareceu. O prefeito da<br />

cidade está oferecendo uma modesta recompensa pela informação de onde ela<br />

se encontra. Parece que eles acreditam que ela foi sequestrada.<br />

- Você está preocupado de os Mogadorians terem chegado à ela primeiro?<br />

- Se ela é a Nove, como a nota que nós encontramos indicava, e os<br />

Mogadorians a estavam rastreando, ela ter desaparecido é uma boa coisa. E


se ela foi capturada, os Mogadorians não podem matá-la - eles não podem<br />

nem machucá-la. O que nos dá esperança. A coisa boa, fora a notícia em si, é<br />

que eu imagino que cada Mogadorian do planeta tenha ido para a Argentina.<br />

- Falando nisso, Sam estava com a última edição de Eles Estão Entre Nós<br />

hoje.<br />

- Tinha alguma coisa?<br />

- Nope.<br />

- Não achei que teria. Seu truque de levitação pareceu afetá-los<br />

profundamente.<br />

Quando chegamos em casa eu troco de roupa e encontro Henri no quintal para<br />

o nosso dia de treinamento. Trabalhar enquanto estou pegando fogo ficou fácil.<br />

Eu não me atrapalhei como fiz no primeiro dia. Consigo prender a respiração<br />

por mais tempo, perto de quatro minutos. Tenho mais controle sobre os objetos<br />

que eu levanto, e eu consigo levantar mais deles ao mesmo tempo. Pouco a<br />

pouco, o olhar de preocupação que eu vi no rosto de Henri no primeiro dia<br />

desapareceu. Ele assente mais. Ele sorri mais. Nos dias que vai tudo<br />

realmente bem ele fica com um olhar louco nos olhos, levanta os braços e<br />

berra “É isso!” tão alto quanto consegue. Desse modo, eu estou ganhando<br />

confiança com os meus Legados. Ainda há o resto para vir, mas não acho que<br />

vai demorar muito. E ainda há o maior deles, seja lá qual for. A expectativa<br />

disso me faz ficar acordado na maioria das noites. Eu queto lugar. Eu estou<br />

louco para um Mogadorian vir perambular pelo quintal para que eu finalmente<br />

possa me vingar.<br />

É um dia fácil. Sem fogo. A maior parte é só levantar as coisas e manipular<br />

enquanto estão suspensas no ar. Os últimos vinte minutos passaram com<br />

Henri jogando objetos em mim – às vezes ele apenas deixa cair no chão,<br />

outras vezes eu tenho que desviar fazendo elas girarem no ar e voltarem como<br />

um bumerangue pegando fogo de volta para ele. Uma hora um amaciador de<br />

carne voa de volta tão rápido que Henri mergulha de cara na neve para que<br />

não seja acertado. Eu rio. Henri não. Bernie Kosar deita no chão o tempo<br />

inteiro assistindo a gente, como se estivesse oferecendo o próprio incentivo.<br />

Depois que terminamos eu tomo banho, faço meu dever de casa e sento na<br />

mesa da cozinha para jantar.<br />

- Vai ter uma festa nesses sábado e eu vou.<br />

Ele olha para mim, para de comer. – Festa de quem?<br />

- Do Mark James.<br />

Henri parece surpreso.


- Tudo aquilo acabou. – eu digo antes que ele possa negar.<br />

- Bem, você sabe melhor, eu suponho. Só lembre o que está em risco.<br />

Capítulo 25<br />

E ENTÃO O TEMPO ESQUENTA. OS VENTOS FORTES, o frio congelante e a<br />

neve contínua são seguidos por céu azul e uma temperatura de 10 graus. A<br />

neve derrete. No começo há sempre poças pela rua ou no quintal, a estrada<br />

molhada e os som dos carros espalhando água ao passar, mas depois de um<br />

dia a água fica seca e evapora, os carros continuam passando como fazem em<br />

qualquer outro dia. Uma trégua, uma breve prorrogação, até que o Velho do<br />

Inverno tome as rédeas outra vez.<br />

Sento na varando esperando por Sarah, olhando o céu que está cheio de<br />

estrelas brilhantes e uma lua cheia. Fina, como o corte de uma faca, uma<br />

sombra atravessa a lua em dois e desaparece rapidamente. Escuto o triturar do<br />

cascalho embaixo dos pneus, depois vejo os faróis e um carro para na entrada.<br />

Sarah sai do lado do motorista. Ela está vestindo uma calça cinza escura que<br />

fica mais larga nos tornozelos, um suéter azul marinho de cardigã por baixo de<br />

uma jaqueta bege. A cor de seus olhos acentuada pela parte do suéter que<br />

espia para fora onde a jaqueta termina. Os cabelos loiros dela estão caindo<br />

pelos ombros. Ela sorri timidamente e olha para mim, piscando o cílios<br />

enquanto se aproxima. Sinto borboletas no estômago. Quase três meses juntos<br />

e eu ainda fico nervoso quando a vejo. Um nervosismo que fica até difícil<br />

imaginar que um dia acabe.<br />

- Você está linda. – eu digo.<br />

- Ah, obrigada. – ela diz, e brinca fazendo uma reverência. - Você não está tão<br />

ruim.<br />

Beijo Sarah no rosto. Depois Henri sai de casa e acena para a mãe de Sarah,<br />

que está sentada do assento de passageiros do carro.<br />

- Então você vai ligar quando estiver pronto para ser pego, certo? – Henri me<br />

pergunta.<br />

- Sim. – eu digo.<br />

Nós vamos para o carro e Sarah entra atrás do volante. Eu sento atrás. Ela tem<br />

a permissão de aprendiz por alguns meses agora, o que significa que ela pode<br />

dirigir contando que um motorista licenciado sente ao lado dela. O teste de<br />

motorista dela é na segunda, daqui a dois dias. Ela tem estado ansiosa desde<br />

que marcou nas férias de inverno. Ela dá ré na entrada e vai em frente, ela<br />

abaixa o retrovisor e sorrindo para mim pelo espelho. Sorrio de volta.


- Como está o seu pai, John? – a mãe dela vira e me pergunta. Nós<br />

conversamos um pouco. Ela me diz do passeio que elas duas fizeram até o<br />

shopping mais cedo, e como Sarah dirigiu. Eu falo a ela sobre brincar com<br />

Bernie Kosar no quintal, e sobre a corrida que fizemos depois. Eu não digo a<br />

ela sobre a sessão de treinos que durou por três horas no quintal de trás<br />

depois da corrida. Eu não digo a ela como eu parti árvores mortas bem no meio<br />

usando de telecinese, ou como Henri jogou facas em mim que eu desviei para<br />

um saco a quinze metros de mim. Eu não digo a ela sobre ficar imerso no fogo<br />

ou dos objetos que eu levantei, esmaguei e despedacei. Outro segredo<br />

guardado. Outra meia verdade que parece uma mentira. Eu gostaria de dizer a<br />

Sarah. Eu de alguma forma sinto como se estivesse traindo ela por esconder<br />

essas coisas, e pelas últimas semanas esse fardo começou a pesar realmente.<br />

Mas eu também que não tenho outra opção. Não a esse ponto, de qualquer<br />

modo.<br />

- Então é essa? – Sarah pergunta.<br />

- É. – eu digo.<br />

Ela entra na rua da casa de Sam. Ele está no final, vestindo jeans e um suéter<br />

de lã. Ele olha para nós com aquele olhar vago de veado-surpreendido-porfaróis.<br />

Há gel no cabelo dele. Eu nunca vi gel no cabelo dele antes. Ele<br />

caminha até o lado do carro, abre a porta, e escorrega para perto de mim.<br />

- Oi, Sam. – Sarah diz, depois apresenta a mãe a ele.<br />

Sarah sai da rua de Sam e continua o caminho. Ambas as mãos de Sam estão<br />

afundadas firmemente no banco em nervosismo. Sarah entra em uma rua que<br />

eu nunca vi antes e vira para a direita, entrando em uma rua cheia de curvas.<br />

Trinta ou mais carros estão estacionados pelo caminho. No fim da rua, cercada<br />

por árvores, está uma casa grande de dois andares. Nós podemos ouvir bem a<br />

música antes de chegarmos à casa.<br />

- Meu Deus, que casa legal. – Sam diz.<br />

- Evitem fazer besteira. – a mãe de Sarah diz. – E fiquem seguros. Liguem se<br />

precisarem de alguma coisa, ou se não conseguirem falar com o seu pai. – ela<br />

diz, olhando para mim.<br />

- Pode deixar, Sra. Hart. – eu digo.<br />

Nós saímos do carro e vamos andando para a porta da frente. Dois cachorros<br />

vem correndo do lado da casa, um goldenretrivier e um bulldog. Os rabos<br />

balançando e eles cheiram compulsivamente a minha calça, sentindo o cheiro<br />

de Bernie Kosar. O bulldog está carregando uma vara na boca. Eu tento tirar<br />

dele, o que exige algum esforço, e jogo isso do outro lado do quintal e os dois<br />

cachorros saem correndo atrás.


- Dozer e Abby. – Sarah diz. (n/t: Dozer significa “dorminhoco”)<br />

- Imagino que Dozer é o bulldog? – eu pergunto.<br />

Ela assente e sorri para mim como em desculpa. Eu lembro agora como ela<br />

deve conhecer essa casa. Isso me faz pensar se deve ser estranho para ela<br />

voltar agora, comigo.<br />

- Essa foi uma ideia horrível. – Sam diz. Ele olha para mim. – Só estou<br />

percebendo agora.<br />

- Por que você acha isso?<br />

- Porque só a três meses atrás o cara que vive aqui encheu os nossos armário<br />

com esterco de vaca e jogou na minha cabeça uma bola de carne durante o<br />

almoço. Agora estamos aqui.<br />

- Aposto que Emily já está aqui. – eu digo, e cutuco ele com o cotovelo.<br />

A porta abre para um saguão. Os cachorros vêm correndo passando por nós e<br />

desaparecem na cozinha, que fica bem na frente. Posso ver que é Abby que<br />

está segurando a vara agora. Nós somos recebidos com a música tão alta que<br />

nós temos que gritar mais alto do que ela para sermos ouvidos. As pessoas<br />

estão dançando na sala de estar. Há latas de cerveja na mão da maioria delas,<br />

algumas outras estão bebendo água ou refrigerante. Aparentemente os pais de<br />

Mark estão fora da cidade. O time inteiro de futebol está na cozinha, a metade<br />

deles vestindo jaquetas do esporte. Mark vem e abraça Sarah. Depois aperta a<br />

minha mão. Ele me fita por um segundo e então afasta os olhos. Ele não aperta<br />

a mão de Sam. Ele nem olha para ele. Quem sabe Sam está certo. Isso pode<br />

ter sido um erro.<br />

- Estou feliz por vocês terem vindo. Vem, entrem. A cerveja está na cozinha.<br />

Emily está no canto mais longe conversando com outras pessoas. Sam olha<br />

para ela, depois pergunta a Mark onde está o banheiro. Ele aponta o caminho.<br />

- Já volto. – Sam diz para mim.<br />

A maioria das pessoas estão em volta do balcão no meio da cozinha. Eles<br />

olham para mim quando Sarah e eu entramos. Eu olho para cada um deles de<br />

volta, e depois pego uma garrafa de água do balde de gelo. Mark entrega a<br />

Sarah uma cerveja e abre pra ela. O modo como ele olha pra ela me faz<br />

perceber outra vez o quão pouco eu confio nele. E eu percebo agora o quanto<br />

bizarra é toda essa situação. Eu, na casa dele, com Sarah, a ex-namorada<br />

dele. Estou feliz por Sam estar comigo.<br />

Eu me abaixo e brinco com os cachorros até Sam voltar do banheiro. A esse<br />

ponto Sarah foi para o canto da sala de estar e está falando com Emily. Sam


fica rígido ao meu lado quando percebe que não há nada para gente fazer além<br />

de ir até lá e dizer oi. Ele respira fundo. Na cozinha dois dos caras colocam<br />

fogo na ponta de um jornal sem qualquer razão a não ser ver queimar.<br />

- Não deixe de elogiar Emily. – eu digo a Sam enquanto nos aproximamos. Ele<br />

assente.<br />

- Aí estão vocês. – Sarah diz. – Pensei que você tivesse me esquecido e me<br />

largado sozinha.<br />

- Nem sonharia em fazer isso. – eu digo. – Oi, Emily. Tudo bem?<br />

- Estou bem. – ela diz, depois para Sam. – Gostei do seu cabelo.<br />

Sam apenas olha para ela. Eu cutuco ele. Ele sorri.<br />

- Obrigado. – ele diz. – Você está bem bonita.<br />

Sarah olha para mim como quando alguém percebe o que você está fazendo.<br />

Eu dou de ombros e beijo o rosto dela. A música ficou mais alta ainda. Sam<br />

conversa com Emily, uma tanto nervoso, mas ela ri e um tempo depois ele<br />

relaxa um pouco.<br />

- Você está bem? – Sarah me pergunta.<br />

- Claro. Eu estou com a garota mais bonita da festa. Como as coisas poderiam<br />

ficar melhores?<br />

- Ah, deixa de ser bobo. – ela diz, e me cutuca no estômago.<br />

Nós quatro dançamos por uma hora ou mais. Os jogadores continuam<br />

bebendo. Alguém apareceu com uma garrafa de vodca e não muito depois<br />

disso um deles - eu não sei qual - colocou tudo pra fora no banheiro e agora o<br />

cheiro de vômito ficou no ar em todo o primeiro andar. Um outro apagou no<br />

sofá da sala de estar e alguns pintaram seu rosto com mBaúdor. As pessoas<br />

continuam saindo e entrando pela porta que leva ao porão. Eu não tenho ideia<br />

do que está acontecendo lá embaixo. Não vi Sarah pelos últimos dez minutos.<br />

Eu deixo Sam e caminho pela sala de estar e pela cozinha, depois subo as<br />

escadas. Carpete branco e grosso, paredes com quadros e retratos de família.<br />

Algumas das portas dos quartos estão abertas. Algumas fechadas. Eu não vejo<br />

Sarah. Volto para o primeiro andar. Sam está em pé quieto e sozinho no canto.<br />

Eu caminho até ele.<br />

- Por que essa cara? – eu pergunto.<br />

Ele balança a cabeça.<br />

- Não me faça levantar você no ar e virar de cabeça pra baixo como cara em<br />

Athens.


Eu sorrio. Ele não.<br />

- Eu só estou encurralado por Alex Davis. – ele diz.<br />

Alex Davis é um dos amigos de Mark James, joga na defesa do time. Ele está<br />

no penúltimo ano, alto e magro. Eu nunca falei com ele antes, e sei pouco<br />

sobre ele.<br />

- O que você quer dizer com "encurralado"?<br />

- Acabamos de conversar. Ele viu que eu estive falando com Emily. Acho que<br />

eles saíram no último verão.<br />

- E daí? Por que isso te incomoda?<br />

Ele dá de ombros. – É uma droga, e me incomoda, tá bom?<br />

- Sam, você sabe por quanto tempo Sarah e Mark saíram?<br />

- Por muito tempo.<br />

- Dois anos. – eu digo.<br />

- Isso te incomoda? – ele pergunta.<br />

- Nem um pouco. Quem se importa com o passado dela? Além disso, olha pro<br />

Alex. – eu digo, e aponto para ele que está na cozinha. Ele está curvado contra<br />

o balcão da cozinha, seus olhos agitados, uma fina camada de suor brilhando<br />

em sua testa. – Você acha que ela sente falta de estar com isso?<br />

Sam olha para ele, dá de ombro.<br />

- Você é um cara legal, Sam Goode. Não se rebaixe.<br />

- Não estou me rebaixando.<br />

- Bem então, não se preocupe com o passado de Emily. Nós não temos que<br />

ser definidos pelas coisas que fizemos ou não fizemos no passado. Algumas<br />

pessoas acabam se deixando controlar pelo arrependimento. Talvez seja algo<br />

pra se arrepender, talvez não. É meramente algo que aconteceu. Supere.<br />

Sam suspira. Ele ainda está em conflito com isso.<br />

- Vai lá. Ela gosta de você. Não há nada a temer. – eu digo.<br />

- Mas eu estou.<br />

- A melhor maneira de lidar com o medo é confrontando-o. Só vai até lá e beija<br />

ela. Aposto que ela vai te beijar de volta.


Sam olha para mim e assente, então vai para o porão, onde Emily está. Os<br />

dois cachorros vem se brincando até a sala estar. Línguas penduradas. Rabos<br />

balançando. Dozer abaixa o peito no chão e espera Abby chegar perto o<br />

bastante para então ele pular nela, que pula para longe. Eu os assisto até eles<br />

desaparecerem no segundo andar, brincando de cabo de guerra com um<br />

boneco de borracha. Falta um quarto para meia noite. Um casal está se<br />

pegando no sofá do outro lado da sala. Os jogadores de futebol ainda estão<br />

bebendo na cozinha. Eu estou começando a ficar com sono. E ainda não<br />

consegui encontrar Sarah.<br />

Nessa hora um dos jogadores de futebol sai correndo das escadas do porão,<br />

uma olhar louco, agitado, nos olhos. Ele corre para a pia da cozinha, abre a<br />

torneira de água o máximo que consegue, e começa a abrir as portas dos<br />

armários da cozinha.<br />

- Tem fogo lá embaixo! – ele diz para uns caras que estão perto.<br />

Eles começam a encher potes e panelas com água, e um por um eles correm<br />

para o porão.<br />

Emily e Sam sobem as escadas. Sam parece abalado.<br />

- O que foi? – eu pergunto.<br />

- A casa está pegando fogo!<br />

- Está muito ruim?<br />

- Existe fogo bom? Acho que nós é que começamos isso. Nós, ahn,<br />

esbarramos em uma vela em uma cortina.<br />

Sam e Emily ambos parecem amassados e claramente estiveram se pegando.<br />

Faço uma nota mental para parabenizar Sam depois.<br />

- Você viu Sarah? – eu pergunto a Emily<br />

Ela balança a cabeça.<br />

Mais pessoas sobem correndo as escadas, Mark James com eles. Há medo<br />

nos olhos dele. Pela primeira vez sinto o cheiro da fumaça. Olho para Sam.<br />

- Vai lá para fora. – eu digo.<br />

Ele assente, pega a mão de Emily e eles saem juntos. Alguns dos outros os<br />

seguem, mas alguns ficam parados onde estão, assistindo com a curiosidade<br />

bêbada. Algumas pessoas ficam em volta idiotamente dando tapinhas nas<br />

costas dos jogadores de futebol quando eles sobem correndo do porão,<br />

encorajando eles como se tudo fosse uma brincadeira.


Vou para cozinha e pego a maior coisa deixada, um pote de metal de tamanho<br />

médio. Encho com água e desço a escada. Todo mundo saiu a não ser nós<br />

batalhando com o fogo, que é bem maior do que eu esperava. Metade do<br />

porão está em chamas. Apagar isso com a pouca água que eu tenho é<br />

completamente fútil. Nem tento, em vez disso largo o pote e corro de volta.<br />

Mark vem correndo para baixo. Eu o paro no meio da escada. Os olhos dele<br />

estão flutuando em embriaguez, mas através disso eu posso ver que ele está<br />

aterrorizado, que ele está desesperado.<br />

- Esqueça isso. – eu digo. – É muito grande. Nós temos que tirar todo mundo<br />

daqui.<br />

Ele olha lá para baixo, para o fogo. Ele sabe que o que eu estou dizendo é<br />

verdade. O cara valentão da superfície se foi. Não há mais fingimento.<br />

- Mark! – eu grito.<br />

Ele assente e larga o pote e nós voltamos juntos.<br />

- Sai daqui todo mundo! Agora! – Eu grito quando chego no topo da escada.<br />

Alguns bêbados não se movem. Alguns riem. Alguém diz, "Cadê os<br />

marshmallows?", Mark bate na cara dele.<br />

- Sai! – ele grita.<br />

Eu tiro o telefone sem fio da parede e empurro nas mãos de Mark.<br />

- Disca 911. – eu berro acima do som alto das vozes e da música, que ainda<br />

sai de algum lugar como a trilha sonora de um pandemônio começando. O<br />

chão está ficando quente. A fumaça começa a sair em ondas de baixo de nós.<br />

Só então as pessoas levam a sério. Começo a empurrá-los para a porta.<br />

Eu disparo passando por Mark enquanto ele começa a discar e vou correndo<br />

pela casa. Subo a escada, três degraus de uma vez, e chuto as portas para<br />

abrir. Um casal está se pegando na cama. Eu grito para os dois saírem. Sarah<br />

não está em lugar nenhum. Eu corro de volta para o primeiro andar e passo<br />

pela porta para a noite escura e fria. As pessoas estão em volta, assistindo.<br />

Alguns deles eu posso dizer que estão excitados com a possibilidade da casa<br />

pegando fogo. Alguns estão rindo. Posso sentir que estou começando a entrar<br />

em pânico. Onde está Sarah? Sam está atrás do amontoado de gente, que<br />

deve ser no total umas cem pessoas. Corro até ele.<br />

- Viu Sarah? – eu pergunto.<br />

- Não. – ele diz.<br />

Olho de volta para a casa. Ainda há gente saindo. A janela do porão brilha em<br />

vermelho, chamas lambendo através das vidraças. Uma delas está aberta.


Fumaça negra está saindo dela e indo bem alto no céu. Eu corto caminho<br />

através das pessoas. Nessa hora uma explosão sacode a casa. Todas as<br />

janelas do porão quebram. Algumas das pessoas se animam. As chamas<br />

alcançaram o primeiro andar, elas estão se movendo rápido. Mark James está<br />

frente da multidão, incapaz de afastar os olhos da cena. Seu rosto iluminado<br />

pelo brilho laranja. Há lágrimas nos olhos dele, um olhar de desespero, o<br />

mesmo olhar que eu vi nos olhos dos Loric no dia da invasão. Que coisa<br />

bizarra deve ser assistir tudo o que você conhece ser destruído. O fogo se<br />

espalhando com hostilidade, com indiferença. Tudo o que Mark pode fazer é<br />

assistir. Chamas estão começando a subir pelas janelas do primeiro andar. Nós<br />

podemos sentir o calor nos nossos rostos de onde estamos.<br />

- Onde está Sarah? – pergunto a ele.<br />

Ele não me escura. Começo a sacudi-lo pelos ombros. Ele vira e olha para mim<br />

com um jeito vago que sugere que ele ainda não acredita no que os próprios<br />

olhos estão dizendo.<br />

- Onde está Sarah? – eu pergunto outra vez.<br />

- Eu não sei. – ele diz.<br />

Eu começo a cortar caminho entre as pessoas procurando por ela, ficando<br />

mais e mais nervoso. Todo mundo está assistindo o incêndio. O revestimento<br />

de vinil começou a borbulhar e derreter. Todas as cortinas das janelas já<br />

queimaram. A porta da frente está aberta, fumaça saindo pela parte de cima,<br />

como uma cascata ao contrário. Nós podemos ver todo o caminho até a<br />

cozinha, que está um inferno. No lado esquerdo da casa o fogo alcançou o<br />

segundo andar. E é aí que todos nós ouvimos.<br />

Um longo e terrível grito. E cachorros latindo. Meu coração despenca. Cada<br />

pessoa se esforça para ouvir enquanto espera com tudo que nós não<br />

tenhamos ouvido o que todos nós sabemos que ouvimos. E então outra vez.<br />

Inconfundível. Vem em uma torrente e dessa vez não para. Choque se espalha<br />

entre as pessoas, fazendo-as prender o ar com a boca aberta em horror.<br />

- Ah, não. – Emily diz. – Não, Deus, por favor, não.<br />

Capítulo 26<br />

NINGUÉM FALA. TODOS ESTÃO COM OS OLHOS ARREGALADOS, fitando<br />

o segundo andar em choque. Sarah e os cachorros devem estar em algum<br />

lugar na parte de trás. Fecho os olhos e abaixo a cabeça. Tudo o que eu posso<br />

sentir é o cheiro da fumaça. “Só lembre o que está em risco”, Henri avisou. Eu


sei muito bem o que está em risco, mas ainda assim a voz dele ecoa. A minha<br />

vida e, agora, a vida de Sarah. Há outro grito. Aterrorizado. Acentuado.<br />

Sinto os olhos de Sam em mim. Ele viu em primeira mão minha resistência ao<br />

fogo. Mas ele também sabe que estou sendo perseguido. Olho em volta. Mark<br />

está ajoelhado, balançando o corpo para frente e pra trás. Ele quer que pare.<br />

Ele quer que os cachorros parem de latir. Mas eles não param, e ele reage a<br />

cada latido como se estivesse recebendo uma facada na barriga.<br />

- Sam. – eu digo de forma que só ele possa ouvir. – Eu vou entrar. – ele fecha<br />

os olhos, respira fundo, me fita.<br />

- Vá buscá-la. – ele diz.<br />

Entrego a ele meu celular e digo para que ele ligue para Henri se por alguma<br />

razão eu não sair. Ele assente. Começo a me mover para a parte de trás da<br />

multidão, saindo e entrando da massa de corpos. Ninguém presta atenção em<br />

mim. Quando eu finalmente chego na parte de trás corro com urgência através<br />

do quintal e depois para a parte de trás da casa para poder entrar sem ser<br />

visto. A cozinha está completamente submersa em chamas. Apenas olho por<br />

um breve momento. Posso ouvir Sarah e os cachorros. Eles parecem estar<br />

perto agora. Eu respiro fundo, e com o ar outras coisas vêm. Raiva.<br />

Determinação. Esperança e medo. As deixo entrar. Sinto todas elas. E então<br />

eu vou em frente, disparando o quintal e irrompendo dentro da casa. Eu sou<br />

engolido pelo inferno imediatamente, ouvindo nada além do crepitar e do<br />

zumbido das chamas. Minhas roupas pegam fogo. Não há fim para o fogo. Vou<br />

para frente da casa e metade dos degraus já desapareceram queimados. A<br />

parte deixada está pegando fogo, parecendo frágil, mas não há tempo para<br />

testar. Eu disparo para cima, mas eles desmoronam com o meu peso quando<br />

chega na metade do caminho. Eu caio com eles, o fogo subindo como se<br />

alguém tivesse atiçado as chamas. Algo fura minhas costas. Eu cerro meus<br />

dentes, ainda prendendo a respiração. Levanto do entulho e escuto Sarah<br />

gritar. Ela está gritando, apavorada, e ela vai morrer, vai morrer de um modo<br />

terrível e miserável se eu não chegar até lá. O tempo é curto. Tenho que pular<br />

para o segundo andar.<br />

Eu pulo e seguro na ponta do chão e me puxo para cima. O fogo se espalhou<br />

pelo outro lado da casa. Ela e os cachorros estão em algum lugar à minha<br />

direita. Eu avanço pelo corredor, procurando nos quartos. As fotos penduradas<br />

queimaram nas molduras, nada mais do que silhuetas escurecidas derretidas<br />

na parede. Meu pé cai através do chão e minha respiração prende em<br />

surpresa, eu acabo respirando. Nada além de fumaça e chamas entram. Eu<br />

começo a tossir. Cubro a mão com meu braço, mas isso ajuda muito pouco.<br />

Fumaça e fogo já estão queimando os meus pulmões. Me ajoelho, tossindo,<br />

arfando. Então a fúria surge através de mim e eu levanto novamente. Sigo em<br />

frente, encurvado, cerrando meus dentes, determinado.


Eu os encontro no último quarto à direita. Sarah está gritando, "SOCORRO!".<br />

Os cachorros estão ganindo e chorando. A porta está fechada e eu a abro com<br />

um chute, ela sai voando para fora das dobradiças. Todos os três estão<br />

apertados com força um contra o outro o máximo que eles conseguem no<br />

canto. Sarah me vê e grita o meu nome, já começando a levantar. Eu gesticulo<br />

para que ela fique onde está, e dou um passo para dentro do quarto, uma viga<br />

de suporte gigante cai pegando fogo entre nós. Levanto a mão e mando a viga<br />

para o alto, ela cai sobre o que ainda resta do telhado. Sarah parece confusa<br />

com o que acabou de ver. Eu corro na direção dela, cobrindo seis metros em<br />

um, passando direto através das chamas sem que elas me afetem. Os<br />

cachorros estão nos pés dela. Eu coloco o bulldog nos braços dela e pego o<br />

retrievier. Com a outra mão a ajudo a levantar.<br />

- Você veio. – ela diz.<br />

- Ninguém, e nada, vai te machucar enquanto eu estiver vivo. – eu digo em<br />

resposta.<br />

Outra viga gigante cai e leva parte do chão, aterrissando na cozinha abaixo de<br />

nós. Nós temos que sair pelos fundos da casa para ninguém nos ver, ou ver o<br />

que eu acho que vou precisar fazer. Seguro Sarah firme ao meu lado e o<br />

cachorro contra o meu peito. Nós damos dois passos, depois pulamos sobre o<br />

abismo de chamas que viga que caiu quebrou. Quando começamos a andar<br />

pelo corredor, uma explosão gigante lá embaixo acaba com a maior parte dele.<br />

O corredor se foi; O que isso costumava ser agora é uma parede e uma janela,<br />

que estão sendo rapidamente consumidas pelas chamas. Nossa única chance<br />

é através da janela. Sarah está gritando de novo, agarrando meu braço, e eu<br />

posso sentir as unhas do cachorro enterradas no meu peito. Levanto a minha<br />

mão na direção da janela, fito, e foco – e ela explode da moldura, deixando a<br />

abertura que nós precisamos. Olho para Sarah, puxando ela para segurá-la<br />

bem ao meu lado.<br />

- Segure firme. – eu digo.<br />

Dou três passos e mergulho pra frente. As chamas nos engolem inteiros, mas<br />

nós voamos pelo ar como uma bala, indo direto em direção à abertura. Me<br />

preocupo, acho que não vamos conseguir. Nós mal passamos por ela e eu<br />

sinto as pontas dos pedaços da moldura arranharem os meus braços e o alto<br />

das minhas pernas. Seguro Sarah e os cachorros o melhor que posso, e giro<br />

meu corpo de modo que eu caia de costas e todos eles em cima de mim. Nós<br />

atingimos o chão com um baque. Dozer sai rolando. Abby uiva. Escuto Sarah<br />

perder o ar. Nós estamos a cerca de nove metros atrás da casa. Sinto um corte<br />

no topo da minha cabeça causado pelo vidro quebrado da janela. Dozer é o<br />

primeiro a se levantar. Ele parece estar bem. Abby vai muito mais devagar. Ela<br />

manca na pata da frente, mas não acho que seja nada sério. Fico deitado de


costas e seguro Sarah. Ela começa a chorar. Posso sentir o cabelo queimado.<br />

Sangue escorre pelo lado meu rosto e acumula na minha orelha.<br />

Sento na grama para pegar ar. Sarah nos meus braços. Os fundos dos meus<br />

tênis derreteram. Minha camisa queimou completamente, e eu tenho a maior<br />

parte do meu jeans. Pequenos cortes nos comprimentos dos dois braços. Mas<br />

eu não estou queimado. Dozer vem e lambe a minha mão. Faço carinho nele.<br />

- Você é um bom garoto. – eu digo entre os soluços de Sarah. – Vai lá. Pegue<br />

a sua irmã e vá para frente.<br />

Há sirenes a certa distância, devem chegar aqui dentro de um ou dois minutos.<br />

A floresta está a cerca de cem metros da parte de trás da casa. Os dois<br />

cachorros sentam olhando para mim. Eu aceno para a frente da casa, eles<br />

levantam como se tivessem entendido e começam a andar na direção de lá.<br />

Sarah ainda nos meus braços. Faço ela virar de modo que fique aninhada,<br />

levanto e vou para floresta, carregando-a enquanto ela chora no meu ombro.<br />

Logo que eu entro entre as árvores escuto todo a multidão explodir em<br />

exclamações animadas. Dozer e Abby devem ter sido vistos.<br />

A floresta é densa. A lua cheia ainda brilha, mas há pouca luz vindo dela.<br />

Acendo as mãos para que possamos ver. Eu começo a tremer. Pânico começa<br />

a crescer dentro de mim. Como vou explicar isso a Henri? Eu estou vestindo<br />

agora o que parece com farrapos queimados. Minha cabeça está sangrando.<br />

Assim como as minhas costas, junto com vários cortes nos braços e pernas.<br />

Meus pulmões parecem como estr pegando fogo a cada vez que respiro. E<br />

Sarah está nos meus braços. Agora ela deve saber o que eu posso fazer, do<br />

que eu sou capaz, pelo menos uma parte disso. Eu vou ter que explicar tudo<br />

para ela. Vou ter que dizer a Henri que ela sabe. Eu já tenho muitos pontos<br />

negativos contra mim. Ele vai dizer que alguém vai abrir a boca alguma hora.<br />

Ele vai insistir para gente ir embora. Não há volta.<br />

Coloco Sarah no chão. Ela parou de chorar. Ela olha para mim, confusa,<br />

amedrontada, perplexa. Eu sei que preciso arranjar alguma roupa e voltar parte<br />

a festa para que as pessoas não suspeitem. Preciso levar Sarah de volta para<br />

as pessoas não pensarem que ela morreu.<br />

- Está bem para andar? – eu pergunto.<br />

- Acho que sim.<br />

- Me segue.<br />

- Onde nós vamos?<br />

- Eu preciso arranjar alguma roupa. Com sorte, um dos jogadores de futebol<br />

tem roupas pra trocar depois de praticar.


- O que acabou de acontecer, John? O que está acontecendo?<br />

- Você estava em um incêndio, e eu te tirei de lá.<br />

- O que você fez não é possível.<br />

- É para mim.<br />

- O que isso significa?<br />

Olho para ela. Eu esperava nunca ter que dizer o que estou prestes a contar.<br />

Mesmo que eu soubesse que a realidade não é assim, eu esperava poder<br />

continuar escondido em Paraíso. Henri sempre disse para não ficar tão próximo<br />

a ninguém. Porque se você fizer, em algum ponto eles vão notar que você é<br />

diferente, e isso vai exigir explicação. E isso significa que nós temos que ir<br />

embora. Meu coração está batendo rápido, minhas mãos estão tremendo, mas<br />

não porque estou com frio. Se eu tiver qualquer esperança de ficar, ou escapar<br />

do o que eu fiz essa noite, eu tenho que contar a ela.<br />

- Eu não sou quem você pensa. – eu digo.<br />

- Quem você é?<br />

- Eu sou o Número Quatro.<br />

- E o que isso significa?<br />

- Sarah, isso vai parecer idiota e louco, mas o que estou prestes a dizer é<br />

verdade. Você tem que acreditar em mim.<br />

Ela coloca a mão no meu rosto. –Se você diz que é a verdade, então eu vou<br />

acreditar em você.<br />

- E é.<br />

- Então me diz.<br />

- Eu sou um alienígena. Eu sou a quarta de nove crianças mandadas para a<br />

Terra depois do nosso planeta ser destruído. Eu tenho poderes, poderes<br />

diferentes de qualquer humano, poderes que me permitem fazer as coisas<br />

como as que eu fiz na casa. E há outros alienígenas aqui na Terra que estão<br />

me caçando, os que atacaram o meu planeta, e se eles me encontrarem vão<br />

me matar.<br />

Eu espero ela me bater, ou rir de mim, ou gritar, ou virar e ir embora. Ela para e<br />

olha para mim. Olha direto nos meus olhos.<br />

- Você está me dizendo a verdade. – ela diz.


- Sim, eu estou. – Eu olho nos olhos dela, levando-a a acreditar em mim. Ela<br />

me fita de um modo penetrante por um longo tempo, e então assente.<br />

- Obrigada por salvar a minha vida. Eu não me importo com o que você é ou de<br />

onde você veio. Pra mim você é John, o garoto que eu amo.<br />

- Quê?<br />

- Eu te amo, John, e você salvou a minha vida, isso é tudo o que importa.<br />

- Eu te amo também. E eu sempre vou te amar.<br />

Eu passo meus braços em volta dela e a beijo. Depois de um minuto ou mais,<br />

ela se afasta.<br />

- Vamos logo encontrar algumas roupas e voltar para as pessoas saberem que<br />

estamos bem.<br />

Sarah encontra uma muda de roupa no quarto carro que nós procuramos. Elas<br />

são parecidas o suficiente com o que eu estou vestindo - jeans e uma camisa<br />

de botões - que ninguém vai perceber que é diferente. Quando chegamos à<br />

casa nós ficamos o mais longe possível enquanto ainda dava para ver. A casa<br />

desabou sobre si e agora não é nada mais do que uma pilha deformada de<br />

brasa enegrecida enchBaúda de água. Traços de fumaça subindo aqui e ali,<br />

algo que fica sinistro no céu da noite. Há três carros de bombeiro. Contei seis<br />

carros de polícia. Nove luzes de sirene, mas nenhum som sai delas. Quase<br />

ninguém foi embora, se é que alguém foi. Todos foram empurrados para trás, a<br />

casa contornada com fita amarela. Os oficiais de polícia estão questionando<br />

algumas pessoas. Cinco bombeiros estão no centro, procurando entre os<br />

destroços.<br />

Então eu escuto "Ele estão ali!" berrado atrás de mim. Cada par de olhos na<br />

multidão vira na minha direção. Leva cinco segundos inteiros até eu perceber<br />

que sou eu a pessoa a quem eles estão se referindo.<br />

Quatro oficiais de policias caminham na minha direção. Atrás deles há um<br />

homem segurando um bloco de notas e um gravador de fita. Enquanto nós<br />

procurávamos as roupas, Sarah e eu concordamos em uma história. Eu dei a<br />

volta na casa e a encontrei na parte de trás, onde ela estava vendo o incêndio.<br />

Ela havia pulado da janela do segundo andar com os cachorros, que saíram<br />

correndo. Nós ficamos olhando afastados da multidão, mas agora decidimos<br />

voltar e nos juntar. Eu expliquei a ela que não podemos dizer a ninguém sobre<br />

o que aconteceu, nem a Sam ou a Henri, que se alguém descobrir a verdade


eu vou ter que ir embora imediatamente. Nós concordamos que eu poderia<br />

responder as perguntas e que ela concordaria com o que fosse que eu disse.<br />

- Você é John Smith? – um dos policiais me pergunta. Ele é de altura mediana,<br />

fica com os ombros curvados. Ele não está acima do peso, mas está longe de<br />

estar em forma, com uma leve barriga e, no geral, uma aparência branda.<br />

- Sim, por quê?<br />

- Duas pessoas disseram que viram você correr para dentro da casa e depois<br />

sair voando por trás como um Super-Homem, com os cachorros e a garota nos<br />

seus braços.<br />

- Sério? – pergunto em descrença. Sarah se mantém junto a mim.<br />

- É isso que eles disseram.<br />

Eu finjo uma risada. – A casa estava pegando fogo. Parece que eu estive em<br />

uma casa pegando fogo?<br />

Ele junta as sobrancelhas e coloca a mão no quadril. – Então você está me<br />

dizendo que não entrou lá?<br />

- Eu fui lá atrás para tentar encontrar Sarah. – eu digo. – Ela tinha saído com<br />

os cachorros. Nós ficamos lá vendo o incêndio e depois viemos para cá.<br />

O oficial olha para Sarah. – Isso é verdade?<br />

- É.<br />

- Bem, então quem correu pra dentro da casa então? – o repórter próximo a ele<br />

se intromete. É a primeira vez que está falando. Ele me observa com olhos<br />

sagazes e críticos. Eu já posso dizer que ele não acredita na minha história.<br />

- Como eu saberia? – eu digo.<br />

He acena com a cabeça e escreve algo no bloco de notas. Não consigo ler o<br />

que está escrito.<br />

- Então você está me dizendo que essas duas testemunhas estão mentindo? –<br />

o repórter pergunta.<br />

- Baines. – o oficial diz, balançando a cabeça para ele.<br />

Eu concordo. – Eu não entrei na casa, nem salvei ela e os cachorros. Eles<br />

estavam do lado de fora.<br />

- Quem estava dizendo alguma coisa sobre salvar ela e os cachorros? - Baines<br />

pergunta.


Dou de ombros. – Eu pensei que você estivesse insinuando isso.<br />

- Eu não insinuei nada.<br />

Sam vem andando segurando meu celular. Eu tento encarar ele para dizer que<br />

não é uma boa hora, mas ele não entende e me entrega o celular de qualquer<br />

forma.<br />

- Obrigado. – eu digo.<br />

- Eu estou feliz que você está bem. – ele diz. O oficial olha para ele, Sam logo<br />

se afasta de fininho.<br />

Baines observa tudo com os olhos semicerrados. Ele está mastigando chiclete,<br />

tentando encaixar as informações. Ele assente para si mesmo.<br />

- Então você entregou o celular para o seu amigo antes de você sair para dar<br />

uma volta? – ele pergunta.<br />

- Entreguei a ele meu celular durante a festa. Estava desconfortável no meu<br />

bolso.<br />

- Aposto que estava. – Baines diz. – Então onde você foi?<br />

- Tudo bem, Baines, já chega de perguntas. – o oficial diz.<br />

- Posso ir embora? – pergunta a ele. Ele acena com a cabeça. Eu me afasto<br />

com o celular na mão, discando o número de Henri com Sarah ao meu lado.<br />

- Alô. – Henri atende.<br />

- Estou pronto, pode vir. – eu digo. – Houve um incêndio terrível aqui.<br />

- Quê?<br />

- Não pode simplesmente vir nos buscar?<br />

- Sim. Já vou chegar.<br />

- Então como você explica o corte no topo da sua cabeça? – Baines pergunta<br />

atrás de mim. Ele esteve me seguindo, ouvindo minha ligação para Henri.<br />

- Eu cortei em um galho no meio das árvores.<br />

- Quão conveniente. – ele diz, e novamente escreve algo no bloco de notas. –<br />

Você sabe que eu posso dizer quando estão mentindo para mim, certo?<br />

Eu o ignoro, continuo andando de mãos dadas com Sarah. Nós vamos até<br />

Sam.


- Eu vou descobrir a verdade, Sr. Smith. Como eu sempre faço. – Baines grita<br />

atrás de mim.<br />

- Henri está a caminho. – eu digo a Sam e Sarah.<br />

- O que foi isso? – Sam pergunta.<br />

- Vai saber. Alguém acha que me viu entrando na casa, provavelmente alguém<br />

que bebeu demais. – eu digo mais para Baines do que para Sam.<br />

Ficamos no final da rua até Henri chegar. Quando ele chega, sai da<br />

caminhonete e olha para a casa em brasas de longe.<br />

- Ah, meu Deus. Me diz que você não fez parte disso. – ele diz.<br />

- Não fiz. – eu digo.<br />

Nós entramos na caminhonete. Ele vai embora ainda olhando para os<br />

destroços cheios de fumaça.<br />

- Vocês cheiram a fumaça. – Henri diz.<br />

Nenhum de nós responde, fazendo o caminho em silêncio. Sarah senta no meu<br />

colo. Nós deixamos Sam primeiro, depois Henri sai da rua e segue o caminho<br />

na direção da casa de Sarah.<br />

- Não quero ter que te deixar essa noite. – Sarah diz para mim.<br />

- Não quero ir embora também.<br />

Quando chegamos na casa dela saio com junto e nós caminhamos até a porta.<br />

Ela não me solta quando a abraço de despedida.<br />

- Vai me ligar quando chegar em casa?<br />

- Claro.<br />

- Eu te amo.<br />

Eu sorrio. – Eu te amo também.<br />

Ela entra. Volto para a caminhonete, onde Henri está esperando. Eu tenho que<br />

descobrir um modo dele não descobrir a verdade sobre essa noite, de evitar<br />

que a gente vá embora de Paraíso. Henri sai e dirige para casa.<br />

- Então o que aconteceu com a sua jaqueta? – ele pergunta.<br />

- Estava no armário de Mark.<br />

- O que aconteceu com a sua cabeça?<br />

- Bati tentando sair quando o fogo começou.


Ele me olha cheio de dúvidas. –Você é quem está chegando a fumaça.<br />

Dou de ombros. – Tinha muita lá.<br />

- Então o que começou o fogo?<br />

- Bêbados, eu suponho.<br />

Henri assente e vira para nossa rua.<br />

- Bem, – ele começa. – isso vai ser interessante nos jornais na segunda. – ele<br />

vira e olha para mim, estudando a minha reação.<br />

Continuo em silêncio.<br />

Sim, eu penso, certamente vai ser.<br />

Capítulo 27<br />

NÃO CONSIGO DORMIR. EU FICO DEITADO NA CAMA OLHANDO através<br />

da escuridão para o teto. Ligo para Sarah e nós conversamos até às três; eu<br />

desligo e continuo deitado, com os olhos bem abertos. Às quatros eu me<br />

arrasto para fora da cama e saio do quarto. Henri está sentado na mesa da<br />

cozinha beber café. Ele olha para mim, há olheiras abaixo de seus olhos, está<br />

com os cabelos desgrenhados.<br />

- Está fazendo o que? – pergunto.<br />

- Não consigo dormir também. – ele diz. – Estou procurando notícias.<br />

- Achou algo?<br />

- Sim, mas eu não tenho certeza do que isso significa para nós ainda. Os<br />

homens que faziam a Eles Estão Entre Nós, aqueles homens que nós<br />

conhecemos, foram torturados e assassinados.<br />

Sento na frente dele. – Quê?<br />

- A polícia os encontrou depois de alguns vizinhos ligarem dizendo que ouviram<br />

gritos na casa.<br />

- Eles não sabiam onde a gente mora.<br />

- Não, eles não sabiam. Felizmente. Mas isso significa que os Mogadorians<br />

estão ousando mais. E que eles estão perto. Se a gente ver ou ouvir qualquer<br />

coisa fora do comum, nós vamos ter que ir embora imediatamente, sem<br />

perguntas a serem feitas, sem discussão.<br />

- Tudo bem.


- Como está a sua cabeça?<br />

- Dolorida. – eu digo. Tive que levar sete pontos para fechar o corte. Henri<br />

mesmo que fez. Eu estou vestindo uma blusa de moletom larga. Tenho certeza<br />

de que os cortes das minhas costas precisam de pontos também, mas isso ia<br />

fazer com que eu tire minha camisa, e como vou explicar os outros cortes e<br />

arranhões para Henri? Ele vai saber com certeza o que aconteceu. Meus<br />

pulmões ainda estão queimando. Se mudou alguma coisa, foi só para pior.<br />

- Então, o fogo começou no porão?<br />

- Aham.<br />

- E você estava na sala de estar?<br />

- Aham.<br />

- Como você sabe que começou no porão?<br />

- Porque todos os caras saíram correndo de lá.<br />

- E você sabia que todo mundo estava fora da casa na hora que você saiu?<br />

- Aham.<br />

- Como?<br />

Sei que ele está tentando fazer com que eu me contradiga, que ele não<br />

acredita na minha história. Estou certo de que ele não acredita que eu tenha<br />

ficado meramente lá fora assistindo como todos os outros.<br />

- Eu não entrei. – eu digo. É doloroso fazer isso, mas olho fundo nos olhos dele<br />

e minto.<br />

- Eu acredito em você. – ele diz.<br />

Acordei perto de meio dia. Pássaros estão piando lá fora e a luz do sol entra<br />

pela janela. Suspiro aliviado. O fato de eu ter sido permitido a dormir até tão<br />

tarde significa que não há notícias que me incriminem. Se houvesse, Henri teria<br />

me tirado da cama e me dito para arrumar a mala.<br />

Viro para ficar de costas e é quando a dor atinge. Sinto no peito como se<br />

alguém estivesse empurrando, me apertando. Não consigo respirar fundo.<br />

Quando eu tento há uma dor aguda. Isso me deixa com medo.<br />

Bernie Kosar está enrolado como uma bola roncando ao meu lado. Brinco com<br />

ele, perturbando-o para acordá-lo. Ele geme reclamando primeiro, depois<br />

responde à provocação. Esse é o início do nosso dia. Eu despertando o


cachorro que não para de roncar ao meu lado. Ele balançando o rabo com a<br />

língua pendurada faz com que eu me sinta melhor imediatamente. Nem me<br />

importo com a dor no peito. Nem me importo com o que o dia pode trazer.<br />

Não encontro a caminhonete de Henri. Na mesa está um bilhete onde está<br />

escrito: “Fui comprar umas coisas. Volto às uma”. Vou para fora. Estou com dor<br />

de cabeça e meus braços estão vermelhos e manchados, os cortes estão um<br />

pouco altos, como se eu tivesse sido arranhado por um gato. Não me importo<br />

com os cortes, ou com a dor de cabeça, ou com a queimação no meu peito. O<br />

que me importa é que eu ainda estou aqui, em Ohio, que amanhã eu vou estar<br />

de volta à mesma escola que eu tenho ido por três meses, e que eu vou ver<br />

Sarah hoje à noite.<br />

Henri volta para casa uma da tarde. Em seu rosto há um olhar de cansaço que<br />

me diz que ele não dormiu. Depois de guardar as compras, ele vai para o<br />

quarto e fecha a porta. Bernie Kosar e eu saímos para caminhar na floresta. Eu<br />

tento correr, o que eu consigo fazer por um tempo, mas depois de mais ou<br />

menos um quilômetro a dor que eu sinto é tão grande que eu tenho que parar.<br />

Nós andamos pelo que deve ter sido oito quilômetros. Nesse ponto, as árvores<br />

terminam e encontramos outra estrada rural, parecida com a nossa. Eu viro e<br />

volto pelo caminho. Henri ainda está dentro do quarto com a porta fechada<br />

quando chegamos. Eu sento na varanda. Fico nervoso toda vez que um carro<br />

passa. Não consigo deixar de pensar que um deles vai parar, mas nenhum<br />

deles realmente para.<br />

A confiança que eu senti quando acordei é lentamente dissolvida com o passar<br />

do dia. A Gazeta de Paraíso não sai aos domingos. Amanhã vai ter alguma<br />

história? Acho que eu esperava alguém ligar, ou o mesmo repórter aparecer<br />

aqui, ou algum oficial para fazer mais perguntas. Eu não sei por que eu estou<br />

tão preocupado sobre um repórterzinho qualquer, mas ele foi tão persistente -<br />

muito persistente. E eu sei que ele não acredita na minha história.<br />

Mas ninguém veio até a nossa casa. Ninguém ligou. Eu esperava algo, e<br />

quando algo não surgiu, o medo de que eu seja descoberto começou a crescer.<br />

"Eu vou descobrir a verdade, Sr. Smith. Eu sempre descubro", Baines disse. Eu<br />

considerei correr até a cidade, tentar encontrá-lo para dissuadi-lo de nada<br />

parecido com a verdade, mas eu sei que isso só encorajaria suspeitas. Tudo o<br />

que eu posso fazer é prender a respiração e esperar o melhor.<br />

Eu não estava naquela casa.<br />

Eu não tenho nada para esconder.


Sarah vem até aqui de noite. Nós vamos para o meu quarto e eu a seguro em<br />

meus braços, deitado na cama. Ela está com a cabeça contra o meu peito e<br />

uma perna sobre mim. Ela faz perguntas sobre quem eu sou, sobre o meu<br />

passado, sobre Lorien, sobre os Mogadorians. Eu ainda estou impressionado<br />

por quão rápido e fácil Sarah acreditou em tudo, de como ela aceitou isso. Eu<br />

respondi tudo com a verdade, o que me dá uma sensação boa depois de todas<br />

as mentiras que eu disse nos últimos dias. Mas quando começamos a falar<br />

sobre os Mogadorias, eu fico com medo. Estou preocupado que eles possam<br />

nos encontrar. Que o que eu fiz possa nos expor. Eu faria tudo outra vez,<br />

porque se eu não fizesse Sarah estaria morta, mas eu estou com medo. E<br />

tenho igualmente medo do que Henri possa fazer se descobrir. Apesar de não<br />

ser biologicamente, por todo o resto ele é o meu pai. Eu o amo e ele me ama,<br />

eu não quero desapontá-lo. E enquanto nós estamos deitados aqui, meu medo<br />

começa a alcançar novos níveis. Eu não aguento não saber o que o próximo<br />

dia vai trazer - a incerteza está correndo. O quarto está escuro. Uma vela<br />

tremeluzente está no peitoral da janela a alguma distância. Respiro fundo, quer<br />

disse, tão fundo quanto eu aguento.<br />

- Você está bem? – Sarah pergunta.<br />

Passo os meus braços em volta dela. – Estou com saudades de você. – eu<br />

digo.<br />

- Está com saudades de mim? Mas eu estou bem aqui.<br />

- Essa é a pior maneira de sentir saudade de alguém. Quando ela está bem da<br />

sua frente e você ainda sente sua falta.<br />

- Você está falando coisas sem sentido. – ela segura e puxa meu rosto para<br />

perto o dela, então me beija, seus lábios suaves nos meus. Não quero que ela<br />

pare. Não quero que jamais ela pare de me beijar. Enquanto ela estiver me<br />

beijando tudo estará bem. Tudo estará certo. Eu ficaria nesse quarto para<br />

sempre se eu pudesse. O mundo pode passar bem sem mim, sem nós. Desde<br />

que a gente possa ficar aqui, um nos braços do outro.<br />

- Amanhã. – eu digo.<br />

Ela olha pra mim. – Amanhã o que?<br />

Balanço minha cabeça. – Eu não sei realmente. – Eu digo. – Acho que eu só<br />

estou com medo.<br />

Ela olha confusa para mim. – Medo de que?


- Eu não sei. – digo. – Só estou com medo.<br />

Quando chego com Henri em casa depois de levar Sarah eu volto para a minha<br />

cama e deito no mesmo lugar onde ela esteve. Eu ainda posso sentir o cheiro<br />

dela na cama. Eu não vou dormir essa noite. Eu não vou nem tentar. Fico<br />

andando pelo quarto. Quando Henri vai para cama eu saio, sento na mesa da<br />

cozinha e escrevo sob a luz de velas. Escrevo sobre Lorien, sobre a Florida,<br />

sobre as coisas que vi quando nosso treinamento começou - a guerra, os<br />

animais, as imagens da infância. Eu espero que aconteça algum efeito<br />

catártico, mas não acontece. Só me faz ficar pior.<br />

Quando a minha mão começa a doer eu saio de casa e paro na varanda. O ar<br />

frio diminui a dor de respirar. A lua está quase cheia, apenas um dos lados<br />

sutilmente cortado. Falta duas horas para amanhecer, com isso um novo dia<br />

cem, e as notícias da semana. O jornal chega às seis, às vezes seis e meia. Eu<br />

já vou estar na escola quando chegar e, se eu estiver em uma das notícias, me<br />

recuso a ir embora sem ver Sarah, sem me despedir de Sam. Eu entro na<br />

casa, troco de roupa, arrumo a mochila. Volto nas pontas dos pés e fecho a<br />

porta com cuidado. Dou três passos na varanda quando escuto algo arranhar a<br />

porta. Eu viro e abro, Bernie Kosar sai trotando. Tudo bem, eu penso, nós<br />

podemos ir juntos.<br />

Nós caminhamos, parando várias vezes, ficamos no mesmo lugar e ouvindo o<br />

silêncio. A noite está escura, mas depois de um tempo uma cor pálida começa<br />

a surgir no céu ao leste enquanto entramos no terreno da escola. Não há<br />

carros no estacionamento e todas as luzes estão desligadas lá dentro. Bem na<br />

frente da escola, em frente ao mural do pirata, está uma grande pedra que foi<br />

pintada por antigos estudantes. Sento nela. Bernie Kosar deita na grama<br />

próximo a mim. Faz meia hora que estou lá quando o primeiro veículo chega,<br />

uma van, eu penso que é Hobbs, o zelador, chegando mais cedo para colocar<br />

a escola em ordem, mas estou errado. A van para na frente da escola e o<br />

motorista sai do carro caminhando preguiçosamente. Ele está carregando um<br />

monte de jornais amarrados com um fio. Nós acenamos um para o outro, ele<br />

deixe o monte na porta da escola e depois vai embora. Continuo na pedra.<br />

Olho desdenhosamente para os jornais. Estou mentalmente xingando eles, os<br />

desafiando a entregar as más notícias que eu tanto tenho medo.<br />

- Eu não estava dentro daquela casa no sábado. – eu digo em voz alta, e logo<br />

em seguinte me sinto idiota. Então olho em volta, suspiro e pulo da pedra.<br />

- Bem. – eu digo para Bernie Kosar. – É agora, seja bom ou ruim.<br />

Ele abre os olhos brevemente, depois os fecha e volta a cochilar no chão frio.


Eu desamarro o fio e levanto o jornal de cima. A história foi feita de primeira<br />

página. Bem em frente há uma foto dos restos da casa tirada na manhã<br />

seguinte ao amanhecer. Há uma sensação gótica de mau presságio. Cinzas<br />

escurecidas estão em frente às árvores nus e grama coberta de geada. Eu leio<br />

o título:<br />

CASA DOS JAMES EM: QUEIMANDO TUDO<br />

Prendo a respiração, uma sensação deprimente se concentra no meu<br />

estômago como se notícias terríveis estivessem prestes a me encontrar. Eu<br />

vou passando rápido pelo artigo. Eu não leio, apenas procuro pelo meu nome.<br />

Chego ao final. Pisco os olhos e balanço a cabeça para me concentrar melhor.<br />

Um sorriso cauteloso se forma. Então eu consegui me salvar dessa também.<br />

- Não acredito. – eu digo. – Bernie Kosar, meu nome não está aqui!<br />

Ele não me dá atenção. Eu corro pela grama e pulo de volta na pedra.<br />

- Meu nome não está aqui! – eu grito de novo, dessa vez o mais alto que eu<br />

posso.<br />

Eu sento e leio a história. O título é uma brincadeira com Queimando Tudo, que<br />

aparentemente é um filme sobre drogas. A polícia acredita que o início do<br />

incêndio foi um baseado de maconha que alguém fumava no porão. Como<br />

essa informação foi descoberta, eu não tenho ideia, especialmente porque está<br />

errado. O artigo em si é calunioso e maldoso, quase um ataque à família de<br />

James. Eu não gostei do repórter. É evidente que ele não gosta dos James. Vai<br />

saber por que...<br />

Fico na pedra e leio o artigo três vezes antes da primeira pessoa chegar para<br />

destrancar as portas. Eu não consigo parar de sorrir. Eu vou ficar em Ohio, em<br />

Paraíso. O nome da cidade não parece mais tão bobo pra mim. Através do<br />

meu excitamento eu sinto como se tivesse deixando algo passar, que eu<br />

esqueci o componente chave. Mas eu estou tão feliz que não me importa. O<br />

que poderia acontecer agora? Meu nome não está no artigo. Eu não corri para<br />

dentro daquela casa. A prova está bem aqui, nas minhas mãos. Ninguém pode<br />

dizer o contrário.<br />

- Por que você está tão feliz? – Sam pergunta na aula de astronomia. Eu ainda<br />

não parei de sorrir.<br />

- Você leu o jornal essa manhã?<br />

Ele assente.<br />

- Sam, eu não estava lá! Eu não vou ter que ir embora.


- Por que eles te colocariam no jornal? – ele pergunta.<br />

Eu fico atônito. Eu abro minha boca para argumentar com ele, mas nessa hora<br />

Sarah entra na sala. Ela vem passeando entre as cadeiras.<br />

- Ei, gata. – eu digo.<br />

Ela baixa e beija o meu rosto, algo que não importa o quanto aconteça, acho<br />

que não se tornará comum.<br />

- Alguém está com bom humor hoje. – ela diz.<br />

- Estou feliz em te ver. – eu digo. – Nervosa com o teste de direção?<br />

- Talvez um pouco. Não consigo mais esperar pra isso acabar.<br />

Ela senta ao meu lado. Esse é o meu dia, eu penso. Aqui é onde eu quero<br />

estar e aqui é onde eu estou. Sarah de um lado, Sam do outro.<br />

Vou paras aulas como faço em todos os outros dias. Sento com Sam no<br />

almoço. Não conversamos sobre o incêndio. Devemos ser os únicos dois em<br />

toda a escola que não estão falando sobre isso. A mesma história, toda hora.<br />

Eu não ouvi meu nome ser dito uma vez. Como eu esperava, Mark não está na<br />

escola. Foi espalhado o rumor de que ele e muitos outros estão suspensos por<br />

causa da teoria que o jornal divulgou. Eu não sei se é verdade ou não. Eu não<br />

sei se me importo.<br />

Na hora que Sarah e eu entramos na cozinha para o oitavo período que é<br />

administração doméstica, a certeza de que estou seguro só cresceu e se<br />

firmou. Uma certeza tão forte que eu começo a ficar confiante de que algo está<br />

errado, de que deixei passar alguma coisa. A dúvida tem se infiltrado durante o<br />

dia, mas eu rapidamente a empurro para longe.<br />

Nós fazemos pudim de tapioca. Um dia fácil. Na metade na aula, a porta da<br />

cozinha abre. É o monitor do corredor. Olho para ele e sei imediatamente o que<br />

isso significa. O presságio de más notícias. A mensagem da morte. Ele<br />

caminha direto para mim e me entrega um pedaço de papel.<br />

- Sr. Harris quer ver você. – ele diz.<br />

- Agora?<br />

Ele assente.<br />

Olho para Sarah e dou de ombros. Não quero que ela veja o meu medo. Sorrio<br />

para ela e caminho para a porta. Antes de sair eu paro e viro para olhá-la outra<br />

vez. Ela está inclinada sobre a mesa misturando os nossos ingredientes,<br />

vestindo o mesmo avental verde que eu ajudei colocar no primeiro dia, o dia<br />

que nós fizemos panquecas e comemos no mesmo prato. O cabelo dela está


preso em um rabo de cavalos e alguns fios soltos balançam em frente ao seu<br />

rosto. Ela os empurra para trás da orelha e, ao fazer, me vê parado na porta,<br />

ainda observando-a. Eu continuo olhando, tentando guardar cada detalhe<br />

desse momento, a maneira que ela segura a colher de madeira na mão, a cor<br />

de marfim em sua pele com as luzes que vêm da janela atrás dela, a<br />

delicadeza em seus olhos. A blusa que veste está sem um botão no colarinho.<br />

Me pergunto se ela sabe disso. O monitor diz algo atrás de mim. Eu dou tchau<br />

para Sarah, fecho a porta e sigo pelo corredor. Durante todo o caminho tento<br />

me convencer de que é apenas uma formalidade, algum documento que<br />

esquecemos de assinar, alguma pergunta sobre a transcrição. Mas eu sei que<br />

não é só uma formalidade.<br />

Sr. Harris está sentado em sua escrivaninha quando eu entro no escritório. Ele<br />

sorri de um modo que me aterroriza, o mesmo sorriso cheio de orgulho que ele<br />

tinha no dia em que buscou Mark na classe para a entrevista.<br />

- Sente-se. – ele diz. Eu sento. – Então, é verdade? – ele pergunta. Ele olha<br />

para a tela de seu computador, depois olha de volta para mim.<br />

- O que é verdade?<br />

Em sua escrivaninha há um envelope com meu nome escrito à mão em tinta<br />

preta. Ele me vê olhando para isso.<br />

- Ah, sim. Isso chegou de fax para você por volta de meia hora atrás.<br />

Ele pega o envelope e me entrega. Eu pego.<br />

- O que é? – pergunto.<br />

- Não tenho ideia. Minha secretária selou no envelope logo que chegou.<br />

Várias coisas acontecem ao mesmo tempo. Eu abri o envelope e peguei o<br />

conteúdo. Duas folhas de papel. A primeira é uma página de capa com meu<br />

nome e “CONFIDENCIAL” escrito em grandes letras pretas. Passo para trás da<br />

segunda folha. Uma única sentença escrita, toda em letras maiúsculas. Sem<br />

nome. Apenas quatro letras pretas sobre o fundo branco do papel de fax.<br />

- Então, Sr. Smith, é verdade? Você entrou naquela casa para salvar Sarah<br />

Hart e aqueles cachorros? – Sr. Harris pergunta. Sangue se precipita para o<br />

meu rosto. Levanto os olhos. Ele vira o monitor do computador na minha<br />

direção para que eu leia na tela. É um blog afiliado à Gazeta de Paraíso. Eu<br />

não preciso ver o nome do autor para saber quem escreveu isso. O título do<br />

artigo é mais do que o suficiente.<br />

O INCÊNDIO NA CASA DE JAMES: O QUE NÃO FOI CONTADO.


O ar fica preso na minha garganta. Meu coração acelera. O mundo para, ou<br />

pelo menos é o que parece. Me sinto morto por dentro. Olho para baixo para a<br />

folha de papel que estou segurando. Papel branco, macio entre as pontas dos<br />

meus dedos. Está escrito:<br />

VOCÊ É O NÚMERO 4?<br />

Ambas as folhas caem da minha mão, deslizando para longe e flutuando para o<br />

chão, onde elas ficam imóveis. Eu não entendo, eu penso. Como isso pode ter<br />

acontecido?<br />

- Então é verdade? – Sr. Harris pergunta.<br />

Meu queixo cai, fico de boca aberta. Sr. Harris está sorrindo, orgulhoso, feliz.<br />

Mas não é ele que eu vejo. É o que está atrás dele, depois da janela de seu<br />

escritório. Uma mancha vermelha se aproximando, se movendo mais rápido do<br />

que o normal, do que é seguro. O som agudo dos pneus quando ele vira para o<br />

estacionamento. A picape espalhando cascalho quando faz a segunda curva.<br />

Henri curvado sobre o voltando como algum maníaco maluco. Ele chuta o freio<br />

com tanta força que todo o seu corpo sacode e a camionete para com um<br />

guincho.<br />

Fecho meus olhos.<br />

Coloco a cabeça nas minhas mãos.<br />

Através da janela escuto a porta da caminhonete abrir. Escuto fechar.<br />

Henri vai estar nesse escritório dentro de um minuto.<br />

Capítulo 28<br />

- VOCÊ ESTÁ BEM, SR. SMITH? – O DIRETOR pergunta. Olho para ele. Ele<br />

tenta seu melhor olhar de preocupação, um olhar que dura só um segundo<br />

antes do enorme sorriso voltar ao seu rosto.<br />

- Não, Sr. Harris. – eu digo. – Eu não estou bem.<br />

Eu pego as folhas no chão. Leio novamente. De onde isso veio? Eles estão<br />

meramente ferrando com a gente agora? Não há número de telefone ou<br />

endereço, não há nome. Nada além de quatro palavras e uma interrogação.<br />

Olho para fora, através da janela. A caminhonete de Henri está estacionada,<br />

fumaça subindo do escapamento. Saiu de casa e chegou o mais rápido que ele<br />

pôde. Olho de volta para tela do computador. O artigo foi postado às 11:59<br />

a.m., quase duas horas atrás. Me impressiono que levou esse tempo todo para<br />

Henri chegar. Uma sensação de vertigem começa. Sinto meu corpo balançar.


- Você precisa de enfermeira? – Sr. Harris pergunta.<br />

A enfermeira, eu penso. Não, eu não preciso da enfermeira. A enfermaria fica<br />

perto da cozinha de administração doméstica. O que eu preciso, Sr. Harris, é<br />

voltar, quinze minutos atrás, antes do monitor chegar. Sarah deve estar com o<br />

pudim no forno agora. Me pergunto se já está pronto. Ela está olhando para<br />

porta, me esperando retornar?<br />

O débil eco de uma porta da escolar batendo ao fechar chega ao escritório<br />

principal. Quinze segundos até Henri chegar. Então vou pra caminhonete.<br />

Depois para casa. E depois onde? Para Maine? Missouri? Canadá? Uma<br />

escola diferente, um novo começo, um novo nome.<br />

Eu não durmo há quase trinta horas e só agora eu sinto a exaustão. Mas algo a<br />

mais surge, e em uma fração de segundo entre instinto e ação, a realidade de<br />

que eu estou indo embora para sempre sem a chance de dizer adeus é<br />

repentinamente demais para aguentar. Meus olhos se estreitam, meu rosto se<br />

retorce em agonia, e - sem pensar, sem realmente saber o que estou fazendo -<br />

eu me arremesso por cima da escrivaninha de Sr. Harris e atravesso o vidro da<br />

janela, que se estilhaça em milhões de pequenos pedaços atrás de mim. Um<br />

grito de choque segue.<br />

Meu pé aterrissa na grama do lado de fora. Viro para direita e corro através do<br />

pátio da escola, as salas de aula passando em um borrão à minha direita,<br />

através do estacionamento e para dentro da floresta que fica além do campo<br />

de baseball. Há cortes na minha testa e no meu cotovelo esquerdo do vidro.<br />

Meus pulmões estão queimando. Que se dane a dor. Continuo correndo, a<br />

folha de papel ainda na minha mão direita. Empurro para dentro do meu bolso.<br />

Por que os Mogadorians mandariam um fax? Por que eles ainda não<br />

apareceram? Essa é vantagem principal deles, chegar inesperadamente, sem<br />

aviso. O benefício da surpresa.<br />

Viro bruscamente antes de uma árvore, costurando na densidade da floresta<br />

até ela terminar e um campo começar. Vacas mastigando o pasto com seus<br />

olhos vazios enquanto eu passo direto. Chego antes de Henri na casa. Não<br />

vejo Bernie Kosar. Eu disparo pela porta e paro congelado. O ar preso na<br />

garganta. Na mesa da cozinha, na frente do laptop de Henri, está sentado um<br />

deles. Eles chegaram antes de mim, conseguiram fazer isso de forma que eu<br />

esteja sozinho, sem Henri. A pessoa vira e eu aperto minhas mãos em punhos<br />

pronto para lutar.<br />

Mas é Mark James.<br />

- O que você está fazendo aqui? – eu pergunto.<br />

- Eu estou tentando entender o que está acontecendo. – ele diz, uma<br />

expressão de terror evidente em seus olhos. – O que diabos você é?


- Do que você está falando?<br />

- Olhe. – ele diz, apontando para tela do computador.<br />

Eu vou até ele, mas não olho para a tela, em vez disso meus olhos focam na<br />

folha de papel branca que está perto do computador. É uma réplica exata da<br />

folha no meu bolso exceto pelo papel que está impresso, que é mais fino do<br />

que o de fax. Então eu noto algo a mais. Na parte de baixo da de Henri, em<br />

uma letra bem pequena, está o número de um telefone. Claro... Sério que eles<br />

esperem que a gente ligue? "Claro, sou eu, Número Quatro. Estou aqui te<br />

esperando. Nós estivemos fugindo por dez anos, mas por favor, venha nos<br />

matar agora; nós não vamos nem tentar lutar." Não faz sentido.<br />

- Isso é seu? – eu pergunto.<br />

- Não. – ele diz. – Mas foi entregue aqui, por UPS, na mesma hora que eu<br />

cheguei aqui. Seu pai leu isso enquanto eu mostrei o vídeo a ele, e depois saiu<br />

correndo da casa.<br />

- Que vídeo? – eu pergunto.<br />

- Vê. – ele diz.<br />

Olho para o computador e vejo que ele colocou no YouTube. Ele clica no botão<br />

de play. É um vídeo granulado, de baixa qualidade como se tivesse sido feito<br />

no celular de alguém. Eu reconheço a casa imediatamente, a frente da qual<br />

está em chamas. A câmera está tremendo, mas mesmo assim dá para ouvir os<br />

cachorros latirem e as expressões de receio na multidão. Uma pessoa começa<br />

a se afastar de todo mundo, para o lado da casa, e finalmente para a parte de<br />

trás. A câmera dá zoom na janela de trás de onde o latido está vindo. O latido<br />

para e eu fecho os olhos porque eu sei o que está por vir. Cerca de vinte<br />

segundos se passam, até o momento que eu voo através da janela com Sarah<br />

em um braço e o cachorro na outra, Mark clica no botão de pausa do vídeo. A<br />

câmera está com zoom, nossos rostos são inconfundíveis.<br />

- Quem é você? – Mark pergunta.<br />

Eu ignoro a pergunta dele, em vez disso faço a minha própria. – Quem filmou<br />

isso?<br />

- Não tenho ideia. – ele responde.<br />

O cascalho faz barulho sob os pneus da caminhonete na frente da casa<br />

enquanto Henri chega. Eu me ajeito e meu primeiro instinto é correr, sair da<br />

casa e voltar para a escola, onde eu sei que Sarah vai ficar até mais tarde para<br />

revelar as fotos – até o teste de direção às quatro e meia. O rosto dela é tão<br />

óbvio quanto o meu no vídeo, o que a coloca em tanto perigo quanto eu. Mas<br />

algo me faz não fugir, e em vez disso e vou para o outro lado da mesa e


espero. A porta da caminhonete fecha. Henri entra na casa cinco segundos<br />

depois, Bernie Kosar correndo na frente dele.<br />

- Você mentiu para mim. – ele diz na entrada, o rosto sério, os músculos na<br />

mandíbula estendidos.<br />

- Eu minto pra todo mundo. – eu digo. – Aprendi isso com você.<br />

- Nós não mentimos um para o outro! – ele grita.<br />

Nossos olhares continuam fixos.<br />

- O que está acontecendo? – Mark pergunta.<br />

- Eu não vou embora sem encontrar Sarah. – eu digo. – Ela está em perigo,<br />

Henri!<br />

Ele balança a cabeça. – Agora não é hora para sentimentalismo, John. Você<br />

não viu isso? – ele diz, e atravessa a sala e levanta a folha de papel e começa<br />

a sacudir na minha frente. – De onde você acha que isso veio?<br />

- O que está acontecendo? - Mark praticamente grita.<br />

Eu ignoro a folha e Mark, e mantenho meus olhos nos de Henri. – Sim, eu vi<br />

isso, e é por isso que eu tenho que voltar pra escola. Eles vão vê-la e ir atrás<br />

dela.<br />

Henri começa a vir na minha direção. Depois do segundo eu levanto a mão e<br />

faço ele parar onde está, três ou mais metros longe de mim. Ele tenta continuar<br />

a andar, mas faço com que ele fique preso no lugar.<br />

- Nós temos que sair daqui, John. – ele diz, com um tom doloroso na voz,<br />

quase implorando.<br />

Enquanto mantenho-o na distância, começo a andar em direção ao meu<br />

quarto. Ele para de tentar andar. Ele não diz nada, fica lá me olhando com dor<br />

nos olhos, uma expressão que me faz sentir pior do que eu já senti. Eu tenho<br />

que evitar olhar. Quando chego na porta do meu quarto nossos olhos se<br />

encontram novamente. Ele apenas fica me fitando, olhando como se fosse<br />

chorar.<br />

- Sinto muito. – eu digo, dando espaço o suficiente para ter vantagem quando<br />

sair, viro e corro pelo quarto. Pego na gaveta uma faca que eu usava para<br />

descamar peixe quando eu morava na Florida, pulo pela janela e corro para<br />

dentro da floresta. Em seguida escuto apenas os latidos de Bernie Kosar, nada<br />

mais. Corro por um quilômetro e meio e paro na grande clareira que eu e Sarah<br />

fizemos anjos de neve. Nossa clareira, ela disse. Na clareira em que nós<br />

poderíamos fazer nossos piqueniques de verão. Surge uma dor em meu peito<br />

de pensar que não vou estar aqui no verão, uma dor tão grande que eu tenho


que me curvar e cerrar os dentes. Meu celular, junto com tudo que eu levei pra<br />

escola, está no meu armário. Eu vou tirá-la de perigo, depois volto para Henri e<br />

nós vamos embora.<br />

Eu viro e corro em direção à escola, corro o mais rápido que meus pulmões me<br />

permitem. Alcanço a escola logo que os ônibus estão saindo do<br />

estacionamento. Eu os assisto da borda da floresta. Na frente da escola está<br />

Hobbs medindo uma grande folha de compensado para cobrir a janela que eu<br />

quebrei. Acalmo a respiração, faço o máximo para limpar minha mente. Assisto<br />

os carros irem saindo aos poucos até apenas alguns serem deixados. Hobbs<br />

cobre o buraco e depois desaparece dentro da escola. Me pergunto se ele foi<br />

avisado sobre mim, se ele foi instruído a ligar para a polícia se me ver. Olho<br />

meu relógio. Apesar de ser apenas 3:30, o anoitecer parece ter vindo mais<br />

rápido do que o normal, um anoitecer impregnado de uma escuridão densa,<br />

pesada, que vai desgastando. As luzes do estacionamento acenderam, mas<br />

mesmo elas parecem entorpecidas e reduzidas.<br />

Deixo a floresta e ando através do campo de baseball até chegar ao<br />

estacionamento. Há dez ou mais carros por ali. A porta da escola já está<br />

trancada. Seguro-a, fechando meus olhos e focando até a tranca fazer um<br />

clique. Entro e não vejo ninguém. Apenas a metade das luzes do corredor está<br />

acesa. O ar está quieto e parado. Em algum lugar o polidor de chão está<br />

funcionando. Viro e entro na intercessão, a porta para a sala escura de<br />

fotografia fica a vista. Sarah. Ela estava indo revelar algumas fotos hoje antes<br />

da prova. Passo pelo meu armário e abro. Meu celular não está lá; o armário<br />

está completamente vazio. Alguém, com sorte Henri, pegou. No caminho até a<br />

sala escura não vejo uma única pessoa. Onde estão os atletas, os membros da<br />

banda, os professores que muitas vezes ficam até tarde para corrigir provas ou<br />

fazer seja lá o que eles fazem? Um mau pressentimento rasteja para dentro<br />

dos meus ossos, e eu estou aterrorizado de que algo terrível já tenha<br />

acontecido com Sarah. Pressiono a orelha contra a porta da sala escura para<br />

ouvir, mas não escuto nada a não ser o zumbido do polidor de chão vindo de<br />

algum lugar distante longe no corredor. Respiro fundo e tento abrir a porta.<br />

Está trancada. Pressiono minha orelha contra ela outra vez e bato gentilmente.<br />

Não há resposta, mas eu escuto um leve farfalhar do outro lado. Respiro fundo,<br />

fico rígido para o que eu posso encontrar dentro, e destranco a porta.<br />

A sala é de um preto escuro. Acendo as minhas luzes e viro as mãos para um<br />

lado, depois para o outro. Não vejo nada e estou quase pensando que a sala<br />

está vazia quando vejo no canto um leve movimento. Eu me abaixo para olha<br />

e, embaixo do balcão, tentando passar despercebida, está Sarah. Diminuo<br />

minhas luzes para que ela veja que sou eu. Das sombras, ela olha e sorri, e<br />

deixa o ar sair em alivío.<br />

- Eles estão aqui, não estão?


- Se eles não estão, vão estar em breve.<br />

Eu ajudo Sarah a levantar do chão, ela passa os braços em volta de mim e me<br />

aperta tão forte que eu não acho que ela jamais queira soltar.<br />

- Eu vim aqui direto depois do oitavo período, e logo que as aulas terminaram,<br />

todos esses barulhos estranhos começaram a vir dos corredores. Tudo ficou<br />

realmente escuro, eu me tranquei aqui e fiquei embaixo do balcão, com tanto<br />

medo que mal conseguia me mexer. Eu apenas sabia que algo estava errado,<br />

principalmente depois que eu ouvi algo sobre você pular a janela e nem<br />

atender o celular.<br />

- Isso foi inteligente, mas agora nós temos que sair daqui, e rápido.<br />

Nós saímos da sala, mãos dadas. As luzes do corredor piscam, toda a escola<br />

afunda na escuridão, mesmo que ainda falte uma hora ou mais para escurecer.<br />

Depois de cerca de dez segundos, elas acendem novamente.<br />

- O que está acontecendo? – Sarah sussurra.<br />

- Eu não sei.<br />

Nós avançamos pelo corredor o mais silenciosamente possível, a ponto de<br />

qualquer barulho que nós fazermos parecer anestesiado, abafado. O caminho<br />

mais rápido é pela porta dos fundo que dá no estacionamento dos professores,<br />

e nós seguimos nessa direção, o som do polidor de chão crescendo. Pelo jeito<br />

nós estamos indo na direção de Hobbs. Será que ele vai me apagar com um<br />

cabo de vassoura e ligar para a polícia? Acho que a esse ponto não importa.<br />

Quando alcançamos o fim do corredor as luzes se apagam novamente. Nós<br />

paramos e esperamos elas voltarem, mas elas não voltam. O polidor de chão<br />

continua, um contínuo zumbido. Não posso vê-lo, mas está apenas a seis ou<br />

mais metros de distância na escuridão impenetrável. Acho estranho a máquina<br />

continuar funcionando, que Hobbs continue polindo no escuro. Acendo as<br />

minhas mãos, Sarah solta a minha mão e fica atrás de mim com as mãos na<br />

minha cintura. Encontro a tomada na parede primeiro, depois o fio e então a<br />

máquina. Ela está parada no mesmo lugar, batendo contra parede, sem<br />

ninguém manipula-la, funcionando sozinha. Pânico toma conta de mim, com o<br />

medo vindo logo atrás. Sarah e eu temos que sair da escola.<br />

Tiro o fio da tomada e o polidor para, o suave zumbido do silêncio tomando o<br />

lugar. Apago as minhas mãos. Em algum lugar bem longe no corredor uma<br />

porta é aberta devagar fazendo um rangido. Eu abaixo, minhas costas contra a<br />

parede, Sarah segurando firme o meu braço. Nós dois estamos muito<br />

assustados para dizer algo. O instinto me fez tirar o fio e parar o polidor, agora<br />

eu tenho a urgência de ligar novamente, mas eu sei que isso vai nos entregar<br />

se eles estiverem aqui. Fecho os meus olhos e me esforço para ouvir. O


angido da porta para. Um vento suave parece surgir de lugar nenhum. Com<br />

certeza não há uma janela aberta. Talvez o vento esteja entrando pela janela<br />

que eu quebrei. Então a porta é fechada e o vidro quebra e se estilhaça no<br />

chão.<br />

Sarah grita. Algo passa por nós, mas eu não vejo o que é e eu não me importo<br />

em descobrir. Pego Sarah pela mão e corro pelo corredor. Empurro a porta<br />

com o ombro e corro para dentro do estacionamento. O queixo de Sarah cai e<br />

nós dois paramos congelados. O ar fica preso na minha garganta e um arrepio<br />

corre pela minha espinha. As luzes ainda estão acesas, mas estão turvas e<br />

parecendo fantasmagóricas na escuridão pesada. Sob a luz mais próxima nós<br />

dois vemos o sobretudo oscilando com a brisa, o chapéu inclina sobre os olhos.<br />

A coisa levanta a cabeça e sorri para mim.<br />

Sarah segura minha mão com mais força. Nós dois damos um passo para trás<br />

e tropeçamos na pressa para ir embora. Continuamos o resto do caminho do<br />

mesmo jeito que caranguejos.<br />

- Pode vir. – eu grito quando levanto rapidamente. Sarah levanta. Eu tento o<br />

trinco, mas a porta é automaticamente trancada atrás de nós.<br />

- Merda! – eu grito.<br />

Vejo outro pelo canto dos meus olhos, no primeiro momento parado. Depois ele<br />

dá um passo na minha direção. Há outro atrás desse. Os Mogadorians. Todos<br />

esses anos e eles estão finalmente aqui. Eu tento focar, mas as minhas mãos<br />

estão tremendo demais para abrir a porta. Eu sinto que eles estão ficando mais<br />

perto, se aproximando. Sarah se aperta contra mim e eu posso senti-la<br />

tremendo.<br />

Eu não consigo focar para destrancar a porta. O que aconteceu com “conseguir<br />

fazer as coisas sob pressão”, todos esses dias de treino nos fundos de casa?<br />

Eu não quero morrer, eu penso. Eu não quero morrer.<br />

- John. – Sarah diz, e na voz dela há tanto a medo que faz meus olhos se<br />

arregalarem, logo se tornando determinação.<br />

A tranca faz um clique. A porta abre. Sarah e eu nos empurramos para dentro e<br />

batemos a porta para fechar. Há um baque do outro lado como se um deles<br />

tivesse chutado. Nós corremos pelo corredor. Barulhos nos seguindo. Eu não<br />

sei se alguns dos Mogadorians estão na escola. Outra janela quebra ao lado e<br />

Sarah grita em surpresa.<br />

- Nós temos que ser quietos. – eu digo.<br />

Nós tentamos abrir as portas de salas de aula, mas todas elas estão trancadas.<br />

Eu não acho que há tempo o suficiente para abrir uma delas. Em algum lugar


vem o barulho de uma porta fechando, não sei dizer se foi na nossa frente ou<br />

atrás. Alguns barulhos vem de trás de nós, se aproximando, enchendo nossos<br />

ouvidos. Sarah pega minha mão e nós corremos rápido, minha mente<br />

trabalhando rápido para lembrar do mapa do prédio para que não precise<br />

acender minhas mãos, para que possamos nos manter despercebidos.<br />

Finalmente uma das portas abre e nós corremos para dentro. É a sala de<br />

história, fica à esquerda da escola com vista para uma pequena colina e, por<br />

causa da queda de seis metros, há barras na janela. A escuridão se aperta<br />

com força contra o vidro de modo que nenhuma luz entra. Fecho a porta com<br />

cuidado e espero que não tenham nos visto. Acendo as mãos e faço uma<br />

varredura na sala, apagando rapidamente. Nós estamos sozinhos e nos<br />

escondemos embaixo da mesa do professor. Eu tento prender minha<br />

respiração. Suor escorre pelo meu rosto e pinga sobre os meus olhos.<br />

Certamente eles não são os únicos lá fora. Será que eles trouxeram as bestas<br />

com eles, ou as pequenas doninhas que os escritores em Athens tinham tanto<br />

medo? Eu queria que Henri estivesse aqui comigo, ou até Bernie Kosar.<br />

A porta abre lentamente. Prendo o ar, ouvindo, Sarah se inclina para mim e<br />

passamos os braços um em volta do outro. A porta fecha novamente com um<br />

clique silencioso. Nenhum som de passo em seguida. Eles meramente abriram<br />

a porta e colocaram a cabeça para dentro e viram se tinham alguma coisa?<br />

Eles seguiram em frente sem nem parar pra ver melhor? Eles me encontraram<br />

depois de todo esse tempo; certo que eles não são tão bobos.<br />

- O que nós vamos fazer? – Sarah sussurra depois de trinta segundos.<br />

- Eu não sei. – sussurro de volta.<br />

O silêncio toma conta da sala. O que for que abriu a porta deve ter ido embora,<br />

ou está lá fora no corredor esperando. Apesar disso, sei que quanto mais<br />

ficarmos aqui, mais deles vão chegar. Nós precisamos sair. Nós vamos ter que<br />

arriscar. Respiro fundo.<br />

- Nós temos que ir embora. – eu sussurro. – Não estamos seguros aqui.<br />

- Mas eles estão lá fora.<br />

- Eu sei, e eles não vão embora. Henri está em casa, e está em tanto perigo<br />

quanto nós.<br />

- Mas como nós vamos sair?<br />

Eu não tenho ideia, não sei o que dizer. Há apenas um modo de sair e esse é o<br />

caminho de onde viemos. Os braços de Sarah continuam em volta de mim.<br />

- Vai ser fácil nos encontrar aqui, Sarah. Eles vão nos encontrar, e quando<br />

fizerem, todos eles vão estar juntos. Desse modo pelo menos nós temos o


elemento surpresa. Se nós conseguirmos sair da escola, acho que posso ligar<br />

um carro. Se eu não conseguir, nós vamos ter que dar um jeito de lutar.<br />

Ela assente.<br />

Respiro fundo e saio de baixo da mesa. Pego a mão de Sarah e ela levanta<br />

comigo. Juntos nós damos um passo, da forma mais silenciosa possível.<br />

Depois outro. Leva um minuto inteiro para gente cruzar a sala e nada nos<br />

encontra na escuridão. Um leve brilho vem das minhas mãos, emitindo quase<br />

que luz nenhuma, apenas o suficiente para evitar esbarrar em uma mesa. Eu<br />

olho para a porta. Eu vou abrir e Sarah vai pular nas minhas coisas, depois eu<br />

vou correr o máximo que eu puder, com as luzes acesas, avançando pelo<br />

corredor, até chegar fora da escola e ir para o estacionamento ou, se não der<br />

certo, para a floresta. Eu conheço a floresta e o caminho até chegar em casa.<br />

Há mais deles, mas Sarah e eu vamos ter a vantagem de estar lutando em<br />

campo conhecido.<br />

Ao nos aproximarmos da porta, eu posso sentir meu coração batendo tão<br />

rápido que chego a ter medo dos Mogadorians ouvirem. Fecho os olhos e bem<br />

devagar vou tentando encontrar a maçaneta. Sarah fica mais nervosa,<br />

apertando minha mão o máximo que consegue. Quando minha mão está a um<br />

centímetro, tão perto da maçaneta que eu posso sentir o frio dela, nós dois<br />

somos agarrados pelas costas e jogados no chão.<br />

Eu tento gritar, mas uma mão cobre a minha boca. Medo toma conta de mim.<br />

Eu posso sentir Sarah se debatendo abaixo do que nos segura e eu faço o<br />

mesmo, mas o aperto é muito forte. Eu nunca imaginei isso, que os<br />

Mogadorians poderiam ser tão fortes quanto eu. Eu subestimei muito eles. Não<br />

há esperança agora. Eu falhei. Eu falhei com Sarah e Henri, eu sinto muito.<br />

Henri, eu espero que você lute melhor do que eu.<br />

A respiração de Sarah está pesada e eu tento me soltar com toda a minha<br />

força, mas não consigo.<br />

- Shhh, pare de se mexer. – a voz sussurra no meu ouvido. Uma voz de garota.<br />

– Eles estão lá fora esperando. Vocês dois tem que fica em silêncio.<br />

É uma garota, tão forte quanto eu, talvez até mais. Eu não entendo. Ela nos<br />

solta e eu viro para encará-la. Nos fitamos. Olhos castanhos claros, maçãs do<br />

rosto altas, longos cabelos escuros amarrados em um rabo de cavalo, uma<br />

boca longa e um nariz forte, pele cor de oliva.<br />

- Quem é você? – eu pergunto.<br />

Ela olha para porta, ainda em silêncio. Algum aliado, eu penso. Alguém além<br />

dos Mogadorians que sabe que nós existimos. Alguém está aqui, para ajudar.


- Eu sou a Número Seis. – ela diz. – Eu tentei chegar aqui antes deles.<br />

Capítulo 29<br />

- COMO VOCÊ SABIA QUE ERA EU? – PERGUNTO.<br />

Ela olha para a porta. – Eu estou tentando te encontrar desde que mataram o<br />

Três. Mas eu vou explicar isso tudo depois. Primeiro, nós temos que sair daqui.<br />

- Como você entrou sem eles te verem?<br />

- Posso ficar invisível.<br />

Eu sorrio. O mesmo Legado do meu avô. Invisibilidade. A habilidade de fazer o<br />

que toca invisível também, como ele fez com a casa no segundo dia de<br />

trabalho de Henri.<br />

- Qual é a distância até a sua casa? – ela pergunta.<br />

- Cinco quilômetro.<br />

Eu sinto quando ela assente através da escuridão.<br />

- Você tem um Cêpan? –ela pergunta.<br />

- Claro que sim. Você não tem?<br />

Ela troca para o outro pé o apoio e pausa antes de falar, como se estivesse<br />

pegando a força de uma entidade invisível. – Eu tinha. – ela diz. – Ela morreu<br />

faz três anos. Tenho estado por conta própria desde então.<br />

- Sinto muito. – eu digo.<br />

- É uma guerra, pessoas vão morrer. Agora nós temos que sair daqui ou nós<br />

também vamos. Se eles estão por aqui, então já sabem onde você mora, o que<br />

significa que já estão lá, portanto, não há mais motivos para se esconder<br />

depois que sairmos daqui. Esses são apenas sentinelas. Os soldados ainda<br />

estão a caminho. Eles têm espadas. As bestas não devem chegar muito<br />

depois. O tempo é curto. No melhor dos casos temo um dia. No pior, ele já<br />

estão aqui.<br />

A primeira coisa que eu penso: eles já sabem onde eu moro. Eu entro em<br />

pânico. Henri está em casa com Bernie Kosar e os soldados e bestas podem já<br />

estar lá. A segunda coisa que eu penso: a Cêpan dela, está morta há três anos.<br />

Seis tem estado sozinho esse tempo todo, sozinha em um planeta estranho<br />

desde quando, treze anos? Quatorze?<br />

- Ele está em casa. – eu digo.


- Quem?<br />

- Henri, meu Cêpan.<br />

- Tenho certeza de que ele está bem. Eles não vão tocar nele enquanto você<br />

estiver livre. É você que eles querem, e eles vão usá-lo para tentar atrair você.<br />

– Seis diz, depois levanta a cabeça e vira em direção às janelas com grade.<br />

Nós viramos e olhamos também. Fazendo a curva em direção à escola, bem<br />

fraco de modo que não dá para ver nada mais, há faróis que avançam devagar,<br />

passam pela saída, depois viram na entrada e rapidamente desaparecem. Seis<br />

me olha novamente.<br />

- Todas as portas estão bloqueadas. De que outro modo podemos sair?<br />

Penso sobre a questão, chegando a conclusão de que uma das janelas sem<br />

grades em uma outra sala de aula é a nossa melhor chance.<br />

- Nós podemos sair pelo ginásio. – Sarah diz. – Há uma passagem embaixo do<br />

palco que leva aos fundos da escola.<br />

- Sério? –eu pergunto.<br />

Ela assente, e eu sinto orgulho.<br />

- Cada um de vocês pegue uma mão. – Seis diz. Eu pego a direita, Sarah a<br />

esquerda. – Façam o máximo de silêncio possível. Enquanto vocês estiverem<br />

segurando a minha mão, vocês vão estar invisíveis. Ele não vão poder nos ver,<br />

mas vão nos ouvir. Uma vez lá fora, corremos com tudo. Nós nunca vamos<br />

conseguir escapar, não se eles conseguirem nos encontrar. O único modo de<br />

escapar é matando, até o último deles, antes dos outros chegarem.<br />

- Certo. –eu digo.<br />

- Você sabe o que isso significa? –Seis diz.<br />

Eu balanço a cabeça. Eu não tenho certeza do que ela está me perguntando.<br />

- Não há como escapar deles agora. –ela diz. –Isso significa que você vai ter<br />

que lutar.<br />

Me preparo para responder, mas o arrastar de pés que eu ouvi mais cedo para<br />

do lado de fora da porta. Silêncio. Então a maçaneta se move. Número Seis<br />

respira fundo e solta a minha mão.<br />

- Nem pense em fugir. – ela diz. – A guerra começa agora.<br />

Ela se adianta e jogas as mãos para a frente, a porta explode do batente e voa<br />

pelo corredor se quebrando. Madeira despedaçada. Vidro estilhaçado.<br />

- Acenda as suas mãos! – ela berra.


Ilumino as mãos. Um Mogadorian está no meio dos destroços da porta<br />

quebrada. A coisa sorri, sangue descendo pelo canto da boca, onde a porta o<br />

atingiu. Olhos negros, a pele pálida como se nunca tivesse sido tocada pelo<br />

sol. Um ser das cavernas que renasceu da morte. Isso joga algo que eu não<br />

vejo e escuto Seis gemer perto de mim. Eu olho nos olhos da coisa e a dor vai<br />

se infiltrando dentro de mim, eu fico preso onde estou, incapaz de me mover. A<br />

escuridão penetra. A tristeza. Meu corpo fica rígido. Uma neblina de imagens<br />

do dia da invasão flutua na minha mente: as mulheres e crianças mortas, meus<br />

avós; lágrimas, gritos, sangue, pilhas de corpos queimados. Seis quebra o<br />

feitiço levantando o Mogadorian no ar e arremessando isso contra a parede. A<br />

coisa ainda tenta levantar e Seis o pega novamente, dessa vez jogando com o<br />

máximo de força que pode entre uma parede e a outra. O sentinela cai no chão<br />

deformado e machucado, seu peito sobe uma vez e fica imóvel. Um ou dois<br />

segundos se passam. O corpo inteiro da coisa desmorona em uma pilha de<br />

cinzas, acompanho pelo som parecido ao de um saco de areia deixado vazar<br />

no chão.<br />

- Que droga é essa? - eu pergunto, tentando entender como é possível um<br />

corpo se desintegrar completamente como acabou de acontecer.<br />

- Não olhe nos olhos dele! – Seis grita, ignorando minha confusão.<br />

Eu penso no escritor de Eles Estão Entre Nós. Agora entendo o que ele passou<br />

quando fitou aqueles olhos. Eu me pergunto se ele saudou a morte quando ela<br />

finalmente apareceu, saudou só para se livrar das imagens que se repetiam<br />

continuamente em sua cabeça. Só posso imaginar o quanto intensa elas se<br />

tornariam se Seis não tivesse quebrado o feitiço.<br />

Dois outros sentinelas vêm do final do corredor na nossa direção. Um véu de<br />

escuridão os cerca, como se eles consumissem tudo o que está em volta e<br />

transformassem em negro. Seis se mantém em pé na minha frente, firme, de<br />

queixo erguido.<br />

Dois outros sentinelas vêm na nossa direção do final do corredor. Uma<br />

mortalha de escuridão os cerca, como se eles consumissem tudo em volta e<br />

transformasse em preto. Seis se mantém em pé na minha frente, firme, queixo<br />

erguido. Ela é menor do que eu cinco centímetros, mas sua força de presença<br />

faz com que pareça cinco centímetros maior. Ambos os Mogadorians param<br />

onde um corredor encontra o outro, seus dentes aparecendo em um sorriso de<br />

escárnio. Meu corpo fica tenso, os músculos queimando com a exaustão. Eles<br />

respiram fundo de um modo áspero, é isso o que ouvimos do lado de fora da<br />

porta, a respiração dessas coisas, não o andar. Continuamos ali, uns fitando os<br />

outros. E então um barulho diferente enche o corredor, os dois Mogadorians<br />

viram atentos a isso. Uma porta começa a balançar como se alguém estivesse<br />

fazendo força para abri-la. Do nada vem o som do tiro de uma arma, que é<br />

seguido pelo barulho da porta da escola sendo escancarada. Os dois parecem


surpresos e, quando viram para fugir, mais dois tiros são disparados e os<br />

sentinelas evaporam. Nós ouvimos o som de dois pares de sapato de<br />

aproximando e o clique das unhas de cachorro. Seis se prepara ao meu lado,<br />

tensa, pronta para o que estiver vindo nos encontrar. Henri! Foi o farol da<br />

caminhonete dele que nós vimos entrar na escola. Ele está segurando uma<br />

arma de dois canos que eu nunca vi antes. Bernie Kosar ao seu lado, mas logo<br />

vem correndo até mim. Eu me abaixo e o pego do chão. Ele sai lambendo o<br />

meu rosto e eu estou tão animado em vê-los que esqueço de dizer a Seis<br />

quem é o homem com a shotgun.<br />

- Ele é Henri. – eu digo. –Meu Cêpan.<br />

Henri vem andando, cauteloso, olhando para as portas das salas enquanto<br />

passa e, atrás dele, carregando o Baú Loric dos braços, está Mark. Eu não<br />

tenho ideia de por que Henri trouxe ele junto. Há uma expressão de loucura<br />

nos olhos de Henri, uma de exaustão, repleta de medo e preocupação. Eu<br />

esperava o pior depois do jeito que eu saí da casa, alguma espécie de<br />

repreensão, quem sabe um tapa na cara, mas em vez disso ele passa a<br />

shotgun para a mão esquerda e me abraça o mais forte que consegue. Eu<br />

abraço de volta.<br />

- Sinto muito, Henri. Eu não sabia que isso poderia acontecer.<br />

- Eu sei que não. Só estou feliz de te ver bem. – ele diz. – Vem, nós temos que<br />

sair daqui. A merda da escola inteira está cercada.<br />

Sarah nos leva para a sala mais segura que ela pôde pensar, que é a cozinha<br />

de administração doméstica no fim do corredor. Nós trancamos a porta. Seis<br />

coloca três geladeiras na frente para que nada consiga entrar enquanto Henri<br />

corre para a janela e abaixa a cortina. Sarah vai direto para o balcão que nós<br />

normalmente usamos, abre as gavetas e pega a maior faca de açougueiro que<br />

encontra. Mark a observa e quando percebe o que ela está fazendo, coloca o<br />

Baú no chão e pega uma faca para si. Depois ele vasculha pelas outra gavetas<br />

e tira um martelo para amaciar carne e enfia no cós da calça.<br />

- Vocês estão bem? –Henri pergunta.<br />

- Estamos. –eu digo.<br />

- Tirando a adaga no meu braço, sim, eu estou bem. –Seis diz.<br />

Eu acendo minhas mãos com uma luz baixa, meio opaca, e olho o braço dela.<br />

Ela não está brincando. Onde o bíceps encontra o ombro está uma pequena<br />

adaga. Foi por isso que eu ouvi ela gemer antes de matar o sentinela. Aquela<br />

coisa jogou uma faca nela. Henri pega a adaga e tira. Ela deixa escapar um<br />

gemido.


- Felizmente é só uma adaga. – ela diz, olhando para mim. –Os soldados vão<br />

ter espadas que têm brilhos com diferentes poderes.<br />

Eu me preparo para perguntar que tipos de poderes, mas Henri interrompe.<br />

- Pegue isso. –ele diz, e estica a shotgun para Mark pegar. Ele recebe com a<br />

mão livre sem protesta, olhando assustado para tudo a sua volta. Eu me<br />

pergunto quanto disso tudo Henri a ele. Na verdade, para começar eu me<br />

pergunto por que Henri o trouxe junto. Olho para Seis. Henri pressiona um<br />

pedaço de pano ao braço dela e ela segura no lugar. Ele vai até o Baú e pega,<br />

colocando-o na mesa mais perto.<br />

- Aqui, John. – ele diz.<br />

Sem ter uma explicação eu ajudo a destrancar. Ele empurra a tampa, coloca a<br />

mão dentro e pega uma pedra lisa tão escura quanto a aura que cerca os<br />

Mogadorians. Seis parece saber para que a pedra serve. Ela tira a blusa. Por<br />

baixo ela está vestindo um traje de borracha preto e cinza bem parecido com o<br />

traje azul e prata que eu vi meu pai vestindo nos flashbacks. Ela respira fundo<br />

e oferece o braço a Henri. Ele pressiona a pedra contra o corte e Seis cerra os<br />

dentes com muita força, gemendo e se contorcendo de dor. O suor escorre por<br />

sua testa, seu rosto está em um vermelho brilhando com o esforço que faz, os<br />

tendões se sobressaindo no pescoço. Henri continua com a pedra por<br />

aproximadamente um minuto inteiro. Depois ele afasta e Seis se curva,<br />

respirando fundo para se recompor. Olho o braço dela. Fora a pequena parte<br />

de sangue que ainda brilha, o corte está completamente curado, sem<br />

cicatrizes, nada além do pequeno rasgo no traje.<br />

- O que é isso? –eu pergunto, indicando a pedra.<br />

- É a pedra da cura. –Henri diz.<br />

- Coisa assim realmente existe?<br />

- Em Lorien existia, mas a dor de cura é o dobro da dor original, e a pedra só<br />

funciona quando a ferida foi causada com a intenção de fazer mal ou matar.<br />

que a dor original causada por qualquer coisa que acontece, e a pedra só<br />

funciona quando o machucado foi feita com a intenção de fazer mal ou matar.<br />

E a pedra da cura tem que ser usada imediatamente.<br />

- Intenção? –pergunto. – Então, a pedra não funcionaria se eu tropeçasse e<br />

cortasse minha cabeça por acidente?<br />

- Não. – Henri diz. – Esse é exatamente o ponto dos Legados. Defesa e<br />

pureza.<br />

- Funcionaria no Mark ou na Sarah?


- Não tenho ideia. – Henri diz. – E espero que a gente não tenha que descobrir.<br />

Seis pega mais ar. Ela fica ereta, sentindo o braço. O vermelho sem seu rosto<br />

começa a sumir. Atrás dela, Bernie Kosar está correndo de um lado para o<br />

outro, da porta bloqueada para a janela, que é muito alta para que ele possa<br />

ver lá fora, mas ele fica em pé nas patas de trás e tenta de qualquer forma,<br />

rosnando para seja lá o que ele sente estar lá fora. Talvez nada, eu penso.<br />

Uma vez ou outra ele morde o ar.<br />

- Você pegou meu celular hoje quando esteve na escola? – pergunto para<br />

Henri.<br />

- Não. – ele diz. – Eu não peguei nada.<br />

- Não estava lá quando eu voltei.<br />

- Bem, não funcionaria aqui de qualquer forma. Eles fizeram algo com a nossa<br />

casa e a escola. Está sem energia, e nenhum sinal consegue passar por seja lá<br />

qual for o tipo de escudo que eles fizeram. Todos os relógios pararam. Até o ar<br />

parece morto.<br />

- Nós não temos muito tempo. – Seis interrompe.<br />

Henri assente. Um pequeno sorriso surge enquanto ele olha para ela, uma<br />

expressão de orgulho, talvez até alívio.<br />

- Eu lembro de você. – ele diz.<br />

- Também lembro de você.<br />

Henri estende a mão e Seis aperta. – É muito bom ver você outra vez.<br />

-É muito bom. – eu o corrijo, mas ele me ignora.<br />

- Eu tenho estado procurando vocês há um tempo. – Seis diz.<br />

- Onde está Katarina? – Henri pergunta.<br />

Seis balança a cabeça. Aflição atravessa sua expressão.<br />

- Ela não conseguiu. Ela morrer três anos atrás. Estou procurando os outros<br />

desde então, inclusive vocês.<br />

- Sinto muito. – Henri diz.<br />

Seis assente. Ela olha através da sala para Bernie Kosar, que acabou de<br />

começar a rosnar pela base da janela. Henri pega a shotgun do chão e<br />

caminha até ficar a dois metros da janela.


- John, apague as suas mãos. – ele diz. Eu obedeço. – Agora, quando eu<br />

disser, levante a veneziana.<br />

Vou até o lado da janela e enrolo a corda duas vezes em volta da minha mão.<br />

Eu aceno para Henri, e acima de seu ombro vejo que Sarah colocou as mãos<br />

contra as orelhas em antecipação ao tiro. Ele recarrega a shotgun e aponta.<br />

- Hora de dar o troco. – ele diz, e depois: – Agora!<br />

Puxo a corda e a veneziana sobe. Henri atira. O som é ensurdecedor, continua<br />

ecoando nos meus ouvidos por vários segundos depois. Ele recarrega a<br />

shotgun, retorna a mirar. Viro meu corpo para olhar lá fora. Dois sentinelas<br />

estão caídos na grama, imóveis. Um deles foi reduzido a cinzas com o mesmo<br />

som fantasmagórico que o do corredor. Henri atira no outro uma segunda vez e<br />

acontece o mesmo. Sombras parecerem começar a se juntar em volta deles.<br />

- Seis, coloque a geladeira. – Henri diz para ela.<br />

Mark e Sarah observam espantados enquanto a geladeira flutua pelo ar até<br />

ficar posicionada nada frente da janela para impedir que os Mogadorians<br />

entrem ou vejam dentro da sala.<br />

- Melhor do que nada. – Henri diz. Ele vira para Seis. – Quando tempo nós<br />

temos?<br />

- Muito pouco. – ela diz. – Eles têm um posto a três horas daqui, fica dentro de<br />

uma montanha em Virginia Ocidental.<br />

Henri abre a arma, coloca dois novos cartuchos, depois fecha.<br />

- Quantas balas você pode colocar de uma vez? – pergunto.<br />

- Dez. – ele diz.<br />

Sarah e Mark sussurram um para o outro. Vou até eles.<br />

- Vocês estão bem? – pergunto.<br />

Sarah assente, Mark dá de ombros, nenhum dos dois sabe realmente bem o<br />

que dizer com o terror da situação. Beijo a bochecha de Sarah e seguro a mão<br />

dela.<br />

- Não se preocupe. – eu digo. – Nós vamos sair daqui.<br />

Viro para Seis e Henri. – Por que eles só estão lá fora esperando? – pergunto.<br />

– Por que eles não quebram uma janela e entram? Eles sabem que estão em<br />

maior número.<br />

- Eles só querem nos manter aqui dentro. – Seis diz. – Nós estamos<br />

exatamente onde eles querem, confinados em um lugar. Agora eles estão


esperando os outros chegarem, os soldados com as armas, aqueles que são<br />

treinados para matar. Eles estão desesperados agora porque sabem que nós<br />

desenvolvemos nossos Legados. Eles não podem se permitir ferrar com tudo e<br />

arriscar nos deixar ficar mais forte. Eles agora sabem que alguns de nós<br />

podem se defender.<br />

- Nós temos que sair daqui então. – Sarah diz quase implorando, sua voz<br />

suave e tremida.<br />

Seis assente tranquilizando-a. E então eu lembro de algo que tinha esquecido<br />

com toda a agitação.<br />

- Espere, você estar aqui, nós estarmos juntos, isso quebra o feitiço. Todos os<br />

outros estão expostos ao jogo agora. – eu digo. – Eles podem nos matar.<br />

Eu posso ver pela expressão de terror no rosto de Henri que isso não tinha<br />

passado pela sua cabeça também.<br />

Seis assente. – Eu tinha que arriscar. – ela diz. Eu não posso continuar<br />

fugindo, e eu estou cansada de esperar. Nós todos estamos nos<br />

desenvolvendo, todos nós estamos prontos para responder à luta. Não vamos<br />

esquecer o que eles fizeram a nós naquele dia, porque eu não vou esquecer o<br />

que eles fizeram com Katarina. Todos que nós conhecemos estão mortos,<br />

nossas famílias, nossos amigos. Eu acho que eles planejam fazer na Terra a<br />

mesma coisa que fizeram em Lorien, e eles estão quase prontos. Sentar e não<br />

fazer nada é permitir que aconteça a mesma destruição, a mesma morte, a<br />

mesma aniquilação. Por que se esconder e deixar isso acontecer? Se esse<br />

planeta morrer, nós morremos junto.<br />

Bernie Kosar ainda está latindo para a janela. Eu quase quero deixá-lo sair, ver<br />

o que ele pode fazer. A boca dele está espumando e seus dentes estão<br />

exposto, o pelo em suas costas está arrepiado. O cachorro está pronto, eu<br />

penso. A questão é: nós estamos?<br />

- Bem, você está aqui agora. – Henri diz. – Vamos esperar que os outros<br />

estejam seguros; vamos esperar que eles possam se defender sozinhos.<br />

Vocês dois vão saber imediatamente se eles não conseguirem. E para nós, a<br />

guerra está na nossa porta. Nós não pedimos isso, mas agora que chegou a<br />

hora não temos outro opção a não ser enfrentar, de cabeça erguida e com toda<br />

a força. – ele diz. Ele levanta a cabeça e olha para nós, o branco de seus olhos<br />

brilhando através da sala escura.<br />

- Eu concordo com você, Seis. – ele diz. – A hora chegou.<br />

Capítulo 30


O VENTO CORRE PELA SALA DE ADMINISTRAÇÃO DOMÉSTICA vindo da<br />

janela aberta, a geladeira no caminho pouco faz para prevenir que o ar gelado<br />

entre. A escola já está fria por causa da falta de eletricidade. Seis agora veste<br />

apenas o traje de borracha, que é quase todo preto a não ser pela faixa cinza<br />

que corta diagonalmente a frente. Ela está no meio do nosso grupo, ereta,<br />

transmitindo tanta confiança que eu gostaria de ter um traje Loric para mim. Ela<br />

abre a boca para falar, mas é interrompida por um grande estrondo lá fora.<br />

Todos nós corremos para as janelas, mas não conseguimos ver o que está<br />

acontecendo. O estrondo é seguido por consecutivas batidas que causam tanto<br />

barulho quanto, os sons de algo sendo rasgado, algo rangendo, algo sendo<br />

destruindo.<br />

- O que está acontecendo? –pergunto.<br />

- Suas mãos. – Henri diz acima dos barulhos de destruição.<br />

Eu as acendo e passo a luz pelo pátio lá fora. Ela ilumina um pouco, mas três<br />

metros depois é engolida pela escuridão. Henri dá um passo para trás e inclina<br />

a cabeça, ouvindo os sons com extrema concentração, e então ele assente<br />

decidido.<br />

- Eles estão destruindo todos os carros lá fora, inclusive minha caminhonete. –<br />

ele diz. –Se nós sobrevivermos e escaparmos da escola, vamos ter que ir<br />

andando.<br />

O terro corta os rostos de Sarah e Mark.<br />

- Não podemos perder mais tempo. –Seis diz. – Com um plano ou sem um<br />

plano, nós temos que ir antes das bestas e dos soldados chegarem. Ela disse<br />

que nós podemos sair pelo ginásio. –Seis diz, e indica Sarah. –É a nossa única<br />

esperança.<br />

- O nome dela é Sarah. –eu digo.<br />

Sento em uma cadeira que está perto, nervoso pela urgência na voz de Seis.<br />

Ela parece ser a pessoa estável, aquela que continuou calma sob o terror do<br />

qual nós sobrevivemos até agora. Bernie Kosar voltar para porta, arranhando<br />

as geladeiras que estão bloqueando o caminho, agitado e ganindo em<br />

impaciência. Como as minhas mãos estão acesas, Seis pode olhá-lo direito<br />

pela primeira vez. Ela fita Bernie Kosar, depois estreita os olhos e inclina a<br />

cabeça alguns centímetros para frente. Ele avança e abaixa para fazer carinho<br />

nele. Eu viro e olho para ela. Estranho ela estar sorrindo.<br />

- Que foi? – pergunto.<br />

Ela olha para mim. – Você não sabe?<br />

- Sabe o que?


O sorriso dela aumenta. Ela olha novamente para Bernie Kosar, que corre para<br />

longe dela e volta para a janela, arranhando, agitado, deixa escapar um outro<br />

latido em frustração. A escola está cercada, a morte está próxima, é quase<br />

certa, e Seis está sorrindo. Isso me irrita.<br />

- Seu cachorro. – ela diz. – Você realmente não sabe?<br />

- Não. – Henri diz. Olho para ele. Ele balança a cabeça para Seis.<br />

- Que droga! O que é? – pergunto. – O que está acontecendo?<br />

Seis olha para mim, depois para Henri. Ela deixa escapar uma meia risada e<br />

abre a boca para falar. Mas antes que consiga pronunciar qualquer palavra<br />

algo atrai sua visão e ela corre de volta para a janela. Nós seguimos e, como<br />

antes, o mesmo leve brilho de faróis fazendo a curva na entrada da escola para<br />

dentro do estacionamento. Outro carro, talvez um orientador ou professor.<br />

Fecho os olhos e respiro fundo.<br />

- Isso não significa nada. – eu digo.<br />

- Apague as suas mãos. – Henri diz para mim.<br />

Apago e fecho minhas mãos apertando. Algo sobre o carro lá fora me deixa<br />

furioso comigo mesmo. Que se dane a exaustão, que se dane essas<br />

tremedeiras que estão presentes desde que eu pulei a janela do diretor. Não<br />

vou aguentar ficar confinado dentro dessa sala por mais tempo, sabendo que<br />

os Mogadorians estão lá fora, esperando, tramando a nossa morte. O carro lá<br />

fora pode ser os primeiros soldados chegando. Mas quando esses<br />

pensamentos surgem na minha cabeça, as luzes recuam rapidamente do<br />

estacionamento e acelera para ir embora com pressa pela mesma estrada que<br />

veio.<br />

- Nós temos que sair dessa droga de escola. – Henri diz.<br />

Henri senta em uma cadeira a três metros da porta apontando a shotgun para<br />

ela. Ele está respirando devagar, apesar de estar rígido e eu conseguir ver os<br />

músculos de seu maxilar flexionados. Nenhum de nós diz uma palavra. Seis<br />

ficou invisível e saiu para explorar. Nós estamos apenas esperando, e<br />

finalmente ouvimos. Três leves batidas na porta. O toque que combinamos com<br />

Seis para saber que é ela e não um sentinela tentando entrar. Henri abaixa a<br />

arma e ela entra, eu coloco uma das geladeiras novamente bloqueando a<br />

porta. Ela ficou lá fora por uns dez minutos inteiros.<br />

- Você está certo. – ela diz para Henri. – Eles estão destruindo cada carro no<br />

estacionamento, e conseguiram de alguma forma mover as ferragens para<br />

bloquear cada porta que pode ser aberta. E Sarah está certa; eles deixaram


passar a passagem do palco. Eu contei sete sentinelas do lado de fora e cinco<br />

andando pelos corredores. Havia um do lado de fora dessa porta, mas foi<br />

retirado. Eles parecem estar ficando inquietos. Acho que isso significa que os<br />

outros já deveriam estar aqui, o que significa que eles não estão muito longe.<br />

Henri levanta, pega o Baú e acena para mim. Eu ajudo a abrir. Ele procura,<br />

depois pega algumas pedrinhas pequenas e redondas e guarda no bolso. Eu<br />

não tenho ideia do que são. Ele fecha e tranca o Baú, coloca dentro de um dos<br />

fornos e fecha a porta. Eu coloco uma geladeira na frente do forno para evitar<br />

que seja aberto. Não há realmente outra opção. O Baú é pesado, seria<br />

impossível lutar carregando isso, e nós precisamos de cada mão disponível<br />

para sair dessa situação.<br />

- Odeio ter que deixar isso para trás. – Henri diz, balançando a cabeça. Seis<br />

assente como se também lamentasse. Algo na ideia de deixar os Mogadorians<br />

pegarem o Baú aterroriza os dois.<br />

- Ela vai ficar bem aqui. – digo.<br />

Henri levanta a shotgun e bombeia ela uma vez, olha para Sarah e Mark.<br />

- Essa não é uma luta de vocês. – ele diz a eles. – Eu não sei o que esperar lá<br />

fora, mas se as coisas ficarem ruins vocês vão voltar para a escola e ficar<br />

escondidos. Eles não estão atrás de vocês, e eu não acho que eles vão se<br />

importar em vir procurar se já nos tiverem.<br />

Sarah e Mark parecem chorados e com medo, os dois segurando suas facas<br />

com tanta força que ficam com as dobras dos dedos brancas. Mark alinhou em<br />

seu cinto tudo que encontrou de útil nas gavetas da cozinha - mais facas,<br />

amaciador de carne, ralador de queijo, tesouras.<br />

- Nós vamos sair dessa sala, e quando chegarmos ao final do corredor, o<br />

ginásio está depois de uma porta dupla a seis ou mais metros à direita. – digo a<br />

Henri.<br />

- A abertura fica no meio do placo. – Seis diz. – Está coberta por um tapete<br />

azul. Não há sentinelas no ginásio, mas isso também não significa que eles<br />

não vão estar lá quando chegarmos.<br />

- Então nós apenas vamos sair e tentar correr mais que eles? – Sarah<br />

pergunta. A voz cheia de pânico. Ela está com a respiração pesada.<br />

- É a nossa única opção. – Henri diz.<br />

Eu pego a mão dela. Ela está tremendo muito.<br />

- Vai ficar tudo bem. – digo.


- Como você sabe? – ela diz mais como se estivesse pedindo do que<br />

perguntando.<br />

- Eu não sei. – digo.<br />

Seis tira a geladeira da frente. Bernie Kosar imediatamente começa a arranhar<br />

a porta, tentando sair, rosando.<br />

- Não posso fazer todos vocês ficarem invisíveis. – Seis diz. – Se eu<br />

desaparecer, ainda vou estar por perto.<br />

Seis segura a maçaneta e Sarah respira fundo, com dificuldade, apertando<br />

minha mão o máximo que consegue. Posso ver a faca tremendo em sua mão<br />

direita.<br />

- Fique perto de mim. – digo.<br />

- Não vou sair do seu lado.<br />

A porta abre e Seis avança pelo corredor, Henri bem atrás. Eu vou seguindo e<br />

Bernie Kosar corre na frente de todos nós, uma bola de fúria disparando para<br />

longe. Henri aponta a shotgun para um lado, depois para o outro. O corredor<br />

está vazio. Bernie Kosar já alcançou a interseção. Ele desaparece. Seis vai<br />

atrás e fica invisível, o resto de nós corre em direção ao ginásio, Henri na<br />

frente. Faço Mark e Sarah ficarem na minha frente. Nenhum de nós consegue<br />

enxergar realmente alguma coisa, só ouvimos os passos uns dos outros.<br />

Acendo a minha mão para ajudar a guiar, e esse é o meu primeiro erro.<br />

A porta de uma sala de aula à minha direita é aberta. Tudo acontece em uma<br />

fração de segundo e, antes que eu tenha a chance de reagir, algo pesado me<br />

atinge no ombro. Minhas mãos apagam. Eu voo direto contra o vidro de uma<br />

janela de demonstração. Corto a minha cabeça e o sangue escorre pelo meu<br />

rosto quase que imediatamente. Sarah grita. Seja lá o que tenha me atingido<br />

me acerta outra vez, uma baque oco contra as minhas costelas que me deixa<br />

sem ar.<br />

- Ilumine! – Henri grita. Eu acendo as mãos. Um sentinela está sobre mim,<br />

segurando um pedaço de madeira de dois metros de comprimento que<br />

provavelmente encontrou na sala de artes industriais. Ele levanta no ar para<br />

me atingir outra vez, mas Henri, em pé a seis metros, dispara shotgun primeiro.<br />

A cabeça do sentinela desparece, evaporando em pedaços. O resto de seu<br />

corpo vira cinzas antes mesmo de tocar no chão.<br />

Henri abaixa a arma. – Merda. – diz, vendo o sangue. Ele dá um passo na<br />

minha direção e do canto dos meus olhos vejo outro sentinela, na mesma<br />

porta, uma marreta erguida para acertar. Vai caindo ameaçadoramente para<br />

frente e, com telecinese, eu jogo a coisa que está mais perto de mim sem nem


saber o que é. Um objeto de um dourado brilhante que atravessa o ar com<br />

violência. Atinge o sentinela com tanta força que o crânio dele quebra com o<br />

impacto, e depois ele cai no chão e fica imóvel. Henri, Mark e Sarah correm<br />

para mim. O sentinela ainda está vivo, Henri pega a faca de Sarah e espera o<br />

peito dele, reduzindo-o a uma pilha de cinzas. Ele devolve a faca a Sarah. Ela<br />

segurada afastado entre o polegar e o indicador como se estivesse segurando<br />

a cueca de alguém. Mark abaixa e pega o objeto que eu joguei, agora em três<br />

pedaços separados.<br />

- É o meu troféu que eu ganhei. – ele diz, e não aguenta e começa a rir<br />

sozinho. – Eu recebi mês passado.<br />

Eu levanto. Foi o vidro do mostruário do troféu que quebrei.<br />

- Você está bem? – Henri pergunta, olhando o corte.<br />

- Aham, está tudo bem. Vamos continuar.<br />

Nós disparamos pelo corredor e entramos no ginásio, corremos através da<br />

quadra e pulamos no palco. Ilumino minhas mãos para ver o tapete que se<br />

afasta como que por vontade própria. Depois a tampa se levanta. Só então<br />

Seis se faz visível novamente.<br />

- O que aconteceu lá? – ela pergunta.<br />

- Acabamos nos encrencado. – Henri diz, descendo a escada primeiro para ter<br />

certeza de que a área está limpa. Depois Sarah e Mark descem.<br />

- Onde está o cachorro? – eu pergunto.<br />

Seis balança a cabeça.<br />

- Vai. – eu digo. Ela vai primeiro, ficando apenas eu no palco. Eu assobio o<br />

mais alto que posso, sabendo muito bem que estou dando minha posição ao<br />

fazer isso. Espero.<br />

- Vem, John. – Henri me chama lá de baixo.<br />

Eu engatinho para dentro da abertura, meu pé na escada, mas da cintura para<br />

cima ainda no palco, observando.<br />

- Vem logo! – eu digo para mim mesmo. – Cadê você? – nessa fração de<br />

segundo quando eu não tenho mais opções a não ser decidir, bem antes de<br />

descer, Bernie Kosar se materializa no lado mais distante do ginásio e vem<br />

correndo na minha direção, orelhas em pé. Eu sorrio.<br />

- Vem logo! – Henri grita dessa vez.<br />

- Espere um pouco! – grito de volta.


Bernie Kosar pula no palco e depois para os meus braços.<br />

- Aqui. – eu berro, e entrego o cachorro para Seis. Desço, fecho e tranco a<br />

abertura, depois faço minhas mãos iluminarem com a maior intensidade<br />

possível.<br />

As paredes e o chão são feitos de concreto, fedendo a mofo. Nós temos que<br />

andar meio encurvados para evitar bater com a cabeça no teto. Seis vai na<br />

frente. O túnel tem cerca de trinta metros de comprimento e eu não tenho ideia<br />

para que propósito isso possa ter servido. Nós chegamos ao final; um pequeno<br />

lance de degraus leva a uma dessas portas de porão que abrem para cima.<br />

Seis espera até todo mundo estar junto.<br />

- Isso abre pra onde? – pergunto.<br />

- Atrás do estacionamento dos professores. – Sarah diz. – Não muito longe do<br />

campo de futebol.<br />

Seis pressiona o ouvido pela pequena abertura entre as portas fechadas. Nada<br />

além do vento. Todos estão com os rostos cobertos de suor, poeira e medo.<br />

Seis olha para Henri e assente. Apago as mãos.<br />

- Tudo bem. – ela diz e fica invisível.<br />

Ela levanta a porta só o suficiente para ficar com a cabeça para fora e olhar em<br />

volta. O resto de nós observa prendendo a respiração, esperando, ouvindo,<br />

todos nós movidos pelos nervos. Ela vira para um lado, depois o outro.<br />

Satisfeita de que ninguém nos notou, ela empurra para que a porta fique<br />

totalmente aberta e nós saímos um por um.<br />

Tudo está escuro e silencioso, sem vento, as árvores da floresta à nossa direita<br />

imóveis. Olho em volta, posso ver a silhueta bem definida dos carros retorcidos<br />

e empilhados na porta da frente da escola. Não há estrelas ou lua. Não há nem<br />

céu, quase como se estivéssemos sob uma bolha de escuridão, alguma<br />

espécie de domo onde as sombras vivem. Bernie Kosar começa a rosnar,<br />

baixo no começo, de forma que no começo eu penso que é apenas ansiedade;<br />

mas o rosnado cresce para algo feroz, mais ameaçador, e eu sei que ele sente<br />

alguma coisa por ali. Todos nós viramos para ver para o que ele está rosnando,<br />

mas nada se move. Dou um passo a frente para colocar Sarah atrás de mim.<br />

Eu penso em acender minhas mãos, mas sei que isso vai dizer nossa posição<br />

mais do que o próprio rosnado do cachorro. De repente, Bernie Kosar para.<br />

Ele corre por trinta metros antes de pular no ar e enterrar profundamente os<br />

dentes em um dos sentinelas que não tínhamos visto, que se materializa de<br />

lugar nenhum como se um feitiço de invisibilidade tivesse sido quebrado. Em<br />

um instante, nós podemos ver todos eles, nos cercando, não menos do que<br />

vinte deles, começando a se aproximar.


- É uma armadilha! – Henri berra, ele atira duas vezes e derruba dois<br />

sentinelas imediatamente.<br />

- Voltem para o túnel! – eu grito para Mark e Sarah.<br />

Um dos sentinelas avança na minha direção. Eu faço com que ele flutue e<br />

arremesso com o máximo de força que eu consigo contra uma árvore de<br />

carvalho a vinte metros. A coisa atinge o chão com um baque, levanta<br />

rapidamente e arremessa uma adaga na minha direção. Eu faço ela desviar e<br />

arremesso o sentinela com mais força ainda. Dessa vez, ele explode em cinzas<br />

na base da árvore. Henri dispara mais vezes, os tiros ecoando pelo ar. Duas<br />

mãos me seguram por trás. Eu quase as empurro sem perceber que é Sarah.<br />

Não consigo ver Seis em nenhum lugar. Bernie Kosar levou um Mogadorian ao<br />

chão, agora está com os dentes profundamente enterrados no pescoço da<br />

coisa, chamas do inferno estão nos olhos do cachorro.<br />

- Entra na escola! – eu berro.<br />

Ela não vai embora. Uma trovoada quebra o silêncio e uma tempestade<br />

começa a se preparar, nuvens negras agora se formam acima de nós e brilhos<br />

de raios e trovões rasgam o céu da noite, trovoadas barulhentas que fazem<br />

Sarah pular a cada rugido. Seis reapareceu, está a dez metros de mim, os<br />

olhos vidrados no céu e seu rosto retorcido em concentração enquanto seus<br />

dois braços estão erguidos. Ela é quem está criando a tempestade, controlando<br />

o clima. Raios começam a cair, partindo os sentinelas em seus lugares, criando<br />

pequenas explosões formadoras de nuvens de fumaças que são levadas pelo<br />

vento com indiferença através do pátio. Henri está no canto, colocando mais<br />

balas na shotgun. O sentinela que Bernie Kosar está mordendo finalmente<br />

sucumbe à morte e explode em uma pilha de cinzas que cobre a cara do<br />

cachorro. Ele espirra uma vez, sacode as cinzas do pelo e então corre para<br />

enfrentar o sentinela mais próximo até os dois desaparecerem na densa<br />

floresta a quinze metros. Eu sinto esse receio quase que insuportável de que<br />

essa é a última vez que estou vendo ele.<br />

- Você tem que entrar na escola. – digo para Sarah. – Você tem que ir agora e<br />

se esconder. Mark! – eu berro. Eu olho pra cima e não encontro. Vasculho em<br />

volta. Vejo ele correndo na direção de Henri, que ainda está carregando a<br />

arma. De cara não entendo por que, e então eu vejo o que está acontecendo:<br />

um Mogadorian sentinela se esgueirou para trás de Henri sem que ele visse.<br />

- Henri. – eu grito para chamar sua atenção. Levanto a mão para fazer parar o<br />

sentinela que já está com a faca erguida no alto em meio ao movimento, mas<br />

Mark cuida da coisa primeiro. Um pequeno confronto ocorre em seguida. Henri<br />

fecha a shotgun com um estalo, Mark chuta a faca do sentinela para longe.<br />

Henri atira e a coisa explode. Henri diz algo a Mark.Eu berro chamando Mark<br />

outra vez e ele vem correndo, respirando pesadamente.


- Você tem que levar Sarah para dentro da escola.<br />

- Eu posso ajudar aqui. – ele diz.<br />

- Essa luta não é sua. Você tem que se esconder! Entre na escola e se<br />

esconda com Sarah!<br />

- Tudo bem. – ele diz.<br />

- Vocês têm que ficar escondidos, não importa o que aconteça! – eu berro<br />

acima da tempestade. – Eles não vão atrás de vocês. Sou eu que eles querem.<br />

Me prometa, Mark! Me prometa que você vai ficar escondido com Sarah!<br />

Mark assente rapidamente. – Eu prometo!<br />

Sarah está chorando e não há tempo para confortá-la. Outra trovoada, outro<br />

tiro. Ela me beija nos lábios uma vez, suas mãos segurando o meu rosto com<br />

força e eu sei que ela ficaria para sempre assim se pudesse. Mark puxa ela<br />

para longe, começando a guia-la.<br />

- Eu te amo. – ela diz, e olha para mim do mesmo modo que eu olhei para ela<br />

mais cedo, antes de sair da aula de administração doméstica, como se fosse a<br />

última vez, querendo guardar esse momento para que a imagem dure a vida<br />

inteira.<br />

- Eu te amo também. – digo em resposta quando os dois alcançam os degraus<br />

do túnel e assim que as palavras saem dos meus lábios, Henri geme em dor.<br />

Eu viro. Um dos sentinelas enfiou uma faca no abdômen dele. Terror toma<br />

conta de mim. O sentinela puxa a faca do corpo de Henri, a lâmina brilhando<br />

com o sangue dele. Move a mão para acerta Henru pela segunda vez. Meu<br />

braço se estica e eu tiro a faca no último segundo de modo que apenas o corta<br />

de raspão. Ele geme com a dor, mas logo se ajeita, pressiona o cano da<br />

shotgun no queixo do sentinela e atira. A coisa cai, se cabeça.<br />

A chuva começa, pesada e fria. Na mesma hora eu fico ensopado até os<br />

ossos. Sangue escorre pelo abdômen de Henri. Ele está apontando a shotgun<br />

para a escuridão, mas todos os sentinelas se moveram para as sombras, para<br />

longe de nós, de forma que Henri não consegue ter uma boa mira. Eles não<br />

estão mais interessados em atacar, sabendo que nós dois conseguimos fazer<br />

eles recuarem e um terço foi ferido. Seis ainda está concentrada no céu. A<br />

tempestade cresceu; o vento está começando a uivar. Ela parece estar tendo<br />

trabalho para controlar. Uma tempestade de inverno, caindo em janeiro. Tão<br />

rápido quanto tudo começou, tudo para – os trovões, os raios, a chuva. O vento<br />

some e um ronco surge ao longe, se aproximando. Seis abaixa os braços,<br />

todos nós tentando ouvir melhor. Até os Mogadorians ouviram. O ronco cresce,<br />

inconfundível, vindo na nossa direção, alguma espécie de ronco profundo e<br />

mecânico. Os sentinelas saem das sombras e começam a rir. A despeito da


gente ter matado no mínimo dez deles, há muito mais do que antes. De longe<br />

uma nuvem de fumaça cresce sobre as árvores como se uma máquina a vapor<br />

estivesse fazendo a curva. Os sentinelas acenam um para o outro, sorrindo de<br />

seu modo cruel, e reformam o circulo em volta de nós em uma aparente<br />

tentativa de fazer a gente voltar para a escola. E é óbvio que essa é a nossa<br />

única chance. Seis se aproxima.<br />

- O que é isso? – pergunto.<br />

Henri manca, a shotgun pendendo frouxamente ao seu lado. Ele está<br />

respirando pesadamente, há um corte em seu rosto abaixo do olho direito, uma<br />

poça de sangue em suéter cinza da ferida feita pela faca.<br />

- É o resto deles, não é? – Henri pergunta a Seis.<br />

Seis olha para ele, parecendo chocada, o cabelo dela molhado e grudando nos<br />

lados de seu rosto.<br />

- As bestas. – ela diz. – E os soldados. Eles estão aqui.<br />

Henri recarrega a shotgun e respira fundo. – E então a guerra de verdade<br />

começa. – ele diz. – Não sei sobre vocês dois, mas se é isso, então é isso. Eu,<br />

para começar... – ele diz, e as palavras se perdem. – Bem, só se eu estiver<br />

maluco vou ser vencido sem uma luta.<br />

Seis assente. – Nosso povo lutou até o fim. E assim eu farei. – ela diz.<br />

A fumaça ainda sobe a um quilômetro. Carga viva, eu penso. É assim que eles<br />

os transportam, através de grandes carretas de carga. Seis e eu seguimos<br />

Henri de volta descendo os degraus. Eu grito por Bernie Kosar, mas ele não<br />

está em nenhum lugar que eu possa ver.<br />

- Não podemos esperar por ele de novo. – Henri diz. – Não há tempo.<br />

Olho em volta uma última vez, e bato a porta acima de mim. Corremos de volta<br />

através do túnel, para cima do palco, através do ginásio. Não vemos um único<br />

sentinela, nem vemos Mark e Sarah, e eu estou aliviado por isso. Eu espero<br />

que eles estejam bem escondidos, eu espero que Mark mantenha sua<br />

promessa e que eles fiquem desse jeito. Quando voltamos para a sala de adm<br />

doméstica tiro a geladeira do caminho e pego o Baú. Henri e eu a abrimos.<br />

Seis pega a pedra da cura e pressiona contra o abdômen de Henri. Ele está em<br />

silêncio, os olhos fechados, prendendo o ar. O rosto dele fica vermelho com o<br />

esforço, mas nem um único som escapa. Um minuto disso e Seis tira a pedra.<br />

O corte está curado. Henri deixa o ar sair, a testa coberta em suor. Então é a<br />

minha vez. Ela pressiona contra o corte na minha cabeça e uma dor bem maior<br />

do que qualquer coisa que eu já tenha sentido antes toma conta de mim. Solto<br />

gemidos e berros, cada músculo do meu corpo flexionado. Eu não consigo


espirar até terminar, e quando finalmente acaba, me curvo e pego ar por um<br />

minuto inteiro.<br />

Lá fora o ronco mecânico parou. A carreta está escondida de vista. Enquanto<br />

Henri fecha o Baú e coloca de volta no mesmo forno que antes, eu olho pela<br />

janela esperando conseguir ver Bernie Kosar. Não consigo. Outros faróis<br />

passam pela escola. Como antes, eu não posso dizer ser é um carro ou uma<br />

caminhonete, mais uma vez passa pela entrada devagar e rapidamente vai<br />

embora. Henri ajeita a camisa, pega a shotgun. Enquanto nos movemos na<br />

direção da porta, um som nos faz parar de repente.<br />

Um rugido vem do lado de fora, alto, animalesco, um rugido sinistro diferente<br />

de qualquer que eu já tenha ouvido antes, seguido pelo som metálico dos<br />

cliques de um portão sendo destrancado, depois abaixado e aberto. Uma<br />

pancada alta de repente nos faz voltar à atenção. Respiro fundo outra vez.<br />

Henri balança a cabeça e suspira no que é quase gesto de desesperança, um<br />

gesto feito quando a luta está perdida.<br />

- Há sempre esperança, Henri. – digo. Ele vira para mim. – Nem todos os<br />

poderes apareceram. Não temos todas as informações. Não. Não desista ainda<br />

da esperança.<br />

Ele assente e o minúsculo traço de um sorriso se forma. Ele vira e olha Seis,<br />

um novo legado que eu não acho que nenhum de nós pode imaginar. Quem<br />

pode dizer que não há mais esperança? E então ele continua de onde eu parei,<br />

citando exatamente as mesmas palavras que ele me disse quando era eu o<br />

desencorajado, no dia que eu perguntei como nós poderíamos vencer essa luta<br />

estando sozinhos e em menor número, longe de casa – contra os Mogadorians,<br />

que parecem ter grande prazer na guerra e na morte.<br />

- É a última coisa que você deve perder. – Henri diz. – Quando você perde a<br />

esperança, perde tudo. E quando você pensa que tudo está perdido, quando<br />

tudo é terrível e desolador, há sempre a esperança.<br />

- Exatamente. – digo.<br />

Capítulo 31<br />

OUTRO RUGIDO CORTA O AR DA NOITE, ultrapassando as paredes da<br />

escola, um rugido que faz meu sangue congelar. O chão começa a tremer com<br />

os passos da besta que agora deve estar livre. Eu balanço a cabeça. Eu vi em<br />

primeira mão o tamanho delas durantes os flashbacks da guerra em Lorien.


- Pelo bem dos seus amigos e o nosso. – Seis diz. – É melhor a gente sair logo<br />

daqui, enquanto ainda há tempo. Eles vão destruir o prédio inteiro tentando nos<br />

encontrar.<br />

Nós acenamos um para o outro.<br />

- Nossa única chance é chegar na floresta. – Henri diz. – Seja lá o que essa<br />

coisa for, nós poderemos escapar se ficarmos invisíveis.<br />

Seis assente. – É só segurar a minha mão.<br />

Não precisamos de nenhum outro incentivo, Henri e eu tomamos nossos<br />

lugares de cada lado dela e seguramos sua mão.<br />

- Sem fazer barulho. – Henri diz.<br />

O corredor está escuro e silencioso. Nós caminhamos de um modo quieto, mas<br />

com urgência, tentando ir o mais rápido que pudermos com pouco barulho.<br />

Outro rugido e, enquanto esse ainda enche nossos ouvidos, um outro começa.<br />

Paramos. Não é uma besta, são duas. Nós continuamos o caminho e entramos<br />

no ginásio. Nenhum sinal de sentinelas. Quando chegamos no meio da quadra,<br />

Henri para de andar. Viro para ele, mas não posso vê-lo.<br />

- Por que nós paramos? – sussurro.<br />

- Shh. – ele diz. – Escute.<br />

Faço esforço para ouvir, mas não escuto nada além do contínuo zumbido do<br />

sangue enchendo os meus ouvidos.<br />

- As bestas pararam de se mover. – Henri diz.<br />

- E daí?<br />

- Shh. – ele diz. – Há algo a mais lá fora.<br />

E então eu escuto também,<br />

- Shh. - ele diz. - Há algo a mais lá fora.<br />

E então eu escuto também, sons baixos de um latido agudo como se viesse de<br />

animais pequenos. Os sons estão abafados, apesar de estarem obviamente<br />

ficando altos.<br />

- O que é isso? – pergunto.<br />

Algo começa a empurra a abertura do palco, a abertura por onde planejávamos<br />

sair.<br />

- Acenda as suas mãos. – Henri diz.


Solto Seis e as acendo, apontando na direção da abertura. Henri mira a<br />

shotgun. A abertura estremece como se algo estivesse tentando derrubá-la,<br />

mas sem força para conseguir. As doninhas, eu penso, as pequenas criaturas<br />

gordas que os caras de Athens tinham tanto medo. Uma delas atinge a<br />

abertura com tanta força que a portinhola quebra e voa quicando pelo chão.<br />

Até demais para pensar que elas não têm força. Duas das coisas logo vêm<br />

correndo e, uma vez que nos veem, disparam na nossa direção tão rápido que<br />

é difícil distingui-los. Henri fica parado observando a arma apontada, um sorriso<br />

divertido em seus lábios. Seus caminhos se separam e os dois pulam a seis<br />

metros de nós, um em Henri e o outro em mim. Henri dispara uma vez e a<br />

doninha explode cobrindo-o de sangue e tripas; quando eu vou partir o meu<br />

com telecinese ele é agarrado no ar pela mão invisível de Seis e jogado no<br />

chão como uma bola de futebol, matando-o instantaneamente.<br />

Henri recarrega a shotgun. – Bem, não foi tão difícil. – ele diz e antes que eu<br />

possa responder a parede inteira ao longo do palco é esmagada pelo punho da<br />

besta. Ela afasta o punho para trás e soca outra vez, transformando o palco em<br />

pedacinhos e expondo o céu da noite. O impacto empurra eu e Henri para trás.<br />

- Corre! – Henri berra, e imediatamente começa a descarregar cada bala da<br />

shotgun na besta. Ela não fazem efeito. A besta se encurva para frente e ruge<br />

tão alto que até a minha roupa treme. Uma mão me segura, me fazendo ficar<br />

invisível. A besta avança, indo direto para Henri, e eu fico preso no lugar com o<br />

terror do que pode acontecer.<br />

- Não! – eu digo. – Henri, ajude Henri! – eu contorço meu braço, fazendo Seis<br />

me soltar e a empurrar para longe. Fico visível; ela continua escondida. E besta<br />

continua a avança feroz para Henri, que continua firme e observa ela se<br />

aproximar. Sem munição. Sem opções. – Ajude ele! – grito outra vez. – Ajude<br />

ele, Seis!<br />

- Vá para floresta! – ela berra em resposta.<br />

Tudo o que eu consigo fazer é assistir. A besta deve ter nove metros de altura,<br />

talvez treze, a mais do que ele. Ela ruge, pura fúria em seus olhos. Essa coisa<br />

levanta o punho musculoso e grande bem alto, tão alto que quebra o telhado<br />

do ginásio da escola. E então abaixa, descendo com tanta rapidez que parece<br />

um borrão, como as pás de um ventilador girando. Eu deixo escapar um grito<br />

de terror, sabendo que Henri vai ser esmagado. Eu não consigo afastar os<br />

olhos, Henri parecendo tão pequeno com a shotgun pendendo em sua mão.<br />

Quando o punho da besta está a uma fração de segundo dele, Henri<br />

desaparece. O punho quebra o chão do ginásio, a madeira partindo, o impacto<br />

me fazendo voar uns dez metros. A besta vira para mim, bloqueando a visão<br />

do lugar onde Henri esteve.


- Henri! – eu berro. A besta rugiu tão alto que seria impossível ouvir qualquer<br />

resposta. Ela dá um passo na minha direção. A floresta, Seis disse. Vá para a<br />

floresta. Levanto e corro o mais rápido que posso para a parte de trás do<br />

ginásio, que a besta destruiu. Viro para ver se a besta está me seguindo. Não<br />

está. Talvez Seis tenha feito algo para atrair sua atenção. Tudo o que eu sei é<br />

que estou por conta própria, sozinho.<br />

Eu pulo sobre o monte de escombros e corro para longe da escola, indo o mais<br />

rápido que posso até a floresta. As sombras tomam conta de tudo à minha<br />

volta, como um fantasma repugnante. Eu sei que posso correr mais do que<br />

eles. A besta ruge outra vez e eu escuto uma parede desabar. Eu alcanço as<br />

árvores e as sombras parecem sumir. Paro de andar e escuto. As árvores<br />

balançam com uma leve brisa. Há vento aqui! Consegui escapar de seja lá o<br />

que for aquilo que os Mogadorians criaram. Algo quente começa a se acumular<br />

no cós da minha calça. O corte que eu consegui na casa de Mark James<br />

reabriu nas minhas costas.<br />

É difícil de ver os contornos da escola de onde eu estou. O ginásio inteiro se<br />

foi, agora é uma pilha de tijolos. A sombra da besta se ergue sobre os<br />

destroços do refeitório. Por que não correu atrás de mim? E onde está a<br />

segunda besta que nós ouvimos? O punho da coisa despenca outra vez, mais<br />

uma sala demolida. Mark e Sarah estão lá em algum lugar. Eu que disse a eles<br />

para voltar e só agora percebo o quanto fui idiota. Eu não imaginei que a besta<br />

destruiria a escola se soubesse que eu não estava lá. Eu tenho que fazer algo<br />

para afastá-la. Respiro fundo juntando a força, ao dar o meu primeiro passo<br />

algo atinge com a força a minha cabeça por trás. Eu caio de cara no musgo.<br />

Toco onde fui atingido e minha mão se enche de sangue, gotas escorrendo<br />

pelos meus dedos. Viro e não vejo nada de cara, e então a coisa sai das<br />

sombras e sorri.<br />

Um soldado. Então é assim que eles são. Mais altos do que os sentinelas - dois<br />

metros, dois metros e meia de altura - seus músculos salientes abaixo da capa<br />

esfarrapada. Veias grandes e sobressalentes pelo comprimento de seus<br />

braços. Botas pretas. Nada cobre a cabeça e o cabelo cai sobre os ombros. A<br />

mesma pele pálida, de cera, dos sentinelas. Um sorriso de autoconfiança, de<br />

determinação. Em uma das mãos está uma espada. Longa e com certo brilho,<br />

feita de um tipo de metal que eu nunca vi na Terra ou nas minhas visões de<br />

Lorien, ela parece estar pulsando, como se de algum modo estivesse viva.<br />

Começo a engatinhar para longe, o sangue escorrendo pelo meu pescoço. A<br />

besta na escola ruge outra vez, eu alcanço um dos galhos mais baixos de uma<br />

árvore próxima e levanto. O soldado está a três metros de mim. Eu aperto as<br />

duas mãos fechadas.<br />

Um soldado. É assim que eles são. Mais altos do que os sentinelas - dois, dois<br />

e pouco, metros - seus músculos sobressalentes abaixo da capa esfarrapada.


Veias grandes e destacadas ao longo de seus braços. Botas pretas. Não usa<br />

nada cobrindo a cabeça e o cabelo cai sobre os ombros. A mesma pele pálida<br />

como cera dos sentinelas. Ele sorri com autoconfiança, com determinação. Em<br />

uma das mãos segura uma espada. Longa e com um brilho, feita de algum tipo<br />

de metal que eu nunca vi na Terra ou nas minhas visões de Lorien, ela parece<br />

estar pulsando, como se de algum modo estivesse viva. O movimento faz um<br />

movimento qualquer com a espada e algo sai da ponta dela, algo que parece<br />

uma pequena adaga. Eu observo a adaga atravessar o ar fazendo um arco,<br />

deixando um leve traço de fumaça para trás como um avião. A luz cria um<br />

feitiço do qual eu não consigo afastar os olhos.<br />

Um relâmpago brilhoso envolve tudo, o mundo se diminui a um profundo<br />

vácuo. Sem parede. Sem som. Sem chão ou teto. Só depois, bem devagar, as<br />

formas das coisas começam a retornar, as árvores parecem imagens do<br />

passado que sussurram sobre um mundo em uma realidade alternativa onde<br />

apenas sombras existem.<br />

Eu me estico para tocar na árvore mais próxima, o único tom de cinza em um<br />

mundo branco. Minha mão passa direto e por um momento há uma leve tremor<br />

na árvore como se ela fosse um líquido. Respiro fundo. Quando deixo o ar sair<br />

a dor retorna no corte atrás da minha cabeça e nos machucados nos meus<br />

braços e corpo do incêndio na casa de Mark. O som de água gotejando vem de<br />

algum lugar. Lentamente, o soldado vai ganhando forma, a sete ou dez metros<br />

de mim. Ela está gigante. Paramos por um momento, nos observando. Sua<br />

espada brilha com mais força nesse novo mundo. Seus olhos se estreitam e<br />

novamente fecho as mãos em punhos. Já levantei objetos mais pesados do<br />

que ele; eu parti árvore e destruí coisas. Eu com certeza estou à altura dele.<br />

Coloco tudo o que eu sinto no centro do meu ser, tudo o que eu sou, tudo o<br />

que eu vou ser, até sentir que estou prestes a explodir.<br />

- Ahhhh! - eu berro, e eu jogo minhas mãos para frente. Toda essa força deixa<br />

o meu corpo, disparando em fúria até o soldado. Ao mesmo tempo ele move a<br />

espada no ar como se estivesse golpeando uma mosca. O meu ataque é<br />

desviado para as árvores, que balançam por um breve momento como os<br />

ramos em um campo de trigo com o leve vento, ficando paradas a seguir. A<br />

coisa ri de mim, uma risada profunda, gutural, com a intenção de me<br />

ridicularizar. Seus olhos vermelhos começam a girar em espiral como se<br />

estivessem cheios de lava. Ele levanta a mão eu me preparado para o<br />

desconhecido. De repente, sem que eu saiba como aconteceu, meu pescoço<br />

está em sua mão, o espaço que nos separava desapareceu em um piscar de<br />

olhos. Ele me levanta, só com uma mão, respirando com a boca aberta de<br />

modo que eu posso sentir o cheiro azedo de seu hálito, o cheiro de<br />

deterioração. Eu começo a golpeá-lo, tento tirar seus dedos do meu pescoço,<br />

mas eles são duros como ferro.


E então a coisa me arremessa.<br />

Eu caio de costas a doze metros dali. Levanto e ele ataca, tentando acertar<br />

minha cabeça com a espada, eu abaixo e o empurro com a maior força que<br />

posso. Ele tropeça para trás, mas continua em pé. Tento levantá-lo com<br />

telecinese, mas nada acontece. Nesse mundo alternativo mesmo poderes<br />

estão reduzidos, quase sem efeito. Os Mogadorians têm vantagem aqui.<br />

Ele sorri por causa da meu fracasso e levanta a espada com ambas as mãos.<br />

A espada ganha vida, se transformando do prata reluzente para o azul gelo.<br />

Chamas azuis lambem a lâmina. Uma espada que brilha de várias formas,<br />

como Seis disse. Ele move a espada na minha direção e outra adaga sai<br />

voando da ponta, direto para mim. Isso eu posso fazer, penso. Todas as horas<br />

no quintal com Henri me preparando para isso. Sempre facas, mais ou menos<br />

o mesmo que adagas. Henri sabia que eles as usariam? Certamente, apesar<br />

de eu nunca ter visto nos meus flashbacks. Mas eu também nunca vi essas<br />

criaturas. Eles eram diferentes em Lorien, não tinham uma aparência tão<br />

sinistra. No dia da invasão eles pareciam doentios e famintos. É culpa da Terra<br />

a melhora deles, foram os recursos daqui que os tornaram fortes e saudáveis?<br />

A adaga literalmente grita enquanto voa com fúria na minha direção. Ela cresce<br />

é consumida por chamas. Bem quando eu vou desviá-la, ela explode em uma<br />

bola de fogo e as chamas pulam em mim. Eu fico envolvido nisso, consumido<br />

por uma perfeita esfera de fogo. Poderia ter queimado qualquer outro, mas não<br />

eu, pelo contrário, de algum modo minha força retornou. Eu posso respirar.<br />

Sem saber o que estava fazendo, o soldado me deixou mais forte. Agora é a<br />

minha vez de sorrir por seu fracasso.<br />

- Isso é tudo o que você tem? – berro.<br />

Fúria toma conta da expressão dele. Provocantemente ele estica o braço sobre<br />

o ombro e retorna com uma arma que parece uma arma que parece um<br />

canhão que começa a tomar a forma de seu corpo, se enrolando em volta de<br />

seu antebraço. O braço e arma viram um só. Pego a faca no meu bolso de trás,<br />

a faca que eu peguei em casa antes de voltar para a escola. Ela é pequena,<br />

quase ineficaz, mas é melhor do que nada. Eu abro a lâmina e ataco. A esfera<br />

de fogo me acompanha. O soldado ajeita o corpo e abaixa a espada com força.<br />

Eu a desvio com o meu canivete, mas o peso da espada parte a lâmina em<br />

dois. Largo o que restou e movo meu corpo o mais rápido que posso. Meu<br />

punho acerta o abdômen do soldado. Ele se dobra, mas se ergue novamente e<br />

golpeia com a espada. Me abaixo no último segundo. Isso queima a pontas do<br />

meu cabelo. Logo depois vem o canhão. Não tenho tempo para reagir. Sou<br />

atingido no ombro e com um gemido caio para trás. O soldado se ajeita e<br />

aponta o canhão para o céu. Primeiro eu fico confuso. O cinza das árvore está<br />

sendo sugado para dentro da arma. Então eu entendo. A arma. Ela precisa ser<br />

alimentada para poder funcionar, precisa roubar a essência da Terra para que


possa ser utilizada. O cinza nas árvores não eram sombras; o cinza é a vida<br />

das árvores no nível mais elementar. E agora essas vidas estão sendo<br />

roubados, consumidas pelos Mogadorians. Uma raça de alienígenas que<br />

desgastou o próprio planeta na busca do progresso, agora fazendo a mesma<br />

coisa aqui. Esse é o motivo para atacarem Lorien. O mesmo motivo pelo qual<br />

vão atacar a Terra. Uma por uma as árvores caem e se esfarelam em pilhas de<br />

cinzas. A arma vai ficando mais e mais brilhosa, um brilho tão forte que<br />

machuca os olhos. Não há tempo para perder.<br />

Eu ataco. A coisa continua com a arma apontada para o céu e golpeia com a<br />

espada. Eu abaixo e avanço. Ele fica rígido e se contorce em agonia. O fogo<br />

em volta de mim queimando-o. Mas eu baixei a guarda. Ele golpeia a lâmina<br />

sem força, não é o suficiente para me cortar, mas não há nada que eu possa<br />

fazer para impedir o movimento. Sou atingido e meu corpo é arremessado<br />

quinze metros para trás como se eu tivesse sido atingido por um raio. Fico<br />

caído, incapaz de controlar os tremores da eletrocussão. Levanto a cabeça.<br />

Trinta pilhas de cinzas das árvores sugadas nos cercam. Quando vezes isso<br />

permitirá que ele atire? Um leve vento surge e as cinzas começam a voar pelo<br />

espaço vazio entre nós. A lua retorna. O mundo para o qual essa coisa me<br />

trouxe está começando a desaparecer. Ele sabe disso. Levanto o corpo do<br />

chão. A alguns centímetros, ainda brilhando, está uma das adagas que ele<br />

atirou em mim. Pego.<br />

A coisa abaixa o canhão e mira. O branco que nos cerca está começando a<br />

desaparecer, as cores retornando. O canhão dispara, um flash de luz forte com<br />

versões horríveis de todos os que eu conheço - Henri, Sam, Bernie Kosar,<br />

Sarah – todos eles mortos nessa realidade alternativa e está tão claro que só<br />

consigo ver eles, que estão tentando me levar com eles, avançando para mim<br />

com violência em uma bola de energia que vai crescendo ao se aproximar. Eu<br />

tento desviar o tiro, mas é muito forte. O branco alcança a extremidade da<br />

esfera de foco que me cerca, e quando os dois se tocam uma explosão ocorre<br />

e a força me arremessa para trás. Eu caio com um baque. Vejo como estou.<br />

Não me machuquei. A esfera de fogo despareceu. De algum modo ela<br />

absorveu o tiro, me salvou do que certamente seria a morte. Com certeza é<br />

assim que o canhão funciona, a morte de uma coisa pela morte de outra. O<br />

poder para controlar a mente, manipulação através do medo, apenas possíveis<br />

através da destruição dos elementos do mundo. Os sentinelas aprenderam um<br />

pouco disso com suas mentes. Os soldados possuem armas que produzem um<br />

efeito muito maior.<br />

Eu levanto, a lâmina da faca ainda brilhando na minha mão. O soldado<br />

empurra alguma espécie de alavanca na lateral do canhão para recarregar.<br />

Corro na direção dele. Quando estou perto o suficiente, eu miro no coração<br />

dele e arremesso a faca com o máximo de força possível. Ele dá o segundo<br />

tiro. O torpedo laranja disparando furiosamente pelo ar, a certeza da morte se


aproximando. Eles cruzam no ar sem se tocarem. Bem quando eu espero o<br />

segundo tiro me atingir, a chegada da morte de uma vez, outra coisa acontece.<br />

Minha faca chega primeiro.<br />

O mundo desaparece. As sombras se dissipam e o frio e a escuridão retornam<br />

como se nunca tivessem ido embora. A transição me deixa tonto. Dou uma<br />

passo para trás e caio. Meus olhos se ajustam à pouca luz. Eu os fixo na figura<br />

escura do soldado parando sobre mim. O tiro do canhão não viajou conosco. A<br />

faca sim, a lâmina enterrada profundamente em seu coração, o punho de uma<br />

laranja pulsante sob a luz da lua. O soldado cambaleia, e a faca é enterrada<br />

mais fundo até desaparecer. Ele rosna. Um sangue preto não para de sair da<br />

ferida aberta. Os olhos da coisa ficam vazios, depois giram para trás. Ele cai no<br />

chão, imóvel, e enão explode em uma nuvem de cinzas que cobre meus tênis.<br />

Um soldado. Eu matei o meu primeiro. E que não seja o último.<br />

Por algum motivo estar em uma realidade alternativa me enfraqueceu. Apoio a<br />

mão em uma árvore próxima para me equilibrar e pego ar, só que a árvore não<br />

está mais. Olho em volta. Todas as árvores que nos cercavam desmoronaram<br />

em pilhas de cinzas assim como na outra realidade, assim como os<br />

Mogadorians fazem quando morrem.<br />

Escuro a besta rugir e olho para ver o quanto da escola ainda resta. Mas em<br />

vez da escola há algo mais, a oito metros, posicionado com uma espada em<br />

uma mão e um canhão parecido na outra. O canhão está apontado direto para<br />

o meu coração, um canhão que já foi carregado, brilhando com o poder. Outro<br />

soldado. Eu não acho que tenho a força para lutar com esse como fiz com o<br />

outro.<br />

Não há nada que eu possa jogar, e o espaço entre nós é muito grande para<br />

atacar antes que ele atire. E então o braço dele se move e o som de um tiro<br />

soa pelo ar. Meu corpo instintivamente se esquiva, esperando o canhão me<br />

partir ao meio. Mas eu estou inteiro, sem qualquer machucado. Olho confuso, e<br />

lá, na testa do soldado, um buraco de sete centímetros jorrando o sangue<br />

nojento da coisa. Depois ele cai e se desintegra.<br />

- Isso é pelo meu pai. – escuto atrás de mim. – Viro. Sam, segurando uma<br />

pistola prata na mão direta. Sorrio para ele. Ele abaixa a arma. – Eles<br />

passaram por mim no centro da cidade. – ele diz. – Eu soube que eram eles de<br />

cara quando vi o trailer.<br />

Eu tento respirar, olhando com terror para Sam. Bem agora, durante o tiro do<br />

primeiro soldado, ele era um corpo em decomposição saído si inferno para me<br />

levar embora. E agora ele acabou de me salvar.<br />

- Você está bem? – ele pergunta.


Eu aceno. – De onde você veio?<br />

- Eu segui eles na caminhonete do meu pai depois que eles passaram pela<br />

minha casa. Eu cheguei aqui quinze minutos atrás e dei de cara com os que já<br />

estavam aqui. Então eu fui embora e estacionei em um campo a mais de um<br />

quilômetro daqui e vim andando pela floresta.<br />

O segundo farol que nós vimos pela janela da escola era da caminhonete de<br />

Sam. Abro a minha boca para responder, mas um trovão faz o céu tremer.<br />

Outra tempestade começa a se forma, e saber que Seis ainda está viva me<br />

enche de alívio. Um raio corta o céu e nuvens começam a vir de todas as<br />

direções, sendo espremidas em uma gigante massa. E uma escuridão maior<br />

ainda cai, seguida por uma chuva tão pesada que eu tenho que me esforçar<br />

para ver Sam a dois metros de mim. A escola é encoberta. Mas então um<br />

grande raio cai e tudo fica claro por uma fração de segundo, e eu vejo que a<br />

besta foi atingida. Logo depois se escuta um agonizante rugido.<br />

- Eu tenho que chegar na escola! – berro. – Mark e Sarah estão em algum<br />

lugar lá dentro.<br />

- Se você vai, eu vou também. – ele berra em resposta acima do barulho da<br />

tempestade.<br />

Não damos nem mais do que cinco passos antes do vento começar a uivar,<br />

nos empurrando para trás, a chuva torrencial batendo em nossos rostos como<br />

agulhas. Estamos ensopados, tremendo e gelados. Mas se estou tremendo é<br />

porque estou vivo. Sam se abaixa sobre os joelhos e deitado de barriga para<br />

baixo tentando evitar que voe para trás. Faço o mesmo. Apertando os olhos<br />

viro para o céu, as nuvens - pesadas, escuras, ameaçadoras – girando em<br />

pequenos círculos concêntricos e, no meio, o centro que estou me forçando<br />

para enxergar, um rosto começa a se formar.<br />

É um rosto antigo, envelhecido, com barba e uma aparência tranquila como se<br />

estivesse dormindo. Um rosto que parece mais velho do que a própria Terra.<br />

As nuvens começam a abaixar, indo lentamente até a superfície e consumindo<br />

tudo, fazendo escurecer, uma escuridão tão profunda e impenetrável que é<br />

difícil imaginar que em algum lugar, qualquer lugar, o sol exista. Outro rugido,<br />

um rugido de fúria e condenação. Tento levantar, mas rapidamente sou jogado<br />

para trás, o vento está muito forte. O rosto. Está ganhando vida. Está<br />

acordando. Os olhos abrindo, a expressão se transformando em uma careta.<br />

Isso é uma criação de Seis? O rosto se transforma a fúria em si, a expressão<br />

de vingança. Descendo rápido. Tudo parece está pendendo em uma balança.<br />

Então o rosto abre a boca, lábios famintos dobrados para mostrar os dentes e<br />

seus olhos em uma expressão que só pode ser descrita como maldade.<br />

Completa e total ira.


O rosto toca o chão e uma explosão supersônica balança o chão, uma<br />

explosão que atinge a escola, iluminando tudo em tons de vermelho, laranja e<br />

amarelo. Eu sou jogado para trás. Árvores quebram ao meio. O chão treme. Eu<br />

caio com um baque, galhos e musgo caindo sobre mim. Meu ouvido fica<br />

zumbindo de um modo que nunca aconteceu antes. Um barulho tão alto que<br />

deve ter sido ouvido a cinquenta quilômetros daqui. E então a chuva para, o<br />

silêncio recai sobre tudo.<br />

Fico deitado sobre o musgo, ouvindo as batidas do meu coração. O céu fica<br />

limpo, revelando a nuvem. Nem uma única rajada de vento. Olho em volta, mas<br />

não vejo Sam. Grito por ele, mas não recebo resposta. Fico nervoso querendo<br />

ouvir algo, qualquer coisa, outro rugido, o tiro da arma de Henri, mas não há<br />

nada.<br />

Levanto do chão da floresta, tirando da roupa o musgo e os ramos da melhor<br />

forma possível. Eu saio da floresta uma segunda vez. As estrelas<br />

reapareceram, um milhão brilhando bem alto no céu da noite. Acabou? Nós<br />

vencemos? Ou isso é apenas uma trégua? A escola, eu penso. Tenho que<br />

chegar na escola. Dou um passo, é quando eu escuto.<br />

Outro rugido, vindo de dentro da floresta atrás de mim.<br />

O som retorna. Três sons de tiro seguidos, ecoando pela noite de modo que eu<br />

não tenho ideia de qual direção está vindo. Espero com tudo dentro de mim<br />

que seja da arma de Henri. Ele ainda está vivo, ele ainda está lutando.<br />

O chão começa a tremer. A besta está correndo, direto até mim, sem errar<br />

agora, árvores sendo derrubadas e arrancadas até as raízes atrás de mim. Não<br />

parecem fazer efeito na velocidade da besta. Será que essa é ainda maior do<br />

que as outras? Não quero descobrir. Corro para a escola, mas então percebo<br />

que esse é o pior lugar para ir. Sarah e Mark ainda estão lá, ainda estão<br />

escondidos. Ou pelo menos eu espero que estejam.<br />

Tudo volta ao modo que era antes da tempestade, as sombras chegando perto,<br />

nos seguindo. Sentinelas. Soldados. Eu desvio para a direita e corro pelo<br />

caminho perto das árvores que leva ao campo de futebol, a besta já bem<br />

próxima de mim. Eu realmente tenho esperanças de correr mais rápido do que<br />

ela? Se eu conseguir chegar nas árvores depois do campo, talvez eu possa. Eu<br />

conheço essa floresta, as árvores que vão até a nossa casa. Dentro delas eu<br />

vou ter a vantagem de conhecer o lugar. Olho em volta e vejo as silhuetas dos<br />

Mogadorians no pátio da escola. Há muitos deles. Estamos em muita<br />

desvantagem. Nós realmente acreditamos que podemos vencer?<br />

Uma adaga voa passando por mim, um flash em vermelho que não atinge meu<br />

rosto por centímetros. Ela acerta um tronco atrás de mim e a árvore pega fogo.<br />

Outro rugido. A besta está se aproximando. Qual de nós tem a maior


capacidade para sobreviver? Eu entro no estádio, disparando pela linha de<br />

cinquenta metros e passando pelo lado do time visitante. Outra faca passa por<br />

mim zunindo, uma azul dessa vez. A floresta está perto, e quando eu<br />

finalmente entro nela um sorriso se forma no meu rosto. Eu consegui guiar a<br />

besta para longe dos outros. Se todos os outros estão seguros, então me<br />

trabalho está feito. Mal a sensação de triunfo explode dentro de mim, a terceira<br />

adaga acerta.<br />

Eu deixo escapar um gemido, caio de cara no musgo. Posso sentir a adaga<br />

entre os meus ossos. Uma dor tão forte que me deixa paralisado. Eu tento<br />

alcança-la para tirar, mas está muito no alto. E parece que está se movendo,<br />

afundando mais, a dor se espalhando como se eu tivesse sido envenenado. No<br />

meu estômago, em agonia. Também não consigo tirar com telecinese, todos os<br />

meus poderes estão falhando. Eu começo a me arrastar para frente. Um dos<br />

soldados – ou talvez um sentinela; não sei dizer qual – coloca o pé nas minhas<br />

costas, segura e puxa a faca. Eu deixo escapar um gemido. A faca se foi, mas<br />

a dor continua. A coisa tira o pé de mim, mas ainda posso sentir sua presença,<br />

e eu viro para ficar de costas e vê-lo.<br />

Outro soldado, em pé e sorrindo com ódio. A mesma expressão do anterior, o<br />

mesmo tipo de espada. Ele gira nos dedos a adaga que estava nas minhas<br />

costas. Foi isso que eu senti, a lâmina girando enquanto estava encravada na<br />

minha carne. Eu levanto a mão na direção do soldado para move-lo, mas é em<br />

vão. Não consigo me focar, está tudo embaçado. O soldado ergue a espada no<br />

ar. A lâmina sente a morte, começa a brilhar com o céu da noite como fundo.<br />

Já era, penso. Não há nada que eu possa fazer. Fito os olhos dele. Dez anos<br />

fugindo e é fácil assim que termina, silenciosamente. Mas atrás dele surge algo<br />

mais. Algo mais ameaçador do que um milhão de soldados com um milhão de<br />

espadas. Dentes tão grandes quando os soldados reluzindo em branco em<br />

uma boca muito pequena para caberem. A besta e seus olhos malignos<br />

pairando sobre nós.<br />

O ar fica preso na minha garganta em um influxo agudo e meus olhos se<br />

arregalam com o terror. Essa coisa vai acabar com nós dois, penso. O soldado<br />

está distraído. Ele se estica e faz uma careta para mim, começando a abaixar a<br />

espada para me partir em dois. Mas ele é muito lento e a besta chega primeiro,<br />

sua mandíbula o segura como uma armadilha para ursos. Não para de morder<br />

até que seus dentes se encontrem, o corpo do soldado partido ao meio bem<br />

abaixo da cintura, não deixo nada a não ser duas pernas ainda em pé. A besta<br />

mastiga e engole. As pernas do soldado caem inexpressivamente no chão,<br />

uma para cada lado, e rapidamente se desintegram.<br />

Leva cada pingo da minha força para que eu me estique e pegue a adaga que<br />

caiu ao meu pé. Enfio no cós da minha calça e começo a engatinhar para<br />

longe. Sinto a besta se erguendo sobre mim, sinto sua respiração na minha


nuca. O cheio de morte e carne podre. Entro em uma pequena clareira. Espero<br />

que a ira da fúria a qualquer segundo, espero seus dentes e suas garras me<br />

fazerem em pedaços. Vou me arrastando até não poder mais e apoio minhas<br />

costas contra uma árvore de carvalho.<br />

A besta está em pé no meio da clareira, a nove metros de mim. Olho para essa<br />

coisa direito pela primeira vez. Ela é gigante, o negro da escuridão e o frio da<br />

noite. Mais alta e maior do que a besta da escola, doze metros, em pé sobre as<br />

pernas de trás. Ela é grande, uma pele cinza esticada sobre os músculos. Sem<br />

pescoço, a cabeça inclinada de modo que a parte de baixo da mandíbula fica<br />

mais para fora do que a de cima. Um par de caninos pontudos em direção ao<br />

céu, outro em direção ao chão, pingando sangue a baba. Braços longos e<br />

grossos pendurados a trinta ou sessenta centímetros do chão mesmo que a<br />

besta ereta pareça estar levemente inclinada para frente. Olhos amarelos.<br />

Discos redondos de cada lado de sua cabeça que pulsando junto com a batida<br />

de seu coração, o único sinal que essa coisa tem qualquer espécie de coração<br />

ou coisa assim.<br />

Ela se inclina para frente e bate com a mão esquerda no chão. Uma mão com<br />

dedos curtos e grossos de onde saem garras como a de aves de rapina, garras<br />

feitas para rasgar tudo o que toque. A coisa me fareja, e ruge. Um rugido de<br />

estourar os ouvidos que teria me feito voar para trás se eu não estivesse contra<br />

uma árvore. A boca dela abre, mostrando uns cinquenta dentes, um mais<br />

afiado do que o outro. Com a outra mão estia o braço para o lado partindo ao<br />

meio cada árvore que atinge, dez, quinze ou mais.<br />

Não há mais fuga. Não há mais luta. O sangue do ferimento da adaga escorre<br />

pelas minhas costas; minhas mãos e pernas estão tremendo. A adaga ainda<br />

está enfiada no cós do meu jeans, mas para que pegá-la? Que esperança há<br />

em uma lâmina de dez centímetros contra uma besta de doze metros? Seria o<br />

mesmo que uma farpa. Só vai deixa-la mais irritada. Minha única esperança é<br />

sangrar até a morte antes que eu seja morto e mastigado.<br />

Fecho os olhos e aceito a morte. Minhas mãos estão apagadas. Não quero ver<br />

o que está para acontecer. Escuto um movimento atrás de mim. Abro os olhos.<br />

Um dos Mogadorians deve estar se aproximando para ver de perto, penso<br />

primeiro, mas sei imediatamente que estou errado. Há algo familiar no modo de<br />

andar galopando, reconheço o som de sua respiração. E então ele entra na<br />

clareira.<br />

Bernie Kosar.<br />

Sorrio, mas rapidamente o sorriso desaparecer. Se eu vou ser assassinado,<br />

não há motivo para ele morrer também. Não, Bernie Kosar.Você não pode ficar<br />

aqui. Você tem que ir embora e precisa correr como o vento, ir o mais longe


que puder. Finja que acabou nossa corrida até a escola das manhãs acabou e<br />

que é hora de voltar para casa.<br />

Ele olha para mim enquanto caminha. Eu estou aqui, parece estar dizendo. Eu<br />

estou aqui e eu vou ficar com você.<br />

Não. – digo em voz alta.<br />

Ele para tempo o bastante para dar à minha mão uma lambida tranquilizadora.<br />

Ele me olha com seus olhos castanhos grandes. Foge, John, escuto na minha<br />

mente. Engatinhe, se você tiver que engatinhar, mas fuja agora. O sangue que<br />

perdi está me fazendo delirar. Para que Bernie está se comunicando comigo.<br />

Será que Bernie Kosar está mesmo aqui ou eu também estou imaginando<br />

isso?<br />

Ele para na minha frente como se estivesse me protegendo. Começa a rosnar,<br />

baixo no começo, mas depois cresce se transformando em um rosnado tão<br />

feroz quanto o rugido da própria besta. Ela fita Bernie Kosar. Olhando para<br />

baixo. O pelo de Bernie Kosar está arrepiado nas costas, suas orelhas marrons<br />

erguidas. Sua lealdade e sua coragem quase me fazem chorar. Ele é centenas<br />

de vezes menor do que a besta mesmo se ficassem em pé, pronto para lutar.<br />

Um rápido movimento da besta e está tudo terminado.<br />

Estendo minha mão para Bernie Kosar. Queria poder levantar, pegá-lo e fugir.<br />

Seus rosnado é tão feroz que todo seu corpo sacode, vários tremores fluindo<br />

por seu corpo.<br />

E então algo acontece.<br />

Bernie Kosar começa crescer.<br />

Capítulo 32<br />

DEPOIS DE TODO ESSE TEMPO, SÓ AGORA EU ENTENDO. Nas corridas<br />

de manhã quando eu corria muito rápido para ele conseguir acompanhar. Ele<br />

podia desaparecer dentro da floresta, reaparecer segundos depois na minha<br />

frente. Seis tentou me contar. Seis olhou uma vez para ele e soube<br />

imediatamente. Nessas corridas Bernie Kosar foi para a floresta se transformar,<br />

virar um pássaro. De modo que ele corria para fora toda manhã, nariz no chão,<br />

patrulhando o quintal. Protegendo a mim, e a Henri. Procurando por sinais dos<br />

Mogadorians. A lagartixa na Florida. A lagartixa que costumava me observar da<br />

parede enquanto eu comia café da manhã. Há quanto tempo ele está conosco?<br />

Um Chimæra, como aqueles que eu assisti serem colocados dentro do foguete<br />

- eles chegaram a Terra então?


Bernie Kosar continua a crescer. Ele me diz para correr. Posso me comunicar<br />

com ele. Não, isso não é tudo. Eu posso me comunicar com todos os animais.<br />

Outro Legado. Começou com o veado na Florida no dia que fomos embora. O<br />

arrepio que correu pela minha espinha como se passasse algo para mim,<br />

algum sentimento. Atribui isso a tristeza de ir embora, mas estava errado. Os<br />

cachorros de Mark James. As vacas que eu passo nas minhas corridas da<br />

manhã. A mesma coisa. Me sinto um idiota por descobrir só agora. Algo tão<br />

óbvio, bem na minha cara. Outro dos provérbios de Henri: Aquelas coisas que<br />

são mais óbvias são aquelas que mais facilmente nós não reparamos. Mas<br />

Henri sabia. É por isso que ele disse não para Seis quando ela tentou me dizer.<br />

Bernie Kosar parou de crescer; o pelo caiu, substituído por escamas. Ele<br />

parece um dragão, mas sem asas. Seu corpo está grosso com os músculos.<br />

Dentes pontudos e garras, chifres que se curvam como os de carneiro. Mais<br />

grosso do que a besta, mas bem menor. Parecendo tão ameaçador quanto.<br />

Dois gigantes nos lados opostos da clareira, rugindo uma para o outro.<br />

Corre, ele me diz. Eu tento dizer a ele que eu não posso. Eu não sei se ele<br />

pode me entender. Você pode, ele diz. Você deve.<br />

A besta se move. Um movimento como que para martelar, começando nas<br />

nuvens e despencando com brutalidade. Bernie Kosar usa os chifres para<br />

bloquear e ataca antes que a besta possa repetir o golpe. Uma colisão colossal<br />

bem no meio da clareira. Bernie Kosar sobe, enterra os dentes na lateral da<br />

besta. A besta o empurra pra trás. Os dois se movem tão rápido que desafia<br />

toda a lógica. Cortes cheios de sangue já pelo corpo de cada um. Eu assisto<br />

com as costas contra a árvore. Eu tento ajudar. Mas minha telecinese ainda<br />

está lesada. Sangue ainda escorre pelas minhas costas. Meus membros estão<br />

pesados, como se meu sangue tivesse virado chumbo. Posso me sentir<br />

desvanecendo.<br />

A besta ainda está em pé nas duas pernas enquanto Bernie Kosar tem que<br />

lutar sobre as quatro. A besta ataca. Bernie Kosar abaixa a cabeça e eles<br />

chocam-se um no outro, quebrando as árvores ao meu lado direito. De algum<br />

jeito a besta terminou por cima. Ela enterra os dentes profundamente no<br />

pescoço de Bernie Kosar. Depois sacode, tentando arrancar o pescoço. Bernie<br />

Kosar se contorce sob a mordida da besta, mas não consegue se libertar. Ele<br />

corta a pele da besta com as garras, mas ela não solta.<br />

Então uma mão encosta em mim por trás, pega meu braço. Eu tento empurrála,<br />

mas sou incapaz de fazer até isso. Os olhos de Bernie Kosar estão<br />

fechados com força. Ele está rígido abaixo da mandíbula da besta, o pescoço<br />

contraído, incapaz de respirar.<br />

- Não! – eu berro.


- Vem! – a voz berra atrás de mim. – Nós temos que sair daqui.<br />

- O cachorro. – eu digo, sem compreender de quem é a voz. – O cachorro!<br />

Bernie Kosar está sendo mordido e sufocado, prestes a morrer, e não há a<br />

porra nenhuma que eu possa fazer. Eu não estou muito atrás. Eu sacrificaria a<br />

minha própria vida por ele. Eu grito. Bernie Kosar vira a cabeça e olha para<br />

mim, seu rosto contorcido com força em dor, agonia e a chega da morte que<br />

ele deve sentir.<br />

- Nós temos que ir! – a voz atrás de mim berra, a mão me levantando do chão<br />

da floresta. Os olhos de Bernie Kosar continuam fixos nos meus. Vai, ele diz<br />

para mim. Sai daqui, agora, enquanto você pode. Não há muito tempo.<br />

De alguma forma eu fico em pé. Tonto, o mundo vira um nevoeiro em volta de<br />

mim. Apenas os olhos de Bernie Kosar continuam claros. Olhos que gritam<br />

"Socorro!" mesmo que seus pensamentos digam o contrário.<br />

- Nós temos que ir! – a voz berra outra vez. Não viro o meu rosto, mas sei de<br />

quem é a voz. Mark James, não mais escondido na escola, tentando me salvar<br />

desse confronto. Ele estar aqui deve significar que Sarah está bem, e por um<br />

breve momento me permito ficar aliviado, mas então o alívio desaparece tão<br />

rápido quanto surgiu. Nesse exato momento apenas uma coisa importa. Bernie<br />

Kosar, de lado, olhando para mim com olhos embaçados. Ele me salvou. É a<br />

minha vez de salvá-lo.<br />

Mark passa a mão dele através do meu peito, começando a me puxar para<br />

trás, para fora da clareira, para longe da luta. Eu me solto. Os olhos de Bernie<br />

Kosar começam a se fechar lentamente. Ele está desmaiando, eu penso. Não<br />

vou assistir você morrer, digo a ele. Eu vou ter que assistir muitas coisas nesse<br />

mundo, mas eu vou ser destruído se ver você morrer. Não há resposta. A<br />

mordida da besta fica mais forte. A coisa pode sentir que a morte está próxima.<br />

Dou um passo vacilante e tiro a adaga do cós do meu jeans. Fecho os dedos<br />

com força em volta do punho e ela ganha vida, começando a brilhar. Nunca<br />

vou ser capaz de acertar a besta arremessando a adaga, e todos os meus<br />

Legados desapareceram. Uma decisão fácil. Sem opção a não ser ir em frente.<br />

Respiro fundo e com dificuldade. Balanço meu corpo pra trás, todo o meu<br />

corpo rígido por causa da dor da exaustão, não há nem um centímetro em mim<br />

que não exista algum tipo de dor.<br />

- Não! – Mark berra atrás de mim.<br />

Arremesso meu corpo adiante e corro até a besta. Os olhos da besta estão<br />

fechados, a mandíbula presa com força em volta do pescoço de Bernie Kosar<br />

de forma que a luz da lua brilha nas poças de sangue em volta. Está a nove


metros. Depois seis. Os olhos da besta se abrem de repente no exato<br />

momento que eu pulo. Olhos amarelos que se retorcem em fúria no segundo<br />

que eles focam em mim, deslizando através do ar na direção deles, adaga que<br />

seguro nas duas mãos erguida sobre a minha cabeça como em algum sonho<br />

heroico do qual eu nunca iria querer acordar. A besta larga o pescoço de<br />

Bernie Kosar e se move para morder, mas certamente sabe que percebeu<br />

tarde demais. A lâmina da adaga brilha em antecipação, e eu enterro<br />

profundamente nos olhos da besta. Um líquido que parece uma gosma<br />

imediatamente sai. A besta solta um berro aterrorizado tão alto que é difícil<br />

acreditar que os mortos vão continuar dormindo.<br />

Eu caio pra trás sobre as minhas costas. Levanto a cabeça e vejo a besta<br />

cambalear sobre mim. Ela tenta em vão tirar a adaga do olho, mas a mão é<br />

muito grande e a adaga muito pequena. As armas dos Mogadorians funcionam<br />

de modos que eu acho que nunca vou entender, por causa dessas transições<br />

sobrenaturais entre as realidades. A adaga não é diferente, o negro da noite<br />

entra no olho da besta como a canalização de um vórtice obscura, um tornado<br />

da morte.<br />

E besta cai em silêncio quando a última nuvem negra entra em seu crânio, e a<br />

adaga é sugada para dentro junto. Os braços da besta caem frouxamente ao<br />

seu lado. As mãos começam a tremer. Um tremor violento que repercutem por<br />

toda parte de seu corpo massivo. Quando as convulsões acabam a besta se<br />

encurva pra frente e depois cai no chão com as costas contra a parede.<br />

Sentada, mas ainda se ergue dez metros acima de mim. Tudo silencioso,<br />

pendendo em antecipação ao que está por vir. Uma arma dispara uma vez, tão<br />

perto de mim que meus ouvidos continuando ecoando por segundos depois. A<br />

besta pega bastante ar e segura como se estivesse meditando, e de repente<br />

sua cabeça explode, fazendo chover pedaços de cérebro, carne e crânio sobre<br />

tudo, todos os quais rapidamente viram cinzas e pó.<br />

A floresta recai em silêncio. Viro a cabeça e olho para Bernie Kosar, que ainda<br />

continua caído imóvel de lado, os olhos fechados. Não posso dizer se ele está<br />

vivo ou não. Enquanto olho para ele, ele começa a mudar outra vez,<br />

retrocedendo para seu tamanho normal, enquanto continua inconsciente. Eu<br />

escuto o som de folhas sendo amassadas e galhos quebrando próximo de<br />

mim.<br />

Levou toda a força que eu tenho só para levanta a minha cabeça um<br />

centímetro do chão. Abro os olhos e espio no nevoeiro da noite, esperando ver<br />

Mark James. Mas não é ele que está sobre mim. O ar fica preso no meu<br />

pescoço. Uma silhueta gigante, indistinta com a luz da lua pairando bem acima<br />

dela. Depois ele dá um passo a frente, entrando na frente da lua, e meus olhos<br />

se arregalam em antecipação e temor.


Capítulo 33<br />

A IMAGEM GANHA FOCO, ATRAVÉS da exaustão, dor e medo, um sorriso<br />

vem ao meu rosto, junto com uma sensação de alívio. Henri. Ele joga a<br />

shotgun nos arbustos e abaixa sobre um joelho perto de mim. Seu rosto está<br />

ensanguentado, sua camisa e jeans em farrapos, cortes pelo comprimento de<br />

seus dois braços e em seu pescoço, e, além disso, eu vejo que seus olhos<br />

estão espantados pelo que ele vê nos meus.<br />

- Acabou? – pergunto.<br />

- Shhh. – ele diz. – Me diz, você foi acertado por alguma das adagas dele?<br />

- Nas costas. – digo.<br />

Ele fecha os olhos e balança a cabeça. Depois procura no bolso e tira uma das<br />

pequenas pedrinhas redondas que eu o observei pegar no Baú Lorien antes de<br />

sairmos da sala de adm. doméstica. Suas mãos estão tremendo.<br />

- Abra a boca. – ele diz. Ele coloca uma das pedras. – Mantenha embaixo da<br />

língua. Não engula. – ele coloca as mãos embaixo dos meus braços e me<br />

levanta. Fico em pé e ele continua com um braço em volta de mim enquanto<br />

retomo o equilíbrio. Ele me vira para ver o corte nas minhas costas. Meu rosto<br />

está quente. Uma espécie de rejuvenescimento floresce dentro de mim vindo<br />

da pedra. Meus membros ainda doem com a exaustão, mas força voltou o<br />

suficiente de modo que eu sou capaz de me movimentar.<br />

- O que é isso?<br />

- Sal Loric. Isso vai retardar e paralisar os efeitos da adaga. – ele diz. – Você<br />

vai sentir uma explosão de energia, mas não vai durar muito e nós temos que<br />

voltar para escola o mais rápido que conseguirmos.<br />

A pedra está fria na minha boca, não tem nem um pouco gosto de sal – na<br />

verdade, não tem gosto de nada. Eu olho pra baixo e vejo como estou, e então<br />

varro com minhas mãos o resíduo de cinzas deixado pela besta que morreu.<br />

- Está todo mundo bem? – pergunto.<br />

- Seis foi seriamente ferida. – ele diz. – Sam está carregando ela para a<br />

caminhonete enquanto nós conversamos; depois vai dirigir até a escola para<br />

nos pegar. É por isso que nós temos que voltar.<br />

- Você viu Sarah?<br />

- Não.<br />

- Mark James estava bem aqui. – eu digo, e olho para ele. – Pensei que fosse<br />

você.


- Não o vi.<br />

Olho de Henri para o cachorro. – Bernie Kosar. – digo. Ele ainda está<br />

encolhendo, as escamadas desaparecendo - pelo cor de caramelo, preto e<br />

marrom tomando o lugar - retornando a forma de quando o conheci: orelhas<br />

caídas, pernas curtas, corpo longo. Um beagle de nariz úmido e frio sempre<br />

pronto para corrida. – Ele acabou de salvar minha vida. Você sabia, não sabia?<br />

- Claro que eu sabia.<br />

- Por que não me contou?<br />

- Porque ele tomava conta de você quando eu não podia.<br />

- Mas como ele está aqui?<br />

- Ele estava na nave conosco.<br />

Eu lembro do que eu pensei ser um animal de pelúcia que costumava brincar<br />

comigo. Então na verdade era Bernie Kosar com que eu brincava, apesar de lá<br />

seu nome ser Hadley.<br />

Nós caminhamos até o cachorro juntos. Eu abaixo e passo a mão no pelo de<br />

Bernie Kosar.<br />

- Temos que nos apressar. – Henri diz novamente.<br />

Bernie Kosar não está se movendo. A floresta está viva, cheia de sombras que<br />

só podem significar uma coisa, mas eu não me importo. Coloco a cabeça na<br />

barriga do cachorro. Escuto bem de leve as batidas do coração dele. Algum<br />

vislumbre da vida que ainda foi deixada. Ele está coberto de profundos cortes e<br />

arranhões, parece que sangue sai de todo lugar. Sua perna da frente está torta<br />

em um ângulo que não é natural, quebrada. Mas ele ainda está vivo. Levanto<br />

ele com o máximo de cuidado, aninhando-o como um uma criança em meus<br />

braços. Henri me ajuda a levantar, depois coloca a mão no bolso, pega outra<br />

pedra e coloca na própria boca. Isso me faz questionar se ele está falando<br />

sobre si quando disse que havia pouco tempo. Nós dois estamos instáveis. E<br />

meu olhar é atraído para a coxa de Henri. Uma ferida brilhando em azul<br />

marinho através do sangue acumulado em volta. Ele também foi atingido por<br />

uma adaga. Me pergunto se a pedra de sal é o único motivo para ele ainda<br />

estar em pé, como é para mim.<br />

- E sua shotgun? – pergunto.<br />

- Estou sem munição.<br />

Nós saímos da clareira, o tempo está passando. Bernie Kosar não se move em<br />

meus braços, mas eu posso sentir que a vida ainda não o deixou. Não ainda.


Nós saímos da floresta, deixando para trás de nós os galhos que nos cobriam,<br />

os arbustos que cheiram a umidade e as folhas amareladas.<br />

- Você acha que pode correr? – Henri pergunta.<br />

- Não. – digo. – Mas vou correr de qualquer forma.<br />

Ouvimos uma grande comoção a nossa frente, uma série de rosnados<br />

seguidos pelo tinido de correntes.<br />

E então nós ouvimos um rugido, não tão sinistro como os outros, mas alto o<br />

suficiente para significar só uma coisa: outra besta.<br />

- Só pode ser brincadeira. – Henri diz.<br />

Galhos se quebram atrás de nós, vindo da floresta, mas ela está muito densa<br />

para ver. Uso minha mão para iluminar e faço uma varredura nas árvores.<br />

Deve haver sete ou oito soldados parados na entrada da floresta, quando a luz<br />

os atinge pegam suas espadas, que ficam vivas, brilhando em suas várias<br />

cores no segundo que eles fazem.<br />

- Não! – Henri grita. – Não use seus Legados; vai te enfraquecer.<br />

Mas é tarde demais. Apago a luz. Vertigem e fraqueza retornam, depois a dor.<br />

Prendo o ar e espero os soldados virem nos atacar. Mas eles não vêm.<br />

Nenhum som vem em seguida a não ser a óbvia movimentação acontecendo<br />

bem na nossa frente. Então escuto um berro atrás de nós. Viro para olhar. As<br />

espadas brilhando começam a se aventurar adiante, por volta de doze metros<br />

de distância. Os soldados riem com confiança. Nove deles armados e cheios<br />

de forças contra três de nós quebrados, surrados e armados com nada mais do<br />

que o próprio valor. A besta de um lado, os soldados do outro. Essa é a<br />

escolha que nós temos que enfrentar agora.<br />

Henri parece não ter medo. Ele tira mais duas pedras do bolso e me entrega<br />

uma.<br />

- As últimas duas. – ele diz, sua voz tremida como se exigisse grande esforço<br />

só para falar.<br />

Jogo a nova pedra dentro da minha boca e coloco embaixo da língua mesmo<br />

que um pequeno pedaço da primeira ainda esteja lá. Força nova corre através<br />

de mim.<br />

- O que você acha? – ele me pergunta.<br />

Nós estamos cercados. Henri, Bernie Kosar e eu somos os únicos três que<br />

restam. Seis foi seriamente feriada e levada embora por Sam. Mark esteve<br />

bem aqui, mas agora não faço ideia de onde pode estar. O que deixa Sarah,


quem eu rezo para estar enfiada em segurança dentro da escola a um décimo<br />

de quilômetro na nossa frente. Respiro fundo e aceito o inevitável.<br />

- Não acho que importe, Henri. – digo, e olho para ele – Mas a escola está na<br />

nossa frente, e é onde Sam vai estar em breve.<br />

O que ele faz em seguida me pega fora de guarda: ele sorri. Ele estende a mão<br />

e aperta o meu ombro. Seus olhos estão cansados e vermelhos, mas neles eu<br />

vejo alivio, uma sensação serenidade como se tudo estivesse prestes a<br />

terminar.<br />

- Nós fizemos tudo o que pudemos. E o que está feito está feito. Mas eu estou<br />

extremamente orgulhoso de você. – ele diz. – Você foi incrível hoje. Eu sempre<br />

soube que você seria. Não havia dúvida na minha mente.<br />

Abaixo a cabeça. Não quero que ele me veja chorando. Aperto o cachorro.<br />

Pela primeira fez desde que o peguei ele mostra um leve sinal de vida,<br />

levantando a cabeça só o suficiente para poder lamber o lado do meu rosto.<br />

Ele passa uma palavra para mim, uma palavra apenas, como se isso fosse<br />

tudo o que a sua força permitisse. Coragem, ele diz.<br />

Levanto a cabeça. Henri dá um passo a frente e me abraça. Fecho os olhos e<br />

enterro minha cabeça em seu pescoço. Ele ainda está tremente, seu corpo<br />

frágil e fraco abaixo do meu aperto. Tenho certeza de que o meu não é mais<br />

forte. Então é isso, eu penso. Erguendo as cabeças nós caminhando através<br />

do campo para seja lá o que nos espera. Ao menos há dignidade nisso.<br />

- Você foi realmente incrível. – ele diz.<br />

Abro os olhos. Acima de seus ombros eu vejo que os soldados estão perto,<br />

seis metros de distância agora. Eles pararam de andar. Um deles está<br />

segurando uma adaga que pulsa em prata e cinza. O soldado joga para o alto,<br />

pega, e arremessa nas costas de Henri. Eu levanto minha mão e desvio para<br />

longe de modo que não o atinge por uns trinta centímetros. Minha força me<br />

deixa quase que imediatamente mesmo que a pedra esteja apenas meio<br />

dissolvida.<br />

Henri pega meu braço livre, passa sobre seu ombro e coloca seu braço direito<br />

em volta da minha cintura. Nós cambaleamos em frente. A besta fica a vista,<br />

pairando bem na nossa frente no centro do campo de futebol. Os Mogadorians<br />

nos seguem atrás. Quem sabe eles estejam curiosos em ver a besta em ação,<br />

em ver a besta matar. Cada passo que eu dou exigisse mais esforço do que o<br />

anterior. Meu coração bate forte no meu peito. A morte está próxima e disso eu<br />

estou aterrorizado. Mas Henri está aqui. E Bernie Kosar também. Estou feliz<br />

em não ter que encarar isso sozinho. Muitos soldados estão do outro lado da<br />

besta. Mesmo se nós pudéssemos passar dela, nós teríamos depois que andar<br />

direto para os soldados, que já estão empunhando as espadas.


Não temos escolha. Alcançamos o campo e eu espero a besta atacar a<br />

qualquer momento. Mas nada acontece. Quando estamos dentro de cinco<br />

metros dela nós paramos. Nós ficamos inclinados um contra o outro como<br />

suporte.<br />

A besta é da metade do tamanho da outra, mas ainda é grande o bastante para<br />

nos matar sem grande esforço. Pele pálida, quase translucida esticada sobre<br />

protuberantes costelas e suas articulações são como nós. Várias cicatrizes<br />

rosadas pelo seu corpo e braços. Olhos brancos, cegos. Ela troca de apoio do<br />

peso e abaixa, depois chega a cabeça mais perto da grama para cheirar o que<br />

seus olhos falham em ver. Ela pode sentir que estamos na sua frente. Ela deixa<br />

escapar um gemido baixo. Não sinto nem um pouco da fúria e malícia que as<br />

outras bestas irradiavam, nenhum desejo de sangue e morte. Há medo,<br />

tristeza. Eu me abro para isso. Vejo imagens de tortura e fome. Eu vejo a besta<br />

presa por toda sua vida aqui na Terra, uma caverna úmida onde pouca luz<br />

chega. Tremendo durante a noite para se manter aquecida, sempre fria e<br />

úmida. Vejo o modo como os Mogadorians colocam as bestas umas contra as<br />

outras, as forçam a brigar para treinar, para endurece-las e fazê-las cruel.<br />

Henri me solta. Não consigo segurar mais Bernie Kosar. Gentilmente o coloco<br />

na grama aos meus pés. Não sinto ele se mexer a uns minutos e não saberia<br />

dizer se ainda está vivo. Dou um passo a frente e abaixo sobre os joelhos. Os<br />

soldados berram em volta de nós. Não entendo a linguagem deles, mas posso<br />

dizer por seus tons que eles estão impacientes. Um move sua espada e uma<br />

adaga por pouco não me acerta, passa em um flash de branco que balança e<br />

rasga a frente da minha camisa. Fico de joelhos e olho para a besta pairando<br />

sobre mim. Atiram com alguma arma, mas passa acima de nossas cabeças.<br />

Um tiro de aviso, dado para fazer a besta atacar. A besta treme. Uma segunda<br />

adaga é arremessada através do ar e atinge a besta abaixo do cotovelo em seu<br />

braço esquerdo. Ela levanta a cabeça e ruge em dor.<br />

Eu sinto muito, eu tento dizer a ela. Eu sinto muito pela vida que você foi<br />

forçada a viver. Você foi injustiçada. Nenhuma criatura viva merece esse tipo<br />

de tratamento. Você foi forçada a enfrentar o inferno, arrancada de seu planeta<br />

para lutar uma luta que não é a sua. Espancada, torturada e deixada passando<br />

fome. A culpa por toda a dor e agonia que você viveu está com eles. Você e eu<br />

dividimos um laço em comum. Ambos injustiçados por esses monstros.<br />

Tento com tudo passar minhas próprias imagens, as coisas que vi e senti. A<br />

besta não afasta os olhos. Meus pensamentos, de certo morto, estão<br />

alcançando ela. Mostro Lorien, o vasto oceano, as densas floresta e as colinas<br />

verdes fervilhando vida e vitalidade. Animais bebendo das águas azuis<br />

geladas. Uma pessoa orgulhosa contente em passar o dia em harmonia.<br />

Mostro a ela o inferno que vem depois, o assassinato de homens, mulheres e<br />

crianças. Os Mogadorians. Assassinos a sangue frio. Destruindo até o próprio


planeta. Onde isso acaba? Mostro a ela Sarah, mostro cada emoção que eu já<br />

senti por ela. Felicidade e êxtase, é assim que eu me sinto com ela. E essa é a<br />

dor que eu sinto em ter que deixá-la, tudo por causa deles. Me ajude, digo. Me<br />

ajude a acabar com essa morte e destruição. Vamos lutar juntos. Tenho tão<br />

pouco deixado, mas se você se erguer comigo, eu vou me erguer com você.<br />

A besta levanta a cabeça para o céu e ruge. Um rugido ao mesmo tempo longo<br />

e profundo. Os Mogadorians podem sentir o que está acontecendo e já viram o<br />

bastante. Abrem fogo. Eu olho pra cima e um dos canhões está apontado<br />

direto para mim. A coisa atira e a morte vem na minha direção, mas a besta<br />

abaixa a cabeça a tempo e absorve o tiro no lugar. O rosto dela se contorce em<br />

dor, seus olhos se fecham com bastante força, mas quase que imediatamente<br />

se abrem. Dessa vez eu vejo fúria.<br />

Caio de cara da grama. Eu sou arranhado por algo, mas eu não vejo o que é.<br />

Henri geme em dor atrás de mim e é lançado a dez metros, seu corpo cai no<br />

musgo, o rosto para cima, fumaça saindo. Não tenho ideia do que o atingiu.<br />

Algo grande e mortal. Pânico e medo me atingem. Henri não, penso. Por favor,<br />

Henri não.<br />

A besta balança o braço como que varrendo o caminho e leva junto vários dos<br />

soldados e para muitas das armas. Outro rugido. Olho pra cima e vejo que os<br />

olhos da besta ficaram vermelhos, em chamas com fúria. Retribuição. Revolta.<br />

Ela olha para mim uma vez e rapidamente corre para seguir seus captores.<br />

Armas atiram, mas muitas delas são rapidamente silenciadas. Mate todos eles,<br />

penso. Lute com nobreza e honra e você poderá matar todos eles.<br />

Levanto a cabeça. Bernie Kosar está imóvel na grama. Henri, dez metros<br />

longe, está imóvel também. Apoio uma mão na grama e me empurro para<br />

frente, através do campo, centímetro por centímetro, me arrastando para Henri.<br />

Quando chego lá seus olhos estão abertos levemente; cada vez que puxa o ar<br />

é uma luta. Trilhas de sangue escorrem de sua boca e nariz. Pego ele entre os<br />

meus braços e coloco no meu colo. Seu corpo está frágil e fraco e eu posso<br />

sentir que ele está morrendo. Seus olhos abrem tremendo. Ele olha para mim e<br />

levanta a mão, pressionando contra o meu rosto. No segundo ele me toca<br />

começo a chorar.<br />

- Eu estou aqui. – digo.<br />

Ele tenta sorrir.<br />

- Sinto muito, Henri. – digo. – Eu sinto muito. Nós deveríamos ter isso embora<br />

que você quis.<br />

- Shh. – ele diz. – Não é culpa sua.<br />

- Sinto muito. – digo entre soluços.


- Você foi incrível. – ele diz em um sussurro. – Você foi realmente incrível. Eu<br />

sempre soube que você seria.<br />

- Nós temos que levar você para a escola. – digo. – Sam pode estar lá.<br />

- Me escute, John. Tudo, – ele começa. – Tudo que você precisa saber, está no<br />

Baú. A carta.<br />

- Não acabou. Nós ainda vamos conseguir.<br />

Posso sentir que ele está começando a me deixar. Está trêmulo. Seus olhos<br />

relutantemente reabrem. Uma linha de sangue desce de sua boca.<br />

- Vir aqui, para Paraíso, não foi por acaso. – eu não sei o que ela quer dizer. –<br />

Leia a carta.<br />

- Henri. – digo. Levanto a mão e limpo o sangue de seu queixo.<br />

Ele olha nos meus olhos.<br />

- Você é o Legado de Lorien, John. Você e os outros. A única esperança que o<br />

planeta deixou. Os segredos, – ele diz, e é pego por um acesso de tosse. Mais<br />

sangue. Seus olhos se fecham novamente. – O Baú, John.<br />

Abraço ele com mais força puxando para mim, apertando. Seu corpo está<br />

ficando mais mole. Respirando tão pouco que nem respirar direito é.<br />

- Nós vamos voltar, Henri. Eu e você. Eu prometo. – digo, e fecho meus olhos.<br />

- Seja forte. – ele diz, e é pego outra vez por tosse frágeis, apesar disso ele<br />

continua tentando falar. – Essa guerra...Pode ser vencida...Encontre os<br />

outros...Seis...O poder de... – ele diz, e perde o rumo.<br />

Tento levantar com ele em meus braços, mas eu não tenho força, chega ser<br />

difícil até respirar. Escuto a besta rugir ao longe. Canhões ainda estão sendo<br />

disparados, os sons e luzes acima do estádio tão claras, mas a cada minuto<br />

que passa menos e menos deles estão sendo disparados até que não há<br />

nenhum. Abaixo Henri nos meus braços. Coloco a mão no lado de seu rosto e<br />

ele abre os olhos, olhando para mim pelo que eu sei que será a última vez. Ele<br />

respira de um modo fraco e eu sei que essa vai ser a última vez, ele vai<br />

lentamente fechando os olhos.<br />

- Eu não teria trocado nem um segundo disso, querido. Nem por todos de<br />

Lorien. Nem pela droga do mundo inteiro. – ele diz, e quando a última palavra<br />

deixa sua boca eu sei que ele se foi. Aperto ele em meus braços, tremendo e<br />

chorando em um braço desesperado e sem esperanças. A mão dele cai sem<br />

vida sobre a grama. Pego a cabeça dele com as minhas mãos e seguro perto<br />

do meu peito, balançando-o para trás e para frente enquanto choro como se


nunca tivesse chorado antes. O pingente no meu pescoço brilha em azul, fica<br />

mais pesado por uma fração de segundo, e então volta ao normal.<br />

Sento na grama e seguro Henri enquanto o último canhão é silenciado. A dor e<br />

o frio da noite deixam o meu corpo e sinto que estou começando a perder os<br />

sentidos. A lua e a estrela continuam brilhando acima de nós. Escuto uma<br />

gargalhada carregada pelo vento. Meus ouvidos são atraídos por isso. Viro a<br />

cabeça. Através da tonteira e da visão embaçada vejo um sentinela a cinco<br />

metros de mim. Sobretudo longo, aba do chapéu sobre os olhos. Ele deixa cair<br />

o sobretudo e tira o chapéu para revelar sua cabeça careca e pálida. Ele coloca<br />

a mão na parte de trás do sinto e pega uma faca bowie, a lâmina da qual não é<br />

maior do que trinta centímetro. Fecho os olhos. Não me importo mais. A<br />

respiração áspera do sentinela começa a se aproximar de mim, três metros,<br />

depois dois. E então os passos param. O sentinela geme em dor e começa a<br />

fazer um barulho com a boca, como que gargarejando.<br />

Abro os olhos, o sentinela está tão perto que eu posso sentir seu cheiro. A faca<br />

bowie cai de sua mão, e em seu peito, onde eu imagino que o coração deva<br />

estar, está aponta de uma faca de açougueiro. A faca é retirada. O sentinela<br />

cai sobre os joelhos, depois para o lado, e explode em uma nuvem de cinzas.<br />

Atrás dele, segurando a faca em sua mão direita trêmula, com lágrimas nos<br />

olhos, está Sarah. Ela larga a faca e corre para mim, passando os braços em<br />

volta de mim que estou com os braços em volta de Henri. Seguro Henri<br />

enquanto minha própria cabeça cai e o mundo se resume a nada. As<br />

consequências da guerra, a escola destruída, as árvores caídas e os montes<br />

de cinzas em pilhas na grama do campo de futebol e eu ainda seguro Henri. E<br />

Sara me segura.<br />

Capítulo 34<br />

VÁRIAS IMAGENS COMEÇAM A PASSAR, CADA UMA TRAZENDO A<br />

PRÓPRIA tristeza ou a própria felicidade. Às vezes os dois. Na piores, a<br />

escuridão é cerca e impenetrável e, nas melhores, é uma alegria tão brilhante<br />

que chega a machucar os olhos, elas vem e vão de algum projetor fora de<br />

vista, perpetuamente trocadas por uma mão invisível. Uma, depois outra. O<br />

clique fantasmagórico do obturador. Agora para. Congela nesse quadro.<br />

Aproxima e mantem perto para que você seja amaldiçoado pelo que está<br />

vendo. Henri sempre disse: o preço da memória é a memória de dor que ela<br />

traz.<br />

Um dia quente de verão, a grama fria e o sol bem alto no céu sem nuvens. Um<br />

vento vem da água, carregando o frescor do mar. Um homem caminha para a


casa, pasta na mão. Um homem jovem, cabelo castanho cortado curto, barba<br />

recém-feita, vestido causalmente. Dá para perceber o nervosismo pela forma<br />

como ele troca a pasta de uma mão para a outra e pela pequena linha de suor<br />

brilhando em sua testa. Ele bate na porta. Meu avô responde e abre a porta<br />

para que o homem entre, depois que ele passa fecha. Eu volto a brincar no<br />

quintal. Hadley está mudando de forma, voando, depois se esquivando, e então<br />

atacando. Lutando um com o outro e rindo até doer. O dia vai passando do<br />

modo como o tempo passa diante da inocência e inconsequência da infância.<br />

Cinquenta minutos passam. Talvez menos. Nessa idade um dia pode durar<br />

para sempre. A porta abre e fecha. Eu olho pra cima. Meu avô está em pé ao<br />

lado do homem que eu vi se aproximar, os dois olhando para mim.<br />

- Há alguém que eu gostaria que você conhecesse. – ele diz.<br />

Eu levanto da grama e esfrego uma mão na outra para tirar a sujeira.<br />

- Esse é Brandon. – meu avô diz. – Ele é o seu Cêpan. Você sabe o que isso<br />

significa?<br />

Eu balanço a cabeça. Brandon. Esse era o nome dele. Todos esses anos e só<br />

agora a lembrança disso retorna.<br />

- Isso significa que ele vai passar muito tempo com você daqui pra frente.<br />

Vocês dois, isso significa que vocês estão conectados. Vocês estão amarrados<br />

um ao outro. Você entende?<br />

Eu concordo com um aceno, ando até o homem e ofereço minha mão a ele<br />

como eu já havia visto ser feito muitas vezes por homens grandes. O homem<br />

sorri e abaixada sobre um dos joelhos. Ele pega minha pequena mão em sua<br />

direita e fecha os dedos em volta.<br />

- Prazer em conhecê-lo, senhor. – eu digo.<br />

Olhos gentis e brilhantes, cheios de vida, olham para os meus como se<br />

oferecessem uma promessa, um laço, apesar de eu ainda ser muito novo para<br />

entender o que essa promessa ou laço realmente significam.<br />

Ele concorda com um aceno e coloca a mão esquerda por cima da direita,<br />

minha pequena mão perdida em algum lugar no meio. Ele acena para mim,<br />

ainda sorrindo.<br />

- Minha querida criança, – ele começa – o prazer é todo meu.<br />

Eu desperto com um pulo. Estou deitado de costas, meu coração batendo<br />

rápido, respirando pesadamente como se eu tivesse acabado de correr. Meus<br />

olhos continuaram fechados, mas eu posso dizer que o sol acabou de nascer


por causa das longas sombras e do frescor do ar no quarto. A dor volta, meus<br />

membros ainda pesados. Com essa dor vem outra, uma dor muito maior do<br />

que qualquer dor física que poderia me afligido: a memória das últimas horas.<br />

Eu respiro fundo e exalo. Uma única lágrima escorrega pelo lado do meu rosto.<br />

Eu mantenho meus olhos fechados. Qualquer esperança irracional de que se<br />

eu não encontrar o dia então o dia não vai me encontrar, que as coisas na noite<br />

vão ser anuladas. Meu corpo treme, o choro quieto se transformando em um<br />

maior. Eu balanço a cabeça e me deixo chorar. Eu sei que Henri está morro e<br />

que toda a esperança do mundo não vai mudar isso.<br />

Eu sinto um movimento ao meu lado. Fico tenso, tentando ficar imóvel para não<br />

ser percebido. Uma mão se estende e toca o lado do meu rosto. Um toque<br />

delicado e com amor. Meus olhos se abrem, se ajustando à luz do amanhecer<br />

até o teto de um quarto estranho entrar em foco. Não faço idéia de onde estou,<br />

nem de como eu poderia ter chegado aqui. Sarah está sentada perto de mim.<br />

Ela traz a mão para o lado do meu rosto e traça minha sobrancelha com seu<br />

polegar. Depois abaixa e me beija, um beijo gentil e demorado que eu desejo<br />

guardar e salvar para sempre. Ela se afasta, eu respiro fundo e dou um beijo<br />

na testa dela.<br />

- Onde nós estamos? – pergunto.<br />

- Em um hotel a cinquenta quilômetros de Paraíso.<br />

- Como eu cheguei aqui?<br />

- Sam dirigiu até aqui.<br />

- Quero dizer, da escola. O que aconteceu? Eu lembro que você estava comigo<br />

na última noite, mas eu não lembro nada de depois. – eu digo. – Está<br />

parecendo até um sonho.<br />

- Eu esperei no campo com você até Mark chegar e ele te carregou para a<br />

caminhonete de Sam. Eu não podia mais ficar escondida. Continuando na<br />

escola sem saber o que estava acontece lá fora estava me matando. E eu<br />

sentia como se pudesse ajudar de alguma forma.<br />

- Você certamente ajudou. – eu digo. – Você salvou a minha vida.<br />

- Eu matei um alienígena. – ela diz, como se ainda não tivesse aceitado muito<br />

bem a ideia.<br />

Ela passa os braços em volta de mim, uma mão atrás da minha cabeça. Eu<br />

tento sentar. Faço até a metade por mim e depois Sarah me ajuda no resto do<br />

caminho, puxando as minhas costas, mas sendo cuidadosa para não tocar no<br />

machucado deixado pela faca. Levanto meu pé até a ponta da cama e procura<br />

pelas cicatrizes em volta do meu tornozelo, contando com as pontas dos meus


dedos. Ainda apenas três, e dessa forma eu sei que Seis sobreviveu. Eu já<br />

tinha aceitado o destino de ter que passar o resto dos meus dias sozinho, um<br />

viajante perambulando sem lugar para ir. Mas eu não vou ficar sozinho. Seis<br />

ainda está aqui, ainda está comigo, meu laço com um mundo do passado.<br />

- A Seis está bem?<br />

- Sim. – ela diz. – Ela foi ferida pelas adagas e levou alguns tiros, mas parece<br />

estar indo bem agora. Eu não sei se ela teria sobrevivido se Sam não tivesse<br />

carregado ela para caminhonete.<br />

- Onde ela está?<br />

- No quarto ao lado, com Sam e Mark.<br />

Eu levanto. Meus músculos e ligamentos doem em protesto, tudo rígido e<br />

inflamado. Eu estou vestindo uma camisa limpa, e shorts comum. O cheiro de<br />

sabão ainda está fresco na minha pele. Os cortes estão limpos e com<br />

curativos, alguns deles com pontos.<br />

- Você fez tudo isso? – pergunto.<br />

- A maior parte. Os pontos foram difíceis. Nós só tínhamos aqueles que Henri<br />

colocou na sua cabeça como exemplo. Sam ajudou com eles.<br />

Eu olho para Sarah sentada na cama, suas pernas dobradas embaixo. Algo a<br />

mais atrai meus olhos, uma pequena massa que foi colocada embaixo do<br />

cobertor no pé da minha cama. Fico tenso, e imediatamente volta a imagem<br />

das doninhas correndo pelo ginásio. Sarah percebe o que eu estou olhando e<br />

sorri. Ela abaixa no pé da cama com os joelhos e mãos no chão.<br />

- Há alguém aqui que quer dizer oi. – ela diz, depois pega a ponta do cobertor e<br />

gentilmente afasta para revelar Bernie Kosar, dormindo. Um talo de metal junto<br />

a sua pata da frente, e seu corpo está coberto de corte e arranhões que, como<br />

as minhas, estão limpos e começando a sarar. Seus olhos abrem de vagar e se<br />

ajustam, olhos corados com vermelho, cheios de exaustão. Ele continua com a<br />

cabeça abaixada, mas seu rabo abana de repente, batendo suavemente contra<br />

a cama.<br />

- Bernie. – eu digo, e abaixo de joelhos. Eu coloco minha mão com cuidado na<br />

cabeça dele. Eu não consigo parar se sorrir e lágrimas de alegria surgem. O<br />

pequeno corpo dele está curvado em uma bola, a cabeça descansando sobre<br />

as patas da frente, seus olhos me fitando, com cicatrizes e machucados da<br />

batalha, mas ainda aqui para contar história.<br />

- Bernie Kosar, você conseguiu. Eu devo minha vida a você. – eu digo e beijo a<br />

topo da cabeça dele.


Sarah passa a mão pelo comprimento das costas dele.<br />

- Eu carreguei ele para a caminhonete enquanto Mark carregava você.<br />

- Mark, me sinto mal por ter duvidado dele. – eu digo.<br />

Ela levanta uma das orelhas de Bernie Kosar. Ele vira, cheira a mão dela e<br />

depois lambe. – Então é verdade o que Mark disse, que Bernie Kosar cresceu<br />

nove metros de altura e matou uma besta duas vezes o tamanho dele?<br />

Eu sorrio. – Uma besta de três vezes o tamanho dele.<br />

Bernie Kosar olhar para mim. Mentiroso, ele diz. Eu olho para baixo e rio para<br />

ele. Depois levanto outra vez e olho para Sarah.<br />

- Tudo isso – eu começo – Tudo isso aconteceu tão rápido. Como é que você<br />

está lidando?<br />

Ela assente. – Lidando com o que? Com o fato de que eu me apaixonei por um<br />

alienígena, o que eu descobri só há uns três dias, e aí fui parar no meio de uma<br />

guerra? É, acho que estou lidando bem.<br />

Eu sorrio para ela. – Você é um anjo.<br />

- Nah. – ela diz. – Eu só sou uma garota totalmente apaixonada.<br />

Ela levanta da cama e passa os braços em volta de mim, nós ficamos ali no<br />

meio do quarto, apenas abraçando um o outro.<br />

- Você realmente tem que ir embora, não tem?<br />

Eu concordo com um aceno.<br />

Ela respira fundo e deixa o ar escapar com dificuldade, se segurando para não<br />

chorar. Mais lágrimas nas últimas vinte e quatro horas do que eu testemunhei<br />

em toda a minha vida.<br />

- Eu não sei onde você tem que ir ou o que você tem que fazer, mas eu vou te<br />

esperar, John. Cada parte do meu coração pertence a você, tendo você pedido<br />

por isso ou não.<br />

Eu puxo Sarah para mim. – E o meu pertence a você. – digo.<br />

Eu atravesso o quarto. Em cima da escrivaninha está o Baú de Lorien, três<br />

malas feitas, o computador de Henri e todo o dinheiro da última vez que ele<br />

retirou. Sarah deve ter recuperado o Baú da sala de adm doméstica. Eu coloco<br />

minha mão sobre ele. Todos os segredos, Henri disse. Todos eles contidos


dentro disso. Na hora certa eu vou abrir e descobri-los, mas certamente não é<br />

agora. E o que ele queria dizer sobre Paraíso, que vir aqui não foi ao acaso?<br />

- Você fez as minhas balas? – pergunto a Sarah, que está em pé atrás de mim.<br />

- Sim, e é provavelmente a coisa mais difícil que eu tive que fazer.<br />

Levanto a minha mala da mesa. Embaixo está um envelope de papel parto,<br />

onde me nome está escrito.<br />

- O que é isso? – pergunto.<br />

- Eu não sei. Eu encontrei no quarto de Henri. Nós fomos lá depois de sair da<br />

escola e tentamos pegar tudo o que dava. Depois viemos pra cá.<br />

Abro o envelope e tiro todo o conteúdo. Todos os documentos que Henri criou<br />

para mim: certidões de nascimentos, de seguridade social, visas e por aí vai.<br />

Eu conto entre eles. Dezessete identidades diferentes, dezessete idades<br />

diferentes. Logo na primeira folha há um post-it na letra de Henri. Está escrito,<br />

“Só por precaução”. E, no final, depois das últimas folhas há outro envelope<br />

selado, através do qual Henri escreveu meu nome. Uma carta, a que ele disse<br />

pouco antes de morrer. Meu coração não está forte o bastante para ler isso<br />

agora.<br />

Eu olho através da janela do quarto do hotel. Uma neve fina cai das nuvens<br />

baixas acima, todas cinzas. O chão está muito quente para que qualquer floco<br />

se mantenha. O carro de Sarah e a caminhonete azul do pai de Sam estão<br />

estacionados lado a lado no estacionamento. Enquanto eu continuo olhando lá<br />

para baixo alguém bate na porta. Sarah abre e Sam e Mark entram no quarto,<br />

Seis vem mancando entre eles. Sam me abraça, diz que sente muito.<br />

- Obrigado. – eu digo.<br />

- Como você se sente? – Seis pergunta. Ela não está mais vestindo o traje,<br />

agora veste o jeans que estava usando quando nos encontramos pela primeira<br />

vez, e uma casaco de moletom do Henri.<br />

Eu dou de ombros. – Eu estou bem. Todo dolorido e machucado. Meu corpo<br />

parece pesado.<br />

- O peso é por causa da adaga. Mas uma hora acaba passando.<br />

- Você foi muito ferida? – eu pergunto.


Ela levanta a camisa e me mostra um corte na lateral, então uma diferente nas<br />

costas. No total, ela foi esfaqueada três vezes na última noite, e sem<br />

mencionar os vários cortes pelo resto do corpo, ou o tiro que a deixou com um<br />

profundo corte em sua coxa direita, agora coberto firme com gaze e fita, é por<br />

isso que ela está mancando. Ela me diz que quando nós voltamos já era muito<br />

tarde para ser curado pela pedra. Me surpreendo de ela ainda estar viva.<br />

Sam e Mark estão vestindo as mesmas roupas do dia anterior, ambas imundas<br />

e cobertas com musgo, sujeira e um punhado de sangue misturado. Os dois<br />

estão com os olhos pesados como se não tivessem dormido.<br />

Os dois com olhos pesados como se não tivesse dormido. Mark estava parado<br />

atrás de Sam, meio desconfortável mudando de posição.<br />

- Sam, eu sempre soube que você era uma máquina de destruição. – eu digo.<br />

Ele ri com incerteza. – Você está bem?<br />

- Aham, estou bem. – eu digo. – E você?<br />

- Indo bem.<br />

Eu olho por cima de seu ombro para Mark.<br />

- Sarah me disse que você me carregou para fora do campo ontem.<br />

Mark deu de ombros. – Eu fiquei feliz em ajudar.<br />

- Você salvou a minha vida, Mark.<br />

Ele fita os olhos. – Eu acho que cada um de nós salvou alguém em ponto<br />

ontem à noite. Meu Deus, Seis me salvou em três ocasiões diferentes. E você<br />

salvou meus dois cachorros no sábado. Acho que estamos quites.<br />

De alguma forma eu consigo sorrir. – É justo. – eu digo. – Eu só estou feliz em<br />

descobrir que você não é o idiota que eu pensei que era.<br />

Ele sorri com o canto dos lábios. – Digamos que se eu soubesse que você era<br />

um alienígena e poderia ter chutado a minha bunda só por querer, eu teria sido<br />

um pouco mais legal com você naquele primeiro dia.<br />

Seis atravessa o quarto e olha para minha mala em cima da mesa.<br />

- Nós realmente temos que ir embora. – ela diz, e então olha para mim com<br />

preocupação implícita, sua expressão suavizando. – Só há uma coisa que nós<br />

ainda não fizemos. Nós não sabíamos o que você ia querer.<br />

Eu concordo com um aceno. Eu não preciso perguntar para saber o que ele<br />

está falando. Eu olho para Sarah. Vai acontecer muito antes do que eu


imaginei. Meu estomago revira. Sinto como se fosse vomitar. Sarah se<br />

aproxima e segura a minha mão.<br />

- Onde ele está?<br />

O chão está úmido com a neve derretida. Seguro a mão de Sarah e nós<br />

atravessamos a floresta em silêncio, um quilômetro e meio de distância do<br />

hotel. Sam e Mark andam na frente, seguindo as pegadas de musgo que eles<br />

criaram algumas horas antes. Lá na frente eu vejo uma pequena clareira, no<br />

centro da qual o corpo de Henri foi deitado em uma placa de madeira. Ele está<br />

enrolado no cobertor cinza tirado de sua cama. Eu ando até ele. Sarah segue e<br />

coloca a mão no meu ombro. Os outros param atrás de mim. Eu afasto o<br />

cobertor para vê-lo. Os olhos dele estão fechados, seu rosto cinza pálido e<br />

seus lábios azuis de frio. Eu beijo a testa dele.<br />

- O que você quer fazer, John? – Seis pergunta. – Nós podemos enterrá-lo se<br />

quiser. Nós também podemos cremá-lo.<br />

- Como nós iríamos cremar?<br />

- Eu posso criar fogo.<br />

- Eu pensei que você só pudesse controlar o clima.<br />

- Não o clima. Os elementos.<br />

Olho para cima e vejo seu rosto suave, preocupação clara em seus traços, mas<br />

também stress por causa da necessidade de ir embora antes que os reforços<br />

cheguem. Não respondo. Eu afasto o olhar e aperto Henri uma última vez, meu<br />

rosto próximo ao dele, e me perco na tristeza.<br />

- Eu sinto muito, Henri. – sussurro em seu ouvido. Fecho meus olhos. – Eu te<br />

amo. Eu não teria perdido um segundo disso também. Não por qualquer coisa.<br />

– sussurro. – Eu ainda vou te levar de volta. De alguma forma vou te levar de<br />

volta para Lorien. Nós sempre brincamos sobre isso, mas você foi o meu pai, o<br />

melhor pai que eu poderia ter pedido. Eu nunca vou esquecer você, nem por<br />

um minuto enquanto eu viver. Eu te amo, Henri. Eu sempre amei.<br />

Eu solto ele, coloco o cobertor de volta sobre o rosto dele, e o deito gentilmente<br />

sobre a placa de madeira. Eu levanto e abraço Sarah. Ela me segura até eu<br />

parar de chorar. Eu afasto a lágrima com as costas na minha mão e aceno para<br />

Seis.<br />

Sem me ajuda a limpar os gravetos e folhas e então nós deitamos o corpo de<br />

Henri no chão para não diluir suas cinzas com qualquer outra coisa, Sam pega


a ponta do cobertor e Seis faz o fogo começar dali. Nós assistimos queimar,<br />

nenhum de nós com os olhos secos. Até Mark chora. Ninguém diz uma<br />

palavra. Quando as chamas acabam eu colho as cinzas para dentro de uma<br />

lata de café que Mark foi inteligente o bastante para trazer do hotel. Eu vou<br />

consegui algo melhor na hora que nós pararmos. Quando nós voltamos eu<br />

coloco a lata no painel da caminhonete do pai de Sam. Eu me sinto confortável<br />

em saber que Henri ainda vai viajar conosco, que ele vai olhar a estrada<br />

enquanto nós deixamos outras cidades como nós dois fizemos tantas vezes<br />

antes.<br />

Nós carregamos nossos pertences para a parte de trás da caminhonete. Junto<br />

com as coisas de Seis e as minhas, Sam carregou duas malas dele mesmo.<br />

Primeiro eu fiquei confuso, mas então percebi que entre ele e Seis algum<br />

acordo fora feito e Sam viria com a gente. E eu estou feliz por isso. Sarah e eu<br />

andamos de volta para o quarto do hotel. No segundo que a porta fecha ela<br />

pega a minha mão e me vira para ela.<br />

- Meu coração está se partindo. – ela começa. – Eu quero ser forte por você<br />

agora, mas a idéia de você ter que ir embora está me matando por dentro.<br />

Eu beijo a cabeça dela.<br />

- Meu coração já está partido. – eu digo. – No segundo que tudo se ajeitar vou<br />

escrever. E eu vou fazer o meu melhor para te ligar quando souber que é<br />

seguro.<br />

Seis coloca a cabeça para dentro do quarto.<br />

- Nós realmente temos que ir. – ela diz.<br />

Eu aceno com a cabeça. Ela fecha a porta. Sarah levanta seu rosto para o meu<br />

e nós nos beijamos no quarto do hotel. A ideia de os Mogadorians retornarem<br />

antes de nós irmos embora e assim colocá-la em perigo outra vez, é a única<br />

fonte de força que eu consigo encontrar. Fora isso eu poderia ter um colapso.<br />

Fora isso eu poderia ficar para sempre.<br />

Bernie Kosar ainda está deitado esperando no pé da cama. Ele balança o rabo<br />

enquanto cuidadosamente eu o pego nos braços e o carrego para o<br />

estacionamento. Seis liga a caminhonete e deixa no ponto morto. Eu viro e olho<br />

para o hotel e fico triste por não ser a casa, e que eu sei que nunca vou vê-la<br />

de novo. A tábua de madeira descascando, as janelas quebradas, telhas pretas<br />

e tortas por causa da exposição ao sol excessivo e à chuva. Parece um<br />

Paraíso, uma vez eu disse a Henri. Mas isso não vai ser mais verdade. Paraíso<br />

perdido.<br />

Eu viro e aceno para Seis. Ela sobe na caminhonete, fecha a porta e espera.


Sam e Mark apertam as mãos, mas eu não escuto o que um diz ao outro. Sam<br />

sobe na caminhonete e espera com Seis. Eu aperto a mão de Mark.<br />

- Eu devo a você mais do que eu jamais poderei pagar. – eu digo a Mark.<br />

- Você não me deve nada. – Mark diz.<br />

- Não é verdade. – digo. – Um dia.<br />

Eu afasto o olhar. Eu posso sentir que estou prestes a desmoronar por causa<br />

da tristeza de ter que ir embora. Minha decisão é mantida por um pavio<br />

esfarrapado pronto para partir.<br />

Eu aceno. – Eu vou ver você outra vez algum dia.<br />

- Fique seguro lá fora.<br />

Eu pego Sarah entre os meus braços, aperto ela com força, querendo nunca ir<br />

embora.<br />

- Eu vou voltar pra você. – eu digo. – Eu prometo a você, mesmo que seja a<br />

última coisa que eu faça.<br />

O rosto dela está enterrado no meu pescoço. Ela assente.<br />

- Vou contar os minutos até você voltar. – ela diz.<br />

Um último beijo. Coloco ela de volta no chão e abro a porta da caminhonete.<br />

Meus olhos presos aos dela. Ela cobre a boca e o nariz com as mãos<br />

pressionadas juntas, nenhum de nós livre para afastar os olhos. Eu fecho a<br />

porta. Seis coloca a caminhonete na ré e sai do estacionamento, para, passa a<br />

marcha. Mark e Sarah andam até o fim do estacionamento para nos assistir no<br />

caminho, lágrimas correndo por ambos o lados do rosto de Sarah. Eu viro no<br />

meu assento e assisto da janela traseira. Eu levanto minha mão para acenar e<br />

Mark acena de volta, mas Sarah apenas assiste. Eu olho para ela pelo máximo<br />

que eu posso, ficando pequena, uma mancha indistinta sumindo na distancia. A<br />

caminhonete vai mais devagar e vira, os dois desaparecem de vista. Eu viro<br />

para frente e assisto os campos passarem, eu fecho os olhos e imagino o rosto<br />

de Sarah e sorrio. Nós ainda vamos ficar juntos, eu digo a ela. E até esse dia<br />

você estará no meu coração e em cada pensamento.<br />

Bernie Kosar levanta a cabeça e descansa no meu colo, eu coloco a mão sobre<br />

suas costas. A caminhonete continua estrada abaixo, dirigindo para o sul. Nós<br />

quatro, juntos, em direção à próxima cidade. Seja lá qual for.<br />

Sobre o Autor:


PITTACUS LORE é o ancião principal de Lorien. Ele tem estado na Terra pelos<br />

últimos vinte anos, se preparando para a guerra que decidirá o futuro do nosso<br />

planeta. Seu paradeiro é desconhecido.<br />

Tradução: Dana e Isis<br />

@Snow666

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