O Diabo eo dilema brasileiro - João de Pina-Cabral
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corrompe as puras imagens da fé para conquistar as almas dos índios.” (ibid.: 49) Não<br />
há que ter surpresa, pois, ao observar que até os representantes do candomblé<br />
<strong>brasileiro</strong> se sintam obrigados a insistir que, lá no fundo e bem vistas as coisas,<br />
também a sua é uma religião monoteísta.<br />
A postulação <strong>de</strong> um <strong>de</strong>mónio absolutamente mau, porém, não é uma<br />
necessida<strong>de</strong> lógica. O próprio poeta Olávio Bilac (1865-1918) começa o seu famoso<br />
ensaio sobre o <strong>Diabo</strong> <strong>brasileiro</strong>, alertando-nos para tal facto (1912: 133). Tanto o<br />
Deus monoteísta como o Demónio são função da polarização do Bem e do Mal que<br />
está inscrita na tradição cristã e com a qual esta se confrontou sempre<br />
problematicamente. Como o exemplo das heresias medievais maniqueístas<br />
<strong>de</strong>monstra (p.ex. Lambert 1998) é muito difícil conter os perigos t<strong>eo</strong>lógicos inscritos<br />
na exacerbação <strong>de</strong>sse dualismo.<br />
Ora, a evidência que temos <strong>de</strong> algumas formas <strong>de</strong> religião popular brasileira<br />
apontam num mesmo sentido. Não é que a imagem do mal e do seu veiculador<br />
<strong>de</strong>ixem <strong>de</strong> existir, mas antes que, face à dissolução do Deus omnipotente, absoluto,<br />
imanente e bom, ocorre uma correspon<strong>de</strong>nte alteração no tropo <strong>de</strong>moníaco. A<br />
pulsão para soluções dualistas bipolares parece esbater-se.<br />
Ouçamos o que Édison Carneiro tem a dizer sobre Êxu nos candomblés da<br />
Bahia:<br />
Exu (ou Êlêgbará) tem sido largamente mal interpretado. Tendo como reino todas<br />
as encruzilhadas, todos os lugares esconsos e perigosos <strong>de</strong>ste mundo, não foi difícil<br />
encontrar-lhe um símile no diabo cristão. O assento <strong>de</strong> Êxu, que é um casinholo <strong>de</strong><br />
pedra e cal, <strong>de</strong> portinhola fechada a ca<strong>de</strong>ado, e a sua representação mais comum, em<br />
que está sempre armado com as suas sete espadas, que correspon<strong>de</strong>m aos sete caminhos<br />
dos seus imensos domínios, eram outros tantos motivos a apoiar o símile. [...] a<br />
invocação dos feiticeiros a Êxu, sempre que <strong>de</strong>sejam fazer mais uma das suas vítimas,<br />
tudo isto concorreu para lhe dar o carácter <strong>de</strong> ôrixá malfazejo, contrário ao homem,<br />
representante das forças ocultas do Mal.<br />
Ora, Êxu não é um ôrixá – é um criado dos ôrixás e um intermediário entre<br />
os homens e os ôrixás. Se <strong>de</strong>sejamos alguma coisa <strong>de</strong> Xangô, por exemplo, <strong>de</strong>vemos<br />
<strong>de</strong>spachar Êxu, para que com a sua influência, a consiga mais facilmente para nós.<br />
Não importa a qualida<strong>de</strong> do favor – Êxu fará o que lhe pedirmos, contanto que lhe<br />
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