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O Diabo eo dilema brasileiro - João de Pina-Cabral

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também é uma “terra perfeita” (ambiguida<strong>de</strong> inscrita na etimologia da palavra utopia6) é, sim, um sonho mas um sonho praticamente orientado; quer dizer, um que<br />

transporta em si mesmo um apelo ético ao leitor para que se engaje num<br />

melhoramento do mundo (o que, na linguagem <strong>de</strong> hoje, chamaríamos um<br />

“activismo”). “A g<strong>eo</strong>grafia das Utopias situa-se nas Américas. […] A não ser A<br />

República <strong>de</strong> Platão, que é um estado inventado, todas as Utopias, que vinte séculos<br />

<strong>de</strong>pois apontam no horizonte do mundo mo<strong>de</strong>rno e profundamente o<br />

impressionaram, são geradas pela <strong>de</strong>scoberta da América. O Brasil não fez má figura<br />

nas conquistas sociais da Renascença.” (Andra<strong>de</strong> 1990 [1966]: 164) Autores como<br />

Sérgio Buarque <strong>de</strong> Holanda e Laura <strong>de</strong> Mello e Souza notam que a origem histórica da<br />

i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong>moníaca está numa reacção à utopia tropical.<br />

Acontece que esta relação entre o tropo <strong>de</strong>moníaco e o <strong>dilema</strong> ético que nasce<br />

da pulsão utópica não se esgotou simplesmente cinco séculos <strong>de</strong>pois do<br />

Renascimento. Como Lúcia Nagib i<strong>de</strong>ntifica com notável perspicácia na sua análise<br />

<strong>de</strong> Deus e o Demónio na Terra do Sol <strong>de</strong> Glauber Rocha, a imagem do sertão que vira mar<br />

perva<strong>de</strong> o cinema <strong>brasileiro</strong> do século XX representando “o sentimento dilacerante<br />

<strong>de</strong>sse país utópico que po<strong>de</strong>ria ter sido, mas [que é] fadado a não se realizar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />

<strong>de</strong>scobrimento.” (2006:33)<br />

Assim, o Brasil diferencia-se, por um lado, pela aparente perenida<strong>de</strong> do tropo<br />

<strong>de</strong>moníaco e, por outro, pela sua intensa domesticação quotidiana, presente tanto nas<br />

práticas e crenças religiosas cuja finalida<strong>de</strong> é seduzi-lo – na tradição afro-brasileira –<br />

como nas que preten<strong>de</strong>m dominá-lo ou <strong>de</strong>struí-lo – na versão “evangélica.” Não<br />

<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser surpreen<strong>de</strong>nte a forma como o tropo <strong>de</strong>moníaco se imiscui nas distintas<br />

conceitualizações do Brasil, literárias ou populares.<br />

A <strong>de</strong>monologia é uma heterologia, afirma Laura <strong>de</strong> Mello e Souza; “o fascínio<br />

pelo Demónio respon<strong>de</strong> a um <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> falar do outro, externo ou interno.” (1993: 25<br />

e 195). Nada <strong>de</strong> surpreen<strong>de</strong>nte nisso, portanto, particularmente face à velha tradição<br />

cristã, eusebiana, que via as crenças gentílicas como correspon<strong>de</strong>ndo a manifestações<br />

factuais mas <strong>de</strong>moníacas7 e à presença na colónia <strong>de</strong> vastas populações <strong>de</strong> ameríndios<br />

6 Palavra ambígua que Erasmo terá sugerido a Moro cujo título anterior era Nusquama (Lat. parte nenhuma),<br />

Ackroyd 1998: 180.<br />

7 Cf. <strong>Pina</strong>-<strong>Cabral</strong> 1992, Pompa 2003: 52.<br />

7

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