Fotografia, História E Cultura Visual - pucrs
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FOTOGRAFIA, HISTÓRIA e CULTURA VISUAL:<br />
PESQUISAS RECENTES
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FOTOGRAFIA, HISTÓRIA e CULTURA VISUAL:<br />
PESQUISAS RECENTES<br />
Série Mundo Contemporâneo 2<br />
Porto Alegre, 2012
© EDIPUCRS, 2012<br />
– <strong>Fotografia</strong> e Criação: Patricia Camera<br />
– Diagramação: Rodrigo Valls<br />
Fernanda Lisboa<br />
Rodrigo Valls<br />
F761 <strong>Fotografia</strong>, história e cultura visual: pesquisas recentes<br />
[recurso eletrônico] / Charles Monteiro (Org.). – Dados<br />
eletrônicos. – Porto Alegre : EDIPUCRS, 2012.<br />
132 p. - (Série Mundo Contemporâneo)<br />
ISBN 978-85-397-0154-4<br />
Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader<br />
Modo de Acesso: <br />
1. <strong>Fotografia</strong> - <strong>História</strong>. 2. <strong>Cultura</strong> <strong>Visual</strong>. 3. <strong>Fotografia</strong> - Brasil . 4. Antropologia<br />
<strong>Cultura</strong>l. I. Monteiro, Charles.<br />
CDD 770.981<br />
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos,<br />
fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra<br />
em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos<br />
autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos, do Código Penal), com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca e apreensão e indenizações diversas<br />
(arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).
SUMÁRIO<br />
APRESENTAÇÃO ....................................................................................06<br />
Ana Maria Mauad<br />
PARTE I – FOTOGRAFIA, HISTÓRIA E IMPRENSA<br />
Capítulo 1 - Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950: a elaboração<br />
de um novo padrão de visualidade urbana nas fotorreportagens da<br />
Revista do Globo .........................................................................................09<br />
Charles Monteiro<br />
Capítulo 2 - A técnica de João Alberto Fonseca da Silva e a arte de<br />
Sioma Breitman na fotografia porto-alegrense dos anos 1950 ......50<br />
Rodrigo Massia<br />
Capítulo 3 - Por trás das lentes, uma história: a percepção de fotógrafos<br />
sobre as imagens da mídia impressa ......................................................72<br />
Maria Cláudia Quinto<br />
PARTE II: FOTOGRAFIA, HISTÓRIA E ARTE<br />
Capítulo 4 - <strong>História</strong> da fotografia moderna brasileira: experimentações<br />
de Geraldo de Barros e José Oiticica Filho (1950-1964) .....................90<br />
Carolina Etcheverry<br />
Capítulo 5 - A dimensão histórica em “Mujeres Presas”: aproximações<br />
teóricas entre fotografia-expressão e ator social ...................................117<br />
Patricia Camera
APRESENTAÇÃO<br />
Ana Maria Mauad<br />
Não é de hoje que os estudos históricos ultrapassaram os limites documentais<br />
de uma escritura feita exclusivamente com documentos verbais. A iniciativa de<br />
renovação da oficina da história, defendida pelos pais fundadores do Annales,<br />
que conclamaram seus pares a saírem de seus gabinetes e a aprenderem a “ler” a<br />
demarcação dos campos, ou os rituais da cavalaria medieval, foi amplificada pela<br />
revolução documental que a história serial dos anos 1970, implementaram com a<br />
introdução das séries, da quantificação e do dado numérico, como fundamentais<br />
para a produção do conhecimento histórico de natureza total. A história dos eventos<br />
foi substituída pela história das estruturas na longa duração, sendo a revolução<br />
documental, a expressão mais evidente de uma outra revolução, essa mais profunda,<br />
a da consciência historiográfica. 1<br />
Dos anos 1970 em diante, com as publicações-manifesto da Nova <strong>História</strong><br />
Francesa, novos objetos, novos problemas e abordagens começaram a fazer parte<br />
da reflexão historiográfica; na sequência as manifestações da micro-história<br />
italiana ajudaram a compor um panorama onde racionalidade histórica e expressão<br />
subjetiva se encontravam na escrita de uma outra história, chegando à definitiva<br />
renovação da historiografia brasileira com a consolidação dos programas de pósgraduação,<br />
uma nova revolução reorientou a delimitação das fronteiras da <strong>História</strong><br />
em rumo definitivo a uma perspectiva transdisciplinar. Assim, o corolário da<br />
revolução documental, da ampliação dos tipos de fontes e registros considerados<br />
aptos à produção do texto historiográfico orientou o pesquisador a buscar novas<br />
possibilidades de interpretação.<br />
Os estudos sobre cultura visual em história são um bom exemplo para<br />
considerarmos esse tipo de renovação. De fato, como esclarece o historiador<br />
Paulo Knauss, é possível se fazer uma história com imagens, que abandone uma<br />
epistemologia da prova, rumo à construção de uma leitura histórica que valorize<br />
o processo contínuo de produção de representações pelas sociedades humanas. 2<br />
A essa reflexão, um outro historiador, Ulpiano Meneses, agrega problemas<br />
e questões que nos levariam rumo a uma <strong>História</strong> <strong>Visual</strong>, que considera as<br />
imagens não como efeitos, ou sintomas, mas a própria visualidade como princípio<br />
cognitivo de caráter indefectivelmente histórico. 3 Aliás, em outro texto, uma<br />
1 Le Goff, Jacques. Documento/Monumento. Enciclopédia Einaudi, Vol.1, Lisboa: Imprensa nacional/Casa da<br />
Moeda, 1985.<br />
2<br />
Knauss, Paulo, O desafio de fazer <strong>História</strong> com imagens: arte e cultura visual, Art<strong>Cultura</strong>, Uberlândia, vol.8,<br />
n.12, jan-jun. 2006, p.97-115.<br />
3<br />
Meneses, Ulpiano T. Bezerra de. “Fontes visuais, cultura visual, história visual. Balanço provisório, propostas
7<br />
apresentação como esta, Meneses já afirmava serem as imagens fotográficas<br />
suportes de relações sociais. 4<br />
Neste sentido, os ensaios aqui reunidos pelas temáticas da história, fotografia<br />
e cultura visual prescrevem um itinerário no qual são apontados caminhos para a<br />
compreensão da fotografia como expressão estética, percepção subjetiva, produção<br />
autoral, leitura do mundo visível, tramas de ver e registrar visualmente a história,<br />
como processo e problema.<br />
Há muito venho trabalhando com fotografia, em aulas, textos e pesquisa. Esse<br />
trabalho me possibilitou encontros inesquecíveis com produtores e suas imagens,<br />
com sujeitos e suas lembranças, com trajetórias e seus projetos. 5 Ainda assim, me<br />
surpreendo com a infindável riqueza que a reflexão sobre a prática e a experiência<br />
fotográfica pode revelar. Boa leitura.<br />
cautelares”, Revista Brasileira de <strong>História</strong>, vol. 23, n° 45, julho de 2003.<br />
4 Meneses, Ulpiano T. Bezerra de. Apresentação. In: LiMa, Solange F.; CarvaLho, Vania Carneiro de. <strong>Fotografia</strong> e<br />
Cidade: da razão urbana à lógica do consumo, álbuns de São Paulo (1887-1950). São Paulo: Mercado das Letras, 1997.<br />
5 MAUAD, Ana Maria. Poses e Flagrantes: ensaios sobre história e fotografias. Niterói: Eduff, 2008.
PARTE I – FOTOGRAFIA, HISTÓRIA E IMPRENSA
CAPíTUlO 1<br />
IMAGENS DA CIDADE DE PORTO AlEGRE NOS ANOS<br />
1950: A ElABORAÇÃO DE UM NOVO PADRÃO DE<br />
VISUAlIDADE URBANA NAS FOTORREPORTAGENS<br />
DA REVISTA DO GLOBO 1<br />
Charles Monteiro 2<br />
A pesquisa problematiza a elaboração de uma nova visualidade da cidade<br />
brasileira na imprensa nos anos 1950, através de um estudo de caso sobre Porto<br />
Alegre, no contexto de mudanças na cultura visual. Trata-se de compreender a<br />
produção e a veiculação de imagens fotográficas da cidade de Porto Alegre nos anos<br />
1950, na Revista do Globo, no contexto de modernização da imprensa ilustrada<br />
brasileira. Busca-se discutir os temas, as formas de fotografar a cidade e os sujeitos<br />
urbanos, bem como o processo de editoração dessas imagens fotográficas em<br />
fotorreportagens nas páginas da revista, visando a compreender a nova visualidade<br />
urbana e as representações de cidade elaboradas em um contexto de crescimento<br />
populacional, expansão do perímetro urbano e verticalização da área central.<br />
Os estudos sobre cultura visual problematizam a forma como os diversos<br />
tipos de imagens perpassam a vida cotidiana, relacionando as técnicas de produção<br />
e circulação das imagens à forma como são vistos os diferentes grupos e espaços<br />
sociais, entre o visível e o invisível, propondo um olhar sobre o mundo, mediando a<br />
nossa compreensão da realidade e inspirando modelos de ação social. 3<br />
1 A pesquisa foi apresentada no Minissimpósio Temático <strong>História</strong>, Imagem e <strong>Cultura</strong> <strong>Visual</strong>, no XXIV Simpósio<br />
Nacional de <strong>História</strong> da ANPUH, realizado de 15 a 20 de julho de 2007, na UNISINOS (São Leopoldo/RS/Brasil),<br />
e coordenado pelos Professores Doutores Iara Lis Franco Schiavinatto (UNICAMP) e Charles Monteiro (PUCRS),<br />
bem como no VII Congresso Internacional de Estudos Ibero-Americanos, realizado de 21 a 23 de outubro de<br />
2008, na PUCRS (Porto Alegre/RS/Brasil). Versões parciais foram publicadas em: MONTEIRO, Charles. Imagens<br />
sedutoras da modernidade urbana: reflexões sobre a construção de um novo padrão de visualidade urbana nas<br />
revistas ilustradas na década de 1950. Revista Brasileira de <strong>História</strong>, 2007, Vol. 27, n. 53, p. 159-176; MONTEIRO,<br />
Charles. A construção da imagem dos “outros” sujeitos urbanos na elaboração da nova visualidade urbana de Porto<br />
Alegre nos anos 1950. Urbana, 2007, ano 2, n. 2, p. 1-21.<br />
2 Doutor em <strong>História</strong> Social (PUCSP/Lyon 2), Professor Adjunto de <strong>História</strong> do Programa de Pós-Graduação em<br />
<strong>História</strong> (PPGH) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Brasil/RS/Porto Alegre). Desenvolve<br />
pesquisas na área de <strong>História</strong>, <strong>Fotografia</strong> e <strong>Cultura</strong> <strong>Visual</strong>; ministra Seminário “<strong>História</strong>, <strong>Fotografia</strong> e <strong>Cultura</strong><br />
<strong>Visual</strong>: Imagens das cidades brasileiras séc. XIX e XX” no PPGH da PUCRS; orientou cinco dissertações sobre<br />
<strong>História</strong> e <strong>Fotografia</strong>; publicou vários artigos em revistas nacionais e papers em anais de congressos nacionais e<br />
internacionais sobre o tema; coordenou organizou simpósios temáticos em congressos; organizou dossiês sobre<br />
<strong>História</strong> e <strong>Fotografia</strong>; faz parte do Grupo de Pesquisa interinstitucional do CNPQ Imagem, <strong>Cultura</strong> <strong>Visual</strong> e <strong>História</strong>.<br />
Endereço: PPGH/PUCRS Av. Ipiranga, 6681, Prédio 3, Sl. 303 – Porto Alegre – Brasil – CEP. 90619-900. E-mail:<br />
monteiro@<strong>pucrs</strong>.br.<br />
3 Sobre <strong>Cultura</strong> <strong>Visual</strong>, <strong>História</strong> e <strong>Fotografia</strong>, cf. MENESES (2003, 2005); KNAUS (2006); sobre fotografia e<br />
imprensa ilustrada, cf. MAUAD (2004, 2005); sobre fotografia e cidade, cf. LIMA e CARVALHO (1997).
10<br />
Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950<br />
Reflexões sobre <strong>História</strong>, <strong>Fotografia</strong> e <strong>Cultura</strong> <strong>Visual</strong><br />
Nos anos 1990, desenvolveu-se, nos Estados Unidos, um campo novo de<br />
pesquisa chamado de Estudos Visuais, ligando departamentos de artes, comunicação,<br />
antropologia, história e sociologia. As pesquisas apresentavam uma clara perspectiva<br />
multidisciplinar e procuravam problematizar a centralidade das imagens e a<br />
importância do olhar na sociedade ocidental contemporânea. Alguns autores chegam<br />
mesmo a diagnosticar que estaríamos vivendo um pictorial turn ou um visual turn,<br />
dado o papel do visual e da visualização no contexto atual marcado pelas imagens<br />
digitais e virtuais presentes na televisão, em filmes, em games, na internet (o second<br />
life é um sintoma), em celulares, em i-phones etc.<br />
Os estudos sobre cultura visual problematizam a forma como os diversos<br />
tipos de imagens perpassam a vida social cotidiana (a visualidade de uma época),<br />
relacionando as técnicas de produção e circulação das imagens à forma como são<br />
vistos os diferentes grupos e espaços sociais (os padrões de visualidade), propondo<br />
um olhar sobre o mundo (a visão), mediando a nossa compreensão da realidade e<br />
inspirando modelos de ação social (os regimes de visualidade).<br />
Segundo Knauss, 4 existem duas grandes perspectivas de estudo da cultura<br />
visual, uma mais restrita, que procura tratar da experiência visual da sociedade<br />
ocidental na atualidade (marcada pela imagem digital e virtual), e outra mais<br />
abrangente, que permite pensar diferentes experiências visuais ao longo da história<br />
em diversos tempos e sociedades.<br />
Este texto constitui-se de uma série de notas sobre a relação entre história,<br />
fotografia e cultura visual, sem a pretenção de ser exaustivo na revisão bibliográfica,<br />
visando dar certas orientações e pistas para pensar o lugar da fotografia no contexto<br />
mais amplo dos estudos sobre a imagem.<br />
As imagens acompanham o processo de hominização e de socialização do<br />
homem desde a pré-história, elas perpassam a vida e a organização social, ordenando a<br />
relação entre os homens e desses com o visível e o invisível. A confecção de máscaras<br />
mortuárias e a produção de lápides, desde a Antiguidade, apontam para a relação entre<br />
imagem e morte, bem como para a necessidade do homem de afirmar e de prolongar<br />
a vida frente a perspectiva de sua finitude. Régis Debray 5 aponta para a função social<br />
da imagem ligada à produção de um duplo do morto visando à preservação de sua<br />
memória. Os usos políticos da imagem também estão presentes desde os tempos mais<br />
remotos, pois de seu controle dependia a legitimidade do exercício do poder.<br />
4 KNAUSS (2006, p. 108-110).<br />
5 DEBRAY (1994, p. 22-30).
11<br />
Charles Monteiro<br />
Segundo Kern, 6 desde seu início a imagem esteve relacionada à representação<br />
e à noção de imitação do real. A imagem emerge de uma troca simbólica e de um<br />
simulacro fabricado para enfrentar a destruição provocada pela passagem do tempo,<br />
agenciar a memória, manter a coesão social e, também, exercer o controle político.<br />
Funções sociais que não abolem a dimensão artístico-criativa do ato de criação da<br />
imagem no tempo. A imagem situava-se entre a mimese, pela produção de uma cópia<br />
do real através da semelhança, e a representação, ao buscar tornar presente uma<br />
ausência e conferir-lhe significados sociais precisos e controlados.<br />
A partir do século XIX, a fotografia vai tomar o seu lugar nesse mundo das<br />
imagens, ao qual vem alterar de forma radical no contexto da Revolução Industrial<br />
ou Revolução Técnico-Científica. Por um lado, a fotografia veio responder a uma<br />
demanda crescente de imagens e de autorrepresentação da burguesia em ascensão,<br />
buscando uma forma de fabricar imagens de forma rápida e consideradas fiéis aos seu<br />
referente. De outro lado, o dramático processo de urbanização criou a necessidade de<br />
controlar e disciplinar um contingente divesificado de sujeitos em uma sociedade de<br />
massas, criando a foto de identificação.<br />
Segundo Santaella, 7 esse mundo das imagens pode ser divido, em termos<br />
de diferentes formas de produção, circuitos de circulação, formas de recepção e de<br />
estatuto das imagens no tempo, em três paradigmas: pré-fotográfico; fotográfico<br />
e pós-fotográfico. O paradigma pré-fotográfico está relacionado ao conjunto das<br />
imagens produzidas de forma artesanal pela mão do homem, dependendo de sua<br />
habilidade e imaginação para plasmar o visível. Tratam-se de imagens produzidas<br />
pela mão do artista, que guardam a sua marca e a aura de objetos únicos. Elas têm<br />
uma circulação restrita, sobretudo feitas para serem expostas em galerias e museus.<br />
O paradigma fotográfico diz respeito às imagens produzidas por conexão dinâmica<br />
e captação física de fragmentos do mundo visível com a mediação de um aparato<br />
ótico-mecânico: a câmera fotográfica (a caixa-preta), de vídeo ou de TV. São imagens<br />
produzidas com o auxílio de um aparelho mecânico, visando sua reprodução em série.<br />
Perdem a sua aura de objeto único e passam a circular em diferentes meios sociais,<br />
sobretudo, em jornais, revistas, outdoors publicitários etc. Finalmente, o paradigma<br />
pós-fotográfico que se refere às imagens sintéticas e infográficas (virtuais), prémodelizadas<br />
e matematicamente elaboradas através do computador. Percebe-se a<br />
importância da fotografia nessa interpretação à medida que ela é o parâmetro para a<br />
existência de um pré-fotográfico e um pós-fotográfico.<br />
O paradigma fotográfico é herdeiro da câmara obscura, utilizada desde o<br />
Renascimento. O dispositivo foi sendo aperfeiçoado e tornou-se capaz de capturar<br />
uma imagem latente em suporte sensível à luz, desencadeando a fotografia. A máquina<br />
6 KERN (2005, p. 7)<br />
7 SANTAELLA (2005, p. 295-307).
12<br />
Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950<br />
fotográfica (o dispositivo técnico) media o enfrentamento entre o olhar de um sujeito (o<br />
fotógrafo) e um referente (a realidade), que é observado e tem sua luz (fluxo fotônico)<br />
capturada através de uma lente em uma superfície sensível. O ato fotográfico é o fruto<br />
de um corte, tanto no campo visual (espaço) quanto na duração (tempo), constituindose<br />
em um fragmento separado e embalsamado do mundo para a posteridade. O que<br />
nos interessa reter dessa proposta é a particularidade material da imagem fotográfica<br />
frente às imagens manuais e as infográficas. Embora a fotografia não inaugure a era<br />
da reprodutividade das imagens (precedidade por outras técnicas como a xilografia,<br />
litografia etc.), ela inaugura a era da reprodutividade técnica das imagens, permite que<br />
essa reprodução seja muito mais rápida, barata e em massa, bem como considerada<br />
mais fiel do que aquelas obtidas pelas tecnologias anteriores. A fotografia respondeu<br />
às demandas econômico-industriais e estéticas (realismo) da sociedade europeia da<br />
segunda metade do século XIX, que lhe confere o estatuto de atestação, de duplo do<br />
real e de documento. Isso leva a refletir sobre a questão do realismo na fotografia e da<br />
forma como ela foi pensada pelos críticos e teóricos no ocidente.<br />
Segundo Dubois, 8 essse percurso pode ser pensado em três tempos: 1) a<br />
fotografia do real (o discurso da mimese); 2) a fotografia como transformação do real<br />
(o discurso do código e da desconstrução); 3) a fotografia como um traço do real (o<br />
discurso do índice e da referência).<br />
O primeiro corresponde à euforia que se segue à sua invenção e divulgação<br />
na França, Inglaterra e nos Estados Unidos, onde seus atributos de precisão, rapidez e<br />
suas inúmeras possibilidades de utilização foram amplamente louvadas. A fotografia<br />
foi apresentada como um auxiliar precioso para a ciência e para as artes em geral. O<br />
potencial da fotografia de repertoriar os recantos mais distantes do mundo auxiliando<br />
as expedições científicas, bem como de reproduzir as obras de arte antigas visando ao<br />
seu estudo, conferiu-lhe o estatuto de espelho do real. O que se devia, por um lado, à<br />
semelhança entre a imagem e seu referente e, por outro, à valorização da sociedade<br />
europeia dos princípios técnico-científicos envolvidos na operação fotográfica, que<br />
lhe garantiriam ser uma reprodução fiel do mundo.<br />
O segundo momento é caracterizado pela denúncia da fotografia como<br />
transformação do real. Entre o final do século XIX e início do século XX,<br />
apontaram-se a falsa neutralidade e a redução do real produzida pela fotografia.<br />
Primeiramente, ela produzia um corte no fluxo do tempo, o congelamento de um<br />
instante separado da sucessão dos acontecimentos. Em segundo lugar, ela era um<br />
fragmento escolhido pelo fotógrafo através da seleção do tema, dos sujeitos, do<br />
entorno, do enquadramento, do sentido, da luminosidade etc. Em terceiro lugar,<br />
a fotografia transformava o tridimensional em bidimensional, reduzindo a gama<br />
de cores e simulando a profundidade do campo de visão. Além de tudo isso, ela<br />
8 DUBOIS (1993, p. 23-56).
13<br />
Charles Monteiro<br />
também era uma convenção do olhar herdada do Renascimento e da pintura, que<br />
seria necessário apreender para poder “ver”. Ou seja, questionavam-se a exatidão,<br />
o realismo e a universalidade desse tipo de imagem.<br />
Segundo Dubois, 9 a fotografia se distingue de outros sistemas de<br />
representação como a pintura e o desenho (dos ícones), bem como dos sistemas<br />
propriamente linguísticos (dos símbolos) enquanto se aparenta muito com o dos<br />
signos como a fumaça (índice do fogo), a sombra (alcance), a poeira (depósito do<br />
tempo), a cicatriz (marca de um ferimento) e as ruínas (vestígios de algo que esteve<br />
ali). Para Dubois, a fotografia seria um índice, pois guardaria um elo físico com o<br />
seu referente. Ela seria uma marca deixada pelo rastro de luz emitido ou refletido por<br />
um corpo físico (pessoa ou objeto) sobre uma superfície sensível (filme, papel etc.).<br />
Essa posição foi questionada, recentemente, por autores como André<br />
Rouillé 10 e Mario Costa, 11 que apontam para a importância do processo mecânico e<br />
da produção de uma memória da máquina ou dos materiais (película, papel) e não de<br />
uma projeção do referente na superfície sensível.<br />
Segundo Roland Barthes, em A mensagem fotográfica, 12 a fotografia é uma<br />
imagem híbrida, pois construída em parte por um aparelho técnico, que captaria um<br />
real puro, e em parte por uma mensagem com conteúdo histórico, social e cultural.<br />
A fotografia é uma convenção do olhar e uma linguagem de representação<br />
e expressão de um olhar sobre o mundo. Nesse sentido, as imagens são ambíguas<br />
(por sua natureza técnica) e passíveis de múltiplas interpretações (em relação ao<br />
meio através do qual elas circulam e do olhar que as contempla). Por isso, para<br />
a sua interpretação, são necessárias a compreensão e a desconstrução desse olhar<br />
fotográfico, através de uma discussão teórico-metodológica, que permita formular<br />
problemas históricos e visuais, no sentido de que a dimensão propriamente visual do<br />
real possa ser integrada à pesquisa histórica.<br />
Assim sendo, passo a inventariar alguns trabalhos que vêm contribuindo para<br />
essa discussão teórico-metodológica, que visam incorporar os documentos visuais à<br />
pesquisa histórica.<br />
Em <strong>Fotografia</strong> e <strong>História</strong>, 13 Kossoy aponta para a necessidade de pensar<br />
a tríade sujeito (fotógrafo), técnica (equipamento) e assunto (a história do tema<br />
abordado). Primeiramente, o historiador deveria procurar informações sobre a<br />
atuação profissional do fotógrafo, se possuía um ateliê, qual era a sua clientela, se<br />
trabalhava por encomenda para uma empresa ou administração, a classe social a<br />
que pertencia, os seus gostos e os preços cobrados. Deveriam se levar em conta<br />
9 DUBOIS (1993, p. 61).<br />
10 ROUILLÉ (2005, p. 288-304).<br />
11 COSTA, Mario (2006, p. 179-192).<br />
12 BARTHES (1982, p. 11-25).<br />
13 KOSSOY (1989).
14<br />
Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950<br />
ainda os filtros culturais e ideológicos de classe do fotógrafo e de sua época. Outra<br />
variável diria respeito aos equipamentos e às técnicas empregadas: o tipo de câmara,<br />
o tipo de negativo, as lentes, a forma de revelação, os formatos das fotografias etc.<br />
Finalmente, o assunto deve ser colocado no seu tempo e gênero específico: retrato,<br />
vistas urbanas, cartão-postal, álbum de família, último retrato ou fotorreportagem.<br />
Para esse autor, o assunto tem uma lógica própria que extrapola os quadros<br />
da imagem fotográfica, sendo necessário, para discutir um determinado tipo de<br />
fotografia, compreender o percurso histórico do assunto: seja o das formas de<br />
representação do poder da classe dominante, do jogo político ou da cidade. O<br />
autor também chama atenção de que a fotografia tem uma primeira realidade<br />
ligada ao momento de produção da imagem pelo fotógrafo, e uma segunda<br />
realidade ligada à circulação e aos usos posteriores da imagem em contextos<br />
sob formas que não foram previstas pelo fotógrafo no momento de produção da<br />
imagem. Ou seja, a fotografia em uma fototeca ou acervo iconográfico tem usos<br />
e significados muito diversos daqueles para os quais foi produzida pelo fotógrafo<br />
no passado, bem como a reutilização de imagens na imprensa, em manuais ou em<br />
livros de história agregam ou transformam os significados das imagens a partir<br />
de outro contexto de recepção.<br />
Essa proposta metodológica de Kossoy é, posteriormente, ampliada no livro<br />
Entre realidades e ficções da trama fotográfica, 14 no qual o autor analisa os usos<br />
da fotografia em cartões-postais e álbuns de vistas como forma de construção do<br />
nacional na fotografia brasileira no século XIX, como no álbum Le Brésil, produzido<br />
sob os auspícios do Império para fazer propaganda do país na Exposição Universal<br />
de Paris de 1889.<br />
O seu trabalho precursor foi e continua sendo importante sobre os pioneiros<br />
da fotografia no Brasil e as questões relacionadas à utilização, à conservação,<br />
à gestão e à interpretação desses acervos fotográficos do século XIX e XX. No<br />
entanto, a partir da tradução e publicação no Brasil, nos anos 1980, de autores como<br />
Roland Barthes, Susan Sontag, Philippe Dubois, Jean-Marie Schaeffer e Rosalind<br />
Krauss entre outros, surge novo contexto de pesquisa histórica, impulsionando<br />
investigações a partir da renovação da matriz teórica e da elaboração de novos<br />
problemas de pesquisa relativos ao campo visual: história visual, cultura visual e<br />
regimes de visualidade. 15<br />
Nos anos 1990, multiplicaram-se as investigações sobre a fotografia e cidade,<br />
para refletir sobre o acelerado processo de transformação da paisagem e da sociedade<br />
urbana brasileira no século XX.<br />
14 KOSSOY (2002).<br />
15 MENESES (2003, 2005).
15<br />
Charles Monteiro<br />
A pesquisa de Ana Maria Mauad 16 representa uma nova fase dos estudos<br />
sobre cidade e fotografia, pesquisando a construção da visualidade urbana do Rio de<br />
Janeiro em revistas ilustradas na primeira metade do século XX. Seu trabalho, além<br />
de tratar dos usos privados da fotografia pelo grupo familiar, abordou a fotografia<br />
de imprensa a partir das revistas Careta e O Cruzeiro, tendo sido esta última a mais<br />
importante e inovadora revista ilustrada brasileira entre as décadas de 1930 e 60.<br />
Uma das principais contribuições desse estudo é o tratamento da problemática<br />
do espaço na construção de códigos de representação fotográfica do comportamento<br />
da sociedade burguesa carioca entre 1900 e 1950. Mauad 17 estabeleceu para sua<br />
análise das imagens fotográficas cinco categorias espaciais que abrangem tanto o<br />
plano do conteúdo quanto o da expressão: o espaço fotográfico, o espaço geográfico,<br />
o espaço do objeto, o espaço da figuração e o espaço da vivência.<br />
Mauad relacionou e cruzou os padrões técnicos envolvidos na forma de<br />
expressão das imagens com os padrões de conteúdo para elaborar a sua interpretação<br />
dos códigos de representação social da classe dominante carioca. Esse trabalho<br />
sugere uma série de questões sobre a predominância de certas imagens (urbanas,<br />
de determinadas zonas da cidade, de determinados grupos sociais, em determinados<br />
espaços urbanos, de um gênero sobre outro, de certos objetos a eles associados, as<br />
ordenações dos grupos, as poses e os tipos de performances etc.) em detrimento<br />
de outras que ficam fora do quadro fotográfico, bem como da forma de fotografar<br />
proporcionada por uma técnica e de publicar essas imagens nas páginas das revistas,<br />
criando séries e narrativas que enfatizam determinados códigos de representação<br />
social de certos grupos urbanos excluindo outros.<br />
O livro <strong>Fotografia</strong> e Cidade, 18 de Solange Ferraz de Lima e Vânia Carneiro<br />
de Carvalho, deu uma contribuição significativa aos estudos sobre o tema ao propor<br />
uma metodologia própria para a análise icônica e formal das imagens de cidade, no<br />
caso de São Paulo, em álbuns de fotografias produzidos entre 1887-1919 e 1951-<br />
1954. A importância desse estudo está no fato de construir uma metodologia voltada<br />
para a interpretação dos padrões visuais de representação da cidade, remetendo à<br />
análise dos modos específicos de tratamento fotográfico do espaço urbano.<br />
Os descritores icônicos (relativos aos conteúdos e espaços das fotografias)<br />
são agrupados a partir de um vocabulário controlado em: tipologias do espaço;<br />
localização; tipologia urbana; abrangência espacial; acidentes naturais/vegetação;<br />
infraestrutura/processos/serviços; infraestrutura/comunicações; infraestrutura/<br />
mobiliário urbano; infraestrutura/paisagismo; estrutura/funções arquitetônicas;<br />
elementos móveis/ gênero/idade; elementos móveis/personagem/categoria;<br />
16 MAUAD (1990, 2004, 2005, 2006, 2008).<br />
17 MAUAD (2004, p. 19-36).<br />
18 LIMA e CARVALHO (1997).
16<br />
Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950<br />
elementos móveis/personagens; elementos móveis/transportes; atividade agrícola;<br />
atividade urbana; temporalidade.<br />
Os descritores formais (relativos à técnica, à forma e aos códigos de<br />
expressão) são agrupados a partir das categorias: enquadramento; arranjo; articulação<br />
dos planos; efeitos; e estrutura.<br />
O cruzamento dos percentuais de recorrência das imagens fotográficas<br />
enquadradas nos descritores icônicos confrontadas com a recorrência dos descritores<br />
formais permitiu às autoras estabelecerem uma tipologia de oito padrões fotográficos<br />
predominantes nesses álbuns: retrato; circulação urbana; figurista; diversidade;<br />
coexistência; intensidade; mudança; e paisagístico.<br />
As autoras puderam chegar a uma série de conclusões a partir da verificação<br />
da maior incidência de determinados padrões em cada um dos períodos, como a<br />
predominância do padrão “circulação” na virada do século XIX para o XX, relacionada<br />
à racionalização do espaço urbano, e o padrão “retrato” nos anos 1950, relacionado<br />
à tipificação do trabalho e à mercantilização do espaço urbano, bem como refletir<br />
a partir das imagens sobre a construção da diferenciação/indiferenciação social na<br />
metrópole capitalista. Esse trabalho permite problematizar a forma como foram<br />
construídos os padrões de visualidade urbana nas imagens fotográficas dos álbuns da<br />
cidade de São Paulo nos anos de 1887-1919 e 1951-1954.<br />
Mais recentemente, no texto “Rumo a uma ‘<strong>História</strong> <strong>Visual</strong>’”, Meneses<br />
propõe que o estudo desse campo se realize a partir da reflexão sobre três domínios<br />
complementares: o visual, o visível e a visão. 19 O domínio do visual compreenderia<br />
os sistemas de comunicação visual e os ambientes visuais, bem como “os suportes<br />
institucionais dos sistemas visuais, as condições técnicas, sociais e culturais de<br />
produção, circulação, consumo e ação dos recursos e produtos visuais”, para poder<br />
circunscrever “a iconosfera, isto é, o conjunto de imagens-guia de um grupo social<br />
ou de uma sociedade num dado momento e com o qual ela interage”. 20<br />
Para o autor, o domínio do visível e do invisível situa-se na esfera do poder e do<br />
controle social, do ver e ser visto, do dar-se a ver ou não dar-se a ver, da visibilidade e<br />
da invisibilidade. Já a visão “compreende os instrumentos e técnicas de observação, o<br />
observador e seus papéis, os modelos e modalidades do olhar” de uma época. 21<br />
A pesquisa em tela orientou-se pelas questões teóricas mais amplas propostas<br />
por Meneses sobre a relação entre visual, visível/invisível e visão e serviu-se das<br />
propostas metodológicas de Mauad e Lima & Carneiro para interpretar as fotografias<br />
na elaboração do novo padrão de visualidade urbano nos anos de 1950, a partir do<br />
estudo de caso de Porto Alegre.<br />
19 MENESES (2005, p. 33-56).<br />
20 Idem, Ib. p. 36.<br />
21 Idem, Ib. p. 38.
17<br />
Charles Monteiro<br />
<strong>Fotografia</strong> e <strong>Cultura</strong> <strong>Visual</strong> em Porto Alegre entre 1940 e 1960<br />
No Brasil, a partir dos anos 1940, a fotografia passa por um processo<br />
de difusão e expansão através do aperfeiçoamento das técnicas de edição e de<br />
reprodução de imagens fotográficas, bem como de modernização através do trabalho<br />
de experimentação nos fotocineclubes de São Paulo, Recife e Porto Alegre, entre<br />
outros. Durante a Segunda Guerra Mundial, a fotografia se tornou uma forma<br />
importante de informar e mobilizar a população através de sua veiculação em jornais<br />
e revistas ilustradas. Os fotógrafos passam a se organizar em associações e sindicatos<br />
visando ao reconhecimento e à valorização do seu trabalho.<br />
Câmaras mais portáteis como a Rolleiflex, com negativos de 120 mm e<br />
6 x 6 cm, e a Leica, com filmes de 35 mm, com películas mais sensíveis, além<br />
de objetivas e flash permitiram o avanço da foto instantânea (sobretudo no<br />
fotojornalismo) e a presença mais dinâmica do fotógrafo no espaço público,<br />
para documentar e informar a modernização dos espaços urbanos, das formas de<br />
sociabilidade e os movimentos políticos.<br />
A tradição de edição de álbuns fotográficos com vistas da cidade inaugurada<br />
no século XIX prolonga-se no século XX visando fixar a memória da velha Porto<br />
Alegre frente às rápidas mudanças em curso na paisagem urbana, decorrentes do<br />
processo de modernização e verticalização da cidade. Em 1941, um ano após as<br />
comemorações dos 200 anos de colonização de Porto Alegre, foi editada a obra<br />
comemorativa Porto Alegre: Biografia da Cidade. O livro, de grandes proporções<br />
(37 x 27 cm e 664 páginas) e ricamente ilustrado, apresenta duas séries de fotografias<br />
com histórias visuais sobre o passado (1890-1910) e presente (final dos anos 1930<br />
e 1940) da cidade. A seção A vida na velha Porto Alegre: Reminiscências Gráficas,<br />
referente ao século XIX, apresenta imagens de Calegari e outros fotógrafos,<br />
destacando as formas de sociabilidade das elites e camadas médias (footing,<br />
carnaval, exposições), o trabalho (através de tipos populares como o aguateiro e<br />
os acendedores de lampião), as formas de transporte ao longo do tempo e certos<br />
aspectos pitorescos da velha cidade. A seção Excursão caleidoscópica através<br />
da cidade apresenta imagens de grande formato dos principais prédios públicos,<br />
igrejas e praças da cidade, apontando para uma visão oficial, turística, higienista e<br />
pitoresca da cidade. O livro tinha o duplo objetivo de legitimar a gestão do Prefeito<br />
Loureiro da Silva e projetar suas realizações para o futuro, construindo a memória<br />
de uma cidade que se modernizava a passos rápidos.<br />
Como nos jornais e nas revistas ilustradas, fotos destacavam as novas<br />
práticas políticas do Estado Novo com os seus desfiles cívicos, educação cívica e<br />
eventos esportivos, que visavam à educação do corpo para o trabalho, preparação<br />
para a guerra e purificação da nação.
18<br />
Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950<br />
O fotojornalismo conheceu o seu auge nos anos 1950 com novas narrativas<br />
fotográficas – série de imagens de tamanhos variados que contam uma história visual<br />
– ocupando cada vez mais lugar nas páginas dos jornais e revistas. A Revista do Globo,<br />
os jornais A Hora e Última Hora estão na vanguarda desse processo no âmbito local.<br />
No plano formal, multiplicam-se as fotos aéreas, a fotorreportagem, a foto<br />
de publicidade e as fotos instantâneas de grandes manifestações políticas, bem<br />
como inovações na composição e no uso da luz. A cultura visual está marcada pela<br />
introdução da televisão no final da década de 1950 e pelo período áureo dos filmes<br />
hollywoodianos, apresentados no formato cinemascope nas grandes salas de cinemas<br />
de calçada do centro da cidade e nos bairros.<br />
Os fotógrafos passam a ser mais valorizados nas revistas ilustradas e a<br />
terem seus nomes mencionados como autores das imagens. Em Porto Alegre,<br />
Leo Guerreiro, Pedro Flores e Sioma Breitman se destacam no fotojornalismo, na<br />
fotografia de publicidade e na produção de retratos em estúdio. Leo Guerreiro é autor<br />
de famosas vistas aéreas da cidade, que acompanham o processo de modernização<br />
e verticalização da área central. Muitas dessas fotos também eram ampliadas,<br />
tornando-se painéis e comercializadas para decorar escritórios e casas comerciais.<br />
O fotojornalismo vai privilegiar a mobilização política envolvendo o<br />
processo de discussão sobre nacionalização do subsolo, a estatização de empresas de<br />
energia e transporte públicos. Nesse período ocorreu a irrupção das massas na cena<br />
urbana, ora como ator ora como coadjuvante dos processos políticos.<br />
Em 24 de agosto de 1954, a morte de Getúlio Vargas constitui-se em um<br />
momento significativo de mobilização e utilização da rua como espaço político. A<br />
fotografia de imprensa perpetuou os conflitos e as depredações no centro da cidade<br />
de Porto Alegre.<br />
As fotos desse período, produzidas pela Assessoria de Imprensa do Palácio<br />
Piratini (Acervo do Setor de <strong>Fotografia</strong> do Museu de Comunicação Social Hipólito<br />
José da Costa), representam os governadores em plena ação, visitando e inaugurando<br />
obras, recebendo delegações de políticos ou lideranças dos movimentos sociais. O<br />
populismo transformou algumas fotografias em imagens de culto ao poder político.<br />
Na segunda metade dos anos 1950, a Assessoria de Imprensa e o serviço<br />
fotográfico do Palácio Piratini crescem em importância e ocorre um salto no<br />
número de fotografias e na forma de documentação das ações dos governadores e<br />
secretários de Estado. Alguns fotojornalistas trabalhavam simultaneamente para a<br />
Revista do Globo e para repartições públicas (Secretaria de Educação e Secretaria de<br />
Agricultura), como nos casos de Pedro Flores e Léo Guerreiro.<br />
No início da década de 1960, foram as imagens da Campanha da Legalidade<br />
que marcaram uma nova postura através do uso consciente e maciço dos meios de
19<br />
Charles Monteiro<br />
comunicação (jornal e rádio) na mobilização popular. O Palácio do Governo do<br />
Estado do Rio Grande do Sul foi transformado em quartel-general da resistência e<br />
centro de difusão de notícias.<br />
Por um lado, acelera-se a migração do campo para a cidade, e surgem as<br />
vilas populares. Começam a aparecer as imagens da desigualdade social através da<br />
documentação da remoção de vilas populares como a Vila Dique. Por outro lado,<br />
o processo de modernização urbana ganhava visibilidade através das imagens de<br />
grandes obras públicas (Ponte do Guaíba, Aeroporto Salgado Filho) e da abertura<br />
de novas avenidas, bem como da construção de escolas (como as chamadas<br />
“brizoletas”, em madeira). A realização de um levantamento fotográfico aéreo e<br />
terrestre aponta tanto para o processo de expansão da malha urbana em direção<br />
ao sul e ao norte da cidade quanto para o uso da imagem fotográfica para gestão<br />
do espaço urbano (aterros, expansão da malha urbana, crescimento de vilas etc.).<br />
A modernização da grande imprensa nos anos 1950<br />
O período também foi marcado pela modernização da grande imprensa 22<br />
nos principais centros urbanos (especialmente nas capitais), dominada por alguns<br />
grupos proprietários de jornais e rádios, que passaram a monopolizar o setor de<br />
comunicação. Observa-se, por um lado, a expansão nesses periódicos do espaço<br />
destinado à publicidade e aos classificados, bem como a ampliação do número de<br />
leitores, que favoreceu uma série de inovações na editoração e na diagramação,<br />
o que permitiu a utilização cada vez maior de fotografias. Por outro lado, esses<br />
veículos não estavam totalmente livres do jogo político-partidário e da dependência<br />
da propaganda institucional de governos estaduais e do federal.<br />
As revistas ilustradas formavam um segmento diferenciado visando a um<br />
público de maior poder aquisitivo, construindo as matérias sob um ângulo novo,<br />
da tomada de opinião e não exatamente do imediato. Elas desempenham toda<br />
uma nova pedagogia social sobre as elites vindas do campo, as camadas médias<br />
provenientes das pequenas cidades do interior e para os próprios habitantes das<br />
capitais em processo de expansão e transformação do espaço urbano. A revista<br />
O Cruzeiro, Revista do Globo e a Manchete se destacam como os veículos de<br />
comunicação impressos mais modernos, no sentido de construírem um novo tipo<br />
de reportagem e de narrativa baseada no uso da fotografia. 23<br />
As revistas buscavam assuntos polêmicos para mobilizar a atenção do<br />
público leitor. Eram meios híbridos que mesclavam uma variedade de temas –<br />
22 Cf. RIBEIRO (2003), GRANDI (2005).<br />
23 MUNTEAL e GRANDI (2005, p. 90-95).
20<br />
Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950<br />
desde política internacional, política nacional, artes, vida social, cotidiano, esportes,<br />
variedades e publicidade – buscando equilibrar informação, formação de opinião<br />
e entretenimento. 24 As revistas trabalhavam com polaridades como “nós” e os<br />
“outros”, 25 “presente e passado”, “tradição e modernidade” etc., seguidamente<br />
propondo uma abordagem sensacionalista dos acontecimentos. Através de imagens<br />
e palavras, as revistas construíram representações sociais, agregando novidade e<br />
promovendo consenso sobre determinados significados sociais. Quanto menor a<br />
competência na decifração dos códigos verbais, maior a importância das imagens<br />
fotográficas que ocupavam a maior parte do espaço das páginas.<br />
As fotorreportagens construíram uma imagem da cidade em processo de<br />
mudança para o consumo das elites e das camadas médias, bem como uma imagem<br />
dos novos sujeitos urbanos que chegam à cidade: os “outros”. Uma cidade cada vez<br />
maior e difícil de abarcar pelo olhar humano, que necessitava da mediação dos meios<br />
de comunicação para promover a compreensão e a legitimação das mudanças na<br />
paisagem urbana em um tempo cada vez mais acelerado. Ao congelar fragmentos de<br />
temporalidade, a fotografia permitiu condensar e recriar a nova imagem das cidades<br />
brasileiras em processo de mutação: a destruição de espaços tradicionais e a criação<br />
de espaços modernos submetidos à lógica da sociedade de consumo.<br />
Ou seja, a fotografia nas revistas ilustradas e, em especial, as fotorreportagens<br />
“davam a ver a cidade”, promovendo uma reeducação do olhar, sintetizando e<br />
ressignificando esse processo de expansão horizontal e vertical urbana. Permitiram,<br />
também, a difusão de toda uma nova cultura urbana, com novos parâmetros de<br />
sociabilidade, de civilidade e de consumo, que passariam ser almejados e buscados<br />
pelos leitores desses periódicos, ávidos em participar da modernidade urbana.<br />
O estatuto da imagem fotográfica que predominava nas revistas ilustradas<br />
era o da cópia da realidade e de documento verídico, que procurava apresentar como<br />
objetiva e verdadeira a interpretação dos fatos abordados. As revistas ilustradas,<br />
através das fotorreportagens, visavam ensinar uma nova maneira de ver, que<br />
tanto entretinha e deleitava quanto cumpria a tarefa de informar e difundir uma<br />
nova imagem moderna da cidade e da cultura urbana entre as camadas médias da<br />
população brasileira.<br />
Segundo Costa, “a fotorreportagem é uma narrativa que resulta da conjugação<br />
de texto e imagem, ou seja, de duas estruturas narrativas totalmente distintas e<br />
independentes, dentro de uma armação própria realizada pela edição”. 26<br />
De forma geral, as fotorreportagens iniciavam-se com uma fotografia de<br />
página inteira ou página dupla, uma “imagem síntese” do tema, que visava mobilizar<br />
24 COSTA (1992, p. 53-68).<br />
25 BAITZ (2003).<br />
26 COSTA (1992, p. 58), SOUSA (2004).
21<br />
Charles Monteiro<br />
emocionalmente o leitor acerca da matéria. Compreender a relação entre imagem e<br />
texto é importante no sentido de compreender como este disciplina a leitura daquela.<br />
O título e uma legenda sobreposta à fotografia de grande formato completavam o<br />
apelo à atenção do leitor. Seguia-se uma sequência de cerca de 8 a 12 fotos, formando<br />
uma narrativa ao redor do tema principal. Pequenos textos e subtítulo auxiliavam na<br />
urdidura da trama e na construção dessa narrativa visual, direcionando a atenção do<br />
leitor para determinados aspectos da realidade abordada nas fotos.<br />
A Revista do Globo foi o periódico ilustrado quinzenal mais duradouro<br />
e de maior tiragem produzido no Rio Grande do Sul, entre 1930 e 1960. Tendo<br />
sido criada em 1929, torna-se um veículo de comunicação influente na imprensa<br />
regional, com um projeto gráfico e editorial arrojado para o período. Nos anos<br />
1950, a Revista do Globo disputava espaço com outras revistas de tiragem<br />
nacional como O Cruzeiro e Manchete. Todas elas se inspiravam de alguma<br />
forma no modelo americano fornecido pela Life, publicando fotorreportagens com<br />
tom sensacionalista, misturadas a artigos de entretenimento, resenhas de obras<br />
literárias, publicação de contos, de poesias e notas sobre a vida social das elites<br />
da capital e das principais cidades do estado. De forma geral, uma edição possuía<br />
cerca de 100 páginas e estava dividida entre as seções: “Reportagens”, “Assuntos<br />
Gerais”, “Literatura”, “Cinema” e “Passatempo”. As “Reportagens” abordavam<br />
assuntos internacionais, nacionais e locais, entremeados de publicidade e crônica<br />
social, visando dar maior leveza à leitura da revista.<br />
As fotorreportagens da Revista do Globo iniciavam-se geralmente com uma<br />
fotografia de página inteira ou página dupla, que era uma “imagem síntese” do tema e<br />
visava mobilizar emocionalmente a atenção do leitor sobre a matéria. 27 Compreender<br />
a relação entre imagem e texto é importante no sentido de compreender como este<br />
disciplina a leitura daquela. O título e uma legenda sobrepostos à fotografia de grande<br />
formato procuravam capturar a atenção do leitor. Seguia-se uma sequência de cerca<br />
de 6 a 12 fotos formando uma narrativa ao redor do tema principal. Pequenos textos<br />
e subtítulo auxiliavam na construção dessa narrativa visual.<br />
Na Revista do Globo, três fotógrafos contratados produziram o maior número<br />
das fotorreportagens dos anos 1950: Pedro Flores, Léo Guerreiro e Thales de Farias.<br />
Os nomes desses fotógrafos começaram a aparecer abaixo do título como coautores<br />
dessas fotorreportagens. O trabalho deles era complementado por outros fotógrafos<br />
free lancers e por imagens compradas de agências de informação e de outras revistas.<br />
Entre as 256 edições da Revista do Globo publicadas entre 1950 e 1960, foi<br />
possível identificar 184 fotorreportagens que tratavam da cidade de Porto Alegre<br />
pelo levantamento realizado. Essas fotorreportagens abordavam questões relativas<br />
ao processo de modernização do espaço urbano (verticalização, obras públicas e<br />
27 COSTA (1992, p. 53-68).
22<br />
Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950<br />
privadas), as novas formas de sociabilidade públicas (muitas dessas ligadas aos novos<br />
padrões de consumo), os novos equipamentos culturais, problemas de segurança<br />
pública, de habitação, de transportes e, também, de política municipal. A revista<br />
valorizava o processo de modernização e também abordava alguns dos “problemas<br />
urbanos” de Porto Alegre.<br />
Pode-se dividir a década de 1950 em duas metades. Na primeira metade,<br />
observa-se a formulação dessa nova visualidade urbana moderna, mas ainda com<br />
a presença de imagens das contradições sociais e dos problemas urbanos: a falta<br />
de habitações, de energia, de água tratada, de esgotos, de hospitais, bem como os<br />
vendedores ambulantes (camelôs), os acidentes de automóveis, as filas de ônibus<br />
etc. Na segunda metade dos anos 1950, a revista se engaja no projeto e discurso<br />
desenvolvimentista da administração do Presidente Juscelino Kubitschek (1956-<br />
1960), de realizar “50 anos em 5”, e passou a privilegiar o processo de transformação<br />
e modernização da sociedade e do espaço urbano, deixando em segundo plano as<br />
críticas e as contradições que acompanhavam esse processo. Passa-se, então, à análise<br />
de algumas das fotorreportagens sobre a elaboração da nova visualidade urbana.<br />
A construção de uma nova visualidade urbana moderna de<br />
Porto Alegre<br />
A fotorreportagem “Marco Inicial”, 28 de 3 de fevereiro de 1951, trata da<br />
construção, pelo Instituto de Assistência e Aposentadorias do Comerciários (IAPC),<br />
de um conjunto de 250 casas que formariam a Vila dos Comerciários na zona sul<br />
de Porto Alegre (bairro Tristeza). A fotorreportagem tem quatro páginas e oito<br />
fotografias; o formato predominante é o retângulo horizontal (seis fotografias) e<br />
de tamanho médio (quatro fotografias); sendo cinco fotos internas e apenas três<br />
externas; cinco fotos posadas e três instantâneos; cinco fotos pontuais e três parciais.<br />
As linhas são bem definidas e há boa iluminação tanto nas fotos externas quanto nas<br />
internas, realçando o efeito de realismo das fotos.<br />
28 Marco Inicial, Revista do Globo, n. 527, 2/3/1951, p. 61-63, 79.
23<br />
Charles Monteiro<br />
Fonte: “Marco inicial”, Revista do Globo, n. 527, 1951, p. 61 (esquerda), 62 (centro), 63 (direita.).<br />
A fotorreportagem se inicia com uma foto instantânea de grande formato<br />
(1/2 página), com a imagem enquadrando, em primeiro plano, o quintal de uma<br />
casa com terra, materiais de construção e um muro; em segundo plano, um grupo<br />
grande de pessoas em fila (a comitiva do Governador do Estado do Rio Grande do<br />
Sul, Walter Só Jobim, e do Presidente do IAPC, Remy Archer); em terceiro plano,<br />
observa-se a rua que se estende em diagonal, um automóvel, uma calçada e um<br />
conjunto de casas (algumas ainda em construção). O efeito de dinamismo é dado<br />
pelas pessoas em movimento (a maioria homens em idade produtiva, entre os 30 e<br />
50 anos), a casa em construção e a linha diagonal formada pelo muro, pela rua, pelos<br />
postes e pelas casas.<br />
A narrativa segue com uma foto posada de tamanho pequeno, de formato<br />
quadrado, representando o ato solene de inauguração com a presença do Prefeito,<br />
do Governador e do Bispo Metropolitano. Seguem-se, nas duas páginas seguintes<br />
(p. 61, 62), seis fotos que completam a narrativa a partir dessa fotomanchete. Três<br />
delas apresentam os novos equipamentos de atendimento médico, fisioterápico e<br />
odontológico do IPAC. Fotos de interior e planos pontuais que não permitem localizar<br />
o local no espaço urbano. Pela leitura do texto, descobre-se que esses equipamentos<br />
se encontram em outro local, no centro da cidade.
24<br />
Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950<br />
Em foto de tamanho médio (p. 61), apresentam-se as prováveis pessoas<br />
beneficiadas pela construção das casas e pelos serviços médicos: funcionárias do<br />
comércio de Porto Alegre. Trata-se de uma foto posada do interior de uma residência,<br />
destacam-se a elegância da roupa das mulheres (vestidos e adornos) e a decoração da<br />
casa (com cortinas e abajur de pé). Apesar de o texto referir-se à “classe trabalhadora”,<br />
observa-se que o grupo retratado pertence às camadas médias urbanas.<br />
Na página seguinte, mais uma fotografia com o Governador em primeiro<br />
plano e uma casa recém-construída em segundo plano, mais ao alto. Ou seja, as<br />
fotografias editadas associam a construção das casas às autoridades públicas e<br />
apresentam os trabalhadores do comércio que iriam usufruir de casas modernas, com<br />
todo o conforto, em um bairro novo e moderno, além de atendimento médico.<br />
A última imagem da fotorreportagem constrói a oposição ao enquadrar<br />
em primeiro plano uma mulher que lava roupa ao ar livre ao lado de um forno a<br />
lenha de campanha – representando o antigo, o rural e o tradicional – e, em segundo<br />
plano, o conjunto de casas recém-construídas e em construção da nova Vila dos<br />
Comerciários, que se perdem na linha do horizonte – representando o presente, o<br />
urbano e o moderno.<br />
Observa-se a construção da imagem de um governo que se associa aos<br />
Institutos de Previdência para enfrentar o problema da falta de habitação, através<br />
da construção de 250 casas das 2.100 previstas, que atenderiam cerca de 15.000<br />
pessoas. Essa reportagem deve ser relacionada, por um lado, a outras que abordam<br />
a construção da Vila do Instituto de Aposentadoria e Previdência dos Industriários<br />
(IAPI) e de edifícios por empresas de engenharia e construção, entre 1950 e 1954,<br />
e, por outro, às reportagens que tratam do problema da habitação em Porto Alegre<br />
e do surgimento de vilas irregulares de casas autoconstruídas. Ou seja, ao longo da<br />
década, a Revista do Globo aborda problemas urbanos e também coloca em destaque<br />
a ação das autoridades e administrações na resolução desses problemas.<br />
A dramaticidade e a amplitude do problema da habitação estão associadas<br />
às migrações decorrentes da aceleração do movimento do campo para a cidade, à<br />
expansão territorial urbana sobre antigos espaços rurais e semirrurais (com a ocupação<br />
ilegal de terrenos ou loteamento de chácaras, saneamento de várzeas e realização de<br />
aterros ao redor da cidade) e à abertura de novas avenidas de ligação entre os bairros.<br />
Daí também a ênfase das reportagens sobre o processo de verticalização do centro da<br />
cidade, através da construção de edifícios de alto gabarito (de 10 andares ou mais).<br />
Esse é o caso da fotorreportagem “Porto Alegre cresce para o céu e para<br />
o rio”, 29 com fotos de Thales Farias. O processo de modernização é o tema central<br />
abordado, a partir de fotos de grande formato, com tomadas fechadas do centro da<br />
29 CARNEIRO, Flávio; FARIAS, Thales. “Porto Alegre cresce para o céu e para o rio”. Revista do Globo, 1958, nº<br />
722, p. 38-42.
25<br />
Charles Monteiro<br />
cidade, colocando em destaque os novos edifícios (verticalização), as grandes obras<br />
públicas da Avenida Beira-Rio (expansão do perímetro urbano) e da Ponte sobre<br />
o Guaíba (nova escala de construções e ligação entre o sul rural e o norte urbano<br />
do estado). O que é enfatizado pelo título e pelo subtítulo da fotorreportagem:<br />
“Construções civis: recorde no Brasil e duas obras grandiosas”. São 10 fotos de meia<br />
página, com o predomínio do formato retangular vertical. As três primeiras fotos que<br />
abrem a fotorreportagem apontam para a verticalização, a expansão da área urbana e<br />
a monumentalização das construções e obras públicas no espaço urbano. Enfatiza-se<br />
a imagem de uma cidade em construção, em movimento, afirmando o significado<br />
dinâmico do trabalho e da circulação pelas novas avenidas. A presença do leito de ruas<br />
ou avenidas em primeiro plano, em quatro fotografias, orienta o caminho do olhar e<br />
constrói o significado de circulação urbana associado ao movimento de automóveis e<br />
pessoas. Em seis das oito fotos são representadas construções inacabadas, entre elas<br />
duas fotos de prédios recém-construídos. Linhas bem definidas, contrastes de tons,<br />
a luminosidade direta e fotos tiradas no sentido ascensional enfatizam os efeitos de<br />
verticalização e monumentalidade desses prédios de alto gabarito em construção.<br />
Fonte: CARNEIRO, Flávio; FARIAS, Thales. “Porto Alegre cresce para o céu e para o rio”.<br />
Revista do Globo, 1958, nº 722, p. 38-39.
26<br />
Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950<br />
A legenda da terceira página afirmava: “Porto Alegre, 1958: recorde brasileiro<br />
de construções”. O texto ensaia uma explicação para essa “febre de construções”:<br />
“o aumento vertiginoso nada tem de influências políticas, mas é tão somente a<br />
ação de capitais particulares, pois, com a desvalorização constante do cruzeiro, o<br />
negócio mais rendoso e seguro ainda continua sendo o imobiliário”. O dinamismo<br />
do processo de transformação do espaço urbano é atribuído ao empreendedorismo de<br />
investidores privados e à especulação imobiliária.<br />
Mas talvez o melhor exemplo desse engajamento da Revista do Globo em dar<br />
publicidade a esse projeto de modernidade urbana seja a fotorreportagem “Porto Alegre<br />
via aérea, 1959”, 30 de sete páginas, com fotos de Thales Farias. Ela está composta<br />
por seis fotos, quatro delas de grande formato retangular e duas de ¼ de página. Ela<br />
começa com uma foto aérea parcial do centro da cidade ocupando duas páginas. O<br />
sentido diagonal sugerido ao olhar pela foto enfatizava o processo de verticalização<br />
do centro e como que a passagem do passado (representado pelos prédios baixos em<br />
primeiro plano) para o presente (representado pelos edifícios de grande gabarito, em<br />
segundo plano e destacados pela luminosidade natural). Na página seguinte, outra foto<br />
aérea do centro da cidade com a legenda “dentro de alguns anos, a cidade não terá mais<br />
prédios velhos” sugere percurso semelhante para o olhar visando ao mesmo efeito.<br />
Fonte: CARNEIRO, Flávio; FARIAS, T. “Porto Alegre via aérea, 1959”. Revista do Globo, 1959, nº 742, p. 10-11.<br />
30 CARNEIRO, Flávio; FARIAS, T. “Porto Alegre via aérea, 1959”. Revista do Globo, 1959, nº 742, p. 10-16.
27<br />
Charles Monteiro<br />
Percebe-se que estava claramente engajada no projeto político das elites<br />
dirigentes de modernização social. A forma como a Revista do Globo publicava<br />
fotografias panorâmicas do centro da cidade, com planos fechados sobre as áreas<br />
mais centrais de Porto Alegre, visava exaltar o ideário de modernidade. Enquanto<br />
os textos difundiam todo um conjunto de ideias e valores que visavam educar as<br />
camadas médias urbanas, que eram as principais consumidoras da Revista para<br />
a concretização da utopia da cidade moderna numa verdadeira pedagogia social,<br />
as imagens elaboravam esse processo de mudanças e desenraizamento social de<br />
uma forma positiva.<br />
Mas não há somente publicidade da modernização ou a venda de uma<br />
imagem da cidade para consumo dos leitores de classe média na Revista do Globo.<br />
Ela também cumpria o papel de apontar os dilemas que a cidade enfrentava e<br />
deveria mobilizar a opinião pública e a vontade das administrações, municipal e<br />
estadual, para a sua resolução.<br />
As imagens dos problemas urbanos da cidade moderna:<br />
descontextualização, despolitização e busca da superação<br />
através da denúncia<br />
A fotorreportagem “Bairro sem rua nem terra nem destino” 31 aborda<br />
a transformação da antiga Doca dos Laranjeiros, na zona norte da cidade. Ela<br />
possui quatro páginas e 10 fotos. As laterais das páginas são ocupadas por<br />
publicidade. As fotos são todas externas, diurnas e com iluminação natural; linhas<br />
e contornos bem definidos; sendo uma de tamanho grande, duas de tamanho<br />
médio e seis pequenas; seis de formato quadrado e quatro de formato retangular;<br />
oito instantâneas e duas posadas; quatro fotos com abrangência parcial, tendo<br />
como referência o Guaíba, e seis pontuais, nas quais não é possível reconhecer<br />
o espaço urbano.<br />
31 “Bairro sem rua nem terra nem destino”, Revista do Globo, 30/9/1950, p. 54-57.
28<br />
Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950<br />
Fonte: “Bairro sem rua nem terra nem destino”, Revista do Globo, 30/9/1950, p.54-55.<br />
A primeira foto da reportagem de tamanho grande coloca, em primeiro plano,<br />
tábuas, laranjas e lixo espalhados pelo chão, varais de roupa secando. Em segundo<br />
plano, uma mulher adulta parece trabalhar (talvez ela seja uma lavadeira) em frente a<br />
um barraco de madeira. Na sequência, mais quatro fotos pequenas aprofundam o tema:<br />
uma criança tirando uma rede de um barco, tendo ao lado um porco comendo; uma<br />
mulher cortando lenha com um grande machado, com um varal de roupas e uma casa<br />
em segundo plano; crianças mexendo com madeiras, tendo um barco e um telhado ao<br />
fundo; um homem com roupas esfarrapadas carregando um saco nas costas. Todas as<br />
imagens apontam para a desordem, a sujeira e a precariedade do local e das condições<br />
de vida de seus moradores (material das habitações, roupas, convívio entre crianças e<br />
animais etc.). Apesar de visualizarmos água em uma das imagens, os enquadramentos<br />
mais fechados não permitem localizar de forma segura esse lugar no espaço urbano,<br />
promovendo a fragmentação e a segregação do lugar e de seus habitantes do conjunto<br />
da cidade. É o texto e as legendas que precisam ao leitor tratar-se das margens do<br />
Guaíba na zona norte da cidade. O texto também faz uma comparação entre a paisagem<br />
bucólica da praia de areias brancas, onde no passado passeavam os namorados e alguns<br />
barcos descarregavam laranjas, e o presente, caracterizado pelos cortiços, pelas casas<br />
flutuantes e pela população miserável que mora no local. O poder público não teria<br />
conseguido impedir a formação de outro bairro clandestino entre tantas vilas de lama
29<br />
Charles Monteiro<br />
na cidade. Porém, o texto também alerta que o bairro estava com os dias contatos diante<br />
do projeto de aterro e construção do novo cais da zona norte (Bairro Navegantes).<br />
Essa é uma das poucas reportagens que apontam para o problema da expulsão<br />
dos moradores de uma área em decorrência da realização de grandes obras urbanas<br />
pelo poder público. Entretanto, o texto e as fotografias da reportagem promovem a<br />
estigmatização e a segregação desses sujeitos – chamados de “curiosa mistura de<br />
trabalhadores, mendigos e malandros” – associando-os à sujeira, à degradação e a um<br />
estado primitivo de vida social (falta de saneamento, escola, assistência médica etc.).<br />
Tudo o que aqui falta reaparece no ano seguinte nos projetos habitacionais da Vila<br />
dos Comerciários e na Vila IAPI, visando dar aos trabalhadores todos os confortos e<br />
as comodidades da vida em habitações higiênicas e modernas com aluguéis módicos.<br />
A fotorreportagem “Amarelou o sorriso da cidade”, 32 com texto de Joseph<br />
Zukauska e fotos de Pedro Flores e Wilson Cavalheiro, amplia o elenco dos<br />
problemas urbanos – falta de água, de luz, de transporte e de moradia – através<br />
de uma série de 15 fotos, a maioria de pequeno formato. As fotografias que<br />
acompanham o texto apontam para a contradição entre os altos e modernos edifícios<br />
do centro da cidade e as malocas<br />
nas vilas populares da periferia<br />
de Porto Alegre. Porém, o sentido<br />
das fotos, sugerido pela leitura<br />
da esquerda para a direita, parece<br />
sugerir a sua superação por obras<br />
que estavam em curso na cidade.<br />
Fonte: ZUKAUSKA, Joseph; FLORES, Pedro, CAVALHEIRO, Wilson. “Amarelou o sorriso da cidade”.<br />
Revista do Globo, 1954, nº 607, pp. 48-55.<br />
32 ZUKAUSKA, Joseph; FLORES, Pedro, CAVALHEIRO, Wilson. Amarelou o sorriso da cidade. Revista do Globo,<br />
1954, nº 607, pp. 48-55.
30<br />
Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950<br />
As razões arroladas para essa crise seriam a modernização no campo e a<br />
falta de amparo ao trabalhador rural, que agiriam como fatores de expulsão do<br />
homem do campo. De outro lado, os motivos de atração de migrantes para a capital<br />
seriam a busca de trabalho na indústria, melhores salários, direitos trabalhistas,<br />
serviço de saúde e educação para os filhos. Nessa fotorreportagem, na página 50,<br />
a revista coloca lado a lado um alto edifício em construção e a casa de madeira de<br />
uma vila à beira do Guaíba. O subtítulo acima da página afirma: “Uma cidade de<br />
zinco e trapos dentro da outra”, e na legenda afirma-se: “De 51 a 53, a população<br />
marginal duplicou, por que não só quem casa quer casa. Os que vêm do interior<br />
para trabalhar na capital, também dela necessitam. A metade da população de<br />
uma vila de malocas é dada como catarinense” (idem, p. 50). Logo, a culpa dos<br />
problemas urbanos era atribuída aos migrantes e aos sujeitos que vêm de fora<br />
da cidade, às vezes, até mesmo de fora do estado. Ou seja, a culpa era dos não<br />
cidadãos, dos próprios excluídos e não da falta de planejamento e de políticas<br />
públicas adequadas.<br />
No que se refere às representações da cidade nas revistas ilustradas nos anos<br />
de 1950, observa-se que os recortes do espaço, dos temas e das formas de construir a<br />
narrativa apontam para um processo de construção de determinados sentidos, através<br />
de uma nova visualidade urbana. As fotos são diurnas, com luminosidade natural,<br />
e com uma definição clara de linhas. Algumas fotografias apresentam três planos e<br />
uma grande profundidade de campo.<br />
O espaço geográfico destacado é o espaço urbano, o centro, que passa a<br />
representar muitas vezes toda a cidade (como uma metonímia, ou seja, a parte pelo<br />
todo), excluindo do quadro fotográfico as vilas e periferias da cidade. Por sua vez, as<br />
imagens do centro da cidade privilegiam os espaços públicos com ângulos abertos<br />
sobre as principais ruas e avenidas, por vezes no sentido ascensional, destacando<br />
o processo de verticalização da cidade através da construção de prédios de alto<br />
gabarito e, noutras, descensional (áreas) através de fotos panorâmicas que davam a<br />
ver a expansão da área central.<br />
O que se destaca no espaço dos objetos são os prédios de alto gabarito,<br />
com mais 10 andares, os principais edifícios públicos e privados (comerciais e<br />
residenciais) do centro da cidade e as grandes obras públicas (federais e estaduais),<br />
que ajudavam a construir a percepção de uma nova escala monumental de<br />
crescimento, de verticalização e os significados de produtividade urbana. Mas<br />
também os automóveis, que ajudam a dar uma noção da escala dos edifícios e a<br />
construir significados de modernidade urbana.<br />
O espaço de figuração é monopolizado pela circulação de carros, ônibus<br />
e pessoas no centro, principalmente de homens adultos em idade produtiva, que
31<br />
Charles Monteiro<br />
coloca em destaque os significados sociais relativos ao trabalho e ao consumo de<br />
bens e serviços urbanos. As pessoas são representadas em vistas parciais do centro,<br />
de longe, não permitindo sua identificação individual, em movimento, circulando,<br />
trabalhando e comprando. Apontando assim para o transeunte anônimo, produtor e<br />
consumidor dos espaços, produtos e serviços urbanos. Os prédios de alto gabarito<br />
são enquadrados em segundo plano, indicando que essas pessoas vivem, trabalham<br />
ou consomem produtos nesses prédios modernos. O espaço de vivência é o espaço<br />
urbano ordenado, planificado, racionalizado e produtivo da cidade moderna, com<br />
seus fluxos incessantes de trabalho e consumo, com uma nova temporalidade urbana<br />
caracterizada pela velocidade acelerada de circulação de pessoas e automóveis no<br />
centro da cidade.<br />
Passa-se a refletir sobre a construção da imagem dos “outros” sujeitos<br />
urbanos, aqui particularmente representados pelos jovens e pelas crianças em<br />
situação de rua. Esses “outros” não eram considerados como cidadãos-construtores<br />
da cidade moderna e constituíam o avesso da nova ordem no processo de elaboração<br />
de um novo padrão de visualidade do espaço urbano nas fotorreportagens sobre a<br />
cidade de Porto Alegre na Revista do Globo nos anos de 1950.<br />
As fotografias participavam do projeto de construção da visualidade urbana<br />
e do processo de inclusão e legitimação da ação de certos atores e grupos sociais,<br />
bem como da exclusão e estigmatização da ação e presença de outros sujeitos e<br />
grupos sociais no espaço urbano em processo de modernização. As fotografias<br />
ajudavam a dar visibilidade, davam a ver certos grupos e práticas sociais, bem como<br />
construíam hierarquias e diferenças sociais. O processo de construção de identidades<br />
ou de identificações sociais, bem como do seu oposto, a alteridade e a exclusão,<br />
aparece ora de forma camuflada ora de forma clara e plasmada em certos sujeitos e<br />
grupos sociais. Conforme Woodward, os “discursos e os sistemas de representação<br />
constroem lugares a partir dos quais os indivíduos podem se posicionar e a partir dos<br />
quais podem falar”. 33<br />
A elaboração da imagem dos “outros” sujeitos urbanos na<br />
cidade moderna: estigmatização, segregação e sua integração<br />
forçada na sociedade urbana moderna<br />
Passa-se agora a analisar uma série de três fotorreportagens que elaboram a<br />
representação social dos outros sujeitos urbanos na Revista do Globo nos anos 1950. O<br />
estatuto destas imagens fotográficas lembra as fotografias de identificação do projeto<br />
de modernização e ordenação social do final do século XIX, paralelo à ascensão da<br />
33 WOODWARD (2000, p. 17).
32<br />
Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950<br />
burguesia, que elaboraria seus retratos em estúdios na forma de romances. 34<br />
A primeira delas é “Porto Alegre: uma cidade entregue aos ladrões”, de 21<br />
de fevereiro de 1953, 35 com três páginas e oito fotografias em P&B. A fotografia de<br />
abertura da fotorreportagem é de grande formato, no sentido horizontal, e ocupa a<br />
metade da primeira página.<br />
Fonte: TAJES, T.; FLORES, P.; CAVALHEIRO, W. “Porto Alegre: Uma cidade entregue aos ladrões”.<br />
Revista do Globo, 1953, n. 580, p. 60, 61.<br />
Nessa primeira imagem são representadas seis crianças descalças e sentadas<br />
sobre os paralelepípedos da rua (um trilho de bonde é visível no canto direito) em<br />
uma roda. Três delas encontram-se de costas e usam chapéus, uma delas está de<br />
perfil e outras duas de frente para a câmara, mas não podemos ver seus rostos. Três<br />
delas são negras e uma delas tem cabelo claro.<br />
34 Sobre esse tema, ver os excelentes trabalhos de FABRIS (2004, p. 21-55); bem como o estudo sobre o mesmo<br />
processo de identificação dos criminosos e prostitutas no México de DEBROISE (2005, p. 69-79); além de<br />
dois ensaios sobre o nascimento da fotografia de documentação social em Leeds na Inglaterra no séc. XIX e no<br />
Administration Secutity Farm nos Estados Unidos dos anos 1930 em TAGG (2005, p.153-198; 199-236).<br />
35 TAJES, T.; FLORES, P.; CAVALHEIRO, W. “Porto Alegre: Uma cidade entregue aos ladrões”. Revista do Globo,<br />
1953, n. 580, p. 60, 61, 66.
33<br />
Charles Monteiro<br />
Elas parecem conversar ou jogar, pois estão todas olhando para o centro<br />
da roda. A fotografia em P&B, tirada de cima para baixo, ao nível dos olhos de<br />
um adulto, com luz forte do meio dia, salienta os contornos e os volumes. Ao pé<br />
da página, três pequenas fotografias no estilo retrato de meio-corpo e de formato<br />
retangular vertical apresentam três homens de terno e gravata, sentados em fotos de<br />
interior. O primeiro deles está sentado, com apenas ¾ de seu corpo aparecendo na<br />
foto; o segundo está de perfil, sentado, falando ao telefone. O terceiro está de frente,<br />
tendo ao fundo uma parede neutra.<br />
Em uma delas, a fotografia central, é possível identificar que o local é um<br />
escritório, pois o homem está sentado atrás de uma escrivaninha e fala ao telefone. A<br />
análise da diagramação das fotografias na página da revista aponta para uma oposição/<br />
tensão entre a fotografia dos meninos descalços representados acima da página e<br />
as fotografias dos três homens de terno e gravata na parte de baixo da página. Essa<br />
oposição é construída também no plano formal, pois a primeira fotografia é externa<br />
e enquadra um pequeno grupo na rua, enquanto as três fotografias abaixo enquadram<br />
planos fechados do interior de um escritório. A primeira é tirada de cima para baixo<br />
apontando uma hierarquia do olhar (superioridade do fotógrafo/repórter/adulto que tira<br />
a foto) e cortada no formato retângulo horizontal salientando o chão, no qual as crianças<br />
encontram-se sentadas, já as outras três fotografias são tomadas da mesma altura dos<br />
olhos dos homens de terno e são cortadas em um retângulo vertical (ascensão).<br />
Na página seguinte, outras quatro fotos de formato pequeno e retangular<br />
vertical completam a fotorreportagem. As legendas dessas fotos ampliam essa<br />
contradição e aprofundam a tensão social entre esses dois grupos. Sobre o primeiro<br />
grupo se projeta um olhar externo, que é um ser visto pelo outro, ou seja, a objetiva<br />
do repórter fotográfico, e no segundo há um “dar-se a ver” da autoridade policial que<br />
olha para a câmera do fotógrafo.<br />
A legenda da primeira foto afirma que “sessenta por cento dos larápios que<br />
agem em Porto Alegre são menores” e completa que “não é de estranhar, pois a<br />
qualquer momento, em qualquer parte da capital, podem-se ver grupos de garotos<br />
na malandragem, sem lar, sem escola, sem assistência”. 36 As legendas das seis fotos<br />
menores de homens de terno e gravata indicam que se trata do delegado Homero<br />
Schneider, do delegado-adjunto Miranda Meira, do inspetor-chefe Osmar Barreto,<br />
dos inspetores Osvaldo Scherer e Alfredo Vitorino Vargas e do depositário Agostinho<br />
F. Pena. Todos individualizados ao serem retratados de perto em seu ambiente<br />
de trabalho, no exercício de suas funções e identificados pelo nome, sobrenome<br />
e respectivos cargos na polícia. A ordem policial é representada pelos policiais e<br />
objetos relacionados ao seu trabalho (telefone, livros, cofre).<br />
36 TAJES, T.; FLORES, P.; CAVALHEIRO, W. “Porto Alegre: Uma cidade entregue aos ladrões”. Revista do Globo,<br />
1953, n. 580, p. 60.
34<br />
Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950<br />
A análise do texto da fotorreportagem aponta para o aprofundamento dos<br />
binômios delinquentes versus polícia e desordem versus ordem policial, o que reforça<br />
esse processo de hierarquização e estigmatização das crianças de rua através do<br />
tom sensacionalista que caracterizava as revistas ilustradas do período. O subtítulo<br />
afirma: “Desaparelhada de gente e de material, a Delegacia Especial de atentados à<br />
propriedade na capital gaúcha tem contra si um adversário cem vezes mais numeroso:<br />
os menores delinquentes e os fugitivos”. 37 A Revista também dá a palavra aos policiais,<br />
enquanto se apropria da fala de um dos jovens para construir dele uma imagem de<br />
perigoso contraventor: “O pobre rapazinho confessou ainda que sua maior aspiração<br />
era ser chefe de uma quadrilha, ter automóvel e metralhadora”. 38 A estigmatização<br />
social desses jovens pela revista se completa ao final da fotorreportagem:<br />
O que de melhor se poderia esperar de uma geração criada<br />
na maloca, analfabeta e acostumada desde criança a disputar<br />
com os porcos a própria alimentação. Procurem-se as fichas<br />
dos recém-entrados na Casa de Correção. Noventa por cento<br />
analfabetos! É o que prolifera em nossas vilas de marginais, fruto<br />
da desagregação dos costumes, da dissolução das famílias. 39<br />
Acerca da imagem pública dessas crianças e jovens, a revista sentencia: “A<br />
maior desgraça para eles é a lei que não permite à imprensa publicar fotografias ou<br />
o nome dos menores”, 40 o que explica o fato de as fotografias não mostrarem nem os<br />
rostos e nem os olhos dos jovens. Isso evidencia o desejo social de visibilidade do<br />
poder (da polícia), de identificação e de controle desses jovens em uma cidade em<br />
processo acelerado de crescimento e diversificação social.<br />
A campanha de moralização e controle social do espaço urbano fica<br />
clara quando a revista dá a palavra ao inspetor Schneider: “Sessenta por cento<br />
dos furtos praticados em Porto Alegre são de autoria de menores. Ache-se um<br />
estabelecimento adequado e tire-se de circulação cinquenta meninos delinquentes<br />
e a estatística baixará”. 41<br />
Ou seja, o ideal policial seria o seu isolamento e a sua vigilância em instituições<br />
corretivas para crianças e adolescentes. O que nos leva a outra fotorreportagem da<br />
Revista do Globo, de 10 de julho de 1954, intitulada “Não é doce nem é lar”, com<br />
texto de Dionísio Toledo e fotos de Pedro Flores, exatamente sobre esse assunto. 42<br />
37 Id., Ib., p. 60.<br />
38 Id., Ib., p. 60.<br />
39 Id., Ib., p. 61.<br />
40 Id., Ib., p. 61.<br />
41 Id., Ib., p. 61.<br />
42 TOLEDO, D.; FLORES, P. Não é doce nem é lar. Revista do Globo, 1953, n. 616, p. 48-50, 56.
35<br />
Charles Monteiro<br />
Fonte: TOLEDO, D.; FLORES, P. “Não é doce nem é lar”. Revista do Globo, 1953, n. 616, p. 48-49.<br />
A fotorreportagem tem três páginas com cinco fotografias, iniciando-se<br />
com página dupla com duas fotos de formato grande (com mais de ½ página) e<br />
continuando na terceira página com três fotos de formato pequeno com menos de ¼<br />
de página. Nas primeiras duas páginas, na abertura da fotorreportagem, apresentamse<br />
fotografias de grande formato com tom sensacionalista visando causar impacto e<br />
despertar a atenção do leitor.<br />
A primeira foto no formato retangular vertical apresenta em primeiro plano<br />
um jovem negro de costas, enrolado em um cobertor, descalço e caminhando sobre as<br />
pedras irregulares de um pátio e ao fundo, em segundo plano, uma fileira de jovens<br />
sentados no chão (com tarjas pretas cobrindo os olhos) diante de uma casa térrea de<br />
madeira com beiral. Ao lado, a segunda foto apresenta em primeiro plano um pátio<br />
com chão de pedras, sobre o qual se projeta uma larga sombra, no qual se encontra<br />
um grupo de jovens sentados no chão lado a lado em fila (dois deles se destacam por<br />
estarem em pé) em frente a uma casa de madeira e de telhado baixo com três aberturas<br />
de onde pendem cobertores. Veem-se, ainda, ao fundo, um fragmento de céu, a parede<br />
de outra casa e a copa de uma árvore que projeta sua sombra sobre o pátio, onde quatro
36<br />
Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950<br />
jovens se encontram sentados contra a parede. Observa-se, por um fragmento do<br />
cobertor nas costas do jovem da primeira fotografia que aparece na segunda fotografia,<br />
que se trata do mesmo lugar e que essas se complementam enfocando os dois lados do<br />
mesmo pátio. O que permite ver a casa ao fundo e um grande grupo de jovens sentados<br />
no chão do pátio ora mais de perto ora mais de longe em seu conjunto.<br />
Na página seguinte, três fotografias de formato pequeno complementam e<br />
detalham alguns aspectos das duas imagens anteriores. No alto da página, a terceira<br />
foto apresenta uma parede rústica com uma prateleira, onde se observa uma fileira<br />
de latas, abaixo dela um banco de tábuas e em cima dele um tacho de leite vazio<br />
virado. Na quarta foto, quatro jovens dormem amontoados no chão no canto de uma<br />
peça enrolados em panos. No plano do conteúdo, observa-se a repetição da ideia de<br />
empilhamento dos jovens sentados no chão, dormindo num canto de peça, dos panos<br />
sobre um cavalete e das latas. Os significados de rusticidade do chão de pedras, da<br />
casa de madeira, das paredes rugosas da pilha de panos e latas. A casa térrea de uma<br />
água que lembra o espaço rural e o passado colonial em oposição à casa burguesa<br />
e aos prédios de apartamentos que dominam a representação da cidade em outras<br />
fotorreportagens. Os significados de abandono e a anomia são explorados através da<br />
apresentação dos jovens sentados contra a parede ou deitados no chão, bem como a<br />
pobreza das suas vestes e do lugar que se encontram.<br />
Fonte: TOLEDO, D.; FLORES, P. Não é doce nem é lar. Revista do Globo, 1953, n. 616, p. 50, 56.
37<br />
Charles Monteiro<br />
A análise formal das imagens aponta para escolhas de enquadramento e<br />
luminosidade que ampliam esses significados de pobreza, rusticidade e abandono.<br />
Nas duas primeiras fotos de grande formato, a câmera baixa (próxima ao chão)<br />
coloca em primeiro plano o piso do pátio de pedras irregulares, sobre o qual se<br />
projetam largas sombras, focando os pés descalços dos jovens. A sequência narrativa<br />
das fotos começa no exterior e penetra no interior rústico da habitação apresentando<br />
detalhes que complementam os significados de pobreza, rusticidade e abandono.<br />
Estamos na esfera do visível dos dispositivos do olhar do poder, da visão<br />
policial, que esquadrinha e dá a ver o outro, que torna o visível para reificá-lo, que<br />
o transforma em objeto, em coisa. A revista dá a ver o outro – o jovem, negro,<br />
pobre, condenado pela justiça – na sua miséria e na sua diferença em relação ao<br />
padrão burguês de habitação e consumo da cidade moderna. Desvalorizando-o e<br />
estigmatizando-o em relação às esferas do trabalho e do ordenamento social que<br />
caracterizam as representações da cidade moderna e das classes alinhadas com esse<br />
projeto de modernização.<br />
Os títulos, as legendas e os textos ampliam essa representação e colaboram<br />
para construir uma imagem de alteridade negativa destes jovens relacionado a<br />
certos espaços da cidade. Observe-se o subtítulo da fotorreportagem: “É na Colônia<br />
Africana, um antro miserável, que Porto Alegre procura ‘recuperar’ seus menores<br />
delinquentes”. 43 Nesse subtítulo, associa-se a representação desses jovens com os<br />
significados de colônia, de africana, de miserável e de delinquência, localizados em<br />
determinado espaço urbano e que se opõe ao conjunto da cidade de Porto Alegre.<br />
A fotorreportagem adquire tom de fotonovela pela forma como a narrativa<br />
é conduzida em primeira pessoa, seguindo os passos do repórter que procura<br />
desvendar o problema do jovem e criança de rua em Porto Alegre. O texto começa<br />
com uma caminhada da personagem-repórter pelo centro da cidade a deparar-se com<br />
as manchetes dos jornais a noticiar o arrombamento de seis prédios. Depois, em<br />
um fluxo de consciência, a personagem pensa na possibilidade de sua residência<br />
ser arrombada e na sua vontade de ver os responsáveis na cadeia. Na sequência<br />
depara-se com uma criança oferecendo-se para engraxar os seus sapatos, aceita e<br />
passa a pensar no problema dos jovens delinquentes da cidade. O fato o leva a querer<br />
investigar o assunto. Ele se dirige à autoridade competente do Juizado de Menores,<br />
que lhe fala do problema da escassez de verbas e se oferece para conduzi-lo a um<br />
passeio visando conhecer uma instituição que abriga jovens e crianças na Colônia<br />
Africana. Cabe salientar que essa forma de narrativa (próxima ao antigo folhetim e<br />
à fotonovela) visa despertar o interesse dos leitores e colocá-los ao lado do repórter<br />
em sua “pesquisa”. A descrição da instituição pela personagem-repórter é bastante<br />
forte e entremeada de qualificativos:<br />
43 TOLEDO, D.; FLORES, P. Não é doce nem é lar. Revista do Globo, 1953, n. 616, p. 48-49.
38<br />
Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950<br />
Dirigimo-nos para lá, entramos em seu recinto, e... que horror!<br />
Duas celas, duas jaulas. Cinquenta menores, uns sobre os outros,<br />
o que nos faz pensar nas promiscuidades que devem se suceder<br />
entre eles. Um cheiro insuportável das instalações sanitárias<br />
junto às celas sem porta. Não há uma cama sequer, sacos servem<br />
de cobertores. Uma massa humana agrupada atrás das grades a<br />
pedir cigarros. Então a nosso pedido, são todos eles retirados das<br />
“grades”, colocados em uma fileira, se deixam fotografar com<br />
uma passividade de bestas. 44<br />
Descobre-se, então, que a fotografia foi armada, e os jovens posaram para<br />
ela segundo a lógica da fotografia policial de identificação do criminoso, do outro, do<br />
excluído. A avaliação da revista é tanto estética quanto moral sobre o lugar e as pessoas<br />
que lá se encontram. “Lá” na Colônia Africana, tudo se opõe à moral, à estética e<br />
aos padrões sociais civilizados que o repórter e os leitores defendem na “cidade”.<br />
Mais adiante, o repórter-personagem completa o processo de estigmatização desse<br />
“outro”: “Todos esses garotos que podiam ser de utilidade social em verdade não<br />
passam de autênticas bestas humanas”. 45<br />
Apesar de certo humanismo que leva o repórter a associar aqueles jovens<br />
ao engraxate que encontrou no centro e da vontade “de que seja nosso próprio filho,<br />
que o levemos para casa...”, 46 a reportagem defende um conjunto de medidas de<br />
caráter preventivo das autoridades que permitissem identificar, avaliar, encaminhar<br />
e tratar esses jovens visando a sua recuperação e reintegração no convívio social.<br />
Para tanto, poder-se-ia utilizar o regime semiaberto, sob vigilância discreta, mas<br />
constante. O que remete à próxima fotorreportagem sobre uma nova instituição para<br />
o recolhimento e reeducação de jovens infratores.<br />
A fotorreportagem “O lar para o pequeno marginal”, 47 de 24 de agosto de<br />
1957, com texto de Antônio Goulart e fotografias de Léo Guerreiro, é composta<br />
de seis páginas e sete fotos P&B: duas fotos grandes com formato de retângulo<br />
horizontal, três fotos de tamanho médio (uma no formato retângulo vertical e outras<br />
duas no formato retângulo horizontal) e duas fotos pequenas no formato quadrado.<br />
44 Id., Ib., p. 50.<br />
45 Id., Ib., p. 50.<br />
46 Id., Ib., p. 50.<br />
47 GOULART, A.; GUERREIRO, L. O novo lar para o pequeno marginal. Revista do Globo, 1957, n. 697, p. 36-41.
39<br />
Charles Monteiro<br />
Fonte: GOULART, A.; GUERREIRO, L. O novo lar para o pequeno marginal. Revista do Globo,<br />
1957, n. 697, p. 36,37.<br />
Ela começa em página dupla com uma fotografia retangular na vertical um<br />
pouco menor do que meia página. Nela se podem observar dois rapazes no fundo<br />
de um longo corredor. Em primeiro plano, destaca-se o piso de ladrilhos de duas<br />
cores em “L”; em segundo plano, um jovem de costas caminha em direção ao fundo<br />
do corredor e caminha em frente a três portas abertas de onde se projeta uma luz<br />
sobre a parede contrária cheia de portas de armários fechadas; um pouco à frente e<br />
à esquerda, outro rapaz procura algo dentro de um armário com a porta aberta. No<br />
teto de cor clara, como as paredes laterais, observam-se duas luminárias. Não se<br />
observam objetos no chão ou nas paredes.<br />
No plano formal, a foto tirada em ângulo de 90 graus com o chão, que<br />
ocupa o primeiro plano e com os jovens ao fundo em segundo plano, destaca a<br />
profundidade e a amplidão do corredor; a sequência de portas de armários e de portas<br />
abertas dá ritmo, ordenação e equilíbrio à imagem. A fotografia constrói significados<br />
de ordem, limpeza e amplitude do espaço. O que é reafirmado pela legenda “Ao lado<br />
do dormitório, num longo e claro corredor, cada um deles possui o seu armário para
40<br />
Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950<br />
roupa”. 48 A segunda foto é uma vista parcial que, em primeiro plano, apresenta uma<br />
grande árvore e, em segundo plano, em toda a sua extensão um longo edifício de dois<br />
andares, em terceiro plano, o céu ocupa boa parte do espaço da fotografia.<br />
No plano formal, observa-se que o fotógrafo construiu uma foto tirada a<br />
distância para enquadrar a árvore alta que se sobrepõe e projeta a sua sombra sobre<br />
o longo prédio de dois andares com uma generosa porção de céu ao fundo. A árvore<br />
alta parece proteger o edifício novo ao projetar sua sombra sobre ele. A tomada a<br />
distância enfatiza o tamanho do prédio e sua integração com a natureza (árvore e<br />
céu) construindo significados de salubridade e amplidão. O que também é destacado<br />
na legenda e no início do texto da fotorreportagem: “Num amplo descampado, atrás<br />
de uma colina, ergue-se o moderno edifício do Novo Lar de Menores”. 49 O adjetivo<br />
moderno coloca-o em sintonia com os objetivos reiterados da revista de ser portavoz<br />
do homem e da mulher moderna. No terceiro parágrafo descreve-se o Novo Lar:<br />
A casa apresenta-se com simplicidade, dentro de um estilo<br />
funcional e linhas modernas. Tem capacidade para 50 ou mais<br />
pessoas. Tudo muito amplo, aberto, não oferecendo aos meninos<br />
o mínimo aspecto de prisão. Bem perto se alarga um campo de<br />
esportes, mais abaixo uma horta. 50<br />
As fotografias e o texto complementam-se na apresentação das instalações e<br />
das atividades que se desenvolvem na instituição. Nesse sentido as fotos têm o papel<br />
de testemunhar e certificar a veracidade e a exatidão da descrição, como se observa<br />
na sequência de cinco fotos que complementam a fotorreportagem, testemunhando e<br />
detalhando atividades de trabalho e de lazer dos meninos na instituição. Na segunda<br />
página, a terceira foto enquadra em primeiro plano um menino de costas no gol<br />
observando três outros garotos disputando a bola a alguns metros à frente, no segundo<br />
plano. Num terceiro plano, apresenta-se a amplidão de um campo aberto e morros<br />
ao fundo, muito além dos limites do campo de futebol onde os meninos jogam bola.<br />
Na foto abaixo dessa, apresentam-se em primeiro plano dois meninos carregando<br />
enxadas, em segundo plano, mais à frente dois homens também carregando<br />
ferramentas (o primeiro deles de roupa preta, que aparenta ser um padre de batina)<br />
e, mais além, observam-se o prédio da instituição e a amplidão do céu. No plano<br />
icônico de conteúdo, as duas fotos apresentam a união de lazer e trabalho, ambas as<br />
atividades desenvolvidas ao ar livre e em contato com a natureza (campo, árvores,<br />
céu). Por isso, muito saudáveis e apropriadas a esses jovens. O que é complementado<br />
pelo subtítulo ao lado “Apreciam esporte e trabalho”. 51<br />
48 GOULART, A.; GUERREIRO, L. O novo lar para o pequeno marginal. Revista do Globo, 1957, n. 697, p. 36.<br />
49 GOULART, A.; GUERREIRO, L. O novo lar para o pequeno marginal. Revista do Globo, 1957, n. 697, p. 37.<br />
50 Id., Ib., p. 37.<br />
51 Id., Ib., p. 38.
41<br />
Charles Monteiro<br />
No formal da expressão, estas vistas parciais da instituição com grande<br />
profundidade de campo e enquadramento do céu (representa entre ⅓ e ½ das<br />
fotografias respectivamente) apontam para a vida em contato com a natureza,<br />
liberdade, salubridade, num ambiente com harmonia e paz ideal para o<br />
desenvolvimento dos jovens.<br />
Fonte: GOULART, A.; GUERREIRO, L. “O novo lar para o pequeno marginal”. Revista do Globo,<br />
1957, n. 697, p. 38-39.<br />
Outras três imagens complementam esses significados nas duas páginas<br />
seguintes que concluem a reportagem. 52 Nestas páginas, as fotos, o subtítulo e as<br />
legendas concorrem com as publicidades que ocupam a metade externa dessas<br />
páginas. A quinta fotografia apresenta um grupo de jovens/meninos ao redor de uma<br />
mesa em um ambiente amplo. Em primeiro plano, um menino está se levantando na<br />
ponta da mesa e outro está de pé no lado esquerdo, um homem de pé parece ser um<br />
padre usando batina preta, outros três meninos estão sentados e outros dois mais ao<br />
fundo parecem estar de pé atrás da mesa. Em um segundo plano, ao fundo da sala<br />
ampla há armários na parede e uma porta aberta para outro aposento. A legenda<br />
52 GOULART, A.; GUERREIRO, L. O novo lar para o pequeno marginal. Revista do Globo, 1957, n. 697, p. 40-41.
42<br />
Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950<br />
esclarece: “No refeitório este grupo, sem nenhuma cerimônia, mistura no café da<br />
tarde conversa e risadas gostosas”. A foto é um instantâneo, a análise icônica sugere<br />
o binômio formado pela amplidão da sala e a unidade do grupo ao redor da mesa para<br />
a refeição. A descontração do grupo é vigiada e controlada pelo padre ao fundo, que<br />
representa a autoridade e a ordem na instituição. O grupo que está bem centralizado<br />
e em foco é núcleo significante da imagem. O contraste entre a luminosidade clara<br />
da sala e os tons mais escuros das roupas dos meninos do grupo ao redor da mesa<br />
complementa esse significado de unidade do grupo.<br />
Fonte: GOULART, A.; GUERREIRO, L. O novo lar para o pequeno marginal.<br />
Revista do Globo, 1957, n. 697, p. 40-41.<br />
Ao lado dessa fotografia, outra apresenta dois meninos em um dormitório<br />
arrumando as suas camas. As roupas de cama parecem bem brancas, e uma<br />
luminosidade forte entra através das duas janelas abertas sobre as camas. É um<br />
instantâneo ou foto posada? Não se pode saber ao certo, mas tudo indica a pose.<br />
Novamente, a análise do conteúdo aponta para a construção de significados de<br />
responsabilidade, disciplina, ordem, higiene e bem-estar dos meninos na instituição.
43<br />
Charles Monteiro<br />
Embaixo, na mesma página, uma fotografia média em formato retangular<br />
horizontal representa dois jovens e um menino operando máquinas sobre bancadas<br />
de ferro e madeira num ambiente que parece ser uma oficina. Em primeiro plano à<br />
direita, observa-se um jovem de frente para a câmera (porém seu rosto foi borrado,<br />
provavelmente no negativo antes da ampliação, para preservar a sua identidade)<br />
operando uma ferramenta elétrica com a mão esquerda e pousando a mão direita<br />
sobre outra em cima da bancada. Em segundo plano, outro jovem de costas opera<br />
uma máquina sobre uma bancada. A legenda esclarece tratar-se de uma oficina de<br />
marcenaria onde se fabricam móveis.<br />
No plano do conteúdo, essa imagem encerra a fotorreportagem com os<br />
significados do trabalho, da operosidade, da produtividade com complemento e ponto<br />
culminante do trabalho de reabilitação e ressocialização dos “pequenos marginais”<br />
(sic). A narrativa visual ordenada nos leva a um passeio pela instituição: começamos<br />
a distância contemplando o terreno, a modernidade e o tamanho do prédio, bem como<br />
sua localização favorável em meio à natureza; depois passamos ao campo de futebol;<br />
e ainda a volta do trabalho da horta; no interior observamos o refeitório, os quartos<br />
e a oficina. Tudo muito limpo, espaçoso, ordenado e iluminado para a reabilitação<br />
dos meninos e jovens sobre o olhar atento e vigilante do padre e seu assistente. Há<br />
um processo de acumulação e de reforço dos significados das imagens anteriores<br />
de forma bastante pedagógica para o leitor da revista, visando apresentar-lhes os<br />
benefícios da reclusão, do trabalho, da disciplina e do trabalho para a reabilitação e<br />
reinserção social desses jovens e meninos.<br />
Essas reportagens encerram todo um percurso e uma discussão sobre o<br />
lugar da criança e do jovem de rua na cidade moderna. Na primeira reportagem o<br />
leitor é informado da sua periculosidade e dos inúmeros roubos por eles cometidos,<br />
fazendo-os figurar como ameaça número um à propriedade. Na segunda reportagem,<br />
a revista focaliza os jovens vivendo quase como animais em um antro na periferia<br />
da cidade: a Colônia Africana. Finalmente, a última reportagem apresenta a solução<br />
do problema com o distanciamento desses jovens e meninos da cidade grande para<br />
as áreas saudáveis em contato com a natureza de Viamão no “Novo Lar do Menor”.<br />
Nesse ambiente saudável, limpo, arejado e disciplinado, isolado dos maus da cidade,<br />
eles aprenderão a trabalhar na horta, na oficina e receberão cama, comida, roupas e<br />
educação profissional para se tornarem indivíduos úteis e prontos para se reinserirem<br />
na sociedade moderna.<br />
Logo, a todo um processo de estigmatização desses jovens e crianças de<br />
rua, exigindo seu afastamento dos antros das periferias (verdadeiras escolas do<br />
crime) e sua segregação em espaços afastados da cidade, em meio à natureza,<br />
visando a seu disciplinamento, recuperação e futura reinserção na sociedade<br />
através do mundo do trabalho.
44<br />
Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950<br />
Através dessas fotorreportagens, a revista se engajou no projeto de<br />
modernidade e de modernização da cidade através da construção de uma nova<br />
visualidade. Essa nova visualidade urbana jogou tanto com significados sociais<br />
de inclusão e legitimação da ação de certos atores e grupos sociais no espaço<br />
urbano quanto de estigmatização e exclusão de outros sujeitos e grupos sociais<br />
na cidade em processo de modernização. Este é o caso dos jovens e das crianças<br />
de rua, infratoras ou não, que passavam a ser identificadas como uma ameaça à<br />
propriedade e à ordem social.<br />
As fotografias ajudavam a dar visibilidade à ação da polícia no combate ao<br />
crime e a construir uma imagem negativa desses jovens e dos espaços urbanos a eles<br />
associados na cidade: as vilas periféricas. Elas construíam hierarquias e diferenças<br />
sociais, produzindo a segregação desses sujeitos no espaço urbano. Elas terminavam<br />
reforçando e legitimando o processo de afastamento desses grupos para áreas distantes<br />
dos espaços centrais onde imperaria a lógica da modernidade, da sociedade de consumo e<br />
da especulação imobiliária. O processo de construção de identidades ou de identificações<br />
sociais passa pela definição de práticas modernas e seu avesso, constituindo a alteridade.<br />
A necessidade de exclusão e de disciplinamento dos jovens de rua aparece de forma clara<br />
nas páginas das fotorreportagens, sendo construída pelas falas das autoridades policiais e<br />
pela forma como a revista alçada à condição de porta-voz da sociedade porto-alegrense<br />
construía a sua imagem. A imagem destes jovens e crianças em situação de rua fazia<br />
estilhaçar o espelho onde se projetava a nova imagem de cidade em construção no espaço<br />
urbano e em elaboração nas páginas da Revista do Globo. Logo, essa imagem exigia uma<br />
elaboração e um tratamento para que não ferisse a nova sensibilidade ou o novo padrão<br />
visual de cidade moderna consumida pelas elites e camadas médias. A nova visualidade<br />
urbana construída na revista permite uma série de recursos (editoração, paginação,<br />
narrativa etc.) para elaborar e disciplinar essa imagem do outro e fazê-la reforçar os<br />
significados sociais ligados à modernidade: visibilidade e ordenamento entre outros.<br />
Nesse sentido, a análise dessas fotorreportagens permite problematizar a<br />
construção de um padrão de visualidade urbana e o discurso de modernidade social<br />
das revistas ilustradas. Elas fazem pensar sobre a forma excludente e hierárquica<br />
como é construída a imagem dos “outros” sujeitos sociais, que terminam sendo apenas<br />
objetos do olhar disciplinador das elites que os coisifica, tornando-os alvo de políticas<br />
públicas e não sujeitos sociais com direitos civis e demandas políticas no processo de<br />
construção social do espaço urbano. Por outro lado, ajudam a legitimar o processo de<br />
mercantilização e monopolização do espaço urbano através da especulação imobiliária<br />
e a verticalização da área central da cidade através da construção de edifícios de<br />
alto gabarito, bem como da difusão de novas formas de sociabilidade e formas de<br />
consumo através das publicidades associadas às reportagens no contexto do processo<br />
de diagramação e edição das fotografias nas páginas da revista.
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CAPíTUlO 2<br />
A TéCNICA DE JOÃO AlBERTO FONSECA DA SIlVA<br />
E A ARTE DE SIOMA BREITMAN NA FOTOGRAFIA<br />
PORTO-AlEGRENSE DOS ANOS 1950<br />
Rodrigo Massia 1<br />
Sioma Breitman fotografou do ano de 1921 até 1970, quando decidiu se<br />
aposentar. João Alberto Fonseca da Silva começou a tomar contato com a fotografia<br />
a partir do trabalho de laboratorista no Serviço Histórico Geográfico do Exército, no<br />
ano de 1939. Fotografou profissionalmente até os anos 1990. Ao valer-se da biografia<br />
destes dois sujeitos, pretende-se problematizar em que medida estas duas trajetórias<br />
permitem compreender parte do circuito social da fotografia em Porto Alegre na<br />
década de 1950.<br />
Como se trata de um tema ainda pouco explorado pela pesquisa histórica,<br />
essa investigação utiliza depoimentos orais. A reflexão sobre este tipo de fonte<br />
necessariamente implica uma problemática da memória, que se relaciona aqui<br />
com a textualidade de Sioma e a oralidade de João Alberto. Outrossim, estes dois<br />
fotógrafos possuem trajetórias distintas, o que se cristaliza no modo como falam de<br />
sua atividade e de sua relação com os demais colegas de profissão.<br />
Sioma Breitman escreveu um livro 2 contendo 166 páginas no qual narra<br />
trechos de sua trajetória. João Alberto concedeu dois depoimentos 3 ao Museu de<br />
Comunicação Social Hipólito José da Costa. O primeiro depoimento data de 1978,<br />
e o segundo foi realizado no ano de 2006. Há um intervalo de 28 anos entre uma<br />
entrevista e outra. Sioma Breitman tem sua memória bastante consolidada, pois sua<br />
atividade conta com maior reconhecimento do estado. Há um logradouro com o<br />
seu nome e a fototeca homônima do Museu Municipal Joaquim José Felizardo. A<br />
doação de parte de seu acervo fotográfico foi concedida ao Museu em função desse<br />
reconhecimento. 4 João Alberto considera-se um homem de sorte por ter parte de seu<br />
trabalho reconhecido como algo que deve ser preservado, pois se constitui em parte<br />
da memória arquitetônica da cidade.<br />
As fontes sobre os dois fotógrafos são de tipos distintos e exigem formas de<br />
leitura crítica diferenciadas pelo historiador. O livro escrito por Sioma Breitman faz<br />
parte do acervo público do fotógrafo e se encontra no Museu Joaquim José Felizardo.<br />
1 Mestre em <strong>História</strong> pela PUCRS. E-mail: rodrigo.massia@gmail.com.<br />
2 BREITMAN (1976.).<br />
3 SILVA (1978, 2006.).<br />
4 Cf. POSSAMAI (1998, p. 95).
51<br />
Rodrigo Massia<br />
Trata-se de uma fonte textual na qual o escritor teve a oportunidade de escrever, corrigir<br />
e enfatizar momentos de sua trajetória, bem como relegar outros ao esquecimento. O<br />
processo de escrita permite maior controle sobre a edição e a escolha das palavras. A<br />
motivação para a elaboração do livro teria sido de ordem pessoal, ou seja, responderia,<br />
segundo Sioma Breitman, a uma demanda de memória familiar.<br />
No caso de João Alberto, as entrevistas realizadas não obedeceram a um<br />
roteiro estabelecido por esta pesquisa. Foram produzidas para registrar a trajetória<br />
do fotógrafo, de modo que abarcasse a totalidade de sua atividade profissional. 5 As<br />
entrevistas, ocorridas em tempos distintos, não contaram com a presença ou com<br />
qualquer sugestão de pauta para este trabalho. O contato com a fonte foi feito a<br />
partir do áudio e da transcrição das falas do fotógrafo registradas nas fitas cassete.<br />
Apesar de o autor não exercer o papel de entrevistador, a pesquisa contribuiu para<br />
um momento decisivo do acervo oral: quando ele se torna um documento textual. O<br />
material foi digitalizado e entregue ao Museu, que agora conta com o arquivo textual<br />
e sonoro em formato digital.<br />
Dentre os diferentes tipos de enfoque da <strong>História</strong> oral, este trabalho<br />
caracteriza-se como uma história oral temática. 6 Nessa abordagem o pesquisador<br />
faz um uso direcionado da fonte, pois ela conduz as entrevistas ou as utiliza em<br />
função de um tema que tem relação com a história de vida do entrevistado. Não<br />
se mensurou aqui a tradição oral, mas os aspectos da memória individual de João<br />
Alberto. Entende-se aqui a memória individual como “uma reconstrução psíquica e<br />
intelectual que acarreta de fato uma representação seletiva do passado, um passado<br />
que nunca é aquele do indivíduo somente, mas do indivíduo inserido num contexto<br />
familiar, social, nacional”. A concepção teórica sobre a memória visa pensar em que<br />
medida estas fontes podem auxiliar a pensar no circuito social da fotografia em Porto<br />
Alegre nas décadas de 1940 e 1950.<br />
João Alberto Fonseca da Silva: o olhar do migrante, o olhar<br />
técnico<br />
João Alberto Fonseca da Silva é natural de Quaraí, cidade localizada<br />
próxima à fronteira com o Uruguai e a Argentina. Quando chegou à idade de servir<br />
ao exército veio a Porto Alegre, para tentar melhores condições de vida. Foi quando<br />
teve a oportunidade de trabalhar como laboratorista do Serviço Geográfico do<br />
Exército, no qual aprendeu as técnicas de revelação e de composição de cartas em<br />
5 O tratamento das fontes orais orientou-se, em linhas gerais, pelas propostas de: VOLDMAN In: AMADO;<br />
FERREIRA (1996, p. 33-41.).<br />
6 ROUSSO In: AMADO; FERREIRA (1996, p. 93-101.).
52<br />
A técnica de João Alberto Fonseca da Silva e a arte de Sioma Breitman<br />
aerofotogrametria. A aerofotogrametria é uma técnica que permite o levantamento<br />
de extensas áreas, que são fotografadas e posteriormente transformadas em cartas<br />
topográficas, equivalentes a mapas que indicam as condições do terreno: formações<br />
naturais, localização de cidades, curso dos rios etc.<br />
Com o aprendizado obtido nesta tipologia de processo técnico em fotografia<br />
e com as amizades que fez em sua passagem pelo exército, João Alberto ingressou<br />
na Secretaria Estadual de Obras Públicas. Em suas memórias, João Alberto lembra<br />
que ingressou no Serviço Geográfico em 1939 e que trabalhou nas Obras Públicas<br />
no período em que o governador era Walter Jobim, portanto, entre os anos de<br />
1947 e 1951. Na secretaria, João Alberto relata que os órgãos públicos passaram<br />
a fazer uso corrente de fotografias, notadamente a Secretaria de Obras Públicas.<br />
Dentro desta havia a Diretoria de Saneamento e Urbanismo, subseção na qual<br />
João Alberto era encarregado de fotografar as inaugurações das obras públicas do<br />
Estado, acompanhando o secretário, e fazer levantamento fotográfico das áreas que<br />
receberiam melhoramentos no abastecimento de água e tratamento de esgoto.<br />
Cabe aqui salientar o lugar que esse tipo de imagem ocupa na história da<br />
fotografia. A partir da segunda metade do século XIX, com a complexificação e<br />
centralização da máquina estatal, a fotografia começou a ser utilizada como uma<br />
importante ferramenta auxiliar no planejamento de obras públicas e no controle do<br />
espaço urbano. 7 No Brasil, foi no contexto do Estado Novo que a fotografia ganhou<br />
maior espaço com essas atribuições. Em níveis federais destaca-se a contratação de<br />
fotógrafos para o Departamento de Imprensa e Propaganda, Serviços de Proteção<br />
ao índio e ao Instituto do Patrimônio Histórico <strong>Cultura</strong>l, todos estes executados<br />
por fotógrafos estrangeiros. 8 Em finais dos anos 1940 o IBGE também passou a<br />
trabalhar com fotógrafos profissionais, com vistas a documentar a geografia humana<br />
das regiões periféricas do Brasil. 9<br />
Junto ao trabalho no Setor de Obras Públicas João Alberto começou a<br />
produzir outros tipos de fotografia. Como o cargo de fotógrafo do departamento<br />
passou a ser desempenhado em meio turno, João buscou alternativas para aumentar<br />
seus rendimentos e aprender outras possibilidades do ofício. Fotografou casamentos,<br />
confeccionou lembranças de aniversário e atuou como artista-fotógrafo, fazendo<br />
fotografias de criança. Segundo o fotógrafo, esta era a melhor alternativa para um<br />
iniciante, porque as crianças têm a pele quase sem imperfeições, sendo a melhor<br />
maneira de chegar aos cânones de beleza que vigoravam na sua época. 10 Outras duas<br />
áreas de extrema importância nos trabalhos de João Alberto foram a publicidade e<br />
7 Sobre este tema em uma perspectiva internacional ver: TAGG (2005, p.199-235).<br />
8 Cf. COELHO (2006, p.79-99). MAUAD (2005, p.43-75).<br />
9 Foram três fotógrafos contratados, todos eles imigrantes húngaros. Cf. ABRANTES (2007, p.1-8).<br />
10 Esta concepção estética encontra correspondência com a corrente europeia do pictorialismo na fotografia. Para<br />
saber mais ver: MELLO (1998, p. 43-46.).
53<br />
Rodrigo Massia<br />
a arquitetura. Os trabalhos para os escritórios de arquitetura tornaram-se a “marca”<br />
do fotógrafo. Quando, em meados dos anos 1990, houve a transformação das suas<br />
imagens de documento para monumento, 11 suas fotografias de arquitetura foram as<br />
escolhidas como as mais relevantes de sua produção.<br />
Através do aperfeiçoamento das técnicas de ampliação e redução foi possível<br />
fazer da publicidade algo corrente dentro da imprensa. Logotipos e imagens podiam ser<br />
justapostos e diagramados. Como se sabe, este é um ramo da fotografia na qual se exige<br />
do fotógrafo o contato com o que há de mais moderno em termos técnicos. 12 Porém,<br />
mais do que aparato técnico, João Alberto destaca o aprimoramento do próprio olhar<br />
como característica principal. O serviço em publicidade surgiu em decorrência de sua<br />
experiência na produção dos aerolevantamentos. O chamado trabalho de traço 13* fez<br />
da fotografia um desafio ao olhar de João Alberto: enxergar com exatidão e simetria.<br />
Essas características apontam para um tipo de “olhar da época”, que encontrava espaço<br />
em áreas como a publicidade, o design gráfico, a arquitetura e as artes plásticas.<br />
Na arquitetura utilizou-se de inovações como a fotomontagem 14 e realizou<br />
serviços de redução. Mais uma vez valendo-se de seu saber técnico – aqui sempre<br />
mencionado como oposição ao saber artístico na opinião do depoente – João Alberto<br />
foi desafiado a fazer a inserção de maquetes de prédios no espaço urbano da cidade.<br />
O fotógrafo observava o local de construção do prédio e fotomontava a maquete<br />
no espaço da cidade, de modo que a imagem se constituía em um documento no<br />
qual era possível visualizar a presença da futura construção no espaço urbano. As<br />
fotografias de arquitetura obedeciam a padrões simétricos, de proporções calculadas,<br />
exploração dos efeitos de tridimensionalidade, equilíbrio e nitidez. 15 Em síntese, a<br />
fotografia de arquitetura pretendia ser um espelho da realidade futura, com a inserção<br />
dos prédios no espaço urbano como forma de analisar suas condições estéticas no<br />
conjunto da cidade. Na apresentação dos projetos arquitetônicos, os dossiês eram<br />
elaborados com a presença de plantas das edificações, fotografadas e reduzidas, para<br />
serem visualizadas em sua integralidade no corpo da apresentação da obra. Mais um<br />
recurso visual que conta com o desenvolvimento de um saber técnico baseado na<br />
precisão e no realismo como efeitos fundamentais.<br />
Nas fotomontagens João Alberto valeu-se de seus conhecimentos, porém a<br />
influência do desenho arquitetônico na fotografia de cidade era uma forte recorrência<br />
11 Cf. MAUAD; KNAUSS (2007, p. 9).<br />
12 Cf. COELHO (Opus cit., p. 95).<br />
13 * O trabalho de traço era a técnica que tornava possível o encaixe de uma fotografia aérea na outra. Essa técnica<br />
era desenvolvida com o auxílio de aparelhos que aumentavam o foco das fotografias, para que o encaixe fosse o<br />
mais exato possível.<br />
14 Fala-se de inovação aqui em termos locais. A fotomontagem foi bastante utilizada na “nova arte” da Revolução Russa<br />
e ainda timidamente na arte modernista e fotografia moderna brasileira. Sobre estes assuntos ver respectivamente:<br />
FABRIS (2005, p.99-132.) e CHIARELLI (2003, p. 67-81).<br />
15 Cf. LIMA; CARVALHO (1997, p. 99-100).
54<br />
A técnica de João Alberto Fonseca da Silva e a arte de Sioma Breitman<br />
nos anos de 1950. Este tipo de imagem respondia bem à demanda por realismo<br />
e equilíbrio de proporções. Essas fotografias buscavam a exatidão em termos de<br />
simetria que, em última análise, era produzida a partir do olhar humano. 16 Nesse caso<br />
aqui a presença do observador que visualiza a cena in loco era condição necessária<br />
para a produção da fotomontagem.<br />
Cabe ressaltar aqui que estes efeitos de realismo tendem a migrar, da imagem<br />
para a cidade. 17 Esse tipo de imagem tinha uma circulação bastante ampla e cumpria<br />
funções técnicas e estéticas. As fotografias de arquitetura também exerceram forte<br />
influência no fotojornalismo em ascensão nos anos 1940 e 1950. Essas imagens<br />
fotográficas tinham um forte apelo de veracidade ao apresentar a modernização e<br />
o crescimento urbano das cidades brasileiras e eram muito utilizadas pelas revistas<br />
ilustradas. 18 Além das revistas, é possível citar o uso desse tipo de fotografia pelo<br />
fotoclubismo 19 e pelos álbuns fotográficos. Em Porto Alegre também identificou-se<br />
essa influência na produção de painéis fotográficos, que eram imagens de grande<br />
formato produzidas a partir de fotografias. João Alberto fez parte do grupo de<br />
fotógrafos pioneiros nesse tipo de fotografia.<br />
Como é possível observar, a trajetória de João Alberto se confunde com a<br />
própria história da fotografia. Muitas vezes o fotógrafo teve que achar suas próprias<br />
soluções para as ideias apresentadas, como no caso de sua primeira fotomontagem,<br />
que será abordada mais adiante. Do ponto de vista da estética sua obra não se<br />
encontra isolada. Porém, mais importante do que localizar a imagem do ponto de<br />
vista da estética, seria conhecer as condições sociais de produção da obra. 20 A busca<br />
de compreensão a partir desse enfoque aproxima-se de uma <strong>História</strong> da fotografia em<br />
Porto Alegre. O depoimento de João Alberto permite que a compreensão de algumas<br />
de suas imagens extrapole o campo estético.<br />
A fotomontagem do edifício Formac na área central de Porto Alegre foi feita<br />
sob encomenda de um arquiteto carioca que sugeriu ao fotógrafo João Alberto que<br />
fizesse a montagem do prédio, ainda inexistente. A fotomontagem causou impacto<br />
ao ser exposta na Casa Comercial Herrmann situada na esquina da Rua dos Andradas<br />
com a Uruguai. Esse fato data de 1953 ou 1954, conforme o relato do fotógrafo. A<br />
casa em questão vendia materiais fotográficos, relógios e joias. João Alberto, pelas<br />
suas relações de amizade com o dono do estabelecimento, deixou a fotomontagem<br />
exposta na vitrine da loja. O fotógrafo relata sobre os comentários que ocorriam<br />
entre os transeuntes. Uma das falas que ficou marcada na memória de João Alberto<br />
16 Cf. MENESES (2005).<br />
17 Cf. LIMA; CARVALHO (Opus cit., p. 99-104).<br />
18 Cf. MONTEIRO (2007, p. 159-176).<br />
19 Notadamente os de São Paulo e Recife. Cf. LIMA; CARVALHO (Opus cit.), COSTA; SILVA (2004) e SILVA (2005).<br />
20 Cf. BOURDIEU (1996, p. 11-16).
55<br />
Rodrigo Massia<br />
foi que a cidade na imagem não deveria ser Porto Alegre e muito menos que tivesse<br />
sido feita por um fotógrafo local. Conforme o relato do fotógrafo:<br />
(...) surgiu a famosa fotomontagem, que tinha um arquiteto<br />
que gostava muito de novidade, era muito ilustrado que era um<br />
arquiteto formado no Rio. Mendonça, o Mendonça, Carlos Alberto<br />
Mendonça, de Orlando Mendonça. O Mendonça quis fazer uma<br />
fotomontagem de um edifício, chegou, deixou a maquete na<br />
minha casa, com um bilhetinho: “Fazer fotografia da maquete<br />
e fazer uma fotomontagem da maquete” em tal lugar assim.<br />
Esse foi o edifício Formac. Aí eu ri, eu nunca disse que fazia<br />
fotomontagem. Mas depois tava tomando meu chimarrãozinho<br />
em casa depois do banho e fiquei pensando, mas digo, eu não<br />
disse que fazia, mas podia ir lá olhar né. Aí vinha eu, olhei o<br />
local e bati uma foto. E acabei montando a fotomontagem e foi<br />
a minha primeira fotomontagem foi do edifício Formac. É que<br />
deu bastante curiosidade, como o Mendonça era muito noveleiro<br />
como a gente chamava, gostava de novidade, ele quis fazer uma<br />
ampliação grande. Então eu fiz uma ampliação, se não me engano,<br />
era noventa por sessenta do trabalho dele já fotomontando. E<br />
porque eu andava muito na Casa Hermann, botamos na vitrine<br />
da casa Hermann (...), na esquina da rua Uruguai com a rua dos<br />
Andradas. E aí até foi curioso. Pena que eu não tinha gravador<br />
como vocês têm agora [risos do depoente] porque o que se ouvia<br />
de coisas engraçadas daquele público que olhava ali, na época já<br />
era novidade uma ampliação grande. Então não era feito em Porto<br />
Alegre. (...) Mas o importante da história é que se comentava, a<br />
fotografia daquele tamanho já tinha vindo dos Estados Unidos,<br />
pra começar. E o Braga que era da Casa Hermann mandou um<br />
dia escutar, e eu fui escutar, fiquei no meio do povo ali escutando<br />
e se comentavam coisas engraçadas, entre elas que o edifício não<br />
era em Nova York, que era em tal cidade, que tinha um sabido<br />
lá. Porque o edifício aqui em Porto Alegre não tinha um edifício,<br />
parece que são vinte e poucos andares (...). 21<br />
A questão mais importante do trecho acima é que o depoente tem a<br />
oportunidade de relatar situações não só sobre a circulação da obra, mas de sua<br />
recepção. A fotomontagem servia muito bem ao processo de planejamento urbano<br />
e sabe-se de seu uso pelo corpo técnico do Estado. 22 Ao inserir a maquete do prédio<br />
em plena área central da cidade, ainda predominantemente horizontal, o fotógrafo<br />
21 SILVA (2006.).<br />
22 Há algumas fotografias que fazem parte do acervo do Museu Hipólito José da Costa que levam o carimbo da<br />
Secretaria de Planejamento Urbano. Não se pode perder de vista que no ano de 1959 foi elaborado o primeiro plano<br />
diretor da cidade.
56<br />
A técnica de João Alberto Fonseca da Silva e a arte de Sioma Breitman<br />
causou um choque visual, pois uma imagem tida como reflexo da realidade estava ali<br />
criando ficções, conforme é possível observar em seu produto final.<br />
Figura 1: João Alberto Fonseca da Silva. Espaço de inserção da maquete e construção do prédio. In: CANEZ, p. 129.<br />
Figura 2: João Alberto Fonseca da Silva. Fotomontagem do edifício Formac no espaço urbano de Porto Alegre,<br />
1953. In: CANEZ (Idem).
57<br />
Rodrigo Massia<br />
Nos dias atuais é pertinente a tentativa de compreensão sobre tantos comentários.<br />
A foto hoje não causa o mesmo choque. A sociedade atual já saturou o olhar com<br />
relação a essas imagens urbanas assépticas. É necessário somente visualizar, já que<br />
a imagem tem o poder de substituir o acontecimento. 23 Ao pensar na visualidade da<br />
época não se pode esquecer que as principais referências em termos de modernização<br />
urbana eram as grandes cidades dos Estados Unidos. A ideia de uma cidade tomada<br />
por edifícios de alto gabarito era uma clara referência a Nova York, e o conhecimento<br />
que grande parte da população tinha das metrópoles estrangeiras era oriundo da visão<br />
de cartões-postais e das fotografias impressas em revistas ilustradas.<br />
Certamente não seria possível mensurar o grau de amplitude da fotografia, no<br />
caso de um exemplar, sem o relato oral. A fotografia de cidade é um tema constante<br />
que perpassa diversas instâncias de produção, circulação e consumo: ela está nas<br />
revistas ilustradas, nos interiores de prédios públicos e no planejamento da cidade.<br />
Trata-se de um tema de forte recorrência no período, que foi representado sob as<br />
mais diversas formas, desde o utilitário até a expressão artística de vanguarda. 24<br />
Partindo desse contexto local para o mais geral, o olhar fotográfico moderno<br />
materializava a ideia de um Brasil urbano, cosmopolita e vertical. O período dos<br />
anos 1950 é marcante nesse sentido, pois é um contexto no qual a ideia do urbano<br />
é vista como a inserção definitiva do Brasil na modernidade e um “alinhar o passo”<br />
com as cidades europeias e estadunidenses. Se em períodos anteriores a modernidade<br />
era vista como algo a ser alcançado no futuro, na década de 1950 havia a sensação<br />
de que este futuro havia chegado definitivamente. 25 Exatamente nestas ocasiões em<br />
que aparecem tensões como, por exemplo, uma espécie de nostalgia sobre um tempo<br />
que se encontra no passado rural. Um sintoma dessa conjuntura de transformações<br />
na cidade foi o tradicionalismo, movimento urbano surgido em 1947 que cultivava a<br />
tradição rural e elegia a figura do gaúcho como elemento síntese de comportamento.<br />
João Alberto foi um desses jovens do período que optou pelo uso da bombacha em<br />
oposição à invasão das lambretas e calças jeans. 26<br />
Diante deste contexto, o fotógrafo João Alberto responde de forma<br />
ambígua às duas questões mais gerais sobre a influência desse olhar técnico, que<br />
responde aos imperativos de uma modernização econômica e de um olhar voltado<br />
para as resistências locais. João Alberto é um fotógrafo que cultiva as práticas do<br />
tradicionalismo gaúcho que exerceu forte influência sobre a juventude gaúcha dos<br />
anos 1950. Quando o destino das imagens é a fruição estética João Alberto optou<br />
23 No caso da fotomontagem de João Alberto, pode-se se dizer que a imagem é o acontecimento, já que não há<br />
um referente externo. Sobre este tipo de análise ver o introito teórico do artigo de: KERN (2007, p. 138-140.) e<br />
MENESES (2003, p. 138-149.).<br />
24 Ver o caso dos fotógrafos Roberto Yoshida e Gertrudes Altschul em: COSTA; SILVA (Op. cit., p. 54-56).<br />
25 OLIVEIRA. In: MIRANDA (2002, p. 35).<br />
26 Sobre a influência estadunidense no comportamento da juventude porto-alegrense ver: Revista do Globo<br />
(1959, p. 30-33).
58<br />
A técnica de João Alberto Fonseca da Silva e a arte de Sioma Breitman<br />
pelo tema regional para concorrer ao I Salão Internacional de <strong>Fotografia</strong> em Porto<br />
Alegre. Fotografou um carreiro em Quaraí, imagem que intitulou de “Aguardando<br />
o frete”. Na ocasião João Alberto comenta que Sioma Breitman viu essa foto de sua<br />
autoria e o convidou para expô-la no salão supracitado, caso contrário não teria feito,<br />
pois não se considerava um artista. 27<br />
Não se pode perder de vista o papel da fotografia como dispositivo<br />
que mediava a questão do crescimento urbano, exercia papel fundamental no<br />
planejamento de ações futuras e apresentava a cidade como um índice concreto da<br />
modernização do país. A fotografia era um espelho do real, 28 no qual o corpo técnico<br />
via o futuro, os habitantes conformavam uma ideia de cidade que se representava<br />
sob forte efeito de realismo, ao mesmo tempo em que se apresentava como objeto de<br />
apelo estético. Essa mediação era feita por fotógrafos, trabalhadores responsáveis<br />
pela produção de imagens.<br />
Uma questão bastante importante contida nos depoimentos de João Alberto e<br />
Sioma Breitman diz respeito ao mercado da fotografia em Porto Alegre, principalmente<br />
na relação entre os fotógrafos. Os dois chegam a diagnósticos similares quando o tema<br />
é a organização da atividade: a falta de um espaço de formação estética e aprendizado<br />
das técnicas, onde o fotógrafo receba uma formação que lhe dê legitimidade para<br />
atuar profissionalmente. João Alberto, porém, apresenta-se como um fotógrafo sem<br />
as características de liderança, fundamental para um grupo de profissionais ainda<br />
em fase de organização. A autoridade ainda se encontrava nas mãos dos fotógrafos<br />
mais tradicionais como Olavo Dutra e Sioma Breitman, os dois grandes fotógrafos<br />
de sua geração, herdeiros do talento dos grandes artistas-fotógrafos do século XIX.<br />
Para João Alberto ficava o espaço de alguém que, mesmo sem a formação humanista<br />
destes grandes fotógrafos, conseguiu exercer seu ofício com êxito graças ao que o<br />
fotógrafo chama de visão técnica.<br />
O olhar de João Alberto desafia a exatidão, a simetria e o equilíbrio. Sua<br />
inserção na fotografia deu-se de acordo com os imperativos do mercado e pela<br />
oportunidade recebida em uma fase de instabilidade. João acabava de chegar do<br />
interior do estado à capital e em primeiro lugar buscava um trabalho e uma profissão.<br />
É lícito dizer que a trajetória do fotógrafo foi construída a partir dos desafios que lhe<br />
foram lançados em termos visuais. O êxito se deu pela insistência e pelo treinamento<br />
do olhar, de acordo com uma visão tecnicista, que predominava na arquitetura.<br />
27 Cf. SILVA (2006).<br />
28 Cf. DUBOIS (1993).
59<br />
Sioma Breitman: olhar do imigrante, olhar da tradição<br />
Rodrigo Massia<br />
Sioma Breitman foi um dos fotógrafos mais destacados entre as décadas de<br />
1930 e 1960 no estado do Rio Grande do Sul. De origem ucraniana, teve que deixar<br />
seu país devido à Revolução Socialista na Rússia, que perseguiu de forma severa<br />
os judeus da região. Após deixar a Europa, partiu para a América, separando-se de<br />
sua família e estabelecendo-se em Buenos Aires, onde conseguiu emprego em um<br />
estúdio fotográfico. Pouco tempo depois, veio para Porto Alegre, onde sua família<br />
havia se fixado. Em meados dos anos 1920, Sioma e sua família passaram a produzir<br />
as fotografias da comunidade judaica estabelecida no bairro Bom Fim. Entre os anos<br />
de 1920 e 1950, montou estúdios nas cidades por onde passou: Cachoeira do Sul,<br />
Santa Maria e Porto Alegre. Ao sair dessas cidades, Sioma deixava os estúdios para<br />
os seus irmãos, que também eram fotógrafos. Seu pai, Nathan Breitman era o dono<br />
do estúdio onde Sioma trabalhava com seus cinco irmãos, tendo se notabilizado pela<br />
edição de negativos, tarefa denominada de retocador.<br />
Sioma fez parte de uma segunda leva de fotógrafos estrangeiros, se<br />
forem considerados os “pioneiros” do século XIX. Esses novos fotógrafos foram<br />
responsáveis por mudanças importantes, tanto no Rio Grande do Sul quanto nos<br />
demais estados do Brasil. Aqui em Porto Alegre tem-se registro de Ed Keffel, de<br />
origem alemã, que teve grande contribuição nas mudanças ocorridas no campo do<br />
fotojornalismo na Revista do Globo. 29 No Rio de Janeiro, fotógrafos como Jean<br />
Manzon, Marcel Gautherot, 30 Harald Schultz, Heinz Foerthmann, Pierre Verger 31<br />
e Hildegard Rosenthal foram responsáveis por alterações importantes no campo<br />
profissional da fotografia. Trabalharam para diversos órgãos do Estado e consolidaram<br />
novas práticas no fotojornalismo. 32<br />
Sioma aborda com senso de humor em suas memórias os procedimentos<br />
de seu ofício de retocador. A tarefa consistia em manipulações diversas feitas tanto<br />
nos negativos como nos positivos. Esse tipo de prática era oriunda de uma postura<br />
na qual a fotografia era um produto bruto onde fotógrafos contavam com a parceria<br />
de um pintor, 33 que dava um toque artístico às fotografias, notadamente os retratos<br />
e as vistas urbanas. Segundo Sioma: “Acredite se quiser, até chapéus eram tirados<br />
e o penteado desenhado de acordo com as indicações dadas pelos clientes. (...) Ao<br />
29 MASSIA (2008).<br />
30 Sobre Marcel Gautherot ver: ANGIOTTI-SALGUEIRO (2007).<br />
31 Sobre Pierre Verger ver: LÜHNING (2002).<br />
32 Cf. COELHO (Op. cit.).<br />
33 Essa prática fazia parte dos grandes estúdios do século XIX e início do XX. A citação do nome desses artistas que<br />
trabalhavam com os fotógrafos era recorrente nos anúncios publicitários dos estúdios, pois conferia ao mesmo o<br />
status de espaço de produção de arte. Cf. LIMA (1991, p. 59-82).
60<br />
A técnica de João Alberto Fonseca da Silva e a arte de Sioma Breitman<br />
perguntar o ‘grosso’ cliente como era o penteado do falecido que figurava no retrato,<br />
a resposta era: ‘Quando você tirar o chapéu, verá – não vale rir...”. 34<br />
Em meados dos anos 1960 o fotógrafo já havia trabalhado em uma gama<br />
enorme de atividades como, por exemplo, estúdios de retrato, 35 as vistas urbanas, as<br />
festas e os casamentos da elite porto-alegrense, fotografia para as peças teatrais que<br />
passavam pela cidade, publicação de álbuns e os concursos de arte fotográfica que<br />
lhe renderam inúmeros títulos e distinções em nível nacional e internacional. Além<br />
de participar com trabalhos fotográficos, Sioma foi membro ativo na organização<br />
das exposições de arte fotográfica em Porto Alegre, captando recursos e firmando<br />
parcerias com empresas distribuidoras de material fotográfico. Ministrou cursos de<br />
fotografia e aulas de russo. Viajou para fora do país com a Exposição: Rio Grande<br />
do Sul através da fotografia e Arte Fotográfica, no ano de 1958. Percorreu Portugal,<br />
Espanha, França, Alemanha, Itália e Israel. No ano de 1959, com patrocínio da Varig,<br />
expôs estes mesmos trabalhos em Nova York.<br />
Depois de mais de 40 anos dedicados ao ofício da fotografia, grande parte<br />
dele exercido em Porto Alegre, Sioma escreveu um livro de memórias sobre sua<br />
trajetória profissional, o qual fala das suas atividades, da sua condição judaica, relata<br />
histórias sobre alguns de seus registros fotográficos, os lugares por onde passou, as<br />
premiações, os colegas de trabalho, a fundação da associação. O livro, intitulado<br />
Respingos de Revelador e Rabiscos, foi editado por seu filho, Irineu Breitman. A<br />
obra não contou com a parceria de nenhuma editora, sendo seu acesso ainda feito em<br />
uma edição caseira, com as folhas batidas à máquina e as fotografias fotocopiadas<br />
ao longo do livro, utilizadas como ilustração dos temas abordados pelo fotógrafo.<br />
No início da obra, Sioma revela que o objetivo do livro era contar sua<br />
trajetória aos netos e bisnetos, como forma de relatar parte da saga da família, que<br />
partiu de uma Europa em guerra e com muito trabalho conseguiu êxito no Brasil,<br />
superando as dificuldades naturais do choque entre culturas distintas. Contudo é<br />
inegável que se trata de uma obra na qual o autor imaginou outras possibilidades<br />
de circulação. As evidências de um texto que se aproxima do histórico são latentes.<br />
Muitas vezes o autor se coloca quase que como uma terceira pessoa, outras vezes<br />
relata experiências pessoais. O texto alterna momentos de narração de estórias com<br />
relatos de memórias afetivas, ao mesmo tempo em que apresenta trechos de elevada<br />
erudição, com referências literárias e análises de cunho histórico e antropológico.<br />
Os textos e imagens de Sioma Breitman são itinerários possíveis para<br />
percorrer parte do universo da fotografia em Porto Alegre entre os anos de 1930 e<br />
1960. A sua atuação constitui-se em um conjunto amplo de possibilidades da prática<br />
34 BREITMAN (Op. cit., p. 32).<br />
35 Sioma montou cinco estúdios fotográficos. Quatro deles tinham o nome de Aurora e ficaram sob a gerência de seus<br />
irmãos. O mais importante deles foi montado em 1937 e levava o seu nome: Sioma. Cf. BREITMAN (Ibdem, p. 28.).
61<br />
Rodrigo Massia<br />
fotográfica. Muitas delas se caracterizam por ser uma novidade para o período. São<br />
elementos que se referem à própria expansão da atividade fotográfica, por inovações<br />
de ordem técnica e social. Não se pode perder de vista que a fotografia é uma<br />
invenção moderna, que surgiu em plena vigência da segunda revolução científicotecnológica,<br />
de forte influência da filosofia positivista. A própria ideia de progresso<br />
material, tão em voga no período, fez da fotografia elemento estratégico da demanda<br />
social por realismo e objetividade. Cabe aqui avaliar essa dimensão da fotografia,<br />
pois é justamente esse o caminho de abertura – o fotojornalismo, a publicidade e os<br />
eventos sociais – que melhor responderam a esse tipo de demanda que só a imagem<br />
técnica era capaz de proporcionar no período a um público amplo e variado.<br />
Apesar de todas as inovações advindas das máquinas portáteis e das<br />
possibilidades de trabalho fora dos estúdios fotográficos, esses ainda constituíam-se<br />
no espaço por excelência da produção fotográfica. O retratista mantinha seu status<br />
de artista-fotógrafo, qualidade atribuída a quem atingia algo próximo do sublime em<br />
fotografia: captar a personalidade do retratado e fixá-la em uma imagem fotográfica.<br />
Os estúdios fotográficos do centro da cidade ainda mantinham seu status de espaços<br />
consagrados à nobre arte do retrato. O estúdio Sioma era um deles, 36 no qual as grandes<br />
personalidades políticas e artísticas confeccionavam seus retratos. Localizado na rua<br />
dos Andradas, na área central da cidade, o estúdio era um catalisador de atividades<br />
fotográficas. Além dos tradicionais retratos, se confeccionavam ampliações,<br />
revelações, lembranças de aniversário e casamento. O estúdio era também um<br />
espaço de sociabilidade, onde fotógrafos se reuniam. A vitrine, onde Sioma expunha<br />
seus retratos, fazia publicidade do retrato artístico, como uma capacidade de que<br />
poucos fotógrafos eram dotados, conforme afirmava seu material publicitário:<br />
“Para o melhor retrato procure Sioma. Um retrato artístico... sempre Sioma”. 37 O<br />
retrato artístico foi o modo de representação do indivíduo burguês, como forma de<br />
construção da sua distinção social. 38<br />
No estúdio Sioma foram produzidos os retratos oficiais de personalidades<br />
políticas como Getúlio Vargas, Flores da Cunha, Cordeiro de Farias, diversos<br />
funcionários do alto escalão do estado, 39 do escritor Erico Verissimo, do ator e produtor<br />
36 O estúdio Sioma mantinha a tradição dos grandes estúdios de retrato, tributários do séc. XIX, no qual a localização<br />
se constitui em uma evidência de distinção, frente a um contexto de vulgarização, tanto dos estúdios como da<br />
produção de retratos. Cabe lembrar aqui que a área central ainda era o espaço de maior valorização, tanto econômico<br />
quanto social, da cidade. Cf. POSSAMAI (2005.) e SANTOS (1997.).<br />
37 BREITMAN (Opus cit., p. 148.).<br />
38 Para saber mais sobre a historicidade da relação entre o retrato e o modo de vida burguês ver em especial<br />
FREUND (1999.).<br />
39 Em uma edição da Revista do Globo alusiva aos feitos do Estado Novo e as comemorações do bicentenário de<br />
Porto Alegre, foi feita uma extensa reportagem sobre o crescimento do Estado, no qual grande parte dos retratos<br />
dos prefeitos das cidades em destaque foi produzida por Sioma Breitman. É interessante notar que a assinatura do<br />
fotógrafo assume destaque na imagem, pelas dimensões, localizada logo abaixo do rosto, na parte inferior à direita.<br />
Cf. Revista do Globo (1940, p. 72-160.).
62<br />
A técnica de João Alberto Fonseca da Silva e a arte de Sioma Breitman<br />
Procópio Ferreira e de diversas personalidades do high society porto-alegrense, já que<br />
foi responsável pela produção fotográfica dos casamentos da alta sociedade. 40<br />
Além das fotografias produzidas no ateliê, os irmãos de Sioma que trabalhavam<br />
com ele praticavam uma função que o fotógrafo chamava de angariador, 41 que<br />
consistia em percorrer o interior do estado para conseguir encomendas de ampliações<br />
fotográficas. Uma das práticas correntes em fotografia era pendurar as fotos dos<br />
familiares nucleares nas paredes das casas, com molduras, retoques, colorizações<br />
etc. O fotógrafo chegou até o interior do sul de Santa Catarina recolhendo retratos<br />
para futuras ampliações.<br />
Mantendo-se autônomo Sioma Breitman apresenta em suas memórias um<br />
cenário bastante diversificado sobre o ofício da fotografia em Porto Alegre e nas<br />
principais cidades do interior do estado. O fotógrafo trabalhava muitas vezes nos<br />
três turnos: ao longo do dia no estúdio e à noite em eventos sociais, o que evidencia<br />
o extenso tempo de trabalho do fotógrafo.<br />
Sioma parece ter assimilado desde cedo uma das características principais<br />
de um bom fotógrafo, que é manter-se neutro em relação a conflitos ideológicos<br />
ou de grupos rivais. Sioma fala do exemplo de seu pai que, em plena perseguição<br />
aos judeus no leste europeu nos anos 1910 conseguiu manter boas relações com<br />
o Estado que lhe perseguia para poder exercer o seu ofício. Apesar de assumir<br />
sua condição étnica judaica, o fotógrafo parece ter mantido sempre uma relação<br />
harmoniosa com a elite luso-brasileira e teuto-brasileira. Tendo se firmado como<br />
fotógrafo primeiro em torno da comunidade judaica, posteriormente se projetou<br />
como o principal fotógrafo das elites políticas e dos eventos sociais. Como<br />
lidava com um equipamento ainda pesado e pouco discreto (principalmente pelo<br />
uso do flash), o fotógrafo comenta que sempre pedia permissão para fotografar<br />
as pessoas nos eventos sociais, para não causar nenhum tipo de desconforto aos<br />
seus fotografados. Sua competência fazia com que raramente perdesse as chapas<br />
que batia. Por esses motivos, Sioma sempre contou com apreço das principais<br />
personalidades políticas e culturais do estado.<br />
Na AFPRGS Sioma cumpria as funções de relações públicas para arrecadar<br />
fundos para as exposições de arte fotográfica e auxiliava na organização. Sioma<br />
também expunha seus trabalhos em diversos concursos de fotografia, tanto no Brasil<br />
como no exterior, acumulando cerca de 400 trabalhos. Foi um dos responsáveis<br />
pela montagem da AFPRGS no ano de 1946. Os principais objetivos da associação<br />
eram manter cursos de capacitação no exercício da fotografia, congregar os<br />
40 Cf. POSSAMAI (1998, p. 98-99.).<br />
41 Fala dessa atividade como prática corrente nos anos 1920 e 1930, mas que certamente não desapareceu. Uma<br />
evidência disso é a similaridade do trabalho de Chico Pintor, que ganhava vida como fotógrafo nos anos 1960 e<br />
1970 fazendo ampliações e colorizações de fotografias, principalmente nas cidades do interior. Para saber mais ver:<br />
SILVA (1998, p.66-68.).
63<br />
Rodrigo Massia<br />
fotógrafos da cidade em torno de uma organização e regularização jurídica do<br />
ofício em atividade profissional.<br />
Entre os anos de 1946 e meados de 1954, período em que funcionou a<br />
associação, foram realizados três salões de fotografia (1948, 1951 e 1952), sendo o<br />
último deles de abrangência internacional (1952). Ainda na associação funcionava,<br />
além dos salões e cursos de aperfeiçoamento – no qual Sioma ministrava justamente<br />
o retoque de negativos, a publicação da Associação chamada O Fotógrafo, que<br />
funcionou entre os anos de 1947-1952 com apenas três edições. Sioma afirma que<br />
a associação sempre passou por dificuldades de ordem financeira devido aos custos<br />
de infraestrutura, que ainda era precária. 42 Dentro da associação, o fotoamadorismo<br />
era desenvolvido como uma espécie de subseção da qual surgiu no ano de 1951 o<br />
Foto Cine Clube Gaúcho. O deslocamento evidencia o caminho da especialização<br />
e fragmentação dos ramos da atividade fotográfica, que teve seu início nesse<br />
contexto. Como o foco da AFPRGS era na formação de um grupo de profissionais<br />
da fotografia, o FCCG aglutinou os fotógrafos que exerciam a atividade sem fins<br />
profissionais, seguindo a tradição dos Fotoclubes de início do século XX. Contudo<br />
isso não impediu que fotógrafos profissionais obtivessem formação técnica nesse<br />
espaço, a princípio destinados aos amadores.<br />
Além de suas atividades exercidas com fins lucrativos, Sioma foi um<br />
fotógrafo que incentivou o exercício da fotografia como forma de expressão artística.<br />
Consagrado entre seus pares como artista-fotógrafo, considerado pela imprensa como<br />
a continuação de uma linhagem de artistas-fotógrafos locais como Otto Schönwald,<br />
Virgílio Calegari e os Irmãos Ferrari, Sioma teve extensa produção voltada para este<br />
ramo da fotografia. Ganhou inúmeros títulos, dentre os quais, considerava como o<br />
mais importante o reconhecimento, em 1957, da Federation Internationale de L’art<br />
Photographique (FIAP), com sede em Berna na Suíça. 43 A titulação, com direito<br />
a certificado, era exibida como prova de sua competência e como publicidade da<br />
qualidade de seus trabalhos. Esse status conferia distinção às suas fotografias. Sioma<br />
fez uso de suas qualidades artísticas na produção do “retrato clássico”. 44 O fotógrafo<br />
era conhecido pela sua capacidade de dar um “sopro de vida” ao retratado.<br />
Como artista-fotógrafo Sioma contabilizou mais 400 trabalhos de sua autoria<br />
que participaram em salões de arte fotográfica, que aconteceram em diversas partes<br />
do mundo, inclusive no Japão. A maioria de seus trabalhos fotográficos foi produzida<br />
entre os anos de 1946 e 1958. Em sua obra textual, o autor sinaliza o ano de 1946 como<br />
42 Cf. BREITMAN (Opus cit., p.114.).<br />
43 Segundo Sioma, a indicação partiu do Foto Cine Clube Bandeirante de São Paulo, o que demonstra o reconhecimento<br />
da vanguarda da arte fotográfica no Brasil. Cf. BREITMAN (Ibdem, p. 102.).<br />
44 O retrato clássico obedece a cânones bastante definidos: controle de abrangência do espaço, posição do rosto,<br />
expressão, incidência de luz, relação do retratado com o segundo plano. Neste contexto, dominar estes normativos<br />
técnicos e estéticos permitia ao fotógrafo considerar-se um artista de fato e de direito. Para ver mais sobre o gênero<br />
do retrato ver: FABRIS (2004, p. 91-114) e CASTANO (s.d.).
64<br />
A técnica de João Alberto Fonseca da Silva e a arte de Sioma Breitman<br />
um marco significativo em sua percepção das potencialidades da fotografia. Começou<br />
a tomar contato com publicações estrangeiras e ter notícias sobre a existência de<br />
associações de fotógrafos e de salões de arte fotográfica. Mais do que isso, Sioma<br />
observava o ano de 1946 como o início de uma conjuntura geopolítica de mudanças<br />
internacionais. O fim da segunda guerra mundial era visto por Sioma como uma nova<br />
etapa das relações humanas, na qual o aprendizado da guerra traria novas perspectivas<br />
para os tempos de paz. Imbuído deste espírito, o fotógrafo percebeu que sua atividade<br />
profissional não possuía qualquer tipo de organização e regulamentação jurídica.<br />
Sioma faz apenas uma alusão ao contexto paulista, embora seja plausível<br />
afirmar que o fotógrafo tinha conhecimentos sobre contexto de exposições nacionais<br />
e internacionais. Estes eventos aconteciam no Foto Cine Clube Bandeirante desde a<br />
sua fundação, em 1939. 45 Em 1947 foi lançada a Revista Íris, primeiro periódico sobre<br />
fotografia de caráter comercial. No ano de 1948, quando foi realizado o primeiro salão<br />
de arte fotográfica de Porto Alegre, em São Paulo, o FCCB já estava na 7ª edição de<br />
seu salão internacional. 46 Em 1950 o nível de organização da atividade amadora em<br />
São Paulo era bastante satisfatório. Foi realizada a I Convenção Brasileira de Arte<br />
fotográfica, que resultou na fundação da Confederação Brasileira de <strong>Fotografia</strong> e<br />
Cinema. Esta entidade era a representante brasileira na FIAP. 47 Quando a AFPRGS<br />
organizou seu primeiro e único salão internacional, o FCCB já estava com o mesmo<br />
evento em sua décima primeira edição.<br />
Sioma entendia que a fotografia era uma atividade que estava para além<br />
das possibilidades que oferecia o mercado, onde a prática se dava no nível de<br />
uma fotografia corrente, na qual os eventos familiares eram a tônica das imagens<br />
produzidas pelos estúdios. Conforme Sioma: “As condições eram difíceis. As<br />
exigências gerais não permitiam afastar-se nem um pouco da linha classica do oficio,<br />
e do provimento de recursos para a existencia (sic)”. 48 Nesse sentido o fotógrafo<br />
se aproxima da interpretação de Bourdieu sobre os devotos e transgressores na<br />
fotografia. Para o autor, a atividade fotográfica que se afasta da prática corrente surge<br />
como forma de oposição a esta e constitui-se na tônica da fotografia praticada no<br />
âmbito dos fotoclubes. A atitude devota caracteriza-se pela repetição das ocasiões<br />
(turismo, aniversários, casamentos, formaturas) e padrões (identificação imediata<br />
do local fotografado, gestual definido) da fotografia corrente. O transgressor é<br />
justamente aquele que, ao negar as ocasiões e expressões correntes, busca novas<br />
situações de prática fotográfica, aproximando-se da expressão artística. A fotografia<br />
é uma forma de ingresso no mundo das artes justamente para os sujeitos das camadas<br />
médias, pois estes não têm livre acesso aos modelos já consagrados de arte como a<br />
45 Cf. COSTA; SILVA (Opus cit., p. 37-44).<br />
46 Ibidem, p.39.<br />
47 Ibidem, p.48.<br />
48 BREITMAN (Opus cit., p.101.).
65<br />
Rodrigo Massia<br />
música erudita, a pintura. Fazer da fotografia uma forma de arte é, conforme aponta<br />
Bourdieu, uma atitude transgressora. 49<br />
Sioma Breitman observa que a prática corrente impede que novas formas<br />
de expressão em fotografia sejam desenvolvidas, o que também obstaculiza a<br />
constituição de espaços de formação e aperfeiçoamento da atividade fotográfica.<br />
Sioma evidencia em seu discurso uma visão tradicional, legado pela fotografia<br />
pictorialista, 50 na qual o fotógrafo deve ser um sujeito versado nas artes e na<br />
literatura. Sua bagagem cultural deve lhe permitir a obtenção de uma fotografia que<br />
fuja à prática corrente e aos imperativos do mercado. Para que tal realidade fosse<br />
possível em Porto Alegre, fazia-se necessário a organização de uma associação<br />
que promovesse salões de arte fotográfica e oferecesse cursos de fotografia,<br />
concebendo-a como forma de expressão artística.<br />
O fotógrafo também comenta sobre o contexto de produção de algumas de suas<br />
fotografias premiadas, o que permite compreender a apropriação de certas concepções<br />
e práticas fotográficas que vigoravam no período. A ideia de uma fotografia cândida, 51<br />
na qual o fotógrafo é uma testemunha silenciosa e discreta do acontecido é uma<br />
postura, que surge em decorrência das novas possibilidades técnicas (máquinas de<br />
pequeno formato que independem do uso do flash), que foi utilizada no fotojornalismo.<br />
No campo da arte fotográfica, esse tipo de fotografia exigia do sujeito a sensibilidade<br />
de observar uma cena fugidia e lançar um olhar poético sobre a realidade exterior.<br />
Fotos posadas eram práticas associadas à fotografia corrente, produzida em eventos<br />
sociais, como casamentos, festas, aniversários e demais eventos de cunho familiar. A<br />
arte fotográfica praticada entre os anos 1940 e 1960 procurou se afastar deste tipo de<br />
fotografia. A máquina fotográfica era entendida como uma espécie de arma silenciosa,<br />
na mira de um instante decisivo, único. Esta concepção encontra tradução nas palavras<br />
do fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson, quando este diz que a fotografia é um<br />
momento de cruzamento entre o “cérebro, olho e o coração”. 52 A partir da narrativa<br />
de Sioma, é possível entender um pouco mais das motivações pessoais e as soluções<br />
encontradas por ele para fotografar o cenário, de acordo com a sua ideia. A discussão<br />
recairá sobre a fotografia intitulada por ele de “Súplica”.<br />
49 BOURDIEU (Opus cit., p.80-87.). O autor faz aqui uma divisão entre o que ele caracteriza por uma fotografia<br />
corrente e uma fotografia exigente. Estas duas tipologias são analisadas dentro da perspectiva de uma fotografia<br />
amadora. Outra ressalva importante é que o autor faz suas considerações sobre o contexto francês dos anos 1960.<br />
50 Ver em linhas gerais e sob uma perspectiva nacional e internacional, respectivamente: MELLO, (Opus cit.) e<br />
NEWHALL, (2002, p.141-166.).<br />
51 A fotografia cândida, conforme refere o adjetivo, constitui-se em uma imagem na qual a presença do fotógrafo não<br />
foi percebida pelos retratados. Esta prática só se tornou possível pela existência das máquinas portáteis como a Leica,<br />
a Ermanox e a Rolleiflex, para citar as mais conhecidas. Esse tipo de fotografia passou a ser praticada principalmente<br />
pelo fotojornalismo alemão dos anos 1920, tendo como principal referência o fotógrafo Erich Salomon. Na arte<br />
fotográfica brasileira dos anos 1950 identifica-se essa mesma postura, só que para fins diferentes. Ver por ordem das<br />
referências abordadas: FREUND, (Opus cit., p. 99-123) e COSTA; SILVA, (Opus cit., p.63-70.).<br />
52 CARTIER-BRESSON (2004.).
66<br />
A técnica de João Alberto Fonseca da Silva e a arte de Sioma Breitman<br />
Sioma conta que certa vez uma de suas inúmeras clientes que solicitavam<br />
seu trabalho nos casamentos foi ao seu Estúdio para retirar as fotografias. Na ocasião<br />
estava com luvas de couro e as tirou para manusear suas fotos. A cliente teria ficado<br />
tão satisfeita com o resultado do trabalho que ao sair esqueceu-se de seu par de<br />
luvas, o que prontamente despertou o interesse do fotógrafo. Ao ver que as luvas,<br />
pela maciez do couro ainda mantinham a forma das mãos com suas rugosidades<br />
o fotógrafo começou a pensar em um projeto fotográfico com o objeto. A luva<br />
clara sob um fundo escuro com os efeitos de luz artificial sugeriu uma imagem de<br />
um gestual de súplica, de conotação fortemente religiosa. De tão satisfeito com o<br />
resultado, Sioma decidiu inserir esta imagem em sua Exposição de 1958, chamada<br />
“Arte Fotográfica”, que percorreu diversos países da Europa e América.<br />
Figura 3: “Súplica”, por Sioma Breitman. BREITMAN, (Opus cit., p.135).
67<br />
Rodrigo Massia<br />
Em seu livro, o fotógrafo chegou a inserir alguns comentários sobre esta<br />
imagem, quando a expôs a bordo do navio que o levou para a Europa. Chamoulhe<br />
a atenção o fato de uma mesma pessoa ter postado dois comentários, o<br />
que demonstra o retorno e o impacto que tal imagem causou, algo que traduz<br />
os verdadeiros propósitos do fotógrafo, como pode ser observado na citação a<br />
seguir: “Há tanta originalidade, tanto sentimento, tanto extro (sic) artístico, tanta<br />
inspiração, que chega-se a passar em segundo plano a técnica portanto insuperável,<br />
somente tomando em consideração e apreciando o artista, o verdadeiro puro artista,<br />
que sente, que vive, que cria sua composição”. 53<br />
Ao falar de suas imagens, Sioma Breitman constantemente abordava a questão<br />
da fotografia como caça (o retratado como “alvo”, a máquina como “metralhadora” e o<br />
click como um “tiro”). Essa analogia é possível não só pela presença de uma máquina<br />
portátil, mas da mudança de postura, assumida na prática fotográfica como expressão<br />
artística. Seus conteúdos são pensados a partir de um enquadramento estético que<br />
o fotógrafo caracteriza por ser agradável, ou seja, respondem aos imperativos<br />
de harmonia, condições de luminosidade e de casualidade. O conteúdo, quando<br />
predominantemente corriqueiro e banal, consome mais as possibilidades estéticas, no<br />
caso de Sioma, a questão da luz. Tanto em página social como em súplica identificase<br />
o uso da luminosidade como recurso estético primordial, que faz da fotografia uma<br />
expressão artística. No caso de preço da independência, a fotografia é enfatizada mais<br />
pelo seu conteúdo, pois guarda fortes relações com a memória afetiva do fotógrafo.<br />
Mais do que grandes revelações sobre o enigma da fotografia, a<br />
interpretação recai aqui sobre as condições de produção. A ideia de expressão<br />
artística contida na fotografia é tema de uma extensa discussão. Muitas vezes é<br />
atribuída a uma obra artística questões que são da ordem do inefável. Sobre este<br />
tema, Bourdieu argumenta:<br />
53 ZAPPI apud BREITMAN (Op. cit., p. 136.).<br />
54 BOURDIEU (Opus cit. p.12-13.).<br />
Porque se faz tanta questão de conferir à obra de arte – e ao<br />
conhecimento que ela reclama – essa condição de exceção,<br />
senão para atingir por um descrédito prévio as tentativas<br />
(necessariamente laboriosas e imperfeitas) daqueles que<br />
pretendem submeter esses produtos da ação humana ao<br />
tratamento ordinário da ciência ordinária, e para afirmar a<br />
transcendência (espiritual) daqueles que sabem reconhecerlhe<br />
a transcendência? (...) É legítimo valer-se da experiência<br />
do inefável, que é sem dúvida consubstancial à experiência<br />
amorosa, para fazer do amor como abandono maravilhado à obra<br />
apreendida em sua singularidade inexprimível a única forma de<br />
conhecimento que convém à obra de arte? 54
68<br />
A técnica de João Alberto Fonseca da Silva e a arte de Sioma Breitman<br />
Ao observar esta resistência a uma análise que qualifique a ação humana<br />
como racional, que faz parte da produção da obra de arte, Bourdieu chama a atenção<br />
para as bases da crítica de arte, ainda presa às categorias de gênio e dom natural. O<br />
entendimento da obra de arte nessa acepção seria algo que escapa ao conhecimento<br />
científico. No caso da arte fotográfica de Sioma observa-se que há um contexto de<br />
produção da obra na qual esta experiência da ordem do sublime não acontece a partir<br />
de um dom genial, mas fruto de investigação, de estudo das condições de luz, da<br />
sorte, da casualidade, da relação com o tema. A arte, como fruto da ação humana<br />
muitas vezes recorre à casualidade, como no caso da produção da fotografia com as<br />
luvas, que recebeu elogios que qualificam o autor da obra nos termos criticados por<br />
Bourdieu, ainda que não seja proveniente de uma crítica especializada.<br />
Ao pensar a trajetória de Sioma Breitman partindo do contexto local e<br />
inserindo-o em níveis de análise nacionais e internacionais, identifica-se que seu<br />
olhar constitui-se em uma apropriação das possibilidades existentes. O domínio do<br />
que é possível em termos de fotografia no período lhe permite transitar, tanto de<br />
um olhar tradicional, lançado sobre os retratos da elite dirigente e aos casamentos<br />
quanto de um olhar moderno, onde o fotógrafo é uma testemunha silenciosa,<br />
observadora, aos moldes de um caçador. A prática devota lhe permite prover o seu<br />
sustento, enquanto a transgressora faz dele um fotógrafo engajado na constituição de<br />
um campo de produção da arte fotográfica. Contudo, suas fotografias são “apenas”<br />
um entre tantos outros possíveis olhares, lançados sobre o mundo, ora bisbilhoteiro<br />
e comovido, ora moralizante e tradicional. Sem a sua assinatura em destaque nas<br />
fotografias certamente não seria possível inferir com certeza de que se trata de uma<br />
foto sua, pois não há a possibilidade de identificar uma marca pessoal. Retomando<br />
as ideias de Mario Costa:<br />
A partir da fotografia isso deixa de ser possível porque, ao<br />
anular em si a própria noção de ‘estilo’, ela é a primeira a<br />
recusar toda ‘marca’ e a constituir-se como uma multidão<br />
de coisas desobjetivadas cuja ‘obstinada estranheza’ não<br />
pode ser recuperada de forma alguma. E passamos, assim, da<br />
automatização à autonomização da imagem. 55<br />
Sioma construiu a sua <strong>História</strong> ao narrar suas memórias. Mais do que<br />
informar, o fotógrafo, mesmo com uma vasta coleção de imagens, recorreu às<br />
palavras para sacramentar uma vida dedicada ao ofício da fotografia. Será que o<br />
fotógrafo tinha em mente a ausência da categoria texto nas imagens? A autoria<br />
55 Cf. COSTA In: KERN;FABRIS (2006, p.190-191.). A questão da impossibilidade de estilos pessoais na fotografia<br />
é debatida a partir da estética hegeliana na qual a expressão artística é forma de transformar a realidade exterior, pois<br />
nela é impressa a marca do artista.
69<br />
Rodrigo Massia<br />
da expressão artística contida na foto seria perdida com o tempo, fazendo de suas<br />
fotografias expressões mudas, completando o caminho de uma imagem automática<br />
para uma imagem autônoma. 56 Os propósitos de Sioma ao fazer seus registros seriam<br />
perdidos sem o recurso das palavras. Mesmo para um homem que viveu imerso<br />
no mundo das imagens, o recurso da palavra se constitui em algo definitivo, que<br />
revelaria e estabilizaria a “verdade” da cena retratada?<br />
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CAPíTUlO 3<br />
POR TRÁS DAS lENTES, UMA HISTÓRIA: A<br />
PERCEPÇÃO DE FOTÓGRAFOS SOBRE AS<br />
IMAGENS DA MíDIA IMPRESSA<br />
Maria Cláudia Quinto 1<br />
O mais importante na comunicação [...] é a<br />
sociedade que há por trás dessa palavra.<br />
Dominique Wolton<br />
As questões sobre a publicação de imagens têm sido cada vez mais discutidas<br />
e analisadas pelos diversos saberes em estudos que abordam desde a análise de<br />
imagens até entrevistas com o público receptor. Segundo o historiador Peter Burke<br />
(2004, p. 24), “deve-se aconselhar alguém que planeje utilizar o testemunho de<br />
imagens para que se inicie estudando os diferentes propósitos dos realizadores dessas<br />
imagens”. Tais propósitos, às vezes, se distanciam do resultado final – a imagem<br />
publicada – e o processo que existe por trás das imagens nos informa muito sobre a<br />
lógica dessas publicações.<br />
A fotografia, surgida em 1839, de acordo com Susan Sontag (2004, p. 13),<br />
atua como uma ponte entre o mundo e nós, tornando próximo o que está distante,<br />
informando outras realidades e outros tempos. Como aponta Ivan Lima (1989,<br />
p. 9), a fotografia “mudou a visão das massas. Até então o homem comum só<br />
visualizava os acontecimentos que ocorriam ao seu lado, na rua, em sua cidade”.<br />
Hoje, temos acesso a uma gama enorme de situações, dos grandes feitos dos homens<br />
às catástrofes que mobilizam o público. Os acontecimentos são congelados pela<br />
lente do fotógrafo, pois “a fotografia jornalística fixa um acontecimento e as suas<br />
impressões. O fotógrafo é o relator desse acontecimento: o intermediário visual entre<br />
a notícia e o público”, como indica Lima (1989, p. 35). Por ser um intermediário<br />
visual, o profissional também filtra e altera a realidade a ser mostrada, no sentido<br />
de que escolhe o quê, como e quando fotografar. Os primeiros periódicos no Brasil<br />
possuíam poucas imagens e, no século XIX, o acesso a essas fotos era restrito. Dessa<br />
forma, as imagens causavam grande impacto nas pessoas, como afirmam Marco<br />
Morel e Mariana Barros (2003). De acordo com os autores, as primeiras imagens na<br />
mídia impressa, no Brasil, tinham a guerra – do Paraguai e de Canudos, por exemplo<br />
– como principal tema. Já com relação à revista, o jornalista Eugênio Bucci (2000, p.<br />
1 Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. O presente artigo é parcialmente<br />
baseado na Dissertação de Mestrado em Psicologia intitulada “Imagens de morte na mídia impressa: o olhar do<br />
fotógrafo”, defendida em 2007, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, sob orientação da Dra.<br />
Monique Augras.
73<br />
Maria Cláudia Quinto<br />
109) aponta que “a fórmula da revista semanal de informação” foi criada pela revista<br />
Time na década de 1920.<br />
No Brasil, Lima (1989, p. 71) indica que “o ciclo das revistas semanais de<br />
informação com a fotografia em cores surgiu no final dos anos 1960, e teve início<br />
com a revista Veja e Leia”. Segundo o autor (p. 71), a revista Veja surgiu em 1968,<br />
e em março de 1976 foi lançada a revista Isto É. Sobre esta última, Lima (1989, p.<br />
74) afirma que “o surgimento da revista Isto É foi fundamental para o surgimento<br />
de grupos de fotógrafos independentes e para a posterior criação de agências de<br />
fotógrafos”. Finalmente, de acordo com Lima (1989, p. 74), em 25 de maio de 1977,<br />
na edição 22, a revista Isto É viria a publicar “a sua primeira grande reportagem<br />
fotográfica. Na época, foram mostrados, em várias fotografias, os conflitos da Polícia<br />
com estudantes universitários”.<br />
A partir desse momento, informar passou a significar mostrar, como indica<br />
Muniz Sodré (1972, p. 52), e essa regra parece persistir até hoje, até porque a<br />
fotografia é compreendida de maneira mais direta e rápida do que o texto. Como<br />
ressalta Lima (1989, p. 10), “a facilidade do entendimento e a força da imagem é<br />
que colocaram a imagem produzida pela fotografia na vanguarda da transmissão<br />
da informação nos meios impressos”. De acordo com o autor (p. 39), “a notícia<br />
vinculada com a fotografia em um jornal é sempre mais lida”.<br />
Para abordar sobre o tema fotografia é preciso, inicialmente, registrar que<br />
as primeiras máquinas fotográficas surgiram na França e na Inglaterra, no início da<br />
década de 1840, de acordo com Susan Sontag (2004, p. 18), e “só contavam com os<br />
inventores e os aficcionados para operá-las”. Conforme a obra citada, a fotografia,<br />
nessa época, “não tinha nenhuma utilidade social clara” (p. 18), sendo que sua<br />
importância, como registro da realidade, foi reconhecida somente mais tarde. Em<br />
termos de estrutura, a fotografia de imprensa – e, dentro dela, o fotojornalismo -<br />
é considerada como uma vertente da fotografia documental, de acordo com Lima<br />
(1989, p. 11). O valor da fotografia documental é inquestionável, no sentido de<br />
mostrar e denunciar realidades às quais não teríamos acesso de outras maneiras.<br />
As primeiras guerras “registradas por fotógrafos” foram a Guerra da Crimeia<br />
(1854-56) e a Guerra Civil Espanhola (1936-39), de acordo com Sontag (2003, p.<br />
21). A autora comenta que “até a Primeira Guerra Mundial, o combate propriamente<br />
dito esteve fora do alcance das câmeras” e que as imagens da guerra “publicadas<br />
entre 1914 e 1918, quase todas anônimas, eram, em geral [...] de estilo épico” (p.<br />
21-22). A filósofa cita o exemplo da Guerra Civil Espanhola, como sendo “a primeira<br />
guerra testemunhada (‘coberta’) no sentido moderno: por um corpo de fotógrafos<br />
profissionais nas linhas de frente e nas cidades sob bombardeio” (p. 22). Em relação<br />
à fotografia de guerra, Sontag (2004, p. 51) oferece um interessante relato:
74<br />
Por trás das lentes, uma história<br />
Embora a fotografia, normalmente, seja uma visão onipotente e<br />
a distância, existe uma situação em que as pessoas são mortas,<br />
de verdade, por tirar fotos: quando fotografam pessoas matandose<br />
mutuamente. Só a fotografia de guerra combina voyeurismo<br />
e perigo. Fotógrafos de combate não podem deixar de participar<br />
da atividade letal que registram, até vestem uniformes militares,<br />
ainda que sem insígnias de patente. (2004, p. 51)<br />
Atualmente, podemos transpor essa ideia, por exemplo, à realidade dos<br />
fotojornalistas do Rio de Janeiro, que entram em comunidades acompanhando as<br />
operações da Polícia. Podem não estar do outro lado do mundo registrando guerras,<br />
mas vivenciam o mesmo estresse semelhante, correndo riscos durante a prática. Em<br />
algumas vezes, os fotógrafos permanecem horas à espreita, em locais considerados<br />
perigosos, à procura da fotografia perfeita. A fotografia “Execução em uma rua de<br />
Benfica”, da fotógrafa Wania Corredo, vencedora do Prêmio Esso de <strong>Fotografia</strong>,<br />
exemplifica essa questão. Assim, podemos observar que, guardadas as devidas<br />
proporções, os repórteres fotográficos de hoje se assemelham aos fotógrafos de<br />
guerra. Sobre o surgimento dos fotógrafos na imprensa brasileira, Lima (1989, p. 26)<br />
observa que estes sugiram na década de 1920 “através dos contínuos ou amigos dos<br />
donos de jornais”, sendo que os amigos dos donos tinham “maior tempo livre” e “uma<br />
câmera na mão”, e os contínuos desejavam “subir de categoria”. O fotojornalismo só<br />
começou a ser reconhecido por volta de 1940, em “tempo de guerra”, como afirma<br />
Sontag (2003, p. 32).<br />
No fotojornalismo tem-se a preocupação de informar a maior quantidade de<br />
dados em uma única imagem. A imagem deve resumir a notícia e mostrar o essencial<br />
da reportagem. Segundo Lima (1989, p. 35), “a reportagem é um acontecimento<br />
dinâmico, do qual o fotógrafo tem que extrair uma imagem que exprima o momento<br />
visual significativo daquele acontecimento”. O autor ressalta que “tudo tem que<br />
estar no mesmo quadro: os personagens e as suas relações com o espaço e com a<br />
circunstância” (p. 35). Portanto, informar pode, também, significar mostrar, mas<br />
não basta mostrar de qualquer maneira, pois a foto deve chamar a atenção e ter<br />
qualidade. O fotógrafo também deseja ter o seu trabalho reconhecido no meio da<br />
Comunicação. Burke (2004, p. 24) afirma que<br />
seria imprudente atribuir a esses artistas fotógrafos um ‘olhar<br />
inocente’ no sentido de um olhar que fosse totalmente objetivo,<br />
livre de expectativas ou preconceitos de qualquer tipo. Tanto<br />
literalmente quanto metaforicamente, esses esboços [...]<br />
registram ‘um ponto de vista’.
75<br />
Maria Cláudia Quinto<br />
O pesquisador Fernando de Tacca (2004, p. 5-6) afirma que “será na<br />
foto-choque que encontramos a representação crua da violência, da morte e do<br />
sofrimento. O trágico traz a dor alheia de forma explícita, impactante e cruel”. É<br />
comum vermos relatos nos quais se afirma que, atualmente, há uma proliferação<br />
de imagens chocantes e violentas. No entanto, não podemos dizer que este é um<br />
fenômeno recente. Imagens chocantes sempre tiveram espaço nas revistas e jornais,<br />
como vimos, anteriormente, e como podemos observar no relato, feito em 1860, pelo<br />
poeta francês Charles Baudelaire, citado por Sontag (2003, p. 89-90):<br />
É impossível passar os olhos por qualquer jornal, de qualquer<br />
dia, mês ou ano, sem descobrir em todas as linhas os traços<br />
mais pavorosos da perversidade humana [...]. Qualquer jornal,<br />
da primeira à última linha, nada mais é do que um tecido de<br />
horrores. Guerras, crimes, roubos, linchamentos, torturas, as<br />
façanhas malignas dos príncipes, das nações, de indivíduos<br />
particulares; uma orgia de atrocidades universal. E é com este<br />
aperitivo abominável que o homem civilizado diariamente rega<br />
o seu repasto matinal.<br />
A descrição de Baudelaire sobre os jornais de 1860 não está tão longe da<br />
descrição de nossos veículos de comunicação atuais, sendo que hoje se tem muito mais<br />
imagens nos jornais do que na época do poeta. A imagem fotografada deve ser digna de<br />
ser publicada, como Lima (1989, p. 27) aponta: “se a notícia não for quente ou a foto<br />
não for boa o seu trabalho pode não ser publicado”. O autor (p. 67) ainda comenta que<br />
“os redatores e fotógrafos apreciam, particularmente, as fotos ditas ‘sensacionalistas’,<br />
pelas condições excepcionais nas quais elas foram realizadas”. Pode existir, em<br />
alguns casos, uma maior valorização da imagem registrada em contingências de risco.<br />
Segundo Lima (1989, p. 67), “o risco enorme que o fotógrafo corre é recompensado<br />
pelo seu prestígio na redação. São poucas as fotografias de catástrofes que tem um<br />
grande valor informativo. Elas são apreciadas pela sua força emocional”.<br />
Durante a produção da imagem é preciso considerar o elemento de<br />
subjetividade do fotógrafo, o mundo visto através da lente da máquina fotográfica<br />
já se mostra transformado por uma série de razões: a escolha do melhor ângulo,<br />
o objeto a ser fotografado. Sobre isso, Boris Kossoy (2000, p. 30) afirma que “as<br />
possibilidades do fotógrafo interferir na imagem – e portanto na configuração do<br />
assunto no contexto da realidade – existem desde a invenção da fotografia”. O fato<br />
fotografado é congelado na imagem e reproduzido.<br />
Sobre esse assunto, Roland Barthes (1984, p. 15) afirma que “o que a<br />
fotografia reproduz ao infinito só ocorreu uma vez: ela repete mecanicamente o que<br />
nunca mais poderá repetir-se existencialmente”. A escolha do que fotografar inclui,
76<br />
Por trás das lentes, uma história<br />
também, o perfil do veículo de comunicação, permeado por motivações diversas,<br />
sensacionalistas ou não. Algumas publicações, mais sensacionalistas, são capazes<br />
de publicar imagens grotescas de determinadas situações, imagens que, talvez, o<br />
público não tenha interesse de ver, e nem mesmo o fotógrafo. Conforme Barthes<br />
(1984, p. 57),<br />
o fotógrafo, como um acrobata, deve desafiar as leis do provável<br />
ou mesmo do possível; em última instância, deve desafiar as do<br />
interessante: a foto se torna ‘surpreendente’ a partir do momento<br />
em que não se sabe por que ela foi tirada. [...] Em um primeiro<br />
tempo, a <strong>Fotografia</strong>, para surpreender, fotografa o notável; mas<br />
logo, por uma inversão conhecida, ela decreta notável aquilo<br />
que ela fotografa.<br />
Nesse processo, a imagem mostrada se torna superestimada e pode adquirir<br />
um status de realidade. Conforme afirma Sontag (2003, p. 22), “algo se torna<br />
real – para quem está longe, acompanhando o fato em forma de ‘notícia’ – ao ser<br />
fotografado”. Sontag (2003, p. 23) revela ainda que<br />
o fluxo incessante de imagens (televisão, vídeo, cinema) constitui<br />
o nosso meio circundante, mas quando se trata de recordar, a<br />
fotografia fere mais fundo. A memória congela o quadro; sua<br />
unidade básica é a imagem isolada. Numa era sobrecarregada de<br />
informação, a fotografia oferece um modo rápido de apreender<br />
algo e uma forma compacta de memorizá-lo. A foto é como uma<br />
citação ou uma máxima ou provérbio. Cada um estoca, na mente,<br />
centenas de fotos, que podem ser recuperadas instantaneamente.<br />
A imagem memorizada serve como um banco de registro de todos os<br />
conteúdos a que somos expostos diariamente. Tais conteúdos se tornam parte de quem<br />
somos. Em virtude disso, a delicada discussão sobre a veracidade e autenticidade das<br />
imagens se torna necessária. O sociólogo Michel Maffesoli (1995, p. 92) afirma<br />
que “a imagem ou o fenômeno não pretende a exatidão [...] Em suma, a imagem<br />
é relativa, no sentido de não pretender o absoluto. [...] É esse mesmo relativismo<br />
que a torna suspeita”. Nesse aspecto, um ponto importante a ser refletido é o uso do<br />
argumento da relativização da imagem para legitimar certas publicações, questão<br />
que deve ser avaliada através de um exercício crítico do olhar.<br />
Outro ponto interessante para se pensar é a questão das cores das imagens e<br />
seus impactos. Sobre esse aspecto, Lima (1989, p. 82) ressalta que devemos questionar
77<br />
Maria Cláudia Quinto<br />
se a forma de leitura de uma fotografia muda quando essa foto é<br />
em cores. Sem dúvida que sim. [...] As cores primárias (vermelho,<br />
amarelo e azul) são perceptíveis antes das cores secundárias<br />
(laranja, violeta e verde) e quanto mais puras forem essas cores,<br />
mais elas se destacam em relação às não puras. Da mesma forma,<br />
os componentes de cor vermelha dominam em relação ao amarelo<br />
e ao azul. O vermelho do sangue de um acidente ou crime acentua<br />
indevidamente a questão emocional da mensagem.<br />
Um interessante estudo feito por Luciano Guimarães (2000) mostra<br />
que, desde o surgimento da revista Veja, a cor mais utilizada em suas capas é o<br />
vermelho. Com a transformação da imagem impressa pelos meios de comunicação,<br />
passando da fotografia preto e branco para a colorida, as imagens violentas<br />
passaram a chamar ainda mais a atenção do público. Quanto mais chocante for a<br />
imagem, obviamente, mais intensa poderá ser a emoção que ela irá provocar. Com<br />
as transformações tecnológicas, as formas de produção, consumo e repercussão<br />
dessas imagens também se alteram.<br />
Como aponta Vilém Flusser (2002, p. 57), “o receptor pode recorrer ao artigo<br />
do jornal que acompanha a fotografia para dar nome ao que está vendo. Mas, ao ler o<br />
artigo, está sob influência do fascínio mágico da fotografia”. Um exemplo do impacto<br />
da fotografia é o caso de uma foto tirada pelo fotógrafo Severino Silva, em 1992,<br />
para o jornal O Povo, do Rio de Janeiro, analisada no trabalho de Denise Camargo<br />
(2005). A foto mostra um grupo de crianças jogando futebol, próximo a um corpo<br />
esquartejado. O fotógrafo optou por registrar a cena utilizando uma perspectiva de<br />
forma que a cabeça do cadáver parecia estar no lugar da bola de futebol das crianças.<br />
Obviamente, criou-se uma polêmica em torno de tal foto, pois a primeira impressão,<br />
ao olhar a foto, era a de que as crianças estavam jogando com a cabeça humana. Após<br />
um olhar atento, era possível perceber a bola atrás. Em casos como esse, parecem ser<br />
comuns os debates que envolvem, de um lado, argumentos sobre o valor documental<br />
da imagem e, do outro lado, comentários sobre os impactos emocionais que fortes<br />
imagens podem provocar no público, sendo necessário lançar um olhar atento aos<br />
vários argumentos e discursos dos atores envolvidos no debate.<br />
Tal exemplo também ilustra a acalorada discussão sobre os impactos das<br />
imagens e questões éticas das publicações. No ano de 2007, entrou em vigor o novo<br />
Código de Ética da Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), que substituiu o<br />
antigo Código, de 1987. Em comparação com o anterior, o novo código traz sutis<br />
alterações em vários artigos: a nova versão do Artigo 2, do capítulo I, registra, agora,<br />
que a liberdade de imprensa “implica um compromisso com a responsabilidade social<br />
inerente à profissão”. No artigo 11, a versão antiga dizia que “o jornalista deve evitar<br />
a divulgação de fatos de caráter mórbido e contrários aos valores humanos”. A versão
78<br />
Por trás das lentes, uma história<br />
atual afirma que “o jornalista não pode divulgar informações [...] de caráter mórbido,<br />
sensacionalista ou contrário aos valores humanos, especialmente em cobertura de<br />
crimes e acidentes”. O artigo 12 informa que o jornalista deve “rejeitar alterações<br />
nas imagens captadas que deturpem a realidade, sempre informando ao público o<br />
eventual uso de recursos de fotomontagem, edição de imagem, reconstituição de<br />
áudio ou quaisquer outras manipulações”. Esses são alguns exemplos da atual<br />
preocupação da Comunicação com as questões de ordem ética.<br />
As questões sobre a ética na Comunicação também dividem os profissionais<br />
do meio, e, como ressalta Eugênio Bucci (2000, p. 11), “o jornalismo é conflito,<br />
e quando não há conflito, um alarme deve soar. Aliás, a ética só existe porque a<br />
Comunicação Social é lugar de conflito”. O jornalista (p. 10) comenta, ainda, que<br />
o jornalismo como o conhecemos, isto é, o jornalismo como<br />
instituição da cidadania, e como as democracias procuram<br />
preservá-lo, é uma vitória da ética, que buscava o bem comum<br />
para todos, que almejava a emancipação que pretendia construir<br />
uma cidadania, que acreditava na verdade e nas leis justas.<br />
Contudo, mesmo sendo o jornalismo, historicamente, uma vitória da ética, se<br />
um leitor se sentir agredido pelo conteúdo de determinadas imagens, poderá passar<br />
a ter uma série de questionamentos sobre a atuação dos veículos de comunicação.<br />
Sobre a ética jornalística, Bucci (2000, p. 12) ressalta que esta “encarna valores<br />
que só fazem sentido se forem seguidos tanto por empregados da mídia como<br />
por empregadores – e se tiverem como seus vigilantes os cidadãos do público”.<br />
É necessário considerar a especificidade dos casos isolados e evitar generalizar as<br />
conclusões ao tratar desse assunto. A vigilância do público só é possível na medida<br />
em que o mesmo acredita que suas ações e contestações farão, de fato, diferença e<br />
trarão resultados.<br />
De acordo com Raquel Paiva (2002, p. 37), “com a responsabilidade<br />
de propiciar um sentimento de espaço público por onde circulem as falas e as<br />
contradições, ergue-se o jornalismo”. No entanto, através de um rápido olhar nas<br />
seções de cartas de leitores de jornais e revistas, é possível observar a grande incidência<br />
de mensagens que apenas elogiam as matérias. Há depoimentos que consideram as<br />
reportagens esclarecedoras, bem escritas e com belas imagens. É compreensível que<br />
se procure legitimar o conteúdo das matérias através da publicação seletiva de cartas<br />
positivas, mas também é preciso ver além do que está exposto e saber perceber o que<br />
as ausências são capazes de mostrar.<br />
O fotógrafo se preocupa em mostrar os fatos, em fazer da sua imagem um<br />
documento a ser levado a sério. Nesse processo, muitas vezes não há tempo para
79<br />
Maria Cláudia Quinto<br />
maiores abstrações. Após a publicação de uma foto, uma nova pauta é recebida,<br />
e uma nova imagem deve ser feita. A dinâmica da velocidade na imprensa acaba<br />
por servir de justificativa para o não pensar a reação do público. E dessa forma<br />
os dias se passam, pauta após pauta, com profissionais despejando imagens às<br />
vezes impensadas sobre um público consumidor que pode querer dedicar tempo a<br />
essas imagens. O receptor pode se tornar consciente de tais imagens, nutrindo uma<br />
autoridade no assunto que o emissor nem sempre parece ter, por estar algumas vezes<br />
mais envolvido com a velocidade da informação do que com o conteúdo. Nesse<br />
caso, a posse da imagem pode passar do emissor distraído ao receptor mais atento,<br />
que dispõe de tempo para analisar e absorver a imagem. Durante todo o processo,<br />
a imagem interage mais com o receptor do que com o emissor, que está focado,<br />
naturalmente, com a pauta do dia seguinte.<br />
Sobre o conteúdo da mensagem, despertar a emoção no público parece<br />
significar que, assim, a comunicação é humanista. É possível perceber isso pelo<br />
relato de Bucci (2000, p. 95) ao dizer que “banir a emoção da informação é banir a<br />
humanidade do jornalismo. E é banir o público. Os leitores, internautas, ouvintes e<br />
telespectadores reagem emocionalmente [...] aos acontecimentos”. Será que podemos<br />
afirmar que reagir ao acontecimento significa que a comunicação é humanista?<br />
Despertar emoção significa necessariamente que a comunicação é humanista, se o<br />
sentimento gerado for negativo e angustiante para seus consumidores?<br />
Para Dominique Wolton (2002a, p. 64), doutor em Sociologia, “a comunicação<br />
torna-se um setor explosivo se, ao lado da técnica e da economia, não se incluem<br />
orientações humanistas”. A comunicação, segundo Wolton, “é um grande desafio<br />
científico e político do século XXI” (2002b, p. 1). Para o autor, através dela “joga-se<br />
em definitivo a relação de cada um de nós com o mundo” (p. 3). Wolton (2005, p.<br />
12-13) indica, ainda, que “o essencial da comunicação é o respeito ao outro, diálogo<br />
entre as culturas, construção da tolerância. E é sobre isso que a comunicação é<br />
certamente responsável”. Dessa forma, Wolton (2003b, p. 42) salienta quatro pontos<br />
a serem considerados sobre as imagens: (1) “valorizar a importância do contexto,<br />
da história”; (2) “reconhecer a dimensão crítica do receptor”; (3) “jamais pensar a<br />
imagem ‘em si’” (independente do seu público-alvo, considerando-o como um “ser<br />
universal, sem identidade”) e (4) “não há imagem sem imaginário” (o imaginário<br />
do produtor da imagem pode ser diferente do receptor). Refletir sobre essas quatro<br />
dimensões é fundamental para aquele que deseja pesquisar sobre imagens publicadas<br />
na mídia. Ainda hoje, a capacidade crítica do receptor nem sempre parece ser<br />
valorizada como deveria e o público é frequentemente visto como um ser universal –<br />
é comum supor o que o público gosta ou deseja e usar tais argumentos para legitimar<br />
as formas como as notícias são produzidas.
80<br />
Por trás das lentes, uma história<br />
Na outra ponta da discussão está o fotógrafo com as suas questões e seus<br />
pontos de vista. Conforme Fernando de Tacca (2004, p. 7), “o fotógrafo sempre foi<br />
um indivíduo livre, um viajante, flâneur, [...] que almejava não viver enclausurado<br />
em normas produtivas rígidas”. O fotógrafo, que antes vagava pelas ruas à procura da<br />
imagem ideal, agora se vê restrito às amarras das regras do campo das comunicações.<br />
Tacca (2004, p. 7) aponta que<br />
o olhar livre do fotógrafo percorre os labirintos da sociedade<br />
para nos informar visualmente aquilo que não está nos meios<br />
tradicionais de comunicação de massa. Seriam então todas essas<br />
imagens que permearam nosso imaginário e nossa cultura visual<br />
retiradas à força do cotidiano das pessoas e tornadas públicas<br />
por um ato antiético?<br />
O autor conclui que cabe ao fotógrafo não aceitar as “camisas de força ao<br />
olhar”, lutando para continuar sendo um “indivíduo livre das amarras institucionais”<br />
(TACCA, 2004, p. 9), e que a lógica da ética não pode ser regida pela punição a<br />
priori e sim pelo uso que se faz dessas imagens. Veremos, adiante, um pouco mais<br />
sobre a percepção dos fotógrafos sobre a publicação de imagens na mídia impressa.<br />
Relato de Pesquisa<br />
O relato a seguir se baseia na Dissertação de Mestrado intitulada “Imagens<br />
de morte da mídia impressa: o olhar do fotógrafo” (170 p.), sob orientação da Dra.<br />
Monique Augras, no Mestrado em Psicologia da Pós-Graduação de Psicologia da<br />
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), entre os anos de 2005<br />
e 2006, e defendida em 2007. O tema da Dissertação manteve o foco em questões<br />
sobre imagens violentas (de mortes) na mídia impressa.<br />
Ao todo foram entrevistados dez fotógrafos profissionais, com o tempo de<br />
atuação que varia entre nove até 38 anos de prática, com passagem pelos principais<br />
jornais e revistas do Brasil. A fundamentação teórica da Dissertação foi baseada em<br />
autores da Sociologia francesa (Michel Maffesoli e Dominique Wolton) e em teorias<br />
sobre a fotografia e imagem (Sontag, Flusser, Barthes, Ivan Lima), e as entrevistas<br />
foram analisadas com base na Análise do Discurso.<br />
As questões abordadas nas entrevistas se referiam à prática do fotógrafo<br />
no momento de produção das imagens, sua opinião sobre a prática de fotografar<br />
para diferentes tipos de jornais ou revistas, sobre manipulação e edição de imagens,<br />
sobre a visão que se tem do público, critérios, normas e restrições de publicação,<br />
localização das imagens, percepção sobre vendas e consumo do material. Alguns
81<br />
Maria Cláudia Quinto<br />
tópicos abordados nas entrevistas foram selecionados a seguir para exemplificar e<br />
refletir sobre as questões que este artigo aborda.<br />
Sobre a questão da produção da imagem, alguns fotógrafos entrevistados<br />
enfatizaram a responsabilidade do fotógrafo nesse processo e o desejo por uma<br />
fotografia mais autoral, o que às vezes esbarra em limitações institucionais. A<br />
questão da distância entre o fato em si e a imagem produzida também é relatada nas<br />
entrevistas, sendo que a consciência dessa distância pode nem sempre estar presente<br />
nos consumidores das imagens. Alguns relatos apontam para a visão da imagem<br />
enquanto representação e não como realidades explícitas, e que caberia ao leitor a<br />
autonomia de decidir o que deseja comprar ou não.<br />
No que diz respeito ao conteúdo das imagens, os relatos apontam para a ênfase<br />
de que as imagens registradas não são mais impactantes do que a própria realidade<br />
moderna e que a violência estaria presente no dia a dia, não havendo diferença se<br />
essa violência está nos fatos ou na capa de um jornal. De qualquer forma, a questão<br />
da banalização da violência e da anestesia diante das imagens foram pontos citados<br />
por alguns profissionais entrevistados, juntamente com a percepção de que o público<br />
costuma não memorizar as imagens recebidas.<br />
Sobre a possibilidade da alteração das imagens, a manipulação tende a ser<br />
vista como uma ferramenta que sempre existiu na fotografia, tendo em vista as antigas<br />
práticas de laboratório, sendo, porém, mais aceita quando se tratam de imagens<br />
publicitárias, pois vários entrevistados enfatizaram o caráter documental da fotografia<br />
no fotojornalismo. A questão que se coloca nesse ponto seria o argumento de alguns<br />
consumidores sobre os seus direitos de verem uma imagem fiel ao acontecimento.<br />
Assim, alguns relatos apontam que, ao aceitar um trabalho, o fotógrafo precisaria<br />
estar consciente das questões que envolvem a prática. Além disso, relatos apontam<br />
que as questões que mobilizam os fotógrafos são, muitas vezes, detalhes prioritários<br />
sobre as técnicas utilizadas para a imagem a ser produzida, e que essa, sim, seria<br />
a função do fotógrafo. Há também a questão de se produzir o máximo possível<br />
de imagens durante o acontecimento, para depois escolher; portanto, o elemento<br />
temporal é preciso ser levado em consideração.<br />
Os relatos sobre a concentração e o foco, no momento do registro, são<br />
frequentemente citados pelos entrevistados, assim como a percepção de que o público<br />
percebe as imagens como realidade. Os relatos apontam para a importância de a<br />
imagem ser contextualizada, sendo necessário haver uma razão para determinada<br />
fotografia estar publicada em algum veículo ou em determinada posição.<br />
Com relação aos reguladores da publicação das imagens, ou seja, o que<br />
ou quem ditaria ou deveria ditar essa veiculação, os entrevistados não pareceram<br />
chegar a um acordo. Alguns pensam que, na hora de decidir se uma imagem deve
82<br />
Por trás das lentes, uma história<br />
ser publicada ou não, o que deve contar é o bom-senso. Outros acreditam que, nesse<br />
momento, o respeito às pessoas deve ser a prioridade, assim como a reação do<br />
público. Sobre a aprovação do público, os relatos enfatizaram a importância de estarse<br />
atento à forma como esse reage diante da publicação de imagens violentas, através<br />
de contatos feitos com a redação do jornal ou revista. Vários fotógrafos entrevistados<br />
relataram preocupação em não expor imagens violentas. Outra preocupação relatada<br />
foi no sentido de produzir fotos de qualidade, resgatando um aspecto artístico e<br />
valorizando o fotojornalismo perante o campo da <strong>Fotografia</strong>.<br />
Durante as entrevistas, apareceram, também, elementos importantes sobre a<br />
subjetividade e emotividade dos profissionais, alguns relataram sobre dificuldades<br />
encontradas em situações nas quais se depararam com notícias tristes sobre pessoas<br />
conhecidas ou sobre o medo que sentiram em situações de risco na cobertura de certas<br />
matérias, enfatizando a dicotomia entre a procura da beleza nas situações e a possibilidade<br />
real de estar exposto a riscos. Em algumas situações relatadas, a preocupação em<br />
captar o instante parece se sobressair ao cuidado com a própria segurança: o fotógrafo<br />
deseja conseguir tal foto e ser reconhecido por isso, inclusive, pelo risco ao qual se<br />
submeteu. Lima (1989, p. 37) observa que “o fotógrafo também não pode ser um<br />
espectador passivo nem se envolver emocionalmente com o acontecimento”. Porém, a<br />
busca desse equilíbrio parece fácil em teoria, mas difícil de ser aplicada no momento<br />
em que cenas chocantes acontecem diante dos olhos do fotógrafo.<br />
Sobre as imagens selecionadas para as capas de revistas, vários entrevistados<br />
lembraram-se de imagens de situações difíceis, mas que foram captadas de maneira<br />
bela e sensível por outros fotógrafos, enfatizando a importância da sensibilidade do<br />
profissional e também da identificação que certas imagens são capazes de produzir<br />
nas pessoas. O importante é que sejam consideradas as diferenças nos imaginários<br />
dos consumidores e dos produtores das imagens. Nesse aspecto, Wolton (2003b, p.<br />
42) sinaliza que “entre a intenção dos autores e a dos receptores não operam somente<br />
os diferentes sistemas de interpretação, de codificação e de seleção, mas igualmente<br />
todos os imaginários”.<br />
Como vimos, a discussão sobre as imagens publicadas na mídia impressa<br />
abarca uma série de questões sobre variadas práticas. O processo precisa ser<br />
compreendido cada vez mais a partir de um olhar múlti e interdisciplinar, que possa<br />
compreender e respeitar os diversos campos de atuação, mas que também possa<br />
lançar um olhar crítico sobre os fenômenos contemporâneos que nos cercam. A<br />
proliferação das imagens abre margem a uma espécie de anestesia social na qual o<br />
risco da banalização está intrínseco no processo. Cada vez mais, parece ser necessário<br />
despertar para essas questões, lançar um olhar atento às imagens, às subjetividades<br />
envolvidas nos processos e à própria necessidade de se consumirem tantas imagens.
83<br />
Maria Cláudia Quinto<br />
Diante da proliferação das imagens na modernidade e da importância atribuída<br />
às mesmas, finalizamos este artigo com o interessante prognóstico de Dominique<br />
Wolton (2002a, p. 60) sobre o futuro das imagens:<br />
Referências<br />
Estamos numa sociedade na qual a imagem desempenha<br />
um papel muito mais importante do que há 50 anos. Mas o<br />
espetáculo não transforma tudo, não dirige a sociedade. [...]<br />
Haverá um retorno a outros valores, pois o indivíduo não pode<br />
viver somente na imagem.<br />
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dez. 2006.
PARTE II: FOTOGRAFIA, HISTÓRIA E ARTE
CAPíTUlO 4<br />
HISTÓRIA DA FOTOGRAFIA MODERNA BRASIlEIRA:<br />
ExPERIMENTAÇõES DE GERAlDO DE BARROS E<br />
JOSé OITICICA FIlHO (1950-1964)<br />
Carolina Martins Etcheverry 1<br />
Muito já foi escrito sobre a história da fotografia oitocentista no Brasil. 2<br />
Entretanto, a história da fotografia moderna brasileira do século XX, ainda está,<br />
em grande parte, por ser escrita. Tem-se um determinado número de autores,<br />
entre eles Helouise Costa, 3 Tadeu Chiarelli 4 e Rubens Fernandes Júnior, 5 que<br />
trouxeram importantes contribuições para aqueles que desejam estudar este tema<br />
tão interessante.<br />
É comum, principalmente devido ao livro A fotografia moderna no<br />
Brasil, de Helouise Costa e Renato Rodrigues da Silva, estabelecer como marco<br />
temporal a década de 1940 para o início desta prática fotográfica. Segundo eles,<br />
foi no seio do Foto Cine Clube Bandeirante que a fotografia moderna nasceu. De<br />
acordo com os autores,<br />
A fotografia moderna no Brasil surgiu e se desenvolveu no<br />
Foto Cine Clube Bandeirante. Os fotógrafos bandeirantes<br />
concretizaram uma transformação que abalou a tradição<br />
pictorialista e acadêmica do movimento amador. Embora haja<br />
notícias de especulações modernas esparsas fora do ambiente<br />
fotoclubista, a documentação até agora levantada aponta que<br />
essa prática só se realizou sistematicamente e como experiência<br />
de grupo no Foto Cine Clube Bandeirante. 6<br />
Pode-se perceber que o critério utilizado pelos autores para definir o que<br />
seria a fotografia moderna e onde ela se posicionaria dentro do panorama geral da<br />
fotografia está baseado na sua inserção em um meio legitimador – o Foto Cine Clube<br />
Bandeirante. As contribuições esparsas, ainda que relevantes, são colocadas em<br />
segundo plano por não se inserirem nesta categorização.<br />
1 Mestre em <strong>História</strong>, Teoria e Crítica da Arte e Doutoranda em <strong>História</strong> do PPGH/PUCRS. E-mail: etchev@gmail.com.<br />
2 Cf.: Kossoy (1998, 2002 a, 2002 b, 1983), Fabris (1998, 2007, 2008), Pedro Karp Vasquez (1985, 2002, 2003),<br />
Solange Ferraz de Lima (1997), Vânia Carneiro de Carvalho (1997), Zita Possamai (2005).<br />
3 Cf. Helouise Costa e Renato Rodrigues da Silva (2004).<br />
4 Cf. Tadeu Chiarelli (2003).<br />
5 Cf. Rubens Fernandes Júnior (2006).<br />
6 Helouise Costa e Renato Rodrigues da Silva (2004, p. 36). As especulações a que os autores referem-se dizem<br />
respeito às imagens de Jorge de Lima, Athos Bulcão e Fernando Lemos, os dois primeiros ligados à fotomontagem,<br />
em textos escritos por Paulo Herkenhoff, Annateresa Fabris, Fernando Cocchiarale e Ricardo Mendes.
91<br />
Carolina Etcheverry<br />
Também Rubens Fernandes Júnior contribui para o pensamento sobre a<br />
fotografia moderna brasileira, porém sob um ângulo um pouco diferente, pois não<br />
a relaciona diretamente ao advento do Foto Cine Clube Bandeirante, mas sim à<br />
conjuntura histórica do período. Segundo ele,<br />
Podemos afirmar, contudo, que a fotografia moderna brasileira<br />
começa no final dos anos 40, após os primeiros investimentos<br />
de capitais estrangeiros no país e as primeiras iniciativas para<br />
alavancar o desenvolvimento industrial. 7<br />
No livro Labirinto de identidades, do qual tiramos a citação anterior, o autor<br />
procura sistematizar uma história da fotografia moderna e contemporânea, traçando<br />
um panorama da fotografia brasileira de 1946 a 1998. Para tanto, Rubens Fernandes<br />
Júnior estabelece três momentos principais: as décadas de 1940 e 1950 (com destaque<br />
para Geraldo de Barros, Thomaz Farkas, José Medeiros e Pierre Verger – documental<br />
e experimental juntos); as décadas de 1960 e 1970 (destacando Maureen Bisilliat,<br />
Walter Firmo e Luis Humberto – representação da identidade nacional a partir de<br />
manifestações populares); os fotógrafos da década de 1980, atuantes até hoje (Juca<br />
Martins, Nair Benedicto, Mario Cravo Neto, Antonio Saggese, Miguel Rio Branco,<br />
Araquém Alcântara, Pedro Vasquez, entre outros) e, por fim, os fotógrafos da década<br />
de 1990, tais como Ed Viggiani, Rubens Mano, Elza Lima, Cássio Vasconcellos,<br />
Luiz Braga, Eustáquio Neves, entre outros.<br />
Interessante também para o estudo da fotografia moderna e contemporânea<br />
brasileira é o livro de Antonio Fatorelli, intitulado <strong>Fotografia</strong> e viagem. 8 Em seu<br />
último capítulo, o autor aborda a fotografia de José Oiticica Filho, bem como a de<br />
Antonio Saggese, buscando, assim, traçar uma relação entre a prática moderna e a<br />
contemporânea. A historiadora da arte Annateresa Fabris 9 igualmente contribuiu para<br />
a construção do campo historiográfico da fotografia, ao escrever sobre temas que vão<br />
desde a fotografia do século XIX até as relações entre fotografia e artes visuais.<br />
Nosso objetivo é oferecer ao leitor um panorama geral a respeito do estudo<br />
das fotografias de Geraldo de Barros e de José Oiticica Filho, como forma de<br />
pesquisar a história da fotografia moderna brasileira. Através destes fotógrafos, é<br />
possível compreender o sistema da fotografia no Brasil, bem como suas relações com<br />
as artes visuais, e perceber as principais contribuições destes autores para o campo<br />
da fotografia. Na primeira parte, fazemos um apanhado geral sobre os fotógrafos e<br />
suas imagens; a seguir, há um debate teórico sobre os conceitos usados para definir<br />
suas fotografias; na terceira parte, fazemos um levantamento historiográfico acerca<br />
7 Rubens Fernandes Júnior (2003, p. 144).<br />
8 Antonio Fatorelli (2003).<br />
9 Cf. Annateresa Fabris (1998, 2007, 2008).
92<br />
<strong>História</strong> da fotografia moderna brasileira<br />
dos principais textos escritos sobre Geraldo de Barros e José Oiticica Filho; a quarta<br />
parte deste texto é dedicada à inserção das fotografias no contexto geral da <strong>História</strong><br />
da <strong>Fotografia</strong> brasileira e, por fim, a quinta parte dedica-se a analisar as imagens dos<br />
fotógrafos dentro do contexto nacional das Artes Visuais. Com isto buscamos abarcar as<br />
principais questões relacionadas às fotografias de Geraldo de Barros e de José Oiticica<br />
Filho, fornecendo um panorama de sua obra, procurando facilitar estudos posteriores.<br />
Sobre Geraldo de Barros e José Oiticica Filho<br />
Geraldo de Barros e José Oiticica Filho foram dois importantes fotógrafos<br />
brasileiros, que atuaram entre o final da década de 1940 e a década de 1960. Em<br />
comum, compartilham o apreço pela experimentação na fotografia, a participação<br />
no movimento fotoclubista e no movimento concretista brasileiro. Além disso,<br />
ambos tinham na fotografia uma paixão, mas suas atividades profissionais principais<br />
giravam em torno de outros assuntos. Geraldo de Barros era bancário, funcionário do<br />
Banco do Brasil, e José Oiticica Filho era professor de entomologia.<br />
Barros iniciou na fotografia no final da década de 1940. Artista plástico,<br />
gravador, designer, além de fotógrafo e bancário, Barros usava a fotografia como<br />
modo de expressar suas ideias plásticas, subvertendo, muitas vezes, o uso “comum”<br />
feito pelos demais fotógrafos. Utilizava diversas técnicas experimentais nos seus<br />
trabalhos fotográficos. Fazia uso de sobreposições de negativos e intervenções com<br />
ponta-seca em nanquim na película. Com isso ele conseguia quebrar com a ideia<br />
de mimese do real. Suas imagens apontam para um profundo questionamento da<br />
natureza fotográfica, bem como expandem o campo da fotografia tradicional.<br />
Em 1950, Barros montou a exposição Fotoforma, no Masp. Nela havia um<br />
conjunto de imagens elaboradas, aproximadamente entre 1948 e 1950, dentre as<br />
quais figuravam fotografias geométricas que se alinham à arte concreta e desenhos<br />
livres sobre o suporte fotográfico. Todos estão dentro da ideia de campo expandido<br />
da fotografia, ao mostrarem experimentações de diversas ordens. Suas fotografias<br />
abstratas, como veremos, alinham-se aos ideais da arte concreta, apoiadas em noções<br />
matemáticas geométricas.<br />
José Oiticica Filho teve uma trajetória um pouco diferente de Barros. Ele foi<br />
entomologista no Museu Nacional desde 1942, onde fotografava insetos. Foi a partir<br />
desta necessidade de documentar seu estudo que surgiu o interesse pela fotografia.<br />
Segundo Hélio Oiticica, “ao aperfeiçoar-se na microfotografia de Lepidoptera<br />
(e outras ordens de insetos também), foi-lhe, aos poucos, nascendo o sentido da<br />
fotografia como uma expressão de arte”. 10<br />
10 Oiticica (1983, p. 7).
93<br />
Carolina Etcheverry<br />
Oiticica Filho passou, então, a pesquisar no campo da fotografia. Produziu<br />
vários artigos sobre a prática fotográfica, publicados em jornais e boletins fotográficos.<br />
Sua produção fotográfica foi dividida por ele próprio em várias categorias, que dão<br />
título às imagens: forma, ouropretense, abstração, derivação e recriação. Com títulos<br />
diversos, estão as fotografias da sua fase pictorialista. Segundo Paulo Herkenhoff,<br />
em texto escrito para o catálogo da exposição do fotógrafo em 1983, ele passou por<br />
quatro fases em sua trajetória artística:<br />
Há quatro fotógrafos em José Oiticica Filho: o utilitário, o<br />
fotoclubista, o abstrato e o construtivo. Por vezes, algumas<br />
dessas linhas se identificaram ou tiveram um desenvolvimento<br />
simultâneo e paralelo. No entanto, o fotógrafo construtivo seria<br />
um radical que negaria a validade estética dos demais. 11<br />
Este fotógrafo foi bastante fecundo, investindo nas experiências fotográficas<br />
de expansão do campo. Para ele, como fica bastante claro em entrevista intitulada<br />
“<strong>Fotografia</strong> se faz no laboratório”, concedida a Ferreira Gullar em 1958, a parte mais<br />
importante do processo fotográfico se dá no laboratório:<br />
11 Herkenhoff (1983, p. 11).<br />
FG – Pela nossa conversa, concluo que para você a máquina<br />
fotográfica mesma tem um papel relativo no que chama de<br />
fotografia.<br />
OF – Para mim a câmera fotográfica, como os demais meios<br />
técnicos que entram no processo fotográfico, tem o mesmo<br />
papel que o pincel, a tinta e a tela para o pintor. O que interessa<br />
é o resultado.<br />
FG – Estou de acordo.<br />
OF – E o papel da máquina fotográfica ainda é bem menos<br />
importante do que vem depois. Se o fotógrafo bate a chapa,<br />
revela e manda copiar, ele entrega a fase mais importante do<br />
trabalho de criação fotográfica. Quanta coisa se pode fazer ao<br />
copiar uma foto. É nessa hora quando se graduam os cinzas,<br />
as luzes, o corte, que a fotografia a bem dizer nasce. Mas os<br />
fotógrafos neorrealistas batem as fotos e mandam copiar. É até<br />
um crime uma pessoa assinar como sua uma foto que outro<br />
copiou. Mas esses equívocos estão hoje em moda. Acabo de<br />
comprar o último número da revista de arte “XXème Siècle”,<br />
dedicada ao grafismo, onde aparece uma reportagem sobre o<br />
fotógrafo Brassai, que fotografou garatujas feitas por crianças<br />
nas paredes de Paris. As garatujas são às vezes bonitas, mas<br />
o fotógrafo apenas as fotografou, isto é, fez uma reportagem
94<br />
<strong>História</strong> da fotografia moderna brasileira<br />
sobre as garatujas. No entanto é apresentado pela revista como<br />
grande artista. 12<br />
Paulo Herkenhoff, em conclusão ao texto do catálogo, escreveu a respeito<br />
de José Oiticica Filho que “sua produção, precedida das Fotoformas de Geraldo<br />
de Barros, representa o momento em que a fotografia esteve mais sintonizada e<br />
integrada a um projeto geral da cultura no país”. 13 O projeto geral de cultura no país,<br />
segundo Gershmann, 14 passava pela criação dos museus de arte (Masp e MAM) e<br />
pela arte construtiva. Estes estariam de acordo com o ideal desenvolvimentista, que<br />
objetivava a atualização do país em todos os setores.<br />
Debate teórico-conceitual sobre as imagens<br />
Neste ponto é preciso fazer uma digressão para entendermos de que modo as<br />
fotografias de Geraldo de Barros e de José Oiticica Filho podem ser entendidas em<br />
termos conceituais, visto que os vários autores que pensaram a respeito de tais imagens<br />
(e não apenas as destes artistas) as denominam de modos bastante diferentes. É preciso<br />
definir estes modos, a fim de melhor entender as implicações de cada um deles.<br />
As fotografias de Geraldo de Barros e José Oiticica Filho podem ser inseridas<br />
na ideia de “campo expandido” da fotografia. Segundo Rubens Fernandes Júnior,<br />
criador da ideia,<br />
A fotografia expandida existe graças ao arrojo dos artistas mais<br />
inquietos, que desde as vanguardas históricas, deram início a esse<br />
percurso de superação dos paradigmas fortemente impostos pelos<br />
fabricantes de equipamentos e materiais, para, aos poucos, fazer<br />
surgir exuberante uma outra fotografia, que não só questionava os<br />
padrões impostos pelos sistemas de produção fotográficos, como<br />
também transgredia a gramática do fazer fotográfico. 15<br />
Rubens Fernandes Júnior, influenciado por Flusser, apresenta uma<br />
ideia geral de transgressão do fazer fotográfico tal como foi concebido desde<br />
o surgimento do aparelho fotográfico, utilizado amplamente pelos fotógrafos<br />
documentais, como Atget, Bresson ou Salgado. Assim, as experimentações feitas<br />
por Geraldo de Barros e José Oiticica Filho estariam incluídas nesta concepção,<br />
visto que elas alargam o campo de atuação da fotografia, aproximando-o do campo<br />
artístico, por exemplo. Mas as práticas fotográficas constituintes deste “campo<br />
12 Oiticica: “fotografia se faz no laboratório”, Jornal do Brasil, 24/08/1958, suplemento dominical de artes plásticas.<br />
13 Herkenhoff (1984, p. 19).<br />
14 Gershmann (1992).<br />
15 Rubens Fernandes Júnior (2006, p. 11).
95<br />
Carolina Etcheverry<br />
expandido”, principalmente na contemporaneidade, são muitas, o que torna este<br />
um termo de aplicação operacional genérica.<br />
Em catálogo publicado em 1936, pelo Museu de Arte Moderna de Nova<br />
Iorque, Alfred Barr, 16 curador da exposição Cubism and abstract art, cunha o<br />
termo “fotografia abstrata”. Usando como exemplo os artistas Man Ray (com suas<br />
rayografias), Moholy-Nagy e Bruguiere, Barr descreve em poucas linhas o que ele<br />
acredita ser a fotografia abstrata. Assim, no texto do catálogo, Barr explica:<br />
Man Ray foi também um pioneiro na fotografia abstrata.<br />
Ele foi provavelmente o primeiro a fazer uso da técnica<br />
rayográfica para fazer composições abstratas. Ao fazer uma<br />
rayografia, nenhuma câmera é usada; objetos são colocados<br />
diretamente sobre o papel sensível que então é revelado. Com<br />
objetos como um matador de moscas, um ovo de cerzir, anéis<br />
de metal e um cacho de cabelo, Man Ray obteve composições<br />
de grande sutileza (fig. 186, 187). Elas foram aclamadas<br />
pelos companheiros dadaístas de Man Ray pela sua técnica<br />
“antiartística” e aparentemente casual, mas muitas delas são,<br />
de fato, trabalhos de arte completos diretamente relacionados<br />
com a pintura abstrata e não ultrapassados no seu medium.<br />
O húngaro Moholy-Nagy, antigo professor da Bauhaus de<br />
Dessau, foi, até sua recente mudança para Londres, um dos mais<br />
inventivos e originais mestres do fotograma (fig. 188), outro<br />
nome do rayograma.<br />
Francis Bruguiere, um americano morando em Londres, usa a<br />
câmera na feitura de fotografias abstratas de luz caindo em papel<br />
branco dobrado ou amassado. 17<br />
Nota-se que o autor, nestas poucas linhas, tenta organizar o conhecimento a<br />
respeito destas fotografias que fogem aos padrões normais do que seria uma fotografia<br />
– cópia do real, mimética por natureza. Utiliza-se do termo usado nas artes que<br />
estão, neste momento, recém se consolidando, e o aplica para o caso da fotografia<br />
feita por artistas. Não por acaso, acreditamos, Barr deixa alguns fotógrafos de fora,<br />
como Alvin Langdon Coburn, que neste momento também fazia experimentações no<br />
campo expandido da fotografia. Se optasse por incluir Coburn, que atua apenas como<br />
fotógrafo, talvez tivesse que rever a ligação estabelecida com a pintura abstrata.<br />
Coburn, segundo Helmut Gernshein, 18 foi o primeiro a fazer fotografias<br />
abstratas. Este fotógrafo acreditava que as possibilidades da câmera fotográfica<br />
ainda não haviam sido exploradas completamente, e, por isso, iniciou uma série de<br />
16 Alfred Barr (1974).<br />
17 Ibidem, p. 170, tradução nossa.<br />
18 Helmut Gernsheim (1990).
96<br />
<strong>História</strong> da fotografia moderna brasileira<br />
experimentos que culminariam na série Vorticism (na qual ele se utiliza de prismas<br />
para criar a imagem). Também foi o responsável pela organização de uma exposição<br />
de fotografia abstrata, na qual buscava a “apreciação do extraordinário”. Entretanto,<br />
no caso de Gernsheim – conhecido fotógrafo e historiador da fotografia – o termo<br />
“fotografia abstrata” não tem um uso crítico, apenas operatório.<br />
Na esteira desta terminologia, Paulo Herkenhoff, em 1983, escreve para o<br />
catálogo da exposição de fotografias de José Oiticica Filho aquilo que entende por<br />
fotografia abstrata. Segundo o autor,<br />
É preciso demarcar o significado do termo fotografia abstrata,<br />
com o qual se pretende operar este texto. Inicialmente, opõese<br />
ao figurativo: é a emergência de imagens fotográficas não<br />
identificáveis com objetos naturais e artificiais, é um não<br />
verismo. (...) imagens não figurativas (informais ou geométricas),<br />
produzidas conforme os processos tradicionais (registro e cópia)<br />
e os cânones codificados para a arte fotográfica – sem exclusão<br />
de alguns de menor uso, como o fotograma, a solarização,<br />
a fotomontagem, já então consagrados na história da arte<br />
(introduzidos por Man Ray, Moholy-Nagy, Rodchenko, Grosz,<br />
Heartfield, Haussman, El Lissitzky, Ernst, Dali, e outros). 19<br />
Assim, Herkenhoff acompanha Barr em sua terminologia e exemplo de artistas<br />
abstratos, ainda que sua explicação seja um pouco mais complexa. A fotografia abstrata<br />
é colocada em oposição à fotografia figurativa, reproduzindo uma dicotomia oriunda<br />
das artes plásticas. É também colocada em condição de suspeita, já que é definida como<br />
uma imagem fotográfica não identificável com objetos naturais e artificiais. Deixa-se<br />
de lado outras possibilidades de abordagem, como o caráter narrativo ou descritivo da<br />
fotografia, que é inexistente em Barros e Oiticica. Nesse caso, talvez fosse interessante<br />
considerar termos como fotografia não narrativa ou fotografia não denotativa, como<br />
alternativas para essa crise de conceituação de tais imagens.<br />
Filiberto Menna, 20 em texto de 1975, intitulado La opción analítica en el arte<br />
moderno, dedica-se ao que chama de fotografia analítica, bem como elabora o termo<br />
antifotografia. Segundo este autor, a prática analítica da arte assumiu a tarefa de<br />
desmascarar a pretensão da fotografia de figurar como equivalente da visão natural.<br />
Esta concepção revela a natureza convencional, histórico-cultural que permeou<br />
as ideias sobre a fotografia desde o seu início. Entretanto, Menna, em sua análise,<br />
desarticula este postulado, ao considerar especialmente os fotogramas, dentro do que<br />
Moholy-Nagy afirmou sobre estes:<br />
19 Paulo Herkenhoff (1983, p. 13).<br />
20 Filiberto Menna (1977, p. 50-52, tradução nossa).
97<br />
Carolina Etcheverry<br />
A concreção do fenômeno da luz é peculiar no processo<br />
fotográfico e a nenhuma outra invenção técnica. A fotografia<br />
sem câmera (a construção de fotogramas) se embasa nisto.<br />
O fotograma é uma realização de tensão espacial em brancopreto-cinza<br />
(...). Embora careça de conteúdo representativo, o<br />
fotograma é capaz de evocar uma experiência ótica imediata,<br />
baseada na nossa organização visual psicobiológica. 21<br />
Assim, o fotograma traduz o objeto em motivo luminoso não figurativo,<br />
criando uma relação ótica elementar, parecida com a pintura construtivista. O autor<br />
não menciona o termo fotografia abstrata, mas elabora uma série de técnicas de<br />
détournement, tais como fotomontagem, solarização, negativo, uso de objetivas<br />
especiais e lentes deformadoras, que definiriam a elaboração de “antifotografias”:<br />
Em definitivo, se trata de verdadeiras “antifotografias”, que<br />
pulverizam as expectativas do espectador, destroem a confiança<br />
nas qualidades reprodutivas do medio, em suma, provocam uma<br />
espécie de “ginástica mental” que desloca a atenção do referente<br />
ao signo linguístico. 22<br />
Estas antifotografias colocam em discussão o que Menna chama de “iconismo<br />
fotográfico”, que vem a ser a importância da representação figurativa na fotografia.<br />
As fotografias nas quais não há elementos denotativos, tais como os fotogramas,<br />
as múltiplas exposições, e todas as outras imagens produzidas sem que o referente<br />
seja identificado pelo espectador, podem ser enquadradas como antifotografias, pois<br />
criam um sentimento de suspeita, contribuindo para a complexidade da imagem.<br />
Em 1977, Rosalind Krauss escreveu o texto Photography and abstraction, no<br />
qual desenvolveu uma análise bastante filosófica e semiótica a respeito da possível<br />
existência de fotografias abstratas, contrapondo-se à concepção de Barr. A autora<br />
inicia o artigo analisando uma fotografia de um exercício sobre luz e superfície,<br />
realizado na Escola da Bauhaus, que consistia em dobrar uma folha de papel<br />
formando pregas ritmadas, para, ao receber uma forte luz rasante, se tornar um jogo<br />
de puro desenho, formas visuais puras. Este jogo abstrato de relações e inversões de<br />
figura e fundo para nós é uma fotografia. Krauss afirma que<br />
Esta fotografia não é a demonstração das condições abstratas<br />
da visão. Ela o é de algo, é a marca documental daquela coisa<br />
que foi registrada fotoquimicamente na película, a imagem de<br />
uma folha de papel recortada e dobrada. Não pode livrar-se desta<br />
condição. Lissitzky, Moholy-Nagy, Man Ray, Brugière, Berenice<br />
21 László Moholy-Nagy apud Filiberto Menna (1977, p. 50, tradução nossa).<br />
22 Filiberto Menna (1977, p. 51, tradução nossa).
98<br />
<strong>História</strong> da fotografia moderna brasileira<br />
Abbott, Imogen Cunningham... nenhum deles a defendeu, ainda<br />
que tenham experimentado com a “fotografia abstrata”. 23<br />
Assim, o conceito de fotografia abstrata começa a ser questionado, trazendo<br />
um problema para o desenvolvimento da pesquisa sobre Geraldo de Barros e José<br />
Oiticica Filho. Percebe-se que foi um termo operativo cunhado por críticos, e não<br />
pelos próprios artistas e fotógrafos. As fotografias feitas por Geraldo de Barros a<br />
partir de cartões perfurados não seriam, dentro da lógica de Krauss, uma abstração.<br />
Sabemos que aqueles são cartões perfurados, mas o modo como o autor os fotografa<br />
abre uma dúvida, ou uma suspeita, a respeito de sua identificação. É por esse motivo<br />
que o termo, também de certo modo genérico, fotografia sem referente claramente<br />
identificável, parece, em alguns casos, mais apropriado.<br />
Rosalind Krauss vai além em sua análise, e, ao chegar no punctum barthesiano,<br />
a autora afirma que “esta ferida infligida pela fotografia existe em função da maneira<br />
como a foto entrega o real de seus conteúdos, marcando-lhes não apenas com o ser<br />
– “isto é” –, mas de forma irrevogável com o tempo: “isto foi”. 24 A autora coloca,<br />
assim, a questão da relação da fotografia com o passado e com o acontecimento. O<br />
que, segundo ela, ocorre no caso de fotografias supostamente abstratas – para isso<br />
ela utiliza fotografias de James Welling – é uma queda na “incerteza” e no “silêncio”.<br />
“Vemos o referente, mas não o reconhecemos. Perdemos o encontro.” 25<br />
O trabalho de Welling é baseado em um diário escrito por sua tataravó<br />
em 1840. As fotografias do diário criaram um marco para o que o artista buscava:<br />
“uma fotografia que não entregara o presente (fotografia de rua, do cotidiano, do<br />
instante decisivo), mas que, ao apresentar uma distorção temporal, colocou a ele e<br />
aos espectadores em contato com um passado que se encontrou demasiado tarde”. 26<br />
Por isso a perda do encontro.<br />
Torna-se tarde para reconhecer o objeto fotografado. Krauss, para explicar<br />
esta ideia, apropria-se do termo tuché, usado por Lacan e transformado por Barthes<br />
no punctum. Esta palavra indica “a realidade perdida, a realidade que já não pode<br />
produzir a si mesma a não ser repetindo-se incessantemente em um despertar jamais<br />
alcançado”. 27 Assim também o punctum faz com que o real seja tanto aquilo que eu<br />
perdi como o que estarei obrigado a reproduzir a partir de então por repetição. É por<br />
isso que Welling refotografa os lugares por onde sua tataravó passou, sobrepondoas<br />
às páginas do diário escrito por ela, obtendo assim uma imagem obscura, não<br />
claramente identificável, “abstrata”.<br />
23 Rosalind Krauss (2004, p. 231, tradução nossa).<br />
24 Ibidem, p. 233.<br />
25 Ibidem, p. 235.<br />
26 Rosalind Krauss, loc. cit.<br />
27 Rosalind Krauss, loc. cit.
99<br />
Carolina Etcheverry<br />
Por fim, em texto de 1984, intitulado A ilusão especular, Arlindo Machado<br />
mostra-se negativo em relação à própria possibilidade de existência de fotografia<br />
abstrata, devido, justamente, às suas características formativas. Segundo ele:<br />
É curioso constatar que as fotografias ditas “artísticas” sejam,<br />
no geral, bem pouco severas em relação à ilusão especular<br />
e permaneçam, apesar de tudo, figurativas, por mais que<br />
tentem disfarçar essa condição com arranjos harmônicos e<br />
composições “musicais”. (...) Daí o equívoco fundamental<br />
de José Oiticica Filho ao supor que poderia, numa certa fase<br />
de sua obra, construir uma fotografia “abstrata”, debruçandose<br />
sobre motivos informais, como traçados de tinta sobre<br />
vidro rugoso. O momento de abstração nas fotos de Oiticica<br />
é anterior à fotografia propriamente dita: por essa razão, tais<br />
fotos “abstratas” não são nem um pouco menos figurativas que<br />
qualquer pimentão hiper-realista de Edward Weston. É que,<br />
em quaisquer circunstâncias, a câmera e a película gelatinosa<br />
foram concebidas para possibilitar a emergência da figura,<br />
sem deixar brechas para qualquer outra exploração que não o<br />
ilusionismo de “real”. 28<br />
Nota-se que o que parece ser fácil – encontrar um termo justo para referir-se a<br />
determinadas fotografias – mostra-se, em realidade, uma reflexão bastante profícua.<br />
Percebe-se que o termo “fotografia abstrata” não explica por si só as imagens<br />
fotográficas de Barros, Oiticica Filho e muitos outros. Ela apenas refere-se ao fato<br />
de que o objeto da fotografia não se faz claro aos nossos olhos, mostra-se à nós<br />
de maneira “abstrata”. Mas se a fotografia é o registro de luz emanada por objetos<br />
reais em uma superfície fotossensível, é possível pensar em abstração, em oposição<br />
à existência de uma figura? Não seria mais apropriado buscar outros modos de<br />
referir-se a determinadas imagens, sem engessá-las em uma terminologia demasiado<br />
genérica e, por vezes, inapropriada? Em alguns casos, fotografia não narrativa<br />
basta, em outros é preciso ir além, identificando-a como fotografia construtiva, de<br />
composição geométrica, com referente não identificável, não denotativa – o que<br />
melhor se aplicar à fotografia que se tem à frente.<br />
O debate dos críticos: uma revisão historiográfica<br />
Sobre Geraldo de Barros e José Oiticica Filho, foram escritos alguns textos,<br />
de pesquisadores e críticos de renome, que servem como baliza para uma primeira<br />
aproximação à pesquisa sobre tais personagens. Ao revisar tais textos, pretendemos<br />
reafirmar a importância que tiveram na divulgação e na valorização do trabalho destes<br />
fotógrafos no contexto da fotografia nacional. Assim, trataremos de textos de Pietro<br />
28 Arlindo Machado (1984, p. 155).
100<br />
<strong>História</strong> da fotografia moderna brasileira<br />
Maria Bardi, Radhá Abramo, Annateresa Fabris, Maria Teresa Bandeira de Mello,<br />
Antonio Fatorelli, Helouise Costa, Paulo Herkenhoff, Heloísa Espada Lima e Paulo<br />
Henrique Camargo Batista. Entre artigos, ensaios, capítulos de livros e dissertações<br />
de mestrado, pretendemos mostrar como estes fotógrafos foram construídos enquanto<br />
objeto de estudos pelos mais diversos autores, preocupados em sistematizar o estudo<br />
a respeito das obras de Geraldo de Barros e José Oiticica Filho.<br />
Procurando manter uma ordem cronológica na abordagem dos textos, de<br />
modo que fique visível a tentativa de reconstrução crítica da historiografia a respeito<br />
destes fotógrafos, parece-nos conveniente iniciar este percurso pensando sobre dois<br />
pequenos ensaios, escritos por Pietro Maria Bardi, em 1950, para o catálogo da<br />
exposição de Geraldo de Barros, Fotoformas, e por Radhá Abramo, em 1977, para o<br />
catálogo da exposição Geraldo de Barros: 12 anos de pintura 1964 a 1976, realizada<br />
no MAM-SP, em 1977. 29 Bardi inicia este ensaio para o catálogo da exposição<br />
Fotoformas afirmando que Barros tinha a composição como um dever, transformando<br />
segmentos lineares em harmonias formais agradáveis. Para o autor, o fotógrafo<br />
utiliza a fotografia como meio de fugir dos verismos da pintura, pois, ainda que a<br />
fotografia seja um meio verista por excelência, ela também “se presta a transformar<br />
a sensação numa expressão sem “artisticidade”, pura derivação de sombras e por<br />
isso mais ligada à abstração”. 30 Bardi encerra a apresentação às fotografias de<br />
Geraldo de Barros anunciando sua viagem de estudos a Paris, da qual ele voltaria,<br />
certamente, muito enriquecido. O texto de Radhá Abramo busca apresentar o artista<br />
e sua criação, por ocasião de sua exposição de pinturas. A autora não aborda tanto as<br />
fotografias quanto suas pinturas, que são caracterizadas por ela como “ambíguas”. 31<br />
Entretanto, ao traçar a biografia de Barros, Abramo acaba por pincelar sua pesquisa<br />
fotográfica, elencando seu papel na organização do Laboratório de <strong>Fotografia</strong> do<br />
Masp, em 1949, e sua participação em inúmeras exposições fotográficas, nas quais é<br />
inclusive fotógrafo premiado.<br />
Paulo Herkenhoff 32 escreveu três textos importantes para o tema em estudo.<br />
O primeiro deles, de 1983, é sobre José Oiticica Filho, e os dois últimos, de 1987 e<br />
1989, são sobre Geraldo de Barros. O texto A trajetória: da fotografia acadêmica<br />
ao projeto construtivo busca traçar um panorama da obra de José Oiticica Filho,<br />
enumerando as quatro fases pelas quais o fotógrafo teria passado: o utilitário, o<br />
fotoclubista, o abstrato e o construtivo. Segundo Herkenhoff,<br />
A obra de José Oiticica Filho representa uma experiência<br />
radical de ruptura na história da fotografia brasileira. O seu<br />
29 Estes dois ensaios encontram-se no livro de Geraldo de Barros (2006, p. 137-138).<br />
30 Pietro Maria Bardi apud Geraldo de Barros (2006, p. 137).<br />
31 Radhá Abramo apud Barros (2006, p. 138).<br />
32 Paulo Herkenhoff é um dos principais críticos de arte e curadores do Brasil.
101<br />
Carolina Etcheverry<br />
percurso, desde a participação no movimento fotoclubístico<br />
até o engajamento com o projeto construtivo, testemunha um<br />
equilíbrio entre o rigor técnico e uma inquietação intelectual<br />
questionadora. 33<br />
Desse modo, Herkenhoff estabelece categorias e relações para as diferentes<br />
imagens produzidas por Oiticica Filho, buscando também precedentes, paralelos,<br />
contatos e, por fim, a atualidade do fotógrafo no momento da arte brasileira<br />
contemporânea. Este é, com certeza, um dos mais importantes e completos textos<br />
produzidos sobre José Oiticica Filho até o momento. E já se passam mais de 20 anos.<br />
No texto A imagem do processo, de 1987, Paulo Herkenhoff contextualiza<br />
Geraldo de Barros como fotógrafo que busca a ruptura com a ordem vigente.<br />
Segundo ele,<br />
É como fotógrafo que Geraldo de Barros fará sua inserção<br />
radical no processo cultural brasileiro, no momento da criação<br />
dos museus no Rio de Janeiro e São Paulo, da Bienal e sobretudo<br />
das discussões sobre o abstracionismo e a formulação do<br />
processo construtivo. 34<br />
O autor continua sua análise abordando o que chama de “projeto atualizador<br />
do fotoclubismo”, ao qual Barros propõe uma ruptura, visto que suas fotografias<br />
operam no campo da percepção visual como construção abstrata, bem ao contrário<br />
dos postulados pictorialistas vigentes até então no ambiente fotoclubista. Geraldo de<br />
Barros, assim como José Oiticica Filho, vive um impasse entre a busca do abstrato<br />
e a permanência da figuração, sendo que a “abstração”, para ele, é uma oposição à<br />
fotografia realista. 35 Segundo Herkenhoff, a importância da obra de Barros está na<br />
construção do signo e na fundação de uma outra fotografia. Ele estabeleceu uma<br />
nova lógica do olhar, com a ruptura das antigas certezas abalizadas pela fotografia. 36<br />
O autor encerra o artigo afirmando que Geraldo de Barros, assim como José Oiticica<br />
Filho, a quem ele nunca conheceu, é desarticulador da fotografia, corrompendo os<br />
cânones fotoclubistas, que eram, até então, as únicas alternativas para uma fotografia<br />
artística. Além de desarticulador de processos, imagens e mecanismos lógicos da<br />
fotografia, Barros também desarticula o tempo da imagem, ao não associá-la a um<br />
momento decisivo, mas a um processo construtivo. 37<br />
33 Paulo Herkenhoff (1983, p. 10).<br />
34 Paulo Herkenhoff apud Barros (2006, p. 147). Este texto foi publicado originalmente no jornal Folha de São<br />
Paulo, em 23 de outubro de 1987.<br />
35 Ibidem, p. 148.<br />
36 Ibidem, p. 149.<br />
37 Ibidem, p. 150.
102<br />
<strong>História</strong> da fotografia moderna brasileira<br />
No texto Geraldo de Barros: a renovação e a constância, de 1989, Herkenhoff<br />
segue afirmando a importância do fotógrafo enquanto agente da dessacralização<br />
da fotografia no Brasil da década de 1950. Destaque deste artigo, e diferencial em<br />
relação ao anterior, é a ênfase do autor no processo de desenvolvimentismo que se<br />
instaura no Brasil nesta época. Depois de contextualizar amplamente o ambiente<br />
favorável à cultura nos anos 1950, passando, desde o próprio desenvolvimentismo<br />
até a poesia e a crítica de arte, Herkenhoff coloca Barros dentro do movimento<br />
concretista paulista, do qual o fotógrafo faz parte com suas pinturas e como um dos<br />
signatários do Manifesto Ruptura. Assim, o autor afirma que<br />
As linguagens construtivas na América Latina, florescentes<br />
desde a década de 1940 até os anos 1960, na Argentina, Uruguai,<br />
Brasil, Colômbia e Venezuela, estão em relação com os planos<br />
de uma cultura organizada nos sonhos de modernização e<br />
desenvolvimento. 38<br />
Na mesma linha, o autor encerra o artigo afirmando que, nos anos 50, a<br />
arte concreta podia ser relacionada com a utopia do desenvolvimento nacional.<br />
Do mesmo modo, as fotografias de Geraldo de Barros podem ser entendidas como<br />
pertencentes a este ideal, em razão do rigor compositivo. Todos os textos de Paulo<br />
Herkenhoff têm como mérito o fato de terem realizado um apanhado crítico da obra<br />
destes fotógrafos, alçando-os a um outro patamar de reconhecimento pelo público e<br />
pelos estudiosos acadêmicos.<br />
Merece destaque também o livro A fotografia moderna no Brasil, publicado em<br />
1995, com reedição em 2004, escrito por Helouise Costa e Renato Rodrigues da Silva.<br />
Este livro pioneiro tem a importância de trazer à tona a formação de uma fotografia<br />
moderna brasileira, gestada no Foto Cine Clube Bandeirante (FCCB), em São Paulo.<br />
No que tange Geraldo de Barros e José Oiticica Filho, os autores os colocam como a<br />
expressão máxima da fotografia moderna no Brasil. Geraldo de Barros ganha destaque<br />
por ser o primeiro fotógrafo moderno, membro do FCCB a intervir no processo clássico<br />
de produção da fotografia – fotografar, revelar, ampliar –, “dando corpo a um profundo<br />
questionamento dos limites da linguagem fotográfica”. 39 Esta liberdade a que Barros<br />
se permitia ao criar suas imagens o manteve ao largo das atividades do fotoclube, que,<br />
na época, não se encontrava aberto aos seus experimentos fotográficos. Entretanto, o<br />
fotógrafo, como já mencionado anteriormente, teve profunda influência nas relações<br />
entre o FCCB e a Bienal de São Paulo.<br />
38 Paulo Herkenhoff apud Geraldo de Barros (2006, p. 157). Este texto foi publicado originalmente em 1989, para o<br />
catálogo da exposição no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.<br />
39 Helouise Costa e Renato Rodrigues da Silva (2004, p. 43).
103<br />
Carolina Etcheverry<br />
Os autores destacam José Oiticica Filho como tendo grande importância no<br />
ambiente fotoclubista carioca, sendo um dos principais divulgadores da sensibilidade<br />
moderna. E acrescentam:<br />
No entanto, enquanto o bandeirante lançava-se à experiência<br />
renovadora com a atuação dos pioneiros, José Oiticica Filho<br />
continuava preso ao academismo, sendo um defensor ardoroso<br />
dessa estética. 40 Somente a partir da segunda metade da década<br />
de 1950 ele implementou mudanças em sua produção, o que<br />
determinou o seu afastamento do fotoclubismo carioca e uma<br />
maior aproximação do Foto Cine Clube Bandeirante, onde seu<br />
trabalho de características modernas pôde ser divulgado. 41<br />
No FCCB, Oiticica Filho é visto como “um dos mais destacados mestres do<br />
abstracionismo fotográfico com suas derivações e recriações”. 42 Com esta análise,<br />
Costa e Silva reafirmam a importância do trabalho do fotógrafo, e mostram como<br />
este passou pelas diversas fases da fotografia, como apresentado por Herkenhoff.<br />
Na edição de 1995 do livro, os autores encerram a parte dedicada à Oiticica Filho<br />
situando-o não como pioneiro da fotografia moderna, mas como pertencente à fase<br />
de diluição desta experiência. Já na edição de 2004 há uma reformulação desta<br />
posição, como é possível perceber no seguinte excerto:<br />
Por fim, é importante ressaltar que no contexto da fotografia<br />
brasileira a produção de caráter abstracionista de José Oiticica<br />
Filho constitui um segundo momento, cabendo situá-lo como<br />
precursor em relação ao ambiente carioca. De fato, ele foi um<br />
fotógrafo que atuou de modo mais sistemático na ampliação das<br />
possibilidades dessa estética. Assim, o trabalho do artista deve<br />
ser localizado a partir de sua aguçada sensibilidade plástica,<br />
materializada em uma pesquisa de grande potencial reformulador<br />
no universo mais amplo das artes plásticas no Brasil. 43<br />
Com isto podemos perceber que houve, por parte dos autores, uma percepção<br />
de que José Oiticica Filho extrapola o ambiente fotoclubista, sendo considerado um<br />
artista que explora seu potencial poético através da fotografia, em consonância com<br />
o panorama das artes visuais brasileiras.<br />
40 Neste sentido José Oiticica Filho tem uma série de artigos publicados a respeito das principais técnicas pictorialistas<br />
de fotografar.<br />
41 Ibidem, p. 72.<br />
42 Ibidem, p. 73.<br />
43 Ibidem, p. 75. Ver também a edição de 2005 da obra: Helouise Costa e Renato Rodrigues da Silva. A fotografia<br />
moderna no Brasil. Rio de Janeiro: Funarte/IPHAN/Editora UFRJ, 2005.
104<br />
<strong>História</strong> da fotografia moderna brasileira<br />
O texto de Annateresa Fabris, A fotografia além da fotografia: José Oiticica<br />
Filho (1947-1995), 44 dialoga, em termos de ideias, com o que Maria Teresa Bandeira<br />
de Mello 45 escreve a respeito de suas fotografias em texto do mesmo ano. Ambas<br />
enfatizam o caráter pictorialista da obra de Oiticica Filho, que teria se mantido<br />
mesmo nas fases posteriores do fotógrafo. Para Fabris, “José Oiticica Filho afirma-se<br />
aos olhos do público como mais um adepto do fotopictorialismo”. 46 Ainda segundo<br />
a autora, mesmo suas fotografias da fase utilitária não podem ser dissociadas de seu<br />
interesse pelo pictorialismo. Para Fabris,<br />
Se, de fato, luz e superfície são questões fundamentais para<br />
o Oiticica pós-pictorialista, o que não se pode deixar de levar<br />
em conta – e é isso o que o distancia da atitude dos fotógrafos<br />
evocados por Herkenhoff – é que sua visão de fotografia<br />
continua a ser informada pelos postulados da estética que ia<br />
abandonando. 47<br />
Os fotógrafos evocados por Herkenhoff são Moholy-Nagy e Rodchenko,<br />
que pretendiam, através da fotografia, atingir uma “nova visão”. A autora, neste<br />
caso, afirma que os princípios norteadores de José Oiticica Filho ainda são os do<br />
pictorialismo. Segundo ela, “Oiticica supervaloriza o papel da técnica, detectando o<br />
nascimento da fotografia no trabalho de laboratório, ‘quanto se graduam os cinzas,<br />
as luzes, o corte’”. 48 Fabris refere-se à célebre entrevista concedida pelo fotógrafo a<br />
Ferreira Gullar, em 1958, no qual ele afirma a importância do trabalho em laboratório<br />
na criação das fotografias. 49 Maria Teresa Bandeira de Mello, na mesma linha de<br />
Annateresa Fabris, afirma o seguinte a respeito das obras de Oiticica Filho: “É<br />
curioso observar que, mesmo depois de se libertar dos cânones fotoclubistas e de se<br />
entregar a experimentações modernizadoras, ainda podem ser encontradas em suas<br />
obras semelhanças com a concepção de fotografia pictorialista”. 50<br />
A seguir, Fabris analisa duas fotografias que, para ela, são o marco da<br />
transição de Oiticica, do pictorialismo para a abstração: Triângulos semelhantes e<br />
Um que passa, ambas de 1953. Segundo ela,<br />
Em duas composições de 1953, Triângulos semelhantes e Um que<br />
passa, as preocupações geometrizantes do fotógrafo emergem<br />
de imediato, enfatizadas pelo contraponto definido pela presença<br />
44 Annateresa Fabris (1998).<br />
45 Maria Teresa Bandeira de Mello (1998).<br />
46 Annateresa Fabris (1998, p. 69).<br />
47 Ibidem, p. 71.<br />
48 Ibidem, p. 74.<br />
49 Cf. Oiticica: “fotografia se faz no laboratório”, Jornal do Brasil, 24/08/1958, suplemento dominical de artes plásticas.<br />
50 Maria Teresa Bandeira de Mello (1998, p. 120).
105<br />
Carolina Etcheverry<br />
da figura humana. A luz adquire uma conotação construtora ao<br />
contrário do efeito dramático que desempenhava no momento<br />
pictorialista. (...) O mesmo contraste entre abstração e presença<br />
do referente preside também Composição óbvia (1954-55), na<br />
qual Oiticica aprofunda mais a procura do campo bidimensional<br />
e a definição da fotografia em termos requintadamente tonais. 51<br />
Logo a seguir, apoiando-se em excertos da entrevista de Oiticica Filho<br />
de 1958, a autora conclui que o afastamento cada vez maior do referente é uma<br />
estratégia do fotógrafo para produzir obras de arte, visto que ele acreditava mais no<br />
resultado que se consegue obter no laboratório do que na produção da fotografia em<br />
si. Seguindo seu percurso de análise, a autora chega às Derivações e Recriações,<br />
as quais “exibem, por vezes, parentesco com a abstração informal dos anos 50”. 52<br />
Analisando a série seguinte de suas obras, as Formas, Fabris afirma que “ao mesmo<br />
tempo em que está engajado na exploração da abstração informal, na estruturação de<br />
campos matéricos, de relações sutilmente tensionadas, Oiticica busca também uma<br />
linguagem de caráter construtivo que se resolve, de início, na série Formas”. 53<br />
Annateresa Fabris, por fim, enfatiza que José Oiticica Filho estava preocupado<br />
em pesquisar as “possibilidades da fotografia para além da fotografia”, com isso<br />
querendo dizer que todas as manipulações por ele feitas nas imagens tinham como<br />
objetivo colocar tais imagens mais próximas da arte do que da própria fotografia,<br />
negando o específico fotográfico. O cerne da análise da autora pode ser resumido na<br />
seguinte citação:<br />
51 Annateresa Fabris (1998, p. 75).<br />
52 Ibidem, p. 76.<br />
53 Fabris, op. cit.<br />
O que se detecta no Oiticica construtivo é, no fundo, um paradoxo.<br />
A constituição de formas novas, a saída do código acadêmico<br />
que regia a experiência fotoclubista brasileira estruturam-se<br />
através da reedição da ideologia que guiava o fotopictorialismo,<br />
disposto a parecer tudo menos fotografia.<br />
Ao dizermos isso, não queremos negar a contribuição de Oiticica<br />
à constituição de uma linguagem plástica renovada. Se ela é<br />
fundamental, é impossível, no entanto, não perceber que Oiticica<br />
foge, as mais das vezes, da questão do específico fotográfico<br />
para postular uma fotografia que negue a fotografia, sem parecer<br />
dar-se conta de que mesmo o recurso ao simulacro não o livrava<br />
do enfrentamento com o instante. Por mais que seus modelos<br />
fossem previamente elaborados, por mais que a imagem final<br />
fosse o produto dos tempos longos do laboratório, por mais<br />
que o negativo possuísse potencialidades próprias, existia a
106<br />
<strong>História</strong> da fotografia moderna brasileira<br />
intermediação do aparelho e, portanto, o momento do disparo no<br />
qual o objeto se apresenta em sua conotação estrutural. Ao tentar<br />
negar isso, Oiticica reatualiza a ideologia do fotopictorialismo,<br />
não importa se em sentido abstrato e concreto. 54<br />
É, portanto, de suma importância a análise exaustiva realizada por Fabris, no<br />
intuito de situar a obra de José Oiticica Filho dentro dos parâmetros tanto da história da<br />
fotografia quanto da história da arte. Análise atenta, crítica, que vem a complementar,<br />
por vezes deles discordando, os textos de Paulo Herkenhoff e Arlindo Machado.<br />
Antonio Fatorelli, no texto José Oiticica Filho e o avatar da fotografia<br />
brasileira, 55 é mais positivo em relação ao trânsito de estilos do fotógrafo. Para ele,<br />
este movimento é decorrente de um espírito investigativo, que buscava diferentes<br />
soluções plásticas para determinados problemas. A análise de Fatorelli busca<br />
inserir a obra fotográfica de Oiticica Filho dentro do panorama maior da história<br />
da fotografia e do embate que esta trava entre o estatuto de realidade e a prática de<br />
experimentações. Para este autor,<br />
De modo condensado, e sem dispensar o brilho que acompanha<br />
as poéticas modernas, Oiticica refez, ao longo de sua trajetória<br />
de fotógrafo, o percurso realizado pelos principais movimentos<br />
fotográficos precedentes, apresentando e posteriormente superando,<br />
sucessivamente, os princípios da fotografia científica, da prática<br />
pictorialista e da estética purista moderna. Além de atualizar estes<br />
movimentos, a contribuição de Oiticica – particularmente de suas<br />
imagens da década de 50, identificadas com as propostas estéticas<br />
do movimento concretista – estende-se projetivamente às décadas<br />
de 60, 70 e 80, prenunciando o trabalho de vários artistas plásticos<br />
e fotógrafos, como Hélio Oiticica e Lygia Clark. 56<br />
Com isto, podemos perceber que Fatorelli busca contextualizar as pesquisas<br />
de Oiticica Filho no campo fotográfico e também artístico, relacionando-o com<br />
os diversos ambientes pelos quais o fotógrafo passou – fotoclubes e artístico,<br />
especialmente – e com os quais promoveu intercâmbios criativos. O autor aponta,<br />
também, a importância que este fotógrafo teve para a emergência da fotografiamatéria<br />
ou pós-fotografia, na década de 1980, movimento do qual participam<br />
fotógrafos como Rosângela Rennó e Antonio Sagesse.<br />
54 Annateresa Fabris (1998, p. 77-8).<br />
55 Antonio Fatorelli (2000). Fatorelli expande suas ideias sobre as diversas fases da história da fotografia, culminando<br />
com uma expansão do campo fotográfico, um apagamento das fronteiras entre fotografia e artes visuais, através da<br />
ideia de suspeita na fotografia, presentes neste artigo sobre José Oiticica Filho, no seu livro intitulado <strong>Fotografia</strong> e<br />
Viagem. Ver Antonio Fatorelli (2003).<br />
56 Antonio Fatorelli (2000, p. 141).
107<br />
Carolina Etcheverry<br />
Por fim, é importante situar a produção acadêmica a respeito de Geraldo de<br />
Barros. Existem duas dissertações de mestrado, ambas de 2006, acerca do fotógrafo.<br />
Heloísa Espada Lima escreveu a dissertação intitulada Fotoformas: a máquina<br />
lúdica de Geraldo de Barros, 57 na qual busca traçar um amplo panorama sobre a<br />
produção das fotografias de mesmo título. A autora busca relacionar as fotografias de<br />
Barros ao movimento construtivista e às vanguardas históricas ligadas à fotografia,<br />
bem como investigar a participação do fotógrafo em diversos grupos e ambientes<br />
artísticos, procurando com isso perceber possíveis influências. Também em seu<br />
trabalho há um estudo sobre a relação de Geraldo de Barros com o crítico Mário<br />
Pedrosa e um mapeamento do contexto cultural paulistano, no qual suas fotografias<br />
foram gestadas. Sua dissertação constitui leitura obrigatória para todos aqueles<br />
interessados em estudar o trabalho de Geraldo de Barros.<br />
Da mesma forma, a dissertação de Paulo Henrique Camargo Batista,<br />
intitulada Fotoformas: a poética do processo interventor de Geraldo de Barros na<br />
práxis fotográfica, 58 busca apresentar o trabalho de Barros a partir do ponto de vista<br />
tecnológico, buscando entender o rompimento que o fotógrafo produz ao intervir<br />
no processo de constituição da fotografia. O autor parte da ideia de intervenção no<br />
processo fotográfico e do rompimento com a programação da câmera, tendo como<br />
referencial teórico Vilém Flusser e Arlindo Machado. O ponto de vista de Batista é<br />
o de que Geraldo de Barros é um exemplo do rompimento conceitual e estético com<br />
o programa operatório da câmera fotográfica. Com um ponto de vista diferente do<br />
de Heloísa Espada Lima, este também é um trabalho enriquecedor para os estudos<br />
sobre Geraldo de Barros.<br />
As imagens de Geraldo de Barros e de José Oiticica Filho<br />
dentro do contexto da <strong>História</strong> da <strong>Fotografia</strong> brasileira<br />
As fotografias de Geraldo de Barros e de José Oiticica Filho relacionam-se, em<br />
muitos aspectos, tanto com a questão da experimentação, como com outras questões<br />
pertinentes à história da fotografia brasileira. Para tanto, é importante abordarmos<br />
em linhas gerais algumas dessas questões, dando uma visão panorâmica do ambiente<br />
no qual os fotógrafos estavam inseridos, e do qual tinham amplo conhecimento.<br />
É importante observar, em primeiro lugar, que suas imagens discutem de<br />
modo incisivo as funções da fotografia, seu estatuto em relação à realidade. 59 Este<br />
debate sobre o estatuto da fotografia não é privilégio de Barros ou de Oiticica Filho,<br />
bem como não se inicia no século XX. Entretanto, é interessante notar que, ao<br />
experimentarem com diferentes formas de fotografar, obtendo resultados que não<br />
57 Heloísa Espada Lima (2006).<br />
58 Paulo Henrique Camargo Batista (2006).<br />
59 Sobre este tema, ler Philippe Dubois (2003) e Maria Teresa Bandeira de Mello (1998).
108<br />
<strong>História</strong> da fotografia moderna brasileira<br />
privilegiam a mimese do real, estes fotógrafos estão, de certo modo, subvertendo<br />
o estatuto “principal” da fotografia, que seria o de reproduzir fielmente a realidade<br />
que se encontra na frente do fotógrafo. Este seria apenas um observador apto a<br />
registrar fielmente aquilo que vê, contribuindo para um inventário neutro e realista<br />
do mundo. O que podemos depreender das imagens dos fotógrafos em estudo é uma<br />
necessidade de criação a partir da fotografia, e não de simples reprodução. Assim,<br />
a câmera fotográfica, ou os meios de impressão fotográfica, permitem a eles criar<br />
diferentes formas visuais, que desafiam o olhar do espectador.<br />
Este debate pode ser percebido, por exemplo, ao analisarmos as diferentes<br />
experiências fotoclubísticas, tanto nacionais quanto internacionais. Os primeiros<br />
fotoclubes foram marcados pela presença do pictorialismo, que procurava aproximar<br />
a fotografia da arte utilizando recursos “artísticos”, ou que faziam com que o<br />
resultado final parecesse artístico, através de diferentes técnicas. Segundo Maria<br />
Teresa Bandeira de Mello,<br />
O movimento pictorialista não mantém com a pintura uma<br />
relação de mera imitação. Ao contrário, estabelece uma<br />
correspondência entre ambas que impulsiona a fotografia a<br />
elevar-se ao nível da pintura, e, nesta situação de igualdade,<br />
reivindicar o estatuto de arte. 60<br />
Devemos ter em mente a diferença entre pictorialismo e experimentação na<br />
fotografia. O segundo procura reivindicar o estatuto de arte para a fotografia a partir<br />
da exploração do potencial artístico intrínseco ao meio fotográfico. É na expansão da<br />
fotografia que ela se torna artística, dialogando com as artes visuais do período. Já o<br />
pictorialismo buscava inserir diversas técnicas no processo fotográfico, a fim de que<br />
o resultado final parecesse artístico.<br />
Se nos mantivermos apenas no caso brasileiro, para facilitar nossa análise,<br />
podemos perceber que, com os anos, a experiência fotoclubística vai se alterando,<br />
caminhando do fotoclube voltado ao pictorialismo àquele voltado à fotografia moderna.<br />
José Oiticica Filho pode ser considerado um exemplo desta trajetória. Primeiramente<br />
membro do Photo Club Brasileiro, 61 do Rio de Janeiro, marco maior do pictorialismo<br />
no Brasil, passou a ser membro do Foto Cine Clube Bandeirante, considerado, por sua<br />
vez, marco da fotografia moderna brasileira. Suas fotografias refletem esta trajetória,<br />
visto que, no início, temos fotografias como Um que passa, de 1949, para, quase dez<br />
anos depois, em 1958, nos depararmos com as fotografias intituladas Recriações.<br />
60 Maria Teresa Bandeira de Mello (1998, p. 16).<br />
61 O Photo Club Brasileiro foi fundado em 1923. O primeiro fotoclube de que se tem notícias no Brasil foi o Sploro<br />
Photo Club, fundado em 1903, em Porto Alegre. Este foi seguido pelo Photo Club do Rio de Janeiro, de 1910 e pelo<br />
Photo Club Hélios, em 1916, em Porto Alegre.
109<br />
Carolina Etcheverry<br />
À parte do movimento fotoclubista, temos a presença das fotomontagens no<br />
cenário da história da fotografia brasileira. Os principais nomes são Jorge de Lima e<br />
Athos Bulcão. 62 Conforme Tadeu Chiarelli,<br />
Excetuando esses exemplos bastante frágeis para configurar<br />
um corpus de real significação, o uso da fotografia por<br />
artistas e intelectuais modernistas ficou confinado, até muito<br />
recentemente, a duas contribuições muito específicas, ligadas à<br />
fotomontagem. Refiro-me às fotomontagens do poeta e pintor<br />
Jorge de Lima, realizadas entre os anos 30 e 40, e àquelas do<br />
artista plástico Athos Bulcão, cujas produções remontam à<br />
primeira metade dos anos 50.<br />
Mais recentemente, tornou-se público que Alberto da Veiga<br />
Guignard – respeitado como um dos principais pintores modernistas<br />
–, igualmente ocupou-se da fotografia, mais especificamente, da<br />
fotomontagem. Dentro dessa escassez de produções fotográficas<br />
de âmbito modernista, parece-me no mínimo curioso o fato de<br />
as produções daqueles modernistas que mais se dedicaram à<br />
fotografia gravitarem em torno da fotomontagem. Em torno de uma<br />
fotomontagem, diga-se, fortemente vinculada ao surrealismo (...). 63<br />
Com este breve panorama, que certamente deixa de lado algumas nuances da<br />
história da fotografia brasileira, 64 como, por exemplo, a importante participação da<br />
fotografia nas revistas ilustradas e nos jornais, pretendemos mostrar que a fotografia<br />
começou a ganhar espaço na cultura brasileira. A história da cultura visual não pode<br />
deixar de lado estes aspectos aqui abordados.<br />
As imagens de Geraldo de Barros e de José Oiticica Filho<br />
dentro do contexto das Artes Visuais<br />
Dentro do contexto das artes visuais, é possível relacionar Geraldo de<br />
Barros e José Oiticica Filho com o movimento concretista e neoconcretista, que<br />
dominaram a cena artística nacional dos anos 1940 aos anos 1960, pelo menos. Suas<br />
fotografias são marcadas pelo diálogo constante com as artes visuais de sua época,<br />
estabelecendo, portanto, uma visualidade bastante específica.<br />
No final da década de 1940, com intervalo de apenas um ano, surgem em São<br />
Paulo dois museus de arte, decorrentes da iniciativa privada de grandes empresários.<br />
62 Sobre eles, ler Tadeu Chiarelli (2003).<br />
63 Tadeu Chiarelli (2003, p. 70).<br />
64 Escolhemos deixar o fotojornalismo de lado não por este não ser importante, mas por não estar tão diretamente<br />
ligado à fotografia voltada para as artes visuais.
110<br />
<strong>História</strong> da fotografia moderna brasileira<br />
Em 1947, Assis Chateaubriand, diretor dos Diários Associados e fundador da TV<br />
Tupi, criou o Museu de Arte de São Paulo, o Masp. No ano seguinte, Francisco<br />
Matarazzo, dirigente de um grande complexo industrial, criou o Museu de Arte<br />
Moderna de São Paulo, o MAM.<br />
Segundo Míriam Gershmann, 65 estes museus nascem dentro do ideal<br />
desenvolvimentista, que objetivava a atualização do país nos mais diversos setores,<br />
inclusive no setor cultural. De acordo com Francisco Alambert e Polyana Canhête,<br />
as ações e mutações promovidas pelo capital privado na esfera<br />
da cultura na cidade de São Paulo irão instalar uma nova etapa no<br />
processo de formação, transmissão e recepção da arte moderna:<br />
a “era dos museus” (...). 66<br />
Conforme Fernando Cocchiarale e Anna Bella Geiger, 67 o surgimento dos<br />
primeiros núcleos de artistas abstratos no Rio e em São Paulo ocorre entre 1948 e<br />
1949, criando uma oposição entre os artistas brasileiros. Artistas como Di Cavalcanti<br />
e Portinari mostram-se contrários a essa vertente não figurativa, pois seria uma arte<br />
que se afasta da realidade, “a abolição da ‘figura’ isola a obra do artista de uma<br />
visualidade reconhecível, e, o que é mais grave, da realidade social de seu povo”. 68<br />
A arte abstrata se afastaria dos ideais de nacionalidade que permearam os trabalhos<br />
dos artistas da Semana de 22. 69<br />
Ao mesmo tempo em que este debate ocorria, José Oiticica Filho estava<br />
fazendo fotografias dentro do ideal pictorialista dos fotoclubes – sua segunda fase<br />
– e Geraldo de Barros já estava iniciando suas precursoras experiências envolvendo<br />
a fotografia e suas possibilidades plásticas. Em 1949 ele foi convidado, junto com<br />
Thomaz Farkas e German Lorca, a montar o laboratório fotográfico do recém-criado<br />
Museu de Arte de São Paulo (Masp). Segundo Helouise Costa, 70 foi assim que Barros<br />
teve acesso a um espaço fora do Foto Cine Clube Bandeirante para realizar suas<br />
fotografias no campo da abstração. E isso é marcante para estabelecer sua relação<br />
com as artes visuais do período.<br />
Para a formação dos artistas brasileiros no campo da abstração, a Bienal<br />
de São Paulo foi de suma importância. Marcada pela presença de importantes<br />
artistas abstratos, como Max Bill (que introduz ideias concretistas no país), na<br />
Primeira Bienal, 71<br />
65 Miriam Gershmann (1992).<br />
66 Francisco Alambert e Polyana Canhête (2004, p. 26).<br />
67 Fernando Cocchiarale e Anna Bella Geiger (1987).<br />
68 Idem, p. 11.<br />
69 É importante observar que na Semana de 22 não houve espaço para a fotografia ou o cinema. Os “novos” meios<br />
mecânicos não foram incluídos como arte moderna. Sobre isso, ver Ricardo Mendes (2003).<br />
70 Helouise Costa e Renato R. da Silva (2004).<br />
71 Na I Bienal, em 1951, Max Bill e Ivan Serpa ganharam prêmios com trabalhos em abstração.
111<br />
Carolina Etcheverry<br />
as primeiras edições da Bienal foram profundamente cortadas<br />
por polêmicas calorosas (e por vezes maniqueístas), sobretudo<br />
entre os críticos que atacavam os “formalismos modernos”,<br />
responsabilizando-os por esvaziar o valor social e militante da<br />
arte, contra os defensores das “novas formas” de intervenção e<br />
corte (...), do abstracionismo, tanto geométrico quanto formal –<br />
que, aliás, também estavam em confronto uns com os outros. 72<br />
Assim, é possível ver que estava em jogo um debate não apenas entre<br />
figuração e abstração, mas também entre os diferentes tipos de abstração. Este debate<br />
ocorre também na fotografia, ainda que de forma marginal. Marcada pela homologia<br />
com o real, a fotografia sempre foi figurativa, sendo este, justamente, seu grande<br />
atrativo. Ao entrar na abstração a partir do contato dos fotógrafos com este ambiente<br />
artístico experimental e inovador, a fotografia altera seu estatuto, ingressando de<br />
modo mais direto no campo das artes plásticas.<br />
Mário Pedrosa, importante crítico e defensor da arte abstrata, escreveu a<br />
respeito dos trabalhos fotográficos de Geraldo de Barros, no texto “A Bienal cá e<br />
lá”, de 1970,<br />
(...) foi o primeiro a fazer da fotografia dita de arte não esse<br />
enlanguescimento pictórico do gosto convencional, mas uma<br />
experiência viril de imagens instantâneas ou fixadas, simultâneas<br />
ou dissolvidas em signos da vida e do espaço urbanístico. 73<br />
Com este excerto de Pedrosa é possível perceber como os trabalhos fotográficos<br />
experimentais de Barros inseriam-se neste novo momento da arte brasileira, marcado<br />
pela presença da arte abstrata e pelo Movimento Concretista, do qual ele fazia parte.<br />
Ainda que suas fotografias tenham sido feitas antes do seu engajamento no Grupo<br />
Ruptura, 74 em 1952, é possível pensar que as questões norteadoras do concretismo –<br />
hierarquia de forma, cor e fundo, junto com geometrizações das figuras – podem ser<br />
vistas em suas imagens. Entretanto, assim como nas fotografias de José Oiticica Filho,<br />
algumas delas são abstrações informais, demonstrando o alto grau de proficuidade<br />
de seu trabalho.<br />
José Oiticica Filho dentro deste contexto do concretismo brasileiro se mostra<br />
um artista bastante variado. Além de fotografias abstratas geométricas, em que há<br />
72 Francisco Alambert e Polyana Canhête (2004, p. 45).<br />
73 Mario Pedrosa (1995, p. 258).<br />
74 O Grupo Ruptura era formado por Lothar Charoux, Waldemar Cordeiro (seu principal teórico), Geraldo de<br />
Barros, Kazmer Fejer, Leopoldo Haar, Luis Sacilotto e Anatol Wladyslaw. Eles propõem uma ruptura com questões<br />
plástico-formais, com todo um passado que as vanguardas europeias tinham cortado desde o Impressionismo.<br />
Cf. BANDEIRA, João. Arte concreta paulista: documentos. São Paulo: Cosac Naify, Centro Universitário Maria<br />
Antonia da USP, 2002.
112<br />
<strong>História</strong> da fotografia moderna brasileira<br />
uma preocupação com a cor e ausência de meios-tons, ele também realiza, com a<br />
série Ouropretenses, fotografias abstratas informais, na qual há uma ligação com o<br />
sentimento, mais do que com a razão.<br />
A fotografia concreta de Oiticica Filho foi chamada, por ele próprio, de<br />
Recriações, pois, como explica Herkenhoff:<br />
Oiticica prepara as formas iniciais que são fotografadas. O<br />
negativo (isto é, a transparência) é ampliado para produzir um<br />
positivo transparente, que copiado produz nova transparência<br />
negativa, que copiada... e assim sucessivamente podem ser<br />
criadas diversas transparências positivas e negativas, as quais<br />
são usadas isoladamente ou combinadas entre si (positivo com<br />
positivo, negativo com negativo, positivo com negativo) para a<br />
obtenção da imagem. 75<br />
Nas fotografias ditas concretistas, é possível perceber a ausência de meiostons,<br />
característica da arte concreta. 76 O próprio José Oiticica Filho define seu<br />
entendimento acerca das Recriações, em entrevista a Ferreira Gullar, em 1958:<br />
Há quem não considere como fotografia minhas “recriações”,<br />
porque não uso cinzas, próprios da fotografia tal como ela<br />
é entendida pela maioria. Acham que é desenho, porque as<br />
formas se imprimem em preto e branco. Minhas “recriações”<br />
são fotografias, pois nascem de um processo fotográfico<br />
legítimo como outro qualquer. Se não uso cinzas é porque o<br />
que me interessa é a forma e a dinâmica do plano, que só se<br />
pode conseguir pela impressão, sem meias-luzes, do preto sobre<br />
o branco. Não tenho culpa de que, por usar preto e branco,<br />
confundam minhas “recriações” com desenhos que em geral são<br />
em preto e branco também. 77<br />
Desse modo, o fotógrafo insere seu trabalho como fotografia e explica o que<br />
interessa a ele no momento de feitura da imagem: a forma e a dinâmica do plano.<br />
75 Paulo Herkenhoff (1983, p. 15).<br />
76 “A proposta de uma cor pura, abstrata, seria encontrável, segundo ele [Mondrian], “na cor primária claramente<br />
definida”, chapada, sem meios-tons, matérias ou texturas.” (COCCHIARALE, GEIGER, 1987, p. 16). É importante<br />
mencionar, a este respeito, que José Oiticica Filho é pai de Hélio Oiticica, importante artista brasileiro, vinculado<br />
ao concretismo e neoconcretismo. Com isto podemos depreender que o fotógrafo tinha trânsito entre as artes visuais<br />
e a fotografia.<br />
77 Oiticica: “fotografia se faz no laboratório”, Jornal do Brasil, 24/08/1958, suplemento dominical de artes plásticas.
113<br />
Consideração final: por que estudá-los?<br />
Carolina Etcheverry<br />
Este texto procurou mostrar a complexidade do estudo em torno da fotografia<br />
moderna brasileira, bem como buscou trazer à tona diversas possibilidades de estudos.<br />
A partir de Geraldo de Barros e de José Oiticica Filho, considerados precursores<br />
nas técnicas de experimentação para criação de imagens fotográficas impactantes,<br />
foi possível perceber como o campo fotográfico expande-se na segunda metade<br />
do século XX. A importância de estudá-los reside no fato de que tais fotógrafos<br />
ainda são muito atuais, pautando diversos trabalhos fotográficos contemporâneos.<br />
Por isso, é preciso que eles sejam estudados a fundo, para que possamos construir<br />
uma história da cultura visual deste período, buscando elementos para entender tais<br />
imagens. Uma leitura informada é sempre mais instigante do que aquela marcada<br />
apenas pelo sentimento que a imagem traz ao seu leitor.<br />
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CAPíTUlO 5<br />
A dimensão histórica em “Mujeres presas”: aproximações<br />
teóricas entre fotografia-expressão e ator social<br />
Patricia Camera 1<br />
Este texto analisa o ensaio “Mujeres presas”, 2 realizado pela fotógrafa<br />
argentina Adriana Lestido, 3 durante junho de 1991 e junho de 1992, na prisão número<br />
8 de Los Hornos, em La Plata, Argentina. O resultado desta produção, que contou<br />
com o apoio da Hasselblad Foundation, foi exposto na II Bienal de Artes Visuais do<br />
Mercosul (1999 – Porto Alegre, Brasil) e deu origem à publicação do catálogo 4 de<br />
mesmo título, compondo a Colección Fotografos Argentinos.<br />
No prefácio, “Lestido: el oficio de narrar”, 5 o escritor Guillermo Saccomanno<br />
comunica:<br />
Mujeres presas no es un libro de fotos convencional, ese<br />
objeto a mitad de camino entre la mezquindad coleccionista y<br />
el regalo elegante de shopping. Si me gusta pensarlo como un<br />
trabajo narrativo es porque explica más de la realidad social<br />
que cualquier argumentación política. Lo que no quita que las<br />
fotos de Lestido entreveren, tensándolas, las relaciones entre<br />
arte e ideologia.<br />
Nesta linha de pensamento, o presente estudo desenvolve-se com o objetivo<br />
de discutir a fotografia contemporânea de Adriana Lestido como forma de narrativa<br />
visual elaborada por atores sociais. Para isso, apresentam-se algumas especificidades<br />
do gênero fotográfico e algumas reflexões sobre sujeito, razão e identidade com<br />
referência aos estudos de Alain Touraine.<br />
A proposta é aproximar alguns aspectos deste ensaio fotográfico às<br />
problemáticas levantadas por Touraine no contexto da sociedade cultural 6 (pós-<br />
1 Fotógrafa, Mestre em Tecnologia (UTFPR), Doutoranda do PPGH/PUCRS. E-mail: camera.patricia@gmail.com.<br />
2 O ensaio fotográfico Mujeres presas está disponível no web-site da fotógrafa (www.adrianalestido.com.ar) e no<br />
livro Mujeres Presas, LESTIDO (2007).<br />
3 Adriana Lestido nasceu em 1955 na cidade de Buenos Aires. Estudou na Escuela de Arte Fotográfico y Técnicas<br />
<strong>Visual</strong>es de Avellaneda. Trabalhou como repórter fotográfica entre 1982 e 1995 em La Voz, agência DyN e o diário<br />
Página 12. Em seguida, passou a lecionar fotografia e a dedicar-se aos trabalhos pessoais.<br />
4 Lestido (2007).<br />
5 Lestido (2007, p. 2).<br />
6 De forma resumida pode-se dizer que Touraine (2007, 2008) compreende a sociedade atual como uma sociedade<br />
fragmentada: a empresa e o consumo numa esfera e o sujeito e a Nação em outra esfera. Nesta decomposição<br />
Touraine explora a noção de subjetividade (desejo, individualidade, identidade, alteridade) e afirma a importância<br />
da democracia. Por fim, valoriza o conceito de sujeito identificando-o neste contexto como ator social que inaugura<br />
outro paradigma social que é denominado por ele como sociedade cultural.
118<br />
A dimensão histórica em “Mujeres Presas”<br />
social). Desta forma, o presente texto busca comunicar o valor histórico da expressão<br />
artística de “Mujeres Presas”, elaborada por Lestido.<br />
Apontamentos sobre o entendimento de André Rouillé sobre<br />
fotografia-documento e fotografia-expressão<br />
Para iniciar-se o estudo sobre o ensaio fotográfico de Lestido, tem-se em<br />
vista refletir sobre a crise da fotografia conforme comunicado na obra A fotografia:<br />
entre documento e arte. 7 Neste livro, o pesquisador André Rouillé procura<br />
esclarecer que a fotografia-documento baseia-se na crença de que a fotografia é<br />
uma “marca” direta da realidade, e a fotografia-expressão assume caráter indireto<br />
para com a “realidade”.<br />
Do documento à expressão, consolidam-se os principais<br />
rejeitados da ideologia documental: a imagem, com suas formas<br />
e sua escrita; o autor, com sua subjetividade; e o Outro, enquanto<br />
dialogicamente no processo fotográfico.<br />
Essa passagem do documento à expressão se traduz em profundas<br />
mudanças nos procedimentos e nas produções fotográficas, bem<br />
como no critério de verdade, pois a verdade do documento não<br />
é a verdade da expressão. Historicamente, tal transição funciona<br />
quando a fotografia-documento começa a perder contato com o<br />
mundo que, no final do século XX, se tornou muito complexo<br />
para ela; mas, sobretudo, quando esse mesmo mundo é objeto<br />
de uma larga desconfiança, quando se começa a não acreditar<br />
mais nele. 8<br />
Para contextualizar as duas “práticas” fotográficas (fotografia-documento<br />
e fotografia-expressão), Rouillé comenta que o auge da fotografia-documento<br />
ocorreu em 1952 com o lançamento do álbum fotográfico de Henri Cartier-Bresson,<br />
contendo 126 fotografias tiradas ao longo dos últimos vinte anos. Esta obra pode ser<br />
considerada como uma das referências para o entendimento da fotografia-documento,<br />
uma vez que além de ser uma coleção fotográfica extensa, também contém o prefácio<br />
explicativo “O instante decisivo” 9 (1952) escrito pelo próprio fotógrafo.<br />
7 Rouillé (2009).<br />
8 Rouillé (2009, p. 19).<br />
9 Pierre Assouline (2008) explica na biografia de Cartier-Bresson que o título pretendido para o álbum fotográfico<br />
foi Imagens a la sauvette (Imagens furtivas). Porém, o título “O instante decisivo” do prefácio escrito por Cartier-<br />
Bresson e a epígrafe (“Não há nada nesse mundo que não tenha um instante decisivo”) apropriada das palavras do<br />
cardeal de Kerzt motivaram o editor responsável pela publicação nos EUA a solicitar ao fotógrafo a mudança do<br />
título deste álbum fotográfico para Decisive Moment.
119<br />
Patricia Camera<br />
Neste pequeno texto, Cartier-Brresson analisa a fotografia através de seu<br />
pensamento a respeito da reportagem, do tema, da técnica e dos clientes.<br />
Nossa tarefa consiste em observar a realidade com a ajuda deste<br />
bloco de esboços que é a nossa máquina fotográfica, e fixá-la,<br />
mas sem manipulá-la nem durante a tomada, nem no laboratório<br />
através de pequenas manobras. 10<br />
[...] Um tema não consiste numa coleção de fatos, pois os<br />
fatos em si não têm interesse algum. O importante é escolher<br />
entre eles; captar o fato verdadeiro em relação à realidade mais<br />
profunda. Em fotografia a menor coisa pode ser um grande tema,<br />
e o pequeno detalhe humano pode se tornar um leitmotiv.... 11<br />
[...] Uma fotografia é para mim o reconhecimento simultâneo,<br />
numa fração de segundo, por um lado, da significação de um<br />
fato, e por outro, da organização rigorosa das formas percebidas<br />
visualmente que exprimem o fato. 12<br />
Nota-se, nas declarações de Cartier-Bresson, que sua práxis fotográfica<br />
se dá na valorização do instante fotográfico e como consequência na produção da<br />
fotografia única, ou seja, parece que a intenção do fotógrafo era montar ao longo<br />
de sua trajetória de vida uma “coleção de instantes” da realidade. Disto, pode-se<br />
observar que o culto à “magia” da tecnologia fotográfica está presente na poética<br />
fotográfica de Cartier-Bresson. Em sua biografia, Assouline menciona: “Imagens a<br />
la sauvette, catálogos desses instantes de eternidade, não diminui em nada o mistério<br />
de sua criação”. 13<br />
Com essas considerações, interessa recordar que desde a invenção da<br />
fotografia (em torno de 1835) até meados da década de 1980 – quando do lançamento<br />
do livro A Câmara Clara, 14 de Roland Barthes – a orientação prática e filosófica<br />
esteve fortemente atrelada à especificidade documental.<br />
Essa interpretação sobre a possibilidade de reproduzir de forma automática<br />
o mundo visível fez com que algumas pessoas entendessem que o operador humano<br />
tivesse somente um papel administrativo. 15 Sobre essa questão, Fabris lembra que<br />
no discurso feito por Talbot, no livro The pencil of nature, 16 ele tenta “demonstrar<br />
o aspecto científico do calótipo, depreciando o papel da mão e a inteligência do<br />
fotógrafo em favor da objetividade da máquina”. 17 Depois de mais de um século e<br />
10 Cartier-Bresson (2004, p. 19).<br />
11 Cartier-Bresson (1952) apud ASSOULINE (2008, p. 211).<br />
12 Cartier-Bresson (2004, p. 29).<br />
13 Assouline (2008, p. 211).<br />
14 Barthes (1984).<br />
15 Machado (1984).<br />
16 Primeiro livro ilustrado com fotografias (entre 1844 e 1846).<br />
17 FABRIS (1998, p. 179).
120<br />
A dimensão histórica em “Mujeres Presas”<br />
meio Barthes escreve em 1980 o livro A Câmara Clara, 18 defendendo a mesma linha<br />
de pensamento, isto é, que o referente adere à imagem.<br />
Em oposição à defesa da fotografia como espelho do real, Machado 19<br />
comenta:<br />
A realidade não é essa coisa que nos é dada pronta e predestinada,<br />
impressa de forma imutável nos objetos do mundo: é uma<br />
verdade que advém e como tal precisa ser intuída, analisada e<br />
produzida. Nós seríamos incapazes de registrar uma realidade se<br />
não pudéssemos ao mesmo tempo criá-la, destruí-la, deformá-la,<br />
modificá-la: a ação humana é ativa e por isso as nossas formas<br />
tomam reflexo e refração. A fotografia, portanto, não pode ser<br />
o registro puro e simples de uma imanência do objeto: como<br />
produto humano, ela cria também com esses dados luminosos<br />
uma realidade que não existe fora dela, nem antes dela, mas<br />
precisamente nela.<br />
Apesar de alguns pensadores, artistas e fotógrafos se posicionarem contrários<br />
à defesa da fotografia como “espelho da realidade”, 20 a técnica fotográfica parece<br />
ter solapado qualquer operação do fotógrafo, como que este fosse somente capaz<br />
de apertar o botão. Conforme mencionado, tal pensamento tramitou em diferentes<br />
esferas da sociedade, como, por exemplo, na mensagem publicitária da Kodak:<br />
“Você aperta o botão e nós fazemos o resto”, 21 quando do lançamento em 1888 da<br />
câmera fotográfica com filme de rolo.<br />
Considerando as citações anteriores, pode-se compreender que o click<br />
fotográfico afirmou a fotografia como o resultado de um simples ato que<br />
“registra” o “isso foi”. Sendo assim, a fotografia esteve inicialmente associada<br />
mais à ideia de captação ou recorte da realidade do que à noção de representação<br />
ou construção do real.<br />
Atualmente, interessa ainda à indústria, aos meios de comunicação e ao<br />
mercado das artes a discussão sobre diversas abordagens relativas ao automatismo<br />
fotográfico e à condição de verossimilhança ou desconstrução do referente fotográfico.<br />
Nessa busca, o universo artístico e da comunicação concentraram-se em compreender<br />
a gênese automática da técnica fotográfica, levantando questões relativas à atividade<br />
humana (subjetividade) e à “veracidade” da mensagem fotográfica.<br />
18 Barthes (1984).<br />
19 Machado (1984, p. 40).<br />
20 No livro O ato fotográfico (DUBOIS, 1999), o pesquisador aborda essa problemática citando diferentes<br />
pensadores da área com principal atenção à análise dos conceitos “ícone”, “índice” e “símbolo” junto ao<br />
entendimento do ato fotográfico.<br />
21 “You press the button, we do the rest” (FRIZOT, 1998).
121<br />
Patricia Camera<br />
Conforme mencionado no livro, A Câmara Clara, 22 Roland Barthes sustenta<br />
a defesa da aderência do referente na fotografia, tomando como base a percepção<br />
sensível do espectador e do fotografado: “Eu tinha à minha disposição apenas duas<br />
experiências: a do sujeito olhado e a do sujeito que olha”. 23<br />
Apesar dos esforços de Barthes em compreender o noema “isso foi” –<br />
fortalecendo o entendimento do estado indiciário da fotografia – seu estudo é frágil<br />
por apresentar o fotógrafo como funcionário da câmera fotográfica: 24 “[...] o órgão<br />
do fotógrafo não é o olho (ele me terrifica), é o dedo o que está ligado ao disparador<br />
da objetiva, ao deslizar metálico das placas (quando a máquina ainda as tem)”. 25 No<br />
entanto, Barthes foi sensível por trazer à tona a discussão da aderência do referente<br />
fotográfico num momento em que a sociedade conferia o status de verdade à fotografia<br />
no contexto do mundo cada vez mais atrelado às tecnologias da informação.<br />
Com respeito à problemática sobre o entendimento da “fotografia-verdade”,<br />
Rouillé menciona na obra citada 26 que os fotógrafos Robert Doisneau e Henri Cartier-<br />
Bresson são referências na história da fotografia quando o conceito de veracidade<br />
fotográfica é analisado a partir dos anos de 1930.<br />
No outro extremo, Rouillé apresenta e discute o ensaio “The Americans”, 27<br />
do suíço Robert Frank, para compreender o rompimento do paradigma da<br />
fotografia-documento.<br />
Com Robert Frank, o “eu” ganha em humanidade e em<br />
subjetividade. É um “eu” fotográfico disposto de maneira<br />
plenamente assumida, com uma vivência pessoal, sentimental,<br />
até mesmo íntima. Em 1983, Frank escreve: “Gostaria de fazer<br />
um filme que misturasse minha vida, naquilo que ela tem de<br />
privado, e meu trabalho, que é público, por definição; um filme<br />
que mostrasse como os dois polos dessa dicotomia se juntam, se<br />
entrecruzam, se contradizem, lutam um contra o outro, visto que<br />
se completam, segundo os momentos”. O “eu” de Frank parece<br />
o estado ideal de total liberdade, quase de imponderabilidade.<br />
Livre em seus movimentos e em suas inspirações, sem nenhuma<br />
imposição, nem econômica nem social nem, evidentemente,<br />
estética. Essa liberdade abre a imagem para todas as<br />
possibilidades, neste caso, para o aparecimento de um novo<br />
22 Barthes (1984).<br />
23 Barthes (1984, p. 21-22).<br />
24 No livro Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia, Flusser (2002) discute a<br />
práxis fotográfica defendendo que o fotógrafo não deve estar em função do equipamento. Ou seja, o fotógrafo<br />
deve se posicionar de forma autônoma frente às técnicas e aos parâmetros tecnológicos existentes na estrutura<br />
do equipamento.<br />
25 Barthes (1984, p. 30).<br />
26 Rouillé (2009).<br />
27 Este trabalho fotográfico foi desenvolvido entre 1955-1956 ao longo das estradas dos EUA com auxílio da John<br />
Simon Guggenheim Memorial Foundation.
122<br />
A dimensão histórica em “Mujeres Presas”<br />
regime de enunciados fotográficos, exatamente os da fotografiaexpressão.<br />
Mas tal liberdade priva, simultaneamente, a imagem<br />
de sua ancoragem no real e de sua amarração à representação,<br />
que garantiam sua unidade e sua uniformidade internas. Frank<br />
não mostra, ele se mostra. O sujeito, o autor prevalecem, a partir<br />
daí, sobre o real. Este advento intempestivo da subjetividade<br />
embute o da fotografia-expressão nos escombros dos principais<br />
paradigmas da fotografia-documento. 28<br />
[...] Se as fotos de Frank rompem com a estética documental,<br />
é porque elas não representam (alguma coisa que foi), mas<br />
apresentam (alguma coisa que aconteceu); é porque não remetem<br />
às coisas, mas aos acontecimentos; é porque eles quebram a<br />
lógica binária da aderência direta com as coisas pela afirmação<br />
de uma individualidade. 29<br />
Esta percepção sobre a dimensão subjetiva na práxis de Robert Frank<br />
interessa para localizar os projetos pessoais da fotógrafa Lestido: “Hospital Infanto<br />
Juvenil” (1986-1989), “Casa Cuna”, de La Plata (1989), “Mujeres presas” (1991-<br />
1992), “Madres adolescentes” (1989-1990), “Madres e hijas” (1995-1999).<br />
Especificamente no livro Mujeres Presas, 30 a fotógrafa relata no prólogo<br />
desta obra sobre um breve período de sua vida:<br />
Construí asi mi camino y mi trabajo porque nadie me regalo<br />
nada, más allá de que hubo muchos que me ayudaron. Pero, por<br />
outro lado, mi origen (la nena más pobre de uma escuela pobre<br />
de Mataderos, la infancia en uma pieza con una madre sensible<br />
pero iracunda, padre preso), todo eso me hace a veces tambalear.<br />
Esta experiência subjetiva de Lestido frente ao mundo social e a constante<br />
investigação em seus ensaios sobre a condição da mulher na sociedade contemporânea<br />
permitem avançar o presente estudo sobre o ensaio “Mujeres Presas” com foco no<br />
sujeito como questão.<br />
Desta forma, deve-se mencionar que este estudo entende que as fotografias<br />
que compõem o catálogo Mujeres Presas inserem-se no campo da fotografiaexpressão.<br />
Isto significa que o posicionamento de Lestido frente ao seu trabalho<br />
fotográfico localiza o “eu” (sua subjetividade) entre o referente e a imagem. Em<br />
outras palavras, as fotografias elaboradas por Lestido são entendidas como uma<br />
“representação” social da condição de um grupo específico de mulheres que foram<br />
28 Rouillé (2009, p. 172).<br />
29 Rouillé (2009, p. 173).<br />
30 Lestido (2007, p. 1).
123<br />
Patricia Camera<br />
fotografadas segundo o “olhar” de Lestido. Contudo, esta condição subjetiva não<br />
impossibilita reconhecer estas fotografias como meio de investigação histórica.<br />
Sendo assim, deve-se não apenas valorizar as imagens como fenômenos positivos,<br />
mas também como uma fonte não trivial, por apontar, através do elogio à forma, da<br />
valorização à individualidade do fotógrafo e da prática do dialogismo entre fotógrafa<br />
e fotografadas, informações sobre a escrita, o autor e o outro num sistema visual que<br />
traz à tona questões sobre o sujeito (mulher) na sociedade cultural.<br />
O ator social: razão e subjetividade<br />
Partindo do princípio de que as fotografias presentes no álbum Mujeres<br />
presas são resultados de uma práxis atual que valoriza o dialogismo entre fotógrafa<br />
e fotografadas e que nesta prática trabalha-se tanto a subjetividade de Lestido como<br />
a self-identity das presidiárias, tais especificidades podem então ser relacionadas ao<br />
estudo de Alain Touraine com principal atenção às obras Crítica da Modernidade 31 e<br />
Um novo paradigma para Compreender o Mundo de Hoje. 32<br />
No primeiro livro mencionado, interessa destacar o questionamento de<br />
Touraine sobre o projeto e o desenvolvimento da ideia de modernidade, lembrando<br />
que ambos repousaram fundamentalmente na defesa da razão, uma vez que é no<br />
entendimento da própria modernidade que se instaurou o desejo de associar a ação<br />
humana com a ordem do mundo em prol do devir. Ainda com referência nesta obra,<br />
deseja-se apresentar a discussão de Touriane sobre a negação do devir frente à<br />
existência do Ser contemporâneo (antimoderno) que busca em sua subjetividade e<br />
reflexividade ações e posicionamentos que contribuam para uma vida mais estável<br />
e equilibrada, próximo ao desejo inicial da modernidade clássica (baseado no<br />
pensamento iluminista).<br />
Do segundo livro, pretende-se apontar algumas reflexões sobre sujeito<br />
e identidade para apresentar o novo paradigma das representações sociais,<br />
particularmente atreladas à perspectiva do desejo e da ação (subjetiva e coletiva) do<br />
sujeito social.<br />
Desta forma, as problemáticas levantadas por Touraine sobre sujeito,<br />
razão e identidade presentes no contexto da sociedade atual, denominada por ele<br />
como sociedade pós-social ou cultural, servirão como fundamento teórico para<br />
compreender sobre a visualidade do ensaio executado por Lestido.<br />
Vale ressaltar que as duas obras de Alain Touraine são complementares. Isto<br />
é, em Crítica da Modernidade, 33 o ator social aparece junto à proposta da redefinição<br />
31 Touraine (2008).<br />
32 Touraine (2007).<br />
33 Touraine (2008).
124<br />
A dimensão histórica em “Mujeres Presas”<br />
da modernidade levando em consideração o desejo do sujeito no contexto da<br />
democracia do mundo globalizado. No livro seguinte, Um novo paradigma, 34 o<br />
sociólogo comunica que, na atualidade, observa-se o enfraquecimento do paradigma<br />
econômico e social, defendendo que no presente momento a sociedade passa pela<br />
transformação de outro paradigma – denominado paradigma cultural – onde o sujeito<br />
busca os direitos coletivos e individuais, considerando fundamentalmente a relação<br />
de si consigo mesmo (self-identity). Isto é, a última obra dá continuidade às discussões<br />
presentes na primeira, com a intenção de destacar a mudança de paradigma. Com<br />
isso, Touraine tenta entender essa corrente transformação da decomposição dos<br />
quadros sociais a partir da definição do que descreve a sociedade na atualidade.<br />
Em Crítica da Modernidade, 35 Touraine analisa o projeto da modernidade<br />
e seus resultados para apontar alguns equívocos que ocorreram ao longo de seu<br />
desenvolvimento. Compreende que este projeto “mal orientado” resultou em<br />
primeira instância na negação do sujeito, mas que, segundo sua análise, refletiu na<br />
atualidade para a emergência do ator social. Em Um novo paradigma, 36 Touraine<br />
explica que este ator faz parte do processo de transformação social. Lembra que<br />
a história da sociedade foi descrita e analisada em termos políticos (sociedade<br />
política), depois segundo a organização econômica e social (sociedade social)<br />
e, atualmente, é pensada sobre sua transformação com foco no sujeito reflexivo,<br />
denominando-a de sociedade cultural.<br />
Sendo esta teoria complexa e abrangente, optou-se por compreendê-la a<br />
partir da discussão da razão e suas relações com o sujeito, tendo como motivação<br />
inicial a citação de Touraine: “A modernidade não repousa sobre um princípio único<br />
e menos ainda sobre a simples distribuição dos obstáculos ao reinado da razão; ela é<br />
feita do diálogo entre Razão e Sujeito. Sem Razão, o Sujeito se fecha na obsessão da<br />
sua identidade; sem o Sujeito, a Razão se torna o instrumento do poder”. 37<br />
A última parte desta expressão “[...] sem o Sujeito, a Razão se torna<br />
instrumento do poder” (idem) é singular, pois nos faz refletir sobre dois aspectos: 1)<br />
o entendimento equivocado da razão – quando exercida como razão instrumental;<br />
2) a interpretação de alguns intelectuais 38 sobre a contribuição da razão instrumental<br />
para a “morte” do sujeito na sociedade.<br />
Touraine contextualiza esta problemática escrevendo:<br />
34 Touraine (2007).<br />
35 Touraine (2008).<br />
36 Touraine (2008, p. 119).<br />
37 Touraine (2008, p. 14).<br />
38 Principal exemplo: estudiosos que compõem a Escola de Frankfurt.<br />
os intelectuais tinham animado o movimento de racionalização,<br />
associando aos progressos da ciência a crítica das instituições e
125<br />
Patricia Camera<br />
das crenças passadas. [...] Após séculos de modernismo, porém,<br />
as relações entre os intelectuais e a história desarranjaram-se no<br />
século XX. 39<br />
O pesquisador observa que o pensamento moderno ocidental privilegiou a<br />
racionalidade instrumental, passando a produção e o consumo de massa a compor a<br />
“sociedade programada” pela indústria cultural (educação, saúde, entretenimento).<br />
Isto privilegiou o desenvolvimento da associação entre empresa e consumo, fortalecida<br />
pela lógica da economia global que se sobrepôs ao próprio Estado, culminando para<br />
o desfalecimento do sujeito 40 e da Nação. Tal descompasso é descrito por Touraine<br />
em Crítica da Modernidade 41 como explosão ou decomposição da modernidade.<br />
Touraine menciona nesta mesma obra sobre a tentativa que houve na história<br />
em superar o regime moderno em prol da igualdade. Porém, alerta que tal projeto<br />
se mostrou inadequado quando da emergência de regimes comunistas ou totalitários<br />
que acabaram por anular a individualidade do sujeito.<br />
Por muito tempo lutamos contra os antigos regimes e suas<br />
heranças, mas no século XX lutamos contra os novos regimes,<br />
contra a nova sociedade e o novo homem que quiseram criar<br />
tantos regimes autoritários, que fazem ouvir os apelos dramáticos<br />
à libertação, fazem revoluções dirigidas contra as revoluções<br />
e os regimes que delas nasceram. [...] agora procuramos nos<br />
desprender da multidão, da poluição e da propaganda. 42<br />
Com essas duas citações, observa-se que das posturas intelectuais referentes<br />
à “morte” do sujeito, Touraine não compartilha integralmente porque o objeto central<br />
de sua discussão é o sujeito. Sendo assim, não poderia concordar nem com a “morte”<br />
deste, como também com o conceito de “humanidade” – quando pensado a partir da<br />
ideia de homogeneização presente na clássica teoria desenvolvida por Comte na obra<br />
O sistema de política positiva (1851-1854).<br />
Sendo o sujeito o foco central da pesquisa, Touraine parte para problematizálo<br />
levando em conta uma série de análises sobre o Ser. Para isso, considera<br />
diversas situações históricas, sociais e econômicas para entender o sujeito de modo<br />
simultâneo às mudanças filosóficas que orientam a defesa ou não deste sujeito<br />
como ator social. Desloca o clássico objeto de estudo das ciências sociais, ou seja,<br />
39 Touraine (2008, p. 159).<br />
40 Touraine entende que este contexto contribuiu para o fortalecimento do sujeito (self-identity). Assim, Touraine vai<br />
ao encontro de Anthony Giddens (2002) quando estuda sobre a necessidade e a busca do sujeito em refletir sobre sua<br />
condição pessoal (TOURAINE, 2007, p. 119-120).<br />
41 Touraine (2008, p. 99)<br />
42 Touraine (2008, p. 99-100).
126<br />
A dimensão histórica em “Mujeres Presas”<br />
a sociedade, 43 para centrar-se no estudo do ser “personalizado” e suas ações, tendo<br />
como principal respaldo a ideia inicial da modernidade clássica pautada no sujeito<br />
e no pensamento racional.<br />
Para defender sua tese sobre o sujeito como ator social, Touraine entende que<br />
o ser humano busca seus desejos pessoais. Isto é, o indivíduo projeta de modo (in)<br />
consciente a definição e a conquista de seus diferentes referenciais culturais, que são<br />
subjetivos, pessoais e cambiáveis.<br />
A fundamentação de Touraine parte da história do pensamento, selecionando<br />
algumas concepções e interpretações sobre o Ser na filosofia moderna, com principal<br />
atenção às teorias de Nietzsche e Freud. A partir daí, Touraine tenta compreender a<br />
dualidade razão-sujeito considerando inicialmente a afirmação “Penso, logo existo”<br />
feita por Descartes.<br />
[...] O Eu do “Eu penso” não coincidia, no Cogito, com o Eu<br />
do seu “Eu sou”. A formação do sujeito não é somente um<br />
distanciamento do indivíduo e uma identificação com o grupo e<br />
com as categorias da ação racional; ela está ligada a um desejo<br />
de si ao mesmo tempo que a um desejo do outro.<br />
O que nós aprendemos de Freud é que a desconfiança com<br />
respeito à “vida interior” repleta de identificações alienantes<br />
e de modelos sociais inculcados, que nos obriga a procurar<br />
o Eu fora do Ego, na recusa da correspondência entre o<br />
indivíduo e a sociedade, a ligar sua defesa à revolta contra a<br />
ordem estabelecida. 44<br />
Isto é, o pensamento iluminista de Descartes liberta o sujeito da relação<br />
subordinada ao Deus, tornando-o sujeito consciente. Mas esta análise não é suficiente<br />
para Touraine. Sendo assim, desmonta esta dualidade com base nas teorias de Freud.<br />
Touraine entende que a razão extrapola do inconsciente o desejo de liberdade.<br />
A partir desta observação, acrescenta em sua análise o sentimento irracional,<br />
associando-o à noção de sujeito como ator social. Apresenta esta especificidade<br />
junto à figura de Dionísio.<br />
Nós matamos Deus e nossa culpa alimenta nossa sede de<br />
submissão e de redenção. Então é preciso ir além desse<br />
assassinato, além do bem e do mal, encontrar ou criar uma<br />
experiência natural liberada de todos os ascetismos, de todas as<br />
alienações, graças a um esforço que é ao mesmo tempo desejo<br />
43 Comte procura a unidade da história humana numa sociedade científica e industrial. Acredita que “só há um tipo de<br />
sociedade absolutamente válido, toda a humanidade deverá, segundo sua filosofia, chegar a esse tipo de sociedade”<br />
(ARON, 2000, p. 65).<br />
44 Touraine (2008, p. 132).
127<br />
Patricia Camera<br />
e razão, dominação e controle de si, que é, ao contrário de uma<br />
interiorização, uma libertação de si, um retorno a Dioniso. 45<br />
Para completar, Touraine observa: “Nietzsche é, ao mesmo tempo, aquele<br />
que denunciou primeiro a ilusão modernista, a ideia de correspondência entre o<br />
desenvolvimento pessoal e a integração social, e aquele que empenhou uma parte<br />
do pensamento europeu em uma nostalgia do Ser que frequentemente conduziu à<br />
exaltação de um ser nacional e cultural particular. 46 Adiante introduz as teorias de<br />
Freud sobre a intensa relação da formação do Eu referindo-se ao Id, Superego e<br />
Ego, informando:<br />
O que nós aprendemos de Freud é que a desconfiança com<br />
respeito à “vida interior” repleta de identificações alienantes<br />
e de modelos sociais inculcados, que nos obriga a procurar o<br />
Eu fora do Ego, na recusa da correspondência entre o indivíduo<br />
e a sociedade, a ligar sua defesa à revolta contra a ordem<br />
estabelecida. 47<br />
No entanto, para Touraine, a discussão sobre sujeito e razão é tão complexa<br />
a ponto de escrever em Um novo paradigma: 48 “não situo minha reflexão no<br />
universo da identidade, e esta palavra desperta a mim mais medo do que atração”.<br />
Então, esforça-se para analisar o que seria este sujeito sem nomear qualquer<br />
“identidade fixa”:<br />
45 Touraine (2008, p. 119).<br />
46 Touraine (2008, p. 123)<br />
47 Touraine (2008, p. 132).<br />
48 Touraine (2007, p. 120-121).<br />
49 Touraine (2007, p. 120-121).<br />
[...] sou levado a dizer que o sujeito é a convicção que anima um<br />
movimento social e a referência às instituições que protegem as<br />
liberdades. [...] eu defino o sujeito em sua resistência ao mundo<br />
impessoal do consumo, ou ao da violência e da guerra.<br />
[...] O sujeito é um chamamento a si mesmo, uma vontade<br />
de retorno a si mesmo, em sentido contrário à vida ordinária.<br />
Para mim, a ideia de sujeito evoca uma luta social como a de<br />
consciência de classe ou a de nação em sociedades anteriores,<br />
mas com um conteúdo diferente, privado de toda exteriorização,<br />
voltado totalmente para si mesmo – embora permanecendo<br />
profundamente conflituoso. É por isso que as primeiras imagens<br />
que me vieram à mente para ilustrar a ideia de sujeito foram as<br />
de resistentes, de combates pela liberdade. 49
128<br />
A dimensão histórica em “Mujeres Presas”<br />
A partir destes trechos e das colocações apresentadas até o presente<br />
momento deste trabalho, observa-se que Touraine tem postura crítica e interpretação<br />
otimista. Entende que desta tensão entre sujeito, razão e sociedade veio o declínio<br />
da modernidade tradicional (ideal do pensamento iluminista). Pressupõe que a<br />
democracia social não se limita às garantias institucionais e neste sentido a própria<br />
democracia é também o lócus das lutas dos sujeitos sociais.<br />
Assim, segundo a teoria de Touraine, a importância da democracia pode ser<br />
compreendida quando explica a decomposição da modernidade e quando mostra suas<br />
associações. Isto é, neste contexto contemporâneo, tem-se por um lado a empresa e<br />
o consumo e por outro lado o sujeito e a Nação. Sendo que o primeiro grupo está<br />
ligado principalmente ao racionalismo instrumental que tenta organizar a economia<br />
global, sobrepondo-se ao sujeito e ao próprio Estado. O segundo grupo está focado<br />
no Ser, ou seja, nos atores sociais que tentam obter espaços que o valorizem a partir<br />
de seus desejos, de suas subjetividades internas e coletivas.<br />
Então, é no conflito entre as duas esferas mencionadas anteriormente que<br />
Touraine acredita que o sujeito se impõe. Com base nos estudos de Freud e Nietzsche,<br />
este pesquisador entende que a atitude do sujeito reflexivo se dá na procura do<br />
eterno retorno do Ser, representado pelas figuras mitológicas gregas Apolo (razão)<br />
e Dionísio (sentimento/emoção), somada à vontade de “poder”, representado pela<br />
figura do “super-homem”. Segundo estas concepções, o retorno ao Ser está associado<br />
à busca da vida equilibrada e estável, negando a ideia moderna do devir.<br />
De forma geral, a proposta de Touraine nos faz entender que a busca do<br />
Eu através da constante (des)combinação entre a tensão interna (desejo) versus<br />
tensão externa (mundo repressivo) é uma das condições que faz emergir no contexto<br />
democrático o sujeito como ator social. Assim, defende-se no presente trabalho que o<br />
sujeito soma o desejo (íntimo e de consumo) com esta subjetivação (ação reflexiva de<br />
self-identity), desestabilizando ou alterando a ordem de produção de bens materiais e<br />
culturais; exigindo a mudança dos direitos sociais e políticos em prol da alteridade.<br />
Neste caso, pode-se destacar a organização destes sujeitos para uma<br />
possível sustentabilidade dos diferentes grupos culturais montados sob alicerces<br />
particulares (minorias, etnia, raça etc.) voltados mais à defesa de seus princípios<br />
culturais (língua, religião, território, gênero, ecologia) do que a princípios gerais<br />
frequentemente relacionados à lógica que rege a política do Estado e principalmente<br />
a economia globalizante.<br />
Nesta estrutura fragmentada, tem-se a cultura da informação que junto às<br />
novas tecnologias desterritorializou-se. Por exemplo, as notícias e as imagens sobre<br />
os protestos contra os resultados das eleições presidenciais no Irã em junho de 2009<br />
foram censuradas pelo governo local. Porém, algumas pessoas que presenciaram as
129<br />
Patricia Camera<br />
manifestações conseguiram fotografá-las e filmá-las. Alguns dos resultados foram<br />
veiculados no ciberespaço.<br />
De forma mais local, outras atitudes vêm surgindo recentemente. Dentre elas<br />
estão os eventos internacionais (Bienal de Artes de Veneza, Documenta de Kassel<br />
etc.) de artes que expõem os diferentes posicionamentos de artistas com relação a<br />
realidade, imaginário, busca de alteridade etc.<br />
No caso do Brasil, a Bienal de Artes de São Paulo e a Bienal de Artes<br />
Visuais do Mercosul (BAVM) são destaques. Especificamente, a Bienal de Artes<br />
Visuais do Mercosul iniciou sua atividade em 1997, atrelada intensamente à<br />
questão mencionada neste trabalho: busca da alteridade do sujeito, representado<br />
na BAVM pelas nações que compõem o Mercosul. Nesta perspectiva o ensaio<br />
“Mujeres presas”, exibido na II Bienal de Artes Visuais (Porto Alegre, 1999),<br />
destaca a problemática discutida por Touraine.<br />
Sobre a reflexão pessoal em “Mujeres presas”<br />
A produção fotográfica de Lestido é um trabalho contemporâneo que se<br />
fundamenta na expressão pessoal (subjetiva) da fotógrafa e das fotografadas. Nos<br />
ensaios “Madres Adolescentes” (1989-1990), “Mujeres Presas” (1991-1993) e<br />
“Madres e Hijas” (1995-1999), percebe-se que a temática está centrada no afeto/<br />
desafeto entre mães e filhos, vivenciado num momento histórico denominado<br />
particularmente na teoria de Alain Touraine como sociedade cultural.<br />
No presente trabalho, interessa comunicar que as fotografias realizadas por<br />
Lestido problematizam o sujeito, sobretudo sua condição de cidadão compreendida<br />
junto às divergências subjetivas encontradas na interioridade (self-identity) da mulher<br />
e às problemáticas coletivas de grupos específicos do gênero feminino.<br />
Desta forma, o trabalho de Lestido é antes de tudo uma narrativa visual<br />
sobre a passagem de uma sociedade que se compreendia anteriormente em termos<br />
socioeconômicos, mas que na atualidade percebe-se como uma sociedade que organiza<br />
suas representações e ações voltadas à questão cultural. 50 O valor histórico de sua<br />
expressão artística sustenta-se na reflexão do sujeito e sobre o sujeito que vivencia a<br />
decomposição dos quadros sociais (empresa e consumo versus sujeito e Nação).<br />
No caso específico do ensaio fotográfico “Mujeres Presas” a visualidade<br />
da self-identity é singular na poética fotográfica por mostrar a “individualização”<br />
do sujeito em situação extrema. Isto porque a locação das cenas fotográficas se dá<br />
unicamente na prisão: sozinhas nas celas ou isoladas em algum setor do presídio.<br />
50 Touraine (2007, p. 215) explica: “[...] nossa experiência já não é mais transtornada pela sociedade de massa apenas<br />
na ordem de produção, mas também na ordem do consumo e da comunicação”.
130<br />
A dimensão histórica em “Mujeres Presas”<br />
Essa visualidade do retrato da mulher isolada exibe pontualmente a<br />
apresentação do ser “personificado” por duas formas dominantes: corpo e lócus. No<br />
corpo das presidiárias encontram-se declarações inscritas no braço como “André te<br />
amo”; ou no próprio braço de uma das filhas fotografadas: “Cláudio” (provavelmente<br />
o nome de seu pai). Nas celas veem-se alguns elementos pessoais que integram o<br />
ambiente da cena: história em quadrinhos, pôster e carteiras de cigarros coladas nas<br />
paredes, retrato de família que preenchem o vazio da escrivaninha.<br />
Quando se analisa a práxis fotográfica de Lestido, deve-se observar que se<br />
deu com experiências próximas às presidiárias pelo fato da fotógrafa visitá-las uma<br />
vez por semana na prisão, ao longo de um ano. Esta metodologia fez Lestido perceber<br />
que a situação de isolamento das mulheres excedia o feito de algumas das mães<br />
estarem juntas com seus filhos. Isso lhe fez indagar: “Quem é filho de quem?”. 51<br />
Esta aproximação de Lestido junto às detentas também tem seu valor por<br />
ter possibilitado o desenvolvimento das cenas posadas ou em movimento que foram<br />
tiradas no cotidiano e até mesmo em momentos especiais: retrato do casamento de<br />
uma das presidiárias ocorrido no pátio central do presídio e retrato de uma presidiária<br />
saindo abraçada junto a duas mulheres e uma criança, declarando: “Me siento tan<br />
perdida como mi primer dia en cana”. 52<br />
Este sentimento levanta a seguinte questão: Esta desorientação pessoal seria<br />
parecida à vivida por Lestido e sua mãe quando da ausência de seu pai durante a<br />
infância por este ter vivido numa prisão? Provavelmente esta situação familiar tenha<br />
contribuído para o desenvolvimento dos diferentes ensaios de Lestido que tem como<br />
objeto central expor a mulher como questão pessoal e social.<br />
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