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Fotografia, História E Cultura Visual - pucrs

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FOTOGRAFIA, HISTÓRIA e CULTURA VISUAL:<br />

PESQUISAS RECENTES


Chanceler<br />

Dom Dadeus Grings<br />

Reitor<br />

Joaquim Clotet<br />

Vice-Reitor<br />

Evilázio Teixeira<br />

Conselho Editorial<br />

Ana Maria Lisboa de Mello<br />

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EDIPUCRS<br />

Jerônimo Carlos Santos Braga – Diretor<br />

Jorge Campos da Costa – Editor-Chefe


CAROLINA ETCHEVERRY<br />

CHARLES MONTEIRO (ORG.)<br />

MARIA CLÁUDIA QUINTO<br />

PATRICIA CAMERA<br />

RODRIGO DE SOUZA MASSIA<br />

FOTOGRAFIA, HISTÓRIA e CULTURA VISUAL:<br />

PESQUISAS RECENTES<br />

Série Mundo Contemporâneo 2<br />

Porto Alegre, 2012


© EDIPUCRS, 2012<br />

– <strong>Fotografia</strong> e Criação: Patricia Camera<br />

– Diagramação: Rodrigo Valls<br />

Fernanda Lisboa<br />

Rodrigo Valls<br />

F761 <strong>Fotografia</strong>, história e cultura visual: pesquisas recentes<br />

[recurso eletrônico] / Charles Monteiro (Org.). – Dados<br />

eletrônicos. – Porto Alegre : EDIPUCRS, 2012.<br />

132 p. - (Série Mundo Contemporâneo)<br />

ISBN 978-85-397-0154-4<br />

Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader<br />

Modo de Acesso: <br />

1. <strong>Fotografia</strong> - <strong>História</strong>. 2. <strong>Cultura</strong> <strong>Visual</strong>. 3. <strong>Fotografia</strong> - Brasil . 4. Antropologia<br />

<strong>Cultura</strong>l. I. Monteiro, Charles.<br />

CDD 770.981<br />

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos,<br />

fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra<br />

em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos<br />

autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos, do Código Penal), com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca e apreensão e indenizações diversas<br />

(arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).


SUMÁRIO<br />

APRESENTAÇÃO ....................................................................................06<br />

Ana Maria Mauad<br />

PARTE I – FOTOGRAFIA, HISTÓRIA E IMPRENSA<br />

Capítulo 1 - Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950: a elaboração<br />

de um novo padrão de visualidade urbana nas fotorreportagens da<br />

Revista do Globo .........................................................................................09<br />

Charles Monteiro<br />

Capítulo 2 - A técnica de João Alberto Fonseca da Silva e a arte de<br />

Sioma Breitman na fotografia porto-alegrense dos anos 1950 ......50<br />

Rodrigo Massia<br />

Capítulo 3 - Por trás das lentes, uma história: a percepção de fotógrafos<br />

sobre as imagens da mídia impressa ......................................................72<br />

Maria Cláudia Quinto<br />

PARTE II: FOTOGRAFIA, HISTÓRIA E ARTE<br />

Capítulo 4 - <strong>História</strong> da fotografia moderna brasileira: experimentações<br />

de Geraldo de Barros e José Oiticica Filho (1950-1964) .....................90<br />

Carolina Etcheverry<br />

Capítulo 5 - A dimensão histórica em “Mujeres Presas”: aproximações<br />

teóricas entre fotografia-expressão e ator social ...................................117<br />

Patricia Camera


APRESENTAÇÃO<br />

Ana Maria Mauad<br />

Não é de hoje que os estudos históricos ultrapassaram os limites documentais<br />

de uma escritura feita exclusivamente com documentos verbais. A iniciativa de<br />

renovação da oficina da história, defendida pelos pais fundadores do Annales,<br />

que conclamaram seus pares a saírem de seus gabinetes e a aprenderem a “ler” a<br />

demarcação dos campos, ou os rituais da cavalaria medieval, foi amplificada pela<br />

revolução documental que a história serial dos anos 1970, implementaram com a<br />

introdução das séries, da quantificação e do dado numérico, como fundamentais<br />

para a produção do conhecimento histórico de natureza total. A história dos eventos<br />

foi substituída pela história das estruturas na longa duração, sendo a revolução<br />

documental, a expressão mais evidente de uma outra revolução, essa mais profunda,<br />

a da consciência historiográfica. 1<br />

Dos anos 1970 em diante, com as publicações-manifesto da Nova <strong>História</strong><br />

Francesa, novos objetos, novos problemas e abordagens começaram a fazer parte<br />

da reflexão historiográfica; na sequência as manifestações da micro-história<br />

italiana ajudaram a compor um panorama onde racionalidade histórica e expressão<br />

subjetiva se encontravam na escrita de uma outra história, chegando à definitiva<br />

renovação da historiografia brasileira com a consolidação dos programas de pósgraduação,<br />

uma nova revolução reorientou a delimitação das fronteiras da <strong>História</strong><br />

em rumo definitivo a uma perspectiva transdisciplinar. Assim, o corolário da<br />

revolução documental, da ampliação dos tipos de fontes e registros considerados<br />

aptos à produção do texto historiográfico orientou o pesquisador a buscar novas<br />

possibilidades de interpretação.<br />

Os estudos sobre cultura visual em história são um bom exemplo para<br />

considerarmos esse tipo de renovação. De fato, como esclarece o historiador<br />

Paulo Knauss, é possível se fazer uma história com imagens, que abandone uma<br />

epistemologia da prova, rumo à construção de uma leitura histórica que valorize<br />

o processo contínuo de produção de representações pelas sociedades humanas. 2<br />

A essa reflexão, um outro historiador, Ulpiano Meneses, agrega problemas<br />

e questões que nos levariam rumo a uma <strong>História</strong> <strong>Visual</strong>, que considera as<br />

imagens não como efeitos, ou sintomas, mas a própria visualidade como princípio<br />

cognitivo de caráter indefectivelmente histórico. 3 Aliás, em outro texto, uma<br />

1 Le Goff, Jacques. Documento/Monumento. Enciclopédia Einaudi, Vol.1, Lisboa: Imprensa nacional/Casa da<br />

Moeda, 1985.<br />

2<br />

Knauss, Paulo, O desafio de fazer <strong>História</strong> com imagens: arte e cultura visual, Art<strong>Cultura</strong>, Uberlândia, vol.8,<br />

n.12, jan-jun. 2006, p.97-115.<br />

3<br />

Meneses, Ulpiano T. Bezerra de. “Fontes visuais, cultura visual, história visual. Balanço provisório, propostas


7<br />

apresentação como esta, Meneses já afirmava serem as imagens fotográficas<br />

suportes de relações sociais. 4<br />

Neste sentido, os ensaios aqui reunidos pelas temáticas da história, fotografia<br />

e cultura visual prescrevem um itinerário no qual são apontados caminhos para a<br />

compreensão da fotografia como expressão estética, percepção subjetiva, produção<br />

autoral, leitura do mundo visível, tramas de ver e registrar visualmente a história,<br />

como processo e problema.<br />

Há muito venho trabalhando com fotografia, em aulas, textos e pesquisa. Esse<br />

trabalho me possibilitou encontros inesquecíveis com produtores e suas imagens,<br />

com sujeitos e suas lembranças, com trajetórias e seus projetos. 5 Ainda assim, me<br />

surpreendo com a infindável riqueza que a reflexão sobre a prática e a experiência<br />

fotográfica pode revelar. Boa leitura.<br />

cautelares”, Revista Brasileira de <strong>História</strong>, vol. 23, n° 45, julho de 2003.<br />

4 Meneses, Ulpiano T. Bezerra de. Apresentação. In: LiMa, Solange F.; CarvaLho, Vania Carneiro de. <strong>Fotografia</strong> e<br />

Cidade: da razão urbana à lógica do consumo, álbuns de São Paulo (1887-1950). São Paulo: Mercado das Letras, 1997.<br />

5 MAUAD, Ana Maria. Poses e Flagrantes: ensaios sobre história e fotografias. Niterói: Eduff, 2008.


PARTE I – FOTOGRAFIA, HISTÓRIA E IMPRENSA


CAPíTUlO 1<br />

IMAGENS DA CIDADE DE PORTO AlEGRE NOS ANOS<br />

1950: A ElABORAÇÃO DE UM NOVO PADRÃO DE<br />

VISUAlIDADE URBANA NAS FOTORREPORTAGENS<br />

DA REVISTA DO GLOBO 1<br />

Charles Monteiro 2<br />

A pesquisa problematiza a elaboração de uma nova visualidade da cidade<br />

brasileira na imprensa nos anos 1950, através de um estudo de caso sobre Porto<br />

Alegre, no contexto de mudanças na cultura visual. Trata-se de compreender a<br />

produção e a veiculação de imagens fotográficas da cidade de Porto Alegre nos anos<br />

1950, na Revista do Globo, no contexto de modernização da imprensa ilustrada<br />

brasileira. Busca-se discutir os temas, as formas de fotografar a cidade e os sujeitos<br />

urbanos, bem como o processo de editoração dessas imagens fotográficas em<br />

fotorreportagens nas páginas da revista, visando a compreender a nova visualidade<br />

urbana e as representações de cidade elaboradas em um contexto de crescimento<br />

populacional, expansão do perímetro urbano e verticalização da área central.<br />

Os estudos sobre cultura visual problematizam a forma como os diversos<br />

tipos de imagens perpassam a vida cotidiana, relacionando as técnicas de produção<br />

e circulação das imagens à forma como são vistos os diferentes grupos e espaços<br />

sociais, entre o visível e o invisível, propondo um olhar sobre o mundo, mediando a<br />

nossa compreensão da realidade e inspirando modelos de ação social. 3<br />

1 A pesquisa foi apresentada no Minissimpósio Temático <strong>História</strong>, Imagem e <strong>Cultura</strong> <strong>Visual</strong>, no XXIV Simpósio<br />

Nacional de <strong>História</strong> da ANPUH, realizado de 15 a 20 de julho de 2007, na UNISINOS (São Leopoldo/RS/Brasil),<br />

e coordenado pelos Professores Doutores Iara Lis Franco Schiavinatto (UNICAMP) e Charles Monteiro (PUCRS),<br />

bem como no VII Congresso Internacional de Estudos Ibero-Americanos, realizado de 21 a 23 de outubro de<br />

2008, na PUCRS (Porto Alegre/RS/Brasil). Versões parciais foram publicadas em: MONTEIRO, Charles. Imagens<br />

sedutoras da modernidade urbana: reflexões sobre a construção de um novo padrão de visualidade urbana nas<br />

revistas ilustradas na década de 1950. Revista Brasileira de <strong>História</strong>, 2007, Vol. 27, n. 53, p. 159-176; MONTEIRO,<br />

Charles. A construção da imagem dos “outros” sujeitos urbanos na elaboração da nova visualidade urbana de Porto<br />

Alegre nos anos 1950. Urbana, 2007, ano 2, n. 2, p. 1-21.<br />

2 Doutor em <strong>História</strong> Social (PUCSP/Lyon 2), Professor Adjunto de <strong>História</strong> do Programa de Pós-Graduação em<br />

<strong>História</strong> (PPGH) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Brasil/RS/Porto Alegre). Desenvolve<br />

pesquisas na área de <strong>História</strong>, <strong>Fotografia</strong> e <strong>Cultura</strong> <strong>Visual</strong>; ministra Seminário “<strong>História</strong>, <strong>Fotografia</strong> e <strong>Cultura</strong><br />

<strong>Visual</strong>: Imagens das cidades brasileiras séc. XIX e XX” no PPGH da PUCRS; orientou cinco dissertações sobre<br />

<strong>História</strong> e <strong>Fotografia</strong>; publicou vários artigos em revistas nacionais e papers em anais de congressos nacionais e<br />

internacionais sobre o tema; coordenou organizou simpósios temáticos em congressos; organizou dossiês sobre<br />

<strong>História</strong> e <strong>Fotografia</strong>; faz parte do Grupo de Pesquisa interinstitucional do CNPQ Imagem, <strong>Cultura</strong> <strong>Visual</strong> e <strong>História</strong>.<br />

Endereço: PPGH/PUCRS Av. Ipiranga, 6681, Prédio 3, Sl. 303 – Porto Alegre – Brasil – CEP. 90619-900. E-mail:<br />

monteiro@<strong>pucrs</strong>.br.<br />

3 Sobre <strong>Cultura</strong> <strong>Visual</strong>, <strong>História</strong> e <strong>Fotografia</strong>, cf. MENESES (2003, 2005); KNAUS (2006); sobre fotografia e<br />

imprensa ilustrada, cf. MAUAD (2004, 2005); sobre fotografia e cidade, cf. LIMA e CARVALHO (1997).


10<br />

Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950<br />

Reflexões sobre <strong>História</strong>, <strong>Fotografia</strong> e <strong>Cultura</strong> <strong>Visual</strong><br />

Nos anos 1990, desenvolveu-se, nos Estados Unidos, um campo novo de<br />

pesquisa chamado de Estudos Visuais, ligando departamentos de artes, comunicação,<br />

antropologia, história e sociologia. As pesquisas apresentavam uma clara perspectiva<br />

multidisciplinar e procuravam problematizar a centralidade das imagens e a<br />

importância do olhar na sociedade ocidental contemporânea. Alguns autores chegam<br />

mesmo a diagnosticar que estaríamos vivendo um pictorial turn ou um visual turn,<br />

dado o papel do visual e da visualização no contexto atual marcado pelas imagens<br />

digitais e virtuais presentes na televisão, em filmes, em games, na internet (o second<br />

life é um sintoma), em celulares, em i-phones etc.<br />

Os estudos sobre cultura visual problematizam a forma como os diversos<br />

tipos de imagens perpassam a vida social cotidiana (a visualidade de uma época),<br />

relacionando as técnicas de produção e circulação das imagens à forma como são<br />

vistos os diferentes grupos e espaços sociais (os padrões de visualidade), propondo<br />

um olhar sobre o mundo (a visão), mediando a nossa compreensão da realidade e<br />

inspirando modelos de ação social (os regimes de visualidade).<br />

Segundo Knauss, 4 existem duas grandes perspectivas de estudo da cultura<br />

visual, uma mais restrita, que procura tratar da experiência visual da sociedade<br />

ocidental na atualidade (marcada pela imagem digital e virtual), e outra mais<br />

abrangente, que permite pensar diferentes experiências visuais ao longo da história<br />

em diversos tempos e sociedades.<br />

Este texto constitui-se de uma série de notas sobre a relação entre história,<br />

fotografia e cultura visual, sem a pretenção de ser exaustivo na revisão bibliográfica,<br />

visando dar certas orientações e pistas para pensar o lugar da fotografia no contexto<br />

mais amplo dos estudos sobre a imagem.<br />

As imagens acompanham o processo de hominização e de socialização do<br />

homem desde a pré-história, elas perpassam a vida e a organização social, ordenando a<br />

relação entre os homens e desses com o visível e o invisível. A confecção de máscaras<br />

mortuárias e a produção de lápides, desde a Antiguidade, apontam para a relação entre<br />

imagem e morte, bem como para a necessidade do homem de afirmar e de prolongar<br />

a vida frente a perspectiva de sua finitude. Régis Debray 5 aponta para a função social<br />

da imagem ligada à produção de um duplo do morto visando à preservação de sua<br />

memória. Os usos políticos da imagem também estão presentes desde os tempos mais<br />

remotos, pois de seu controle dependia a legitimidade do exercício do poder.<br />

4 KNAUSS (2006, p. 108-110).<br />

5 DEBRAY (1994, p. 22-30).


11<br />

Charles Monteiro<br />

Segundo Kern, 6 desde seu início a imagem esteve relacionada à representação<br />

e à noção de imitação do real. A imagem emerge de uma troca simbólica e de um<br />

simulacro fabricado para enfrentar a destruição provocada pela passagem do tempo,<br />

agenciar a memória, manter a coesão social e, também, exercer o controle político.<br />

Funções sociais que não abolem a dimensão artístico-criativa do ato de criação da<br />

imagem no tempo. A imagem situava-se entre a mimese, pela produção de uma cópia<br />

do real através da semelhança, e a representação, ao buscar tornar presente uma<br />

ausência e conferir-lhe significados sociais precisos e controlados.<br />

A partir do século XIX, a fotografia vai tomar o seu lugar nesse mundo das<br />

imagens, ao qual vem alterar de forma radical no contexto da Revolução Industrial<br />

ou Revolução Técnico-Científica. Por um lado, a fotografia veio responder a uma<br />

demanda crescente de imagens e de autorrepresentação da burguesia em ascensão,<br />

buscando uma forma de fabricar imagens de forma rápida e consideradas fiéis aos seu<br />

referente. De outro lado, o dramático processo de urbanização criou a necessidade de<br />

controlar e disciplinar um contingente divesificado de sujeitos em uma sociedade de<br />

massas, criando a foto de identificação.<br />

Segundo Santaella, 7 esse mundo das imagens pode ser divido, em termos<br />

de diferentes formas de produção, circuitos de circulação, formas de recepção e de<br />

estatuto das imagens no tempo, em três paradigmas: pré-fotográfico; fotográfico<br />

e pós-fotográfico. O paradigma pré-fotográfico está relacionado ao conjunto das<br />

imagens produzidas de forma artesanal pela mão do homem, dependendo de sua<br />

habilidade e imaginação para plasmar o visível. Tratam-se de imagens produzidas<br />

pela mão do artista, que guardam a sua marca e a aura de objetos únicos. Elas têm<br />

uma circulação restrita, sobretudo feitas para serem expostas em galerias e museus.<br />

O paradigma fotográfico diz respeito às imagens produzidas por conexão dinâmica<br />

e captação física de fragmentos do mundo visível com a mediação de um aparato<br />

ótico-mecânico: a câmera fotográfica (a caixa-preta), de vídeo ou de TV. São imagens<br />

produzidas com o auxílio de um aparelho mecânico, visando sua reprodução em série.<br />

Perdem a sua aura de objeto único e passam a circular em diferentes meios sociais,<br />

sobretudo, em jornais, revistas, outdoors publicitários etc. Finalmente, o paradigma<br />

pós-fotográfico que se refere às imagens sintéticas e infográficas (virtuais), prémodelizadas<br />

e matematicamente elaboradas através do computador. Percebe-se a<br />

importância da fotografia nessa interpretação à medida que ela é o parâmetro para a<br />

existência de um pré-fotográfico e um pós-fotográfico.<br />

O paradigma fotográfico é herdeiro da câmara obscura, utilizada desde o<br />

Renascimento. O dispositivo foi sendo aperfeiçoado e tornou-se capaz de capturar<br />

uma imagem latente em suporte sensível à luz, desencadeando a fotografia. A máquina<br />

6 KERN (2005, p. 7)<br />

7 SANTAELLA (2005, p. 295-307).


12<br />

Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950<br />

fotográfica (o dispositivo técnico) media o enfrentamento entre o olhar de um sujeito (o<br />

fotógrafo) e um referente (a realidade), que é observado e tem sua luz (fluxo fotônico)<br />

capturada através de uma lente em uma superfície sensível. O ato fotográfico é o fruto<br />

de um corte, tanto no campo visual (espaço) quanto na duração (tempo), constituindose<br />

em um fragmento separado e embalsamado do mundo para a posteridade. O que<br />

nos interessa reter dessa proposta é a particularidade material da imagem fotográfica<br />

frente às imagens manuais e as infográficas. Embora a fotografia não inaugure a era<br />

da reprodutividade das imagens (precedidade por outras técnicas como a xilografia,<br />

litografia etc.), ela inaugura a era da reprodutividade técnica das imagens, permite que<br />

essa reprodução seja muito mais rápida, barata e em massa, bem como considerada<br />

mais fiel do que aquelas obtidas pelas tecnologias anteriores. A fotografia respondeu<br />

às demandas econômico-industriais e estéticas (realismo) da sociedade europeia da<br />

segunda metade do século XIX, que lhe confere o estatuto de atestação, de duplo do<br />

real e de documento. Isso leva a refletir sobre a questão do realismo na fotografia e da<br />

forma como ela foi pensada pelos críticos e teóricos no ocidente.<br />

Segundo Dubois, 8 essse percurso pode ser pensado em três tempos: 1) a<br />

fotografia do real (o discurso da mimese); 2) a fotografia como transformação do real<br />

(o discurso do código e da desconstrução); 3) a fotografia como um traço do real (o<br />

discurso do índice e da referência).<br />

O primeiro corresponde à euforia que se segue à sua invenção e divulgação<br />

na França, Inglaterra e nos Estados Unidos, onde seus atributos de precisão, rapidez e<br />

suas inúmeras possibilidades de utilização foram amplamente louvadas. A fotografia<br />

foi apresentada como um auxiliar precioso para a ciência e para as artes em geral. O<br />

potencial da fotografia de repertoriar os recantos mais distantes do mundo auxiliando<br />

as expedições científicas, bem como de reproduzir as obras de arte antigas visando ao<br />

seu estudo, conferiu-lhe o estatuto de espelho do real. O que se devia, por um lado, à<br />

semelhança entre a imagem e seu referente e, por outro, à valorização da sociedade<br />

europeia dos princípios técnico-científicos envolvidos na operação fotográfica, que<br />

lhe garantiriam ser uma reprodução fiel do mundo.<br />

O segundo momento é caracterizado pela denúncia da fotografia como<br />

transformação do real. Entre o final do século XIX e início do século XX,<br />

apontaram-se a falsa neutralidade e a redução do real produzida pela fotografia.<br />

Primeiramente, ela produzia um corte no fluxo do tempo, o congelamento de um<br />

instante separado da sucessão dos acontecimentos. Em segundo lugar, ela era um<br />

fragmento escolhido pelo fotógrafo através da seleção do tema, dos sujeitos, do<br />

entorno, do enquadramento, do sentido, da luminosidade etc. Em terceiro lugar,<br />

a fotografia transformava o tridimensional em bidimensional, reduzindo a gama<br />

de cores e simulando a profundidade do campo de visão. Além de tudo isso, ela<br />

8 DUBOIS (1993, p. 23-56).


13<br />

Charles Monteiro<br />

também era uma convenção do olhar herdada do Renascimento e da pintura, que<br />

seria necessário apreender para poder “ver”. Ou seja, questionavam-se a exatidão,<br />

o realismo e a universalidade desse tipo de imagem.<br />

Segundo Dubois, 9 a fotografia se distingue de outros sistemas de<br />

representação como a pintura e o desenho (dos ícones), bem como dos sistemas<br />

propriamente linguísticos (dos símbolos) enquanto se aparenta muito com o dos<br />

signos como a fumaça (índice do fogo), a sombra (alcance), a poeira (depósito do<br />

tempo), a cicatriz (marca de um ferimento) e as ruínas (vestígios de algo que esteve<br />

ali). Para Dubois, a fotografia seria um índice, pois guardaria um elo físico com o<br />

seu referente. Ela seria uma marca deixada pelo rastro de luz emitido ou refletido por<br />

um corpo físico (pessoa ou objeto) sobre uma superfície sensível (filme, papel etc.).<br />

Essa posição foi questionada, recentemente, por autores como André<br />

Rouillé 10 e Mario Costa, 11 que apontam para a importância do processo mecânico e<br />

da produção de uma memória da máquina ou dos materiais (película, papel) e não de<br />

uma projeção do referente na superfície sensível.<br />

Segundo Roland Barthes, em A mensagem fotográfica, 12 a fotografia é uma<br />

imagem híbrida, pois construída em parte por um aparelho técnico, que captaria um<br />

real puro, e em parte por uma mensagem com conteúdo histórico, social e cultural.<br />

A fotografia é uma convenção do olhar e uma linguagem de representação<br />

e expressão de um olhar sobre o mundo. Nesse sentido, as imagens são ambíguas<br />

(por sua natureza técnica) e passíveis de múltiplas interpretações (em relação ao<br />

meio através do qual elas circulam e do olhar que as contempla). Por isso, para<br />

a sua interpretação, são necessárias a compreensão e a desconstrução desse olhar<br />

fotográfico, através de uma discussão teórico-metodológica, que permita formular<br />

problemas históricos e visuais, no sentido de que a dimensão propriamente visual do<br />

real possa ser integrada à pesquisa histórica.<br />

Assim sendo, passo a inventariar alguns trabalhos que vêm contribuindo para<br />

essa discussão teórico-metodológica, que visam incorporar os documentos visuais à<br />

pesquisa histórica.<br />

Em <strong>Fotografia</strong> e <strong>História</strong>, 13 Kossoy aponta para a necessidade de pensar<br />

a tríade sujeito (fotógrafo), técnica (equipamento) e assunto (a história do tema<br />

abordado). Primeiramente, o historiador deveria procurar informações sobre a<br />

atuação profissional do fotógrafo, se possuía um ateliê, qual era a sua clientela, se<br />

trabalhava por encomenda para uma empresa ou administração, a classe social a<br />

que pertencia, os seus gostos e os preços cobrados. Deveriam se levar em conta<br />

9 DUBOIS (1993, p. 61).<br />

10 ROUILLÉ (2005, p. 288-304).<br />

11 COSTA, Mario (2006, p. 179-192).<br />

12 BARTHES (1982, p. 11-25).<br />

13 KOSSOY (1989).


14<br />

Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950<br />

ainda os filtros culturais e ideológicos de classe do fotógrafo e de sua época. Outra<br />

variável diria respeito aos equipamentos e às técnicas empregadas: o tipo de câmara,<br />

o tipo de negativo, as lentes, a forma de revelação, os formatos das fotografias etc.<br />

Finalmente, o assunto deve ser colocado no seu tempo e gênero específico: retrato,<br />

vistas urbanas, cartão-postal, álbum de família, último retrato ou fotorreportagem.<br />

Para esse autor, o assunto tem uma lógica própria que extrapola os quadros<br />

da imagem fotográfica, sendo necessário, para discutir um determinado tipo de<br />

fotografia, compreender o percurso histórico do assunto: seja o das formas de<br />

representação do poder da classe dominante, do jogo político ou da cidade. O<br />

autor também chama atenção de que a fotografia tem uma primeira realidade<br />

ligada ao momento de produção da imagem pelo fotógrafo, e uma segunda<br />

realidade ligada à circulação e aos usos posteriores da imagem em contextos<br />

sob formas que não foram previstas pelo fotógrafo no momento de produção da<br />

imagem. Ou seja, a fotografia em uma fototeca ou acervo iconográfico tem usos<br />

e significados muito diversos daqueles para os quais foi produzida pelo fotógrafo<br />

no passado, bem como a reutilização de imagens na imprensa, em manuais ou em<br />

livros de história agregam ou transformam os significados das imagens a partir<br />

de outro contexto de recepção.<br />

Essa proposta metodológica de Kossoy é, posteriormente, ampliada no livro<br />

Entre realidades e ficções da trama fotográfica, 14 no qual o autor analisa os usos<br />

da fotografia em cartões-postais e álbuns de vistas como forma de construção do<br />

nacional na fotografia brasileira no século XIX, como no álbum Le Brésil, produzido<br />

sob os auspícios do Império para fazer propaganda do país na Exposição Universal<br />

de Paris de 1889.<br />

O seu trabalho precursor foi e continua sendo importante sobre os pioneiros<br />

da fotografia no Brasil e as questões relacionadas à utilização, à conservação,<br />

à gestão e à interpretação desses acervos fotográficos do século XIX e XX. No<br />

entanto, a partir da tradução e publicação no Brasil, nos anos 1980, de autores como<br />

Roland Barthes, Susan Sontag, Philippe Dubois, Jean-Marie Schaeffer e Rosalind<br />

Krauss entre outros, surge novo contexto de pesquisa histórica, impulsionando<br />

investigações a partir da renovação da matriz teórica e da elaboração de novos<br />

problemas de pesquisa relativos ao campo visual: história visual, cultura visual e<br />

regimes de visualidade. 15<br />

Nos anos 1990, multiplicaram-se as investigações sobre a fotografia e cidade,<br />

para refletir sobre o acelerado processo de transformação da paisagem e da sociedade<br />

urbana brasileira no século XX.<br />

14 KOSSOY (2002).<br />

15 MENESES (2003, 2005).


15<br />

Charles Monteiro<br />

A pesquisa de Ana Maria Mauad 16 representa uma nova fase dos estudos<br />

sobre cidade e fotografia, pesquisando a construção da visualidade urbana do Rio de<br />

Janeiro em revistas ilustradas na primeira metade do século XX. Seu trabalho, além<br />

de tratar dos usos privados da fotografia pelo grupo familiar, abordou a fotografia<br />

de imprensa a partir das revistas Careta e O Cruzeiro, tendo sido esta última a mais<br />

importante e inovadora revista ilustrada brasileira entre as décadas de 1930 e 60.<br />

Uma das principais contribuições desse estudo é o tratamento da problemática<br />

do espaço na construção de códigos de representação fotográfica do comportamento<br />

da sociedade burguesa carioca entre 1900 e 1950. Mauad 17 estabeleceu para sua<br />

análise das imagens fotográficas cinco categorias espaciais que abrangem tanto o<br />

plano do conteúdo quanto o da expressão: o espaço fotográfico, o espaço geográfico,<br />

o espaço do objeto, o espaço da figuração e o espaço da vivência.<br />

Mauad relacionou e cruzou os padrões técnicos envolvidos na forma de<br />

expressão das imagens com os padrões de conteúdo para elaborar a sua interpretação<br />

dos códigos de representação social da classe dominante carioca. Esse trabalho<br />

sugere uma série de questões sobre a predominância de certas imagens (urbanas,<br />

de determinadas zonas da cidade, de determinados grupos sociais, em determinados<br />

espaços urbanos, de um gênero sobre outro, de certos objetos a eles associados, as<br />

ordenações dos grupos, as poses e os tipos de performances etc.) em detrimento<br />

de outras que ficam fora do quadro fotográfico, bem como da forma de fotografar<br />

proporcionada por uma técnica e de publicar essas imagens nas páginas das revistas,<br />

criando séries e narrativas que enfatizam determinados códigos de representação<br />

social de certos grupos urbanos excluindo outros.<br />

O livro <strong>Fotografia</strong> e Cidade, 18 de Solange Ferraz de Lima e Vânia Carneiro<br />

de Carvalho, deu uma contribuição significativa aos estudos sobre o tema ao propor<br />

uma metodologia própria para a análise icônica e formal das imagens de cidade, no<br />

caso de São Paulo, em álbuns de fotografias produzidos entre 1887-1919 e 1951-<br />

1954. A importância desse estudo está no fato de construir uma metodologia voltada<br />

para a interpretação dos padrões visuais de representação da cidade, remetendo à<br />

análise dos modos específicos de tratamento fotográfico do espaço urbano.<br />

Os descritores icônicos (relativos aos conteúdos e espaços das fotografias)<br />

são agrupados a partir de um vocabulário controlado em: tipologias do espaço;<br />

localização; tipologia urbana; abrangência espacial; acidentes naturais/vegetação;<br />

infraestrutura/processos/serviços; infraestrutura/comunicações; infraestrutura/<br />

mobiliário urbano; infraestrutura/paisagismo; estrutura/funções arquitetônicas;<br />

elementos móveis/ gênero/idade; elementos móveis/personagem/categoria;<br />

16 MAUAD (1990, 2004, 2005, 2006, 2008).<br />

17 MAUAD (2004, p. 19-36).<br />

18 LIMA e CARVALHO (1997).


16<br />

Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950<br />

elementos móveis/personagens; elementos móveis/transportes; atividade agrícola;<br />

atividade urbana; temporalidade.<br />

Os descritores formais (relativos à técnica, à forma e aos códigos de<br />

expressão) são agrupados a partir das categorias: enquadramento; arranjo; articulação<br />

dos planos; efeitos; e estrutura.<br />

O cruzamento dos percentuais de recorrência das imagens fotográficas<br />

enquadradas nos descritores icônicos confrontadas com a recorrência dos descritores<br />

formais permitiu às autoras estabelecerem uma tipologia de oito padrões fotográficos<br />

predominantes nesses álbuns: retrato; circulação urbana; figurista; diversidade;<br />

coexistência; intensidade; mudança; e paisagístico.<br />

As autoras puderam chegar a uma série de conclusões a partir da verificação<br />

da maior incidência de determinados padrões em cada um dos períodos, como a<br />

predominância do padrão “circulação” na virada do século XIX para o XX, relacionada<br />

à racionalização do espaço urbano, e o padrão “retrato” nos anos 1950, relacionado<br />

à tipificação do trabalho e à mercantilização do espaço urbano, bem como refletir<br />

a partir das imagens sobre a construção da diferenciação/indiferenciação social na<br />

metrópole capitalista. Esse trabalho permite problematizar a forma como foram<br />

construídos os padrões de visualidade urbana nas imagens fotográficas dos álbuns da<br />

cidade de São Paulo nos anos de 1887-1919 e 1951-1954.<br />

Mais recentemente, no texto “Rumo a uma ‘<strong>História</strong> <strong>Visual</strong>’”, Meneses<br />

propõe que o estudo desse campo se realize a partir da reflexão sobre três domínios<br />

complementares: o visual, o visível e a visão. 19 O domínio do visual compreenderia<br />

os sistemas de comunicação visual e os ambientes visuais, bem como “os suportes<br />

institucionais dos sistemas visuais, as condições técnicas, sociais e culturais de<br />

produção, circulação, consumo e ação dos recursos e produtos visuais”, para poder<br />

circunscrever “a iconosfera, isto é, o conjunto de imagens-guia de um grupo social<br />

ou de uma sociedade num dado momento e com o qual ela interage”. 20<br />

Para o autor, o domínio do visível e do invisível situa-se na esfera do poder e do<br />

controle social, do ver e ser visto, do dar-se a ver ou não dar-se a ver, da visibilidade e<br />

da invisibilidade. Já a visão “compreende os instrumentos e técnicas de observação, o<br />

observador e seus papéis, os modelos e modalidades do olhar” de uma época. 21<br />

A pesquisa em tela orientou-se pelas questões teóricas mais amplas propostas<br />

por Meneses sobre a relação entre visual, visível/invisível e visão e serviu-se das<br />

propostas metodológicas de Mauad e Lima & Carneiro para interpretar as fotografias<br />

na elaboração do novo padrão de visualidade urbano nos anos de 1950, a partir do<br />

estudo de caso de Porto Alegre.<br />

19 MENESES (2005, p. 33-56).<br />

20 Idem, Ib. p. 36.<br />

21 Idem, Ib. p. 38.


17<br />

Charles Monteiro<br />

<strong>Fotografia</strong> e <strong>Cultura</strong> <strong>Visual</strong> em Porto Alegre entre 1940 e 1960<br />

No Brasil, a partir dos anos 1940, a fotografia passa por um processo<br />

de difusão e expansão através do aperfeiçoamento das técnicas de edição e de<br />

reprodução de imagens fotográficas, bem como de modernização através do trabalho<br />

de experimentação nos fotocineclubes de São Paulo, Recife e Porto Alegre, entre<br />

outros. Durante a Segunda Guerra Mundial, a fotografia se tornou uma forma<br />

importante de informar e mobilizar a população através de sua veiculação em jornais<br />

e revistas ilustradas. Os fotógrafos passam a se organizar em associações e sindicatos<br />

visando ao reconhecimento e à valorização do seu trabalho.<br />

Câmaras mais portáteis como a Rolleiflex, com negativos de 120 mm e<br />

6 x 6 cm, e a Leica, com filmes de 35 mm, com películas mais sensíveis, além<br />

de objetivas e flash permitiram o avanço da foto instantânea (sobretudo no<br />

fotojornalismo) e a presença mais dinâmica do fotógrafo no espaço público,<br />

para documentar e informar a modernização dos espaços urbanos, das formas de<br />

sociabilidade e os movimentos políticos.<br />

A tradição de edição de álbuns fotográficos com vistas da cidade inaugurada<br />

no século XIX prolonga-se no século XX visando fixar a memória da velha Porto<br />

Alegre frente às rápidas mudanças em curso na paisagem urbana, decorrentes do<br />

processo de modernização e verticalização da cidade. Em 1941, um ano após as<br />

comemorações dos 200 anos de colonização de Porto Alegre, foi editada a obra<br />

comemorativa Porto Alegre: Biografia da Cidade. O livro, de grandes proporções<br />

(37 x 27 cm e 664 páginas) e ricamente ilustrado, apresenta duas séries de fotografias<br />

com histórias visuais sobre o passado (1890-1910) e presente (final dos anos 1930<br />

e 1940) da cidade. A seção A vida na velha Porto Alegre: Reminiscências Gráficas,<br />

referente ao século XIX, apresenta imagens de Calegari e outros fotógrafos,<br />

destacando as formas de sociabilidade das elites e camadas médias (footing,<br />

carnaval, exposições), o trabalho (através de tipos populares como o aguateiro e<br />

os acendedores de lampião), as formas de transporte ao longo do tempo e certos<br />

aspectos pitorescos da velha cidade. A seção Excursão caleidoscópica através<br />

da cidade apresenta imagens de grande formato dos principais prédios públicos,<br />

igrejas e praças da cidade, apontando para uma visão oficial, turística, higienista e<br />

pitoresca da cidade. O livro tinha o duplo objetivo de legitimar a gestão do Prefeito<br />

Loureiro da Silva e projetar suas realizações para o futuro, construindo a memória<br />

de uma cidade que se modernizava a passos rápidos.<br />

Como nos jornais e nas revistas ilustradas, fotos destacavam as novas<br />

práticas políticas do Estado Novo com os seus desfiles cívicos, educação cívica e<br />

eventos esportivos, que visavam à educação do corpo para o trabalho, preparação<br />

para a guerra e purificação da nação.


18<br />

Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950<br />

O fotojornalismo conheceu o seu auge nos anos 1950 com novas narrativas<br />

fotográficas – série de imagens de tamanhos variados que contam uma história visual<br />

– ocupando cada vez mais lugar nas páginas dos jornais e revistas. A Revista do Globo,<br />

os jornais A Hora e Última Hora estão na vanguarda desse processo no âmbito local.<br />

No plano formal, multiplicam-se as fotos aéreas, a fotorreportagem, a foto<br />

de publicidade e as fotos instantâneas de grandes manifestações políticas, bem<br />

como inovações na composição e no uso da luz. A cultura visual está marcada pela<br />

introdução da televisão no final da década de 1950 e pelo período áureo dos filmes<br />

hollywoodianos, apresentados no formato cinemascope nas grandes salas de cinemas<br />

de calçada do centro da cidade e nos bairros.<br />

Os fotógrafos passam a ser mais valorizados nas revistas ilustradas e a<br />

terem seus nomes mencionados como autores das imagens. Em Porto Alegre,<br />

Leo Guerreiro, Pedro Flores e Sioma Breitman se destacam no fotojornalismo, na<br />

fotografia de publicidade e na produção de retratos em estúdio. Leo Guerreiro é autor<br />

de famosas vistas aéreas da cidade, que acompanham o processo de modernização<br />

e verticalização da área central. Muitas dessas fotos também eram ampliadas,<br />

tornando-se painéis e comercializadas para decorar escritórios e casas comerciais.<br />

O fotojornalismo vai privilegiar a mobilização política envolvendo o<br />

processo de discussão sobre nacionalização do subsolo, a estatização de empresas de<br />

energia e transporte públicos. Nesse período ocorreu a irrupção das massas na cena<br />

urbana, ora como ator ora como coadjuvante dos processos políticos.<br />

Em 24 de agosto de 1954, a morte de Getúlio Vargas constitui-se em um<br />

momento significativo de mobilização e utilização da rua como espaço político. A<br />

fotografia de imprensa perpetuou os conflitos e as depredações no centro da cidade<br />

de Porto Alegre.<br />

As fotos desse período, produzidas pela Assessoria de Imprensa do Palácio<br />

Piratini (Acervo do Setor de <strong>Fotografia</strong> do Museu de Comunicação Social Hipólito<br />

José da Costa), representam os governadores em plena ação, visitando e inaugurando<br />

obras, recebendo delegações de políticos ou lideranças dos movimentos sociais. O<br />

populismo transformou algumas fotografias em imagens de culto ao poder político.<br />

Na segunda metade dos anos 1950, a Assessoria de Imprensa e o serviço<br />

fotográfico do Palácio Piratini crescem em importância e ocorre um salto no<br />

número de fotografias e na forma de documentação das ações dos governadores e<br />

secretários de Estado. Alguns fotojornalistas trabalhavam simultaneamente para a<br />

Revista do Globo e para repartições públicas (Secretaria de Educação e Secretaria de<br />

Agricultura), como nos casos de Pedro Flores e Léo Guerreiro.<br />

No início da década de 1960, foram as imagens da Campanha da Legalidade<br />

que marcaram uma nova postura através do uso consciente e maciço dos meios de


19<br />

Charles Monteiro<br />

comunicação (jornal e rádio) na mobilização popular. O Palácio do Governo do<br />

Estado do Rio Grande do Sul foi transformado em quartel-general da resistência e<br />

centro de difusão de notícias.<br />

Por um lado, acelera-se a migração do campo para a cidade, e surgem as<br />

vilas populares. Começam a aparecer as imagens da desigualdade social através da<br />

documentação da remoção de vilas populares como a Vila Dique. Por outro lado,<br />

o processo de modernização urbana ganhava visibilidade através das imagens de<br />

grandes obras públicas (Ponte do Guaíba, Aeroporto Salgado Filho) e da abertura<br />

de novas avenidas, bem como da construção de escolas (como as chamadas<br />

“brizoletas”, em madeira). A realização de um levantamento fotográfico aéreo e<br />

terrestre aponta tanto para o processo de expansão da malha urbana em direção<br />

ao sul e ao norte da cidade quanto para o uso da imagem fotográfica para gestão<br />

do espaço urbano (aterros, expansão da malha urbana, crescimento de vilas etc.).<br />

A modernização da grande imprensa nos anos 1950<br />

O período também foi marcado pela modernização da grande imprensa 22<br />

nos principais centros urbanos (especialmente nas capitais), dominada por alguns<br />

grupos proprietários de jornais e rádios, que passaram a monopolizar o setor de<br />

comunicação. Observa-se, por um lado, a expansão nesses periódicos do espaço<br />

destinado à publicidade e aos classificados, bem como a ampliação do número de<br />

leitores, que favoreceu uma série de inovações na editoração e na diagramação,<br />

o que permitiu a utilização cada vez maior de fotografias. Por outro lado, esses<br />

veículos não estavam totalmente livres do jogo político-partidário e da dependência<br />

da propaganda institucional de governos estaduais e do federal.<br />

As revistas ilustradas formavam um segmento diferenciado visando a um<br />

público de maior poder aquisitivo, construindo as matérias sob um ângulo novo,<br />

da tomada de opinião e não exatamente do imediato. Elas desempenham toda<br />

uma nova pedagogia social sobre as elites vindas do campo, as camadas médias<br />

provenientes das pequenas cidades do interior e para os próprios habitantes das<br />

capitais em processo de expansão e transformação do espaço urbano. A revista<br />

O Cruzeiro, Revista do Globo e a Manchete se destacam como os veículos de<br />

comunicação impressos mais modernos, no sentido de construírem um novo tipo<br />

de reportagem e de narrativa baseada no uso da fotografia. 23<br />

As revistas buscavam assuntos polêmicos para mobilizar a atenção do<br />

público leitor. Eram meios híbridos que mesclavam uma variedade de temas –<br />

22 Cf. RIBEIRO (2003), GRANDI (2005).<br />

23 MUNTEAL e GRANDI (2005, p. 90-95).


20<br />

Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950<br />

desde política internacional, política nacional, artes, vida social, cotidiano, esportes,<br />

variedades e publicidade – buscando equilibrar informação, formação de opinião<br />

e entretenimento. 24 As revistas trabalhavam com polaridades como “nós” e os<br />

“outros”, 25 “presente e passado”, “tradição e modernidade” etc., seguidamente<br />

propondo uma abordagem sensacionalista dos acontecimentos. Através de imagens<br />

e palavras, as revistas construíram representações sociais, agregando novidade e<br />

promovendo consenso sobre determinados significados sociais. Quanto menor a<br />

competência na decifração dos códigos verbais, maior a importância das imagens<br />

fotográficas que ocupavam a maior parte do espaço das páginas.<br />

As fotorreportagens construíram uma imagem da cidade em processo de<br />

mudança para o consumo das elites e das camadas médias, bem como uma imagem<br />

dos novos sujeitos urbanos que chegam à cidade: os “outros”. Uma cidade cada vez<br />

maior e difícil de abarcar pelo olhar humano, que necessitava da mediação dos meios<br />

de comunicação para promover a compreensão e a legitimação das mudanças na<br />

paisagem urbana em um tempo cada vez mais acelerado. Ao congelar fragmentos de<br />

temporalidade, a fotografia permitiu condensar e recriar a nova imagem das cidades<br />

brasileiras em processo de mutação: a destruição de espaços tradicionais e a criação<br />

de espaços modernos submetidos à lógica da sociedade de consumo.<br />

Ou seja, a fotografia nas revistas ilustradas e, em especial, as fotorreportagens<br />

“davam a ver a cidade”, promovendo uma reeducação do olhar, sintetizando e<br />

ressignificando esse processo de expansão horizontal e vertical urbana. Permitiram,<br />

também, a difusão de toda uma nova cultura urbana, com novos parâmetros de<br />

sociabilidade, de civilidade e de consumo, que passariam ser almejados e buscados<br />

pelos leitores desses periódicos, ávidos em participar da modernidade urbana.<br />

O estatuto da imagem fotográfica que predominava nas revistas ilustradas<br />

era o da cópia da realidade e de documento verídico, que procurava apresentar como<br />

objetiva e verdadeira a interpretação dos fatos abordados. As revistas ilustradas,<br />

através das fotorreportagens, visavam ensinar uma nova maneira de ver, que<br />

tanto entretinha e deleitava quanto cumpria a tarefa de informar e difundir uma<br />

nova imagem moderna da cidade e da cultura urbana entre as camadas médias da<br />

população brasileira.<br />

Segundo Costa, “a fotorreportagem é uma narrativa que resulta da conjugação<br />

de texto e imagem, ou seja, de duas estruturas narrativas totalmente distintas e<br />

independentes, dentro de uma armação própria realizada pela edição”. 26<br />

De forma geral, as fotorreportagens iniciavam-se com uma fotografia de<br />

página inteira ou página dupla, uma “imagem síntese” do tema, que visava mobilizar<br />

24 COSTA (1992, p. 53-68).<br />

25 BAITZ (2003).<br />

26 COSTA (1992, p. 58), SOUSA (2004).


21<br />

Charles Monteiro<br />

emocionalmente o leitor acerca da matéria. Compreender a relação entre imagem e<br />

texto é importante no sentido de compreender como este disciplina a leitura daquela.<br />

O título e uma legenda sobreposta à fotografia de grande formato completavam o<br />

apelo à atenção do leitor. Seguia-se uma sequência de cerca de 8 a 12 fotos, formando<br />

uma narrativa ao redor do tema principal. Pequenos textos e subtítulo auxiliavam na<br />

urdidura da trama e na construção dessa narrativa visual, direcionando a atenção do<br />

leitor para determinados aspectos da realidade abordada nas fotos.<br />

A Revista do Globo foi o periódico ilustrado quinzenal mais duradouro<br />

e de maior tiragem produzido no Rio Grande do Sul, entre 1930 e 1960. Tendo<br />

sido criada em 1929, torna-se um veículo de comunicação influente na imprensa<br />

regional, com um projeto gráfico e editorial arrojado para o período. Nos anos<br />

1950, a Revista do Globo disputava espaço com outras revistas de tiragem<br />

nacional como O Cruzeiro e Manchete. Todas elas se inspiravam de alguma<br />

forma no modelo americano fornecido pela Life, publicando fotorreportagens com<br />

tom sensacionalista, misturadas a artigos de entretenimento, resenhas de obras<br />

literárias, publicação de contos, de poesias e notas sobre a vida social das elites<br />

da capital e das principais cidades do estado. De forma geral, uma edição possuía<br />

cerca de 100 páginas e estava dividida entre as seções: “Reportagens”, “Assuntos<br />

Gerais”, “Literatura”, “Cinema” e “Passatempo”. As “Reportagens” abordavam<br />

assuntos internacionais, nacionais e locais, entremeados de publicidade e crônica<br />

social, visando dar maior leveza à leitura da revista.<br />

As fotorreportagens da Revista do Globo iniciavam-se geralmente com uma<br />

fotografia de página inteira ou página dupla, que era uma “imagem síntese” do tema e<br />

visava mobilizar emocionalmente a atenção do leitor sobre a matéria. 27 Compreender<br />

a relação entre imagem e texto é importante no sentido de compreender como este<br />

disciplina a leitura daquela. O título e uma legenda sobrepostos à fotografia de grande<br />

formato procuravam capturar a atenção do leitor. Seguia-se uma sequência de cerca<br />

de 6 a 12 fotos formando uma narrativa ao redor do tema principal. Pequenos textos<br />

e subtítulo auxiliavam na construção dessa narrativa visual.<br />

Na Revista do Globo, três fotógrafos contratados produziram o maior número<br />

das fotorreportagens dos anos 1950: Pedro Flores, Léo Guerreiro e Thales de Farias.<br />

Os nomes desses fotógrafos começaram a aparecer abaixo do título como coautores<br />

dessas fotorreportagens. O trabalho deles era complementado por outros fotógrafos<br />

free lancers e por imagens compradas de agências de informação e de outras revistas.<br />

Entre as 256 edições da Revista do Globo publicadas entre 1950 e 1960, foi<br />

possível identificar 184 fotorreportagens que tratavam da cidade de Porto Alegre<br />

pelo levantamento realizado. Essas fotorreportagens abordavam questões relativas<br />

ao processo de modernização do espaço urbano (verticalização, obras públicas e<br />

27 COSTA (1992, p. 53-68).


22<br />

Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950<br />

privadas), as novas formas de sociabilidade públicas (muitas dessas ligadas aos novos<br />

padrões de consumo), os novos equipamentos culturais, problemas de segurança<br />

pública, de habitação, de transportes e, também, de política municipal. A revista<br />

valorizava o processo de modernização e também abordava alguns dos “problemas<br />

urbanos” de Porto Alegre.<br />

Pode-se dividir a década de 1950 em duas metades. Na primeira metade,<br />

observa-se a formulação dessa nova visualidade urbana moderna, mas ainda com<br />

a presença de imagens das contradições sociais e dos problemas urbanos: a falta<br />

de habitações, de energia, de água tratada, de esgotos, de hospitais, bem como os<br />

vendedores ambulantes (camelôs), os acidentes de automóveis, as filas de ônibus<br />

etc. Na segunda metade dos anos 1950, a revista se engaja no projeto e discurso<br />

desenvolvimentista da administração do Presidente Juscelino Kubitschek (1956-<br />

1960), de realizar “50 anos em 5”, e passou a privilegiar o processo de transformação<br />

e modernização da sociedade e do espaço urbano, deixando em segundo plano as<br />

críticas e as contradições que acompanhavam esse processo. Passa-se, então, à análise<br />

de algumas das fotorreportagens sobre a elaboração da nova visualidade urbana.<br />

A construção de uma nova visualidade urbana moderna de<br />

Porto Alegre<br />

A fotorreportagem “Marco Inicial”, 28 de 3 de fevereiro de 1951, trata da<br />

construção, pelo Instituto de Assistência e Aposentadorias do Comerciários (IAPC),<br />

de um conjunto de 250 casas que formariam a Vila dos Comerciários na zona sul<br />

de Porto Alegre (bairro Tristeza). A fotorreportagem tem quatro páginas e oito<br />

fotografias; o formato predominante é o retângulo horizontal (seis fotografias) e<br />

de tamanho médio (quatro fotografias); sendo cinco fotos internas e apenas três<br />

externas; cinco fotos posadas e três instantâneos; cinco fotos pontuais e três parciais.<br />

As linhas são bem definidas e há boa iluminação tanto nas fotos externas quanto nas<br />

internas, realçando o efeito de realismo das fotos.<br />

28 Marco Inicial, Revista do Globo, n. 527, 2/3/1951, p. 61-63, 79.


23<br />

Charles Monteiro<br />

Fonte: “Marco inicial”, Revista do Globo, n. 527, 1951, p. 61 (esquerda), 62 (centro), 63 (direita.).<br />

A fotorreportagem se inicia com uma foto instantânea de grande formato<br />

(1/2 página), com a imagem enquadrando, em primeiro plano, o quintal de uma<br />

casa com terra, materiais de construção e um muro; em segundo plano, um grupo<br />

grande de pessoas em fila (a comitiva do Governador do Estado do Rio Grande do<br />

Sul, Walter Só Jobim, e do Presidente do IAPC, Remy Archer); em terceiro plano,<br />

observa-se a rua que se estende em diagonal, um automóvel, uma calçada e um<br />

conjunto de casas (algumas ainda em construção). O efeito de dinamismo é dado<br />

pelas pessoas em movimento (a maioria homens em idade produtiva, entre os 30 e<br />

50 anos), a casa em construção e a linha diagonal formada pelo muro, pela rua, pelos<br />

postes e pelas casas.<br />

A narrativa segue com uma foto posada de tamanho pequeno, de formato<br />

quadrado, representando o ato solene de inauguração com a presença do Prefeito,<br />

do Governador e do Bispo Metropolitano. Seguem-se, nas duas páginas seguintes<br />

(p. 61, 62), seis fotos que completam a narrativa a partir dessa fotomanchete. Três<br />

delas apresentam os novos equipamentos de atendimento médico, fisioterápico e<br />

odontológico do IPAC. Fotos de interior e planos pontuais que não permitem localizar<br />

o local no espaço urbano. Pela leitura do texto, descobre-se que esses equipamentos<br />

se encontram em outro local, no centro da cidade.


24<br />

Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950<br />

Em foto de tamanho médio (p. 61), apresentam-se as prováveis pessoas<br />

beneficiadas pela construção das casas e pelos serviços médicos: funcionárias do<br />

comércio de Porto Alegre. Trata-se de uma foto posada do interior de uma residência,<br />

destacam-se a elegância da roupa das mulheres (vestidos e adornos) e a decoração da<br />

casa (com cortinas e abajur de pé). Apesar de o texto referir-se à “classe trabalhadora”,<br />

observa-se que o grupo retratado pertence às camadas médias urbanas.<br />

Na página seguinte, mais uma fotografia com o Governador em primeiro<br />

plano e uma casa recém-construída em segundo plano, mais ao alto. Ou seja, as<br />

fotografias editadas associam a construção das casas às autoridades públicas e<br />

apresentam os trabalhadores do comércio que iriam usufruir de casas modernas, com<br />

todo o conforto, em um bairro novo e moderno, além de atendimento médico.<br />

A última imagem da fotorreportagem constrói a oposição ao enquadrar<br />

em primeiro plano uma mulher que lava roupa ao ar livre ao lado de um forno a<br />

lenha de campanha – representando o antigo, o rural e o tradicional – e, em segundo<br />

plano, o conjunto de casas recém-construídas e em construção da nova Vila dos<br />

Comerciários, que se perdem na linha do horizonte – representando o presente, o<br />

urbano e o moderno.<br />

Observa-se a construção da imagem de um governo que se associa aos<br />

Institutos de Previdência para enfrentar o problema da falta de habitação, através<br />

da construção de 250 casas das 2.100 previstas, que atenderiam cerca de 15.000<br />

pessoas. Essa reportagem deve ser relacionada, por um lado, a outras que abordam<br />

a construção da Vila do Instituto de Aposentadoria e Previdência dos Industriários<br />

(IAPI) e de edifícios por empresas de engenharia e construção, entre 1950 e 1954,<br />

e, por outro, às reportagens que tratam do problema da habitação em Porto Alegre<br />

e do surgimento de vilas irregulares de casas autoconstruídas. Ou seja, ao longo da<br />

década, a Revista do Globo aborda problemas urbanos e também coloca em destaque<br />

a ação das autoridades e administrações na resolução desses problemas.<br />

A dramaticidade e a amplitude do problema da habitação estão associadas<br />

às migrações decorrentes da aceleração do movimento do campo para a cidade, à<br />

expansão territorial urbana sobre antigos espaços rurais e semirrurais (com a ocupação<br />

ilegal de terrenos ou loteamento de chácaras, saneamento de várzeas e realização de<br />

aterros ao redor da cidade) e à abertura de novas avenidas de ligação entre os bairros.<br />

Daí também a ênfase das reportagens sobre o processo de verticalização do centro da<br />

cidade, através da construção de edifícios de alto gabarito (de 10 andares ou mais).<br />

Esse é o caso da fotorreportagem “Porto Alegre cresce para o céu e para<br />

o rio”, 29 com fotos de Thales Farias. O processo de modernização é o tema central<br />

abordado, a partir de fotos de grande formato, com tomadas fechadas do centro da<br />

29 CARNEIRO, Flávio; FARIAS, Thales. “Porto Alegre cresce para o céu e para o rio”. Revista do Globo, 1958, nº<br />

722, p. 38-42.


25<br />

Charles Monteiro<br />

cidade, colocando em destaque os novos edifícios (verticalização), as grandes obras<br />

públicas da Avenida Beira-Rio (expansão do perímetro urbano) e da Ponte sobre<br />

o Guaíba (nova escala de construções e ligação entre o sul rural e o norte urbano<br />

do estado). O que é enfatizado pelo título e pelo subtítulo da fotorreportagem:<br />

“Construções civis: recorde no Brasil e duas obras grandiosas”. São 10 fotos de meia<br />

página, com o predomínio do formato retangular vertical. As três primeiras fotos que<br />

abrem a fotorreportagem apontam para a verticalização, a expansão da área urbana e<br />

a monumentalização das construções e obras públicas no espaço urbano. Enfatiza-se<br />

a imagem de uma cidade em construção, em movimento, afirmando o significado<br />

dinâmico do trabalho e da circulação pelas novas avenidas. A presença do leito de ruas<br />

ou avenidas em primeiro plano, em quatro fotografias, orienta o caminho do olhar e<br />

constrói o significado de circulação urbana associado ao movimento de automóveis e<br />

pessoas. Em seis das oito fotos são representadas construções inacabadas, entre elas<br />

duas fotos de prédios recém-construídos. Linhas bem definidas, contrastes de tons,<br />

a luminosidade direta e fotos tiradas no sentido ascensional enfatizam os efeitos de<br />

verticalização e monumentalidade desses prédios de alto gabarito em construção.<br />

Fonte: CARNEIRO, Flávio; FARIAS, Thales. “Porto Alegre cresce para o céu e para o rio”.<br />

Revista do Globo, 1958, nº 722, p. 38-39.


26<br />

Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950<br />

A legenda da terceira página afirmava: “Porto Alegre, 1958: recorde brasileiro<br />

de construções”. O texto ensaia uma explicação para essa “febre de construções”:<br />

“o aumento vertiginoso nada tem de influências políticas, mas é tão somente a<br />

ação de capitais particulares, pois, com a desvalorização constante do cruzeiro, o<br />

negócio mais rendoso e seguro ainda continua sendo o imobiliário”. O dinamismo<br />

do processo de transformação do espaço urbano é atribuído ao empreendedorismo de<br />

investidores privados e à especulação imobiliária.<br />

Mas talvez o melhor exemplo desse engajamento da Revista do Globo em dar<br />

publicidade a esse projeto de modernidade urbana seja a fotorreportagem “Porto Alegre<br />

via aérea, 1959”, 30 de sete páginas, com fotos de Thales Farias. Ela está composta<br />

por seis fotos, quatro delas de grande formato retangular e duas de ¼ de página. Ela<br />

começa com uma foto aérea parcial do centro da cidade ocupando duas páginas. O<br />

sentido diagonal sugerido ao olhar pela foto enfatizava o processo de verticalização<br />

do centro e como que a passagem do passado (representado pelos prédios baixos em<br />

primeiro plano) para o presente (representado pelos edifícios de grande gabarito, em<br />

segundo plano e destacados pela luminosidade natural). Na página seguinte, outra foto<br />

aérea do centro da cidade com a legenda “dentro de alguns anos, a cidade não terá mais<br />

prédios velhos” sugere percurso semelhante para o olhar visando ao mesmo efeito.<br />

Fonte: CARNEIRO, Flávio; FARIAS, T. “Porto Alegre via aérea, 1959”. Revista do Globo, 1959, nº 742, p. 10-11.<br />

30 CARNEIRO, Flávio; FARIAS, T. “Porto Alegre via aérea, 1959”. Revista do Globo, 1959, nº 742, p. 10-16.


27<br />

Charles Monteiro<br />

Percebe-se que estava claramente engajada no projeto político das elites<br />

dirigentes de modernização social. A forma como a Revista do Globo publicava<br />

fotografias panorâmicas do centro da cidade, com planos fechados sobre as áreas<br />

mais centrais de Porto Alegre, visava exaltar o ideário de modernidade. Enquanto<br />

os textos difundiam todo um conjunto de ideias e valores que visavam educar as<br />

camadas médias urbanas, que eram as principais consumidoras da Revista para<br />

a concretização da utopia da cidade moderna numa verdadeira pedagogia social,<br />

as imagens elaboravam esse processo de mudanças e desenraizamento social de<br />

uma forma positiva.<br />

Mas não há somente publicidade da modernização ou a venda de uma<br />

imagem da cidade para consumo dos leitores de classe média na Revista do Globo.<br />

Ela também cumpria o papel de apontar os dilemas que a cidade enfrentava e<br />

deveria mobilizar a opinião pública e a vontade das administrações, municipal e<br />

estadual, para a sua resolução.<br />

As imagens dos problemas urbanos da cidade moderna:<br />

descontextualização, despolitização e busca da superação<br />

através da denúncia<br />

A fotorreportagem “Bairro sem rua nem terra nem destino” 31 aborda<br />

a transformação da antiga Doca dos Laranjeiros, na zona norte da cidade. Ela<br />

possui quatro páginas e 10 fotos. As laterais das páginas são ocupadas por<br />

publicidade. As fotos são todas externas, diurnas e com iluminação natural; linhas<br />

e contornos bem definidos; sendo uma de tamanho grande, duas de tamanho<br />

médio e seis pequenas; seis de formato quadrado e quatro de formato retangular;<br />

oito instantâneas e duas posadas; quatro fotos com abrangência parcial, tendo<br />

como referência o Guaíba, e seis pontuais, nas quais não é possível reconhecer<br />

o espaço urbano.<br />

31 “Bairro sem rua nem terra nem destino”, Revista do Globo, 30/9/1950, p. 54-57.


28<br />

Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950<br />

Fonte: “Bairro sem rua nem terra nem destino”, Revista do Globo, 30/9/1950, p.54-55.<br />

A primeira foto da reportagem de tamanho grande coloca, em primeiro plano,<br />

tábuas, laranjas e lixo espalhados pelo chão, varais de roupa secando. Em segundo<br />

plano, uma mulher adulta parece trabalhar (talvez ela seja uma lavadeira) em frente a<br />

um barraco de madeira. Na sequência, mais quatro fotos pequenas aprofundam o tema:<br />

uma criança tirando uma rede de um barco, tendo ao lado um porco comendo; uma<br />

mulher cortando lenha com um grande machado, com um varal de roupas e uma casa<br />

em segundo plano; crianças mexendo com madeiras, tendo um barco e um telhado ao<br />

fundo; um homem com roupas esfarrapadas carregando um saco nas costas. Todas as<br />

imagens apontam para a desordem, a sujeira e a precariedade do local e das condições<br />

de vida de seus moradores (material das habitações, roupas, convívio entre crianças e<br />

animais etc.). Apesar de visualizarmos água em uma das imagens, os enquadramentos<br />

mais fechados não permitem localizar de forma segura esse lugar no espaço urbano,<br />

promovendo a fragmentação e a segregação do lugar e de seus habitantes do conjunto<br />

da cidade. É o texto e as legendas que precisam ao leitor tratar-se das margens do<br />

Guaíba na zona norte da cidade. O texto também faz uma comparação entre a paisagem<br />

bucólica da praia de areias brancas, onde no passado passeavam os namorados e alguns<br />

barcos descarregavam laranjas, e o presente, caracterizado pelos cortiços, pelas casas<br />

flutuantes e pela população miserável que mora no local. O poder público não teria<br />

conseguido impedir a formação de outro bairro clandestino entre tantas vilas de lama


29<br />

Charles Monteiro<br />

na cidade. Porém, o texto também alerta que o bairro estava com os dias contatos diante<br />

do projeto de aterro e construção do novo cais da zona norte (Bairro Navegantes).<br />

Essa é uma das poucas reportagens que apontam para o problema da expulsão<br />

dos moradores de uma área em decorrência da realização de grandes obras urbanas<br />

pelo poder público. Entretanto, o texto e as fotografias da reportagem promovem a<br />

estigmatização e a segregação desses sujeitos – chamados de “curiosa mistura de<br />

trabalhadores, mendigos e malandros” – associando-os à sujeira, à degradação e a um<br />

estado primitivo de vida social (falta de saneamento, escola, assistência médica etc.).<br />

Tudo o que aqui falta reaparece no ano seguinte nos projetos habitacionais da Vila<br />

dos Comerciários e na Vila IAPI, visando dar aos trabalhadores todos os confortos e<br />

as comodidades da vida em habitações higiênicas e modernas com aluguéis módicos.<br />

A fotorreportagem “Amarelou o sorriso da cidade”, 32 com texto de Joseph<br />

Zukauska e fotos de Pedro Flores e Wilson Cavalheiro, amplia o elenco dos<br />

problemas urbanos – falta de água, de luz, de transporte e de moradia – através<br />

de uma série de 15 fotos, a maioria de pequeno formato. As fotografias que<br />

acompanham o texto apontam para a contradição entre os altos e modernos edifícios<br />

do centro da cidade e as malocas<br />

nas vilas populares da periferia<br />

de Porto Alegre. Porém, o sentido<br />

das fotos, sugerido pela leitura<br />

da esquerda para a direita, parece<br />

sugerir a sua superação por obras<br />

que estavam em curso na cidade.<br />

Fonte: ZUKAUSKA, Joseph; FLORES, Pedro, CAVALHEIRO, Wilson. “Amarelou o sorriso da cidade”.<br />

Revista do Globo, 1954, nº 607, pp. 48-55.<br />

32 ZUKAUSKA, Joseph; FLORES, Pedro, CAVALHEIRO, Wilson. Amarelou o sorriso da cidade. Revista do Globo,<br />

1954, nº 607, pp. 48-55.


30<br />

Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950<br />

As razões arroladas para essa crise seriam a modernização no campo e a<br />

falta de amparo ao trabalhador rural, que agiriam como fatores de expulsão do<br />

homem do campo. De outro lado, os motivos de atração de migrantes para a capital<br />

seriam a busca de trabalho na indústria, melhores salários, direitos trabalhistas,<br />

serviço de saúde e educação para os filhos. Nessa fotorreportagem, na página 50,<br />

a revista coloca lado a lado um alto edifício em construção e a casa de madeira de<br />

uma vila à beira do Guaíba. O subtítulo acima da página afirma: “Uma cidade de<br />

zinco e trapos dentro da outra”, e na legenda afirma-se: “De 51 a 53, a população<br />

marginal duplicou, por que não só quem casa quer casa. Os que vêm do interior<br />

para trabalhar na capital, também dela necessitam. A metade da população de<br />

uma vila de malocas é dada como catarinense” (idem, p. 50). Logo, a culpa dos<br />

problemas urbanos era atribuída aos migrantes e aos sujeitos que vêm de fora<br />

da cidade, às vezes, até mesmo de fora do estado. Ou seja, a culpa era dos não<br />

cidadãos, dos próprios excluídos e não da falta de planejamento e de políticas<br />

públicas adequadas.<br />

No que se refere às representações da cidade nas revistas ilustradas nos anos<br />

de 1950, observa-se que os recortes do espaço, dos temas e das formas de construir a<br />

narrativa apontam para um processo de construção de determinados sentidos, através<br />

de uma nova visualidade urbana. As fotos são diurnas, com luminosidade natural,<br />

e com uma definição clara de linhas. Algumas fotografias apresentam três planos e<br />

uma grande profundidade de campo.<br />

O espaço geográfico destacado é o espaço urbano, o centro, que passa a<br />

representar muitas vezes toda a cidade (como uma metonímia, ou seja, a parte pelo<br />

todo), excluindo do quadro fotográfico as vilas e periferias da cidade. Por sua vez, as<br />

imagens do centro da cidade privilegiam os espaços públicos com ângulos abertos<br />

sobre as principais ruas e avenidas, por vezes no sentido ascensional, destacando<br />

o processo de verticalização da cidade através da construção de prédios de alto<br />

gabarito e, noutras, descensional (áreas) através de fotos panorâmicas que davam a<br />

ver a expansão da área central.<br />

O que se destaca no espaço dos objetos são os prédios de alto gabarito,<br />

com mais 10 andares, os principais edifícios públicos e privados (comerciais e<br />

residenciais) do centro da cidade e as grandes obras públicas (federais e estaduais),<br />

que ajudavam a construir a percepção de uma nova escala monumental de<br />

crescimento, de verticalização e os significados de produtividade urbana. Mas<br />

também os automóveis, que ajudam a dar uma noção da escala dos edifícios e a<br />

construir significados de modernidade urbana.<br />

O espaço de figuração é monopolizado pela circulação de carros, ônibus<br />

e pessoas no centro, principalmente de homens adultos em idade produtiva, que


31<br />

Charles Monteiro<br />

coloca em destaque os significados sociais relativos ao trabalho e ao consumo de<br />

bens e serviços urbanos. As pessoas são representadas em vistas parciais do centro,<br />

de longe, não permitindo sua identificação individual, em movimento, circulando,<br />

trabalhando e comprando. Apontando assim para o transeunte anônimo, produtor e<br />

consumidor dos espaços, produtos e serviços urbanos. Os prédios de alto gabarito<br />

são enquadrados em segundo plano, indicando que essas pessoas vivem, trabalham<br />

ou consomem produtos nesses prédios modernos. O espaço de vivência é o espaço<br />

urbano ordenado, planificado, racionalizado e produtivo da cidade moderna, com<br />

seus fluxos incessantes de trabalho e consumo, com uma nova temporalidade urbana<br />

caracterizada pela velocidade acelerada de circulação de pessoas e automóveis no<br />

centro da cidade.<br />

Passa-se a refletir sobre a construção da imagem dos “outros” sujeitos<br />

urbanos, aqui particularmente representados pelos jovens e pelas crianças em<br />

situação de rua. Esses “outros” não eram considerados como cidadãos-construtores<br />

da cidade moderna e constituíam o avesso da nova ordem no processo de elaboração<br />

de um novo padrão de visualidade do espaço urbano nas fotorreportagens sobre a<br />

cidade de Porto Alegre na Revista do Globo nos anos de 1950.<br />

As fotografias participavam do projeto de construção da visualidade urbana<br />

e do processo de inclusão e legitimação da ação de certos atores e grupos sociais,<br />

bem como da exclusão e estigmatização da ação e presença de outros sujeitos e<br />

grupos sociais no espaço urbano em processo de modernização. As fotografias<br />

ajudavam a dar visibilidade, davam a ver certos grupos e práticas sociais, bem como<br />

construíam hierarquias e diferenças sociais. O processo de construção de identidades<br />

ou de identificações sociais, bem como do seu oposto, a alteridade e a exclusão,<br />

aparece ora de forma camuflada ora de forma clara e plasmada em certos sujeitos e<br />

grupos sociais. Conforme Woodward, os “discursos e os sistemas de representação<br />

constroem lugares a partir dos quais os indivíduos podem se posicionar e a partir dos<br />

quais podem falar”. 33<br />

A elaboração da imagem dos “outros” sujeitos urbanos na<br />

cidade moderna: estigmatização, segregação e sua integração<br />

forçada na sociedade urbana moderna<br />

Passa-se agora a analisar uma série de três fotorreportagens que elaboram a<br />

representação social dos outros sujeitos urbanos na Revista do Globo nos anos 1950. O<br />

estatuto destas imagens fotográficas lembra as fotografias de identificação do projeto<br />

de modernização e ordenação social do final do século XIX, paralelo à ascensão da<br />

33 WOODWARD (2000, p. 17).


32<br />

Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950<br />

burguesia, que elaboraria seus retratos em estúdios na forma de romances. 34<br />

A primeira delas é “Porto Alegre: uma cidade entregue aos ladrões”, de 21<br />

de fevereiro de 1953, 35 com três páginas e oito fotografias em P&B. A fotografia de<br />

abertura da fotorreportagem é de grande formato, no sentido horizontal, e ocupa a<br />

metade da primeira página.<br />

Fonte: TAJES, T.; FLORES, P.; CAVALHEIRO, W. “Porto Alegre: Uma cidade entregue aos ladrões”.<br />

Revista do Globo, 1953, n. 580, p. 60, 61.<br />

Nessa primeira imagem são representadas seis crianças descalças e sentadas<br />

sobre os paralelepípedos da rua (um trilho de bonde é visível no canto direito) em<br />

uma roda. Três delas encontram-se de costas e usam chapéus, uma delas está de<br />

perfil e outras duas de frente para a câmara, mas não podemos ver seus rostos. Três<br />

delas são negras e uma delas tem cabelo claro.<br />

34 Sobre esse tema, ver os excelentes trabalhos de FABRIS (2004, p. 21-55); bem como o estudo sobre o mesmo<br />

processo de identificação dos criminosos e prostitutas no México de DEBROISE (2005, p. 69-79); além de<br />

dois ensaios sobre o nascimento da fotografia de documentação social em Leeds na Inglaterra no séc. XIX e no<br />

Administration Secutity Farm nos Estados Unidos dos anos 1930 em TAGG (2005, p.153-198; 199-236).<br />

35 TAJES, T.; FLORES, P.; CAVALHEIRO, W. “Porto Alegre: Uma cidade entregue aos ladrões”. Revista do Globo,<br />

1953, n. 580, p. 60, 61, 66.


33<br />

Charles Monteiro<br />

Elas parecem conversar ou jogar, pois estão todas olhando para o centro<br />

da roda. A fotografia em P&B, tirada de cima para baixo, ao nível dos olhos de<br />

um adulto, com luz forte do meio dia, salienta os contornos e os volumes. Ao pé<br />

da página, três pequenas fotografias no estilo retrato de meio-corpo e de formato<br />

retangular vertical apresentam três homens de terno e gravata, sentados em fotos de<br />

interior. O primeiro deles está sentado, com apenas ¾ de seu corpo aparecendo na<br />

foto; o segundo está de perfil, sentado, falando ao telefone. O terceiro está de frente,<br />

tendo ao fundo uma parede neutra.<br />

Em uma delas, a fotografia central, é possível identificar que o local é um<br />

escritório, pois o homem está sentado atrás de uma escrivaninha e fala ao telefone. A<br />

análise da diagramação das fotografias na página da revista aponta para uma oposição/<br />

tensão entre a fotografia dos meninos descalços representados acima da página e<br />

as fotografias dos três homens de terno e gravata na parte de baixo da página. Essa<br />

oposição é construída também no plano formal, pois a primeira fotografia é externa<br />

e enquadra um pequeno grupo na rua, enquanto as três fotografias abaixo enquadram<br />

planos fechados do interior de um escritório. A primeira é tirada de cima para baixo<br />

apontando uma hierarquia do olhar (superioridade do fotógrafo/repórter/adulto que tira<br />

a foto) e cortada no formato retângulo horizontal salientando o chão, no qual as crianças<br />

encontram-se sentadas, já as outras três fotografias são tomadas da mesma altura dos<br />

olhos dos homens de terno e são cortadas em um retângulo vertical (ascensão).<br />

Na página seguinte, outras quatro fotos de formato pequeno e retangular<br />

vertical completam a fotorreportagem. As legendas dessas fotos ampliam essa<br />

contradição e aprofundam a tensão social entre esses dois grupos. Sobre o primeiro<br />

grupo se projeta um olhar externo, que é um ser visto pelo outro, ou seja, a objetiva<br />

do repórter fotográfico, e no segundo há um “dar-se a ver” da autoridade policial que<br />

olha para a câmera do fotógrafo.<br />

A legenda da primeira foto afirma que “sessenta por cento dos larápios que<br />

agem em Porto Alegre são menores” e completa que “não é de estranhar, pois a<br />

qualquer momento, em qualquer parte da capital, podem-se ver grupos de garotos<br />

na malandragem, sem lar, sem escola, sem assistência”. 36 As legendas das seis fotos<br />

menores de homens de terno e gravata indicam que se trata do delegado Homero<br />

Schneider, do delegado-adjunto Miranda Meira, do inspetor-chefe Osmar Barreto,<br />

dos inspetores Osvaldo Scherer e Alfredo Vitorino Vargas e do depositário Agostinho<br />

F. Pena. Todos individualizados ao serem retratados de perto em seu ambiente<br />

de trabalho, no exercício de suas funções e identificados pelo nome, sobrenome<br />

e respectivos cargos na polícia. A ordem policial é representada pelos policiais e<br />

objetos relacionados ao seu trabalho (telefone, livros, cofre).<br />

36 TAJES, T.; FLORES, P.; CAVALHEIRO, W. “Porto Alegre: Uma cidade entregue aos ladrões”. Revista do Globo,<br />

1953, n. 580, p. 60.


34<br />

Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950<br />

A análise do texto da fotorreportagem aponta para o aprofundamento dos<br />

binômios delinquentes versus polícia e desordem versus ordem policial, o que reforça<br />

esse processo de hierarquização e estigmatização das crianças de rua através do<br />

tom sensacionalista que caracterizava as revistas ilustradas do período. O subtítulo<br />

afirma: “Desaparelhada de gente e de material, a Delegacia Especial de atentados à<br />

propriedade na capital gaúcha tem contra si um adversário cem vezes mais numeroso:<br />

os menores delinquentes e os fugitivos”. 37 A Revista também dá a palavra aos policiais,<br />

enquanto se apropria da fala de um dos jovens para construir dele uma imagem de<br />

perigoso contraventor: “O pobre rapazinho confessou ainda que sua maior aspiração<br />

era ser chefe de uma quadrilha, ter automóvel e metralhadora”. 38 A estigmatização<br />

social desses jovens pela revista se completa ao final da fotorreportagem:<br />

O que de melhor se poderia esperar de uma geração criada<br />

na maloca, analfabeta e acostumada desde criança a disputar<br />

com os porcos a própria alimentação. Procurem-se as fichas<br />

dos recém-entrados na Casa de Correção. Noventa por cento<br />

analfabetos! É o que prolifera em nossas vilas de marginais, fruto<br />

da desagregação dos costumes, da dissolução das famílias. 39<br />

Acerca da imagem pública dessas crianças e jovens, a revista sentencia: “A<br />

maior desgraça para eles é a lei que não permite à imprensa publicar fotografias ou<br />

o nome dos menores”, 40 o que explica o fato de as fotografias não mostrarem nem os<br />

rostos e nem os olhos dos jovens. Isso evidencia o desejo social de visibilidade do<br />

poder (da polícia), de identificação e de controle desses jovens em uma cidade em<br />

processo acelerado de crescimento e diversificação social.<br />

A campanha de moralização e controle social do espaço urbano fica<br />

clara quando a revista dá a palavra ao inspetor Schneider: “Sessenta por cento<br />

dos furtos praticados em Porto Alegre são de autoria de menores. Ache-se um<br />

estabelecimento adequado e tire-se de circulação cinquenta meninos delinquentes<br />

e a estatística baixará”. 41<br />

Ou seja, o ideal policial seria o seu isolamento e a sua vigilância em instituições<br />

corretivas para crianças e adolescentes. O que nos leva a outra fotorreportagem da<br />

Revista do Globo, de 10 de julho de 1954, intitulada “Não é doce nem é lar”, com<br />

texto de Dionísio Toledo e fotos de Pedro Flores, exatamente sobre esse assunto. 42<br />

37 Id., Ib., p. 60.<br />

38 Id., Ib., p. 60.<br />

39 Id., Ib., p. 61.<br />

40 Id., Ib., p. 61.<br />

41 Id., Ib., p. 61.<br />

42 TOLEDO, D.; FLORES, P. Não é doce nem é lar. Revista do Globo, 1953, n. 616, p. 48-50, 56.


35<br />

Charles Monteiro<br />

Fonte: TOLEDO, D.; FLORES, P. “Não é doce nem é lar”. Revista do Globo, 1953, n. 616, p. 48-49.<br />

A fotorreportagem tem três páginas com cinco fotografias, iniciando-se<br />

com página dupla com duas fotos de formato grande (com mais de ½ página) e<br />

continuando na terceira página com três fotos de formato pequeno com menos de ¼<br />

de página. Nas primeiras duas páginas, na abertura da fotorreportagem, apresentamse<br />

fotografias de grande formato com tom sensacionalista visando causar impacto e<br />

despertar a atenção do leitor.<br />

A primeira foto no formato retangular vertical apresenta em primeiro plano<br />

um jovem negro de costas, enrolado em um cobertor, descalço e caminhando sobre as<br />

pedras irregulares de um pátio e ao fundo, em segundo plano, uma fileira de jovens<br />

sentados no chão (com tarjas pretas cobrindo os olhos) diante de uma casa térrea de<br />

madeira com beiral. Ao lado, a segunda foto apresenta em primeiro plano um pátio<br />

com chão de pedras, sobre o qual se projeta uma larga sombra, no qual se encontra<br />

um grupo de jovens sentados no chão lado a lado em fila (dois deles se destacam por<br />

estarem em pé) em frente a uma casa de madeira e de telhado baixo com três aberturas<br />

de onde pendem cobertores. Veem-se, ainda, ao fundo, um fragmento de céu, a parede<br />

de outra casa e a copa de uma árvore que projeta sua sombra sobre o pátio, onde quatro


36<br />

Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950<br />

jovens se encontram sentados contra a parede. Observa-se, por um fragmento do<br />

cobertor nas costas do jovem da primeira fotografia que aparece na segunda fotografia,<br />

que se trata do mesmo lugar e que essas se complementam enfocando os dois lados do<br />

mesmo pátio. O que permite ver a casa ao fundo e um grande grupo de jovens sentados<br />

no chão do pátio ora mais de perto ora mais de longe em seu conjunto.<br />

Na página seguinte, três fotografias de formato pequeno complementam e<br />

detalham alguns aspectos das duas imagens anteriores. No alto da página, a terceira<br />

foto apresenta uma parede rústica com uma prateleira, onde se observa uma fileira<br />

de latas, abaixo dela um banco de tábuas e em cima dele um tacho de leite vazio<br />

virado. Na quarta foto, quatro jovens dormem amontoados no chão no canto de uma<br />

peça enrolados em panos. No plano do conteúdo, observa-se a repetição da ideia de<br />

empilhamento dos jovens sentados no chão, dormindo num canto de peça, dos panos<br />

sobre um cavalete e das latas. Os significados de rusticidade do chão de pedras, da<br />

casa de madeira, das paredes rugosas da pilha de panos e latas. A casa térrea de uma<br />

água que lembra o espaço rural e o passado colonial em oposição à casa burguesa<br />

e aos prédios de apartamentos que dominam a representação da cidade em outras<br />

fotorreportagens. Os significados de abandono e a anomia são explorados através da<br />

apresentação dos jovens sentados contra a parede ou deitados no chão, bem como a<br />

pobreza das suas vestes e do lugar que se encontram.<br />

Fonte: TOLEDO, D.; FLORES, P. Não é doce nem é lar. Revista do Globo, 1953, n. 616, p. 50, 56.


37<br />

Charles Monteiro<br />

A análise formal das imagens aponta para escolhas de enquadramento e<br />

luminosidade que ampliam esses significados de pobreza, rusticidade e abandono.<br />

Nas duas primeiras fotos de grande formato, a câmera baixa (próxima ao chão)<br />

coloca em primeiro plano o piso do pátio de pedras irregulares, sobre o qual se<br />

projetam largas sombras, focando os pés descalços dos jovens. A sequência narrativa<br />

das fotos começa no exterior e penetra no interior rústico da habitação apresentando<br />

detalhes que complementam os significados de pobreza, rusticidade e abandono.<br />

Estamos na esfera do visível dos dispositivos do olhar do poder, da visão<br />

policial, que esquadrinha e dá a ver o outro, que torna o visível para reificá-lo, que<br />

o transforma em objeto, em coisa. A revista dá a ver o outro – o jovem, negro,<br />

pobre, condenado pela justiça – na sua miséria e na sua diferença em relação ao<br />

padrão burguês de habitação e consumo da cidade moderna. Desvalorizando-o e<br />

estigmatizando-o em relação às esferas do trabalho e do ordenamento social que<br />

caracterizam as representações da cidade moderna e das classes alinhadas com esse<br />

projeto de modernização.<br />

Os títulos, as legendas e os textos ampliam essa representação e colaboram<br />

para construir uma imagem de alteridade negativa destes jovens relacionado a<br />

certos espaços da cidade. Observe-se o subtítulo da fotorreportagem: “É na Colônia<br />

Africana, um antro miserável, que Porto Alegre procura ‘recuperar’ seus menores<br />

delinquentes”. 43 Nesse subtítulo, associa-se a representação desses jovens com os<br />

significados de colônia, de africana, de miserável e de delinquência, localizados em<br />

determinado espaço urbano e que se opõe ao conjunto da cidade de Porto Alegre.<br />

A fotorreportagem adquire tom de fotonovela pela forma como a narrativa<br />

é conduzida em primeira pessoa, seguindo os passos do repórter que procura<br />

desvendar o problema do jovem e criança de rua em Porto Alegre. O texto começa<br />

com uma caminhada da personagem-repórter pelo centro da cidade a deparar-se com<br />

as manchetes dos jornais a noticiar o arrombamento de seis prédios. Depois, em<br />

um fluxo de consciência, a personagem pensa na possibilidade de sua residência<br />

ser arrombada e na sua vontade de ver os responsáveis na cadeia. Na sequência<br />

depara-se com uma criança oferecendo-se para engraxar os seus sapatos, aceita e<br />

passa a pensar no problema dos jovens delinquentes da cidade. O fato o leva a querer<br />

investigar o assunto. Ele se dirige à autoridade competente do Juizado de Menores,<br />

que lhe fala do problema da escassez de verbas e se oferece para conduzi-lo a um<br />

passeio visando conhecer uma instituição que abriga jovens e crianças na Colônia<br />

Africana. Cabe salientar que essa forma de narrativa (próxima ao antigo folhetim e<br />

à fotonovela) visa despertar o interesse dos leitores e colocá-los ao lado do repórter<br />

em sua “pesquisa”. A descrição da instituição pela personagem-repórter é bastante<br />

forte e entremeada de qualificativos:<br />

43 TOLEDO, D.; FLORES, P. Não é doce nem é lar. Revista do Globo, 1953, n. 616, p. 48-49.


38<br />

Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950<br />

Dirigimo-nos para lá, entramos em seu recinto, e... que horror!<br />

Duas celas, duas jaulas. Cinquenta menores, uns sobre os outros,<br />

o que nos faz pensar nas promiscuidades que devem se suceder<br />

entre eles. Um cheiro insuportável das instalações sanitárias<br />

junto às celas sem porta. Não há uma cama sequer, sacos servem<br />

de cobertores. Uma massa humana agrupada atrás das grades a<br />

pedir cigarros. Então a nosso pedido, são todos eles retirados das<br />

“grades”, colocados em uma fileira, se deixam fotografar com<br />

uma passividade de bestas. 44<br />

Descobre-se, então, que a fotografia foi armada, e os jovens posaram para<br />

ela segundo a lógica da fotografia policial de identificação do criminoso, do outro, do<br />

excluído. A avaliação da revista é tanto estética quanto moral sobre o lugar e as pessoas<br />

que lá se encontram. “Lá” na Colônia Africana, tudo se opõe à moral, à estética e<br />

aos padrões sociais civilizados que o repórter e os leitores defendem na “cidade”.<br />

Mais adiante, o repórter-personagem completa o processo de estigmatização desse<br />

“outro”: “Todos esses garotos que podiam ser de utilidade social em verdade não<br />

passam de autênticas bestas humanas”. 45<br />

Apesar de certo humanismo que leva o repórter a associar aqueles jovens<br />

ao engraxate que encontrou no centro e da vontade “de que seja nosso próprio filho,<br />

que o levemos para casa...”, 46 a reportagem defende um conjunto de medidas de<br />

caráter preventivo das autoridades que permitissem identificar, avaliar, encaminhar<br />

e tratar esses jovens visando a sua recuperação e reintegração no convívio social.<br />

Para tanto, poder-se-ia utilizar o regime semiaberto, sob vigilância discreta, mas<br />

constante. O que remete à próxima fotorreportagem sobre uma nova instituição para<br />

o recolhimento e reeducação de jovens infratores.<br />

A fotorreportagem “O lar para o pequeno marginal”, 47 de 24 de agosto de<br />

1957, com texto de Antônio Goulart e fotografias de Léo Guerreiro, é composta<br />

de seis páginas e sete fotos P&B: duas fotos grandes com formato de retângulo<br />

horizontal, três fotos de tamanho médio (uma no formato retângulo vertical e outras<br />

duas no formato retângulo horizontal) e duas fotos pequenas no formato quadrado.<br />

44 Id., Ib., p. 50.<br />

45 Id., Ib., p. 50.<br />

46 Id., Ib., p. 50.<br />

47 GOULART, A.; GUERREIRO, L. O novo lar para o pequeno marginal. Revista do Globo, 1957, n. 697, p. 36-41.


39<br />

Charles Monteiro<br />

Fonte: GOULART, A.; GUERREIRO, L. O novo lar para o pequeno marginal. Revista do Globo,<br />

1957, n. 697, p. 36,37.<br />

Ela começa em página dupla com uma fotografia retangular na vertical um<br />

pouco menor do que meia página. Nela se podem observar dois rapazes no fundo<br />

de um longo corredor. Em primeiro plano, destaca-se o piso de ladrilhos de duas<br />

cores em “L”; em segundo plano, um jovem de costas caminha em direção ao fundo<br />

do corredor e caminha em frente a três portas abertas de onde se projeta uma luz<br />

sobre a parede contrária cheia de portas de armários fechadas; um pouco à frente e<br />

à esquerda, outro rapaz procura algo dentro de um armário com a porta aberta. No<br />

teto de cor clara, como as paredes laterais, observam-se duas luminárias. Não se<br />

observam objetos no chão ou nas paredes.<br />

No plano formal, a foto tirada em ângulo de 90 graus com o chão, que<br />

ocupa o primeiro plano e com os jovens ao fundo em segundo plano, destaca a<br />

profundidade e a amplidão do corredor; a sequência de portas de armários e de portas<br />

abertas dá ritmo, ordenação e equilíbrio à imagem. A fotografia constrói significados<br />

de ordem, limpeza e amplitude do espaço. O que é reafirmado pela legenda “Ao lado<br />

do dormitório, num longo e claro corredor, cada um deles possui o seu armário para


40<br />

Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950<br />

roupa”. 48 A segunda foto é uma vista parcial que, em primeiro plano, apresenta uma<br />

grande árvore e, em segundo plano, em toda a sua extensão um longo edifício de dois<br />

andares, em terceiro plano, o céu ocupa boa parte do espaço da fotografia.<br />

No plano formal, observa-se que o fotógrafo construiu uma foto tirada a<br />

distância para enquadrar a árvore alta que se sobrepõe e projeta a sua sombra sobre<br />

o longo prédio de dois andares com uma generosa porção de céu ao fundo. A árvore<br />

alta parece proteger o edifício novo ao projetar sua sombra sobre ele. A tomada a<br />

distância enfatiza o tamanho do prédio e sua integração com a natureza (árvore e<br />

céu) construindo significados de salubridade e amplidão. O que também é destacado<br />

na legenda e no início do texto da fotorreportagem: “Num amplo descampado, atrás<br />

de uma colina, ergue-se o moderno edifício do Novo Lar de Menores”. 49 O adjetivo<br />

moderno coloca-o em sintonia com os objetivos reiterados da revista de ser portavoz<br />

do homem e da mulher moderna. No terceiro parágrafo descreve-se o Novo Lar:<br />

A casa apresenta-se com simplicidade, dentro de um estilo<br />

funcional e linhas modernas. Tem capacidade para 50 ou mais<br />

pessoas. Tudo muito amplo, aberto, não oferecendo aos meninos<br />

o mínimo aspecto de prisão. Bem perto se alarga um campo de<br />

esportes, mais abaixo uma horta. 50<br />

As fotografias e o texto complementam-se na apresentação das instalações e<br />

das atividades que se desenvolvem na instituição. Nesse sentido as fotos têm o papel<br />

de testemunhar e certificar a veracidade e a exatidão da descrição, como se observa<br />

na sequência de cinco fotos que complementam a fotorreportagem, testemunhando e<br />

detalhando atividades de trabalho e de lazer dos meninos na instituição. Na segunda<br />

página, a terceira foto enquadra em primeiro plano um menino de costas no gol<br />

observando três outros garotos disputando a bola a alguns metros à frente, no segundo<br />

plano. Num terceiro plano, apresenta-se a amplidão de um campo aberto e morros<br />

ao fundo, muito além dos limites do campo de futebol onde os meninos jogam bola.<br />

Na foto abaixo dessa, apresentam-se em primeiro plano dois meninos carregando<br />

enxadas, em segundo plano, mais à frente dois homens também carregando<br />

ferramentas (o primeiro deles de roupa preta, que aparenta ser um padre de batina)<br />

e, mais além, observam-se o prédio da instituição e a amplidão do céu. No plano<br />

icônico de conteúdo, as duas fotos apresentam a união de lazer e trabalho, ambas as<br />

atividades desenvolvidas ao ar livre e em contato com a natureza (campo, árvores,<br />

céu). Por isso, muito saudáveis e apropriadas a esses jovens. O que é complementado<br />

pelo subtítulo ao lado “Apreciam esporte e trabalho”. 51<br />

48 GOULART, A.; GUERREIRO, L. O novo lar para o pequeno marginal. Revista do Globo, 1957, n. 697, p. 36.<br />

49 GOULART, A.; GUERREIRO, L. O novo lar para o pequeno marginal. Revista do Globo, 1957, n. 697, p. 37.<br />

50 Id., Ib., p. 37.<br />

51 Id., Ib., p. 38.


41<br />

Charles Monteiro<br />

No formal da expressão, estas vistas parciais da instituição com grande<br />

profundidade de campo e enquadramento do céu (representa entre ⅓ e ½ das<br />

fotografias respectivamente) apontam para a vida em contato com a natureza,<br />

liberdade, salubridade, num ambiente com harmonia e paz ideal para o<br />

desenvolvimento dos jovens.<br />

Fonte: GOULART, A.; GUERREIRO, L. “O novo lar para o pequeno marginal”. Revista do Globo,<br />

1957, n. 697, p. 38-39.<br />

Outras três imagens complementam esses significados nas duas páginas<br />

seguintes que concluem a reportagem. 52 Nestas páginas, as fotos, o subtítulo e as<br />

legendas concorrem com as publicidades que ocupam a metade externa dessas<br />

páginas. A quinta fotografia apresenta um grupo de jovens/meninos ao redor de uma<br />

mesa em um ambiente amplo. Em primeiro plano, um menino está se levantando na<br />

ponta da mesa e outro está de pé no lado esquerdo, um homem de pé parece ser um<br />

padre usando batina preta, outros três meninos estão sentados e outros dois mais ao<br />

fundo parecem estar de pé atrás da mesa. Em um segundo plano, ao fundo da sala<br />

ampla há armários na parede e uma porta aberta para outro aposento. A legenda<br />

52 GOULART, A.; GUERREIRO, L. O novo lar para o pequeno marginal. Revista do Globo, 1957, n. 697, p. 40-41.


42<br />

Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950<br />

esclarece: “No refeitório este grupo, sem nenhuma cerimônia, mistura no café da<br />

tarde conversa e risadas gostosas”. A foto é um instantâneo, a análise icônica sugere<br />

o binômio formado pela amplidão da sala e a unidade do grupo ao redor da mesa para<br />

a refeição. A descontração do grupo é vigiada e controlada pelo padre ao fundo, que<br />

representa a autoridade e a ordem na instituição. O grupo que está bem centralizado<br />

e em foco é núcleo significante da imagem. O contraste entre a luminosidade clara<br />

da sala e os tons mais escuros das roupas dos meninos do grupo ao redor da mesa<br />

complementa esse significado de unidade do grupo.<br />

Fonte: GOULART, A.; GUERREIRO, L. O novo lar para o pequeno marginal.<br />

Revista do Globo, 1957, n. 697, p. 40-41.<br />

Ao lado dessa fotografia, outra apresenta dois meninos em um dormitório<br />

arrumando as suas camas. As roupas de cama parecem bem brancas, e uma<br />

luminosidade forte entra através das duas janelas abertas sobre as camas. É um<br />

instantâneo ou foto posada? Não se pode saber ao certo, mas tudo indica a pose.<br />

Novamente, a análise do conteúdo aponta para a construção de significados de<br />

responsabilidade, disciplina, ordem, higiene e bem-estar dos meninos na instituição.


43<br />

Charles Monteiro<br />

Embaixo, na mesma página, uma fotografia média em formato retangular<br />

horizontal representa dois jovens e um menino operando máquinas sobre bancadas<br />

de ferro e madeira num ambiente que parece ser uma oficina. Em primeiro plano à<br />

direita, observa-se um jovem de frente para a câmera (porém seu rosto foi borrado,<br />

provavelmente no negativo antes da ampliação, para preservar a sua identidade)<br />

operando uma ferramenta elétrica com a mão esquerda e pousando a mão direita<br />

sobre outra em cima da bancada. Em segundo plano, outro jovem de costas opera<br />

uma máquina sobre uma bancada. A legenda esclarece tratar-se de uma oficina de<br />

marcenaria onde se fabricam móveis.<br />

No plano do conteúdo, essa imagem encerra a fotorreportagem com os<br />

significados do trabalho, da operosidade, da produtividade com complemento e ponto<br />

culminante do trabalho de reabilitação e ressocialização dos “pequenos marginais”<br />

(sic). A narrativa visual ordenada nos leva a um passeio pela instituição: começamos<br />

a distância contemplando o terreno, a modernidade e o tamanho do prédio, bem como<br />

sua localização favorável em meio à natureza; depois passamos ao campo de futebol;<br />

e ainda a volta do trabalho da horta; no interior observamos o refeitório, os quartos<br />

e a oficina. Tudo muito limpo, espaçoso, ordenado e iluminado para a reabilitação<br />

dos meninos e jovens sobre o olhar atento e vigilante do padre e seu assistente. Há<br />

um processo de acumulação e de reforço dos significados das imagens anteriores<br />

de forma bastante pedagógica para o leitor da revista, visando apresentar-lhes os<br />

benefícios da reclusão, do trabalho, da disciplina e do trabalho para a reabilitação e<br />

reinserção social desses jovens e meninos.<br />

Essas reportagens encerram todo um percurso e uma discussão sobre o<br />

lugar da criança e do jovem de rua na cidade moderna. Na primeira reportagem o<br />

leitor é informado da sua periculosidade e dos inúmeros roubos por eles cometidos,<br />

fazendo-os figurar como ameaça número um à propriedade. Na segunda reportagem,<br />

a revista focaliza os jovens vivendo quase como animais em um antro na periferia<br />

da cidade: a Colônia Africana. Finalmente, a última reportagem apresenta a solução<br />

do problema com o distanciamento desses jovens e meninos da cidade grande para<br />

as áreas saudáveis em contato com a natureza de Viamão no “Novo Lar do Menor”.<br />

Nesse ambiente saudável, limpo, arejado e disciplinado, isolado dos maus da cidade,<br />

eles aprenderão a trabalhar na horta, na oficina e receberão cama, comida, roupas e<br />

educação profissional para se tornarem indivíduos úteis e prontos para se reinserirem<br />

na sociedade moderna.<br />

Logo, a todo um processo de estigmatização desses jovens e crianças de<br />

rua, exigindo seu afastamento dos antros das periferias (verdadeiras escolas do<br />

crime) e sua segregação em espaços afastados da cidade, em meio à natureza,<br />

visando a seu disciplinamento, recuperação e futura reinserção na sociedade<br />

através do mundo do trabalho.


44<br />

Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950<br />

Através dessas fotorreportagens, a revista se engajou no projeto de<br />

modernidade e de modernização da cidade através da construção de uma nova<br />

visualidade. Essa nova visualidade urbana jogou tanto com significados sociais<br />

de inclusão e legitimação da ação de certos atores e grupos sociais no espaço<br />

urbano quanto de estigmatização e exclusão de outros sujeitos e grupos sociais<br />

na cidade em processo de modernização. Este é o caso dos jovens e das crianças<br />

de rua, infratoras ou não, que passavam a ser identificadas como uma ameaça à<br />

propriedade e à ordem social.<br />

As fotografias ajudavam a dar visibilidade à ação da polícia no combate ao<br />

crime e a construir uma imagem negativa desses jovens e dos espaços urbanos a eles<br />

associados na cidade: as vilas periféricas. Elas construíam hierarquias e diferenças<br />

sociais, produzindo a segregação desses sujeitos no espaço urbano. Elas terminavam<br />

reforçando e legitimando o processo de afastamento desses grupos para áreas distantes<br />

dos espaços centrais onde imperaria a lógica da modernidade, da sociedade de consumo e<br />

da especulação imobiliária. O processo de construção de identidades ou de identificações<br />

sociais passa pela definição de práticas modernas e seu avesso, constituindo a alteridade.<br />

A necessidade de exclusão e de disciplinamento dos jovens de rua aparece de forma clara<br />

nas páginas das fotorreportagens, sendo construída pelas falas das autoridades policiais e<br />

pela forma como a revista alçada à condição de porta-voz da sociedade porto-alegrense<br />

construía a sua imagem. A imagem destes jovens e crianças em situação de rua fazia<br />

estilhaçar o espelho onde se projetava a nova imagem de cidade em construção no espaço<br />

urbano e em elaboração nas páginas da Revista do Globo. Logo, essa imagem exigia uma<br />

elaboração e um tratamento para que não ferisse a nova sensibilidade ou o novo padrão<br />

visual de cidade moderna consumida pelas elites e camadas médias. A nova visualidade<br />

urbana construída na revista permite uma série de recursos (editoração, paginação,<br />

narrativa etc.) para elaborar e disciplinar essa imagem do outro e fazê-la reforçar os<br />

significados sociais ligados à modernidade: visibilidade e ordenamento entre outros.<br />

Nesse sentido, a análise dessas fotorreportagens permite problematizar a<br />

construção de um padrão de visualidade urbana e o discurso de modernidade social<br />

das revistas ilustradas. Elas fazem pensar sobre a forma excludente e hierárquica<br />

como é construída a imagem dos “outros” sujeitos sociais, que terminam sendo apenas<br />

objetos do olhar disciplinador das elites que os coisifica, tornando-os alvo de políticas<br />

públicas e não sujeitos sociais com direitos civis e demandas políticas no processo de<br />

construção social do espaço urbano. Por outro lado, ajudam a legitimar o processo de<br />

mercantilização e monopolização do espaço urbano através da especulação imobiliária<br />

e a verticalização da área central da cidade através da construção de edifícios de<br />

alto gabarito, bem como da difusão de novas formas de sociabilidade e formas de<br />

consumo através das publicidades associadas às reportagens no contexto do processo<br />

de diagramação e edição das fotografias nas páginas da revista.


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entregue aos ladrões. Revista do Globo, 1953, n. 580, p. 60, 61, 66.<br />

TOLEDO, D.; FLORES, P. Não é doce nem é lar. Revista do Globo, 1953,<br />

n. 616, p. 48-50, 56.<br />

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era do espetáculo. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.<br />

VAZ, Paulo Bernardo (ed.). Narrativas fotográficas. Belo Horizonte:<br />

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prensa. In: ______. Teoria de la imagen periodística. Barcelona: Paidós<br />

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estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 7-72.


CAPíTUlO 2<br />

A TéCNICA DE JOÃO AlBERTO FONSECA DA SIlVA<br />

E A ARTE DE SIOMA BREITMAN NA FOTOGRAFIA<br />

PORTO-AlEGRENSE DOS ANOS 1950<br />

Rodrigo Massia 1<br />

Sioma Breitman fotografou do ano de 1921 até 1970, quando decidiu se<br />

aposentar. João Alberto Fonseca da Silva começou a tomar contato com a fotografia<br />

a partir do trabalho de laboratorista no Serviço Histórico Geográfico do Exército, no<br />

ano de 1939. Fotografou profissionalmente até os anos 1990. Ao valer-se da biografia<br />

destes dois sujeitos, pretende-se problematizar em que medida estas duas trajetórias<br />

permitem compreender parte do circuito social da fotografia em Porto Alegre na<br />

década de 1950.<br />

Como se trata de um tema ainda pouco explorado pela pesquisa histórica,<br />

essa investigação utiliza depoimentos orais. A reflexão sobre este tipo de fonte<br />

necessariamente implica uma problemática da memória, que se relaciona aqui<br />

com a textualidade de Sioma e a oralidade de João Alberto. Outrossim, estes dois<br />

fotógrafos possuem trajetórias distintas, o que se cristaliza no modo como falam de<br />

sua atividade e de sua relação com os demais colegas de profissão.<br />

Sioma Breitman escreveu um livro 2 contendo 166 páginas no qual narra<br />

trechos de sua trajetória. João Alberto concedeu dois depoimentos 3 ao Museu de<br />

Comunicação Social Hipólito José da Costa. O primeiro depoimento data de 1978,<br />

e o segundo foi realizado no ano de 2006. Há um intervalo de 28 anos entre uma<br />

entrevista e outra. Sioma Breitman tem sua memória bastante consolidada, pois sua<br />

atividade conta com maior reconhecimento do estado. Há um logradouro com o<br />

seu nome e a fototeca homônima do Museu Municipal Joaquim José Felizardo. A<br />

doação de parte de seu acervo fotográfico foi concedida ao Museu em função desse<br />

reconhecimento. 4 João Alberto considera-se um homem de sorte por ter parte de seu<br />

trabalho reconhecido como algo que deve ser preservado, pois se constitui em parte<br />

da memória arquitetônica da cidade.<br />

As fontes sobre os dois fotógrafos são de tipos distintos e exigem formas de<br />

leitura crítica diferenciadas pelo historiador. O livro escrito por Sioma Breitman faz<br />

parte do acervo público do fotógrafo e se encontra no Museu Joaquim José Felizardo.<br />

1 Mestre em <strong>História</strong> pela PUCRS. E-mail: rodrigo.massia@gmail.com.<br />

2 BREITMAN (1976.).<br />

3 SILVA (1978, 2006.).<br />

4 Cf. POSSAMAI (1998, p. 95).


51<br />

Rodrigo Massia<br />

Trata-se de uma fonte textual na qual o escritor teve a oportunidade de escrever, corrigir<br />

e enfatizar momentos de sua trajetória, bem como relegar outros ao esquecimento. O<br />

processo de escrita permite maior controle sobre a edição e a escolha das palavras. A<br />

motivação para a elaboração do livro teria sido de ordem pessoal, ou seja, responderia,<br />

segundo Sioma Breitman, a uma demanda de memória familiar.<br />

No caso de João Alberto, as entrevistas realizadas não obedeceram a um<br />

roteiro estabelecido por esta pesquisa. Foram produzidas para registrar a trajetória<br />

do fotógrafo, de modo que abarcasse a totalidade de sua atividade profissional. 5 As<br />

entrevistas, ocorridas em tempos distintos, não contaram com a presença ou com<br />

qualquer sugestão de pauta para este trabalho. O contato com a fonte foi feito a<br />

partir do áudio e da transcrição das falas do fotógrafo registradas nas fitas cassete.<br />

Apesar de o autor não exercer o papel de entrevistador, a pesquisa contribuiu para<br />

um momento decisivo do acervo oral: quando ele se torna um documento textual. O<br />

material foi digitalizado e entregue ao Museu, que agora conta com o arquivo textual<br />

e sonoro em formato digital.<br />

Dentre os diferentes tipos de enfoque da <strong>História</strong> oral, este trabalho<br />

caracteriza-se como uma história oral temática. 6 Nessa abordagem o pesquisador<br />

faz um uso direcionado da fonte, pois ela conduz as entrevistas ou as utiliza em<br />

função de um tema que tem relação com a história de vida do entrevistado. Não<br />

se mensurou aqui a tradição oral, mas os aspectos da memória individual de João<br />

Alberto. Entende-se aqui a memória individual como “uma reconstrução psíquica e<br />

intelectual que acarreta de fato uma representação seletiva do passado, um passado<br />

que nunca é aquele do indivíduo somente, mas do indivíduo inserido num contexto<br />

familiar, social, nacional”. A concepção teórica sobre a memória visa pensar em que<br />

medida estas fontes podem auxiliar a pensar no circuito social da fotografia em Porto<br />

Alegre nas décadas de 1940 e 1950.<br />

João Alberto Fonseca da Silva: o olhar do migrante, o olhar<br />

técnico<br />

João Alberto Fonseca da Silva é natural de Quaraí, cidade localizada<br />

próxima à fronteira com o Uruguai e a Argentina. Quando chegou à idade de servir<br />

ao exército veio a Porto Alegre, para tentar melhores condições de vida. Foi quando<br />

teve a oportunidade de trabalhar como laboratorista do Serviço Geográfico do<br />

Exército, no qual aprendeu as técnicas de revelação e de composição de cartas em<br />

5 O tratamento das fontes orais orientou-se, em linhas gerais, pelas propostas de: VOLDMAN In: AMADO;<br />

FERREIRA (1996, p. 33-41.).<br />

6 ROUSSO In: AMADO; FERREIRA (1996, p. 93-101.).


52<br />

A técnica de João Alberto Fonseca da Silva e a arte de Sioma Breitman<br />

aerofotogrametria. A aerofotogrametria é uma técnica que permite o levantamento<br />

de extensas áreas, que são fotografadas e posteriormente transformadas em cartas<br />

topográficas, equivalentes a mapas que indicam as condições do terreno: formações<br />

naturais, localização de cidades, curso dos rios etc.<br />

Com o aprendizado obtido nesta tipologia de processo técnico em fotografia<br />

e com as amizades que fez em sua passagem pelo exército, João Alberto ingressou<br />

na Secretaria Estadual de Obras Públicas. Em suas memórias, João Alberto lembra<br />

que ingressou no Serviço Geográfico em 1939 e que trabalhou nas Obras Públicas<br />

no período em que o governador era Walter Jobim, portanto, entre os anos de<br />

1947 e 1951. Na secretaria, João Alberto relata que os órgãos públicos passaram<br />

a fazer uso corrente de fotografias, notadamente a Secretaria de Obras Públicas.<br />

Dentro desta havia a Diretoria de Saneamento e Urbanismo, subseção na qual<br />

João Alberto era encarregado de fotografar as inaugurações das obras públicas do<br />

Estado, acompanhando o secretário, e fazer levantamento fotográfico das áreas que<br />

receberiam melhoramentos no abastecimento de água e tratamento de esgoto.<br />

Cabe aqui salientar o lugar que esse tipo de imagem ocupa na história da<br />

fotografia. A partir da segunda metade do século XIX, com a complexificação e<br />

centralização da máquina estatal, a fotografia começou a ser utilizada como uma<br />

importante ferramenta auxiliar no planejamento de obras públicas e no controle do<br />

espaço urbano. 7 No Brasil, foi no contexto do Estado Novo que a fotografia ganhou<br />

maior espaço com essas atribuições. Em níveis federais destaca-se a contratação de<br />

fotógrafos para o Departamento de Imprensa e Propaganda, Serviços de Proteção<br />

ao índio e ao Instituto do Patrimônio Histórico <strong>Cultura</strong>l, todos estes executados<br />

por fotógrafos estrangeiros. 8 Em finais dos anos 1940 o IBGE também passou a<br />

trabalhar com fotógrafos profissionais, com vistas a documentar a geografia humana<br />

das regiões periféricas do Brasil. 9<br />

Junto ao trabalho no Setor de Obras Públicas João Alberto começou a<br />

produzir outros tipos de fotografia. Como o cargo de fotógrafo do departamento<br />

passou a ser desempenhado em meio turno, João buscou alternativas para aumentar<br />

seus rendimentos e aprender outras possibilidades do ofício. Fotografou casamentos,<br />

confeccionou lembranças de aniversário e atuou como artista-fotógrafo, fazendo<br />

fotografias de criança. Segundo o fotógrafo, esta era a melhor alternativa para um<br />

iniciante, porque as crianças têm a pele quase sem imperfeições, sendo a melhor<br />

maneira de chegar aos cânones de beleza que vigoravam na sua época. 10 Outras duas<br />

áreas de extrema importância nos trabalhos de João Alberto foram a publicidade e<br />

7 Sobre este tema em uma perspectiva internacional ver: TAGG (2005, p.199-235).<br />

8 Cf. COELHO (2006, p.79-99). MAUAD (2005, p.43-75).<br />

9 Foram três fotógrafos contratados, todos eles imigrantes húngaros. Cf. ABRANTES (2007, p.1-8).<br />

10 Esta concepção estética encontra correspondência com a corrente europeia do pictorialismo na fotografia. Para<br />

saber mais ver: MELLO (1998, p. 43-46.).


53<br />

Rodrigo Massia<br />

a arquitetura. Os trabalhos para os escritórios de arquitetura tornaram-se a “marca”<br />

do fotógrafo. Quando, em meados dos anos 1990, houve a transformação das suas<br />

imagens de documento para monumento, 11 suas fotografias de arquitetura foram as<br />

escolhidas como as mais relevantes de sua produção.<br />

Através do aperfeiçoamento das técnicas de ampliação e redução foi possível<br />

fazer da publicidade algo corrente dentro da imprensa. Logotipos e imagens podiam ser<br />

justapostos e diagramados. Como se sabe, este é um ramo da fotografia na qual se exige<br />

do fotógrafo o contato com o que há de mais moderno em termos técnicos. 12 Porém,<br />

mais do que aparato técnico, João Alberto destaca o aprimoramento do próprio olhar<br />

como característica principal. O serviço em publicidade surgiu em decorrência de sua<br />

experiência na produção dos aerolevantamentos. O chamado trabalho de traço 13* fez<br />

da fotografia um desafio ao olhar de João Alberto: enxergar com exatidão e simetria.<br />

Essas características apontam para um tipo de “olhar da época”, que encontrava espaço<br />

em áreas como a publicidade, o design gráfico, a arquitetura e as artes plásticas.<br />

Na arquitetura utilizou-se de inovações como a fotomontagem 14 e realizou<br />

serviços de redução. Mais uma vez valendo-se de seu saber técnico – aqui sempre<br />

mencionado como oposição ao saber artístico na opinião do depoente – João Alberto<br />

foi desafiado a fazer a inserção de maquetes de prédios no espaço urbano da cidade.<br />

O fotógrafo observava o local de construção do prédio e fotomontava a maquete<br />

no espaço da cidade, de modo que a imagem se constituía em um documento no<br />

qual era possível visualizar a presença da futura construção no espaço urbano. As<br />

fotografias de arquitetura obedeciam a padrões simétricos, de proporções calculadas,<br />

exploração dos efeitos de tridimensionalidade, equilíbrio e nitidez. 15 Em síntese, a<br />

fotografia de arquitetura pretendia ser um espelho da realidade futura, com a inserção<br />

dos prédios no espaço urbano como forma de analisar suas condições estéticas no<br />

conjunto da cidade. Na apresentação dos projetos arquitetônicos, os dossiês eram<br />

elaborados com a presença de plantas das edificações, fotografadas e reduzidas, para<br />

serem visualizadas em sua integralidade no corpo da apresentação da obra. Mais um<br />

recurso visual que conta com o desenvolvimento de um saber técnico baseado na<br />

precisão e no realismo como efeitos fundamentais.<br />

Nas fotomontagens João Alberto valeu-se de seus conhecimentos, porém a<br />

influência do desenho arquitetônico na fotografia de cidade era uma forte recorrência<br />

11 Cf. MAUAD; KNAUSS (2007, p. 9).<br />

12 Cf. COELHO (Opus cit., p. 95).<br />

13 * O trabalho de traço era a técnica que tornava possível o encaixe de uma fotografia aérea na outra. Essa técnica<br />

era desenvolvida com o auxílio de aparelhos que aumentavam o foco das fotografias, para que o encaixe fosse o<br />

mais exato possível.<br />

14 Fala-se de inovação aqui em termos locais. A fotomontagem foi bastante utilizada na “nova arte” da Revolução Russa<br />

e ainda timidamente na arte modernista e fotografia moderna brasileira. Sobre estes assuntos ver respectivamente:<br />

FABRIS (2005, p.99-132.) e CHIARELLI (2003, p. 67-81).<br />

15 Cf. LIMA; CARVALHO (1997, p. 99-100).


54<br />

A técnica de João Alberto Fonseca da Silva e a arte de Sioma Breitman<br />

nos anos de 1950. Este tipo de imagem respondia bem à demanda por realismo<br />

e equilíbrio de proporções. Essas fotografias buscavam a exatidão em termos de<br />

simetria que, em última análise, era produzida a partir do olhar humano. 16 Nesse caso<br />

aqui a presença do observador que visualiza a cena in loco era condição necessária<br />

para a produção da fotomontagem.<br />

Cabe ressaltar aqui que estes efeitos de realismo tendem a migrar, da imagem<br />

para a cidade. 17 Esse tipo de imagem tinha uma circulação bastante ampla e cumpria<br />

funções técnicas e estéticas. As fotografias de arquitetura também exerceram forte<br />

influência no fotojornalismo em ascensão nos anos 1940 e 1950. Essas imagens<br />

fotográficas tinham um forte apelo de veracidade ao apresentar a modernização e<br />

o crescimento urbano das cidades brasileiras e eram muito utilizadas pelas revistas<br />

ilustradas. 18 Além das revistas, é possível citar o uso desse tipo de fotografia pelo<br />

fotoclubismo 19 e pelos álbuns fotográficos. Em Porto Alegre também identificou-se<br />

essa influência na produção de painéis fotográficos, que eram imagens de grande<br />

formato produzidas a partir de fotografias. João Alberto fez parte do grupo de<br />

fotógrafos pioneiros nesse tipo de fotografia.<br />

Como é possível observar, a trajetória de João Alberto se confunde com a<br />

própria história da fotografia. Muitas vezes o fotógrafo teve que achar suas próprias<br />

soluções para as ideias apresentadas, como no caso de sua primeira fotomontagem,<br />

que será abordada mais adiante. Do ponto de vista da estética sua obra não se<br />

encontra isolada. Porém, mais importante do que localizar a imagem do ponto de<br />

vista da estética, seria conhecer as condições sociais de produção da obra. 20 A busca<br />

de compreensão a partir desse enfoque aproxima-se de uma <strong>História</strong> da fotografia em<br />

Porto Alegre. O depoimento de João Alberto permite que a compreensão de algumas<br />

de suas imagens extrapole o campo estético.<br />

A fotomontagem do edifício Formac na área central de Porto Alegre foi feita<br />

sob encomenda de um arquiteto carioca que sugeriu ao fotógrafo João Alberto que<br />

fizesse a montagem do prédio, ainda inexistente. A fotomontagem causou impacto<br />

ao ser exposta na Casa Comercial Herrmann situada na esquina da Rua dos Andradas<br />

com a Uruguai. Esse fato data de 1953 ou 1954, conforme o relato do fotógrafo. A<br />

casa em questão vendia materiais fotográficos, relógios e joias. João Alberto, pelas<br />

suas relações de amizade com o dono do estabelecimento, deixou a fotomontagem<br />

exposta na vitrine da loja. O fotógrafo relata sobre os comentários que ocorriam<br />

entre os transeuntes. Uma das falas que ficou marcada na memória de João Alberto<br />

16 Cf. MENESES (2005).<br />

17 Cf. LIMA; CARVALHO (Opus cit., p. 99-104).<br />

18 Cf. MONTEIRO (2007, p. 159-176).<br />

19 Notadamente os de São Paulo e Recife. Cf. LIMA; CARVALHO (Opus cit.), COSTA; SILVA (2004) e SILVA (2005).<br />

20 Cf. BOURDIEU (1996, p. 11-16).


55<br />

Rodrigo Massia<br />

foi que a cidade na imagem não deveria ser Porto Alegre e muito menos que tivesse<br />

sido feita por um fotógrafo local. Conforme o relato do fotógrafo:<br />

(...) surgiu a famosa fotomontagem, que tinha um arquiteto<br />

que gostava muito de novidade, era muito ilustrado que era um<br />

arquiteto formado no Rio. Mendonça, o Mendonça, Carlos Alberto<br />

Mendonça, de Orlando Mendonça. O Mendonça quis fazer uma<br />

fotomontagem de um edifício, chegou, deixou a maquete na<br />

minha casa, com um bilhetinho: “Fazer fotografia da maquete<br />

e fazer uma fotomontagem da maquete” em tal lugar assim.<br />

Esse foi o edifício Formac. Aí eu ri, eu nunca disse que fazia<br />

fotomontagem. Mas depois tava tomando meu chimarrãozinho<br />

em casa depois do banho e fiquei pensando, mas digo, eu não<br />

disse que fazia, mas podia ir lá olhar né. Aí vinha eu, olhei o<br />

local e bati uma foto. E acabei montando a fotomontagem e foi<br />

a minha primeira fotomontagem foi do edifício Formac. É que<br />

deu bastante curiosidade, como o Mendonça era muito noveleiro<br />

como a gente chamava, gostava de novidade, ele quis fazer uma<br />

ampliação grande. Então eu fiz uma ampliação, se não me engano,<br />

era noventa por sessenta do trabalho dele já fotomontando. E<br />

porque eu andava muito na Casa Hermann, botamos na vitrine<br />

da casa Hermann (...), na esquina da rua Uruguai com a rua dos<br />

Andradas. E aí até foi curioso. Pena que eu não tinha gravador<br />

como vocês têm agora [risos do depoente] porque o que se ouvia<br />

de coisas engraçadas daquele público que olhava ali, na época já<br />

era novidade uma ampliação grande. Então não era feito em Porto<br />

Alegre. (...) Mas o importante da história é que se comentava, a<br />

fotografia daquele tamanho já tinha vindo dos Estados Unidos,<br />

pra começar. E o Braga que era da Casa Hermann mandou um<br />

dia escutar, e eu fui escutar, fiquei no meio do povo ali escutando<br />

e se comentavam coisas engraçadas, entre elas que o edifício não<br />

era em Nova York, que era em tal cidade, que tinha um sabido<br />

lá. Porque o edifício aqui em Porto Alegre não tinha um edifício,<br />

parece que são vinte e poucos andares (...). 21<br />

A questão mais importante do trecho acima é que o depoente tem a<br />

oportunidade de relatar situações não só sobre a circulação da obra, mas de sua<br />

recepção. A fotomontagem servia muito bem ao processo de planejamento urbano<br />

e sabe-se de seu uso pelo corpo técnico do Estado. 22 Ao inserir a maquete do prédio<br />

em plena área central da cidade, ainda predominantemente horizontal, o fotógrafo<br />

21 SILVA (2006.).<br />

22 Há algumas fotografias que fazem parte do acervo do Museu Hipólito José da Costa que levam o carimbo da<br />

Secretaria de Planejamento Urbano. Não se pode perder de vista que no ano de 1959 foi elaborado o primeiro plano<br />

diretor da cidade.


56<br />

A técnica de João Alberto Fonseca da Silva e a arte de Sioma Breitman<br />

causou um choque visual, pois uma imagem tida como reflexo da realidade estava ali<br />

criando ficções, conforme é possível observar em seu produto final.<br />

Figura 1: João Alberto Fonseca da Silva. Espaço de inserção da maquete e construção do prédio. In: CANEZ, p. 129.<br />

Figura 2: João Alberto Fonseca da Silva. Fotomontagem do edifício Formac no espaço urbano de Porto Alegre,<br />

1953. In: CANEZ (Idem).


57<br />

Rodrigo Massia<br />

Nos dias atuais é pertinente a tentativa de compreensão sobre tantos comentários.<br />

A foto hoje não causa o mesmo choque. A sociedade atual já saturou o olhar com<br />

relação a essas imagens urbanas assépticas. É necessário somente visualizar, já que<br />

a imagem tem o poder de substituir o acontecimento. 23 Ao pensar na visualidade da<br />

época não se pode esquecer que as principais referências em termos de modernização<br />

urbana eram as grandes cidades dos Estados Unidos. A ideia de uma cidade tomada<br />

por edifícios de alto gabarito era uma clara referência a Nova York, e o conhecimento<br />

que grande parte da população tinha das metrópoles estrangeiras era oriundo da visão<br />

de cartões-postais e das fotografias impressas em revistas ilustradas.<br />

Certamente não seria possível mensurar o grau de amplitude da fotografia, no<br />

caso de um exemplar, sem o relato oral. A fotografia de cidade é um tema constante<br />

que perpassa diversas instâncias de produção, circulação e consumo: ela está nas<br />

revistas ilustradas, nos interiores de prédios públicos e no planejamento da cidade.<br />

Trata-se de um tema de forte recorrência no período, que foi representado sob as<br />

mais diversas formas, desde o utilitário até a expressão artística de vanguarda. 24<br />

Partindo desse contexto local para o mais geral, o olhar fotográfico moderno<br />

materializava a ideia de um Brasil urbano, cosmopolita e vertical. O período dos<br />

anos 1950 é marcante nesse sentido, pois é um contexto no qual a ideia do urbano<br />

é vista como a inserção definitiva do Brasil na modernidade e um “alinhar o passo”<br />

com as cidades europeias e estadunidenses. Se em períodos anteriores a modernidade<br />

era vista como algo a ser alcançado no futuro, na década de 1950 havia a sensação<br />

de que este futuro havia chegado definitivamente. 25 Exatamente nestas ocasiões em<br />

que aparecem tensões como, por exemplo, uma espécie de nostalgia sobre um tempo<br />

que se encontra no passado rural. Um sintoma dessa conjuntura de transformações<br />

na cidade foi o tradicionalismo, movimento urbano surgido em 1947 que cultivava a<br />

tradição rural e elegia a figura do gaúcho como elemento síntese de comportamento.<br />

João Alberto foi um desses jovens do período que optou pelo uso da bombacha em<br />

oposição à invasão das lambretas e calças jeans. 26<br />

Diante deste contexto, o fotógrafo João Alberto responde de forma<br />

ambígua às duas questões mais gerais sobre a influência desse olhar técnico, que<br />

responde aos imperativos de uma modernização econômica e de um olhar voltado<br />

para as resistências locais. João Alberto é um fotógrafo que cultiva as práticas do<br />

tradicionalismo gaúcho que exerceu forte influência sobre a juventude gaúcha dos<br />

anos 1950. Quando o destino das imagens é a fruição estética João Alberto optou<br />

23 No caso da fotomontagem de João Alberto, pode-se se dizer que a imagem é o acontecimento, já que não há<br />

um referente externo. Sobre este tipo de análise ver o introito teórico do artigo de: KERN (2007, p. 138-140.) e<br />

MENESES (2003, p. 138-149.).<br />

24 Ver o caso dos fotógrafos Roberto Yoshida e Gertrudes Altschul em: COSTA; SILVA (Op. cit., p. 54-56).<br />

25 OLIVEIRA. In: MIRANDA (2002, p. 35).<br />

26 Sobre a influência estadunidense no comportamento da juventude porto-alegrense ver: Revista do Globo<br />

(1959, p. 30-33).


58<br />

A técnica de João Alberto Fonseca da Silva e a arte de Sioma Breitman<br />

pelo tema regional para concorrer ao I Salão Internacional de <strong>Fotografia</strong> em Porto<br />

Alegre. Fotografou um carreiro em Quaraí, imagem que intitulou de “Aguardando<br />

o frete”. Na ocasião João Alberto comenta que Sioma Breitman viu essa foto de sua<br />

autoria e o convidou para expô-la no salão supracitado, caso contrário não teria feito,<br />

pois não se considerava um artista. 27<br />

Não se pode perder de vista o papel da fotografia como dispositivo<br />

que mediava a questão do crescimento urbano, exercia papel fundamental no<br />

planejamento de ações futuras e apresentava a cidade como um índice concreto da<br />

modernização do país. A fotografia era um espelho do real, 28 no qual o corpo técnico<br />

via o futuro, os habitantes conformavam uma ideia de cidade que se representava<br />

sob forte efeito de realismo, ao mesmo tempo em que se apresentava como objeto de<br />

apelo estético. Essa mediação era feita por fotógrafos, trabalhadores responsáveis<br />

pela produção de imagens.<br />

Uma questão bastante importante contida nos depoimentos de João Alberto e<br />

Sioma Breitman diz respeito ao mercado da fotografia em Porto Alegre, principalmente<br />

na relação entre os fotógrafos. Os dois chegam a diagnósticos similares quando o tema<br />

é a organização da atividade: a falta de um espaço de formação estética e aprendizado<br />

das técnicas, onde o fotógrafo receba uma formação que lhe dê legitimidade para<br />

atuar profissionalmente. João Alberto, porém, apresenta-se como um fotógrafo sem<br />

as características de liderança, fundamental para um grupo de profissionais ainda<br />

em fase de organização. A autoridade ainda se encontrava nas mãos dos fotógrafos<br />

mais tradicionais como Olavo Dutra e Sioma Breitman, os dois grandes fotógrafos<br />

de sua geração, herdeiros do talento dos grandes artistas-fotógrafos do século XIX.<br />

Para João Alberto ficava o espaço de alguém que, mesmo sem a formação humanista<br />

destes grandes fotógrafos, conseguiu exercer seu ofício com êxito graças ao que o<br />

fotógrafo chama de visão técnica.<br />

O olhar de João Alberto desafia a exatidão, a simetria e o equilíbrio. Sua<br />

inserção na fotografia deu-se de acordo com os imperativos do mercado e pela<br />

oportunidade recebida em uma fase de instabilidade. João acabava de chegar do<br />

interior do estado à capital e em primeiro lugar buscava um trabalho e uma profissão.<br />

É lícito dizer que a trajetória do fotógrafo foi construída a partir dos desafios que lhe<br />

foram lançados em termos visuais. O êxito se deu pela insistência e pelo treinamento<br />

do olhar, de acordo com uma visão tecnicista, que predominava na arquitetura.<br />

27 Cf. SILVA (2006).<br />

28 Cf. DUBOIS (1993).


59<br />

Sioma Breitman: olhar do imigrante, olhar da tradição<br />

Rodrigo Massia<br />

Sioma Breitman foi um dos fotógrafos mais destacados entre as décadas de<br />

1930 e 1960 no estado do Rio Grande do Sul. De origem ucraniana, teve que deixar<br />

seu país devido à Revolução Socialista na Rússia, que perseguiu de forma severa<br />

os judeus da região. Após deixar a Europa, partiu para a América, separando-se de<br />

sua família e estabelecendo-se em Buenos Aires, onde conseguiu emprego em um<br />

estúdio fotográfico. Pouco tempo depois, veio para Porto Alegre, onde sua família<br />

havia se fixado. Em meados dos anos 1920, Sioma e sua família passaram a produzir<br />

as fotografias da comunidade judaica estabelecida no bairro Bom Fim. Entre os anos<br />

de 1920 e 1950, montou estúdios nas cidades por onde passou: Cachoeira do Sul,<br />

Santa Maria e Porto Alegre. Ao sair dessas cidades, Sioma deixava os estúdios para<br />

os seus irmãos, que também eram fotógrafos. Seu pai, Nathan Breitman era o dono<br />

do estúdio onde Sioma trabalhava com seus cinco irmãos, tendo se notabilizado pela<br />

edição de negativos, tarefa denominada de retocador.<br />

Sioma fez parte de uma segunda leva de fotógrafos estrangeiros, se<br />

forem considerados os “pioneiros” do século XIX. Esses novos fotógrafos foram<br />

responsáveis por mudanças importantes, tanto no Rio Grande do Sul quanto nos<br />

demais estados do Brasil. Aqui em Porto Alegre tem-se registro de Ed Keffel, de<br />

origem alemã, que teve grande contribuição nas mudanças ocorridas no campo do<br />

fotojornalismo na Revista do Globo. 29 No Rio de Janeiro, fotógrafos como Jean<br />

Manzon, Marcel Gautherot, 30 Harald Schultz, Heinz Foerthmann, Pierre Verger 31<br />

e Hildegard Rosenthal foram responsáveis por alterações importantes no campo<br />

profissional da fotografia. Trabalharam para diversos órgãos do Estado e consolidaram<br />

novas práticas no fotojornalismo. 32<br />

Sioma aborda com senso de humor em suas memórias os procedimentos<br />

de seu ofício de retocador. A tarefa consistia em manipulações diversas feitas tanto<br />

nos negativos como nos positivos. Esse tipo de prática era oriunda de uma postura<br />

na qual a fotografia era um produto bruto onde fotógrafos contavam com a parceria<br />

de um pintor, 33 que dava um toque artístico às fotografias, notadamente os retratos<br />

e as vistas urbanas. Segundo Sioma: “Acredite se quiser, até chapéus eram tirados<br />

e o penteado desenhado de acordo com as indicações dadas pelos clientes. (...) Ao<br />

29 MASSIA (2008).<br />

30 Sobre Marcel Gautherot ver: ANGIOTTI-SALGUEIRO (2007).<br />

31 Sobre Pierre Verger ver: LÜHNING (2002).<br />

32 Cf. COELHO (Op. cit.).<br />

33 Essa prática fazia parte dos grandes estúdios do século XIX e início do XX. A citação do nome desses artistas que<br />

trabalhavam com os fotógrafos era recorrente nos anúncios publicitários dos estúdios, pois conferia ao mesmo o<br />

status de espaço de produção de arte. Cf. LIMA (1991, p. 59-82).


60<br />

A técnica de João Alberto Fonseca da Silva e a arte de Sioma Breitman<br />

perguntar o ‘grosso’ cliente como era o penteado do falecido que figurava no retrato,<br />

a resposta era: ‘Quando você tirar o chapéu, verá – não vale rir...”. 34<br />

Em meados dos anos 1960 o fotógrafo já havia trabalhado em uma gama<br />

enorme de atividades como, por exemplo, estúdios de retrato, 35 as vistas urbanas, as<br />

festas e os casamentos da elite porto-alegrense, fotografia para as peças teatrais que<br />

passavam pela cidade, publicação de álbuns e os concursos de arte fotográfica que<br />

lhe renderam inúmeros títulos e distinções em nível nacional e internacional. Além<br />

de participar com trabalhos fotográficos, Sioma foi membro ativo na organização<br />

das exposições de arte fotográfica em Porto Alegre, captando recursos e firmando<br />

parcerias com empresas distribuidoras de material fotográfico. Ministrou cursos de<br />

fotografia e aulas de russo. Viajou para fora do país com a Exposição: Rio Grande<br />

do Sul através da fotografia e Arte Fotográfica, no ano de 1958. Percorreu Portugal,<br />

Espanha, França, Alemanha, Itália e Israel. No ano de 1959, com patrocínio da Varig,<br />

expôs estes mesmos trabalhos em Nova York.<br />

Depois de mais de 40 anos dedicados ao ofício da fotografia, grande parte<br />

dele exercido em Porto Alegre, Sioma escreveu um livro de memórias sobre sua<br />

trajetória profissional, o qual fala das suas atividades, da sua condição judaica, relata<br />

histórias sobre alguns de seus registros fotográficos, os lugares por onde passou, as<br />

premiações, os colegas de trabalho, a fundação da associação. O livro, intitulado<br />

Respingos de Revelador e Rabiscos, foi editado por seu filho, Irineu Breitman. A<br />

obra não contou com a parceria de nenhuma editora, sendo seu acesso ainda feito em<br />

uma edição caseira, com as folhas batidas à máquina e as fotografias fotocopiadas<br />

ao longo do livro, utilizadas como ilustração dos temas abordados pelo fotógrafo.<br />

No início da obra, Sioma revela que o objetivo do livro era contar sua<br />

trajetória aos netos e bisnetos, como forma de relatar parte da saga da família, que<br />

partiu de uma Europa em guerra e com muito trabalho conseguiu êxito no Brasil,<br />

superando as dificuldades naturais do choque entre culturas distintas. Contudo é<br />

inegável que se trata de uma obra na qual o autor imaginou outras possibilidades<br />

de circulação. As evidências de um texto que se aproxima do histórico são latentes.<br />

Muitas vezes o autor se coloca quase que como uma terceira pessoa, outras vezes<br />

relata experiências pessoais. O texto alterna momentos de narração de estórias com<br />

relatos de memórias afetivas, ao mesmo tempo em que apresenta trechos de elevada<br />

erudição, com referências literárias e análises de cunho histórico e antropológico.<br />

Os textos e imagens de Sioma Breitman são itinerários possíveis para<br />

percorrer parte do universo da fotografia em Porto Alegre entre os anos de 1930 e<br />

1960. A sua atuação constitui-se em um conjunto amplo de possibilidades da prática<br />

34 BREITMAN (Op. cit., p. 32).<br />

35 Sioma montou cinco estúdios fotográficos. Quatro deles tinham o nome de Aurora e ficaram sob a gerência de seus<br />

irmãos. O mais importante deles foi montado em 1937 e levava o seu nome: Sioma. Cf. BREITMAN (Ibdem, p. 28.).


61<br />

Rodrigo Massia<br />

fotográfica. Muitas delas se caracterizam por ser uma novidade para o período. São<br />

elementos que se referem à própria expansão da atividade fotográfica, por inovações<br />

de ordem técnica e social. Não se pode perder de vista que a fotografia é uma<br />

invenção moderna, que surgiu em plena vigência da segunda revolução científicotecnológica,<br />

de forte influência da filosofia positivista. A própria ideia de progresso<br />

material, tão em voga no período, fez da fotografia elemento estratégico da demanda<br />

social por realismo e objetividade. Cabe aqui avaliar essa dimensão da fotografia,<br />

pois é justamente esse o caminho de abertura – o fotojornalismo, a publicidade e os<br />

eventos sociais – que melhor responderam a esse tipo de demanda que só a imagem<br />

técnica era capaz de proporcionar no período a um público amplo e variado.<br />

Apesar de todas as inovações advindas das máquinas portáteis e das<br />

possibilidades de trabalho fora dos estúdios fotográficos, esses ainda constituíam-se<br />

no espaço por excelência da produção fotográfica. O retratista mantinha seu status<br />

de artista-fotógrafo, qualidade atribuída a quem atingia algo próximo do sublime em<br />

fotografia: captar a personalidade do retratado e fixá-la em uma imagem fotográfica.<br />

Os estúdios fotográficos do centro da cidade ainda mantinham seu status de espaços<br />

consagrados à nobre arte do retrato. O estúdio Sioma era um deles, 36 no qual as grandes<br />

personalidades políticas e artísticas confeccionavam seus retratos. Localizado na rua<br />

dos Andradas, na área central da cidade, o estúdio era um catalisador de atividades<br />

fotográficas. Além dos tradicionais retratos, se confeccionavam ampliações,<br />

revelações, lembranças de aniversário e casamento. O estúdio era também um<br />

espaço de sociabilidade, onde fotógrafos se reuniam. A vitrine, onde Sioma expunha<br />

seus retratos, fazia publicidade do retrato artístico, como uma capacidade de que<br />

poucos fotógrafos eram dotados, conforme afirmava seu material publicitário:<br />

“Para o melhor retrato procure Sioma. Um retrato artístico... sempre Sioma”. 37 O<br />

retrato artístico foi o modo de representação do indivíduo burguês, como forma de<br />

construção da sua distinção social. 38<br />

No estúdio Sioma foram produzidos os retratos oficiais de personalidades<br />

políticas como Getúlio Vargas, Flores da Cunha, Cordeiro de Farias, diversos<br />

funcionários do alto escalão do estado, 39 do escritor Erico Verissimo, do ator e produtor<br />

36 O estúdio Sioma mantinha a tradição dos grandes estúdios de retrato, tributários do séc. XIX, no qual a localização<br />

se constitui em uma evidência de distinção, frente a um contexto de vulgarização, tanto dos estúdios como da<br />

produção de retratos. Cabe lembrar aqui que a área central ainda era o espaço de maior valorização, tanto econômico<br />

quanto social, da cidade. Cf. POSSAMAI (2005.) e SANTOS (1997.).<br />

37 BREITMAN (Opus cit., p. 148.).<br />

38 Para saber mais sobre a historicidade da relação entre o retrato e o modo de vida burguês ver em especial<br />

FREUND (1999.).<br />

39 Em uma edição da Revista do Globo alusiva aos feitos do Estado Novo e as comemorações do bicentenário de<br />

Porto Alegre, foi feita uma extensa reportagem sobre o crescimento do Estado, no qual grande parte dos retratos<br />

dos prefeitos das cidades em destaque foi produzida por Sioma Breitman. É interessante notar que a assinatura do<br />

fotógrafo assume destaque na imagem, pelas dimensões, localizada logo abaixo do rosto, na parte inferior à direita.<br />

Cf. Revista do Globo (1940, p. 72-160.).


62<br />

A técnica de João Alberto Fonseca da Silva e a arte de Sioma Breitman<br />

Procópio Ferreira e de diversas personalidades do high society porto-alegrense, já que<br />

foi responsável pela produção fotográfica dos casamentos da alta sociedade. 40<br />

Além das fotografias produzidas no ateliê, os irmãos de Sioma que trabalhavam<br />

com ele praticavam uma função que o fotógrafo chamava de angariador, 41 que<br />

consistia em percorrer o interior do estado para conseguir encomendas de ampliações<br />

fotográficas. Uma das práticas correntes em fotografia era pendurar as fotos dos<br />

familiares nucleares nas paredes das casas, com molduras, retoques, colorizações<br />

etc. O fotógrafo chegou até o interior do sul de Santa Catarina recolhendo retratos<br />

para futuras ampliações.<br />

Mantendo-se autônomo Sioma Breitman apresenta em suas memórias um<br />

cenário bastante diversificado sobre o ofício da fotografia em Porto Alegre e nas<br />

principais cidades do interior do estado. O fotógrafo trabalhava muitas vezes nos<br />

três turnos: ao longo do dia no estúdio e à noite em eventos sociais, o que evidencia<br />

o extenso tempo de trabalho do fotógrafo.<br />

Sioma parece ter assimilado desde cedo uma das características principais<br />

de um bom fotógrafo, que é manter-se neutro em relação a conflitos ideológicos<br />

ou de grupos rivais. Sioma fala do exemplo de seu pai que, em plena perseguição<br />

aos judeus no leste europeu nos anos 1910 conseguiu manter boas relações com<br />

o Estado que lhe perseguia para poder exercer o seu ofício. Apesar de assumir<br />

sua condição étnica judaica, o fotógrafo parece ter mantido sempre uma relação<br />

harmoniosa com a elite luso-brasileira e teuto-brasileira. Tendo se firmado como<br />

fotógrafo primeiro em torno da comunidade judaica, posteriormente se projetou<br />

como o principal fotógrafo das elites políticas e dos eventos sociais. Como<br />

lidava com um equipamento ainda pesado e pouco discreto (principalmente pelo<br />

uso do flash), o fotógrafo comenta que sempre pedia permissão para fotografar<br />

as pessoas nos eventos sociais, para não causar nenhum tipo de desconforto aos<br />

seus fotografados. Sua competência fazia com que raramente perdesse as chapas<br />

que batia. Por esses motivos, Sioma sempre contou com apreço das principais<br />

personalidades políticas e culturais do estado.<br />

Na AFPRGS Sioma cumpria as funções de relações públicas para arrecadar<br />

fundos para as exposições de arte fotográfica e auxiliava na organização. Sioma<br />

também expunha seus trabalhos em diversos concursos de fotografia, tanto no Brasil<br />

como no exterior, acumulando cerca de 400 trabalhos. Foi um dos responsáveis<br />

pela montagem da AFPRGS no ano de 1946. Os principais objetivos da associação<br />

eram manter cursos de capacitação no exercício da fotografia, congregar os<br />

40 Cf. POSSAMAI (1998, p. 98-99.).<br />

41 Fala dessa atividade como prática corrente nos anos 1920 e 1930, mas que certamente não desapareceu. Uma<br />

evidência disso é a similaridade do trabalho de Chico Pintor, que ganhava vida como fotógrafo nos anos 1960 e<br />

1970 fazendo ampliações e colorizações de fotografias, principalmente nas cidades do interior. Para saber mais ver:<br />

SILVA (1998, p.66-68.).


63<br />

Rodrigo Massia<br />

fotógrafos da cidade em torno de uma organização e regularização jurídica do<br />

ofício em atividade profissional.<br />

Entre os anos de 1946 e meados de 1954, período em que funcionou a<br />

associação, foram realizados três salões de fotografia (1948, 1951 e 1952), sendo o<br />

último deles de abrangência internacional (1952). Ainda na associação funcionava,<br />

além dos salões e cursos de aperfeiçoamento – no qual Sioma ministrava justamente<br />

o retoque de negativos, a publicação da Associação chamada O Fotógrafo, que<br />

funcionou entre os anos de 1947-1952 com apenas três edições. Sioma afirma que<br />

a associação sempre passou por dificuldades de ordem financeira devido aos custos<br />

de infraestrutura, que ainda era precária. 42 Dentro da associação, o fotoamadorismo<br />

era desenvolvido como uma espécie de subseção da qual surgiu no ano de 1951 o<br />

Foto Cine Clube Gaúcho. O deslocamento evidencia o caminho da especialização<br />

e fragmentação dos ramos da atividade fotográfica, que teve seu início nesse<br />

contexto. Como o foco da AFPRGS era na formação de um grupo de profissionais<br />

da fotografia, o FCCG aglutinou os fotógrafos que exerciam a atividade sem fins<br />

profissionais, seguindo a tradição dos Fotoclubes de início do século XX. Contudo<br />

isso não impediu que fotógrafos profissionais obtivessem formação técnica nesse<br />

espaço, a princípio destinados aos amadores.<br />

Além de suas atividades exercidas com fins lucrativos, Sioma foi um<br />

fotógrafo que incentivou o exercício da fotografia como forma de expressão artística.<br />

Consagrado entre seus pares como artista-fotógrafo, considerado pela imprensa como<br />

a continuação de uma linhagem de artistas-fotógrafos locais como Otto Schönwald,<br />

Virgílio Calegari e os Irmãos Ferrari, Sioma teve extensa produção voltada para este<br />

ramo da fotografia. Ganhou inúmeros títulos, dentre os quais, considerava como o<br />

mais importante o reconhecimento, em 1957, da Federation Internationale de L’art<br />

Photographique (FIAP), com sede em Berna na Suíça. 43 A titulação, com direito<br />

a certificado, era exibida como prova de sua competência e como publicidade da<br />

qualidade de seus trabalhos. Esse status conferia distinção às suas fotografias. Sioma<br />

fez uso de suas qualidades artísticas na produção do “retrato clássico”. 44 O fotógrafo<br />

era conhecido pela sua capacidade de dar um “sopro de vida” ao retratado.<br />

Como artista-fotógrafo Sioma contabilizou mais 400 trabalhos de sua autoria<br />

que participaram em salões de arte fotográfica, que aconteceram em diversas partes<br />

do mundo, inclusive no Japão. A maioria de seus trabalhos fotográficos foi produzida<br />

entre os anos de 1946 e 1958. Em sua obra textual, o autor sinaliza o ano de 1946 como<br />

42 Cf. BREITMAN (Opus cit., p.114.).<br />

43 Segundo Sioma, a indicação partiu do Foto Cine Clube Bandeirante de São Paulo, o que demonstra o reconhecimento<br />

da vanguarda da arte fotográfica no Brasil. Cf. BREITMAN (Ibdem, p. 102.).<br />

44 O retrato clássico obedece a cânones bastante definidos: controle de abrangência do espaço, posição do rosto,<br />

expressão, incidência de luz, relação do retratado com o segundo plano. Neste contexto, dominar estes normativos<br />

técnicos e estéticos permitia ao fotógrafo considerar-se um artista de fato e de direito. Para ver mais sobre o gênero<br />

do retrato ver: FABRIS (2004, p. 91-114) e CASTANO (s.d.).


64<br />

A técnica de João Alberto Fonseca da Silva e a arte de Sioma Breitman<br />

um marco significativo em sua percepção das potencialidades da fotografia. Começou<br />

a tomar contato com publicações estrangeiras e ter notícias sobre a existência de<br />

associações de fotógrafos e de salões de arte fotográfica. Mais do que isso, Sioma<br />

observava o ano de 1946 como o início de uma conjuntura geopolítica de mudanças<br />

internacionais. O fim da segunda guerra mundial era visto por Sioma como uma nova<br />

etapa das relações humanas, na qual o aprendizado da guerra traria novas perspectivas<br />

para os tempos de paz. Imbuído deste espírito, o fotógrafo percebeu que sua atividade<br />

profissional não possuía qualquer tipo de organização e regulamentação jurídica.<br />

Sioma faz apenas uma alusão ao contexto paulista, embora seja plausível<br />

afirmar que o fotógrafo tinha conhecimentos sobre contexto de exposições nacionais<br />

e internacionais. Estes eventos aconteciam no Foto Cine Clube Bandeirante desde a<br />

sua fundação, em 1939. 45 Em 1947 foi lançada a Revista Íris, primeiro periódico sobre<br />

fotografia de caráter comercial. No ano de 1948, quando foi realizado o primeiro salão<br />

de arte fotográfica de Porto Alegre, em São Paulo, o FCCB já estava na 7ª edição de<br />

seu salão internacional. 46 Em 1950 o nível de organização da atividade amadora em<br />

São Paulo era bastante satisfatório. Foi realizada a I Convenção Brasileira de Arte<br />

fotográfica, que resultou na fundação da Confederação Brasileira de <strong>Fotografia</strong> e<br />

Cinema. Esta entidade era a representante brasileira na FIAP. 47 Quando a AFPRGS<br />

organizou seu primeiro e único salão internacional, o FCCB já estava com o mesmo<br />

evento em sua décima primeira edição.<br />

Sioma entendia que a fotografia era uma atividade que estava para além<br />

das possibilidades que oferecia o mercado, onde a prática se dava no nível de<br />

uma fotografia corrente, na qual os eventos familiares eram a tônica das imagens<br />

produzidas pelos estúdios. Conforme Sioma: “As condições eram difíceis. As<br />

exigências gerais não permitiam afastar-se nem um pouco da linha classica do oficio,<br />

e do provimento de recursos para a existencia (sic)”. 48 Nesse sentido o fotógrafo<br />

se aproxima da interpretação de Bourdieu sobre os devotos e transgressores na<br />

fotografia. Para o autor, a atividade fotográfica que se afasta da prática corrente surge<br />

como forma de oposição a esta e constitui-se na tônica da fotografia praticada no<br />

âmbito dos fotoclubes. A atitude devota caracteriza-se pela repetição das ocasiões<br />

(turismo, aniversários, casamentos, formaturas) e padrões (identificação imediata<br />

do local fotografado, gestual definido) da fotografia corrente. O transgressor é<br />

justamente aquele que, ao negar as ocasiões e expressões correntes, busca novas<br />

situações de prática fotográfica, aproximando-se da expressão artística. A fotografia<br />

é uma forma de ingresso no mundo das artes justamente para os sujeitos das camadas<br />

médias, pois estes não têm livre acesso aos modelos já consagrados de arte como a<br />

45 Cf. COSTA; SILVA (Opus cit., p. 37-44).<br />

46 Ibidem, p.39.<br />

47 Ibidem, p.48.<br />

48 BREITMAN (Opus cit., p.101.).


65<br />

Rodrigo Massia<br />

música erudita, a pintura. Fazer da fotografia uma forma de arte é, conforme aponta<br />

Bourdieu, uma atitude transgressora. 49<br />

Sioma Breitman observa que a prática corrente impede que novas formas<br />

de expressão em fotografia sejam desenvolvidas, o que também obstaculiza a<br />

constituição de espaços de formação e aperfeiçoamento da atividade fotográfica.<br />

Sioma evidencia em seu discurso uma visão tradicional, legado pela fotografia<br />

pictorialista, 50 na qual o fotógrafo deve ser um sujeito versado nas artes e na<br />

literatura. Sua bagagem cultural deve lhe permitir a obtenção de uma fotografia que<br />

fuja à prática corrente e aos imperativos do mercado. Para que tal realidade fosse<br />

possível em Porto Alegre, fazia-se necessário a organização de uma associação<br />

que promovesse salões de arte fotográfica e oferecesse cursos de fotografia,<br />

concebendo-a como forma de expressão artística.<br />

O fotógrafo também comenta sobre o contexto de produção de algumas de suas<br />

fotografias premiadas, o que permite compreender a apropriação de certas concepções<br />

e práticas fotográficas que vigoravam no período. A ideia de uma fotografia cândida, 51<br />

na qual o fotógrafo é uma testemunha silenciosa e discreta do acontecido é uma<br />

postura, que surge em decorrência das novas possibilidades técnicas (máquinas de<br />

pequeno formato que independem do uso do flash), que foi utilizada no fotojornalismo.<br />

No campo da arte fotográfica, esse tipo de fotografia exigia do sujeito a sensibilidade<br />

de observar uma cena fugidia e lançar um olhar poético sobre a realidade exterior.<br />

Fotos posadas eram práticas associadas à fotografia corrente, produzida em eventos<br />

sociais, como casamentos, festas, aniversários e demais eventos de cunho familiar. A<br />

arte fotográfica praticada entre os anos 1940 e 1960 procurou se afastar deste tipo de<br />

fotografia. A máquina fotográfica era entendida como uma espécie de arma silenciosa,<br />

na mira de um instante decisivo, único. Esta concepção encontra tradução nas palavras<br />

do fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson, quando este diz que a fotografia é um<br />

momento de cruzamento entre o “cérebro, olho e o coração”. 52 A partir da narrativa<br />

de Sioma, é possível entender um pouco mais das motivações pessoais e as soluções<br />

encontradas por ele para fotografar o cenário, de acordo com a sua ideia. A discussão<br />

recairá sobre a fotografia intitulada por ele de “Súplica”.<br />

49 BOURDIEU (Opus cit., p.80-87.). O autor faz aqui uma divisão entre o que ele caracteriza por uma fotografia<br />

corrente e uma fotografia exigente. Estas duas tipologias são analisadas dentro da perspectiva de uma fotografia<br />

amadora. Outra ressalva importante é que o autor faz suas considerações sobre o contexto francês dos anos 1960.<br />

50 Ver em linhas gerais e sob uma perspectiva nacional e internacional, respectivamente: MELLO, (Opus cit.) e<br />

NEWHALL, (2002, p.141-166.).<br />

51 A fotografia cândida, conforme refere o adjetivo, constitui-se em uma imagem na qual a presença do fotógrafo não<br />

foi percebida pelos retratados. Esta prática só se tornou possível pela existência das máquinas portáteis como a Leica,<br />

a Ermanox e a Rolleiflex, para citar as mais conhecidas. Esse tipo de fotografia passou a ser praticada principalmente<br />

pelo fotojornalismo alemão dos anos 1920, tendo como principal referência o fotógrafo Erich Salomon. Na arte<br />

fotográfica brasileira dos anos 1950 identifica-se essa mesma postura, só que para fins diferentes. Ver por ordem das<br />

referências abordadas: FREUND, (Opus cit., p. 99-123) e COSTA; SILVA, (Opus cit., p.63-70.).<br />

52 CARTIER-BRESSON (2004.).


66<br />

A técnica de João Alberto Fonseca da Silva e a arte de Sioma Breitman<br />

Sioma conta que certa vez uma de suas inúmeras clientes que solicitavam<br />

seu trabalho nos casamentos foi ao seu Estúdio para retirar as fotografias. Na ocasião<br />

estava com luvas de couro e as tirou para manusear suas fotos. A cliente teria ficado<br />

tão satisfeita com o resultado do trabalho que ao sair esqueceu-se de seu par de<br />

luvas, o que prontamente despertou o interesse do fotógrafo. Ao ver que as luvas,<br />

pela maciez do couro ainda mantinham a forma das mãos com suas rugosidades<br />

o fotógrafo começou a pensar em um projeto fotográfico com o objeto. A luva<br />

clara sob um fundo escuro com os efeitos de luz artificial sugeriu uma imagem de<br />

um gestual de súplica, de conotação fortemente religiosa. De tão satisfeito com o<br />

resultado, Sioma decidiu inserir esta imagem em sua Exposição de 1958, chamada<br />

“Arte Fotográfica”, que percorreu diversos países da Europa e América.<br />

Figura 3: “Súplica”, por Sioma Breitman. BREITMAN, (Opus cit., p.135).


67<br />

Rodrigo Massia<br />

Em seu livro, o fotógrafo chegou a inserir alguns comentários sobre esta<br />

imagem, quando a expôs a bordo do navio que o levou para a Europa. Chamoulhe<br />

a atenção o fato de uma mesma pessoa ter postado dois comentários, o<br />

que demonstra o retorno e o impacto que tal imagem causou, algo que traduz<br />

os verdadeiros propósitos do fotógrafo, como pode ser observado na citação a<br />

seguir: “Há tanta originalidade, tanto sentimento, tanto extro (sic) artístico, tanta<br />

inspiração, que chega-se a passar em segundo plano a técnica portanto insuperável,<br />

somente tomando em consideração e apreciando o artista, o verdadeiro puro artista,<br />

que sente, que vive, que cria sua composição”. 53<br />

Ao falar de suas imagens, Sioma Breitman constantemente abordava a questão<br />

da fotografia como caça (o retratado como “alvo”, a máquina como “metralhadora” e o<br />

click como um “tiro”). Essa analogia é possível não só pela presença de uma máquina<br />

portátil, mas da mudança de postura, assumida na prática fotográfica como expressão<br />

artística. Seus conteúdos são pensados a partir de um enquadramento estético que<br />

o fotógrafo caracteriza por ser agradável, ou seja, respondem aos imperativos<br />

de harmonia, condições de luminosidade e de casualidade. O conteúdo, quando<br />

predominantemente corriqueiro e banal, consome mais as possibilidades estéticas, no<br />

caso de Sioma, a questão da luz. Tanto em página social como em súplica identificase<br />

o uso da luminosidade como recurso estético primordial, que faz da fotografia uma<br />

expressão artística. No caso de preço da independência, a fotografia é enfatizada mais<br />

pelo seu conteúdo, pois guarda fortes relações com a memória afetiva do fotógrafo.<br />

Mais do que grandes revelações sobre o enigma da fotografia, a<br />

interpretação recai aqui sobre as condições de produção. A ideia de expressão<br />

artística contida na fotografia é tema de uma extensa discussão. Muitas vezes é<br />

atribuída a uma obra artística questões que são da ordem do inefável. Sobre este<br />

tema, Bourdieu argumenta:<br />

53 ZAPPI apud BREITMAN (Op. cit., p. 136.).<br />

54 BOURDIEU (Opus cit. p.12-13.).<br />

Porque se faz tanta questão de conferir à obra de arte – e ao<br />

conhecimento que ela reclama – essa condição de exceção,<br />

senão para atingir por um descrédito prévio as tentativas<br />

(necessariamente laboriosas e imperfeitas) daqueles que<br />

pretendem submeter esses produtos da ação humana ao<br />

tratamento ordinário da ciência ordinária, e para afirmar a<br />

transcendência (espiritual) daqueles que sabem reconhecerlhe<br />

a transcendência? (...) É legítimo valer-se da experiência<br />

do inefável, que é sem dúvida consubstancial à experiência<br />

amorosa, para fazer do amor como abandono maravilhado à obra<br />

apreendida em sua singularidade inexprimível a única forma de<br />

conhecimento que convém à obra de arte? 54


68<br />

A técnica de João Alberto Fonseca da Silva e a arte de Sioma Breitman<br />

Ao observar esta resistência a uma análise que qualifique a ação humana<br />

como racional, que faz parte da produção da obra de arte, Bourdieu chama a atenção<br />

para as bases da crítica de arte, ainda presa às categorias de gênio e dom natural. O<br />

entendimento da obra de arte nessa acepção seria algo que escapa ao conhecimento<br />

científico. No caso da arte fotográfica de Sioma observa-se que há um contexto de<br />

produção da obra na qual esta experiência da ordem do sublime não acontece a partir<br />

de um dom genial, mas fruto de investigação, de estudo das condições de luz, da<br />

sorte, da casualidade, da relação com o tema. A arte, como fruto da ação humana<br />

muitas vezes recorre à casualidade, como no caso da produção da fotografia com as<br />

luvas, que recebeu elogios que qualificam o autor da obra nos termos criticados por<br />

Bourdieu, ainda que não seja proveniente de uma crítica especializada.<br />

Ao pensar a trajetória de Sioma Breitman partindo do contexto local e<br />

inserindo-o em níveis de análise nacionais e internacionais, identifica-se que seu<br />

olhar constitui-se em uma apropriação das possibilidades existentes. O domínio do<br />

que é possível em termos de fotografia no período lhe permite transitar, tanto de<br />

um olhar tradicional, lançado sobre os retratos da elite dirigente e aos casamentos<br />

quanto de um olhar moderno, onde o fotógrafo é uma testemunha silenciosa,<br />

observadora, aos moldes de um caçador. A prática devota lhe permite prover o seu<br />

sustento, enquanto a transgressora faz dele um fotógrafo engajado na constituição de<br />

um campo de produção da arte fotográfica. Contudo, suas fotografias são “apenas”<br />

um entre tantos outros possíveis olhares, lançados sobre o mundo, ora bisbilhoteiro<br />

e comovido, ora moralizante e tradicional. Sem a sua assinatura em destaque nas<br />

fotografias certamente não seria possível inferir com certeza de que se trata de uma<br />

foto sua, pois não há a possibilidade de identificar uma marca pessoal. Retomando<br />

as ideias de Mario Costa:<br />

A partir da fotografia isso deixa de ser possível porque, ao<br />

anular em si a própria noção de ‘estilo’, ela é a primeira a<br />

recusar toda ‘marca’ e a constituir-se como uma multidão<br />

de coisas desobjetivadas cuja ‘obstinada estranheza’ não<br />

pode ser recuperada de forma alguma. E passamos, assim, da<br />

automatização à autonomização da imagem. 55<br />

Sioma construiu a sua <strong>História</strong> ao narrar suas memórias. Mais do que<br />

informar, o fotógrafo, mesmo com uma vasta coleção de imagens, recorreu às<br />

palavras para sacramentar uma vida dedicada ao ofício da fotografia. Será que o<br />

fotógrafo tinha em mente a ausência da categoria texto nas imagens? A autoria<br />

55 Cf. COSTA In: KERN;FABRIS (2006, p.190-191.). A questão da impossibilidade de estilos pessoais na fotografia<br />

é debatida a partir da estética hegeliana na qual a expressão artística é forma de transformar a realidade exterior, pois<br />

nela é impressa a marca do artista.


69<br />

Rodrigo Massia<br />

da expressão artística contida na foto seria perdida com o tempo, fazendo de suas<br />

fotografias expressões mudas, completando o caminho de uma imagem automática<br />

para uma imagem autônoma. 56 Os propósitos de Sioma ao fazer seus registros seriam<br />

perdidos sem o recurso das palavras. Mesmo para um homem que viveu imerso<br />

no mundo das imagens, o recurso da palavra se constitui em algo definitivo, que<br />

revelaria e estabilizaria a “verdade” da cena retratada?<br />

Referências<br />

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56 Idem.


70<br />

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71<br />

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CAPíTUlO 3<br />

POR TRÁS DAS lENTES, UMA HISTÓRIA: A<br />

PERCEPÇÃO DE FOTÓGRAFOS SOBRE AS<br />

IMAGENS DA MíDIA IMPRESSA<br />

Maria Cláudia Quinto 1<br />

O mais importante na comunicação [...] é a<br />

sociedade que há por trás dessa palavra.<br />

Dominique Wolton<br />

As questões sobre a publicação de imagens têm sido cada vez mais discutidas<br />

e analisadas pelos diversos saberes em estudos que abordam desde a análise de<br />

imagens até entrevistas com o público receptor. Segundo o historiador Peter Burke<br />

(2004, p. 24), “deve-se aconselhar alguém que planeje utilizar o testemunho de<br />

imagens para que se inicie estudando os diferentes propósitos dos realizadores dessas<br />

imagens”. Tais propósitos, às vezes, se distanciam do resultado final – a imagem<br />

publicada – e o processo que existe por trás das imagens nos informa muito sobre a<br />

lógica dessas publicações.<br />

A fotografia, surgida em 1839, de acordo com Susan Sontag (2004, p. 13),<br />

atua como uma ponte entre o mundo e nós, tornando próximo o que está distante,<br />

informando outras realidades e outros tempos. Como aponta Ivan Lima (1989,<br />

p. 9), a fotografia “mudou a visão das massas. Até então o homem comum só<br />

visualizava os acontecimentos que ocorriam ao seu lado, na rua, em sua cidade”.<br />

Hoje, temos acesso a uma gama enorme de situações, dos grandes feitos dos homens<br />

às catástrofes que mobilizam o público. Os acontecimentos são congelados pela<br />

lente do fotógrafo, pois “a fotografia jornalística fixa um acontecimento e as suas<br />

impressões. O fotógrafo é o relator desse acontecimento: o intermediário visual entre<br />

a notícia e o público”, como indica Lima (1989, p. 35). Por ser um intermediário<br />

visual, o profissional também filtra e altera a realidade a ser mostrada, no sentido<br />

de que escolhe o quê, como e quando fotografar. Os primeiros periódicos no Brasil<br />

possuíam poucas imagens e, no século XIX, o acesso a essas fotos era restrito. Dessa<br />

forma, as imagens causavam grande impacto nas pessoas, como afirmam Marco<br />

Morel e Mariana Barros (2003). De acordo com os autores, as primeiras imagens na<br />

mídia impressa, no Brasil, tinham a guerra – do Paraguai e de Canudos, por exemplo<br />

– como principal tema. Já com relação à revista, o jornalista Eugênio Bucci (2000, p.<br />

1 Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. O presente artigo é parcialmente<br />

baseado na Dissertação de Mestrado em Psicologia intitulada “Imagens de morte na mídia impressa: o olhar do<br />

fotógrafo”, defendida em 2007, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, sob orientação da Dra.<br />

Monique Augras.


73<br />

Maria Cláudia Quinto<br />

109) aponta que “a fórmula da revista semanal de informação” foi criada pela revista<br />

Time na década de 1920.<br />

No Brasil, Lima (1989, p. 71) indica que “o ciclo das revistas semanais de<br />

informação com a fotografia em cores surgiu no final dos anos 1960, e teve início<br />

com a revista Veja e Leia”. Segundo o autor (p. 71), a revista Veja surgiu em 1968,<br />

e em março de 1976 foi lançada a revista Isto É. Sobre esta última, Lima (1989, p.<br />

74) afirma que “o surgimento da revista Isto É foi fundamental para o surgimento<br />

de grupos de fotógrafos independentes e para a posterior criação de agências de<br />

fotógrafos”. Finalmente, de acordo com Lima (1989, p. 74), em 25 de maio de 1977,<br />

na edição 22, a revista Isto É viria a publicar “a sua primeira grande reportagem<br />

fotográfica. Na época, foram mostrados, em várias fotografias, os conflitos da Polícia<br />

com estudantes universitários”.<br />

A partir desse momento, informar passou a significar mostrar, como indica<br />

Muniz Sodré (1972, p. 52), e essa regra parece persistir até hoje, até porque a<br />

fotografia é compreendida de maneira mais direta e rápida do que o texto. Como<br />

ressalta Lima (1989, p. 10), “a facilidade do entendimento e a força da imagem é<br />

que colocaram a imagem produzida pela fotografia na vanguarda da transmissão<br />

da informação nos meios impressos”. De acordo com o autor (p. 39), “a notícia<br />

vinculada com a fotografia em um jornal é sempre mais lida”.<br />

Para abordar sobre o tema fotografia é preciso, inicialmente, registrar que<br />

as primeiras máquinas fotográficas surgiram na França e na Inglaterra, no início da<br />

década de 1840, de acordo com Susan Sontag (2004, p. 18), e “só contavam com os<br />

inventores e os aficcionados para operá-las”. Conforme a obra citada, a fotografia,<br />

nessa época, “não tinha nenhuma utilidade social clara” (p. 18), sendo que sua<br />

importância, como registro da realidade, foi reconhecida somente mais tarde. Em<br />

termos de estrutura, a fotografia de imprensa – e, dentro dela, o fotojornalismo -<br />

é considerada como uma vertente da fotografia documental, de acordo com Lima<br />

(1989, p. 11). O valor da fotografia documental é inquestionável, no sentido de<br />

mostrar e denunciar realidades às quais não teríamos acesso de outras maneiras.<br />

As primeiras guerras “registradas por fotógrafos” foram a Guerra da Crimeia<br />

(1854-56) e a Guerra Civil Espanhola (1936-39), de acordo com Sontag (2003, p.<br />

21). A autora comenta que “até a Primeira Guerra Mundial, o combate propriamente<br />

dito esteve fora do alcance das câmeras” e que as imagens da guerra “publicadas<br />

entre 1914 e 1918, quase todas anônimas, eram, em geral [...] de estilo épico” (p.<br />

21-22). A filósofa cita o exemplo da Guerra Civil Espanhola, como sendo “a primeira<br />

guerra testemunhada (‘coberta’) no sentido moderno: por um corpo de fotógrafos<br />

profissionais nas linhas de frente e nas cidades sob bombardeio” (p. 22). Em relação<br />

à fotografia de guerra, Sontag (2004, p. 51) oferece um interessante relato:


74<br />

Por trás das lentes, uma história<br />

Embora a fotografia, normalmente, seja uma visão onipotente e<br />

a distância, existe uma situação em que as pessoas são mortas,<br />

de verdade, por tirar fotos: quando fotografam pessoas matandose<br />

mutuamente. Só a fotografia de guerra combina voyeurismo<br />

e perigo. Fotógrafos de combate não podem deixar de participar<br />

da atividade letal que registram, até vestem uniformes militares,<br />

ainda que sem insígnias de patente. (2004, p. 51)<br />

Atualmente, podemos transpor essa ideia, por exemplo, à realidade dos<br />

fotojornalistas do Rio de Janeiro, que entram em comunidades acompanhando as<br />

operações da Polícia. Podem não estar do outro lado do mundo registrando guerras,<br />

mas vivenciam o mesmo estresse semelhante, correndo riscos durante a prática. Em<br />

algumas vezes, os fotógrafos permanecem horas à espreita, em locais considerados<br />

perigosos, à procura da fotografia perfeita. A fotografia “Execução em uma rua de<br />

Benfica”, da fotógrafa Wania Corredo, vencedora do Prêmio Esso de <strong>Fotografia</strong>,<br />

exemplifica essa questão. Assim, podemos observar que, guardadas as devidas<br />

proporções, os repórteres fotográficos de hoje se assemelham aos fotógrafos de<br />

guerra. Sobre o surgimento dos fotógrafos na imprensa brasileira, Lima (1989, p. 26)<br />

observa que estes sugiram na década de 1920 “através dos contínuos ou amigos dos<br />

donos de jornais”, sendo que os amigos dos donos tinham “maior tempo livre” e “uma<br />

câmera na mão”, e os contínuos desejavam “subir de categoria”. O fotojornalismo só<br />

começou a ser reconhecido por volta de 1940, em “tempo de guerra”, como afirma<br />

Sontag (2003, p. 32).<br />

No fotojornalismo tem-se a preocupação de informar a maior quantidade de<br />

dados em uma única imagem. A imagem deve resumir a notícia e mostrar o essencial<br />

da reportagem. Segundo Lima (1989, p. 35), “a reportagem é um acontecimento<br />

dinâmico, do qual o fotógrafo tem que extrair uma imagem que exprima o momento<br />

visual significativo daquele acontecimento”. O autor ressalta que “tudo tem que<br />

estar no mesmo quadro: os personagens e as suas relações com o espaço e com a<br />

circunstância” (p. 35). Portanto, informar pode, também, significar mostrar, mas<br />

não basta mostrar de qualquer maneira, pois a foto deve chamar a atenção e ter<br />

qualidade. O fotógrafo também deseja ter o seu trabalho reconhecido no meio da<br />

Comunicação. Burke (2004, p. 24) afirma que<br />

seria imprudente atribuir a esses artistas fotógrafos um ‘olhar<br />

inocente’ no sentido de um olhar que fosse totalmente objetivo,<br />

livre de expectativas ou preconceitos de qualquer tipo. Tanto<br />

literalmente quanto metaforicamente, esses esboços [...]<br />

registram ‘um ponto de vista’.


75<br />

Maria Cláudia Quinto<br />

O pesquisador Fernando de Tacca (2004, p. 5-6) afirma que “será na<br />

foto-choque que encontramos a representação crua da violência, da morte e do<br />

sofrimento. O trágico traz a dor alheia de forma explícita, impactante e cruel”. É<br />

comum vermos relatos nos quais se afirma que, atualmente, há uma proliferação<br />

de imagens chocantes e violentas. No entanto, não podemos dizer que este é um<br />

fenômeno recente. Imagens chocantes sempre tiveram espaço nas revistas e jornais,<br />

como vimos, anteriormente, e como podemos observar no relato, feito em 1860, pelo<br />

poeta francês Charles Baudelaire, citado por Sontag (2003, p. 89-90):<br />

É impossível passar os olhos por qualquer jornal, de qualquer<br />

dia, mês ou ano, sem descobrir em todas as linhas os traços<br />

mais pavorosos da perversidade humana [...]. Qualquer jornal,<br />

da primeira à última linha, nada mais é do que um tecido de<br />

horrores. Guerras, crimes, roubos, linchamentos, torturas, as<br />

façanhas malignas dos príncipes, das nações, de indivíduos<br />

particulares; uma orgia de atrocidades universal. E é com este<br />

aperitivo abominável que o homem civilizado diariamente rega<br />

o seu repasto matinal.<br />

A descrição de Baudelaire sobre os jornais de 1860 não está tão longe da<br />

descrição de nossos veículos de comunicação atuais, sendo que hoje se tem muito mais<br />

imagens nos jornais do que na época do poeta. A imagem fotografada deve ser digna de<br />

ser publicada, como Lima (1989, p. 27) aponta: “se a notícia não for quente ou a foto<br />

não for boa o seu trabalho pode não ser publicado”. O autor (p. 67) ainda comenta que<br />

“os redatores e fotógrafos apreciam, particularmente, as fotos ditas ‘sensacionalistas’,<br />

pelas condições excepcionais nas quais elas foram realizadas”. Pode existir, em<br />

alguns casos, uma maior valorização da imagem registrada em contingências de risco.<br />

Segundo Lima (1989, p. 67), “o risco enorme que o fotógrafo corre é recompensado<br />

pelo seu prestígio na redação. São poucas as fotografias de catástrofes que tem um<br />

grande valor informativo. Elas são apreciadas pela sua força emocional”.<br />

Durante a produção da imagem é preciso considerar o elemento de<br />

subjetividade do fotógrafo, o mundo visto através da lente da máquina fotográfica<br />

já se mostra transformado por uma série de razões: a escolha do melhor ângulo,<br />

o objeto a ser fotografado. Sobre isso, Boris Kossoy (2000, p. 30) afirma que “as<br />

possibilidades do fotógrafo interferir na imagem – e portanto na configuração do<br />

assunto no contexto da realidade – existem desde a invenção da fotografia”. O fato<br />

fotografado é congelado na imagem e reproduzido.<br />

Sobre esse assunto, Roland Barthes (1984, p. 15) afirma que “o que a<br />

fotografia reproduz ao infinito só ocorreu uma vez: ela repete mecanicamente o que<br />

nunca mais poderá repetir-se existencialmente”. A escolha do que fotografar inclui,


76<br />

Por trás das lentes, uma história<br />

também, o perfil do veículo de comunicação, permeado por motivações diversas,<br />

sensacionalistas ou não. Algumas publicações, mais sensacionalistas, são capazes<br />

de publicar imagens grotescas de determinadas situações, imagens que, talvez, o<br />

público não tenha interesse de ver, e nem mesmo o fotógrafo. Conforme Barthes<br />

(1984, p. 57),<br />

o fotógrafo, como um acrobata, deve desafiar as leis do provável<br />

ou mesmo do possível; em última instância, deve desafiar as do<br />

interessante: a foto se torna ‘surpreendente’ a partir do momento<br />

em que não se sabe por que ela foi tirada. [...] Em um primeiro<br />

tempo, a <strong>Fotografia</strong>, para surpreender, fotografa o notável; mas<br />

logo, por uma inversão conhecida, ela decreta notável aquilo<br />

que ela fotografa.<br />

Nesse processo, a imagem mostrada se torna superestimada e pode adquirir<br />

um status de realidade. Conforme afirma Sontag (2003, p. 22), “algo se torna<br />

real – para quem está longe, acompanhando o fato em forma de ‘notícia’ – ao ser<br />

fotografado”. Sontag (2003, p. 23) revela ainda que<br />

o fluxo incessante de imagens (televisão, vídeo, cinema) constitui<br />

o nosso meio circundante, mas quando se trata de recordar, a<br />

fotografia fere mais fundo. A memória congela o quadro; sua<br />

unidade básica é a imagem isolada. Numa era sobrecarregada de<br />

informação, a fotografia oferece um modo rápido de apreender<br />

algo e uma forma compacta de memorizá-lo. A foto é como uma<br />

citação ou uma máxima ou provérbio. Cada um estoca, na mente,<br />

centenas de fotos, que podem ser recuperadas instantaneamente.<br />

A imagem memorizada serve como um banco de registro de todos os<br />

conteúdos a que somos expostos diariamente. Tais conteúdos se tornam parte de quem<br />

somos. Em virtude disso, a delicada discussão sobre a veracidade e autenticidade das<br />

imagens se torna necessária. O sociólogo Michel Maffesoli (1995, p. 92) afirma<br />

que “a imagem ou o fenômeno não pretende a exatidão [...] Em suma, a imagem<br />

é relativa, no sentido de não pretender o absoluto. [...] É esse mesmo relativismo<br />

que a torna suspeita”. Nesse aspecto, um ponto importante a ser refletido é o uso do<br />

argumento da relativização da imagem para legitimar certas publicações, questão<br />

que deve ser avaliada através de um exercício crítico do olhar.<br />

Outro ponto interessante para se pensar é a questão das cores das imagens e<br />

seus impactos. Sobre esse aspecto, Lima (1989, p. 82) ressalta que devemos questionar


77<br />

Maria Cláudia Quinto<br />

se a forma de leitura de uma fotografia muda quando essa foto é<br />

em cores. Sem dúvida que sim. [...] As cores primárias (vermelho,<br />

amarelo e azul) são perceptíveis antes das cores secundárias<br />

(laranja, violeta e verde) e quanto mais puras forem essas cores,<br />

mais elas se destacam em relação às não puras. Da mesma forma,<br />

os componentes de cor vermelha dominam em relação ao amarelo<br />

e ao azul. O vermelho do sangue de um acidente ou crime acentua<br />

indevidamente a questão emocional da mensagem.<br />

Um interessante estudo feito por Luciano Guimarães (2000) mostra<br />

que, desde o surgimento da revista Veja, a cor mais utilizada em suas capas é o<br />

vermelho. Com a transformação da imagem impressa pelos meios de comunicação,<br />

passando da fotografia preto e branco para a colorida, as imagens violentas<br />

passaram a chamar ainda mais a atenção do público. Quanto mais chocante for a<br />

imagem, obviamente, mais intensa poderá ser a emoção que ela irá provocar. Com<br />

as transformações tecnológicas, as formas de produção, consumo e repercussão<br />

dessas imagens também se alteram.<br />

Como aponta Vilém Flusser (2002, p. 57), “o receptor pode recorrer ao artigo<br />

do jornal que acompanha a fotografia para dar nome ao que está vendo. Mas, ao ler o<br />

artigo, está sob influência do fascínio mágico da fotografia”. Um exemplo do impacto<br />

da fotografia é o caso de uma foto tirada pelo fotógrafo Severino Silva, em 1992,<br />

para o jornal O Povo, do Rio de Janeiro, analisada no trabalho de Denise Camargo<br />

(2005). A foto mostra um grupo de crianças jogando futebol, próximo a um corpo<br />

esquartejado. O fotógrafo optou por registrar a cena utilizando uma perspectiva de<br />

forma que a cabeça do cadáver parecia estar no lugar da bola de futebol das crianças.<br />

Obviamente, criou-se uma polêmica em torno de tal foto, pois a primeira impressão,<br />

ao olhar a foto, era a de que as crianças estavam jogando com a cabeça humana. Após<br />

um olhar atento, era possível perceber a bola atrás. Em casos como esse, parecem ser<br />

comuns os debates que envolvem, de um lado, argumentos sobre o valor documental<br />

da imagem e, do outro lado, comentários sobre os impactos emocionais que fortes<br />

imagens podem provocar no público, sendo necessário lançar um olhar atento aos<br />

vários argumentos e discursos dos atores envolvidos no debate.<br />

Tal exemplo também ilustra a acalorada discussão sobre os impactos das<br />

imagens e questões éticas das publicações. No ano de 2007, entrou em vigor o novo<br />

Código de Ética da Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), que substituiu o<br />

antigo Código, de 1987. Em comparação com o anterior, o novo código traz sutis<br />

alterações em vários artigos: a nova versão do Artigo 2, do capítulo I, registra, agora,<br />

que a liberdade de imprensa “implica um compromisso com a responsabilidade social<br />

inerente à profissão”. No artigo 11, a versão antiga dizia que “o jornalista deve evitar<br />

a divulgação de fatos de caráter mórbido e contrários aos valores humanos”. A versão


78<br />

Por trás das lentes, uma história<br />

atual afirma que “o jornalista não pode divulgar informações [...] de caráter mórbido,<br />

sensacionalista ou contrário aos valores humanos, especialmente em cobertura de<br />

crimes e acidentes”. O artigo 12 informa que o jornalista deve “rejeitar alterações<br />

nas imagens captadas que deturpem a realidade, sempre informando ao público o<br />

eventual uso de recursos de fotomontagem, edição de imagem, reconstituição de<br />

áudio ou quaisquer outras manipulações”. Esses são alguns exemplos da atual<br />

preocupação da Comunicação com as questões de ordem ética.<br />

As questões sobre a ética na Comunicação também dividem os profissionais<br />

do meio, e, como ressalta Eugênio Bucci (2000, p. 11), “o jornalismo é conflito,<br />

e quando não há conflito, um alarme deve soar. Aliás, a ética só existe porque a<br />

Comunicação Social é lugar de conflito”. O jornalista (p. 10) comenta, ainda, que<br />

o jornalismo como o conhecemos, isto é, o jornalismo como<br />

instituição da cidadania, e como as democracias procuram<br />

preservá-lo, é uma vitória da ética, que buscava o bem comum<br />

para todos, que almejava a emancipação que pretendia construir<br />

uma cidadania, que acreditava na verdade e nas leis justas.<br />

Contudo, mesmo sendo o jornalismo, historicamente, uma vitória da ética, se<br />

um leitor se sentir agredido pelo conteúdo de determinadas imagens, poderá passar<br />

a ter uma série de questionamentos sobre a atuação dos veículos de comunicação.<br />

Sobre a ética jornalística, Bucci (2000, p. 12) ressalta que esta “encarna valores<br />

que só fazem sentido se forem seguidos tanto por empregados da mídia como<br />

por empregadores – e se tiverem como seus vigilantes os cidadãos do público”.<br />

É necessário considerar a especificidade dos casos isolados e evitar generalizar as<br />

conclusões ao tratar desse assunto. A vigilância do público só é possível na medida<br />

em que o mesmo acredita que suas ações e contestações farão, de fato, diferença e<br />

trarão resultados.<br />

De acordo com Raquel Paiva (2002, p. 37), “com a responsabilidade<br />

de propiciar um sentimento de espaço público por onde circulem as falas e as<br />

contradições, ergue-se o jornalismo”. No entanto, através de um rápido olhar nas<br />

seções de cartas de leitores de jornais e revistas, é possível observar a grande incidência<br />

de mensagens que apenas elogiam as matérias. Há depoimentos que consideram as<br />

reportagens esclarecedoras, bem escritas e com belas imagens. É compreensível que<br />

se procure legitimar o conteúdo das matérias através da publicação seletiva de cartas<br />

positivas, mas também é preciso ver além do que está exposto e saber perceber o que<br />

as ausências são capazes de mostrar.<br />

O fotógrafo se preocupa em mostrar os fatos, em fazer da sua imagem um<br />

documento a ser levado a sério. Nesse processo, muitas vezes não há tempo para


79<br />

Maria Cláudia Quinto<br />

maiores abstrações. Após a publicação de uma foto, uma nova pauta é recebida,<br />

e uma nova imagem deve ser feita. A dinâmica da velocidade na imprensa acaba<br />

por servir de justificativa para o não pensar a reação do público. E dessa forma<br />

os dias se passam, pauta após pauta, com profissionais despejando imagens às<br />

vezes impensadas sobre um público consumidor que pode querer dedicar tempo a<br />

essas imagens. O receptor pode se tornar consciente de tais imagens, nutrindo uma<br />

autoridade no assunto que o emissor nem sempre parece ter, por estar algumas vezes<br />

mais envolvido com a velocidade da informação do que com o conteúdo. Nesse<br />

caso, a posse da imagem pode passar do emissor distraído ao receptor mais atento,<br />

que dispõe de tempo para analisar e absorver a imagem. Durante todo o processo,<br />

a imagem interage mais com o receptor do que com o emissor, que está focado,<br />

naturalmente, com a pauta do dia seguinte.<br />

Sobre o conteúdo da mensagem, despertar a emoção no público parece<br />

significar que, assim, a comunicação é humanista. É possível perceber isso pelo<br />

relato de Bucci (2000, p. 95) ao dizer que “banir a emoção da informação é banir a<br />

humanidade do jornalismo. E é banir o público. Os leitores, internautas, ouvintes e<br />

telespectadores reagem emocionalmente [...] aos acontecimentos”. Será que podemos<br />

afirmar que reagir ao acontecimento significa que a comunicação é humanista?<br />

Despertar emoção significa necessariamente que a comunicação é humanista, se o<br />

sentimento gerado for negativo e angustiante para seus consumidores?<br />

Para Dominique Wolton (2002a, p. 64), doutor em Sociologia, “a comunicação<br />

torna-se um setor explosivo se, ao lado da técnica e da economia, não se incluem<br />

orientações humanistas”. A comunicação, segundo Wolton, “é um grande desafio<br />

científico e político do século XXI” (2002b, p. 1). Para o autor, através dela “joga-se<br />

em definitivo a relação de cada um de nós com o mundo” (p. 3). Wolton (2005, p.<br />

12-13) indica, ainda, que “o essencial da comunicação é o respeito ao outro, diálogo<br />

entre as culturas, construção da tolerância. E é sobre isso que a comunicação é<br />

certamente responsável”. Dessa forma, Wolton (2003b, p. 42) salienta quatro pontos<br />

a serem considerados sobre as imagens: (1) “valorizar a importância do contexto,<br />

da história”; (2) “reconhecer a dimensão crítica do receptor”; (3) “jamais pensar a<br />

imagem ‘em si’” (independente do seu público-alvo, considerando-o como um “ser<br />

universal, sem identidade”) e (4) “não há imagem sem imaginário” (o imaginário<br />

do produtor da imagem pode ser diferente do receptor). Refletir sobre essas quatro<br />

dimensões é fundamental para aquele que deseja pesquisar sobre imagens publicadas<br />

na mídia. Ainda hoje, a capacidade crítica do receptor nem sempre parece ser<br />

valorizada como deveria e o público é frequentemente visto como um ser universal –<br />

é comum supor o que o público gosta ou deseja e usar tais argumentos para legitimar<br />

as formas como as notícias são produzidas.


80<br />

Por trás das lentes, uma história<br />

Na outra ponta da discussão está o fotógrafo com as suas questões e seus<br />

pontos de vista. Conforme Fernando de Tacca (2004, p. 7), “o fotógrafo sempre foi<br />

um indivíduo livre, um viajante, flâneur, [...] que almejava não viver enclausurado<br />

em normas produtivas rígidas”. O fotógrafo, que antes vagava pelas ruas à procura da<br />

imagem ideal, agora se vê restrito às amarras das regras do campo das comunicações.<br />

Tacca (2004, p. 7) aponta que<br />

o olhar livre do fotógrafo percorre os labirintos da sociedade<br />

para nos informar visualmente aquilo que não está nos meios<br />

tradicionais de comunicação de massa. Seriam então todas essas<br />

imagens que permearam nosso imaginário e nossa cultura visual<br />

retiradas à força do cotidiano das pessoas e tornadas públicas<br />

por um ato antiético?<br />

O autor conclui que cabe ao fotógrafo não aceitar as “camisas de força ao<br />

olhar”, lutando para continuar sendo um “indivíduo livre das amarras institucionais”<br />

(TACCA, 2004, p. 9), e que a lógica da ética não pode ser regida pela punição a<br />

priori e sim pelo uso que se faz dessas imagens. Veremos, adiante, um pouco mais<br />

sobre a percepção dos fotógrafos sobre a publicação de imagens na mídia impressa.<br />

Relato de Pesquisa<br />

O relato a seguir se baseia na Dissertação de Mestrado intitulada “Imagens<br />

de morte da mídia impressa: o olhar do fotógrafo” (170 p.), sob orientação da Dra.<br />

Monique Augras, no Mestrado em Psicologia da Pós-Graduação de Psicologia da<br />

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), entre os anos de 2005<br />

e 2006, e defendida em 2007. O tema da Dissertação manteve o foco em questões<br />

sobre imagens violentas (de mortes) na mídia impressa.<br />

Ao todo foram entrevistados dez fotógrafos profissionais, com o tempo de<br />

atuação que varia entre nove até 38 anos de prática, com passagem pelos principais<br />

jornais e revistas do Brasil. A fundamentação teórica da Dissertação foi baseada em<br />

autores da Sociologia francesa (Michel Maffesoli e Dominique Wolton) e em teorias<br />

sobre a fotografia e imagem (Sontag, Flusser, Barthes, Ivan Lima), e as entrevistas<br />

foram analisadas com base na Análise do Discurso.<br />

As questões abordadas nas entrevistas se referiam à prática do fotógrafo<br />

no momento de produção das imagens, sua opinião sobre a prática de fotografar<br />

para diferentes tipos de jornais ou revistas, sobre manipulação e edição de imagens,<br />

sobre a visão que se tem do público, critérios, normas e restrições de publicação,<br />

localização das imagens, percepção sobre vendas e consumo do material. Alguns


81<br />

Maria Cláudia Quinto<br />

tópicos abordados nas entrevistas foram selecionados a seguir para exemplificar e<br />

refletir sobre as questões que este artigo aborda.<br />

Sobre a questão da produção da imagem, alguns fotógrafos entrevistados<br />

enfatizaram a responsabilidade do fotógrafo nesse processo e o desejo por uma<br />

fotografia mais autoral, o que às vezes esbarra em limitações institucionais. A<br />

questão da distância entre o fato em si e a imagem produzida também é relatada nas<br />

entrevistas, sendo que a consciência dessa distância pode nem sempre estar presente<br />

nos consumidores das imagens. Alguns relatos apontam para a visão da imagem<br />

enquanto representação e não como realidades explícitas, e que caberia ao leitor a<br />

autonomia de decidir o que deseja comprar ou não.<br />

No que diz respeito ao conteúdo das imagens, os relatos apontam para a ênfase<br />

de que as imagens registradas não são mais impactantes do que a própria realidade<br />

moderna e que a violência estaria presente no dia a dia, não havendo diferença se<br />

essa violência está nos fatos ou na capa de um jornal. De qualquer forma, a questão<br />

da banalização da violência e da anestesia diante das imagens foram pontos citados<br />

por alguns profissionais entrevistados, juntamente com a percepção de que o público<br />

costuma não memorizar as imagens recebidas.<br />

Sobre a possibilidade da alteração das imagens, a manipulação tende a ser<br />

vista como uma ferramenta que sempre existiu na fotografia, tendo em vista as antigas<br />

práticas de laboratório, sendo, porém, mais aceita quando se tratam de imagens<br />

publicitárias, pois vários entrevistados enfatizaram o caráter documental da fotografia<br />

no fotojornalismo. A questão que se coloca nesse ponto seria o argumento de alguns<br />

consumidores sobre os seus direitos de verem uma imagem fiel ao acontecimento.<br />

Assim, alguns relatos apontam que, ao aceitar um trabalho, o fotógrafo precisaria<br />

estar consciente das questões que envolvem a prática. Além disso, relatos apontam<br />

que as questões que mobilizam os fotógrafos são, muitas vezes, detalhes prioritários<br />

sobre as técnicas utilizadas para a imagem a ser produzida, e que essa, sim, seria<br />

a função do fotógrafo. Há também a questão de se produzir o máximo possível<br />

de imagens durante o acontecimento, para depois escolher; portanto, o elemento<br />

temporal é preciso ser levado em consideração.<br />

Os relatos sobre a concentração e o foco, no momento do registro, são<br />

frequentemente citados pelos entrevistados, assim como a percepção de que o público<br />

percebe as imagens como realidade. Os relatos apontam para a importância de a<br />

imagem ser contextualizada, sendo necessário haver uma razão para determinada<br />

fotografia estar publicada em algum veículo ou em determinada posição.<br />

Com relação aos reguladores da publicação das imagens, ou seja, o que<br />

ou quem ditaria ou deveria ditar essa veiculação, os entrevistados não pareceram<br />

chegar a um acordo. Alguns pensam que, na hora de decidir se uma imagem deve


82<br />

Por trás das lentes, uma história<br />

ser publicada ou não, o que deve contar é o bom-senso. Outros acreditam que, nesse<br />

momento, o respeito às pessoas deve ser a prioridade, assim como a reação do<br />

público. Sobre a aprovação do público, os relatos enfatizaram a importância de estarse<br />

atento à forma como esse reage diante da publicação de imagens violentas, através<br />

de contatos feitos com a redação do jornal ou revista. Vários fotógrafos entrevistados<br />

relataram preocupação em não expor imagens violentas. Outra preocupação relatada<br />

foi no sentido de produzir fotos de qualidade, resgatando um aspecto artístico e<br />

valorizando o fotojornalismo perante o campo da <strong>Fotografia</strong>.<br />

Durante as entrevistas, apareceram, também, elementos importantes sobre a<br />

subjetividade e emotividade dos profissionais, alguns relataram sobre dificuldades<br />

encontradas em situações nas quais se depararam com notícias tristes sobre pessoas<br />

conhecidas ou sobre o medo que sentiram em situações de risco na cobertura de certas<br />

matérias, enfatizando a dicotomia entre a procura da beleza nas situações e a possibilidade<br />

real de estar exposto a riscos. Em algumas situações relatadas, a preocupação em<br />

captar o instante parece se sobressair ao cuidado com a própria segurança: o fotógrafo<br />

deseja conseguir tal foto e ser reconhecido por isso, inclusive, pelo risco ao qual se<br />

submeteu. Lima (1989, p. 37) observa que “o fotógrafo também não pode ser um<br />

espectador passivo nem se envolver emocionalmente com o acontecimento”. Porém, a<br />

busca desse equilíbrio parece fácil em teoria, mas difícil de ser aplicada no momento<br />

em que cenas chocantes acontecem diante dos olhos do fotógrafo.<br />

Sobre as imagens selecionadas para as capas de revistas, vários entrevistados<br />

lembraram-se de imagens de situações difíceis, mas que foram captadas de maneira<br />

bela e sensível por outros fotógrafos, enfatizando a importância da sensibilidade do<br />

profissional e também da identificação que certas imagens são capazes de produzir<br />

nas pessoas. O importante é que sejam consideradas as diferenças nos imaginários<br />

dos consumidores e dos produtores das imagens. Nesse aspecto, Wolton (2003b, p.<br />

42) sinaliza que “entre a intenção dos autores e a dos receptores não operam somente<br />

os diferentes sistemas de interpretação, de codificação e de seleção, mas igualmente<br />

todos os imaginários”.<br />

Como vimos, a discussão sobre as imagens publicadas na mídia impressa<br />

abarca uma série de questões sobre variadas práticas. O processo precisa ser<br />

compreendido cada vez mais a partir de um olhar múlti e interdisciplinar, que possa<br />

compreender e respeitar os diversos campos de atuação, mas que também possa<br />

lançar um olhar crítico sobre os fenômenos contemporâneos que nos cercam. A<br />

proliferação das imagens abre margem a uma espécie de anestesia social na qual o<br />

risco da banalização está intrínseco no processo. Cada vez mais, parece ser necessário<br />

despertar para essas questões, lançar um olhar atento às imagens, às subjetividades<br />

envolvidas nos processos e à própria necessidade de se consumirem tantas imagens.


83<br />

Maria Cláudia Quinto<br />

Diante da proliferação das imagens na modernidade e da importância atribuída<br />

às mesmas, finalizamos este artigo com o interessante prognóstico de Dominique<br />

Wolton (2002a, p. 60) sobre o futuro das imagens:<br />

Referências<br />

Estamos numa sociedade na qual a imagem desempenha<br />

um papel muito mais importante do que há 50 anos. Mas o<br />

espetáculo não transforma tudo, não dirige a sociedade. [...]<br />

Haverá um retorno a outros valores, pois o indivíduo não pode<br />

viver somente na imagem.<br />

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dez. 2006.


PARTE II: FOTOGRAFIA, HISTÓRIA E ARTE


CAPíTUlO 4<br />

HISTÓRIA DA FOTOGRAFIA MODERNA BRASIlEIRA:<br />

ExPERIMENTAÇõES DE GERAlDO DE BARROS E<br />

JOSé OITICICA FIlHO (1950-1964)<br />

Carolina Martins Etcheverry 1<br />

Muito já foi escrito sobre a história da fotografia oitocentista no Brasil. 2<br />

Entretanto, a história da fotografia moderna brasileira do século XX, ainda está,<br />

em grande parte, por ser escrita. Tem-se um determinado número de autores,<br />

entre eles Helouise Costa, 3 Tadeu Chiarelli 4 e Rubens Fernandes Júnior, 5 que<br />

trouxeram importantes contribuições para aqueles que desejam estudar este tema<br />

tão interessante.<br />

É comum, principalmente devido ao livro A fotografia moderna no<br />

Brasil, de Helouise Costa e Renato Rodrigues da Silva, estabelecer como marco<br />

temporal a década de 1940 para o início desta prática fotográfica. Segundo eles,<br />

foi no seio do Foto Cine Clube Bandeirante que a fotografia moderna nasceu. De<br />

acordo com os autores,<br />

A fotografia moderna no Brasil surgiu e se desenvolveu no<br />

Foto Cine Clube Bandeirante. Os fotógrafos bandeirantes<br />

concretizaram uma transformação que abalou a tradição<br />

pictorialista e acadêmica do movimento amador. Embora haja<br />

notícias de especulações modernas esparsas fora do ambiente<br />

fotoclubista, a documentação até agora levantada aponta que<br />

essa prática só se realizou sistematicamente e como experiência<br />

de grupo no Foto Cine Clube Bandeirante. 6<br />

Pode-se perceber que o critério utilizado pelos autores para definir o que<br />

seria a fotografia moderna e onde ela se posicionaria dentro do panorama geral da<br />

fotografia está baseado na sua inserção em um meio legitimador – o Foto Cine Clube<br />

Bandeirante. As contribuições esparsas, ainda que relevantes, são colocadas em<br />

segundo plano por não se inserirem nesta categorização.<br />

1 Mestre em <strong>História</strong>, Teoria e Crítica da Arte e Doutoranda em <strong>História</strong> do PPGH/PUCRS. E-mail: etchev@gmail.com.<br />

2 Cf.: Kossoy (1998, 2002 a, 2002 b, 1983), Fabris (1998, 2007, 2008), Pedro Karp Vasquez (1985, 2002, 2003),<br />

Solange Ferraz de Lima (1997), Vânia Carneiro de Carvalho (1997), Zita Possamai (2005).<br />

3 Cf. Helouise Costa e Renato Rodrigues da Silva (2004).<br />

4 Cf. Tadeu Chiarelli (2003).<br />

5 Cf. Rubens Fernandes Júnior (2006).<br />

6 Helouise Costa e Renato Rodrigues da Silva (2004, p. 36). As especulações a que os autores referem-se dizem<br />

respeito às imagens de Jorge de Lima, Athos Bulcão e Fernando Lemos, os dois primeiros ligados à fotomontagem,<br />

em textos escritos por Paulo Herkenhoff, Annateresa Fabris, Fernando Cocchiarale e Ricardo Mendes.


91<br />

Carolina Etcheverry<br />

Também Rubens Fernandes Júnior contribui para o pensamento sobre a<br />

fotografia moderna brasileira, porém sob um ângulo um pouco diferente, pois não<br />

a relaciona diretamente ao advento do Foto Cine Clube Bandeirante, mas sim à<br />

conjuntura histórica do período. Segundo ele,<br />

Podemos afirmar, contudo, que a fotografia moderna brasileira<br />

começa no final dos anos 40, após os primeiros investimentos<br />

de capitais estrangeiros no país e as primeiras iniciativas para<br />

alavancar o desenvolvimento industrial. 7<br />

No livro Labirinto de identidades, do qual tiramos a citação anterior, o autor<br />

procura sistematizar uma história da fotografia moderna e contemporânea, traçando<br />

um panorama da fotografia brasileira de 1946 a 1998. Para tanto, Rubens Fernandes<br />

Júnior estabelece três momentos principais: as décadas de 1940 e 1950 (com destaque<br />

para Geraldo de Barros, Thomaz Farkas, José Medeiros e Pierre Verger – documental<br />

e experimental juntos); as décadas de 1960 e 1970 (destacando Maureen Bisilliat,<br />

Walter Firmo e Luis Humberto – representação da identidade nacional a partir de<br />

manifestações populares); os fotógrafos da década de 1980, atuantes até hoje (Juca<br />

Martins, Nair Benedicto, Mario Cravo Neto, Antonio Saggese, Miguel Rio Branco,<br />

Araquém Alcântara, Pedro Vasquez, entre outros) e, por fim, os fotógrafos da década<br />

de 1990, tais como Ed Viggiani, Rubens Mano, Elza Lima, Cássio Vasconcellos,<br />

Luiz Braga, Eustáquio Neves, entre outros.<br />

Interessante também para o estudo da fotografia moderna e contemporânea<br />

brasileira é o livro de Antonio Fatorelli, intitulado <strong>Fotografia</strong> e viagem. 8 Em seu<br />

último capítulo, o autor aborda a fotografia de José Oiticica Filho, bem como a de<br />

Antonio Saggese, buscando, assim, traçar uma relação entre a prática moderna e a<br />

contemporânea. A historiadora da arte Annateresa Fabris 9 igualmente contribuiu para<br />

a construção do campo historiográfico da fotografia, ao escrever sobre temas que vão<br />

desde a fotografia do século XIX até as relações entre fotografia e artes visuais.<br />

Nosso objetivo é oferecer ao leitor um panorama geral a respeito do estudo<br />

das fotografias de Geraldo de Barros e de José Oiticica Filho, como forma de<br />

pesquisar a história da fotografia moderna brasileira. Através destes fotógrafos, é<br />

possível compreender o sistema da fotografia no Brasil, bem como suas relações com<br />

as artes visuais, e perceber as principais contribuições destes autores para o campo<br />

da fotografia. Na primeira parte, fazemos um apanhado geral sobre os fotógrafos e<br />

suas imagens; a seguir, há um debate teórico sobre os conceitos usados para definir<br />

suas fotografias; na terceira parte, fazemos um levantamento historiográfico acerca<br />

7 Rubens Fernandes Júnior (2003, p. 144).<br />

8 Antonio Fatorelli (2003).<br />

9 Cf. Annateresa Fabris (1998, 2007, 2008).


92<br />

<strong>História</strong> da fotografia moderna brasileira<br />

dos principais textos escritos sobre Geraldo de Barros e José Oiticica Filho; a quarta<br />

parte deste texto é dedicada à inserção das fotografias no contexto geral da <strong>História</strong><br />

da <strong>Fotografia</strong> brasileira e, por fim, a quinta parte dedica-se a analisar as imagens dos<br />

fotógrafos dentro do contexto nacional das Artes Visuais. Com isto buscamos abarcar as<br />

principais questões relacionadas às fotografias de Geraldo de Barros e de José Oiticica<br />

Filho, fornecendo um panorama de sua obra, procurando facilitar estudos posteriores.<br />

Sobre Geraldo de Barros e José Oiticica Filho<br />

Geraldo de Barros e José Oiticica Filho foram dois importantes fotógrafos<br />

brasileiros, que atuaram entre o final da década de 1940 e a década de 1960. Em<br />

comum, compartilham o apreço pela experimentação na fotografia, a participação<br />

no movimento fotoclubista e no movimento concretista brasileiro. Além disso,<br />

ambos tinham na fotografia uma paixão, mas suas atividades profissionais principais<br />

giravam em torno de outros assuntos. Geraldo de Barros era bancário, funcionário do<br />

Banco do Brasil, e José Oiticica Filho era professor de entomologia.<br />

Barros iniciou na fotografia no final da década de 1940. Artista plástico,<br />

gravador, designer, além de fotógrafo e bancário, Barros usava a fotografia como<br />

modo de expressar suas ideias plásticas, subvertendo, muitas vezes, o uso “comum”<br />

feito pelos demais fotógrafos. Utilizava diversas técnicas experimentais nos seus<br />

trabalhos fotográficos. Fazia uso de sobreposições de negativos e intervenções com<br />

ponta-seca em nanquim na película. Com isso ele conseguia quebrar com a ideia<br />

de mimese do real. Suas imagens apontam para um profundo questionamento da<br />

natureza fotográfica, bem como expandem o campo da fotografia tradicional.<br />

Em 1950, Barros montou a exposição Fotoforma, no Masp. Nela havia um<br />

conjunto de imagens elaboradas, aproximadamente entre 1948 e 1950, dentre as<br />

quais figuravam fotografias geométricas que se alinham à arte concreta e desenhos<br />

livres sobre o suporte fotográfico. Todos estão dentro da ideia de campo expandido<br />

da fotografia, ao mostrarem experimentações de diversas ordens. Suas fotografias<br />

abstratas, como veremos, alinham-se aos ideais da arte concreta, apoiadas em noções<br />

matemáticas geométricas.<br />

José Oiticica Filho teve uma trajetória um pouco diferente de Barros. Ele foi<br />

entomologista no Museu Nacional desde 1942, onde fotografava insetos. Foi a partir<br />

desta necessidade de documentar seu estudo que surgiu o interesse pela fotografia.<br />

Segundo Hélio Oiticica, “ao aperfeiçoar-se na microfotografia de Lepidoptera<br />

(e outras ordens de insetos também), foi-lhe, aos poucos, nascendo o sentido da<br />

fotografia como uma expressão de arte”. 10<br />

10 Oiticica (1983, p. 7).


93<br />

Carolina Etcheverry<br />

Oiticica Filho passou, então, a pesquisar no campo da fotografia. Produziu<br />

vários artigos sobre a prática fotográfica, publicados em jornais e boletins fotográficos.<br />

Sua produção fotográfica foi dividida por ele próprio em várias categorias, que dão<br />

título às imagens: forma, ouropretense, abstração, derivação e recriação. Com títulos<br />

diversos, estão as fotografias da sua fase pictorialista. Segundo Paulo Herkenhoff,<br />

em texto escrito para o catálogo da exposição do fotógrafo em 1983, ele passou por<br />

quatro fases em sua trajetória artística:<br />

Há quatro fotógrafos em José Oiticica Filho: o utilitário, o<br />

fotoclubista, o abstrato e o construtivo. Por vezes, algumas<br />

dessas linhas se identificaram ou tiveram um desenvolvimento<br />

simultâneo e paralelo. No entanto, o fotógrafo construtivo seria<br />

um radical que negaria a validade estética dos demais. 11<br />

Este fotógrafo foi bastante fecundo, investindo nas experiências fotográficas<br />

de expansão do campo. Para ele, como fica bastante claro em entrevista intitulada<br />

“<strong>Fotografia</strong> se faz no laboratório”, concedida a Ferreira Gullar em 1958, a parte mais<br />

importante do processo fotográfico se dá no laboratório:<br />

11 Herkenhoff (1983, p. 11).<br />

FG – Pela nossa conversa, concluo que para você a máquina<br />

fotográfica mesma tem um papel relativo no que chama de<br />

fotografia.<br />

OF – Para mim a câmera fotográfica, como os demais meios<br />

técnicos que entram no processo fotográfico, tem o mesmo<br />

papel que o pincel, a tinta e a tela para o pintor. O que interessa<br />

é o resultado.<br />

FG – Estou de acordo.<br />

OF – E o papel da máquina fotográfica ainda é bem menos<br />

importante do que vem depois. Se o fotógrafo bate a chapa,<br />

revela e manda copiar, ele entrega a fase mais importante do<br />

trabalho de criação fotográfica. Quanta coisa se pode fazer ao<br />

copiar uma foto. É nessa hora quando se graduam os cinzas,<br />

as luzes, o corte, que a fotografia a bem dizer nasce. Mas os<br />

fotógrafos neorrealistas batem as fotos e mandam copiar. É até<br />

um crime uma pessoa assinar como sua uma foto que outro<br />

copiou. Mas esses equívocos estão hoje em moda. Acabo de<br />

comprar o último número da revista de arte “XXème Siècle”,<br />

dedicada ao grafismo, onde aparece uma reportagem sobre o<br />

fotógrafo Brassai, que fotografou garatujas feitas por crianças<br />

nas paredes de Paris. As garatujas são às vezes bonitas, mas<br />

o fotógrafo apenas as fotografou, isto é, fez uma reportagem


94<br />

<strong>História</strong> da fotografia moderna brasileira<br />

sobre as garatujas. No entanto é apresentado pela revista como<br />

grande artista. 12<br />

Paulo Herkenhoff, em conclusão ao texto do catálogo, escreveu a respeito<br />

de José Oiticica Filho que “sua produção, precedida das Fotoformas de Geraldo<br />

de Barros, representa o momento em que a fotografia esteve mais sintonizada e<br />

integrada a um projeto geral da cultura no país”. 13 O projeto geral de cultura no país,<br />

segundo Gershmann, 14 passava pela criação dos museus de arte (Masp e MAM) e<br />

pela arte construtiva. Estes estariam de acordo com o ideal desenvolvimentista, que<br />

objetivava a atualização do país em todos os setores.<br />

Debate teórico-conceitual sobre as imagens<br />

Neste ponto é preciso fazer uma digressão para entendermos de que modo as<br />

fotografias de Geraldo de Barros e de José Oiticica Filho podem ser entendidas em<br />

termos conceituais, visto que os vários autores que pensaram a respeito de tais imagens<br />

(e não apenas as destes artistas) as denominam de modos bastante diferentes. É preciso<br />

definir estes modos, a fim de melhor entender as implicações de cada um deles.<br />

As fotografias de Geraldo de Barros e José Oiticica Filho podem ser inseridas<br />

na ideia de “campo expandido” da fotografia. Segundo Rubens Fernandes Júnior,<br />

criador da ideia,<br />

A fotografia expandida existe graças ao arrojo dos artistas mais<br />

inquietos, que desde as vanguardas históricas, deram início a esse<br />

percurso de superação dos paradigmas fortemente impostos pelos<br />

fabricantes de equipamentos e materiais, para, aos poucos, fazer<br />

surgir exuberante uma outra fotografia, que não só questionava os<br />

padrões impostos pelos sistemas de produção fotográficos, como<br />

também transgredia a gramática do fazer fotográfico. 15<br />

Rubens Fernandes Júnior, influenciado por Flusser, apresenta uma<br />

ideia geral de transgressão do fazer fotográfico tal como foi concebido desde<br />

o surgimento do aparelho fotográfico, utilizado amplamente pelos fotógrafos<br />

documentais, como Atget, Bresson ou Salgado. Assim, as experimentações feitas<br />

por Geraldo de Barros e José Oiticica Filho estariam incluídas nesta concepção,<br />

visto que elas alargam o campo de atuação da fotografia, aproximando-o do campo<br />

artístico, por exemplo. Mas as práticas fotográficas constituintes deste “campo<br />

12 Oiticica: “fotografia se faz no laboratório”, Jornal do Brasil, 24/08/1958, suplemento dominical de artes plásticas.<br />

13 Herkenhoff (1984, p. 19).<br />

14 Gershmann (1992).<br />

15 Rubens Fernandes Júnior (2006, p. 11).


95<br />

Carolina Etcheverry<br />

expandido”, principalmente na contemporaneidade, são muitas, o que torna este<br />

um termo de aplicação operacional genérica.<br />

Em catálogo publicado em 1936, pelo Museu de Arte Moderna de Nova<br />

Iorque, Alfred Barr, 16 curador da exposição Cubism and abstract art, cunha o<br />

termo “fotografia abstrata”. Usando como exemplo os artistas Man Ray (com suas<br />

rayografias), Moholy-Nagy e Bruguiere, Barr descreve em poucas linhas o que ele<br />

acredita ser a fotografia abstrata. Assim, no texto do catálogo, Barr explica:<br />

Man Ray foi também um pioneiro na fotografia abstrata.<br />

Ele foi provavelmente o primeiro a fazer uso da técnica<br />

rayográfica para fazer composições abstratas. Ao fazer uma<br />

rayografia, nenhuma câmera é usada; objetos são colocados<br />

diretamente sobre o papel sensível que então é revelado. Com<br />

objetos como um matador de moscas, um ovo de cerzir, anéis<br />

de metal e um cacho de cabelo, Man Ray obteve composições<br />

de grande sutileza (fig. 186, 187). Elas foram aclamadas<br />

pelos companheiros dadaístas de Man Ray pela sua técnica<br />

“antiartística” e aparentemente casual, mas muitas delas são,<br />

de fato, trabalhos de arte completos diretamente relacionados<br />

com a pintura abstrata e não ultrapassados no seu medium.<br />

O húngaro Moholy-Nagy, antigo professor da Bauhaus de<br />

Dessau, foi, até sua recente mudança para Londres, um dos mais<br />

inventivos e originais mestres do fotograma (fig. 188), outro<br />

nome do rayograma.<br />

Francis Bruguiere, um americano morando em Londres, usa a<br />

câmera na feitura de fotografias abstratas de luz caindo em papel<br />

branco dobrado ou amassado. 17<br />

Nota-se que o autor, nestas poucas linhas, tenta organizar o conhecimento a<br />

respeito destas fotografias que fogem aos padrões normais do que seria uma fotografia<br />

– cópia do real, mimética por natureza. Utiliza-se do termo usado nas artes que<br />

estão, neste momento, recém se consolidando, e o aplica para o caso da fotografia<br />

feita por artistas. Não por acaso, acreditamos, Barr deixa alguns fotógrafos de fora,<br />

como Alvin Langdon Coburn, que neste momento também fazia experimentações no<br />

campo expandido da fotografia. Se optasse por incluir Coburn, que atua apenas como<br />

fotógrafo, talvez tivesse que rever a ligação estabelecida com a pintura abstrata.<br />

Coburn, segundo Helmut Gernshein, 18 foi o primeiro a fazer fotografias<br />

abstratas. Este fotógrafo acreditava que as possibilidades da câmera fotográfica<br />

ainda não haviam sido exploradas completamente, e, por isso, iniciou uma série de<br />

16 Alfred Barr (1974).<br />

17 Ibidem, p. 170, tradução nossa.<br />

18 Helmut Gernsheim (1990).


96<br />

<strong>História</strong> da fotografia moderna brasileira<br />

experimentos que culminariam na série Vorticism (na qual ele se utiliza de prismas<br />

para criar a imagem). Também foi o responsável pela organização de uma exposição<br />

de fotografia abstrata, na qual buscava a “apreciação do extraordinário”. Entretanto,<br />

no caso de Gernsheim – conhecido fotógrafo e historiador da fotografia – o termo<br />

“fotografia abstrata” não tem um uso crítico, apenas operatório.<br />

Na esteira desta terminologia, Paulo Herkenhoff, em 1983, escreve para o<br />

catálogo da exposição de fotografias de José Oiticica Filho aquilo que entende por<br />

fotografia abstrata. Segundo o autor,<br />

É preciso demarcar o significado do termo fotografia abstrata,<br />

com o qual se pretende operar este texto. Inicialmente, opõese<br />

ao figurativo: é a emergência de imagens fotográficas não<br />

identificáveis com objetos naturais e artificiais, é um não<br />

verismo. (...) imagens não figurativas (informais ou geométricas),<br />

produzidas conforme os processos tradicionais (registro e cópia)<br />

e os cânones codificados para a arte fotográfica – sem exclusão<br />

de alguns de menor uso, como o fotograma, a solarização,<br />

a fotomontagem, já então consagrados na história da arte<br />

(introduzidos por Man Ray, Moholy-Nagy, Rodchenko, Grosz,<br />

Heartfield, Haussman, El Lissitzky, Ernst, Dali, e outros). 19<br />

Assim, Herkenhoff acompanha Barr em sua terminologia e exemplo de artistas<br />

abstratos, ainda que sua explicação seja um pouco mais complexa. A fotografia abstrata<br />

é colocada em oposição à fotografia figurativa, reproduzindo uma dicotomia oriunda<br />

das artes plásticas. É também colocada em condição de suspeita, já que é definida como<br />

uma imagem fotográfica não identificável com objetos naturais e artificiais. Deixa-se<br />

de lado outras possibilidades de abordagem, como o caráter narrativo ou descritivo da<br />

fotografia, que é inexistente em Barros e Oiticica. Nesse caso, talvez fosse interessante<br />

considerar termos como fotografia não narrativa ou fotografia não denotativa, como<br />

alternativas para essa crise de conceituação de tais imagens.<br />

Filiberto Menna, 20 em texto de 1975, intitulado La opción analítica en el arte<br />

moderno, dedica-se ao que chama de fotografia analítica, bem como elabora o termo<br />

antifotografia. Segundo este autor, a prática analítica da arte assumiu a tarefa de<br />

desmascarar a pretensão da fotografia de figurar como equivalente da visão natural.<br />

Esta concepção revela a natureza convencional, histórico-cultural que permeou<br />

as ideias sobre a fotografia desde o seu início. Entretanto, Menna, em sua análise,<br />

desarticula este postulado, ao considerar especialmente os fotogramas, dentro do que<br />

Moholy-Nagy afirmou sobre estes:<br />

19 Paulo Herkenhoff (1983, p. 13).<br />

20 Filiberto Menna (1977, p. 50-52, tradução nossa).


97<br />

Carolina Etcheverry<br />

A concreção do fenômeno da luz é peculiar no processo<br />

fotográfico e a nenhuma outra invenção técnica. A fotografia<br />

sem câmera (a construção de fotogramas) se embasa nisto.<br />

O fotograma é uma realização de tensão espacial em brancopreto-cinza<br />

(...). Embora careça de conteúdo representativo, o<br />

fotograma é capaz de evocar uma experiência ótica imediata,<br />

baseada na nossa organização visual psicobiológica. 21<br />

Assim, o fotograma traduz o objeto em motivo luminoso não figurativo,<br />

criando uma relação ótica elementar, parecida com a pintura construtivista. O autor<br />

não menciona o termo fotografia abstrata, mas elabora uma série de técnicas de<br />

détournement, tais como fotomontagem, solarização, negativo, uso de objetivas<br />

especiais e lentes deformadoras, que definiriam a elaboração de “antifotografias”:<br />

Em definitivo, se trata de verdadeiras “antifotografias”, que<br />

pulverizam as expectativas do espectador, destroem a confiança<br />

nas qualidades reprodutivas do medio, em suma, provocam uma<br />

espécie de “ginástica mental” que desloca a atenção do referente<br />

ao signo linguístico. 22<br />

Estas antifotografias colocam em discussão o que Menna chama de “iconismo<br />

fotográfico”, que vem a ser a importância da representação figurativa na fotografia.<br />

As fotografias nas quais não há elementos denotativos, tais como os fotogramas,<br />

as múltiplas exposições, e todas as outras imagens produzidas sem que o referente<br />

seja identificado pelo espectador, podem ser enquadradas como antifotografias, pois<br />

criam um sentimento de suspeita, contribuindo para a complexidade da imagem.<br />

Em 1977, Rosalind Krauss escreveu o texto Photography and abstraction, no<br />

qual desenvolveu uma análise bastante filosófica e semiótica a respeito da possível<br />

existência de fotografias abstratas, contrapondo-se à concepção de Barr. A autora<br />

inicia o artigo analisando uma fotografia de um exercício sobre luz e superfície,<br />

realizado na Escola da Bauhaus, que consistia em dobrar uma folha de papel<br />

formando pregas ritmadas, para, ao receber uma forte luz rasante, se tornar um jogo<br />

de puro desenho, formas visuais puras. Este jogo abstrato de relações e inversões de<br />

figura e fundo para nós é uma fotografia. Krauss afirma que<br />

Esta fotografia não é a demonstração das condições abstratas<br />

da visão. Ela o é de algo, é a marca documental daquela coisa<br />

que foi registrada fotoquimicamente na película, a imagem de<br />

uma folha de papel recortada e dobrada. Não pode livrar-se desta<br />

condição. Lissitzky, Moholy-Nagy, Man Ray, Brugière, Berenice<br />

21 László Moholy-Nagy apud Filiberto Menna (1977, p. 50, tradução nossa).<br />

22 Filiberto Menna (1977, p. 51, tradução nossa).


98<br />

<strong>História</strong> da fotografia moderna brasileira<br />

Abbott, Imogen Cunningham... nenhum deles a defendeu, ainda<br />

que tenham experimentado com a “fotografia abstrata”. 23<br />

Assim, o conceito de fotografia abstrata começa a ser questionado, trazendo<br />

um problema para o desenvolvimento da pesquisa sobre Geraldo de Barros e José<br />

Oiticica Filho. Percebe-se que foi um termo operativo cunhado por críticos, e não<br />

pelos próprios artistas e fotógrafos. As fotografias feitas por Geraldo de Barros a<br />

partir de cartões perfurados não seriam, dentro da lógica de Krauss, uma abstração.<br />

Sabemos que aqueles são cartões perfurados, mas o modo como o autor os fotografa<br />

abre uma dúvida, ou uma suspeita, a respeito de sua identificação. É por esse motivo<br />

que o termo, também de certo modo genérico, fotografia sem referente claramente<br />

identificável, parece, em alguns casos, mais apropriado.<br />

Rosalind Krauss vai além em sua análise, e, ao chegar no punctum barthesiano,<br />

a autora afirma que “esta ferida infligida pela fotografia existe em função da maneira<br />

como a foto entrega o real de seus conteúdos, marcando-lhes não apenas com o ser<br />

– “isto é” –, mas de forma irrevogável com o tempo: “isto foi”. 24 A autora coloca,<br />

assim, a questão da relação da fotografia com o passado e com o acontecimento. O<br />

que, segundo ela, ocorre no caso de fotografias supostamente abstratas – para isso<br />

ela utiliza fotografias de James Welling – é uma queda na “incerteza” e no “silêncio”.<br />

“Vemos o referente, mas não o reconhecemos. Perdemos o encontro.” 25<br />

O trabalho de Welling é baseado em um diário escrito por sua tataravó<br />

em 1840. As fotografias do diário criaram um marco para o que o artista buscava:<br />

“uma fotografia que não entregara o presente (fotografia de rua, do cotidiano, do<br />

instante decisivo), mas que, ao apresentar uma distorção temporal, colocou a ele e<br />

aos espectadores em contato com um passado que se encontrou demasiado tarde”. 26<br />

Por isso a perda do encontro.<br />

Torna-se tarde para reconhecer o objeto fotografado. Krauss, para explicar<br />

esta ideia, apropria-se do termo tuché, usado por Lacan e transformado por Barthes<br />

no punctum. Esta palavra indica “a realidade perdida, a realidade que já não pode<br />

produzir a si mesma a não ser repetindo-se incessantemente em um despertar jamais<br />

alcançado”. 27 Assim também o punctum faz com que o real seja tanto aquilo que eu<br />

perdi como o que estarei obrigado a reproduzir a partir de então por repetição. É por<br />

isso que Welling refotografa os lugares por onde sua tataravó passou, sobrepondoas<br />

às páginas do diário escrito por ela, obtendo assim uma imagem obscura, não<br />

claramente identificável, “abstrata”.<br />

23 Rosalind Krauss (2004, p. 231, tradução nossa).<br />

24 Ibidem, p. 233.<br />

25 Ibidem, p. 235.<br />

26 Rosalind Krauss, loc. cit.<br />

27 Rosalind Krauss, loc. cit.


99<br />

Carolina Etcheverry<br />

Por fim, em texto de 1984, intitulado A ilusão especular, Arlindo Machado<br />

mostra-se negativo em relação à própria possibilidade de existência de fotografia<br />

abstrata, devido, justamente, às suas características formativas. Segundo ele:<br />

É curioso constatar que as fotografias ditas “artísticas” sejam,<br />

no geral, bem pouco severas em relação à ilusão especular<br />

e permaneçam, apesar de tudo, figurativas, por mais que<br />

tentem disfarçar essa condição com arranjos harmônicos e<br />

composições “musicais”. (...) Daí o equívoco fundamental<br />

de José Oiticica Filho ao supor que poderia, numa certa fase<br />

de sua obra, construir uma fotografia “abstrata”, debruçandose<br />

sobre motivos informais, como traçados de tinta sobre<br />

vidro rugoso. O momento de abstração nas fotos de Oiticica<br />

é anterior à fotografia propriamente dita: por essa razão, tais<br />

fotos “abstratas” não são nem um pouco menos figurativas que<br />

qualquer pimentão hiper-realista de Edward Weston. É que,<br />

em quaisquer circunstâncias, a câmera e a película gelatinosa<br />

foram concebidas para possibilitar a emergência da figura,<br />

sem deixar brechas para qualquer outra exploração que não o<br />

ilusionismo de “real”. 28<br />

Nota-se que o que parece ser fácil – encontrar um termo justo para referir-se a<br />

determinadas fotografias – mostra-se, em realidade, uma reflexão bastante profícua.<br />

Percebe-se que o termo “fotografia abstrata” não explica por si só as imagens<br />

fotográficas de Barros, Oiticica Filho e muitos outros. Ela apenas refere-se ao fato<br />

de que o objeto da fotografia não se faz claro aos nossos olhos, mostra-se à nós<br />

de maneira “abstrata”. Mas se a fotografia é o registro de luz emanada por objetos<br />

reais em uma superfície fotossensível, é possível pensar em abstração, em oposição<br />

à existência de uma figura? Não seria mais apropriado buscar outros modos de<br />

referir-se a determinadas imagens, sem engessá-las em uma terminologia demasiado<br />

genérica e, por vezes, inapropriada? Em alguns casos, fotografia não narrativa<br />

basta, em outros é preciso ir além, identificando-a como fotografia construtiva, de<br />

composição geométrica, com referente não identificável, não denotativa – o que<br />

melhor se aplicar à fotografia que se tem à frente.<br />

O debate dos críticos: uma revisão historiográfica<br />

Sobre Geraldo de Barros e José Oiticica Filho, foram escritos alguns textos,<br />

de pesquisadores e críticos de renome, que servem como baliza para uma primeira<br />

aproximação à pesquisa sobre tais personagens. Ao revisar tais textos, pretendemos<br />

reafirmar a importância que tiveram na divulgação e na valorização do trabalho destes<br />

fotógrafos no contexto da fotografia nacional. Assim, trataremos de textos de Pietro<br />

28 Arlindo Machado (1984, p. 155).


100<br />

<strong>História</strong> da fotografia moderna brasileira<br />

Maria Bardi, Radhá Abramo, Annateresa Fabris, Maria Teresa Bandeira de Mello,<br />

Antonio Fatorelli, Helouise Costa, Paulo Herkenhoff, Heloísa Espada Lima e Paulo<br />

Henrique Camargo Batista. Entre artigos, ensaios, capítulos de livros e dissertações<br />

de mestrado, pretendemos mostrar como estes fotógrafos foram construídos enquanto<br />

objeto de estudos pelos mais diversos autores, preocupados em sistematizar o estudo<br />

a respeito das obras de Geraldo de Barros e José Oiticica Filho.<br />

Procurando manter uma ordem cronológica na abordagem dos textos, de<br />

modo que fique visível a tentativa de reconstrução crítica da historiografia a respeito<br />

destes fotógrafos, parece-nos conveniente iniciar este percurso pensando sobre dois<br />

pequenos ensaios, escritos por Pietro Maria Bardi, em 1950, para o catálogo da<br />

exposição de Geraldo de Barros, Fotoformas, e por Radhá Abramo, em 1977, para o<br />

catálogo da exposição Geraldo de Barros: 12 anos de pintura 1964 a 1976, realizada<br />

no MAM-SP, em 1977. 29 Bardi inicia este ensaio para o catálogo da exposição<br />

Fotoformas afirmando que Barros tinha a composição como um dever, transformando<br />

segmentos lineares em harmonias formais agradáveis. Para o autor, o fotógrafo<br />

utiliza a fotografia como meio de fugir dos verismos da pintura, pois, ainda que a<br />

fotografia seja um meio verista por excelência, ela também “se presta a transformar<br />

a sensação numa expressão sem “artisticidade”, pura derivação de sombras e por<br />

isso mais ligada à abstração”. 30 Bardi encerra a apresentação às fotografias de<br />

Geraldo de Barros anunciando sua viagem de estudos a Paris, da qual ele voltaria,<br />

certamente, muito enriquecido. O texto de Radhá Abramo busca apresentar o artista<br />

e sua criação, por ocasião de sua exposição de pinturas. A autora não aborda tanto as<br />

fotografias quanto suas pinturas, que são caracterizadas por ela como “ambíguas”. 31<br />

Entretanto, ao traçar a biografia de Barros, Abramo acaba por pincelar sua pesquisa<br />

fotográfica, elencando seu papel na organização do Laboratório de <strong>Fotografia</strong> do<br />

Masp, em 1949, e sua participação em inúmeras exposições fotográficas, nas quais é<br />

inclusive fotógrafo premiado.<br />

Paulo Herkenhoff 32 escreveu três textos importantes para o tema em estudo.<br />

O primeiro deles, de 1983, é sobre José Oiticica Filho, e os dois últimos, de 1987 e<br />

1989, são sobre Geraldo de Barros. O texto A trajetória: da fotografia acadêmica<br />

ao projeto construtivo busca traçar um panorama da obra de José Oiticica Filho,<br />

enumerando as quatro fases pelas quais o fotógrafo teria passado: o utilitário, o<br />

fotoclubista, o abstrato e o construtivo. Segundo Herkenhoff,<br />

A obra de José Oiticica Filho representa uma experiência<br />

radical de ruptura na história da fotografia brasileira. O seu<br />

29 Estes dois ensaios encontram-se no livro de Geraldo de Barros (2006, p. 137-138).<br />

30 Pietro Maria Bardi apud Geraldo de Barros (2006, p. 137).<br />

31 Radhá Abramo apud Barros (2006, p. 138).<br />

32 Paulo Herkenhoff é um dos principais críticos de arte e curadores do Brasil.


101<br />

Carolina Etcheverry<br />

percurso, desde a participação no movimento fotoclubístico<br />

até o engajamento com o projeto construtivo, testemunha um<br />

equilíbrio entre o rigor técnico e uma inquietação intelectual<br />

questionadora. 33<br />

Desse modo, Herkenhoff estabelece categorias e relações para as diferentes<br />

imagens produzidas por Oiticica Filho, buscando também precedentes, paralelos,<br />

contatos e, por fim, a atualidade do fotógrafo no momento da arte brasileira<br />

contemporânea. Este é, com certeza, um dos mais importantes e completos textos<br />

produzidos sobre José Oiticica Filho até o momento. E já se passam mais de 20 anos.<br />

No texto A imagem do processo, de 1987, Paulo Herkenhoff contextualiza<br />

Geraldo de Barros como fotógrafo que busca a ruptura com a ordem vigente.<br />

Segundo ele,<br />

É como fotógrafo que Geraldo de Barros fará sua inserção<br />

radical no processo cultural brasileiro, no momento da criação<br />

dos museus no Rio de Janeiro e São Paulo, da Bienal e sobretudo<br />

das discussões sobre o abstracionismo e a formulação do<br />

processo construtivo. 34<br />

O autor continua sua análise abordando o que chama de “projeto atualizador<br />

do fotoclubismo”, ao qual Barros propõe uma ruptura, visto que suas fotografias<br />

operam no campo da percepção visual como construção abstrata, bem ao contrário<br />

dos postulados pictorialistas vigentes até então no ambiente fotoclubista. Geraldo de<br />

Barros, assim como José Oiticica Filho, vive um impasse entre a busca do abstrato<br />

e a permanência da figuração, sendo que a “abstração”, para ele, é uma oposição à<br />

fotografia realista. 35 Segundo Herkenhoff, a importância da obra de Barros está na<br />

construção do signo e na fundação de uma outra fotografia. Ele estabeleceu uma<br />

nova lógica do olhar, com a ruptura das antigas certezas abalizadas pela fotografia. 36<br />

O autor encerra o artigo afirmando que Geraldo de Barros, assim como José Oiticica<br />

Filho, a quem ele nunca conheceu, é desarticulador da fotografia, corrompendo os<br />

cânones fotoclubistas, que eram, até então, as únicas alternativas para uma fotografia<br />

artística. Além de desarticulador de processos, imagens e mecanismos lógicos da<br />

fotografia, Barros também desarticula o tempo da imagem, ao não associá-la a um<br />

momento decisivo, mas a um processo construtivo. 37<br />

33 Paulo Herkenhoff (1983, p. 10).<br />

34 Paulo Herkenhoff apud Barros (2006, p. 147). Este texto foi publicado originalmente no jornal Folha de São<br />

Paulo, em 23 de outubro de 1987.<br />

35 Ibidem, p. 148.<br />

36 Ibidem, p. 149.<br />

37 Ibidem, p. 150.


102<br />

<strong>História</strong> da fotografia moderna brasileira<br />

No texto Geraldo de Barros: a renovação e a constância, de 1989, Herkenhoff<br />

segue afirmando a importância do fotógrafo enquanto agente da dessacralização<br />

da fotografia no Brasil da década de 1950. Destaque deste artigo, e diferencial em<br />

relação ao anterior, é a ênfase do autor no processo de desenvolvimentismo que se<br />

instaura no Brasil nesta época. Depois de contextualizar amplamente o ambiente<br />

favorável à cultura nos anos 1950, passando, desde o próprio desenvolvimentismo<br />

até a poesia e a crítica de arte, Herkenhoff coloca Barros dentro do movimento<br />

concretista paulista, do qual o fotógrafo faz parte com suas pinturas e como um dos<br />

signatários do Manifesto Ruptura. Assim, o autor afirma que<br />

As linguagens construtivas na América Latina, florescentes<br />

desde a década de 1940 até os anos 1960, na Argentina, Uruguai,<br />

Brasil, Colômbia e Venezuela, estão em relação com os planos<br />

de uma cultura organizada nos sonhos de modernização e<br />

desenvolvimento. 38<br />

Na mesma linha, o autor encerra o artigo afirmando que, nos anos 50, a<br />

arte concreta podia ser relacionada com a utopia do desenvolvimento nacional.<br />

Do mesmo modo, as fotografias de Geraldo de Barros podem ser entendidas como<br />

pertencentes a este ideal, em razão do rigor compositivo. Todos os textos de Paulo<br />

Herkenhoff têm como mérito o fato de terem realizado um apanhado crítico da obra<br />

destes fotógrafos, alçando-os a um outro patamar de reconhecimento pelo público e<br />

pelos estudiosos acadêmicos.<br />

Merece destaque também o livro A fotografia moderna no Brasil, publicado em<br />

1995, com reedição em 2004, escrito por Helouise Costa e Renato Rodrigues da Silva.<br />

Este livro pioneiro tem a importância de trazer à tona a formação de uma fotografia<br />

moderna brasileira, gestada no Foto Cine Clube Bandeirante (FCCB), em São Paulo.<br />

No que tange Geraldo de Barros e José Oiticica Filho, os autores os colocam como a<br />

expressão máxima da fotografia moderna no Brasil. Geraldo de Barros ganha destaque<br />

por ser o primeiro fotógrafo moderno, membro do FCCB a intervir no processo clássico<br />

de produção da fotografia – fotografar, revelar, ampliar –, “dando corpo a um profundo<br />

questionamento dos limites da linguagem fotográfica”. 39 Esta liberdade a que Barros<br />

se permitia ao criar suas imagens o manteve ao largo das atividades do fotoclube, que,<br />

na época, não se encontrava aberto aos seus experimentos fotográficos. Entretanto, o<br />

fotógrafo, como já mencionado anteriormente, teve profunda influência nas relações<br />

entre o FCCB e a Bienal de São Paulo.<br />

38 Paulo Herkenhoff apud Geraldo de Barros (2006, p. 157). Este texto foi publicado originalmente em 1989, para o<br />

catálogo da exposição no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.<br />

39 Helouise Costa e Renato Rodrigues da Silva (2004, p. 43).


103<br />

Carolina Etcheverry<br />

Os autores destacam José Oiticica Filho como tendo grande importância no<br />

ambiente fotoclubista carioca, sendo um dos principais divulgadores da sensibilidade<br />

moderna. E acrescentam:<br />

No entanto, enquanto o bandeirante lançava-se à experiência<br />

renovadora com a atuação dos pioneiros, José Oiticica Filho<br />

continuava preso ao academismo, sendo um defensor ardoroso<br />

dessa estética. 40 Somente a partir da segunda metade da década<br />

de 1950 ele implementou mudanças em sua produção, o que<br />

determinou o seu afastamento do fotoclubismo carioca e uma<br />

maior aproximação do Foto Cine Clube Bandeirante, onde seu<br />

trabalho de características modernas pôde ser divulgado. 41<br />

No FCCB, Oiticica Filho é visto como “um dos mais destacados mestres do<br />

abstracionismo fotográfico com suas derivações e recriações”. 42 Com esta análise,<br />

Costa e Silva reafirmam a importância do trabalho do fotógrafo, e mostram como<br />

este passou pelas diversas fases da fotografia, como apresentado por Herkenhoff.<br />

Na edição de 1995 do livro, os autores encerram a parte dedicada à Oiticica Filho<br />

situando-o não como pioneiro da fotografia moderna, mas como pertencente à fase<br />

de diluição desta experiência. Já na edição de 2004 há uma reformulação desta<br />

posição, como é possível perceber no seguinte excerto:<br />

Por fim, é importante ressaltar que no contexto da fotografia<br />

brasileira a produção de caráter abstracionista de José Oiticica<br />

Filho constitui um segundo momento, cabendo situá-lo como<br />

precursor em relação ao ambiente carioca. De fato, ele foi um<br />

fotógrafo que atuou de modo mais sistemático na ampliação das<br />

possibilidades dessa estética. Assim, o trabalho do artista deve<br />

ser localizado a partir de sua aguçada sensibilidade plástica,<br />

materializada em uma pesquisa de grande potencial reformulador<br />

no universo mais amplo das artes plásticas no Brasil. 43<br />

Com isto podemos perceber que houve, por parte dos autores, uma percepção<br />

de que José Oiticica Filho extrapola o ambiente fotoclubista, sendo considerado um<br />

artista que explora seu potencial poético através da fotografia, em consonância com<br />

o panorama das artes visuais brasileiras.<br />

40 Neste sentido José Oiticica Filho tem uma série de artigos publicados a respeito das principais técnicas pictorialistas<br />

de fotografar.<br />

41 Ibidem, p. 72.<br />

42 Ibidem, p. 73.<br />

43 Ibidem, p. 75. Ver também a edição de 2005 da obra: Helouise Costa e Renato Rodrigues da Silva. A fotografia<br />

moderna no Brasil. Rio de Janeiro: Funarte/IPHAN/Editora UFRJ, 2005.


104<br />

<strong>História</strong> da fotografia moderna brasileira<br />

O texto de Annateresa Fabris, A fotografia além da fotografia: José Oiticica<br />

Filho (1947-1995), 44 dialoga, em termos de ideias, com o que Maria Teresa Bandeira<br />

de Mello 45 escreve a respeito de suas fotografias em texto do mesmo ano. Ambas<br />

enfatizam o caráter pictorialista da obra de Oiticica Filho, que teria se mantido<br />

mesmo nas fases posteriores do fotógrafo. Para Fabris, “José Oiticica Filho afirma-se<br />

aos olhos do público como mais um adepto do fotopictorialismo”. 46 Ainda segundo<br />

a autora, mesmo suas fotografias da fase utilitária não podem ser dissociadas de seu<br />

interesse pelo pictorialismo. Para Fabris,<br />

Se, de fato, luz e superfície são questões fundamentais para<br />

o Oiticica pós-pictorialista, o que não se pode deixar de levar<br />

em conta – e é isso o que o distancia da atitude dos fotógrafos<br />

evocados por Herkenhoff – é que sua visão de fotografia<br />

continua a ser informada pelos postulados da estética que ia<br />

abandonando. 47<br />

Os fotógrafos evocados por Herkenhoff são Moholy-Nagy e Rodchenko,<br />

que pretendiam, através da fotografia, atingir uma “nova visão”. A autora, neste<br />

caso, afirma que os princípios norteadores de José Oiticica Filho ainda são os do<br />

pictorialismo. Segundo ela, “Oiticica supervaloriza o papel da técnica, detectando o<br />

nascimento da fotografia no trabalho de laboratório, ‘quanto se graduam os cinzas,<br />

as luzes, o corte’”. 48 Fabris refere-se à célebre entrevista concedida pelo fotógrafo a<br />

Ferreira Gullar, em 1958, no qual ele afirma a importância do trabalho em laboratório<br />

na criação das fotografias. 49 Maria Teresa Bandeira de Mello, na mesma linha de<br />

Annateresa Fabris, afirma o seguinte a respeito das obras de Oiticica Filho: “É<br />

curioso observar que, mesmo depois de se libertar dos cânones fotoclubistas e de se<br />

entregar a experimentações modernizadoras, ainda podem ser encontradas em suas<br />

obras semelhanças com a concepção de fotografia pictorialista”. 50<br />

A seguir, Fabris analisa duas fotografias que, para ela, são o marco da<br />

transição de Oiticica, do pictorialismo para a abstração: Triângulos semelhantes e<br />

Um que passa, ambas de 1953. Segundo ela,<br />

Em duas composições de 1953, Triângulos semelhantes e Um que<br />

passa, as preocupações geometrizantes do fotógrafo emergem<br />

de imediato, enfatizadas pelo contraponto definido pela presença<br />

44 Annateresa Fabris (1998).<br />

45 Maria Teresa Bandeira de Mello (1998).<br />

46 Annateresa Fabris (1998, p. 69).<br />

47 Ibidem, p. 71.<br />

48 Ibidem, p. 74.<br />

49 Cf. Oiticica: “fotografia se faz no laboratório”, Jornal do Brasil, 24/08/1958, suplemento dominical de artes plásticas.<br />

50 Maria Teresa Bandeira de Mello (1998, p. 120).


105<br />

Carolina Etcheverry<br />

da figura humana. A luz adquire uma conotação construtora ao<br />

contrário do efeito dramático que desempenhava no momento<br />

pictorialista. (...) O mesmo contraste entre abstração e presença<br />

do referente preside também Composição óbvia (1954-55), na<br />

qual Oiticica aprofunda mais a procura do campo bidimensional<br />

e a definição da fotografia em termos requintadamente tonais. 51<br />

Logo a seguir, apoiando-se em excertos da entrevista de Oiticica Filho<br />

de 1958, a autora conclui que o afastamento cada vez maior do referente é uma<br />

estratégia do fotógrafo para produzir obras de arte, visto que ele acreditava mais no<br />

resultado que se consegue obter no laboratório do que na produção da fotografia em<br />

si. Seguindo seu percurso de análise, a autora chega às Derivações e Recriações,<br />

as quais “exibem, por vezes, parentesco com a abstração informal dos anos 50”. 52<br />

Analisando a série seguinte de suas obras, as Formas, Fabris afirma que “ao mesmo<br />

tempo em que está engajado na exploração da abstração informal, na estruturação de<br />

campos matéricos, de relações sutilmente tensionadas, Oiticica busca também uma<br />

linguagem de caráter construtivo que se resolve, de início, na série Formas”. 53<br />

Annateresa Fabris, por fim, enfatiza que José Oiticica Filho estava preocupado<br />

em pesquisar as “possibilidades da fotografia para além da fotografia”, com isso<br />

querendo dizer que todas as manipulações por ele feitas nas imagens tinham como<br />

objetivo colocar tais imagens mais próximas da arte do que da própria fotografia,<br />

negando o específico fotográfico. O cerne da análise da autora pode ser resumido na<br />

seguinte citação:<br />

51 Annateresa Fabris (1998, p. 75).<br />

52 Ibidem, p. 76.<br />

53 Fabris, op. cit.<br />

O que se detecta no Oiticica construtivo é, no fundo, um paradoxo.<br />

A constituição de formas novas, a saída do código acadêmico<br />

que regia a experiência fotoclubista brasileira estruturam-se<br />

através da reedição da ideologia que guiava o fotopictorialismo,<br />

disposto a parecer tudo menos fotografia.<br />

Ao dizermos isso, não queremos negar a contribuição de Oiticica<br />

à constituição de uma linguagem plástica renovada. Se ela é<br />

fundamental, é impossível, no entanto, não perceber que Oiticica<br />

foge, as mais das vezes, da questão do específico fotográfico<br />

para postular uma fotografia que negue a fotografia, sem parecer<br />

dar-se conta de que mesmo o recurso ao simulacro não o livrava<br />

do enfrentamento com o instante. Por mais que seus modelos<br />

fossem previamente elaborados, por mais que a imagem final<br />

fosse o produto dos tempos longos do laboratório, por mais<br />

que o negativo possuísse potencialidades próprias, existia a


106<br />

<strong>História</strong> da fotografia moderna brasileira<br />

intermediação do aparelho e, portanto, o momento do disparo no<br />

qual o objeto se apresenta em sua conotação estrutural. Ao tentar<br />

negar isso, Oiticica reatualiza a ideologia do fotopictorialismo,<br />

não importa se em sentido abstrato e concreto. 54<br />

É, portanto, de suma importância a análise exaustiva realizada por Fabris, no<br />

intuito de situar a obra de José Oiticica Filho dentro dos parâmetros tanto da história da<br />

fotografia quanto da história da arte. Análise atenta, crítica, que vem a complementar,<br />

por vezes deles discordando, os textos de Paulo Herkenhoff e Arlindo Machado.<br />

Antonio Fatorelli, no texto José Oiticica Filho e o avatar da fotografia<br />

brasileira, 55 é mais positivo em relação ao trânsito de estilos do fotógrafo. Para ele,<br />

este movimento é decorrente de um espírito investigativo, que buscava diferentes<br />

soluções plásticas para determinados problemas. A análise de Fatorelli busca<br />

inserir a obra fotográfica de Oiticica Filho dentro do panorama maior da história<br />

da fotografia e do embate que esta trava entre o estatuto de realidade e a prática de<br />

experimentações. Para este autor,<br />

De modo condensado, e sem dispensar o brilho que acompanha<br />

as poéticas modernas, Oiticica refez, ao longo de sua trajetória<br />

de fotógrafo, o percurso realizado pelos principais movimentos<br />

fotográficos precedentes, apresentando e posteriormente superando,<br />

sucessivamente, os princípios da fotografia científica, da prática<br />

pictorialista e da estética purista moderna. Além de atualizar estes<br />

movimentos, a contribuição de Oiticica – particularmente de suas<br />

imagens da década de 50, identificadas com as propostas estéticas<br />

do movimento concretista – estende-se projetivamente às décadas<br />

de 60, 70 e 80, prenunciando o trabalho de vários artistas plásticos<br />

e fotógrafos, como Hélio Oiticica e Lygia Clark. 56<br />

Com isto, podemos perceber que Fatorelli busca contextualizar as pesquisas<br />

de Oiticica Filho no campo fotográfico e também artístico, relacionando-o com<br />

os diversos ambientes pelos quais o fotógrafo passou – fotoclubes e artístico,<br />

especialmente – e com os quais promoveu intercâmbios criativos. O autor aponta,<br />

também, a importância que este fotógrafo teve para a emergência da fotografiamatéria<br />

ou pós-fotografia, na década de 1980, movimento do qual participam<br />

fotógrafos como Rosângela Rennó e Antonio Sagesse.<br />

54 Annateresa Fabris (1998, p. 77-8).<br />

55 Antonio Fatorelli (2000). Fatorelli expande suas ideias sobre as diversas fases da história da fotografia, culminando<br />

com uma expansão do campo fotográfico, um apagamento das fronteiras entre fotografia e artes visuais, através da<br />

ideia de suspeita na fotografia, presentes neste artigo sobre José Oiticica Filho, no seu livro intitulado <strong>Fotografia</strong> e<br />

Viagem. Ver Antonio Fatorelli (2003).<br />

56 Antonio Fatorelli (2000, p. 141).


107<br />

Carolina Etcheverry<br />

Por fim, é importante situar a produção acadêmica a respeito de Geraldo de<br />

Barros. Existem duas dissertações de mestrado, ambas de 2006, acerca do fotógrafo.<br />

Heloísa Espada Lima escreveu a dissertação intitulada Fotoformas: a máquina<br />

lúdica de Geraldo de Barros, 57 na qual busca traçar um amplo panorama sobre a<br />

produção das fotografias de mesmo título. A autora busca relacionar as fotografias de<br />

Barros ao movimento construtivista e às vanguardas históricas ligadas à fotografia,<br />

bem como investigar a participação do fotógrafo em diversos grupos e ambientes<br />

artísticos, procurando com isso perceber possíveis influências. Também em seu<br />

trabalho há um estudo sobre a relação de Geraldo de Barros com o crítico Mário<br />

Pedrosa e um mapeamento do contexto cultural paulistano, no qual suas fotografias<br />

foram gestadas. Sua dissertação constitui leitura obrigatória para todos aqueles<br />

interessados em estudar o trabalho de Geraldo de Barros.<br />

Da mesma forma, a dissertação de Paulo Henrique Camargo Batista,<br />

intitulada Fotoformas: a poética do processo interventor de Geraldo de Barros na<br />

práxis fotográfica, 58 busca apresentar o trabalho de Barros a partir do ponto de vista<br />

tecnológico, buscando entender o rompimento que o fotógrafo produz ao intervir<br />

no processo de constituição da fotografia. O autor parte da ideia de intervenção no<br />

processo fotográfico e do rompimento com a programação da câmera, tendo como<br />

referencial teórico Vilém Flusser e Arlindo Machado. O ponto de vista de Batista é<br />

o de que Geraldo de Barros é um exemplo do rompimento conceitual e estético com<br />

o programa operatório da câmera fotográfica. Com um ponto de vista diferente do<br />

de Heloísa Espada Lima, este também é um trabalho enriquecedor para os estudos<br />

sobre Geraldo de Barros.<br />

As imagens de Geraldo de Barros e de José Oiticica Filho<br />

dentro do contexto da <strong>História</strong> da <strong>Fotografia</strong> brasileira<br />

As fotografias de Geraldo de Barros e de José Oiticica Filho relacionam-se, em<br />

muitos aspectos, tanto com a questão da experimentação, como com outras questões<br />

pertinentes à história da fotografia brasileira. Para tanto, é importante abordarmos<br />

em linhas gerais algumas dessas questões, dando uma visão panorâmica do ambiente<br />

no qual os fotógrafos estavam inseridos, e do qual tinham amplo conhecimento.<br />

É importante observar, em primeiro lugar, que suas imagens discutem de<br />

modo incisivo as funções da fotografia, seu estatuto em relação à realidade. 59 Este<br />

debate sobre o estatuto da fotografia não é privilégio de Barros ou de Oiticica Filho,<br />

bem como não se inicia no século XX. Entretanto, é interessante notar que, ao<br />

experimentarem com diferentes formas de fotografar, obtendo resultados que não<br />

57 Heloísa Espada Lima (2006).<br />

58 Paulo Henrique Camargo Batista (2006).<br />

59 Sobre este tema, ler Philippe Dubois (2003) e Maria Teresa Bandeira de Mello (1998).


108<br />

<strong>História</strong> da fotografia moderna brasileira<br />

privilegiam a mimese do real, estes fotógrafos estão, de certo modo, subvertendo<br />

o estatuto “principal” da fotografia, que seria o de reproduzir fielmente a realidade<br />

que se encontra na frente do fotógrafo. Este seria apenas um observador apto a<br />

registrar fielmente aquilo que vê, contribuindo para um inventário neutro e realista<br />

do mundo. O que podemos depreender das imagens dos fotógrafos em estudo é uma<br />

necessidade de criação a partir da fotografia, e não de simples reprodução. Assim,<br />

a câmera fotográfica, ou os meios de impressão fotográfica, permitem a eles criar<br />

diferentes formas visuais, que desafiam o olhar do espectador.<br />

Este debate pode ser percebido, por exemplo, ao analisarmos as diferentes<br />

experiências fotoclubísticas, tanto nacionais quanto internacionais. Os primeiros<br />

fotoclubes foram marcados pela presença do pictorialismo, que procurava aproximar<br />

a fotografia da arte utilizando recursos “artísticos”, ou que faziam com que o<br />

resultado final parecesse artístico, através de diferentes técnicas. Segundo Maria<br />

Teresa Bandeira de Mello,<br />

O movimento pictorialista não mantém com a pintura uma<br />

relação de mera imitação. Ao contrário, estabelece uma<br />

correspondência entre ambas que impulsiona a fotografia a<br />

elevar-se ao nível da pintura, e, nesta situação de igualdade,<br />

reivindicar o estatuto de arte. 60<br />

Devemos ter em mente a diferença entre pictorialismo e experimentação na<br />

fotografia. O segundo procura reivindicar o estatuto de arte para a fotografia a partir<br />

da exploração do potencial artístico intrínseco ao meio fotográfico. É na expansão da<br />

fotografia que ela se torna artística, dialogando com as artes visuais do período. Já o<br />

pictorialismo buscava inserir diversas técnicas no processo fotográfico, a fim de que<br />

o resultado final parecesse artístico.<br />

Se nos mantivermos apenas no caso brasileiro, para facilitar nossa análise,<br />

podemos perceber que, com os anos, a experiência fotoclubística vai se alterando,<br />

caminhando do fotoclube voltado ao pictorialismo àquele voltado à fotografia moderna.<br />

José Oiticica Filho pode ser considerado um exemplo desta trajetória. Primeiramente<br />

membro do Photo Club Brasileiro, 61 do Rio de Janeiro, marco maior do pictorialismo<br />

no Brasil, passou a ser membro do Foto Cine Clube Bandeirante, considerado, por sua<br />

vez, marco da fotografia moderna brasileira. Suas fotografias refletem esta trajetória,<br />

visto que, no início, temos fotografias como Um que passa, de 1949, para, quase dez<br />

anos depois, em 1958, nos depararmos com as fotografias intituladas Recriações.<br />

60 Maria Teresa Bandeira de Mello (1998, p. 16).<br />

61 O Photo Club Brasileiro foi fundado em 1923. O primeiro fotoclube de que se tem notícias no Brasil foi o Sploro<br />

Photo Club, fundado em 1903, em Porto Alegre. Este foi seguido pelo Photo Club do Rio de Janeiro, de 1910 e pelo<br />

Photo Club Hélios, em 1916, em Porto Alegre.


109<br />

Carolina Etcheverry<br />

À parte do movimento fotoclubista, temos a presença das fotomontagens no<br />

cenário da história da fotografia brasileira. Os principais nomes são Jorge de Lima e<br />

Athos Bulcão. 62 Conforme Tadeu Chiarelli,<br />

Excetuando esses exemplos bastante frágeis para configurar<br />

um corpus de real significação, o uso da fotografia por<br />

artistas e intelectuais modernistas ficou confinado, até muito<br />

recentemente, a duas contribuições muito específicas, ligadas à<br />

fotomontagem. Refiro-me às fotomontagens do poeta e pintor<br />

Jorge de Lima, realizadas entre os anos 30 e 40, e àquelas do<br />

artista plástico Athos Bulcão, cujas produções remontam à<br />

primeira metade dos anos 50.<br />

Mais recentemente, tornou-se público que Alberto da Veiga<br />

Guignard – respeitado como um dos principais pintores modernistas<br />

–, igualmente ocupou-se da fotografia, mais especificamente, da<br />

fotomontagem. Dentro dessa escassez de produções fotográficas<br />

de âmbito modernista, parece-me no mínimo curioso o fato de<br />

as produções daqueles modernistas que mais se dedicaram à<br />

fotografia gravitarem em torno da fotomontagem. Em torno de uma<br />

fotomontagem, diga-se, fortemente vinculada ao surrealismo (...). 63<br />

Com este breve panorama, que certamente deixa de lado algumas nuances da<br />

história da fotografia brasileira, 64 como, por exemplo, a importante participação da<br />

fotografia nas revistas ilustradas e nos jornais, pretendemos mostrar que a fotografia<br />

começou a ganhar espaço na cultura brasileira. A história da cultura visual não pode<br />

deixar de lado estes aspectos aqui abordados.<br />

As imagens de Geraldo de Barros e de José Oiticica Filho<br />

dentro do contexto das Artes Visuais<br />

Dentro do contexto das artes visuais, é possível relacionar Geraldo de<br />

Barros e José Oiticica Filho com o movimento concretista e neoconcretista, que<br />

dominaram a cena artística nacional dos anos 1940 aos anos 1960, pelo menos. Suas<br />

fotografias são marcadas pelo diálogo constante com as artes visuais de sua época,<br />

estabelecendo, portanto, uma visualidade bastante específica.<br />

No final da década de 1940, com intervalo de apenas um ano, surgem em São<br />

Paulo dois museus de arte, decorrentes da iniciativa privada de grandes empresários.<br />

62 Sobre eles, ler Tadeu Chiarelli (2003).<br />

63 Tadeu Chiarelli (2003, p. 70).<br />

64 Escolhemos deixar o fotojornalismo de lado não por este não ser importante, mas por não estar tão diretamente<br />

ligado à fotografia voltada para as artes visuais.


110<br />

<strong>História</strong> da fotografia moderna brasileira<br />

Em 1947, Assis Chateaubriand, diretor dos Diários Associados e fundador da TV<br />

Tupi, criou o Museu de Arte de São Paulo, o Masp. No ano seguinte, Francisco<br />

Matarazzo, dirigente de um grande complexo industrial, criou o Museu de Arte<br />

Moderna de São Paulo, o MAM.<br />

Segundo Míriam Gershmann, 65 estes museus nascem dentro do ideal<br />

desenvolvimentista, que objetivava a atualização do país nos mais diversos setores,<br />

inclusive no setor cultural. De acordo com Francisco Alambert e Polyana Canhête,<br />

as ações e mutações promovidas pelo capital privado na esfera<br />

da cultura na cidade de São Paulo irão instalar uma nova etapa no<br />

processo de formação, transmissão e recepção da arte moderna:<br />

a “era dos museus” (...). 66<br />

Conforme Fernando Cocchiarale e Anna Bella Geiger, 67 o surgimento dos<br />

primeiros núcleos de artistas abstratos no Rio e em São Paulo ocorre entre 1948 e<br />

1949, criando uma oposição entre os artistas brasileiros. Artistas como Di Cavalcanti<br />

e Portinari mostram-se contrários a essa vertente não figurativa, pois seria uma arte<br />

que se afasta da realidade, “a abolição da ‘figura’ isola a obra do artista de uma<br />

visualidade reconhecível, e, o que é mais grave, da realidade social de seu povo”. 68<br />

A arte abstrata se afastaria dos ideais de nacionalidade que permearam os trabalhos<br />

dos artistas da Semana de 22. 69<br />

Ao mesmo tempo em que este debate ocorria, José Oiticica Filho estava<br />

fazendo fotografias dentro do ideal pictorialista dos fotoclubes – sua segunda fase<br />

– e Geraldo de Barros já estava iniciando suas precursoras experiências envolvendo<br />

a fotografia e suas possibilidades plásticas. Em 1949 ele foi convidado, junto com<br />

Thomaz Farkas e German Lorca, a montar o laboratório fotográfico do recém-criado<br />

Museu de Arte de São Paulo (Masp). Segundo Helouise Costa, 70 foi assim que Barros<br />

teve acesso a um espaço fora do Foto Cine Clube Bandeirante para realizar suas<br />

fotografias no campo da abstração. E isso é marcante para estabelecer sua relação<br />

com as artes visuais do período.<br />

Para a formação dos artistas brasileiros no campo da abstração, a Bienal<br />

de São Paulo foi de suma importância. Marcada pela presença de importantes<br />

artistas abstratos, como Max Bill (que introduz ideias concretistas no país), na<br />

Primeira Bienal, 71<br />

65 Miriam Gershmann (1992).<br />

66 Francisco Alambert e Polyana Canhête (2004, p. 26).<br />

67 Fernando Cocchiarale e Anna Bella Geiger (1987).<br />

68 Idem, p. 11.<br />

69 É importante observar que na Semana de 22 não houve espaço para a fotografia ou o cinema. Os “novos” meios<br />

mecânicos não foram incluídos como arte moderna. Sobre isso, ver Ricardo Mendes (2003).<br />

70 Helouise Costa e Renato R. da Silva (2004).<br />

71 Na I Bienal, em 1951, Max Bill e Ivan Serpa ganharam prêmios com trabalhos em abstração.


111<br />

Carolina Etcheverry<br />

as primeiras edições da Bienal foram profundamente cortadas<br />

por polêmicas calorosas (e por vezes maniqueístas), sobretudo<br />

entre os críticos que atacavam os “formalismos modernos”,<br />

responsabilizando-os por esvaziar o valor social e militante da<br />

arte, contra os defensores das “novas formas” de intervenção e<br />

corte (...), do abstracionismo, tanto geométrico quanto formal –<br />

que, aliás, também estavam em confronto uns com os outros. 72<br />

Assim, é possível ver que estava em jogo um debate não apenas entre<br />

figuração e abstração, mas também entre os diferentes tipos de abstração. Este debate<br />

ocorre também na fotografia, ainda que de forma marginal. Marcada pela homologia<br />

com o real, a fotografia sempre foi figurativa, sendo este, justamente, seu grande<br />

atrativo. Ao entrar na abstração a partir do contato dos fotógrafos com este ambiente<br />

artístico experimental e inovador, a fotografia altera seu estatuto, ingressando de<br />

modo mais direto no campo das artes plásticas.<br />

Mário Pedrosa, importante crítico e defensor da arte abstrata, escreveu a<br />

respeito dos trabalhos fotográficos de Geraldo de Barros, no texto “A Bienal cá e<br />

lá”, de 1970,<br />

(...) foi o primeiro a fazer da fotografia dita de arte não esse<br />

enlanguescimento pictórico do gosto convencional, mas uma<br />

experiência viril de imagens instantâneas ou fixadas, simultâneas<br />

ou dissolvidas em signos da vida e do espaço urbanístico. 73<br />

Com este excerto de Pedrosa é possível perceber como os trabalhos fotográficos<br />

experimentais de Barros inseriam-se neste novo momento da arte brasileira, marcado<br />

pela presença da arte abstrata e pelo Movimento Concretista, do qual ele fazia parte.<br />

Ainda que suas fotografias tenham sido feitas antes do seu engajamento no Grupo<br />

Ruptura, 74 em 1952, é possível pensar que as questões norteadoras do concretismo –<br />

hierarquia de forma, cor e fundo, junto com geometrizações das figuras – podem ser<br />

vistas em suas imagens. Entretanto, assim como nas fotografias de José Oiticica Filho,<br />

algumas delas são abstrações informais, demonstrando o alto grau de proficuidade<br />

de seu trabalho.<br />

José Oiticica Filho dentro deste contexto do concretismo brasileiro se mostra<br />

um artista bastante variado. Além de fotografias abstratas geométricas, em que há<br />

72 Francisco Alambert e Polyana Canhête (2004, p. 45).<br />

73 Mario Pedrosa (1995, p. 258).<br />

74 O Grupo Ruptura era formado por Lothar Charoux, Waldemar Cordeiro (seu principal teórico), Geraldo de<br />

Barros, Kazmer Fejer, Leopoldo Haar, Luis Sacilotto e Anatol Wladyslaw. Eles propõem uma ruptura com questões<br />

plástico-formais, com todo um passado que as vanguardas europeias tinham cortado desde o Impressionismo.<br />

Cf. BANDEIRA, João. Arte concreta paulista: documentos. São Paulo: Cosac Naify, Centro Universitário Maria<br />

Antonia da USP, 2002.


112<br />

<strong>História</strong> da fotografia moderna brasileira<br />

uma preocupação com a cor e ausência de meios-tons, ele também realiza, com a<br />

série Ouropretenses, fotografias abstratas informais, na qual há uma ligação com o<br />

sentimento, mais do que com a razão.<br />

A fotografia concreta de Oiticica Filho foi chamada, por ele próprio, de<br />

Recriações, pois, como explica Herkenhoff:<br />

Oiticica prepara as formas iniciais que são fotografadas. O<br />

negativo (isto é, a transparência) é ampliado para produzir um<br />

positivo transparente, que copiado produz nova transparência<br />

negativa, que copiada... e assim sucessivamente podem ser<br />

criadas diversas transparências positivas e negativas, as quais<br />

são usadas isoladamente ou combinadas entre si (positivo com<br />

positivo, negativo com negativo, positivo com negativo) para a<br />

obtenção da imagem. 75<br />

Nas fotografias ditas concretistas, é possível perceber a ausência de meiostons,<br />

característica da arte concreta. 76 O próprio José Oiticica Filho define seu<br />

entendimento acerca das Recriações, em entrevista a Ferreira Gullar, em 1958:<br />

Há quem não considere como fotografia minhas “recriações”,<br />

porque não uso cinzas, próprios da fotografia tal como ela<br />

é entendida pela maioria. Acham que é desenho, porque as<br />

formas se imprimem em preto e branco. Minhas “recriações”<br />

são fotografias, pois nascem de um processo fotográfico<br />

legítimo como outro qualquer. Se não uso cinzas é porque o<br />

que me interessa é a forma e a dinâmica do plano, que só se<br />

pode conseguir pela impressão, sem meias-luzes, do preto sobre<br />

o branco. Não tenho culpa de que, por usar preto e branco,<br />

confundam minhas “recriações” com desenhos que em geral são<br />

em preto e branco também. 77<br />

Desse modo, o fotógrafo insere seu trabalho como fotografia e explica o que<br />

interessa a ele no momento de feitura da imagem: a forma e a dinâmica do plano.<br />

75 Paulo Herkenhoff (1983, p. 15).<br />

76 “A proposta de uma cor pura, abstrata, seria encontrável, segundo ele [Mondrian], “na cor primária claramente<br />

definida”, chapada, sem meios-tons, matérias ou texturas.” (COCCHIARALE, GEIGER, 1987, p. 16). É importante<br />

mencionar, a este respeito, que José Oiticica Filho é pai de Hélio Oiticica, importante artista brasileiro, vinculado<br />

ao concretismo e neoconcretismo. Com isto podemos depreender que o fotógrafo tinha trânsito entre as artes visuais<br />

e a fotografia.<br />

77 Oiticica: “fotografia se faz no laboratório”, Jornal do Brasil, 24/08/1958, suplemento dominical de artes plásticas.


113<br />

Consideração final: por que estudá-los?<br />

Carolina Etcheverry<br />

Este texto procurou mostrar a complexidade do estudo em torno da fotografia<br />

moderna brasileira, bem como buscou trazer à tona diversas possibilidades de estudos.<br />

A partir de Geraldo de Barros e de José Oiticica Filho, considerados precursores<br />

nas técnicas de experimentação para criação de imagens fotográficas impactantes,<br />

foi possível perceber como o campo fotográfico expande-se na segunda metade<br />

do século XX. A importância de estudá-los reside no fato de que tais fotógrafos<br />

ainda são muito atuais, pautando diversos trabalhos fotográficos contemporâneos.<br />

Por isso, é preciso que eles sejam estudados a fundo, para que possamos construir<br />

uma história da cultura visual deste período, buscando elementos para entender tais<br />

imagens. Uma leitura informada é sempre mais instigante do que aquela marcada<br />

apenas pelo sentimento que a imagem traz ao seu leitor.<br />

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http://www.itaucultural.org.br


CAPíTUlO 5<br />

A dimensão histórica em “Mujeres presas”: aproximações<br />

teóricas entre fotografia-expressão e ator social<br />

Patricia Camera 1<br />

Este texto analisa o ensaio “Mujeres presas”, 2 realizado pela fotógrafa<br />

argentina Adriana Lestido, 3 durante junho de 1991 e junho de 1992, na prisão número<br />

8 de Los Hornos, em La Plata, Argentina. O resultado desta produção, que contou<br />

com o apoio da Hasselblad Foundation, foi exposto na II Bienal de Artes Visuais do<br />

Mercosul (1999 – Porto Alegre, Brasil) e deu origem à publicação do catálogo 4 de<br />

mesmo título, compondo a Colección Fotografos Argentinos.<br />

No prefácio, “Lestido: el oficio de narrar”, 5 o escritor Guillermo Saccomanno<br />

comunica:<br />

Mujeres presas no es un libro de fotos convencional, ese<br />

objeto a mitad de camino entre la mezquindad coleccionista y<br />

el regalo elegante de shopping. Si me gusta pensarlo como un<br />

trabajo narrativo es porque explica más de la realidad social<br />

que cualquier argumentación política. Lo que no quita que las<br />

fotos de Lestido entreveren, tensándolas, las relaciones entre<br />

arte e ideologia.<br />

Nesta linha de pensamento, o presente estudo desenvolve-se com o objetivo<br />

de discutir a fotografia contemporânea de Adriana Lestido como forma de narrativa<br />

visual elaborada por atores sociais. Para isso, apresentam-se algumas especificidades<br />

do gênero fotográfico e algumas reflexões sobre sujeito, razão e identidade com<br />

referência aos estudos de Alain Touraine.<br />

A proposta é aproximar alguns aspectos deste ensaio fotográfico às<br />

problemáticas levantadas por Touraine no contexto da sociedade cultural 6 (pós-<br />

1 Fotógrafa, Mestre em Tecnologia (UTFPR), Doutoranda do PPGH/PUCRS. E-mail: camera.patricia@gmail.com.<br />

2 O ensaio fotográfico Mujeres presas está disponível no web-site da fotógrafa (www.adrianalestido.com.ar) e no<br />

livro Mujeres Presas, LESTIDO (2007).<br />

3 Adriana Lestido nasceu em 1955 na cidade de Buenos Aires. Estudou na Escuela de Arte Fotográfico y Técnicas<br />

<strong>Visual</strong>es de Avellaneda. Trabalhou como repórter fotográfica entre 1982 e 1995 em La Voz, agência DyN e o diário<br />

Página 12. Em seguida, passou a lecionar fotografia e a dedicar-se aos trabalhos pessoais.<br />

4 Lestido (2007).<br />

5 Lestido (2007, p. 2).<br />

6 De forma resumida pode-se dizer que Touraine (2007, 2008) compreende a sociedade atual como uma sociedade<br />

fragmentada: a empresa e o consumo numa esfera e o sujeito e a Nação em outra esfera. Nesta decomposição<br />

Touraine explora a noção de subjetividade (desejo, individualidade, identidade, alteridade) e afirma a importância<br />

da democracia. Por fim, valoriza o conceito de sujeito identificando-o neste contexto como ator social que inaugura<br />

outro paradigma social que é denominado por ele como sociedade cultural.


118<br />

A dimensão histórica em “Mujeres Presas”<br />

social). Desta forma, o presente texto busca comunicar o valor histórico da expressão<br />

artística de “Mujeres Presas”, elaborada por Lestido.<br />

Apontamentos sobre o entendimento de André Rouillé sobre<br />

fotografia-documento e fotografia-expressão<br />

Para iniciar-se o estudo sobre o ensaio fotográfico de Lestido, tem-se em<br />

vista refletir sobre a crise da fotografia conforme comunicado na obra A fotografia:<br />

entre documento e arte. 7 Neste livro, o pesquisador André Rouillé procura<br />

esclarecer que a fotografia-documento baseia-se na crença de que a fotografia é<br />

uma “marca” direta da realidade, e a fotografia-expressão assume caráter indireto<br />

para com a “realidade”.<br />

Do documento à expressão, consolidam-se os principais<br />

rejeitados da ideologia documental: a imagem, com suas formas<br />

e sua escrita; o autor, com sua subjetividade; e o Outro, enquanto<br />

dialogicamente no processo fotográfico.<br />

Essa passagem do documento à expressão se traduz em profundas<br />

mudanças nos procedimentos e nas produções fotográficas, bem<br />

como no critério de verdade, pois a verdade do documento não<br />

é a verdade da expressão. Historicamente, tal transição funciona<br />

quando a fotografia-documento começa a perder contato com o<br />

mundo que, no final do século XX, se tornou muito complexo<br />

para ela; mas, sobretudo, quando esse mesmo mundo é objeto<br />

de uma larga desconfiança, quando se começa a não acreditar<br />

mais nele. 8<br />

Para contextualizar as duas “práticas” fotográficas (fotografia-documento<br />

e fotografia-expressão), Rouillé comenta que o auge da fotografia-documento<br />

ocorreu em 1952 com o lançamento do álbum fotográfico de Henri Cartier-Bresson,<br />

contendo 126 fotografias tiradas ao longo dos últimos vinte anos. Esta obra pode ser<br />

considerada como uma das referências para o entendimento da fotografia-documento,<br />

uma vez que além de ser uma coleção fotográfica extensa, também contém o prefácio<br />

explicativo “O instante decisivo” 9 (1952) escrito pelo próprio fotógrafo.<br />

7 Rouillé (2009).<br />

8 Rouillé (2009, p. 19).<br />

9 Pierre Assouline (2008) explica na biografia de Cartier-Bresson que o título pretendido para o álbum fotográfico<br />

foi Imagens a la sauvette (Imagens furtivas). Porém, o título “O instante decisivo” do prefácio escrito por Cartier-<br />

Bresson e a epígrafe (“Não há nada nesse mundo que não tenha um instante decisivo”) apropriada das palavras do<br />

cardeal de Kerzt motivaram o editor responsável pela publicação nos EUA a solicitar ao fotógrafo a mudança do<br />

título deste álbum fotográfico para Decisive Moment.


119<br />

Patricia Camera<br />

Neste pequeno texto, Cartier-Brresson analisa a fotografia através de seu<br />

pensamento a respeito da reportagem, do tema, da técnica e dos clientes.<br />

Nossa tarefa consiste em observar a realidade com a ajuda deste<br />

bloco de esboços que é a nossa máquina fotográfica, e fixá-la,<br />

mas sem manipulá-la nem durante a tomada, nem no laboratório<br />

através de pequenas manobras. 10<br />

[...] Um tema não consiste numa coleção de fatos, pois os<br />

fatos em si não têm interesse algum. O importante é escolher<br />

entre eles; captar o fato verdadeiro em relação à realidade mais<br />

profunda. Em fotografia a menor coisa pode ser um grande tema,<br />

e o pequeno detalhe humano pode se tornar um leitmotiv.... 11<br />

[...] Uma fotografia é para mim o reconhecimento simultâneo,<br />

numa fração de segundo, por um lado, da significação de um<br />

fato, e por outro, da organização rigorosa das formas percebidas<br />

visualmente que exprimem o fato. 12<br />

Nota-se, nas declarações de Cartier-Bresson, que sua práxis fotográfica<br />

se dá na valorização do instante fotográfico e como consequência na produção da<br />

fotografia única, ou seja, parece que a intenção do fotógrafo era montar ao longo<br />

de sua trajetória de vida uma “coleção de instantes” da realidade. Disto, pode-se<br />

observar que o culto à “magia” da tecnologia fotográfica está presente na poética<br />

fotográfica de Cartier-Bresson. Em sua biografia, Assouline menciona: “Imagens a<br />

la sauvette, catálogos desses instantes de eternidade, não diminui em nada o mistério<br />

de sua criação”. 13<br />

Com essas considerações, interessa recordar que desde a invenção da<br />

fotografia (em torno de 1835) até meados da década de 1980 – quando do lançamento<br />

do livro A Câmara Clara, 14 de Roland Barthes – a orientação prática e filosófica<br />

esteve fortemente atrelada à especificidade documental.<br />

Essa interpretação sobre a possibilidade de reproduzir de forma automática<br />

o mundo visível fez com que algumas pessoas entendessem que o operador humano<br />

tivesse somente um papel administrativo. 15 Sobre essa questão, Fabris lembra que<br />

no discurso feito por Talbot, no livro The pencil of nature, 16 ele tenta “demonstrar<br />

o aspecto científico do calótipo, depreciando o papel da mão e a inteligência do<br />

fotógrafo em favor da objetividade da máquina”. 17 Depois de mais de um século e<br />

10 Cartier-Bresson (2004, p. 19).<br />

11 Cartier-Bresson (1952) apud ASSOULINE (2008, p. 211).<br />

12 Cartier-Bresson (2004, p. 29).<br />

13 Assouline (2008, p. 211).<br />

14 Barthes (1984).<br />

15 Machado (1984).<br />

16 Primeiro livro ilustrado com fotografias (entre 1844 e 1846).<br />

17 FABRIS (1998, p. 179).


120<br />

A dimensão histórica em “Mujeres Presas”<br />

meio Barthes escreve em 1980 o livro A Câmara Clara, 18 defendendo a mesma linha<br />

de pensamento, isto é, que o referente adere à imagem.<br />

Em oposição à defesa da fotografia como espelho do real, Machado 19<br />

comenta:<br />

A realidade não é essa coisa que nos é dada pronta e predestinada,<br />

impressa de forma imutável nos objetos do mundo: é uma<br />

verdade que advém e como tal precisa ser intuída, analisada e<br />

produzida. Nós seríamos incapazes de registrar uma realidade se<br />

não pudéssemos ao mesmo tempo criá-la, destruí-la, deformá-la,<br />

modificá-la: a ação humana é ativa e por isso as nossas formas<br />

tomam reflexo e refração. A fotografia, portanto, não pode ser<br />

o registro puro e simples de uma imanência do objeto: como<br />

produto humano, ela cria também com esses dados luminosos<br />

uma realidade que não existe fora dela, nem antes dela, mas<br />

precisamente nela.<br />

Apesar de alguns pensadores, artistas e fotógrafos se posicionarem contrários<br />

à defesa da fotografia como “espelho da realidade”, 20 a técnica fotográfica parece<br />

ter solapado qualquer operação do fotógrafo, como que este fosse somente capaz<br />

de apertar o botão. Conforme mencionado, tal pensamento tramitou em diferentes<br />

esferas da sociedade, como, por exemplo, na mensagem publicitária da Kodak:<br />

“Você aperta o botão e nós fazemos o resto”, 21 quando do lançamento em 1888 da<br />

câmera fotográfica com filme de rolo.<br />

Considerando as citações anteriores, pode-se compreender que o click<br />

fotográfico afirmou a fotografia como o resultado de um simples ato que<br />

“registra” o “isso foi”. Sendo assim, a fotografia esteve inicialmente associada<br />

mais à ideia de captação ou recorte da realidade do que à noção de representação<br />

ou construção do real.<br />

Atualmente, interessa ainda à indústria, aos meios de comunicação e ao<br />

mercado das artes a discussão sobre diversas abordagens relativas ao automatismo<br />

fotográfico e à condição de verossimilhança ou desconstrução do referente fotográfico.<br />

Nessa busca, o universo artístico e da comunicação concentraram-se em compreender<br />

a gênese automática da técnica fotográfica, levantando questões relativas à atividade<br />

humana (subjetividade) e à “veracidade” da mensagem fotográfica.<br />

18 Barthes (1984).<br />

19 Machado (1984, p. 40).<br />

20 No livro O ato fotográfico (DUBOIS, 1999), o pesquisador aborda essa problemática citando diferentes<br />

pensadores da área com principal atenção à análise dos conceitos “ícone”, “índice” e “símbolo” junto ao<br />

entendimento do ato fotográfico.<br />

21 “You press the button, we do the rest” (FRIZOT, 1998).


121<br />

Patricia Camera<br />

Conforme mencionado no livro, A Câmara Clara, 22 Roland Barthes sustenta<br />

a defesa da aderência do referente na fotografia, tomando como base a percepção<br />

sensível do espectador e do fotografado: “Eu tinha à minha disposição apenas duas<br />

experiências: a do sujeito olhado e a do sujeito que olha”. 23<br />

Apesar dos esforços de Barthes em compreender o noema “isso foi” –<br />

fortalecendo o entendimento do estado indiciário da fotografia – seu estudo é frágil<br />

por apresentar o fotógrafo como funcionário da câmera fotográfica: 24 “[...] o órgão<br />

do fotógrafo não é o olho (ele me terrifica), é o dedo o que está ligado ao disparador<br />

da objetiva, ao deslizar metálico das placas (quando a máquina ainda as tem)”. 25 No<br />

entanto, Barthes foi sensível por trazer à tona a discussão da aderência do referente<br />

fotográfico num momento em que a sociedade conferia o status de verdade à fotografia<br />

no contexto do mundo cada vez mais atrelado às tecnologias da informação.<br />

Com respeito à problemática sobre o entendimento da “fotografia-verdade”,<br />

Rouillé menciona na obra citada 26 que os fotógrafos Robert Doisneau e Henri Cartier-<br />

Bresson são referências na história da fotografia quando o conceito de veracidade<br />

fotográfica é analisado a partir dos anos de 1930.<br />

No outro extremo, Rouillé apresenta e discute o ensaio “The Americans”, 27<br />

do suíço Robert Frank, para compreender o rompimento do paradigma da<br />

fotografia-documento.<br />

Com Robert Frank, o “eu” ganha em humanidade e em<br />

subjetividade. É um “eu” fotográfico disposto de maneira<br />

plenamente assumida, com uma vivência pessoal, sentimental,<br />

até mesmo íntima. Em 1983, Frank escreve: “Gostaria de fazer<br />

um filme que misturasse minha vida, naquilo que ela tem de<br />

privado, e meu trabalho, que é público, por definição; um filme<br />

que mostrasse como os dois polos dessa dicotomia se juntam, se<br />

entrecruzam, se contradizem, lutam um contra o outro, visto que<br />

se completam, segundo os momentos”. O “eu” de Frank parece<br />

o estado ideal de total liberdade, quase de imponderabilidade.<br />

Livre em seus movimentos e em suas inspirações, sem nenhuma<br />

imposição, nem econômica nem social nem, evidentemente,<br />

estética. Essa liberdade abre a imagem para todas as<br />

possibilidades, neste caso, para o aparecimento de um novo<br />

22 Barthes (1984).<br />

23 Barthes (1984, p. 21-22).<br />

24 No livro Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia, Flusser (2002) discute a<br />

práxis fotográfica defendendo que o fotógrafo não deve estar em função do equipamento. Ou seja, o fotógrafo<br />

deve se posicionar de forma autônoma frente às técnicas e aos parâmetros tecnológicos existentes na estrutura<br />

do equipamento.<br />

25 Barthes (1984, p. 30).<br />

26 Rouillé (2009).<br />

27 Este trabalho fotográfico foi desenvolvido entre 1955-1956 ao longo das estradas dos EUA com auxílio da John<br />

Simon Guggenheim Memorial Foundation.


122<br />

A dimensão histórica em “Mujeres Presas”<br />

regime de enunciados fotográficos, exatamente os da fotografiaexpressão.<br />

Mas tal liberdade priva, simultaneamente, a imagem<br />

de sua ancoragem no real e de sua amarração à representação,<br />

que garantiam sua unidade e sua uniformidade internas. Frank<br />

não mostra, ele se mostra. O sujeito, o autor prevalecem, a partir<br />

daí, sobre o real. Este advento intempestivo da subjetividade<br />

embute o da fotografia-expressão nos escombros dos principais<br />

paradigmas da fotografia-documento. 28<br />

[...] Se as fotos de Frank rompem com a estética documental,<br />

é porque elas não representam (alguma coisa que foi), mas<br />

apresentam (alguma coisa que aconteceu); é porque não remetem<br />

às coisas, mas aos acontecimentos; é porque eles quebram a<br />

lógica binária da aderência direta com as coisas pela afirmação<br />

de uma individualidade. 29<br />

Esta percepção sobre a dimensão subjetiva na práxis de Robert Frank<br />

interessa para localizar os projetos pessoais da fotógrafa Lestido: “Hospital Infanto<br />

Juvenil” (1986-1989), “Casa Cuna”, de La Plata (1989), “Mujeres presas” (1991-<br />

1992), “Madres adolescentes” (1989-1990), “Madres e hijas” (1995-1999).<br />

Especificamente no livro Mujeres Presas, 30 a fotógrafa relata no prólogo<br />

desta obra sobre um breve período de sua vida:<br />

Construí asi mi camino y mi trabajo porque nadie me regalo<br />

nada, más allá de que hubo muchos que me ayudaron. Pero, por<br />

outro lado, mi origen (la nena más pobre de uma escuela pobre<br />

de Mataderos, la infancia en uma pieza con una madre sensible<br />

pero iracunda, padre preso), todo eso me hace a veces tambalear.<br />

Esta experiência subjetiva de Lestido frente ao mundo social e a constante<br />

investigação em seus ensaios sobre a condição da mulher na sociedade contemporânea<br />

permitem avançar o presente estudo sobre o ensaio “Mujeres Presas” com foco no<br />

sujeito como questão.<br />

Desta forma, deve-se mencionar que este estudo entende que as fotografias<br />

que compõem o catálogo Mujeres Presas inserem-se no campo da fotografiaexpressão.<br />

Isto significa que o posicionamento de Lestido frente ao seu trabalho<br />

fotográfico localiza o “eu” (sua subjetividade) entre o referente e a imagem. Em<br />

outras palavras, as fotografias elaboradas por Lestido são entendidas como uma<br />

“representação” social da condição de um grupo específico de mulheres que foram<br />

28 Rouillé (2009, p. 172).<br />

29 Rouillé (2009, p. 173).<br />

30 Lestido (2007, p. 1).


123<br />

Patricia Camera<br />

fotografadas segundo o “olhar” de Lestido. Contudo, esta condição subjetiva não<br />

impossibilita reconhecer estas fotografias como meio de investigação histórica.<br />

Sendo assim, deve-se não apenas valorizar as imagens como fenômenos positivos,<br />

mas também como uma fonte não trivial, por apontar, através do elogio à forma, da<br />

valorização à individualidade do fotógrafo e da prática do dialogismo entre fotógrafa<br />

e fotografadas, informações sobre a escrita, o autor e o outro num sistema visual que<br />

traz à tona questões sobre o sujeito (mulher) na sociedade cultural.<br />

O ator social: razão e subjetividade<br />

Partindo do princípio de que as fotografias presentes no álbum Mujeres<br />

presas são resultados de uma práxis atual que valoriza o dialogismo entre fotógrafa<br />

e fotografadas e que nesta prática trabalha-se tanto a subjetividade de Lestido como<br />

a self-identity das presidiárias, tais especificidades podem então ser relacionadas ao<br />

estudo de Alain Touraine com principal atenção às obras Crítica da Modernidade 31 e<br />

Um novo paradigma para Compreender o Mundo de Hoje. 32<br />

No primeiro livro mencionado, interessa destacar o questionamento de<br />

Touraine sobre o projeto e o desenvolvimento da ideia de modernidade, lembrando<br />

que ambos repousaram fundamentalmente na defesa da razão, uma vez que é no<br />

entendimento da própria modernidade que se instaurou o desejo de associar a ação<br />

humana com a ordem do mundo em prol do devir. Ainda com referência nesta obra,<br />

deseja-se apresentar a discussão de Touriane sobre a negação do devir frente à<br />

existência do Ser contemporâneo (antimoderno) que busca em sua subjetividade e<br />

reflexividade ações e posicionamentos que contribuam para uma vida mais estável<br />

e equilibrada, próximo ao desejo inicial da modernidade clássica (baseado no<br />

pensamento iluminista).<br />

Do segundo livro, pretende-se apontar algumas reflexões sobre sujeito<br />

e identidade para apresentar o novo paradigma das representações sociais,<br />

particularmente atreladas à perspectiva do desejo e da ação (subjetiva e coletiva) do<br />

sujeito social.<br />

Desta forma, as problemáticas levantadas por Touraine sobre sujeito,<br />

razão e identidade presentes no contexto da sociedade atual, denominada por ele<br />

como sociedade pós-social ou cultural, servirão como fundamento teórico para<br />

compreender sobre a visualidade do ensaio executado por Lestido.<br />

Vale ressaltar que as duas obras de Alain Touraine são complementares. Isto<br />

é, em Crítica da Modernidade, 33 o ator social aparece junto à proposta da redefinição<br />

31 Touraine (2008).<br />

32 Touraine (2007).<br />

33 Touraine (2008).


124<br />

A dimensão histórica em “Mujeres Presas”<br />

da modernidade levando em consideração o desejo do sujeito no contexto da<br />

democracia do mundo globalizado. No livro seguinte, Um novo paradigma, 34 o<br />

sociólogo comunica que, na atualidade, observa-se o enfraquecimento do paradigma<br />

econômico e social, defendendo que no presente momento a sociedade passa pela<br />

transformação de outro paradigma – denominado paradigma cultural – onde o sujeito<br />

busca os direitos coletivos e individuais, considerando fundamentalmente a relação<br />

de si consigo mesmo (self-identity). Isto é, a última obra dá continuidade às discussões<br />

presentes na primeira, com a intenção de destacar a mudança de paradigma. Com<br />

isso, Touraine tenta entender essa corrente transformação da decomposição dos<br />

quadros sociais a partir da definição do que descreve a sociedade na atualidade.<br />

Em Crítica da Modernidade, 35 Touraine analisa o projeto da modernidade<br />

e seus resultados para apontar alguns equívocos que ocorreram ao longo de seu<br />

desenvolvimento. Compreende que este projeto “mal orientado” resultou em<br />

primeira instância na negação do sujeito, mas que, segundo sua análise, refletiu na<br />

atualidade para a emergência do ator social. Em Um novo paradigma, 36 Touraine<br />

explica que este ator faz parte do processo de transformação social. Lembra que<br />

a história da sociedade foi descrita e analisada em termos políticos (sociedade<br />

política), depois segundo a organização econômica e social (sociedade social)<br />

e, atualmente, é pensada sobre sua transformação com foco no sujeito reflexivo,<br />

denominando-a de sociedade cultural.<br />

Sendo esta teoria complexa e abrangente, optou-se por compreendê-la a<br />

partir da discussão da razão e suas relações com o sujeito, tendo como motivação<br />

inicial a citação de Touraine: “A modernidade não repousa sobre um princípio único<br />

e menos ainda sobre a simples distribuição dos obstáculos ao reinado da razão; ela é<br />

feita do diálogo entre Razão e Sujeito. Sem Razão, o Sujeito se fecha na obsessão da<br />

sua identidade; sem o Sujeito, a Razão se torna o instrumento do poder”. 37<br />

A última parte desta expressão “[...] sem o Sujeito, a Razão se torna<br />

instrumento do poder” (idem) é singular, pois nos faz refletir sobre dois aspectos: 1)<br />

o entendimento equivocado da razão – quando exercida como razão instrumental;<br />

2) a interpretação de alguns intelectuais 38 sobre a contribuição da razão instrumental<br />

para a “morte” do sujeito na sociedade.<br />

Touraine contextualiza esta problemática escrevendo:<br />

34 Touraine (2007).<br />

35 Touraine (2008).<br />

36 Touraine (2008, p. 119).<br />

37 Touraine (2008, p. 14).<br />

38 Principal exemplo: estudiosos que compõem a Escola de Frankfurt.<br />

os intelectuais tinham animado o movimento de racionalização,<br />

associando aos progressos da ciência a crítica das instituições e


125<br />

Patricia Camera<br />

das crenças passadas. [...] Após séculos de modernismo, porém,<br />

as relações entre os intelectuais e a história desarranjaram-se no<br />

século XX. 39<br />

O pesquisador observa que o pensamento moderno ocidental privilegiou a<br />

racionalidade instrumental, passando a produção e o consumo de massa a compor a<br />

“sociedade programada” pela indústria cultural (educação, saúde, entretenimento).<br />

Isto privilegiou o desenvolvimento da associação entre empresa e consumo, fortalecida<br />

pela lógica da economia global que se sobrepôs ao próprio Estado, culminando para<br />

o desfalecimento do sujeito 40 e da Nação. Tal descompasso é descrito por Touraine<br />

em Crítica da Modernidade 41 como explosão ou decomposição da modernidade.<br />

Touraine menciona nesta mesma obra sobre a tentativa que houve na história<br />

em superar o regime moderno em prol da igualdade. Porém, alerta que tal projeto<br />

se mostrou inadequado quando da emergência de regimes comunistas ou totalitários<br />

que acabaram por anular a individualidade do sujeito.<br />

Por muito tempo lutamos contra os antigos regimes e suas<br />

heranças, mas no século XX lutamos contra os novos regimes,<br />

contra a nova sociedade e o novo homem que quiseram criar<br />

tantos regimes autoritários, que fazem ouvir os apelos dramáticos<br />

à libertação, fazem revoluções dirigidas contra as revoluções<br />

e os regimes que delas nasceram. [...] agora procuramos nos<br />

desprender da multidão, da poluição e da propaganda. 42<br />

Com essas duas citações, observa-se que das posturas intelectuais referentes<br />

à “morte” do sujeito, Touraine não compartilha integralmente porque o objeto central<br />

de sua discussão é o sujeito. Sendo assim, não poderia concordar nem com a “morte”<br />

deste, como também com o conceito de “humanidade” – quando pensado a partir da<br />

ideia de homogeneização presente na clássica teoria desenvolvida por Comte na obra<br />

O sistema de política positiva (1851-1854).<br />

Sendo o sujeito o foco central da pesquisa, Touraine parte para problematizálo<br />

levando em conta uma série de análises sobre o Ser. Para isso, considera<br />

diversas situações históricas, sociais e econômicas para entender o sujeito de modo<br />

simultâneo às mudanças filosóficas que orientam a defesa ou não deste sujeito<br />

como ator social. Desloca o clássico objeto de estudo das ciências sociais, ou seja,<br />

39 Touraine (2008, p. 159).<br />

40 Touraine entende que este contexto contribuiu para o fortalecimento do sujeito (self-identity). Assim, Touraine vai<br />

ao encontro de Anthony Giddens (2002) quando estuda sobre a necessidade e a busca do sujeito em refletir sobre sua<br />

condição pessoal (TOURAINE, 2007, p. 119-120).<br />

41 Touraine (2008, p. 99)<br />

42 Touraine (2008, p. 99-100).


126<br />

A dimensão histórica em “Mujeres Presas”<br />

a sociedade, 43 para centrar-se no estudo do ser “personalizado” e suas ações, tendo<br />

como principal respaldo a ideia inicial da modernidade clássica pautada no sujeito<br />

e no pensamento racional.<br />

Para defender sua tese sobre o sujeito como ator social, Touraine entende que<br />

o ser humano busca seus desejos pessoais. Isto é, o indivíduo projeta de modo (in)<br />

consciente a definição e a conquista de seus diferentes referenciais culturais, que são<br />

subjetivos, pessoais e cambiáveis.<br />

A fundamentação de Touraine parte da história do pensamento, selecionando<br />

algumas concepções e interpretações sobre o Ser na filosofia moderna, com principal<br />

atenção às teorias de Nietzsche e Freud. A partir daí, Touraine tenta compreender a<br />

dualidade razão-sujeito considerando inicialmente a afirmação “Penso, logo existo”<br />

feita por Descartes.<br />

[...] O Eu do “Eu penso” não coincidia, no Cogito, com o Eu<br />

do seu “Eu sou”. A formação do sujeito não é somente um<br />

distanciamento do indivíduo e uma identificação com o grupo e<br />

com as categorias da ação racional; ela está ligada a um desejo<br />

de si ao mesmo tempo que a um desejo do outro.<br />

O que nós aprendemos de Freud é que a desconfiança com<br />

respeito à “vida interior” repleta de identificações alienantes<br />

e de modelos sociais inculcados, que nos obriga a procurar<br />

o Eu fora do Ego, na recusa da correspondência entre o<br />

indivíduo e a sociedade, a ligar sua defesa à revolta contra a<br />

ordem estabelecida. 44<br />

Isto é, o pensamento iluminista de Descartes liberta o sujeito da relação<br />

subordinada ao Deus, tornando-o sujeito consciente. Mas esta análise não é suficiente<br />

para Touraine. Sendo assim, desmonta esta dualidade com base nas teorias de Freud.<br />

Touraine entende que a razão extrapola do inconsciente o desejo de liberdade.<br />

A partir desta observação, acrescenta em sua análise o sentimento irracional,<br />

associando-o à noção de sujeito como ator social. Apresenta esta especificidade<br />

junto à figura de Dionísio.<br />

Nós matamos Deus e nossa culpa alimenta nossa sede de<br />

submissão e de redenção. Então é preciso ir além desse<br />

assassinato, além do bem e do mal, encontrar ou criar uma<br />

experiência natural liberada de todos os ascetismos, de todas as<br />

alienações, graças a um esforço que é ao mesmo tempo desejo<br />

43 Comte procura a unidade da história humana numa sociedade científica e industrial. Acredita que “só há um tipo de<br />

sociedade absolutamente válido, toda a humanidade deverá, segundo sua filosofia, chegar a esse tipo de sociedade”<br />

(ARON, 2000, p. 65).<br />

44 Touraine (2008, p. 132).


127<br />

Patricia Camera<br />

e razão, dominação e controle de si, que é, ao contrário de uma<br />

interiorização, uma libertação de si, um retorno a Dioniso. 45<br />

Para completar, Touraine observa: “Nietzsche é, ao mesmo tempo, aquele<br />

que denunciou primeiro a ilusão modernista, a ideia de correspondência entre o<br />

desenvolvimento pessoal e a integração social, e aquele que empenhou uma parte<br />

do pensamento europeu em uma nostalgia do Ser que frequentemente conduziu à<br />

exaltação de um ser nacional e cultural particular. 46 Adiante introduz as teorias de<br />

Freud sobre a intensa relação da formação do Eu referindo-se ao Id, Superego e<br />

Ego, informando:<br />

O que nós aprendemos de Freud é que a desconfiança com<br />

respeito à “vida interior” repleta de identificações alienantes<br />

e de modelos sociais inculcados, que nos obriga a procurar o<br />

Eu fora do Ego, na recusa da correspondência entre o indivíduo<br />

e a sociedade, a ligar sua defesa à revolta contra a ordem<br />

estabelecida. 47<br />

No entanto, para Touraine, a discussão sobre sujeito e razão é tão complexa<br />

a ponto de escrever em Um novo paradigma: 48 “não situo minha reflexão no<br />

universo da identidade, e esta palavra desperta a mim mais medo do que atração”.<br />

Então, esforça-se para analisar o que seria este sujeito sem nomear qualquer<br />

“identidade fixa”:<br />

45 Touraine (2008, p. 119).<br />

46 Touraine (2008, p. 123)<br />

47 Touraine (2008, p. 132).<br />

48 Touraine (2007, p. 120-121).<br />

49 Touraine (2007, p. 120-121).<br />

[...] sou levado a dizer que o sujeito é a convicção que anima um<br />

movimento social e a referência às instituições que protegem as<br />

liberdades. [...] eu defino o sujeito em sua resistência ao mundo<br />

impessoal do consumo, ou ao da violência e da guerra.<br />

[...] O sujeito é um chamamento a si mesmo, uma vontade<br />

de retorno a si mesmo, em sentido contrário à vida ordinária.<br />

Para mim, a ideia de sujeito evoca uma luta social como a de<br />

consciência de classe ou a de nação em sociedades anteriores,<br />

mas com um conteúdo diferente, privado de toda exteriorização,<br />

voltado totalmente para si mesmo – embora permanecendo<br />

profundamente conflituoso. É por isso que as primeiras imagens<br />

que me vieram à mente para ilustrar a ideia de sujeito foram as<br />

de resistentes, de combates pela liberdade. 49


128<br />

A dimensão histórica em “Mujeres Presas”<br />

A partir destes trechos e das colocações apresentadas até o presente<br />

momento deste trabalho, observa-se que Touraine tem postura crítica e interpretação<br />

otimista. Entende que desta tensão entre sujeito, razão e sociedade veio o declínio<br />

da modernidade tradicional (ideal do pensamento iluminista). Pressupõe que a<br />

democracia social não se limita às garantias institucionais e neste sentido a própria<br />

democracia é também o lócus das lutas dos sujeitos sociais.<br />

Assim, segundo a teoria de Touraine, a importância da democracia pode ser<br />

compreendida quando explica a decomposição da modernidade e quando mostra suas<br />

associações. Isto é, neste contexto contemporâneo, tem-se por um lado a empresa e<br />

o consumo e por outro lado o sujeito e a Nação. Sendo que o primeiro grupo está<br />

ligado principalmente ao racionalismo instrumental que tenta organizar a economia<br />

global, sobrepondo-se ao sujeito e ao próprio Estado. O segundo grupo está focado<br />

no Ser, ou seja, nos atores sociais que tentam obter espaços que o valorizem a partir<br />

de seus desejos, de suas subjetividades internas e coletivas.<br />

Então, é no conflito entre as duas esferas mencionadas anteriormente que<br />

Touraine acredita que o sujeito se impõe. Com base nos estudos de Freud e Nietzsche,<br />

este pesquisador entende que a atitude do sujeito reflexivo se dá na procura do<br />

eterno retorno do Ser, representado pelas figuras mitológicas gregas Apolo (razão)<br />

e Dionísio (sentimento/emoção), somada à vontade de “poder”, representado pela<br />

figura do “super-homem”. Segundo estas concepções, o retorno ao Ser está associado<br />

à busca da vida equilibrada e estável, negando a ideia moderna do devir.<br />

De forma geral, a proposta de Touraine nos faz entender que a busca do<br />

Eu através da constante (des)combinação entre a tensão interna (desejo) versus<br />

tensão externa (mundo repressivo) é uma das condições que faz emergir no contexto<br />

democrático o sujeito como ator social. Assim, defende-se no presente trabalho que o<br />

sujeito soma o desejo (íntimo e de consumo) com esta subjetivação (ação reflexiva de<br />

self-identity), desestabilizando ou alterando a ordem de produção de bens materiais e<br />

culturais; exigindo a mudança dos direitos sociais e políticos em prol da alteridade.<br />

Neste caso, pode-se destacar a organização destes sujeitos para uma<br />

possível sustentabilidade dos diferentes grupos culturais montados sob alicerces<br />

particulares (minorias, etnia, raça etc.) voltados mais à defesa de seus princípios<br />

culturais (língua, religião, território, gênero, ecologia) do que a princípios gerais<br />

frequentemente relacionados à lógica que rege a política do Estado e principalmente<br />

a economia globalizante.<br />

Nesta estrutura fragmentada, tem-se a cultura da informação que junto às<br />

novas tecnologias desterritorializou-se. Por exemplo, as notícias e as imagens sobre<br />

os protestos contra os resultados das eleições presidenciais no Irã em junho de 2009<br />

foram censuradas pelo governo local. Porém, algumas pessoas que presenciaram as


129<br />

Patricia Camera<br />

manifestações conseguiram fotografá-las e filmá-las. Alguns dos resultados foram<br />

veiculados no ciberespaço.<br />

De forma mais local, outras atitudes vêm surgindo recentemente. Dentre elas<br />

estão os eventos internacionais (Bienal de Artes de Veneza, Documenta de Kassel<br />

etc.) de artes que expõem os diferentes posicionamentos de artistas com relação a<br />

realidade, imaginário, busca de alteridade etc.<br />

No caso do Brasil, a Bienal de Artes de São Paulo e a Bienal de Artes<br />

Visuais do Mercosul (BAVM) são destaques. Especificamente, a Bienal de Artes<br />

Visuais do Mercosul iniciou sua atividade em 1997, atrelada intensamente à<br />

questão mencionada neste trabalho: busca da alteridade do sujeito, representado<br />

na BAVM pelas nações que compõem o Mercosul. Nesta perspectiva o ensaio<br />

“Mujeres presas”, exibido na II Bienal de Artes Visuais (Porto Alegre, 1999),<br />

destaca a problemática discutida por Touraine.<br />

Sobre a reflexão pessoal em “Mujeres presas”<br />

A produção fotográfica de Lestido é um trabalho contemporâneo que se<br />

fundamenta na expressão pessoal (subjetiva) da fotógrafa e das fotografadas. Nos<br />

ensaios “Madres Adolescentes” (1989-1990), “Mujeres Presas” (1991-1993) e<br />

“Madres e Hijas” (1995-1999), percebe-se que a temática está centrada no afeto/<br />

desafeto entre mães e filhos, vivenciado num momento histórico denominado<br />

particularmente na teoria de Alain Touraine como sociedade cultural.<br />

No presente trabalho, interessa comunicar que as fotografias realizadas por<br />

Lestido problematizam o sujeito, sobretudo sua condição de cidadão compreendida<br />

junto às divergências subjetivas encontradas na interioridade (self-identity) da mulher<br />

e às problemáticas coletivas de grupos específicos do gênero feminino.<br />

Desta forma, o trabalho de Lestido é antes de tudo uma narrativa visual<br />

sobre a passagem de uma sociedade que se compreendia anteriormente em termos<br />

socioeconômicos, mas que na atualidade percebe-se como uma sociedade que organiza<br />

suas representações e ações voltadas à questão cultural. 50 O valor histórico de sua<br />

expressão artística sustenta-se na reflexão do sujeito e sobre o sujeito que vivencia a<br />

decomposição dos quadros sociais (empresa e consumo versus sujeito e Nação).<br />

No caso específico do ensaio fotográfico “Mujeres Presas” a visualidade<br />

da self-identity é singular na poética fotográfica por mostrar a “individualização”<br />

do sujeito em situação extrema. Isto porque a locação das cenas fotográficas se dá<br />

unicamente na prisão: sozinhas nas celas ou isoladas em algum setor do presídio.<br />

50 Touraine (2007, p. 215) explica: “[...] nossa experiência já não é mais transtornada pela sociedade de massa apenas<br />

na ordem de produção, mas também na ordem do consumo e da comunicação”.


130<br />

A dimensão histórica em “Mujeres Presas”<br />

Essa visualidade do retrato da mulher isolada exibe pontualmente a<br />

apresentação do ser “personificado” por duas formas dominantes: corpo e lócus. No<br />

corpo das presidiárias encontram-se declarações inscritas no braço como “André te<br />

amo”; ou no próprio braço de uma das filhas fotografadas: “Cláudio” (provavelmente<br />

o nome de seu pai). Nas celas veem-se alguns elementos pessoais que integram o<br />

ambiente da cena: história em quadrinhos, pôster e carteiras de cigarros coladas nas<br />

paredes, retrato de família que preenchem o vazio da escrivaninha.<br />

Quando se analisa a práxis fotográfica de Lestido, deve-se observar que se<br />

deu com experiências próximas às presidiárias pelo fato da fotógrafa visitá-las uma<br />

vez por semana na prisão, ao longo de um ano. Esta metodologia fez Lestido perceber<br />

que a situação de isolamento das mulheres excedia o feito de algumas das mães<br />

estarem juntas com seus filhos. Isso lhe fez indagar: “Quem é filho de quem?”. 51<br />

Esta aproximação de Lestido junto às detentas também tem seu valor por<br />

ter possibilitado o desenvolvimento das cenas posadas ou em movimento que foram<br />

tiradas no cotidiano e até mesmo em momentos especiais: retrato do casamento de<br />

uma das presidiárias ocorrido no pátio central do presídio e retrato de uma presidiária<br />

saindo abraçada junto a duas mulheres e uma criança, declarando: “Me siento tan<br />

perdida como mi primer dia en cana”. 52<br />

Este sentimento levanta a seguinte questão: Esta desorientação pessoal seria<br />

parecida à vivida por Lestido e sua mãe quando da ausência de seu pai durante a<br />

infância por este ter vivido numa prisão? Provavelmente esta situação familiar tenha<br />

contribuído para o desenvolvimento dos diferentes ensaios de Lestido que tem como<br />

objeto central expor a mulher como questão pessoal e social.<br />

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Paulo: Martins Fontes, 2000.<br />

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L&PM Editores, 2008.<br />

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Prós, 1999.<br />

51 Disponível em: . Acesso em: jul. 2009.<br />

52 Lestido (2007).


131<br />

Patricia Camera<br />

FABRIS, Annateresa. A fotografia e o sistema de artes plásticas. In:<br />

<strong>Fotografia</strong>: Usos e Funções no Século XIX. (Org.) Fabris, Annateresa. São<br />

Paulo Edusp, 1998.<br />

FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura<br />

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FRIZOT, Michael. A new history of photography. Köln: Könemann, 1998.<br />

GIDDENS, Anthony. Modernidade e Identidade. DP&A Editora, 2002.<br />

LESTIDO, Adriana. Mujeres Presas. 1a Ed. Buenos Aires: Dilan Editores, 2007.<br />

MACHADO, Arlindo. A ilusão especular. São Paulo: Brasiliense, 1984.<br />

ROUILLÉ, ANDRÉ. A fotografia: entre documento e arte contemporânea.<br />

Tradução Constancia Egrejas – São Paulo: Editora SENAC. São Paulo, 2009.<br />

TOURAINE, Alain. Crítica da Modernidade. 8ª edição. Petrópolis, RJ: Ed.<br />

Vozes, 2008.<br />

______. Um novo paradigma para se compreender o mundo hoje. 3ª edição.<br />

Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 2007.<br />

ADRIANA LESTIDO. Disponível em: . Acesso em: jul. 2009.

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