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Edição especial - Visão

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www.visaoonline.pt<br />

21 DE MARÇO DE 2003 • PORTUGAL €2,60<br />

EXTRA<br />

EDIÇÃO<br />

A GUERRA.<br />

Bagdad, 20 de Março de 2003


Conselho de Gerência: Francisco Pinto Balsemão, Pierre Lamunière, Jean-Claude<br />

Marchand, Luiz Vasconcellos e Miguel Costa Gomes<br />

Director-Geral: Miguel Costa Gomes<br />

Directores Editoriais: Fernanda Dias e Carlos Cáceres Monteiro<br />

Directora Comercial e Publicidade: Maria João Peixe Dias<br />

Director de Desenvolvimento de Negócios: João Xara-Brasil<br />

Director de Produção e Compras: Manuel Parreira<br />

Director de Circulação: Francisco Moita<br />

Director de Marketing: Ricardo Sécio<br />

Director Administrativo e Financeiro: Joaquim Carreira<br />

Director Marketing Directo: William Pereira<br />

Director de Sistemas Informáticos: José Calé<br />

Director: Carlos Cáceres Monteiro<br />

Directores Adjuntos: Cláudia Lobo e Pedro Camacho<br />

Editores Executivos: Filipe Luís e Rui Tavares Guedes<br />

Gabinete Editorial: José Carlos de Vasconcelos (Coordenador); Daniel Ricardo<br />

(Editor Executivo), Edite Soeiro e Fernando Dacosta (Editores)<br />

Gabinete Gráfico: Eduardo Barreto (Coordenador) e José Pinto Nogueira (Editor<br />

Chefe) e João Carlos Mendes (Editor)<br />

Editores: Ana Pereira da Silva (Em Foco); Áurea Sampaio (Portugal); João<br />

Paulo Vieira (Economia); Luís Almeida Martins (Mundo); Pedro Dias de Almeida<br />

(Cultura); Rosa Ruela (Sociedade) e Pedro Vieira (adjunto, Europa).<br />

Visaoonline: Francisco Galope e Manuel Barros Moura (adjunto). <strong>Visão</strong> 7: Ana<br />

Pinheiro. Fotografia: Luís Vasconcelos e Gonçalo Rosa da Silva (adjunto)<br />

Redactores Principais e Grandes Repórteres: Ana Margarida Carvalho, Filipe Fialho;<br />

Miguel Carvalho; Paulo Chitas e Rui Costa Pinto<br />

Redacção: Alexandra Correia, Ana Tomás Ribeiro, António José Brás, Carla Alves Ribeiro,<br />

Clara Cardoso (Visaoonline), Emília Caetano, Florbela Alves (Porto), Gabriela<br />

Lourenço, Henrique Botequilha, Inês Rapazote, João Dias Miguel, José Plácido Júnior,<br />

Luísa Oliveira, Luís Ribeiro, Paulo Pena, Paula Serra, Paulo Santos, Ricardo Fonseca,<br />

Rita Montez, Sara Belo Luís, Sara Sá, Sílvia Souto Cunha, Sónia Calheiros<br />

(<strong>Visão</strong> 7), Sónia Sapage, Susana Oliveira (<strong>Visão</strong> 7) e Teresa Campos (Visaoonline).<br />

Grafismo: Teresa Sengo (Coordenadora), Pedro Monteiro (Coordenador <strong>Visão</strong> 7),<br />

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Francisco Rodrigues (Visaoonline).<br />

Infografia: Jonas Reker e Manuela Tomé<br />

Fotografia: António Xavier, Inácio Ludgero, Luís Barra, Lucília Monteiro (Porto);<br />

J. António Rodrigues (Açores); Acácio Madaleno e Fernando Negreira (Digitalização)<br />

Delegação do Porto: Germano Silva (Delegado).<br />

Colunistas: Alexandre Castro Caldas, António Lobo Antunes; António Mega Ferreira;<br />

António Muñoz Molina, Boaventura de Sousa Santos, Diogo Freitas do Amaral, Eduardo<br />

Lourenço, Helena Roseta, João Mário Grilo, José Saramago, José Silva Pinto, Manuel<br />

António Pina, Maria de Lourdes Pintasilgo e Pedro Norton.<br />

Colaboradores da Redacção: Clara Soares, Cesaltina Pinto, Cláudia Borges,<br />

Eduardo Gageiro, Isabel Nery, José António Salvador, Júlio Santos, Mafalda César<br />

Machado, Manuel Vilas-Boas, Mário Campos, Mário Rui Cardoso, Miguel Judas,<br />

Nuno Miguel Guedes, Rui Pimentel, Sara Rodrigues e Tiago Alves<br />

Correspondentes: Lúcia Guimarães e Helena Lopes (EUA), Maité Gonzàlez<br />

(Madrid), Jill Joliffe (Áustrália) e Norma Couri (Brasil), Nahum Sirotsky (Israel).<br />

Assistentes Editoriais: Sofia Vicente, Inês Belo, Maria de Lurdes Abreu e Luis Pinto.<br />

Secretariado: Paula Godinho (Secretária de Direcção); Teresa Rodrigues e Ana<br />

Paula Figueiredo (Secretárias de Redacção), Fernando Moreno (Apoio).<br />

Base de Dados: Sandra Pinto e Susana Lopes.<br />

Produção gráfica: Manuel Fernandes (Director-Adjunto); João Paulo Batlle y Font<br />

e Nuno Gonçalves.<br />

Revisão: Rui Carvalho e António Ribeiro (VISÃO 7, VISÃO online)<br />

Marketing: Filipa Saldanha.<br />

Exclusivos para Portugal: TIME, TIME Digital, Le Nouvel Observateur, El Pais,<br />

Far Eastern Economic Review e GraphicNews, The New York Times<br />

Serviço de telefotos: Associated Press, Reuters e Lusa.<br />

Redacção: Rua Calvet de Magalhães, n.º 242. Laveiras.<br />

2770-022 Paço de Arcos<br />

Telef.: 214698000, Fax: 214698547<br />

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Publicidade<br />

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e Miguel Teixeira Diniz • Assistente de planeamento: Aurora Sousa<br />

• Assistente: Rosa Pinto • Coordenadores de materiais: José António Lopes<br />

Delegação Norte<br />

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Impressão: Lisgráfica – Casal de Santa<br />

Leopoldina – 2745 Queluz de Baixo<br />

Distribuição: VASP – Sociedade de<br />

Transportes e Distribuição, Lda. Complexo CREL –<br />

Bela Vista/Rua da Tascoa, 4.º Piso Massamá – 2745<br />

Queluz Telef: 214398500. Fax. 214302499<br />

Tiragem:<br />

96 600 exemplares<br />

Registo na DGCS nº: 112348<br />

N.º Depósito Legal: 127961/98<br />

ISSN 0872/3540<br />

Interdita a reprodução, mesmo parcial, de textos, fotografias<br />

ou ilustrações sob quaisquer meios, e para quaisquer fins, inclusive comerciais<br />

Esta edição da VISÃO foi feita ao longo do<br />

dia de ontem, 20, o primeiro desta Guerra<br />

do Golfo II, e não repete um único<br />

texto da revista «normal» que se encontra<br />

já nas bancas, com o título Apocalipse<br />

Now. Não deve ser lida, por isso, como<br />

uma segunda edição, mas sim como<br />

um número verdadeiramente «extra»,<br />

que completa, e infelizmente confirma, o<br />

quadro global que se anunciava e a que<br />

demos expressão na capa anterior.<br />

Mário Soares, Eduardo Lourenço,<br />

Freitas do Amaral, Maria Lourdes Pintasilgo<br />

e Helena Roseta dizem-nos, nesta<br />

VISÃO, o que pensam, depois de terem<br />

caído as primeiras bombas no Iraque.<br />

Reflexões que complementam as de José<br />

Saramago e de Noam Chomsky, além de<br />

outro artigo de Freitas do Amaral, publicados<br />

na revista saída quinta-feira.<br />

A Guerra do Golfo II está ainda no começo,<br />

e não foi com o prometido ataque<br />

«esmagador» que os EUA iniciaram as<br />

hostilidades militares. Mas é uma questão<br />

de tempo, segundo a generalidade<br />

dos observadores, sejam políticos, sejam<br />

GUERRA DO GOLFO II<br />

Uma edição extraordinária<br />

<strong>Edição</strong> EXTRA 21 de Março de 2003<br />

O Ataque ..........................................................4<br />

Opinião:<br />

Eduardo Lourenço ..........................9<br />

As imagens que não<br />

se esquecem ............................................12<br />

Jordânia: a fronteira<br />

do inferno....................................................32<br />

Armas: guerra a partir<br />

dos céus ........................................................36<br />

Mesopotâmia:<br />

o berço da civilização ..........40<br />

Tommy Franks: homem<br />

de cortar a direito ........................42<br />

Ajuda: um grando dano<br />

colateral ........................................................44<br />

Opinião:<br />

Helena Roseta ..................................47<br />

Economia: o preço<br />

da batalha..................................................48<br />

Bombas em alta,<br />

petróleo em baixa ........................50<br />

George W. Bush:<br />

o dono da guerra ............................52<br />

Jacques Chirac:<br />

o homem do ‘não’........................54<br />

Saddam Hussein:<br />

o fim do grande ‘pai’? ..........56<br />

Planos: o Iraque<br />

depois de Saddam ......................60<br />

Recordação: Golfo,<br />

parte I ..............................................................64<br />

Iraquianos em Portugal:<br />

imigrantes de luxo ........................72<br />

militares ou jornalistas. É o caso de Paulo<br />

Camacho, o enviado <strong>especial</strong> da SIC,<br />

que nos transmite, num pequeno depoimento,<br />

as primeiras impressões de quem<br />

vive este início de guerra em Bagdad.<br />

Uma imagem não vale apenas mil palavras.<br />

É também uma arma poderosa<br />

para assinalar os grandes acontecimentos,<br />

mesmo quando são trágicos, como<br />

esta guerra. Dedicamos-lhe, por isso, um<br />

espaço digno e alargado, numa revista<br />

que concebemos com o objectivo de a<br />

oferecer aos nossos leitores como um<br />

verdadeiro documento histórico.<br />

Filipe Luís, editor executivo da VISÃO<br />

e nosso enviado à Jordânia, conta, nesta<br />

edição, os momento dramáticos que se<br />

vivem na fronteira com o Iraque, assim<br />

como o ambiente em Amã. Carlos Cáceres<br />

Monteiro, director da VISÃO, que<br />

cobriu a Guerra do Golfo, em 1991, para<br />

O Jornal, encontra-se, no momento<br />

em que ultimamos esta edição, na Síria,<br />

junto da fronteira com o país de Saddam.<br />

Esperamos publicar, já na próxima edição,<br />

uma reportagem da sua autoria.<br />

Entrevista:<br />

Mário Soares ........................................76<br />

Opinião: Diogo Freitas<br />

do Amaral ..................................................77<br />

Portugal:<br />

as reacções................................................78<br />

Cimeira europeia: UE<br />

tenta colar os cacos ..................83<br />

Comentário: José Carlos<br />

de Vasconcelos ..................................85<br />

Reacções no mundo:<br />

mobilização geral<br />

pela paz ........................................................86<br />

Grã-Bretanha:<br />

o futuro de Blair ............................94<br />

América: o epicentro,<br />

a 10 000 km da frente ..........95<br />

O que eles disseram ................96<br />

Correio do Leitor ..........................97<br />

Opinião: Maria<br />

de Lourdes Pintasilgo ..........98<br />

VISÃO 21 de Março de 2003 3


GUERRA DO GOLFO II<br />

BAGDAD, 20 DE MARÇO<br />

O relógio marcava 5 horas<br />

e 34 minutos (2 e 34 em Portugal<br />

continental) quando as sirenes<br />

começaram a soar na cidade.<br />

O ultimato dado por George W.<br />

Bush tinha-se esgotado há apenas<br />

hora e meia e a data estava<br />

destinada a ficar marcada<br />

no calendário como<br />

a de 17 de Janeiro de 1991: doze<br />

anos e dois meses depois,<br />

a capital iraquiana voltava a ser<br />

bombardeada por forças<br />

americanas e britânicas.<br />

Um Presidente com o mesmo<br />

nome próprio e apelido do que<br />

liderou a primeira Guerra<br />

do Golfo ordenava o início<br />

do segundo conflito com<br />

a mesma designação. Mas, desta<br />

vez, com um propósito diferente<br />

e em circunstâncias distintas.<br />

Em 1991, George H. Bush reuniu<br />

à sua volta uma larga coligação<br />

de países para obrigar o exército<br />

de Saddam Hussein a sair<br />

do Kuwait. Agora, George W. Bush<br />

avança quase sozinho, e debaixo<br />

de um coro mundial de protestos,<br />

na sua guerra pela «libertação»<br />

do Iraque. Sem o aval<br />

das Nações Unidas<br />

REUTERS/REUTERS TELEVISION


CHIPRE<br />

Mar<br />

Mediterrâneo<br />

EGIPTO<br />

Cartum<br />

GUERRA DO DO GOLFO II<br />

“E aqui vai uma frase de paleio de situação no dito dossier, máí nada”<br />

Ancara<br />

Nicósia<br />

LÍBANO<br />

ISRAEL<br />

Jerusalém<br />

SUDÃO<br />

TURQUIA<br />

Incirlik<br />

Beirute<br />

Amã<br />

Damasco<br />

JORDÂNIA<br />

Mar<br />

Vermelho<br />

SÍRIA<br />

Darbakir Batman<br />

Arar<br />

IRAQUE<br />

Bases no Kuwait<br />

Bagdad<br />

ARÁBIA SAUDITA<br />

San'a<br />

Riade<br />

KUWAIT<br />

Bases no Bahrein<br />

Golfo<br />

Pérsico<br />

Príncipe Sultan<br />

LEGENDA DO MAPA<br />

IÉMEN<br />

IRÃO<br />

BAHREIN<br />

QATAR<br />

Base aérea<br />

Base naval<br />

Base do exército<br />

Bases no Qatar<br />

EAU<br />

Mar Arábico<br />

OMÃ


GUERRA DO GOLFO II<br />

Como a guerra começou<br />

Uma hora e meia depois de terminado o prazo dado por Bush para que Saddam<br />

abandonasse o Iraque, concretizou-se aquilo que muitos, ao longo dos últimos meses,<br />

foram considerando inevitável: o início da segunda Guerra do Golfo. De navios<br />

estacionados no Mediterrâneo, mar Vermelho e no Golfo Pérsico foram disparados<br />

cerca de quatro dezenas de mísseis Tomahawk. Em simultâneo, aviões bombardeiros B-2,<br />

B-1 e B-52 participaram também no ataque, bem como dois caças-bombardeiros F-117,<br />

que deitaram quatro bombas «inteligentes» GBU-27 sobre bunkers. O objectivo<br />

das primeiras acções era o de poder acabar com a guerra logo no início.<br />

Ou seja: aniquilando Saddam e a cúpula de poder iraquiano<br />

O primeiro dia<br />

As horas decisivas de 20 de Março<br />

O Presidente dos EUA, George W. Bush,<br />

telefona ao primeiro-ministro britânico<br />

Tony Blair a informá-lo que pretende<br />

atacar Bagdad dentro em breve<br />

Termina o ultimato dado por George W.<br />

Bush para que Saddam Hussein<br />

e os seus filhos abandonem o Iraque<br />

Sirenes de alarme ecoam em Bagdad<br />

e começam a ouvir-se explosões na cidade<br />

e o barulho de aviões militares no céu<br />

Ari Fleischer, porta-voz da Casa Branca,<br />

confirma: «Começaram as primeiras<br />

etapas do desarmamento do Iraque»<br />

George W. Bush surge na televisão<br />

a informar que os EUA lançaram um ataque<br />

contra «alvos de oportunidade militar»<br />

no Iraque. Descreve a acção como<br />

o início da operação «para desarmar<br />

o Iraque e libertar o seu povo»<br />

O primeiro-ministro Durão Barroso dirige-se<br />

ao País e declara que «nesta hora difícil,<br />

Portugal reafirma o apoio aos seus aliados»<br />

As sirenes calam-se em Bagdad<br />

Saddam Hussein aparece na televisão<br />

oficial iraquiana e afirma: «O Iraque<br />

sairá vitorioso»<br />

China exige o fim dos ataques<br />

França denuncia «a guerra ilegítima<br />

e perigosa»<br />

Presidente russo Vladimir Putin<br />

condena a acção militar como<br />

«um grande erro político»<br />

VISÃO


GUERRA DO GOLFO II A ofensiva<br />

ATAQUE<br />

Como um murro nos queixos<br />

Em vez do bombardeamento intenso e devastador, a primeira guerra preventiva<br />

de Bush iniciou-se com um golpe curto e fugaz no coração de Bagdad. A invasão<br />

segue dentro de momentos<br />

EXPLOSÃO<br />

Bagdad foi sacudida<br />

por dois raides aéreos<br />

no primeiro dia de guerra<br />

8 VISÃO 21 de Março de 2003


AP/APTN<br />

RUI TAVARES GUEDES<br />

Os comandos militares norte-<br />

-americanos tinham avisado.<br />

Durante meses, disseram que<br />

esta guerra seria diferente de<br />

todas as outras, incluindo a sua predecessora,<br />

de 1991, no mesmo cenário.<br />

Mas ninguém os levou a sério. Todos ficaram<br />

à espera de uma noite semelhante<br />

à que fez a glória da CNN: bombardeamentos<br />

intensos e rastos dos disparos<br />

de antiaéreas, nos céus de Bagdad,<br />

a prolongarem-se durante horas. Afinal,<br />

foi mesmo diferente.<br />

Ainda o prazo dado no ultimato de<br />

George W. Bush não tinha terminado e<br />

já chegavam os relatos dos primeiros tiros:<br />

de forma sistemática, forças norte-<br />

-americanas começaram a destruir as<br />

baterias de artilharia iraquianas colocadas<br />

junto à fronteira com o Kuwait.<br />

Com um objectivo preciso: destruir a<br />

ameaça principal a um avanço de tropas<br />

terrestres pelo Sul, em direcção à<br />

capital iraquiana.<br />

Depois, hora e meia após a conclusão<br />

do ultimato, deu-se o início oficial<br />

do conflito: um ataque cirúrgico sobre<br />

Bagdad, tentando cortar, à primeira, as<br />

cabeças principais do regime iraquiano.<br />

E, em vez das imagens de «destruição<br />

devastadora» que tinham sido prometi-<br />

A CERTEZA DE UMA ESPERA<br />

«Em 1991, as sessões de bombardeamento<br />

a Bagdad foram experiências muito<br />

mais assustadoras do que a vivida nestas<br />

duas últimas noites. A reacção da defesa<br />

iraquiana, condicionada pela experiência<br />

da guerra com o Irão, travada com armas<br />

iguais, tornava infernal qualquer raide norte-americano,<br />

com sirenes que nunca mais<br />

se calavam, fogo interminável de antiaéreas<br />

e aquela chuva de balas tracejantes<br />

que ficou na memória de todos nós.<br />

Desta vez, não. Tem sido muito diferente.<br />

A pressão ficou quase limitada à impossibilidade<br />

de dormir. Talvez por já terem percebido<br />

que as armas não são iguais, que<br />

nem vale a pena responder, tudo é mais<br />

calmo, menos stressante, mais ‘racional’.<br />

Pelo menos até agora, enquanto o pior não<br />

chegar.»<br />

DEPOIMENTO DE PAULO CAMACHO,<br />

ENVIADO ESPECIAL DA SIC EM BAGDAD,<br />

RECOLHIDO ONTEM À NOITE, QUINTA-FEIRA,<br />

20 DE MARÇO, ÀS 22 HORAS DE LISBOA<br />

GUERRA DO GOLFO II<br />

das, as câmaras de televisão (e <strong>especial</strong>mente<br />

os videofones) apenas exibiam a<br />

imagem de um amanhecer suave e de<br />

céu limpo, em Bagdad. Explosão visível<br />

houve apenas uma, com uma bola de<br />

fogo a erguer-se sobre os telhados da<br />

cidade, já na claridade inicial de quinta-feira,<br />

20.<br />

Com todas as cautelas<br />

A primeira guerra preventiva da Administração<br />

Bush teve um início tão<br />

surpreendente e original quanto a estratégia<br />

de defesa com que os «falcões»<br />

da Casa Branca a tentam justificar,<br />

perante um mundo dividido e cada<br />

vez mais incrédulo. A guerra não<br />

começou com o «big bang» que alguns<br />

militares tinham prometido, nem sequer<br />

com uma ofensiva de larga escala.<br />

Também não se assistiu, nas primeiras<br />

horas, a um discurso demorado e bem<br />

fundamentado do Presidente dos EUA,<br />

a explicar ao mundo as razões por que<br />

tinha acabado de lançar o planeta em<br />

guerra. Não houve frases de cunho heróico<br />

ou a mínima aproximação, sequer,<br />

a uma imitação barata de uma<br />

cópia de um discurso de Churchill. Nada<br />

disso. Bush resolveu o problema<br />

com um discurso de quatro minutos e<br />

trinta frases em que anunciou ter dado<br />

ordem para se iniciarem «as primei-<br />

VISÃO 21 de Março de 2003 9<br />

JOSÉ OLIVEIRA<br />


▲<br />

GUERRA DO GOLFO II A ofensiva<br />

COMO UM MURRO NOS QUEIXOS<br />

ras etapas» da libertação do Iraque.<br />

Depois do coro de protestos que se<br />

levantou em todo o mundo, do fracasso<br />

das batalhas diplomáticas, da retirada<br />

forçada da segunda resolução no<br />

Conselho de Segurança das Nações<br />

Unidas, a ideia com que se fica é que os<br />

planos de batalha foram alterados de<br />

forma a tentar garantir um início de<br />

guerra o mais limpo possível. A aposta<br />

foi mais na demonstração de força do<br />

que no peso ou no número de bombas<br />

despejadas.<br />

Como o Pentágono foi o primeiro a<br />

reconhecer, a guerra começou com<br />

uma tentativa de a substituir, com um<br />

pouco de sorte, por uma simples operação<br />

de eliminação de Saddam, em quase<br />

tudo semelhante à ordenada, em<br />

1999, por Bill Clinton contra Bin Laden,<br />

no Afeganistão. Era quase como<br />

ganhar a lotaria: vencer a guerra com<br />

um único tiro. Apenas com um míssil<br />

contra Saddam.<br />

Os estrategos do Pentágono chamaram-lhe<br />

«janela de oportunidade». Ao<br />

que parece, o ataque surpresa foi fruto<br />

de uma operação complexa que incluiu<br />

informações secretas, espionagem electrónica,<br />

acção de militares de operações<br />

especiais e uma tecnologia apura-<br />

Bagdad já está<br />

a arder<br />

No segundo dia da guerra, os iraquianos deitaram-se<br />

com Bagdad em chamas. Na quinta-feira,<br />

20, menos de 15 horas depois do primeiro<br />

assalto, uma segunda vaga de ataques<br />

com bombas anti-bunker e mísseis de cruzeiro<br />

Tomahawk guiados por satélite atingiu a<br />

cidade às 21 horas locais (18 horas em Lisboa),<br />

incendiando três edifícios governamentais.<br />

As explosões sucederam-se com intervalos<br />

de segundos, durante dez minutos. Um<br />

mar de chamas e espessas colunas de fumo<br />

eram visíveis na margem esquerda do rio Tigre,<br />

onde está situado o Ministério das Comunicações<br />

e do Planeamento. As chamas<br />

consumiram parte do edifício que alberga os<br />

escritórios do vice-presidente Tarek Aziz, e<br />

um outro, de quatro andares, situado junto<br />

de um palácio presidencial. Uma densa e negra<br />

coluna de fumo foi vista também por cima<br />

da refinaria de Al Dura, na zona sul da capital<br />

iraquiana. Os aviões voaram a baixa al-<br />

REUTERS/FALEH KHEIBER<br />

REUTERS/RUSSELL BOYCE<br />

da, que permitiu aos comandos militares<br />

alterarem, rapidamente, as coordenadas<br />

dos mísseis cruzeiro para um<br />

ataque preciso e directo contra o palácio<br />

onde se pensava que estivesse a<br />

dormir o líder iraquiano, os seus filhos<br />

Qusai e Odai, bem como grande parte<br />

da estrutura dirigente do regime. Saddam<br />

percebeu bem o objectivo desse<br />

ataque. E por isso apareceu, na manhã<br />

de quinta-feira, 20, na televisão iraquia-<br />

titude, mas de nada valeram os tracejados<br />

das antiaéreas que coloriram os céus nocturnos<br />

de Bagdad. De resto, o fogo defensivo<br />

iraquiano tem sido menos vigoroso do que<br />

aquele que se verificou às primeiras horas da<br />

‘ESTOU VIVO’<br />

Pouco depois do primeiro<br />

ataque, Saddam apareceu<br />

na televisão<br />

na, pouco tempo após as explosões.<br />

Apenas para provar que estava vivo.<br />

Apesar dessa aparição de Saddam na<br />

televisão, alguns militares norte-americanos<br />

continuavam a acreditar, ao fim<br />

do dia de quinta-feira, que tinham conseguido,<br />

pelo menos, debilitar a cadeia<br />

de comando iraquiana, minando-lhe o<br />

poder de coordenação.<br />

A reacção das forças de Bagdad limitou-se<br />

ao lançamento de alguns mísseis<br />

EM MISSÃO<br />

Um F-18 parte da base<br />

no Kuwait para o ataque<br />

primeira Guerra do Golfo, em Janeiro de<br />

1991. A última sirene soou à meia-noite, hora<br />

local, assinalando o fim do alerta aéreo. E<br />

toda a noite a televisão mostrou imagens de<br />

Saddam Hussein reunido com os membros<br />

10 VISÃO 21 de Março de 2003


BAGDAD<br />

Um ferido dá entrada<br />

no hospital<br />

Scud em direcção ao Kuwait, o que sublinhou<br />

mais uma diferença em relação<br />

ao conflito de 1991: na primeira Guerra<br />

do Golfo tinham sido capazes de enviar<br />

mísseis até Israel. Agora, as bombas<br />

pouco voaram.<br />

Segunda vaga<br />

Ao contrário do que sucedeu há 12<br />

anos, desta vez a acção terrestre foi<br />

quase simultânea com o início das ope-<br />

do seu gabinete, sem ser possível determinar<br />

quando as imagens foram captadas.<br />

O segundo ataque foi mais intenso do que<br />

o bombardeamento que iniciou a operação<br />

Liberdade para o Iraque, às 5 e 35, quando<br />

nasciam os primeiros raios de sol em Bagdad.<br />

Pelo menos um dos mais de 40 impactos<br />

que atingiram a cidade foi visível a menos<br />

de um quilómetro do mítico Hotel Al<br />

Rashid, no centro da capital iraquiana. Esse<br />

primeiro ataque durou também cerca de<br />

dez minutos e, segundo o Governo iraquiano,<br />

atingiu o edifício da rádio e da televisão<br />

e um edifício da alfândega, ambos vazios.<br />

Também foi destruída a casa onde viviam<br />

a mulher de Saddam, Zaida Jeirula, e<br />

as três filhas. Mas o Presidente iraquiano e<br />

os seus dois filhos, que eram os principais<br />

alvos do ataque, terão escapado ilesos, segundo<br />

admitem os próprios responsáveis<br />

norte-americanos. Entretanto, a Cruz Vermelha<br />

Internacional confirmou, em Bagdad,<br />

a morte de um civil e ferimentos noutras<br />

14 pessoas.<br />

M.R.C.<br />

rações aéreas. Menos de 20 horas depois<br />

do início do conflito, tropas norteamericanas<br />

e britânicas atravessaram a<br />

fronteira do Kuwait e instalaram-se vários<br />

quilómetros no interior do Iraque.<br />

Quase ao mesmo tempo, um novo<br />

raide foi lançado sobre Bagdad e, mais<br />

uma vez, com uma selecção criteriosa<br />

de alvos: edifícios governamentais e palácios<br />

presidenciais. Como o primeiro,<br />

este ataque foi rápido e quase não houve<br />

reacção de defesa por parte dos iraquianos.<br />

A táctica engendrada pelos comandos<br />

americanos parece, assim, ter como<br />

objectivo atingir o adversário em pontos<br />

sensíveis e, com isso, desmoralizá-<br />

-lo progressivamente, convidando à deserção.<br />

Ao fim de um ano a fazer e a refazer<br />

planos, o general Tommy Franks,<br />

comandante das forças aliadas, parece<br />

ter decidido adiar os planos do «big<br />

bang» e utilizar a mesma táctica que<br />

Muhammad Ali celebrizou nos ringues<br />

de boxe: picar como uma abelha e voar<br />

como uma borboleta. O primeiro dia<br />

de guerra foi assim, em tudo semelhante<br />

ao primeiro assalto de um Ali vigoroso,<br />

dos tempos em que ainda respondia<br />

pelo nome de Cassius Clay: golpes rápidos,<br />

curtos e incisivos, em diversas partes<br />

do corpo, sempre em movimento e<br />

sem dar hipótese de resposta. Falta<br />

agora o KO. E o ataque em massa,<br />

enorme e devastador que foi sempre<br />

prometido pelos militares americanos.<br />

A guerra, afinal, ainda mal começou. E<br />

ninguém acredita que termine sem o<br />

derramento de muito sangue. ■<br />

GUERRA DO GOLFO II<br />

EDUARDO LOURENÇO<br />

Profetas<br />

Os olhos de Ezequiel cegaram.<br />

Estamos sem futuro,<br />

salvo o da chuva<br />

de bombas que a cortina<br />

do Bem estende sobre Bagdad. E<br />

o mundo. Mas o espectro do profeta<br />

bíblico não impressionará o<br />

piedoso Presidente dos Estados<br />

Unidos. Ele está seriamente convicto<br />

que Deus o encarregou de<br />

libertar o mundo do monstruoso<br />

Saddam Hussein. Sabe do que<br />

fala, pois foi ele ou os seus antecessores<br />

que o inventaram.<br />

Quando a cortina de fogo se<br />

extinguir, o que não tardará muito,<br />

o mundo não será o mesmo.<br />

Hoje começa, a sério, um novo<br />

século. Porventura, uma nova<br />

era. Qual? A de um tempo político<br />

assumido do poder do mais<br />

forte sobre o mais fraco. Não é<br />

uma novidade. Mas nunca o<br />

mais forte foi tão insolente e impunemente<br />

forte como esta<br />

América que exorciza em Bagdad<br />

um medo íntimo e conscientemente<br />

cultivado. Esse pânico é,<br />

em grande parte, o fruto da sua<br />

própria política de hegemonia<br />

messiânica sobre o mundo.<br />

De aqui em diante, o mundo<br />

inteiro, do Alasca à Terra do Fogo,<br />

tem o direito, e mesmo o dever,<br />

de se considerar ameaçado<br />

por um imperialismo sob a bandeira<br />

de Deus tal como o fundamentalismo<br />

americano o vive e<br />

expande. E, mesmo, de entrar em<br />

resistência. Felizmente, desse<br />

mundo, e em primeiro lugar, faz<br />

parte a própria América. Ela<br />

acordará mais cedo do que se<br />

imagina deste pesadelo, da sua e<br />

nossa angústia. É por aí que passa<br />

o que neste momento nos resta<br />

de esperança. Sem ela, o reino<br />

do arbítrio instalar-se-ia sobre o<br />

mundo. E, a título póstumo,<br />

Adolfo Hitler triunfaria em toda<br />

a linha. O que os olhos abertos<br />

de Ezequiel não permitirão.<br />

VISÃO 21 de Março de 2003 11<br />

REUTERS/GORAN TOMASEVIC


GUERRA DO GOLFO II<br />

O segundo ataque das forças americanas contra Bagdad foi muito mais<br />

intenso do que o registado na madrugada de 20. Vários edifícios foram atingidos.<br />

A grande ofensiva contra a capital iraquiana começou<br />

VISÃO /Jonas reker<br />

Lago<br />

Urmia<br />

TURQUIA<br />

TURQUIA<br />

IRAQUE<br />

IRÃO<br />

ARÁBIA<br />

SAUDITA<br />

EGIPTO<br />

OMÃ<br />

Mossul<br />

IÉMEN<br />

SUDÃO<br />

ZONA DE EXCLUSÃO AÉREA<br />

100 km<br />

SÍRIA<br />

N<br />

PISTAS DE AVIAÇÃO<br />

Rio Tigre<br />

OLEODUTOS<br />

IRÃO<br />

Kirkuk<br />

PRINCIPAIS CAMPOS DE PETRÓLEO<br />

BASES MILITARES IRAQUIANAS<br />

Rio Eufrates<br />

ÀREA CURDA<br />

Anah<br />

Tikrit<br />

Lago<br />

Tharthar


Ar Rutbah<br />

Misseis de cruzeiro foram lançados contra o centro<br />

da cidade, sacudindo-a com grandes explosões<br />

ZONA DE EXCLUSÃO AÉREA<br />

Lago<br />

Ramazza<br />

Apoiados por blindados,<br />

mais de um milhar<br />

de efectivos da 1ª Divisão<br />

de Fuzileiros entraram<br />

no Iraque pela povoação<br />

de Um Qasr, 50 Km<br />

a sul da cidade<br />

de Baçorá. Também<br />

participaram tropas<br />

britânicas. Iniciou-se,<br />

assim, a invasão terrestre<br />

do Iraque<br />

ARÁBIA<br />

SAUDITA<br />

As Salman<br />

Baçorá<br />

Golfo<br />

Pérsico<br />

KUWAIT<br />

Forças da infantaria britânicas tomaram a península<br />

de Fao, ponto estratégico para a conquista de Baçorá<br />

A 2ª Brigada da 3ª Divisão de Infantaria destruiu<br />

2 dos 3 postos iraquianos na fronteira Sul.<br />

Objectivo: criar uma cortina de fogo que marcará<br />

o começo da guerra terrestre<br />

13


AP/JEROME DELAY<br />

“E aqui vai uma frase de paleio de situação no dito dossier, máí nada”


PONTARIA MINISTERIAL<br />

GUERRA DO GOLFO II<br />

Os edifícios do Governo, em Bagdad,<br />

foram dos primeiros alvos atingidos na<br />

quinta-feira à noite, durante o segundo<br />

bombardeamento, pelos mísseis<br />

americanos. O Ministério do Comércio<br />

também não escapou ileso<br />

REUTERS/ROYAL NAVY


REUTERS/TIMOTHY SMITH


FRENESIM AERONAVAL<br />

Os porta-aviões dos EUA revelaram-se<br />

decisivos durante o ataque. Na pista<br />

do USS Constellation, a actividade<br />

do Esquadrão 38 de Controlo Marítimo<br />

foi quase sempre incessante desde<br />

as primeiras horas de quinta-feira, 20


REUTERS/U.S.NAVY PHOTOGRAPH/PATRICK REILLY<br />

“E aqui vai uma frase de paleio de situação no dito dossier, máí nada”<br />

CUSPIDORES DE FOGO<br />

Fundeado no mar Vermelho, o destroyer<br />

USS Donald Cook foi um dos vasos<br />

de guerra que disparou mísseis Tomahawk<br />

contra o território iraquiano


GUERRA DO GOLFO II<br />

MÍSSIL DE SUA<br />

MAJESTADE<br />

Um submarino britânico<br />

estacionado no Golfo<br />

lança um dos primeiros<br />

Tomahawk do arsenal<br />

da Marinha Real<br />

em direcção a Bagdad<br />

REUTERS/ROYAL NAVY


“E aqui vai uma frase de paleio de situação no dito dossier, máí nada”


GUERRA DO GOLFO II<br />

AMEAÇA QUÍMICA<br />

Soldados americanos no Kuwait<br />

vestem fatos de protecção<br />

nuclear, biológica e química,<br />

dentro de um bunker, após uma<br />

sirene alertar para a hipótese<br />

de um ataque com gás<br />

AP/ED WRAY


GUERRA DO GOLFO II<br />

FALSO ALARME<br />

Os mísseis iraquianos lançados<br />

sobre o Kuwait eram ogivas<br />

convencionais, mas obrigaram<br />

os jornalistas da BBC, escondidos<br />

num abrigo do hotel, a testar<br />

os equipamentos contra a guerra<br />

química e bacteriológica


AP/WALLY SANTANA


JEAN-MARC BOUJU/AP<br />

GUERRA DO GOLFO II “E ??? aqui vai uma frase de paleio de situação no dito dossier, máí nada”<br />

24 VISÃO 21 de Março de 2003


GUERRA DO GOLFO II<br />

CONQUISTADORES<br />

A Infantaria norte-americana<br />

prepara-se para marchar,<br />

na tarde de quinta-feira, 20,<br />

pelo deserto do Kuwait,<br />

rumo a território iraquiano<br />

VISÃO 21 de Março de 2003 25


AP/ED WRAY<br />

GUERRA DO GOLFO II


ESCUDOS<br />

PROTECTORES<br />

Soldados dos EUA em acção<br />

no Kuwait, em Doha,<br />

dispararam mísseis Patriot<br />

que interceptaram e destruíram<br />

mísseis iraquianos


GUERRA DO GOLFO II<br />

“E aqui vai uma frase de paleio de situação no dito dossier, máí nada”


GUERRA DO GOLFO II<br />

A CAMINHO DO IRAQUE<br />

A 3.ª Brigada da 101.ª Divisão<br />

Aerotransportada dos EUA<br />

foi das primeiras unidades<br />

a entrar no país de Saddam<br />

AP/JEAN-MARC BOUJU


GUERRA DO GOLFO II “E aqui vai uma frase de paleio de situação no dito dossier, máí nada”<br />

CURDOS IRAQUIANOS<br />

O sorriso das crianças dentro<br />

de uma tenda de refugiados,<br />

poucas horas antes do início<br />

da guerra, na região<br />

de Rashank, perto da cidade<br />

de Dohuk, na zona administrada<br />

pelos curdos, no Norte<br />

do Iraque, desde 1991


GUERRA DO GOLFO II<br />

REUTERS


GUERRA DO GOLFO II<br />

FILIPE LUÍS • ENVIADO ESPECIAL<br />

Cai a noitinha em Azraq, uma espécie<br />

de Pegões, onde a estrada<br />

que vem de Amã, capital da Jordânia,<br />

se divide em dois braços,<br />

um em direcção à Arábia Saudita, a 90<br />

quilómetros, o outro rumo a Al Karama<br />

(fronteira do Iraque), um pouco mais longe.<br />

Faltam, precisamente, oito horas para<br />

o primeiro ataque americano a Bagdad.<br />

É de Al Karama que regressamos, depois<br />

de um dia a comer pó e areia, tendo o Iraque<br />

à vista, a poucas centenas de metros.<br />

Tínhamo-lo visto todo o dia, num vaivém<br />

Com os refugiados<br />

JORDÂNIA<br />

A fronteira do inferno<br />

Agora que as bombas começaram a cair no Iraque, a linha que separa<br />

a Jordânia do país de Saddam pode parecer um ponto de esperança<br />

para os refugiados. Mas há, também, um inferno que os aguarda.<br />

Histórias da fronteira entre a ansiedade e a guerra<br />

incessante, naquela estrada estilo IP, uma<br />

semi-recta de quase 400 quilómetros a<br />

rasgar o deserto, uma peneplanície cheia<br />

de pedregulhos pretos, como que atingida<br />

por uma maré negra vinda de um mar<br />

inexistente. Tínhamos trocado sorrisos<br />

com os motoristas iraquianos daqueles<br />

autotanques de matrícula azul escura e<br />

inscrições em árabe, dezenas, centenas de<br />

autotanques, ou melhor dizendo, de camiões<br />

velhos, quase todos Mercedes, de<br />

focinho comprido, com tanques ferrugentos<br />

carregados de combustível em cima.<br />

São eles que asseguram os fornecinmentos<br />

de fuel iraquiano à Jordânia. Vêm<br />

FRONTEIRA<br />

DE KARAMA<br />

É o controlo possível,<br />

sob o olhar do rei<br />

Abdullah, da Jordânia<br />

cheios, regressam vazios, voltam no outro<br />

dia. Naquele telheiro de Azraq, à beira da<br />

estrada, os camionistas reúnem-se aos<br />

magotes. Cada camião que deveria regressar<br />

ao Iraque faz ali a sua pausa. Os homens<br />

trocam impressões. Paramos o carro,<br />

lançamos um salam, sorriem muito.<br />

Mas não falam inglês. Excepto, vagamente,<br />

um deles, que julgo perceber se chama<br />

Ahmed, e chegou a ter contacto com pessoal<br />

das Nações Unidas. Com alguma dificuldade,<br />

consigo entender que discutem<br />

se devem voltar esta noite ou esperar pela<br />

manhã. O ultimato de Bush expira antes<br />

que atinjam o destino, um ponto no<br />

32 VISÃO 21 de Março de 2003<br />

LEFTERIS PITARAKIS/AP


Iraque que não identifico. Ele, Ahmed, vai<br />

regressar. Tem mais um frete para o meio-<br />

-dia do dia seguinte e não o falhará. Afinal,<br />

a fronteira continua a funcionar normalmente.<br />

Estivéssemos no México e este<br />

compadre diria, com filosófica bonomia:<br />

«No pasa nada.»<br />

Bagdad: estranhos relatos<br />

Sabemos, horas mais tarde, que o tímido<br />

ataque inicial parece só um aviso dos<br />

americanos: «Estamos aqui.» Mas a guerra<br />

não precisa de muitas horas para começar<br />

a sério e em várias frentes. Seis mísseis<br />

Scud iraquianos terão sido lançados<br />

contra o Kuwait. Nas 24 horas seguintes,<br />

surgem informações de fogo de artilharia<br />

da coligação anglo-americana sobre posições<br />

iraquianas, num primeiro avanço de<br />

tropas a partir do mesmo Kuwait. Há registos<br />

de movimentações de forças terrestres<br />

no Norte do Iraque. E as explosões<br />

voltam a Bagdad.<br />

Nada com que os negociantes iraquianos,<br />

da capital, com quem converso em<br />

Ruwaished, a 75 quilómetros da fronteira,<br />

horas antes do primeiro ataque, não estivessem<br />

a contar. Pela hora do almoço de<br />

quarta-feira, 19, e com a ajuda de um intérprete<br />

de ocasião, um comerciante local,<br />

dizem-me que as ruas de Bagdad têm<br />

vivido dias absolutamente tranquilos.<br />

«Não há movimentos de tropas, as autoridades<br />

aparentam uma estranha calma.<br />

Enfim, isso quer dizer alguma coisa.»<br />

O que é que isso quer dizer, ninguém especificou.<br />

Mas é evidente que se trata do<br />

vórtice do tufão, a falsa bonança entre as<br />

ameaças de meses e os bombardeamentos<br />

das próximas semanas. Um momento irreal<br />

de paragem do tempo.<br />

Ruwaished é uma sinistra terriola, mas<br />

é o melhor que se pode arranjar no meio<br />

do deserto pedregoso e poeirento, nas<br />

proximidades dos campos de refugiados.<br />

Ali, os moradores acumulam-se em cubículos<br />

de familiares ou nos currais das ovelhas<br />

(um mistério, a alimentação dos rebanhos,<br />

a pastarem nada entre as pedras...),<br />

para alugar quartos e casas a jornalistas<br />

internacionais. Começam por pedir<br />

500 dólares por noite, com garantia de<br />

aluguer por dois meses. E há quem pague.<br />

Este jackpot justifica-se, porque o lugarejo<br />

tem uma posição estratégica antes da<br />

fronteira com o Iraque. E está a apenas 30<br />

quilómetros dos campos de refugiados<br />

(que as autoridades dizem estar prontos<br />

mas que, conforme confirmámos com os<br />

próprios olhos, só um milagre fará com<br />

que fiquem capazes de receber, a tempo,<br />

um único fugido da guerra). Em Ruwaished<br />

consegue-se, numa ou outra loja, uma<br />

ligação à Internet, um comerciante tem<br />

um computador para alugar, há rede de<br />

telemóvel, e o vento não levanta tanta<br />

areia. Este é um lugar onde se pode saborear<br />

um belo naco de carneiro, enrolado<br />

em pão árabe, mas onde o artista cozi-<br />

GUERRA DO GOLFO II<br />

lAL-RUWEISHID, A CERCA DE 50 KM DA FRONTEIRA COM O IRAQUE<br />

Fugiram de casa nas traseiras de um camião. Decidiram procurar a paz no país vizinho<br />

lPREPARATIVOS<br />

No campo de refugiados de Al-Ruweishid espera-se a chegada de milhares de iraquianos<br />

nheiro Mohammad também desenrasca<br />

um hambúrguer com todos. Evidentemente<br />

que o carneiro é muito melhor.<br />

A fronteira<br />

Poucas horas antes do ataque, a fronteira<br />

com o Iraque é uma desilusão. Dois arcos<br />

de betão armado, uma área militar<br />

VISÃO 21 de Março de 2003 33<br />

LEFTERIS PITARAKIS/AP KHALIL MAZRAWI/AP<br />


▲<br />

GUERRA DO GOLFO II<br />

CAMPO<br />

DE REFUGIADOS<br />

Os iraquianos<br />

vão juntar-se<br />

a nacionais<br />

de outros estados<br />

que aqui<br />

encontram abrigo<br />

A FRONTEIRA DO INFERNO<br />

e alfandegária, depois o posto iraquiano,<br />

que não conseguimos ver. Do lado de lá<br />

da fronteira, o mesmo deserto, os mesmos<br />

calhaus e a mesma areia. Continuará a ser<br />

uma desilusão, nos dias imediatos ao fim<br />

do ultimato. Bagdad está a cerca de 500<br />

quilómetros. As bombas, por enquanto,<br />

também. Os autotanques iraquianos continuam<br />

a circular. Não há aparato militar,<br />

nem hordas de refugiados a forçar a entrada<br />

na Jordânia. Aliás, não podem, por<br />

enquanto. As autoridades jordanas aguardam<br />

um momento mais dramático da<br />

guerra, um êxodo digno desse nome, para<br />

começarem a receber iraquianos sem visto<br />

no passaporte. E esses, com plafond<br />

marcado, 5 mil, numa primeira fase, têm<br />

destino certo para um dos campos de Ruwaished.<br />

No segundo campo, destinado a<br />

nacionais não iraquianos, estão já alojadas<br />

algumas dezenas de pessoas, em trânsito<br />

para os países de origem.<br />

No entanto, sabemos que é ali que muitas<br />

coisas se poderão passar. Será por ali<br />

que se exercerá a pressão dos refugiados.<br />

Será por ali que os jornalistas, já aos milhares,<br />

na Jordânia, têm esperança de entrar<br />

no Iraque. Aquela é, para uns e para<br />

outros, a fronteira da esperança<br />

Mas será, seguramente, a fronteira do<br />

inferno. Não apenas pelo factor da guerra,<br />

mas também pelo pesadelo do refúgio.<br />

O campo «iraquiano» de Ruwaished está<br />

instalado no pior sítio que atravessámos,<br />

em toda a longa viagem rumo à fronteira<br />

iraquiana. Uma paisagem e um ambiente<br />

a fazer lembrar a versão do planeta Marte<br />

num conhecido filme de Schwarzenegger.<br />

O vento gelado faz redemoinhos e le-<br />

vanta nuvens de pó que entram pelo cabelo,<br />

pelas roupas, pelos olhos. E é ali que<br />

desamparados trabalhadores, como Ahmed,<br />

30 anos, Mossud, 25 e Edah, 22, têm<br />

trabalhado, dia e noite, a montar latrinas,<br />

a instalar tubos e a escavar uma enorme<br />

fossa para onde será encaminhada a improvisada<br />

rede de esgotos. Pior: é ali que<br />

terão de sobreviver, primeiro ao frio, depois<br />

sob sol inclemente, cinco a dez mil<br />

desgraçados fugidos às bombas, aos tiros<br />

e à fome. Olha-se para o campo e pensase<br />

que melhor seria arriscar a bomba.<br />

Modernas, as cabinas de zinco, equipadas<br />

com latrina, autoclismo, lavatório e reservatório<br />

de água, parecem ter condições.<br />

Mas, entre a bruma das areias, parecem,<br />

ao longe, tristes e imóveis marcianos no<br />

seu planeta inóspito. Na ausência de qualquer<br />

responsável do Crescente Vermelho<br />

ou de qualquer outra autoridade, interpelo<br />

os homens sobre o andamento dos trabalhos.<br />

Mossud, o que melhor arranha o inglês,<br />

desafia-me a experimentar uma latrina.<br />

Faço-lhe notar que a fossa ainda não<br />

está tapada. Ri-se muito. Acredita que está<br />

a trabalhar para o boneco já que, na sua<br />

opinião, não chegarão refugiados nenhuns.<br />

Pergunto-lhe pelas tendas. Diz que<br />

tendas, tendas, só mesmo as da polícia, lá<br />

em cima. E aponta para uma dobra de terreno<br />

mais elevada, a cerca de 40 metros.<br />

Apesar das tentativas, a polícia, hoje, não<br />

está para conversas com jornalistas.<br />

Escudo humano à vista<br />

A fronteira do inferno é, assim, neste<br />

mesmo momento em que as bombas continuam<br />

a fustigar alvos iraquianos, uma<br />

estação perdida no espaço e no tempo.<br />

Um apeadeiro do faroeste onde, dentro<br />

em breve, a cidade dos refugiados começará<br />

a crescer e onde a oportunidade fará<br />

medrar a vizinha e medonha Ruwaished<br />

que, embora conte apenas com uma rua,<br />

é já uma metrópole internacional onde se<br />

pode ouvir uma babilónia de línguas. Mas<br />

é aqui, nos confins leste da Jordânia, que<br />

se jogará a vida e a morte de alguns milhares<br />

de inocentes.<br />

Vejamos se é ou não assim: em Amã,<br />

quinta-feira, enquanto as televisões internacionais<br />

mostram o evoluir da guerra e<br />

dos bombardeamentos, as Nações Unidas<br />

e várias ONGs associadas apresentam o<br />

ponto da situação. A UNICEF lembra<br />

que as crianças serão sempre as maiores<br />

vítimas. O representante do PAM (Programa<br />

Alimentar Mundial) estima que<br />

cerca de 2 milhões de pessoas vão precisar<br />

de assistência, no decurso das próximas<br />

duas semanas (para o que será necessário<br />

um reforço de 1 bilião de dólares) e<br />

pede aos países vizinhos (Jordânia, Irão,<br />

Síria, Turquia) que abram as fronteiras<br />

por razões humanitárias. Outra responsável<br />

da ONU lembra que assistiremos a um<br />

combate terrível contra a cólera, o tifo e a<br />

desinteria e chama a atenção para o facto<br />

de 600 mil iraquinaos sofrerem de diabetes.<br />

Olha-se para os campos jordanos de<br />

acolhimento, em <strong>especial</strong> para a falta de<br />

cooperação das próprias condições da natureza<br />

e pergunta-se «como?»<br />

O tempo urge. A guerra começou e está<br />

para lavar e durar. Não deixa de ser irónico<br />

deparar, no lobby de um hotel, em<br />

Amã, com um britânico, exibindo um cartaz<br />

que diz: «Disponível para dar entrevistas.»<br />

Trata-se, segundo se lê no mesmo<br />

cartaz, de um «escudo humano». Mas o<br />

que é que ele ainda estará aqui a fazer? ■<br />

34 VISÃO 21 de Março de 2003<br />

LEFTERIS PITARAKIS/AP


ALI JAREKJI/REUTERS<br />

CONSEQUÊNCIAS<br />

Quando o vizinho<br />

é a guerra<br />

Reservas de trigo, açúcar, arroz e combustível a postos<br />

para enfrentar o conflito. Mas temem-se manifestações<br />

violentas e uma malfeitoria israelita...<br />

FILIPE LUÍS • ENVIADO ESPECIAL<br />

Jalaba Hussein (Montanha de Hussein)<br />

é uma das melhores zonas comerciais<br />

de Amã. O espectáculo vazio<br />

das suas lojas e centros comerciais é<br />

bem um retrato da ansiedade dos jordanos,<br />

agora que rebentou a guerra no vizinho Iraque.<br />

Os jordanos não compram. E não<br />

compram há meses. A guerra acena-lhes<br />

com os fantasmas da inflação, do desemprego<br />

e da miséria. Os cidadãos preocupam-se<br />

e as autoridades, entaladas entre o discreto<br />

apoio que quase se vêem obrigadas a dar<br />

aos americanos e a opinião pública hostil à<br />

guerra e a Israel, desejam que o pesadelo<br />

passe depressa. Na própria véspera de expirar<br />

o ultimato, quarta-feira, 19, o conselho<br />

de ministros do Governo jordano debateu a<br />

crise e anunciou medidas, já postas em prática.<br />

Os ministros do Interior, Negócios Estrangeiros,<br />

dos Recursos Aquáticos, da Saúde,<br />

dos Recursos Minerais e da Energia e<br />

dos Assuntos Islâmicos apresentaram planos<br />

de contingência. Mohammad Adwan,<br />

ministro da Informação, disse aos jornalistas<br />

que não há razões para preocupação relativamente<br />

aos fornecimentos de produtos<br />

essenciais, alimentares e energéticos. A Jordânia<br />

possui 200 mil toneladas de reserva<br />

de trigo, o que daria para alimentar o país<br />

durante quatro meses. As reservas de açúcar,<br />

arroz e óleo vegetal dão para seis meses.<br />

As refinarias têm 270 mil toneladas de petróleo.<br />

Precavido para a vizinhança da guerra<br />

(a Jordânia está muito dependente do<br />

crude iraquiano) o Governo passou os últimos<br />

dois meses a duplicar as reservas. Mesmo<br />

assim, em caso de interrupção de fornecimento,<br />

a Jordânia só terá petróleo para<br />

dois meses.<br />

Mas todas estas contas, bem como a linguagem<br />

utilizada, nos últimos dias, pelas<br />

autoridades, são evidências da proximidade<br />

da guerra. Por exemplo, o Governo<br />

acaba de apelar à população que colabore<br />

com as autoridades em quaisquer medidas<br />

ou circunstâncias excepcionais que, decorrentes<br />

do conflito, venham a tornar-se necessárias<br />

ou a verificar-se.<br />

O factor israelita<br />

Com metade da população de origem palestiniana,<br />

a Jordânia é um dos países onde<br />

se teme, caso a guerra dure muito tempo, a<br />

ocorrência de manifestações populares vio-<br />

GUERRA DO GUERRA GOLFO DOII<br />

MUÇULMANOS<br />

Os jordanos<br />

receiam que<br />

os israelitas<br />

aproveitem para<br />

expulsar massas<br />

de populações<br />

palestinianas para<br />

a Jordânia<br />

lentas, contra os EUA e contra Israel. Sobretudo,<br />

os jordanos temem que os israelitas<br />

aproveitem a onda para expulsar massas<br />

de populações palestinianas para a Jordânia.<br />

Uma hipótese de que o homem da rua<br />

fala constantemente, e que as autoridades<br />

levam muito a sério. Analistas garantem<br />

que, enquanto durar a guerra, ocorrerão distúrbios<br />

em campos de refugiados palestinianos,<br />

em áreas urbanas muito povoadas e<br />

nas zonas mais pobres do Sul do país. Cauteloso,<br />

o líder islamita Abdul Latif Arabiyat<br />

afirmou esta semana que «embora seja nosso<br />

direito rejeitar esta guerra o mais firmemente<br />

possível, fá-lo-emos sem nunca desrespeitar<br />

a lei, como sempre fizemos».<br />

A maior manifestação antiguerra, realizada<br />

até agora em Amã, não terá ultrapassado as<br />

cinco mil pessoas. Continuará a ser assim?<br />

Entretanto, o Governo viu-se obrigado<br />

a desmentir rumores que davam como<br />

certa a presença de uma unidade israelita<br />

a operar, com os americanos, na fronteira<br />

jordano-iraquiana, onde se encontram baterias<br />

antimíssil, para interceptar possíveis<br />

projécteis lançados de solo iraquiano contra<br />

Israel. O Executivo refere, quase todos<br />

os dias, que a Jordânia não participa na<br />

guerra nem servirá de base para qualquer<br />

agressão contra o Iraque.<br />

Embora não participe na guerra, a Jordânia<br />

sabe que estará entre os que vão sofrer<br />

as suas consequências. A discreta,<br />

contida, ajuda aos americanos na fronteira<br />

é um serviço mínimo que garante a sobrevivência<br />

ao pequeno reino hachemita no<br />

xadrez do pós-guerra. Mas o espinho de<br />

Israel cravado no seu flanco oeste permanece<br />

sem solução à vista, qualquer que<br />

seja a duração e o resultado prático do<br />

conflito. Até quando? ■<br />

VISÃO 21 de Março de 2003 35


REUTERS/PETER MACDIARMID AP/AIR FORCE<br />

GUERRA DO GOLFO II O arsenal<br />

ARMAS<br />

Guerra a partir dos céus<br />

O primeiro capítulo da ofensiva contra o Iraque começa no ar: com os clássicos B-52<br />

e F-16 a aliarem-se, desta vez, às novas «bombas inteligentes»<br />

B-1B<br />

De velocidade supersónica (1 500 km/h) e de alcance intercontinental, está equipado com armas<br />

convencionais (incluindo de fragmentação) e de precisão (como a nova JDAM)<br />

B-52<br />

De longo alcance, velocidade supersónica<br />

e multimissões, constitui o peso-pesado<br />

dos bombardeiros americanos, estando equipado<br />

com todo o tipo de armas e em maior quantidade<br />

do que os anteriores<br />

B-2 STEALTH<br />

Armado com dispositivos nucleares, convencionais<br />

e de precisão, a sua característica principal é no entanto<br />

o ser indetectável aos radares inimigos<br />

REUTERS/HYUNGWON KANG<br />

F-117A NIGHTHAWK<br />

Caça de ataque puro e duro. Por conseguir<br />

escapar aos radares adversários recebeu<br />

o nome de invisível, o que lhe permite<br />

acções-relâmpago de grande eficácia. Pode<br />

ser abastecido em pleno voo e pode<br />

transportar todo o tipo de armas para<br />

os mais variados tipos de ataque<br />

36 VISÃO 20 de Março de 2003<br />

AP/HERNANDEZ


REUTERS/VICENZO PINTO<br />

AP/USAF<br />

F-16<br />

Para muitos o melhor caça de sempre, devido à sua elevada versatilidade de manobras<br />

e grande eficácia quer no combate aéreo quer no ataque a alvos terrestres. Está equipado<br />

com um canhão de 20 mm e até nove mísseis de cruzeiro. Dispõe ainda de um sistema<br />

electrónico de contramedidas para «iludir» a trajectória de mísseis inimigos<br />

EA-6B<br />

PROWLER<br />

Pode dizer-se que<br />

representa os olhos<br />

e os ouvidos da Força<br />

Aérea americana.<br />

Este avião consegue<br />

captar todo o tipo<br />

de comunicação e decifrar<br />

qualquer código. Está<br />

armado com o ALQ-99<br />

e também com um<br />

avançado sistema<br />

de anti-radiação dos<br />

mísseis inimigos (HARM)<br />

AC-130<br />

Além do apoio aéreo em combate, cumpre também com <strong>especial</strong> eficácia a vigilância<br />

do espaço aéreo, e, para lá dos seus oito canhões, dispõe de um sofisticado equipamento<br />

de contramedidas, de onde se destaca um sistema de bloqueio à navegação<br />

do avião inimigo (ALQ-99)<br />

GUERRA DO GOLFO II<br />

F15-EAGLE<br />

Considerado o ícone da aviação táctica dos EUA,<br />

atinge os 2 500 Km/h e tem uma autonomia<br />

de voo superior a 5 000 km. Está armado com<br />

um canhão de 20 mm e pode comportar até 120<br />

mísseis de cruzeiro Sparrow e SideWinder<br />

A-10 THUNDERBOLT II<br />

Tem sobretudo a função de dar apoio aéreo<br />

a operações terrestres, sendo <strong>especial</strong>mente<br />

eficaz na destruição de blindados inimigos.<br />

Dispõe de um canhão de 30 mm e de variada<br />

artilharia como: mísseis de cruzeiro e de precisão<br />

(guiados por laser), bombas de pequeno<br />

e médio impacto e contramedidas<br />

VISÃO 21 de Março de 2003 37<br />

EPA/RADOSTA<br />

REUTERS/AIR FORCE AP/VICENT PARKER


REUTERS/RAYTHEON<br />

GUERRA DO GOLFO II O arsenal<br />

TOMAHAWK<br />

Destinado a alvos terrestres, pode ser disparado<br />

a quase 2 000 km de distância. Composto<br />

de ogivas de explosivos ou nucleares,<br />

o facto de voar muito abaixo da linha de radar<br />

e de libertar pouco calor (o que dificulta<br />

a sua intercepção) faz com que continue a<br />

merecer as preferências dos americanos<br />

AGM-142<br />

De características semelhantes ao AGM-142,<br />

detém um maior índice de precisão<br />

para alvos mais específicos. Alcance: 85 km<br />

AP/DANIEL SMITH<br />

AIM-7<br />

SPARROW<br />

Míssil ar-ar guiado<br />

por radar, com vista<br />

à intercepção de mísseis<br />

inimigos.<br />

Alcance: 22 a 40 km<br />

STORM SHADOW<br />

É o último grito em mísseis de cruzeiro<br />

«inteligentes». Guiado por GPS,<br />

é particularmente eficaz na destruição<br />

de edifícios fortificados. Alcance: 250 km<br />

AP<br />

MOAB (MASSIVE ORDINANCE AIR BUST)<br />

Considerada a «mãe de todas as bombas», é talvez o engenho que mais se aproxima<br />

de um dispositivo nuclear. Guiada por cinco satélites, é composta por uma mistura de nitrato<br />

de amónio e alumínio em pó. Quando rebenta, cria uma onda de choque de centenas<br />

de metros, à qual nada sobrevive.<br />

38 VISÃO 21 de Março de 2003<br />

AP/STEVE HELBER AP/MAYHEW JR.


AGM-45<br />

MAVERICK<br />

Míssil para alvos<br />

de superficíe, guiado por<br />

infravermelhos. Alcance:<br />

informação classificada<br />

AIM-9<br />

SIDEWINDER<br />

Míssil guiado por calor,<br />

é considerado muito eficaz<br />

na neutralização de aviões.<br />

Alcance: 17 km<br />

JDAM (JOIN DIRECT<br />

AIR MUNITION)<br />

Trata-se sobretudo de um kit de orientação<br />

de bomba, através de um satélite GPS.<br />

Tem um alcance de 15 milhas<br />

E-BOMB<br />

É no fundo um gerador de impulsos<br />

electromagnéticos que avaria todos<br />

os circuitos electrónicos de todas<br />

as estruturas de defesa adversárias, o que<br />

as deixa quase inoperacionais. A importância<br />

deste novo engenho para o Pentágono<br />

é tal, que os seus componentes foram<br />

mantidos em segredo.<br />

HTI J-1000<br />

Bomba incendiária de alta temperatura<br />

(1000 graus centígrados), destina-se<br />

a destruir eventuais arsenais de agentes<br />

químicos e bacteriológicos<br />

As armas e o número de homens com que o regime de Saddam Hussein<br />

conta para fazer frente ao ataque norte-americano e britânico<br />

EXÉRCITO Efectivo total mais de 350 mil elementos<br />

Exército regular (divisões) 17<br />

Guarda Republicana (divisões) 6<br />

Militares 60 a 70 mil<br />

Guarda Republicana Especial<br />

(brigadas) – <strong>especial</strong>izada<br />

em guerra urbana 4<br />

Militares 20 a 25 mil<br />

Organização de Segurança Especial (militares) 1 500<br />

Principais tanques de guerra 2 200 a 2 600<br />

Tanques T72 500 a 700<br />

Tanques ligeiros (BMP-2, BDRM-2) 1 800<br />

Veículos blindados de transporte de pessoal 1 800<br />

Viaturas autopropulsadas de artilharia 200<br />

Obuses rebocados 1 500 a 1 900<br />

MiG-21<br />

FORÇA AÉREA Efectivo 20 mil<br />

Aviões de intercepção e de ataque ao solo 200 a 300<br />

Helicópteros de combate 100<br />

SA-6<br />

As bateria de mísseis podem ser<br />

recolocadas em nova posição de fogo<br />

em menos de 15 minutos<br />

Ogiva: 59 quilos<br />

Alcance: 25 km<br />

SA-7<br />

Missil anti-aéreo<br />

de tiro simples<br />

Alcance: 3,5 km<br />

Mísseis<br />

Mísseis terra-ar: SA-2, SA-3, SA-6 400<br />

Mísseis terra-terra:<br />

Al-Samoud possivelmente 50 a 60<br />

Plataformas e mísseis SCUD: 2 a 20<br />

Fontes: International Institute for Strategic Studies, Jane s, Periscope, Center for Strategic Studies, GlobalSecurity.org<br />

GUERRA DO GOLFO II<br />

SCUD-B<br />

Ogiva: uma tonelada<br />

Alcance: 480 km<br />

Tanque M-72<br />

DEFESA ANTI-AÉREA Efectivo 17 mil<br />

Mísseis terra-ar portáteis 1 000<br />

Armas anti-aéreas 6 mil<br />

SA-2<br />

Sistema duplo de mísseis<br />

Ogiva: 195 quilos<br />

Alcance: 30 km<br />

Altitude: 25 mil metros<br />

VISÃO 21 de Março de 2003 39<br />

VISÃO/GRAPHIC NEWS


GUERRA DO GOLFO II Avalancha de barbárie<br />

MESOPOTÂMIA<br />

O berço da<br />

civilização<br />

em perigo<br />

Os bombardeamentos<br />

anglo-americanos<br />

da nova Guerra do Golfo<br />

poderão destruir locais<br />

arqueológicos dos mais<br />

importantes do mundo<br />

HOLLAND COTTER<br />

OIraque tem centenas de milhares<br />

de sítios arqueológicos. Destes,<br />

foram identificados cerca de<br />

10 mil, mas só uma pequena parte<br />

foi explorada. Qualquer deles pode alterar<br />

o que sabemos da história humana,<br />

como aconteceu com as escavações já<br />

efectuadas. Algumas revelaram as primeiras<br />

aldeias e cidades conhecidas e os primeiros<br />

exemplos de escrita.<br />

O país é igualmente um dos principais<br />

centros de arte e cultura do Islão. Alberga<br />

alguns dos primeiros exemplos sobreviventes<br />

de arquitectura islâmica – a Grande<br />

Mesquita de Samarra e o palácio de<br />

Ukhaidar – e é também uma atracção para<br />

a peregrinação religiosa. Os túmulos do<br />

imã Ali e do seu filho Hussein, fundadores<br />

do ramo xiita do Islão, em Najaf e Carbala,<br />

são dos mais venerados do mundo<br />

muçulmano.<br />

Durante a Guerra do Golfo, em 1991,<br />

pelo menos um importante monumento<br />

arqueológico, o colossal zigurate de Ur, foi<br />

bombardeado. As explosões danificaram<br />

estruturas frágeis como a grande abóbada<br />

de Ctesífona e a universidade do século<br />

XIII denominada Mustansíria, em Bagdad.<br />

Vejamos alguns dos sítios arqueológicos<br />

que correm maior risco com a guerra:<br />

• UR, que floresceu no terceiro milénio<br />

antes de Cristo e é identificada na Bíblia<br />

SUMÉRIA<br />

Cabeça de leão, de<br />

prata, e fundações<br />

de um edifício, que<br />

datam de 2500 a.C.<br />

FOTOS: THE NEW YORK TIMES/JOHN MALCOLM RUSSELL<br />

como terra natal de Abraão. Nos anos 20<br />

e 30 do século XX, uma equipa anglo-<br />

-americana escavou um cemitério real em<br />

que eram sepultados os membros de uma<br />

poderosa elite juntamente com os criados<br />

e peças requintadamente lavradas. Mas a<br />

característica mais espectacular de Ur é o<br />

seu imenso zigurate, ou torre com rampas,<br />

a mais preservada do Iraque. Embora<br />

as escavações estejam mais avançadas<br />

aqui do que em qualquer outro sítio do<br />

Iraque, estão longe de estar concluídas,<br />

ainda com muitas camadas por descobrir.<br />

• BABILÓNIA (1700-600 a.C.) é um fascínio<br />

histórico. Construída nas margens do Eufrates,<br />

foi a capital de Hamurábi, Nabucodonozor<br />

e Alexandre Magno. Foram ali<br />

descobertos os vestígios monumentais da<br />

Porta Ishtar, e procede-se a tentativas de<br />

identificação dos locais da Torre de Babel<br />

e dos Jardins Suspensos. Como local de<br />

cativeiro dos hebreus bíblicos, a cidade é<br />

um símbolo recorrente da narrativa judaico-cristã.<br />

O sítio de Nipur, um importante<br />

centro religioso da antiga Babilónia dedicado<br />

ao deus Enlil, também se situa nesta<br />

região do Iraque, uns 160 km a sul de<br />

Babilónia. Foi ali descoberta uma ampla<br />

sequência de olaria pré-islâmica.<br />

• NÍNIVE, no Norte do país, foi a cidade imperial<br />

dos reis assírios Senequeribe (704-<br />

-681 a.C.) e Assurbanípal (668-627 a.C.).<br />

Foram ali encontrados palácios reais com<br />

magníficas esculturas, bem como mais de<br />

20 mil placas cuneiformes da biblioteca de<br />

Assurbanípal. O profeta bíblico Jonas pregou<br />

em Nínive. Depois da Guerra do Golfo,<br />

as esculturas dos palácios escavados foram<br />

saqueadas. Nínive consta da lista dos<br />

cem sítios de valor artístico-cultural mais<br />

ameaçados elaborada pelo Observatório<br />

dos Monumentos do Mundo.<br />

• CTESÍFONA (100 a.C. a 900 d.C.) é uma das<br />

grandes maravilhas arquitectónicas. O salão<br />

de audiências é apenas uma cobertura,<br />

mas a sua graciosa abóbada, com 36 metros<br />

de altura e 25 de vão, está intacta. Pensa-se<br />

que as fissuras ocorridas em 1991 foram<br />

reparadas por arqueólogos iraquianos,<br />

mas os abalos mais violentos das instalações<br />

militares próximas podem destruí-la.<br />

Embora permaneçam enterrados quantidades<br />

desconhecidas de documentação<br />

do Iraque antigo, a arte islâmica está quase<br />

toda a descoberto, e abundam os monumentos<br />

com profundo significado cultural<br />

e religioso.<br />

• BAGDAD é um desses locais. Outrora lendária<br />

pela sua riqueza, saber e beleza (muitas<br />

dos contos d’As Mil e Uma Noites passam-se<br />

ali), foi por diversas vezes devastada.<br />

E embora nada reste da sua planta circular<br />

original, sobrevivem edifícios soberbos<br />

do período medieval tardio, como túmulos,<br />

mesquitas, minaretes, a universidade<br />

e a venerada mesquita e altar de Cadumain.<br />

Bagdad alberga igualmente o maior<br />

museu arqueológico do país, com a melhor<br />

colecção de arte suméria, babilónica e<br />

assíria existente no mundo.<br />

• SAMARRA, que foi capital dinástica por<br />

breve período, possui edifícios islâmicos<br />

extraordinariamente precoces. As ruínas<br />

da Grande Mesquita de Mutawaki, do século<br />

IX, têm intacto o seu minarete em es-<br />

40 VISÃO 21 de Março de 2003


piral, um ícone da arte islâmica. A cidade<br />

alberga ainda um dos mais antigos túmulos<br />

islâmicos conhecidos, um antigo palácio<br />

califal e a única ponte de tijolo do Iraque,<br />

datada de 1128.<br />

• MOSUL, a terceira maior cidade do Iraque<br />

(depois de Bagdad e Baçorá), no Norte,<br />

junto do Tigre, está pouco estudada pelos<br />

investigadores ocidentais. A sua rica<br />

arquitectura inclui o minarete inclinado<br />

da agora destruída mesquita de Nur Ad-<br />

-Din. A cidade também atrai peregrinos<br />

aos túmulos de personalidades muçulmanas<br />

e reúne alguns dos primeiros mosteiros<br />

cristãos, datados do século IV. O seu<br />

museu alberga importantes antiguidades<br />

assírias das escavações realizadas em Nínive,<br />

Corsabade e Assur.<br />

Dos muitos monumentos islâmicos fora<br />

das cidades, um dos mais antigos é o<br />

palácio fortificado de Ukaidar, do século<br />

VIII. Ninguém sabe por que razão fica<br />

num lugar tão remoto, mas as terras circundantes<br />

eram provavelmente irrigadas<br />

para culturas e jardins, e o palácio parece<br />

ter sido uma cidade em miniatura que se<br />

sustentava a si própria. Arquitectonicamente,<br />

é também um exemplo da tendência<br />

multicultural que sempre definiu a cultura<br />

islâmica, neste caso juntando influências<br />

persas, sírias e bizantinas.<br />

«Se qualquer dos altares sagrados xiitas<br />

de Carbala, Najaf e Cadumain forem atingidos,<br />

só poderemos esperar uma reacção<br />

indignada de todos os muçulmanos», disse<br />

Zainab Bahrani, que nasceu no Iraque<br />

e ensina arte islâmica na Universidade de<br />

Columbia. «Seria como bombardear a catedral<br />

de S. Pedro, em Roma». ■<br />

© The New York Times/VISÃO<br />

ZIGURATES<br />

As ruínas do templo<br />

de Enlil e a grande<br />

mesquita<br />

de Mutavaki,<br />

em Samarra,<br />

são apenas<br />

dois dos locais<br />

ameaçados<br />

Berço da civilização – de Babilónia a Bagdad<br />

Zigurate de Ur<br />

Templo piramidal sumério<br />

Mosul<br />

Museu de História<br />

Assíria e Islâmica<br />

Código de<br />

Hamurábi<br />

O rei assírio Assurbanipal<br />

(em cima) fundou a grande<br />

biblioteca de Nineve<br />

Bagdad<br />

Museu de Antiguidades<br />

Palácios e Mesquitas<br />

Babilónia<br />

Samarra<br />

Antiga capital<br />

árabe.<br />

Século XIX<br />

Sítios<br />

arqueológicos<br />

assírios<br />

Nimrud Assur<br />

Kerbala<br />

Local sagrado<br />

Uruk<br />

Eridu<br />

Escrita cuneiforme<br />

A mais antiga forma de escrita,<br />

criada pelos sumérios<br />

cerca de 3000 a.C.<br />

Ur<br />

Baçorá<br />

Considerada o local<br />

do Jardim do Éden<br />

GUERRA DO GOLFO II<br />

3000 AC 2000 AC 1000 AC 1000 DC 1918<br />

Domínio sumério<br />

babilónico/assírio parto árabe<br />

Neobabilónico<br />

persa<br />

grego<br />

mongol<br />

A partir de 7000 a.C. Camponeses<br />

do Norte migram para sul, fixando-se<br />

na Mesopotâmia – terra entre-os-rios<br />

Ctesífona: Antigo<br />

viaduto de tijolo<br />

Nipur<br />

Centro<br />

religioso<br />

sumério<br />

100 km<br />

otomano<br />

Período sumério Desenvolvem-se<br />

as artes, a agricultura e a ciência. Surgem<br />

cidades-estado, como Eridu, Uruk e Ur<br />

– considerada a mais antiga cidade do mundo<br />

Babilónico O rei Hamurábi congrega<br />

as cidades-estado em redor de Babilónia<br />

em 1750 a.C. O código de Hamurábi<br />

é o antecessor do actual sistema jurídico<br />

Assírio Império poderoso, a norte, invade<br />

e destrói Babilónia em 689 a.C.<br />

Neobabilónico Nabucodonozor II reconstrói<br />

a cidade. A sua Torre de Babel e os Jardins<br />

Suspensos contribuem para fazer de Babilónia<br />

a mais esplêndida cidade do mundo antigo<br />

Persa Ciro o Grande conquista<br />

a Mesopotâmia em 539 a.C. – região que se<br />

torna a província mais rica do império persa<br />

Grego Alexandre o Grande conquista a<br />

Mesopotâmia em 331 a.C. – as ideias helénicas<br />

conjugam-se com as tradições locais<br />

Partiano/Sassânico Novas tribos<br />

persas derrotam os gregos por volta<br />

de 130 a.C. Constroem uma nova<br />

e esplêndida capital, Ctesífona<br />

Árabe Os árabes muçulmanos derrotam<br />

os persas em 637. Bagdad é proclamada<br />

capital, em 762, e torna-se o centro intelectual<br />

durante a era de ouro do Islão<br />

Mongol Hordas mongóis destroem Bagdad,<br />

em 1258, massacrando o califa e os cidadãos.<br />

A economia fica de rastos, durante séculos<br />

Otomano Os turcos conquistam a região,<br />

em 153. A ocupação perdura até ao colapso<br />

do império Otomano, em 1918<br />

VISÃO 21 de Março de 2003 41<br />

©GN/VISÃO


GUERRA DO GOLFO II O comandante<br />

TOMMY FRANKS<br />

Homem de cortar<br />

a direito<br />

O comandante das forças invasoras odeia a ribalta,<br />

mas é obrigado, desta vez, a ocupar o centro do palco<br />

na guerra contra o Iraque<br />

Há generais para todos os gostos –<br />

barulhentos e impertinentes, cerebrais<br />

e livrescos, e, ocasionalmente,<br />

um pouco irritantes. Tommy<br />

Ray Franks não é nada disso: é expedito,<br />

divertido, muito reservado, ferozmente trabalhador<br />

e, todos o dizem, um excelente líder<br />

de soldados, particularmente tropas recrutadas.<br />

É também, pelo menos em público,<br />

o tipo forte e calado, o bom soldado<br />

que evita a ribalta em contraste marcado<br />

com alguns dos seus antecessores no Comando<br />

Central. Tudo isto faz de Franks, 57<br />

anos, o homem ideal como general de mão<br />

da segunda Administração Bush. O almirante<br />

reformado Archie Clemins, que comandou<br />

a Esquadra do Pacífico quando<br />

Franks prestou serviço na Coreia durante<br />

seis anos, referiu que «muitos generais têm<br />

uma personalidade para os meios de comunicação,<br />

e depois têm a sua personalidade<br />

real. Com Tommy, o que vemos é o<br />

que temos».<br />

Agora, quando os EUA concluem uma<br />

guerra no Afeganistão e lançam uma segunda<br />

no Iraque, é cada vez mais claro que<br />

Franks não é a metade melhor de Donald<br />

Rumsfeld, é certamente a sua outra metade,<br />

o seu alter ego, o soldado do soldado<br />

que pode influenciar o supercivil e lembrar-lhe<br />

delicadamente que as batalhas se<br />

ganham não com ostenta-<br />

ção, mas geralmente com<br />

números. Se o Afeganistão<br />

tivesse sido travado à moda<br />

de Rumsfeld, podíamos ainda<br />

ter comandos montados<br />

em mulas à procura dos talibãs.<br />

Se a guerra tivesse sido<br />

travada à moda de<br />

Franks, talvez se tivesse<br />

apanhado Usama bin Laden<br />

há muito tempo – mas<br />

só pondo, previamente,<br />

cem mil efectivos em posição.<br />

É um pouco exagerado<br />

dizer que Franks e Rummy<br />

são como a tartaruga e a le-<br />

VIDA DE GENERAL<br />

– Acorda todos os dias às<br />

4 da manhã, e faz ginástica<br />

durante 30 minutos<br />

– É fã de música country<br />

(Garth Brooks e Travis Tritt)<br />

e de canções pop dos anos 50<br />

– Foi três vezes ferido<br />

em combate<br />

– Quando se casou, há 35<br />

anos, prometeu à mulher<br />

Cathy que abandonaria<br />

o exército dois anos depois.<br />

Mas nunca despiu o uniforme<br />

bre: um está sempre com pressa; o outro<br />

leva o seu tempo. Mas é justo dizer que as<br />

capacidades e instintos de cada um compensam<br />

as fraquezas do outro.<br />

Quartel-general<br />

O Comando Central dos EUA (Centcom)<br />

é uma das organizações mais estranhas<br />

das Forças Armadas americanas.<br />

Não tem tropas a que chame suas, apenas<br />

a responsabilidade por um imenso arco<br />

que vai do Corno de África ao Paquistão,<br />

que alberga algumas das zonas mais perigosas<br />

do mundo. A tarefa de Franks – assegurada<br />

no passado por homens como<br />

Norman Schwarzkopf e Anthony Zinni –<br />

é manter contacto com os dirigentes civis<br />

de cada um dos 25 países da região no caso<br />

de os EUA precisarem de entrar a curto<br />

prazo para limpar as coisas. O trabalho<br />

do Centcom é simultaneamente estratégico<br />

(há que estar de boas relações com o<br />

general Pervez Musharraf do Paquistão) e<br />

tremendamente pormenorizado (há que<br />

assegurar que um quarto de milhão de<br />

efectivos têm o suficiente de tudo, desde<br />

balas tracejantes a lâminas de barba descartáveis).<br />

A partir de um enorme quartel-<br />

-general em Tampa, na Florida, que parece<br />

um grande hipermercado sem os<br />

anúncios luminosos, Franks e um quadro<br />

de 3 200 militares co-<br />

mandam a guerra. Agora,<br />

estão todos estacionados<br />

no Qatar, a comandar as<br />

operações.<br />

Planos revistos<br />

Há mais de um ano,<br />

quando o Presidente<br />

George W. Bush e Rumsfeld<br />

pediram pela primeira<br />

vez a Franks um plano para<br />

derrubar Saddam, este<br />

disse que precisava de cinco<br />

divisões e cinco porta-<br />

-aviões para fazer o trabalho.<br />

É sabido que o cons-<br />

METÓDICO<br />

Tommy Franks passou<br />

um ano a preparar<br />

os planos desta guerra<br />

ternado Rumsfeld devolveu o plano duas<br />

ou três vezes, pedindo ao general para reduzir<br />

as forças a metade, ou mesmo mais. Seguindo<br />

a doutrina de Powell que todos os<br />

generais da era Vietname subscrevem,<br />

Franks queria uma força esmagadora para<br />

garantir que a América se imporia. Rumsfeld<br />

pretendia que ele tornasse isso mais rápido<br />

e ligeiro, em parte porque não desejava<br />

esperar os quatro ou cinco meses necessários<br />

para aprontar todas essas tropas.<br />

Agora, com a guerra já iniciada, o plano parece<br />

notavelmente similar ao que Franks<br />

propôs há mais de um ano: há cinco porta-<br />

42 VISÃO 21 de Março de 2003


-aviões deslocados no Mediterrâneo e no<br />

Golfo Pérsico, o equivalente a cinco divisões<br />

foi projectado para posições em redor<br />

do Iraque, e estão na região 250 mil efectivos<br />

no total.<br />

Muitos dos que conseguiram quatro estrelas<br />

nos ombros no passado dizem que<br />

Franks já excedeu as expectativas dos seus<br />

detractores. «Rumsfeld nem sempre sabe o<br />

que quer, mas sabe o que não quer», diz<br />

um responsável do Pentágono. «Franks é<br />

bom a indicar-lhe o que ele quer.»<br />

Franks dá-se bem com Rumsfeld. E, numa<br />

entrevista, Rumsfeld manifestou orgu-<br />

AP/SCOTT MARTIN<br />

lho no seu marechal de campo<br />

por ser aberto a novas<br />

ideias. «É inteligente e rápido,<br />

e sabe do seu ofício», disse.<br />

«Domina completamente<br />

essas matérias. Só se importa<br />

com o que é a maneira mais<br />

eficaz de pôr poder militar<br />

num alvo militar – o que não<br />

é a norma, necessariamente.»<br />

Espírito de soldado<br />

Franks retrai-se claramente<br />

de travar batalhas que não<br />

possa vencer. E como todo o<br />

bom soldado, o general sabe<br />

quando deve manter a cabeça<br />

baixa. Rumsfeld adora a ribalta;<br />

Franks adora ficar fora<br />

dela. «Franks achava que<br />

Schwarzkopf teve um perfil<br />

demasiado alto durante a<br />

Guerra do Golfo», diz um subordinado<br />

que trabalhou no<br />

Centcom. «Acha isso espalhafatoso.»<br />

De facto, Franks<br />

sente-se bem melhor atrás do<br />

pano. Um oficial da Marinha<br />

refere isso doutra maneira:<br />

«Tem sido um tipo de perfil<br />

baixo durante toda a carreira.<br />

Foi o segredo do seu êxito.»<br />

Franks nasceu na pequena<br />

cidade de Wynnewood,<br />

mas mudou-se com o pai<br />

mecânico e a mãe doméstica<br />

para Midland ao mesmo<br />

tempo que o clã Bush chegava<br />

do Connecticut. As<br />

duas famílias não se conheciam,<br />

mas Franks andou no<br />

liceu com a futura mulher<br />

de Bush, Laura.<br />

Perfil militar<br />

Foi na poeirenta Midland<br />

que Franks conheceu alguns<br />

dos prazeres mais simples da vida: caçar<br />

pássaros e andar de bicicleta, fumar charutos<br />

e beber margaritas. Depois do liceu, foi<br />

para a Universidade do Texas, mas abandonou<br />

e alistou-se no Exército. Começou<br />

como soldado raso em 1965, mas acabou<br />

como oficial de artilharia passados dois<br />

anos. No Vietname, esteve a maior parte<br />

do tempo à frente de tropas terrestres dos<br />

EUA com a 9.ª Divisão de Infantaria, dirigindo<br />

o fogo de artilharia contra as posições<br />

inimigas. Franks foi ferido três vezes,<br />

pelo menos uma com gravidade. As suas<br />

pernas conservam as cicatrizes, mas os<br />

GUERRA DO GOLFO II<br />

pormenores são escassos porque Franks,<br />

como muitos outros veteranos de guerra,<br />

querem que seja assim. Vários oficiais que<br />

conviveram com ele durante anos dizem<br />

que nunca o ouviram falar disso. A sua<br />

biografia oficial refere apenas que tem três<br />

Corações Púrpura.<br />

Percorreu firmemente a escadaria promocional,<br />

muitas vezes despretensiosa, do<br />

Exército, servindo no Texas, Coreia, Alemanha<br />

e no Pentágono. Depressa ganhou<br />

reputação de inovador em armas de combate.<br />

O general reformado Crosbie Saint<br />

afirma que Franks foi, na prática, o autor<br />

da ideia de utilizar artilharia de longo alcance<br />

contra alvos em movimento.<br />

Mas Franks destacou-se noutra missão<br />

de todas as outras estrelas em ascensão: fazer<br />

pela sorte. Nos anos 80 e 90, quando<br />

ainda era oficial inferior, teve cargos junto<br />

de homens que iriam entrar no clube mais<br />

exclusivo do Exército: o dos generais de<br />

quatro estrelas. Só há nove no Exército.<br />

«Há muitos jovens coronéis que nunca são<br />

notados», revela o general na reforma Richard<br />

Lawrence, sob cujo comando<br />

Franks serviu duas vezes. «Tommy teve a<br />

vantagem de estar perto de pessoas que subiram<br />

muito nas fileiras.»<br />

Isso foi muito antes de Franks ser um<br />

homem predestinado. Depois de servir na<br />

Tempestade no Deserto a comandar unidades<br />

de helicópteros e terrestres, o alto<br />

comando do Exército confiou-lhe a tarefa<br />

de reformular o serviço para o mundo do<br />

pós-guerra fria. «Tem uma capacidade excepcional<br />

para encarar situações complexas<br />

e passar do conceito à aplicação», diz<br />

Sullivan, que iniciou esse esforço. Nos<br />

anos 90, Franks deparou com uma vaga<br />

contínua de encargos valiosos, culminando<br />

no Comando Central, e a sua quarta estrela,<br />

em Julho de 2000.<br />

O 11 de Setembro lançou Franks numa<br />

trajectória diferente. A guerra no Afeganistão<br />

foi uma operação inicialmente conduzida<br />

pela CIA mas que gradualmente se<br />

transformou numa operação mais tradicional<br />

do Centcom. Franks, de início, não<br />

agradou à Casa Branca. Bush e Rumsfeld<br />

estavam impacientes com o progresso da<br />

guerra. Franks tinha a reforma prevista para<br />

meados de 2002, e se a equipa de Bush<br />

tivesse querido trocar de generais, poderia<br />

facilmente tê-lo feito. Mas Bush pediu a<br />

Franks para ficar ao serviço mais um ano<br />

por ser fácil trabalhar com ele. E nessa altura<br />

o general já tinha ganho a confiança<br />

de Rumsfeld. ■<br />

@TIME/VISÃO<br />

VISÃO 21 de Março de 2003 43


GUERRA DO GOLFO II Tragédia humanitária<br />

lABANDONO<br />

Um grupo de curdos prepara-se para sair da cidade de Dohuk, na região administrada<br />

pela minoria que se separou do regime de Saddam em 1991<br />

AJUDA<br />

Um grande<br />

dano colateral<br />

Dez milhões de iraquianos, mais de um terço da população,<br />

precisarão de cuidados urgentes, após a ofensiva,<br />

que poderá causar 500 mil baixas, prevê a ONU<br />

HENRIQUE BOTEQUILHA<br />

Apartir do momento em que as primeiras<br />

bombas caíram sobre Bagdad,<br />

começou a contagem decrescente<br />

para uma catástrofe humanitária<br />

superior àquela que os iraquianos<br />

sofreram em 1991.<br />

A Operação Tempestade no Deserto<br />

causou 3 500 mortos, em consequência directa<br />

da ofensiva, mais cerca de 110 mil civis<br />

(70 mil dos quais crianças) vítimas do<br />

que se chamou «efeitos adversos sobre a<br />

saúde, provocados pela guerra».<br />

Além disso, deixou um embargo económico<br />

como herança, que tem mantido<br />

60% da população iraquiana totalmente<br />

dependente do Estado em matéria alimentar,<br />

além de danos sérios nos sistemas de<br />

abastecimento de água e de energia.<br />

Se a situação era negra, com o ataque<br />

militar em curso poderá tornar-se «num<br />

pesadelo», na expressão de Ramiro Lopes<br />

da Silva, o português que coordena a acção<br />

humanitária da ONU no Iraque e que, em<br />

vésperas dos primeiros bombardeamentos,<br />

montou base em Larnaca, no Chipre.<br />

A guerra, segundo um relatório confi-<br />

dencial elaborado no início deste ano pelas<br />

Nações Unidas, poderá produzir meio milhão<br />

de baixas, entre mortos e feridos graves,<br />

cem mil em combate e 400 mil no caos<br />

que se seguirá.<br />

Inicialmente secreto, para afastar a ideia<br />

de que se considerava o ataque inevitável,<br />

o documento acabou por ser revelado por<br />

um grupo antiguerra da Universidade de<br />

Cambridge, no Reino Unido. A ONU autenticou<br />

a sua veracidade. Destituir Saddam<br />

Hussein pela força, diz o relatório, implica<br />

sérios riscos de fome e doenças. Cerca<br />

de 10 milhões de iraquianos, incluindo<br />

2 milhões de refugiados e deslocados, precisarão<br />

de assistência urgente.<br />

Ramiro Lopes da Silva confirma a existência<br />

de «condições para uma gigantesca<br />

deslocação de pessoas e enormes necessidades<br />

alimentares». Já Ruud Lubbers, alto<br />

comissário das Nações Unidas para os Refugiados<br />

(ACNUR), deixara um aviso no<br />

mesmo tom: «Acreditem-me [a guerra no<br />

Iraque], será um desastre do ponto de vista<br />

humanitário.»<br />

Petróleo por fome<br />

A primeira consequência da guerra<br />

anunciada contra o Iraque foi a suspensão<br />

do programa Petróleo por Alimentos,<br />

iniciado em 1996, para reduzir os efeitos<br />

do embargo, na população civil.<br />

Agora, sem produção de petróleo, o<br />

Governo de Bagdad deixa de fornecer<br />

comida, em rações diárias de 2, 215 quilocalorias<br />

cada, a 24 milhões de pessoas.<br />

Espera-se que o stock se esgote em menos<br />

de um mês. Envolvendo 46 mil funcionários,<br />

foi a maior operação de distribuição<br />

de alimentos de sempre.<br />

Apesar do feito histórico, muitas famílias,<br />

não tendo forma de ganhar dinheiro,<br />

vendiam as suas rações para comprar outros<br />

bens, como medicamentos e roupas.<br />

De acordo com a UNICEF, 18 milhões<br />

de pessoas viviam mesmo numa situação<br />

de insegurança alimentar. E na hora do<br />

ataque militar, o Iraque apresentava o indicador<br />

perturbante de 500 mil crianças<br />

malnutridas. A taxa de mortalidade infantil<br />

(136 por mil nado-vivos) é actualmente<br />

2,5 vezes maior do que em 1991.<br />

A agência de assuntos humanitários da<br />

ONU prevê, por outro lado, que metade<br />

dos iraquianos deixe de ter acesso a água<br />

potável, conduzindo à proliferação de<br />

doenças como a cólera, a disenteria e o<br />

sarampo, que poderão atingir a escala de<br />

epidemias ou até de pandemias. Os hospitais<br />

e clínicas de saúde dispõem de medicamentos<br />

suficientes para três a quatro<br />

44 VISÃO 21 de Março de 2003<br />

REUTERS<br />

DAVID GUTTENFELDER/AP


semanas apenas. No caso de se confirmar<br />

que os bombardeamentos atingirão<br />

maior intensidade na região centro do<br />

país, sobretudo em Bagdad, espera-se um<br />

movimento de civis para sul do país, onde<br />

se deverá concentrar a grande fatia de<br />

pessoas necessitadas de assistência imediata:<br />

5,4 milhões, segundo o estudo da<br />

ONU. A norte, nas três províncias administradas<br />

pelos curdos, diz o mesmo documento,<br />

mais 3,7 milhões vão carecer de<br />

auxílio com urgência. Com estradas, pontes,<br />

linhas de caminho-de-ferro e portos<br />

destruídos ou inacessíveis, será tudo muito<br />

mais difícil.<br />

‘Catástrofe iminente’<br />

Enquanto se posicionam para prestar<br />

auxílio à população iraquiana, as organizações<br />

humanitárias fazem contas ao total de<br />

pessoas deslocadas de suas casas, entre<br />

dois e três milhões.<br />

O ACNUR prevê, por seu lado, um movimento<br />

de, pelo menos, 600 mil refugiados<br />

para os países vizinhos. Na versão pessimista,<br />

o número atinge 1,45 milhões. Metade<br />

deverá seguir para o Irão, os restantes<br />

para a Turquia, Arábia Saudita, Jordânia e<br />

Síria. Estes somam-se a cerca de 900 mil<br />

refugiados já existentes no Iraque, a maioria<br />

dos quais curdos.<br />

Nas cidades controladas por esta minoria<br />

iraquiana tem-se assistido a um estranho<br />

movimento de partidas e chega-<br />

DEPENDÊNCIA<br />

Com o início<br />

da guerra, foi abandonado<br />

o programa Petróleo por<br />

Alimentos, que fornecia<br />

comida a 24 milhões<br />

de iraquianos, ou seja, quase<br />

a totalidade da população<br />

das. Por um lado, são as famílias curdas<br />

que abandonam a região, temendo agressões<br />

de Bagdad com armas químicas. Por<br />

outro, chegam milhares de pessoas que<br />

fogem do conflito no centro do país.<br />

O parlamento do Curdistão declarou o<br />

estado de emergência.<br />

Para financiar as suas nove agências destacadas<br />

para a operação<br />

Iraque, as Nações Unidas<br />

precisariam de 123 milhões<br />

de dólares, dos quais<br />

quase metade seria dirigido<br />

para o ACNUR. Mas na<br />

sede da organização, em<br />

Nova Iorque, só entraram<br />

34 milhões.<br />

Na Jordânia, estavam a<br />

ser preparadas condições<br />

de acolhimento para 35<br />

mil pessoas (ver peça de<br />

Filipe Luís, enviado <strong>especial</strong><br />

à Jordânia, nas páginas<br />

anteriores). Devido à<br />

falta de fundos, não se<br />

conseguiu ir além das 10<br />

mil. A falta de meios já levou<br />

o secretário-geral da<br />

organização, Kofi Annan,<br />

a pedir a atenção da comunidade<br />

internacional<br />

para a crise humanitária<br />

que se avizinha. E receia<br />

ter de voltar a fazê-lo.<br />

Água potável • Metade<br />

dos iraquianos poderá ficar<br />

sem acesso a água própria<br />

para consumo e mais vulnerável<br />

a doenças como a cólera,<br />

a desinteria e o sarampo<br />

Refugiados • A ONU<br />

espera, pelo menos, 600 mil.<br />

As piores previsões apontam<br />

para 1,4 milhões refugiados,<br />

que se somam a cerca de<br />

900 mil já existentes no país,<br />

a maioria dos quais curdos<br />

Financiamento • As nove<br />

agências das Nações Unidas<br />

envolvidas na operação<br />

Iraque precisam de 123<br />

milhões de euros. A parte<br />

de leão destina-se ao auxílio<br />

a refugiados. Do total, só<br />

entraram nos cofres<br />

da organização 34 milhões<br />

lRAMIRO LOPES DA SILVA<br />

A ofensiva poderá tornar-se «um pesadelo», diz<br />

o chefe da agência humanitária da ONU no Iraque<br />

lAJUDA PORTUGUESA DE 16 TONELADAS<br />

Medicamentos e comida destinados à Jordânia<br />

Nessa altura, «envolvendo somas muito<br />

superiores».<br />

Da Turquia, um responsável da ONG<br />

Crescente Azul relata à VISÃO um «êxodo<br />

gigantesco» de iraquianos rumo a norte.<br />

Segundo Mozaffer Bacca, em 1991, o<br />

número de refugiados quedou-se pelos 50<br />

mil. Agora, crê, poderá atingir 200 mil:<br />

«Mesmo com boa vonta-<br />

de, entre os meios disponibilizados<br />

pelo Governo<br />

turco e outras organizações,<br />

não há capacidade<br />

para socorrer esta gente<br />

toda. A catástrofe é iminente.»<br />

Última cruz em Bagdad<br />

Quem tem família numa<br />

aldeia remota do Iraque ou<br />

dinheiro para pagar uma<br />

viagem para uma qualquer<br />

fronteira, partiu. Mas os<br />

efeitos do embargo deixaram<br />

uma vasta parte da população<br />

de Bagdad sem<br />

meios para se preparar para<br />

o conflito: um veículo de<br />

transporte, combustível ou<br />

até compras de mercearia<br />

para abastecer a despensa.<br />

«Se esta crise se prolongar,<br />

a situação ficará muito difícil<br />

de sustentar», declara<br />

VISÃO 21 de Março de 2003 45<br />

DIMITRI MESSINIS/AP<br />


GUERRA DO GOLFO II Tragédia humanitária<br />

CAMPO DE REFUGIADOS<br />

Montada na fronteira<br />

entre o Iraque<br />

e a Jordânia, cidade<br />

de lona não deverá<br />

ter capacidade para<br />

o êxodo que se prevê:<br />

600 mil pessoas<br />

em todas as fronteiras<br />

dos países vizinhos<br />

UM GRANDE DANO COLATERAL<br />

à VISÃO Roland Huguenin Benjamim,<br />

porta-voz do Comité Internacional da<br />

Cruz Vermelha (CICV) na capital iraquiana,<br />

que reclama ser a única ONG que permaneceu<br />

no país.<br />

Com Benjamin ficaram outros cinco internacionais,<br />

o núcleo duro de uma equipa<br />

da Cruz Vermelha e Crescente Vermelho,<br />

que inclui mais quatro expatriados, na região<br />

Norte, e 350 iraquianos prontos a trabalhar<br />

em todo o território. Cabe-lhes garantir,<br />

em caso de danos ou avarias, que as<br />

bombas de água e os geradores de electricidade<br />

continuem a funcionar para manter<br />

a operacionalidade dos hospitais.<br />

Fora do Iraque, várias ONGs internacionais<br />

estão a posicionar-se nas fronteiras<br />

dos países vizinhos. Só à sua conta, o<br />

CICV espera auxiliar 250 mil refugiados.<br />

A confirmar-se a operação, será a maior de<br />

sempre da organização.<br />

Do lado português, está agendada para<br />

sábado, 22, a chegada de uma equipa<br />

exploratória da Assistência Médica Internacional<br />

(AMI) à Jordânia, com vista<br />

à instalação de uma unidade clínica, na<br />

fronteira com o Iraque. Os primeiros<br />

planos da ONG previam o estabelecimento<br />

de uma missão de emergência no<br />

país de Saddam. Mas não foram concedidos<br />

os vistos necessários.<br />

Quando a ONU mandou retirar todo o<br />

seu pessoal de Bagdad, Fernando Nobre,<br />

médico e presidente da AMI, ficou inco-<br />

modado: «Deve ser precisamente num<br />

momento como este que se deve ficar e<br />

apoiar a população civil iraquiana. Tiro o<br />

chapéu aos elementos da Cruz Vermelha e<br />

do Crescente Vermelho que se mantêm na<br />

cidade.»<br />

Remédios depois das bombas<br />

Na noite do ultimato, segunda-feira,<br />

17, de George W. Bush a Saddam Hussein,<br />

dando-lhe 48 horas para sair do<br />

Iraque com os dois filhos, o Presidente<br />

dos EUA anunciou distribuição de alimentos<br />

e de medicamentos, mal as forças<br />

da aliança dirigida pelo seu país alcançassem<br />

a vitória.<br />

«Já não se separa a componente humanitária<br />

de uma ofensiva militar», assinala<br />

Fernando Nobre. O perigo, nota, surge no<br />

momento em que são as próprias forças<br />

beligerantes que controlam a assistência às<br />

populações.<br />

Nas operações terrestres, as forças americanas<br />

têm preparadas equipas que acompanham<br />

a evolução militar no terreno e<br />

que serão as primeiras a entrar em contacto<br />

com as comunidades iraquinas carenciadas<br />

de auxílio. «São parecidos connosco,<br />

excepto nas armas que empunham»,<br />

ironiza um responsável da ONG Mercy<br />

Corps, recordando a sua experiência no<br />

Afeganistão. Só na altura que acharem<br />

conveniente, as tropas permitirão o acesso<br />

de outras organizações.<br />

Numa reunião na Suíça, várias ONGs<br />

exigiram aos governos envolvidos na guerra<br />

do Iraque que façam uma distinção clara<br />

entre assuntos militares e humanitárias.<br />

«Os civis às organizações civis», reivindicou<br />

a porta-voz da Oxfam.<br />

Além da «perversidade da questão», como<br />

classifica João José Fernandes, da ONG<br />

Oikos, sobra a possível perda da confiança<br />

das populações, que são assistidas por quem<br />

os atacou – «efeitos colaterais».<br />

«Sabemos hoje que 10% das bombas<br />

utilizadas num ataque falham o alvo e que,<br />

no Afeganistão, morreram 11 mil pessoas –<br />

não eram militares talibãs, eram civis», recorda<br />

Fernando Nobre. Na madrugada de<br />

quinta-feira, 19, o início da ofensiva esteve<br />

longe da ameaça, revelada há um mês, da<br />

utilização de três mil bombas no primeiro<br />

raide aéreo anglo-americano. «E nessa altura<br />

alguém se lembrou das 300 que iam<br />

cair ao lado?» ■<br />

▲ 46VISÃO 21 de Março de 2003<br />

JEAN-MARC FERRE/AP<br />

lAPELO DA CRUZ VERMELHA<br />

«Respeitem a Convenção de Genebra»<br />

GLEB GARANISH/REUTERS


Aguerra dita «preventiva» instaura um novo<br />

tempo, que tanto pode ser o de uma nova<br />

«ordem» determinada pela hegemonia<br />

americana como o de um novo caos de<br />

consequências ainda imprevisíveis. Não consigo<br />

imaginar um mundo em que as tentativas de resolver<br />

pacificamente conflitos entre Estados deixam<br />

de ter qualquer utilidade. Esta guerra, ilegítima e<br />

imoral, é um tremendo passo atrás na história da civilização.<br />

O sonho da Carta das Nações Unidas,<br />

baseado no respeito universal pelos<br />

direitos do homem, vai ser<br />

muito difícil de reconstruir.<br />

Em 1932, Einstein escrevia uma<br />

carta a Freud pondo-lhe a pergunta<br />

que considerava mais importante<br />

para a humanidade:<br />

Haverá alguma maneira de libertar<br />

os seres humanos da fatalidade<br />

da guerra? Einstein, pacifista<br />

militante, defendia a necessidade<br />

de uma organização supranacional<br />

para a solução dos conflitos<br />

entre Estados. Mas pensava que<br />

era preciso ir mais longe e perguntava:<br />

poderá o estudo do desenvolvimento<br />

psíquico dos seres<br />

humanos levar a que eles se<br />

tornem mais resistentes à psicose<br />

do ódio e da destruição?<br />

A resposta de Freud é lapidar. A humanidade, escreve,<br />

vive desde tempos imemoriais um processo de<br />

evolução cultural, a que alguns chamam civilização,<br />

de certo modo comparável à domesticação de<br />

certas espécies animais. Ora a guerra é a forma<br />

mais violenta de afrontar a atitude psíquica, imposta<br />

por este processo cultural, de controlar as pulsões<br />

de destruição e morte. É por isso que não a suportamos.<br />

Não se trata, sequer, de uma aversão intelectual<br />

ou afectiva: é uma intolerância constitucional,<br />

uma «idiossincrasia magnificada».<br />

HELENA ROSETA<br />

Um passo atrás na civilização<br />

Portugal não está militarmente na guerra, mas está politicamente<br />

a favor dos que a conduzem<br />

❝A mensagem essencial<br />

do PR e do PM é que<br />

os portugueses podem<br />

estar tranquilos. Não, não<br />

podemos. Não estamos<br />

«por cá, todos bem»,<br />

como antigamente.<br />

Estamos preocupados,<br />

solidários dos inocentes<br />

que esta guerra matará<br />

e perplexos quanto<br />

ao futuro colectivo ❞<br />

GUERRA DO GOLFO MUNDO II<br />

Palavras que ressoam com uma actualidade premente.<br />

Estamos perante uma guerra feita à margem<br />

da Carta das Nações Unidas e do direito internacional<br />

e contra a opinião da esmagadora<br />

maioria dos países do mundo. Confesso por isso<br />

que não posso deixar de me sentir profundamente<br />

decepcionada com a posição de Portugal neste<br />

conflito. Enquanto o Chefe do Estado condena<br />

a guerra e recusa qualquer envio de tropas, o<br />

primeiro-ministro, cedendo embora nesse ponto,<br />

proclama o seu apoio político à<br />

Administração Bush. No Parla-<br />

mento, até agora, houve debate<br />

mas nenhuma votação. Em suma,<br />

Portugal não está militarmente<br />

na guerra, mas está politicamente<br />

a favor dos que a<br />

conduzem. A mensagem essencial<br />

do PR e do PM é que os<br />

portugueses podem estar tranquilos.<br />

Não, não podemos. Não<br />

estamos «por cá, todos bem»,<br />

como antigamente. Estamos<br />

preocupados, angustiados, solidários<br />

dos inocentes que esta<br />

guerra matará e perplexos<br />

quanto ao futuro colectivo.<br />

Por mim, fico sem perceber<br />

os apelos à unidade e coesão<br />

nacional feitos por Jorge Sampaio<br />

e Durão Barroso nas últimas<br />

horas. Unidade contra ou a favor da guerra?<br />

É insustentável esta dualidade. Como ser humano,<br />

quero poder expressar a minha revolta contra<br />

esta guerra. Como portuguesa, tenho direito a<br />

exigir dos órgãos máximos do meu país uma posição<br />

coesa de que não foram capazes e cuja ausência<br />

não parece incomodá-los. Como deputada,<br />

quero ter a oportunidade de expressar o meu<br />

não a tudo isto. E como cidadã estarei na rua ao<br />

lado de todos os que denunciam a ilegitimidade<br />

desta guerra. Mesmo sabendo que a paz, agora, é<br />

ainda mais difícil.<br />

VISÃO 21 de Março de 2003 47


GUERRA DO GOLFO II Dinheiro<br />

ECONOMIA<br />

O preço<br />

da batalha<br />

A factura é pesada. Os EUA<br />

gastarão mais de cem mil<br />

milhões de euros com<br />

a intervenção no Iraque<br />

PAULO SANTOS<br />

Ainda não se sabe, ao certo, quanto<br />

custará a intervenção no Iraque.<br />

Existe, porém, uma certeza:<br />

a factura será muito pesada. Segundo<br />

o Congresso norte-americano a<br />

guerra irá emagrecer os cofres do Governo<br />

em 95 mil milhões de euros. De acordo<br />

com as contas daquele organismo, o<br />

conflito irá custar 24 mil milhões de euros<br />

por mês aos contribuintes dos EUA. Números<br />

que vêm confirmar outras estimativas<br />

anteriores, que apontavam um intervalo<br />

mais vasto, compreendido entre os cem<br />

mil milhões e 200 mil milhões de euros.<br />

A própria Administração Bush já admitiu<br />

publicamente que os custos da intervenção<br />

no Iraque não ultrapassarão os cem mil<br />

milhões de euros e solicitou ao Congresso<br />

autorização para utilizar, já, 90 mil milhões.<br />

No entanto, este cenário tem por base a expectativa<br />

de uma guerra curta e coroada de<br />

êxito. O que pode não acontecer.<br />

O grande ponto de referência nesta matéria<br />

é a Guerra do Golfo, de 1991, responsável<br />

por um rombo de 61 mil milhões de<br />

euros nos cofres do tesouro norte-americano.<br />

Desta vez, porém, os objectivos são<br />

mais ambiciosos. Não se limitarão a uma<br />

intervenção, uma vez que os EUA e os alia-<br />

dos deverão deixar uma força de ocupação<br />

no Iraque. E serão os norte-americanos a<br />

arcar com a maior fatia dos custos. Uma<br />

força de ocupação custará entre 1 e 4 mil<br />

milhões de euros por mês. E, para já, ninguém<br />

faz ideia de quanto tempo será necessário<br />

manter tropas norte-americanas no<br />

Iraque, depois de o conflito estar resolvido.<br />

Ou seja, a factura é uma incógnita. Cada<br />

míssil teleguiado, por exemplo, custa várias<br />

centenas de milhares de euros.<br />

E não é possível dizer, ainda,<br />

quantos serão utilizados.<br />

Mas seja qual for o desfecho,<br />

as tropas americanas terão<br />

de regressar a casa. Só esta<br />

operação envolve uma verba<br />

de 9 mil milhões de euros.<br />

Contas feitas, os Estados<br />

Unidos irão gastar neste confronto<br />

mais do que Portugal<br />

produz num só ano. Apesar<br />

de, para nós, ser uma verba<br />

exorbitante, para os EUA ela<br />

não é tão significativa, uma vez<br />

que o produto interno bruto<br />

(PIB) do país é superior a 10<br />

biliões de euros. Isto é, 200 mil<br />

milhões representam apenas<br />

2% do PIB norte-americano.<br />

Por outras palavras, para su-<br />

AVIAÇÃO<br />

Os voos comerciais<br />

são as primeiras vítimas<br />

do conflito.<br />

Segue-se o turismo<br />

portar esta guerra, os EUA precisam de<br />

uma percentagem de dinheiros públicos<br />

idêntica à que Manuela Ferreira Leite necessitou<br />

no final do ano passado para pôr<br />

o défice das contas nacionais dentro dos limites<br />

impostos por Bruxelas.<br />

O reverso da medalha<br />

No entanto, não será apenas pelo seu<br />

custo que a guerra vai trazer problemas pa-<br />

Crescimento<br />

assegurado<br />

Independentemente da sua duração,<br />

a guerra porá em marcha o crescimento<br />

da economia americana<br />

5<br />

4<br />

3<br />

Guerra<br />

longa<br />

3,3%<br />

2<br />

Guerra<br />

1<br />

curta<br />

0<br />

-1<br />

-2<br />

-3<br />

2,9%<br />

2002 2003 2004<br />

Fonte: Wells Fargo<br />

48 VISÃO 21 de Março de 2003<br />

VISÃO<br />

FERRAN PAREDES/REUTERS


lOCUPAÇÃO<br />

A manutenção de forças no Iraque pode custar 4 mil milhões de euros por mês<br />

ra a economia. No curto prazo até poderá<br />

ser benéfica (ver gráfico) e contribuir para<br />

o seu crescimento. Ainda recentemente,<br />

um estudo feito pelo maior organismo patronal<br />

do Reino Unido concluía que uma<br />

guerra curta e bem sucedida seria mais benéfica<br />

para a economia dos EUA do que se<br />

não houver guerra nenhuma.<br />

Só que acaba por ter efeitos negativos<br />

num prazo mais longo, pois cria problemas<br />

orçamentais para o país e provoca<br />

uma subida das taxas de juro, o que, por<br />

sua vez, leva a um menor investimento e<br />

retrai o consumo. O Congresso já fez algumas<br />

previsões para os próximos dez<br />

anos e as contas são pouco animadoras:<br />

que os gastos com a guerra poderão transformar<br />

um superavit de 890 mil milhões<br />

de euros – estimado para as contas públicas<br />

dos EUA nos próximos dez anos –<br />

num défice de 1,82 biliões de euros.<br />

O peso dos números é menos complicado<br />

quando encaramos a questão na<br />

perspectiva do curto prazo. De acordo<br />

com a referida organização patronal britânica,<br />

o mais provável é que a intervenção<br />

seja curta e bem sucedida, o que resultará<br />

na queda do preço do petróleo<br />

abaixo dos 20 dólares. Boas notícias para<br />

o crescimento económico dos EUA, que<br />

poderá subir 2,9% no final do ano. Um estudo<br />

da casa financeira Well Fargo confirma<br />

estes dados e conclui que, em caso de<br />

guerra de curta duração, o PIB norte-<br />

-americano possa atingir um crescimento<br />

perto dos 3% em 2004. A mesma instituição<br />

financeira refere que, em caso de conflito<br />

prolongado, a economia norte-americana<br />

poderá passar por uma recessão<br />

com um crescimento negativo de quase<br />

3% no decorrer de 2003.<br />

A guerra para lá dos EUA<br />

Horst Koehler, director-geral do Fundo<br />

Monetário Internacional (FMI), admitiu<br />

recentemente, em entrevista ao diário es-<br />

KUNI TAKAHASHI/AP<br />

panhol El País, que «uma guerra, independentemente<br />

do tempo que durar, irá<br />

complicar a situação económica nos EUA<br />

e aumentar a incerteza na economia mundial».<br />

Um problema que acabará por complicar<br />

ainda mais a vida das Bolsas em todo<br />

o mundo. A preocupação é tal que os<br />

EUA e o Japão já assinaram um acordo de<br />

cooperação para suportarem os mercados<br />

financeiros, caso se verifique uma crise internacional<br />

provocada pela guerra no Iraque.<br />

O acordo foi celebrado entre Heizo<br />

Takenaka, ministro das Finanças japonês<br />

e o presidente da Reserva Federal norte-<br />

-americana, Alan Greenspan.<br />

A recessão e os efeitos da guerra estão a<br />

preocupar também as instâncias máximas<br />

da União Europeia (UE). Segundo um relatório<br />

da Comissão Europeia, a guerra<br />

poderá levar a economia dos Quinze à recessão.<br />

Algo que não é novo para Portugal,<br />

que já está nessa situação. Mas este organismo<br />

vai mais longe e admite que o impacto<br />

desta guerra será mais devastador<br />

que o da Guerra do Golfo em 1991.<br />

Por cá, também se vão desenhando<br />

cenários possíveis para o que poderá<br />

acontecer após o conflito. De acordo<br />

com um relatório do Banco Espírito<br />

Santo, «uma resolução rápida e eficaz<br />

do conflito do Iraque, com a diminuição<br />

dos níveis de incerteza e o regresso do<br />

preço do petróleo a níveis mais baixos<br />

permitirá o crescimento das economias<br />

no segundo semestre de 2003». No entanto,<br />

o mesmo documento deixa o alerta:<br />

«Um conflito demorado, com danos<br />

significativos na oferta de petróleo, levaria<br />

a economia portuguesa para um período<br />

de recessão.»<br />

Em termos económicos, as grandes vítimas<br />

serão, sem dúvida, as companhias aéreas.<br />

Por um lado, esta é uma actividade<br />

muito exposta à variação do preço dos<br />

combustíveis. Por outro, o sector prevê<br />

que durante o conflito se assista a uma re-<br />

GUERRA EXTRA•GUERRA<br />

DO GOLFO II<br />

lREBENTAR MILHÕES<br />

Um míssil teleguiado custa várias centenas de milhares de euros<br />

dução de 20% do número de passageiros.<br />

Também o turismo sente os efeitos de um<br />

conflito mundial. O número de reservas<br />

nos hotéis para este Verão está muito<br />

abaixo do habitual.<br />

Outros efeitos económicos colaterais,<br />

menos visíveis, deixarão igualmente marcas.<br />

Uma guerra acaba sempre por afectar<br />

a economia como um todo. Os tempos de<br />

incerteza provocam, invariavelmente, uma<br />

retracção do consumo e do investimento e<br />

estes dois fenómenos conjugados não deixam<br />

nenhum sector ileso. Melhor, quase<br />

nenhum. Existem sempre os que tiram dividendos<br />

elevados de uma guerra. Nos últimos<br />

dois anos, a indústria de armamento<br />

aumentou significativamente as suas vendas<br />

e encomendas. As petrolíferas também<br />

vêem os seus lucros subirem, sobretudo<br />

com a expectativa da distribuição do bolo<br />

petrolífero iraquiano, após o conflito.<br />

Negócios avançam<br />

Antes ainda de ter sido disparada a primeira<br />

bala, já o Governo norte-americano<br />

havia convidado várias empresas do país a<br />

competirem nos projectos de reconstrução<br />

do Iraque. Para além dos edifícios, estão<br />

em causa a construção de infra-estruturas<br />

de educação, saúde, transporte, energia,<br />

entre outras, naquilo que já foi chamado<br />

como o maior projecto de reconstrução<br />

desde a Segunda Guerra Mundial. Segundo<br />

alguns números já avançados, embora<br />

não oficiais, o negócio de reconstrução<br />

do país poderá ascender aos 30 mil<br />

milhões de euros. Uma quantia avultada<br />

mas que está ao alcance do Iraque, detentor<br />

das segundas maiores reservas de petróleo<br />

do mundo. Além disso, nos últimos<br />

anos, estas rerservas têm estado a ser exploradas<br />

a metade da sua capacidade. O<br />

ouro negro abunda por aquelas paragens.<br />

Este parece ser um daqueles casos em que<br />

o final da história já se sabe antes mesmo<br />

do primeiro episódio. Será? ■<br />

VISÃO 21 de Março de 2003 49<br />

STEVE HELBER/AP


GUERRA DO GOLFO II Dinheiro<br />

l‘SADDAM OIL’<br />

O retrato do ditador iraquiano numa velha refinaria nas imediações de Bagdad<br />

CRISE<br />

Bombas em alta,<br />

petróleo em baixa<br />

Os primeiros mísseis lançados sobre território<br />

iraquiano bastaram para fazer cair o preço do crude<br />

Opetróleo é uma das personagens<br />

centrais do conflito no Golfo. O<br />

Iraque, alvo estratégico das forças<br />

aliadas, possui as segundas maiores<br />

reservas mundiais, logo a seguir à Arábia<br />

Saudita (ver infografia). A sua importância<br />

económica é óbvia.<br />

No jogo das expectativas, a incerteza sobre<br />

uma eventual intervenção militar con-<br />

duziu o barril de crude acima dos 30 dólares,<br />

o preço mais elevado desde a primeira<br />

Guerra do Golfo, em 1991, quando chegou<br />

a ultrapassar os 40 dólares.<br />

Mas a agonia inflacionista desapareceu<br />

no momento em que foram disparadas as<br />

primeiras balas, nesta segunda Guerra do<br />

Golfo. Em Londres, na sessão de mercado<br />

a seguir aos bombardeamentos da madru-<br />

Da falência<br />

ao estrelato<br />

A guerra é um tempo de incerteza. Regra geral,<br />

qualquer conflito abala o mundo dos negócios.<br />

Mas nem todos podem dizer o mesmo.<br />

Nos EUA, uma empresa que, recentemente,<br />

solicitou a protecção de credores às instâncias<br />

judiciais está a bater os recordes de subida<br />

em bolsa. Em vez de falir, a empresa tornou-se<br />

numa das mais procuradas pelos investidores.<br />

Chama-se Boots & Coots e é <strong>especial</strong>izada<br />

em responder a emergências que<br />

surjam em poços petrolíferos. Na última semana,<br />

conseguiu uma valorização de cerca de<br />

250 por cento. Nada mau para quem estava à<br />

beira de encerrar as portas e mandar os funcionários<br />

para casa. As acções desta companhia,<br />

cotadas na Bolsa de Nova Iorque a pouco<br />

mais de 70 cêntimos de dólar, estão, actualmente,<br />

a ser transaccionadas acima dos<br />

dois dólares. Tem havido uma verdadeira corrida<br />

à Boots & Coots: só na passada quarta-<br />

-feira, 19, foram transaccionados quase 80<br />

milhões de títulos.<br />

Desde que começou a falar-se da possibilidade<br />

dos iraquianos incendiarem os poços de<br />

petróleo, em retaliação do avanço das forças<br />

aliadas, os investidores viram na Boots &<br />

Coots à beira da falência uma excelente oportunidade<br />

para aplicar o seu dinheiro. E se os<br />

poços forem incendiados, a empresa vai mesmo<br />

ter muito trabalho, no Iraque. Quem comprou<br />

acções por alguns cêntimos pode muito<br />

bem ver o seu dinheiro multiplicar-se, em poucos<br />

meses.<br />

gada de quarta para quinta-feira passadas,<br />

o barril de brent tinha descido até aos 25,5<br />

dólares. Mais uma vez, são as expectativas<br />

a liderar o mercado. O preço baixa, porque<br />

os agentes esperam uma guerra de<br />

curta duração e favorável às forças aliadas.<br />

A história serve de conselheira. Em<br />

1991, as tropas norte-americanas fizeram<br />

uma intervenção rápida – de 17 de Janeiro<br />

a 28 de Fevereiro – e bem sucedida, que<br />

arrastou para baixo o preço do crude. A<br />

Organização dos Países Exportadores de<br />

Petróleo (OPEP) também deu uma ajuda<br />

ao optimismo. Os produtores garantiram<br />

que estão em condições de responder a<br />

qualquer falta de abastecimento decorrente<br />

da guerra. O presidente deste organismo,<br />

Abdullah al Attiyah, confessou, recentemente,<br />

o empenho dos produtores em<br />

manter a estabilidade do mercado.<br />

Todavia, ainda não é líquido que esta<br />

50 VISÃO 21 de Março de 2003<br />

JOCKEL FINCK/AP


ONDE ESTÁ O PETRÓLEO<br />

O Iraque tem as maiores reservas do mundo e é o segundo maior<br />

produtor de petróleo do globo. Os Estados Unidos estão menos<br />

dependentes do crude do Médio Oriente que a Europa e o Japão<br />

% DA PRODUÇÃO MUNDIAL E DURAÇÃO DAS RESERVAS DE CADA REGIÃO EM ANOS<br />

NO MUNDO...<br />

Ex- União Soviética<br />

6,2 21<br />

América do Norte<br />

6,1 13,5<br />

América Central<br />

e do Sul<br />

9,1 39<br />

TURQUIA<br />

Mar<br />

Mediterrâneo<br />

L Í BANO<br />

EGIPTO<br />

ISRAEL<br />

SUDÃ O<br />

S Í RIA<br />

JORDÂ NIA<br />

Mar<br />

Vermelho<br />

ERITREIA<br />

Europa<br />

1,8 7/8<br />

Iraque<br />

10,7 135 Irão<br />

Bagdad<br />

8,6<br />

Kuwait<br />

9,2 115<br />

65<br />

685,6<br />

Europa<br />

Ásia-Pacífico<br />

América do Norte<br />

Ex-União Soviética<br />

África<br />

América Central e do Sul<br />

Médio Oriente<br />

África<br />

7,3 27,5<br />

Arábia Saudita<br />

25 65<br />

PRODUÇÃO, EM MILHARES DE MILHÕES E BARRIS, EM 2001<br />

NO MUNDO...<br />

...NO MÉDIO<br />

ORIENTE<br />

76,7<br />

96,0<br />

43,8 63,9 65,4<br />

18,7<br />

Arábia Saudita<br />

261,7<br />

Médio Oriente<br />

65,3 87<br />

BAHREIN<br />

QATAR<br />

I É MEN<br />

Iraque<br />

Emirados Árabes Unidos<br />

Kuwait<br />

112,597,8 96,5 89,7<br />

25,4<br />

guerra seja curta. Os EUA e os seus aliados<br />

poderão encontrar obstáculos inesperados<br />

e demorar mais do que inicialmente<br />

previam. De acordo com um estudo da<br />

maior organização patronal britânica, um<br />

conflito prolongado poderá atirar o preço<br />

do petróleo para os 80 dólares por barril.<br />

Uma escalada deste nível poderia não<br />

só provocar mais um atraso na recuperação<br />

da economia mundial, como arrastar<br />

o mundo para uma nova recessão. E o petróleo,<br />

a matéria-prima que mais influên-<br />

Irão<br />

Ásia-Pacífico<br />

4,2 15,5<br />

...NO MÉDIO<br />

ORIENTE<br />

Emirados<br />

Árabes Unidos<br />

9,3 105<br />

Outros<br />

OMÃ<br />

Mar<br />

Arábico<br />

Quem<br />

compra<br />

mais<br />

% DAS<br />

IMPORTAÇÕES<br />

DE CRUDE<br />

PROVENIENTES<br />

DO GOLFO<br />

PÉRSICO<br />

76,0<br />

Europa<br />

Ocidental<br />

36,0<br />

Japão<br />

EUA 25,3<br />

JORDÂNIA<br />

Oleoduto<br />

TURQUIA<br />

SIRIA<br />

IRAQUE<br />

Qurna Ocidental II<br />

Majnoon<br />

Bin Umar<br />

Saddam<br />

Nassiryah<br />

Rumalia Mishrif Norte<br />

Rumalia Mishrif Sul<br />

Halfaya<br />

Ratawi<br />

Qurna Ocidental I<br />

Tuba<br />

Gharaf<br />

Rafifin<br />

Khurmala<br />

Saba Luhais<br />

Al Ahdab<br />

Amara<br />

Qurna Ocidental DS 6<br />

Hemrin<br />

cia tem na conjuntura económica, não é<br />

inocente, nesta matéria. O seu elevado<br />

preço já provocou várias recessões no<br />

mundo, como a crise petrolífera dos anos<br />

70, com efeitos devastadores para o bem-<br />

-estar das populações.<br />

O caso muda de figura se a intervenção<br />

for coroada de êxito. Alguns analistas<br />

acreditam que os preços do petróleo poderão<br />

cair abaixo dos 20 dólares por barril.<br />

Se Saddam Hussein for deposto, o Iraque<br />

voltará a fornecer petróleo, de acordo com<br />

Bagdad<br />

GUERRA DO GOLFO II<br />

as suas potencialidades – actualmente, liberta<br />

para o mercado cerca de metade da<br />

sua capacidade. Regressando a produção<br />

aos níveis registados antes da guerra de<br />

1991 – mais de 3,5 milhões de barris por<br />

dia – poderá registar-se uma pressão sobre<br />

os mercados internacionais que atirará o<br />

barril para valores muito baixos.<br />

Este é o cenário mais agradável e desejado<br />

pelos mercados. Mas a verdade é<br />

que não passa disso mesmo: uma mera<br />

hipótese. ■<br />

VISÃO 21 de Março de 2003 51<br />

JAZIDA<br />

PRODUÇÃO<br />

MILHARES DE<br />

BARRIS DIÁRIOS<br />

1 000<br />

600<br />

500<br />

300<br />

300<br />

250<br />

250<br />

225<br />

200<br />

200<br />

180<br />

100<br />

100<br />

100<br />

100<br />

90<br />

80<br />

65<br />

60<br />

Mosul<br />

14<br />

Kirkuk<br />

19<br />

Tikrit<br />

Lukoil<br />

TotalFina<br />

TotalFina<br />

Tatneft<br />

Eni/Repsol<br />

Tatneft<br />

Mashinoimport<br />

BHP<br />

Shell/Can Oxy/Petronas<br />

Zarubezhneft<br />

ONGC/Sonatrach/Pertamina<br />

TPAO/Japex<br />

Pacific<br />

Stroyexport/Bow Canada<br />

Slavnet<br />

CNPC<br />

PetroVietnam<br />

Bashneft<br />

Stroyexport/Bow Canada<br />

4<br />

1<br />

Petróleo<br />

EMPRESA<br />

EXPLORADORA NACIONALIDADE<br />

Gás<br />

natural<br />

IRÃ O<br />

100km<br />

12 13<br />

Repartir<br />

o crude<br />

Curiosamente, não se encontra uma única<br />

petrolífera norte-americana entre as 19 principais<br />

5<br />

8<br />

17 3<br />

2<br />

9 1<br />

6 10<br />

18<br />

Baçorá<br />

15 7 11<br />

empresas que exploram<br />

poços iraquianos<br />

ARÁ BIA SAUDITA<br />

KUWAIT<br />

1<br />

2<br />

3<br />

4<br />

5<br />

6<br />

7<br />

8<br />

9<br />

10<br />

11<br />

12<br />

13<br />

14<br />

15<br />

16<br />

17<br />

18<br />

19<br />

16<br />

©GN/VISÃO<br />

Rússia<br />

França<br />

França<br />

Rússia<br />

Itália, Espanha<br />

Rússia<br />

Rússia<br />

Austrália<br />

Holanda, Canadá, Malásia<br />

Rússia<br />

Índia, Argélia, Indonésia<br />

Turquia, Japão<br />

Reino Unido<br />

Rússia e Canadá<br />

Rússia<br />

China<br />

Vietnam<br />

Rússia<br />

Rússia, Canadá<br />

Fonte: BP, Deutsche Bank e El País


GUERRA DO GOLFO II Em nome de Deus<br />

GEORGE W. BUSH<br />

O dono da guerra<br />

À falta de autorização da ONU, o Presidente dos EUA<br />

invoca uma espécie de legitimidade divina para<br />

a guerra com Saddam<br />

EMÍLIA CAETANO<br />

Quando o republicano George W.<br />

Bush chegou à Casa Branca, em<br />

Janeiro de 2001, as expectativas<br />

eram baixas. Tornara-se o 43.º<br />

Presidente dos EUA depois do que muitos<br />

americanos viam como uma vitória «de<br />

secretaria», com menos meio milhão de<br />

votos do que o seu opositor. E o resto do<br />

mundo sorria desse líder tão pouco entendido<br />

em política externa que trocava os<br />

nomes dos dirigentes de alguns países. A<br />

partir dali, tudo o que ele conseguisse só<br />

podia ser ganho.<br />

Se a sua vitória deixara a América<br />

drasticamente dividida ao meio, ele<br />

apressou-se a levar para Washington o<br />

seu lema de «abraçar um democrata por<br />

dia», que já usara como governador do<br />

Texas. Rapidamente mandou para o<br />

Congresso uma lei sobre Educação em<br />

que deixava cair uma promessa eleitoral<br />

muito criticada pelos democratas: um<br />

subsídio <strong>especial</strong> para o ensino privado.<br />

O diploma passou facilmente. Pouco depois,<br />

convidava o clã Kennedy, a poderosa<br />

dinastia democrática da América, para<br />

uma sessão de cinema na Casa Branca.<br />

O filme? Treze dias, uma versão abonatória<br />

para JFK sobre o modo como se<br />

saiu da crise dos mísseis, em 1962.<br />

As sequelas deixadas pela eleição iam-<br />

-se desvanecendo. É verda-<br />

de que as suas gaffes deram<br />

origem a um livro, e claro<br />

que não era muito culto.<br />

Mas também não queria<br />

parecê-lo: ele próprio confessava<br />

que não gostava de<br />

ler e que a sua primeira nota<br />

num teste de inglês fora<br />

zero. Mas ganhava uma<br />

imagem simpática. Muitos<br />

começavam a ver nele o<br />

que os americanos chamam<br />

«just a regular guy»,<br />

um tipo como os outros. E<br />

a forma como lidara com a<br />

lei da Educação mostrava<br />

1975 • Lança-se no negócio<br />

do petróleo, criando<br />

a empresa Arbusto<br />

1978 • Candidata-se<br />

a um lugar no Congresso<br />

pelo Texas, mas perde<br />

1988 • Ajuda a organizar<br />

a campanha presidencial<br />

do pai<br />

1994 • Derrota a democrata<br />

Ann Richards e torna-se<br />

governador do Texas<br />

que, afinal, não era nada parvo. Em Fevereiro<br />

já conseguia 61% de opiniões favoráveis<br />

nas sondagens.<br />

Mas a sua verdadeira oportunidade estava<br />

para chegar, em 11 de Setembro de<br />

2001. A maneira como surgiu na televisão,<br />

entre as equipas de socorro no<br />

«Ground Zero» e a voz grosssa com que<br />

falou para o exterior reparavam a humilhação<br />

do ataque. «Na nossa dor e na<br />

nossa raiva encontrámos a nossa missão<br />

e o nosso momento», disse então Bush.<br />

As palavras aplicavam-se, direitinhas, a<br />

ele próprio.<br />

Bush, o filho<br />

A notícia da entrada oficial de Bush na<br />

corrida à Casa Branca, no Verão de 2000,<br />

surgira no jornal francês Libération com o<br />

título George II, candidato como o papá.<br />

«O meu pai é o homem que se aproxima<br />

mais do que considero um ser perfeito»,<br />

dizia ele numa passagem citada pelo jornal<br />

francês. E o autor do artigo descrevia<br />

assim o futuro Presidente: «Sempre comparado<br />

ao pai, W. seguiu-lhe as pisadas<br />

tant bien que mal».<br />

Sabe-se que George Walker Bush teve<br />

os seus wild years, que é como quem diz,<br />

o seu «período selvagem»: «Aos 17 anos<br />

fiz tudo o que se faz aos 17 anos.» Mas<br />

não é bem assim. No seu caso, esse tempo<br />

foi muito além da adolescência. Se para<br />

muitos esse é o preço a<br />

pagar para se autonomizarem<br />

dos pais, ele escolheu<br />

fazer exactamente o<br />

contrário: seguiu uma a<br />

uma as etapas do pai. Durante<br />

muito tempo, deu-<br />

-se mal.<br />

Nascido a 6 de Julho<br />

de 1946 em New Haven,<br />

no Connecticut, filho<br />

mais velho dos Bush, a<br />

família levou-o muito cedo<br />

para o Texas. Depois,<br />

seguiu-se uma vida atrás<br />

do pai, mas muitos passos<br />

atrás. Andou no mesmo<br />

liceu e na mesma universidade – Yale –<br />

onde, aliás, só terá entrado devido à quota<br />

para filhos dos ex-alunos, pois não tinha<br />

média suficiente. Se o pai fora um<br />

aluno brilhante e campeão de baseball na<br />

universidade, o filho nem tanto. Mas tragédia,<br />

a sua infância só conhecera uma: a<br />

morte da irmã, Robin, com leucemia, tinha<br />

ele 7 anos.<br />

Em 1968 escapou à Guerra do Vietname<br />

alistando-se como piloto na Air National<br />

Guard do Texas. Para a História ficarão<br />

versões diferentes: se foi apenas o<br />

apelido ou a mão directa do pai que lhe<br />

conseguiu um lugar naquela corporação<br />

que tinha na altura, ao que consta, 100<br />

mil candidatos na lista de espera.<br />

Depois andou de emprego em emprego,<br />

nos anos em que se queixava aos ami-<br />

52 VISÃO 21 de Março de 2003


gos de ter «muito nome, mas nenhum dinheiro».<br />

Licenciado em História, vai para<br />

Harvard tirar um master em gestão. Em<br />

1975 tenta a sua sorte no negócio da família,<br />

o petróleo, criando a Arbusto Energy<br />

Inc, usando o seu apelido em espanhol,<br />

uma língua que conhece.<br />

Apesar das ajudas de muitos amigos do<br />

pai, os negócios dão para o torto, e o mesmo<br />

acontece à sua candidatura ao Congresso,<br />

em 1978, quando decide seguir a<br />

carreira política de Bush sénior, já então<br />

senador e líder republicano. No ano seguinte<br />

casará com Laura, uma professora<br />

e bibliotecária, mas nem por isso assentará.<br />

Pelo menos, completamente.<br />

Da sua juventude ficam excessos de<br />

vária ordem. George W. seria detido várias<br />

vezes, a primeira por uma garotice<br />

O PRESIDENTE<br />

NORTE-AMERICANO<br />

Todas as manhãs<br />

ele lê textos bíblicos<br />

na Casa Branca<br />

como roubar uma decoração de Natal,<br />

mas seguiram-se outras já mais à séria:<br />

condução sob o efeito do álcool, e mesmo,<br />

segundo versões não confirmadas,<br />

por posse de cocaína. Invariavelmente, o<br />

apelido salvou-o. Mas a propensão para<br />

o álcool sobreviveu ao casamento. Ele<br />

conta que o grande ponto de viragem na<br />

sua vida se deu na manhã seguinte ao<br />

40.º aniversário, em que acordou maldisposto<br />

depois dos excessos da véspera.<br />

Decidiu então não voltar a beber. Contam<br />

os amigos que Laura lhe dera um ultimato:<br />

«Eu ou o Jack Daniels», numa<br />

alusão ao bourbon que o marido provavelmente<br />

mais consumia.<br />

Até aí, apenas uma coisa lhe correra<br />

bem. Depois do fracasso da sua incursão<br />

pelos petróleos, comprou umas quotas da<br />

GUERRA DO GOLFO II<br />

empresa que possuía a equipa de baseball<br />

Texas Rangers. Se nunca fora um bom jogador<br />

como o pai, conseguiu tornar-se dirigente<br />

da companhia, ainda por cima<br />

com êxito. Começou mesmo aí a sua fortuna<br />

pessoal. E a sua vocação como gestor<br />

estava descoberta.<br />

Ele e Deus<br />

A biografia oficial de Bush aponta-o como<br />

um compassionate conservative, o<br />

que, em tradução livre, significa um «conservador<br />

com preocupações sociais ou<br />

humanitárias».<br />

Mas a definição ajusta-se mal a um político<br />

que assinou todas as mais de 150<br />

execuções que lhe passaram pelas mãos<br />

quando governava o Texas. Mesmo no<br />

mediático caso de Carla Faye Tucker foi<br />

indiferente aos apelos de clemência, inclusive<br />

do Papa.<br />

Bush deixou de beber por si só. Garante<br />

que nunca frequentou os Alcoólicos<br />

Anónimos nem é fã de psicoterapias. Mas,<br />

naquela manhã a seguir aos seus 40 anos,<br />

não mudou apenas de hábitos, mas de vida:<br />

descobriu a religião. Ainda recentemente<br />

a Newsweek dedicou a capa a um<br />

artigo sobre Bush e Deus, em que explicava<br />

«como a fé define a sua agenda». E lá<br />

foi desenterrar passagens dos seus discursos,<br />

como as referências ao «eixo do mal».<br />

Bush, que lê de manhã textos bíblicos<br />

na Casa Branca, chama the walk, o caminho,<br />

ao percurso que iniciou depois daquele<br />

dia de 1986. E escolheu um tom<br />

quase messiânico para explicar o ataque<br />

ao Iraque: «A liberdade que prezamos<br />

não é uma oferta de América ao mundo,<br />

mas uma oferta de Deus à Humanidade.»<br />

Se muitos consideram a sua decisão um<br />

atentado ao Direito internacional, ele<br />

apresenta-se como tendo uma espécie de<br />

legitimidade do Além. Mas, uma vez mais,<br />

foi indiferente ao Papa.<br />

Os analistas americanos dizem que<br />

sempre se soube que George W. travaria<br />

esta guerra, com ou sem o 11 de Setembro.<br />

E não apenas pelo petróleo. Para ele,<br />

a batalha tem um não-sei-quê de pessoal.<br />

Sempre poderá ir um pouco mais longe<br />

do que o pai, a quem muitos criticam não<br />

ter derrubado Saddam na Guerra do Golfo<br />

de 1991. Bush pode agora voltar ao seu<br />

discurso do 11 de Setembro: «Encontrámos<br />

a nossa missão e o nosso momento.»<br />

Claro que ele fala sempre da «larga coligação»<br />

que o seu país lidera, mas sabendo<br />

que se trata apenas de uma figura de<br />

estilo. Para o melhor ou para o pior, o resultado<br />

desta guerra será dele. ■<br />

VISÃO 21 de Março de 2003 53<br />

REUTERS/WIN MCNAMEE


GUERRA DO GOLFO II O resistente<br />

JACQUES CHIRAC<br />

O homem do ‘não’<br />

Em menos de um ano, deixou de ser a «anedota nacional»<br />

para se tornar no herói dos franceses e ser olhado por<br />

meio mundo como uma espécie de super-homem da paz<br />

RUI TAVARES GUEDES<br />

Ohomem tem um lema: «Na vida<br />

política como na vida em geral,<br />

enfrentamos altos e baixos. É preciso<br />

menosprezar os altos e valorizar<br />

os reveses.» Aos 70 anos de idade, e<br />

após quatro décadas na primeira linha da<br />

política francesa, compreende-se que seja<br />

este o lema de Jacques Chirac: poucos, como<br />

ele, sobreviveram a tantas derrotas e<br />

mortes anunciadas, traições, suspeitas e<br />

processos de intenções.<br />

Em França, monsieur le Président é hoje<br />

a única verdadeira unanimidade nacional.<br />

As sondagens dão-lhe uma taxa de<br />

aprovação da opinião pública superior à<br />

maioria de circunstância (82%) com que,<br />

em Maio do ano passado, derrotou Jean-<br />

-Marie Le Pen na segunda volta das presidenciais.<br />

A sua última entrevista televisiva,<br />

dada no gabinete do Palácio do Eliseu –<br />

onde reafirmou a decisão de vetar no<br />

Conselho de Segurança das Nações Unidas<br />

qualquer resolução que abrisse as portas<br />

a uma intervenção militar no Iraque –,<br />

foi seguida por uma assistência recorde de<br />

17,5 milhões de espectadores. O apoio é<br />

tão esmagador que até os seus mais ferozes<br />

críticos se tornaram adeptos entusiastas:<br />

Marie Georges Buffet,<br />

secretária-geral do Partido<br />

Comunista Francês,<br />

endereçou-lhe elogios públicos;<br />

François Hollande,<br />

líder dos socialistas,<br />

manifestou-se «orgulhoso»<br />

com o seu desempenho,<br />

e Jack Lang, o ex-ministro<br />

de Mitterrand e de<br />

Jospin, que muitos acreditam<br />

que será candidato<br />

ao Eliseu nas próximas<br />

eleições, não fez a coisa<br />

por menos e afirmou-se<br />

«a cem por cento» com<br />

as propostas de Chirac<br />

para o conflito iraquiano.<br />

Fora de fronteiras, um<br />

grupo de intelectuais eu-<br />

FESTA DE ANOS<br />

A 29 de Novembro último,<br />

Jacques Chirac celebrou 70<br />

anos e, pela primeira vez desde<br />

que entrou na vida política,<br />

recebeu felicitações de todo<br />

o mundo. Duas foram significativas:<br />

• Tony Blair ofereceu-lhe uma<br />

caneta Churchill e enviou-lhe<br />

uma carta a prestar homenagem<br />

ao que qualificou de<br />

«grande homem»<br />

• Durão Barroso enviou uma<br />

mensagem, lembrando que<br />

Chirac sendo Sagitário, como<br />

sua mulher e sua mãe, deve<br />

ser «uma excelente pessoa»<br />

ropeus (como o cineasta espanhol Pedro<br />

Almodóvar, o escritor alemão Günther<br />

Grass, a prémio Nobel italiana de Medicina<br />

Rita Levi Montalcini e o escritor sueco<br />

Per Olof Enquist) chegou mesmo ao ponto<br />

de publicar uma carta aberta no Le<br />

Monde agradecendo a forma como o Presidente<br />

francês tem enfrentado os EUA<br />

nos últimos tempos. Debaixo do título<br />

«Continue, Jacques Chirac», os intelectuais<br />

pediam-lhe para manter a sua acção<br />

«de apoio à paz, à legalidade internacional<br />

e ao desarmamento», não hesitando em<br />

utilizar, caso fosse necessário, o direito de<br />

veto de que a França usufrui na ONU.<br />

As únicas vozes discordantes vieram da<br />

direita francesa, de alguns poucos deputados<br />

da União por um Movimento Popular<br />

(UMP), a coligação que representa a tradicional<br />

base de apoio eleitoral de Chirac.<br />

Mas essa parece ser a sina do Presidente<br />

francês: surpreender, surpreender sempre,<br />

mesmo mudando de campo político caso<br />

seja necessário.<br />

A estranha consagração<br />

A consagração de Jacques Chirac torna-<br />

-se surpreendente quando se observa o estado<br />

em que ele se encontrava há precisamente<br />

um ano, quando tentava ser reeleito<br />

para o Eliseu após um<br />

primeiro mandato (então<br />

ainda de sete anos) marcado<br />

por escândalos sucessivos<br />

e uma coabitação com<br />

um governo socialista que<br />

quase o tinha empurrado<br />

para um papel decorativo<br />

só comparável ao da rainha<br />

de Inglaterra.<br />

Nessa época, alguns dos<br />

principais best-sellers das livrarias<br />

de Paris eram obras<br />

de investigação jornalística<br />

ou de ajuste de contas político<br />

relatando ou denunciando<br />

os aspectos mais<br />

sombrios de Chirac: as suas<br />

ligações a ditadores africanos,<br />

as redes de interesses e<br />

PRESIDENTE DE FRANÇA<br />

A persistência de Jacques<br />

Chirac em recusar a guerra<br />

tem-lhe valido elogios<br />

de todo o mundo. Mesmo<br />

dos seus antigos adversários<br />

de jogos de favores em que se movimentava,<br />

os desvios de dinheiro durante a sua<br />

longa gestão da Câmara de Paris. Nos bonecos<br />

do Guignol (o Contra-Informação<br />

gaulês) ele era o Super-Mentiroso. E se nas<br />

sondagens parecia ter garantida a vitória<br />

na primeira volta, era apenas para ser claramente<br />

derrotado pelo socialista Lionel<br />

Jospin na ronda decisiva. Em nenhum plano<br />

aparecia aquilo que entrará para os livros<br />

de História como o «sismo Le Pen»:<br />

o candidato da extrema-direita foi o segundo<br />

mais votado, beneficiando da grande<br />

divisão de votos entre os eleitores de esquerda.<br />

Chirac ficava assim com o caminho<br />

aberto para a reeleição, apesar de ter<br />

obtido a mais baixa votação alguma vez<br />

averbada por um Presidente francês: apenas<br />

19,8 por cento.<br />

A verdade é que começava nesse momento<br />

– de forma absolutamente inesperada<br />

– mais uma vertiginosa aceleração para<br />

o cume, na montanha-russa de Chirac.<br />

54 VISÃO 21 de Março de 2003


Mas nada a que o Presidente francês<br />

não esteja habituado desde que fez a sua<br />

entrada na vida política, a 28 de Novembro<br />

de 1962, ao ser nomeado chefe de gabinete<br />

do primeiro-ministro Georges<br />

Pompidou, após estudos de Ciências Políticas<br />

e o serviço militar em Argel. Em pouco<br />

tempo, o impetuoso Chirac, que nos<br />

tempos universitários chegou a «namorar»<br />

a militância comunista, torna-se um<br />

dos mais fiéis colaboradores de Pompidou<br />

– são os dias em que ganha o apodo de<br />

«Bulldozer», tal a forma «diplomática»<br />

como tratava rapidamente de qualquer<br />

problema.<br />

Esse estilo impetuoso viria mais tarde a<br />

revelar-se decisivo, quando, após a morte<br />

de Pompidou, então no Eliseu, Chirac comete<br />

a sua primeira traição: em vez de<br />

apoiar Chaban-Delmas para a presidência,<br />

muda-se com mais 43 deputados gaulistas<br />

para as hostes de Valéry Giscard<br />

d’Éstaing. A recompensa não tardou: Gis-<br />

card bate Mitterrand e nomeia Chirac primeiro-ministro.<br />

Só que o «casamento» não dura muito<br />

tempo. Menos de dois anos depois, corta<br />

também com Giscard, bate com a porta,<br />

sai do governo e transforma completamente<br />

o partido gaulista, alterando as suas<br />

siglas de UDR para RPR. E, passados poucos<br />

meses, toma a decisão de se candidatar<br />

às primeiras eleições para maîre (presidente<br />

da câmara) de Paris, cargo que conquista<br />

contrariando todas as sondagens.<br />

Completadas as primeiras subidas e<br />

descidas, a montanha-russa nunca mais<br />

pára, e o palácio do Hôtel de Ville, junto<br />

do Sena, torna-se uma espécie de retaguarda,<br />

aonde regressa sempre que os<br />

seus sonhos terminam em pesadelo: como<br />

nas eleições presidenciais de 1981,<br />

em que é eliminado logo à primeira volta,<br />

ou em 1988, quando sofre uma humilhante<br />

derrota face a Mitterrand, numa<br />

altura em que a «sua» direita detinha a<br />

maioria sociológica do «hexágono».<br />

O seu sonho de chegar ao Eliseu só é<br />

atingido em 1995, quando, num sprint digno<br />

das melhores lendas da Volta à França,<br />

bate o seu antigo amigo Balladur à primeira<br />

volta e Jospin à segunda. Mas a glória<br />

mostra-se efémera, pois a sua tentação pela<br />

montanha-russa não o larga: ao fim de<br />

dois anos na Presidência, dissolve o Parlamento,<br />

convoca legislativas antecipadas<br />

com o propósito de reforçar a maioria de<br />

direita e... vê os socialistas de Lionel Jospin<br />

obrigarem-no a cinco anos de humilhante<br />

coabitação.<br />

É nessa altura que a sua mulher, Bernadette,<br />

profere uma frase que ficará célebre:<br />

«Os franceses não amam o meu marido.»<br />

Agora, ninguém o diria. Até porque, com<br />

o seu teimoso «não» à guerra de Bush, o<br />

septuagenário Chirac conseguiu aquilo<br />

que muitos já julgavam impossível: colocar<br />

de novo a França no primeiro plano<br />

da política internacional. ■<br />

VISÃO 21 de Março de 2003 55<br />

REUTERS/PHILIPPE WOJAZER


GUERRA DO GOLFO II O tirano<br />

SADDAM HUSSEIN<br />

O fim do ‘Grande Pai’?<br />

Após quase 35 anos de poder absoluto, o ainda Presidente do Iraque<br />

enfrenta o último desafio da sua vida política<br />

FILIPE FIALHO<br />

Humor negro é algo que nunca faltou<br />

a Saddam Hussein. Quando o<br />

televisor de um dos seus compatriotas<br />

se avariava, a recomendação<br />

presidencial era invariavelmente a<br />

mesma: «Ponham um retrato meu no<br />

ecrã!» Nos próximos dias, caso se mantenham<br />

as emissões televisivas com as ladainhas<br />

do costume em louvor do homem<br />

que governa em Bagdad desde 1968, os<br />

iraquianos vão ter a oportunidade de desobedecer.<br />

Um gesto im-<br />

pensável caso não estivesse<br />

em curso uma operação<br />

militar que todos sabem<br />

destinar-se a depor o homem<br />

que é simultâneamente<br />

Chefe do Estado,<br />

comandante-chefe das<br />

Forças Armadas, presidente<br />

do Conselho Supremo<br />

da Revolução e secretário-<br />

-geral do Partido Baas,<br />

mas que prefere ser tratado<br />

como Papá Saddam,<br />

Grande Professor ou<br />

Grande Pai. E a entrada<br />

das tropas americanas, inglesas<br />

ou australianas, é<br />

apenas a primeira oportunidade<br />

do ajuste de contas<br />

entre a generalidade da<br />

população iraquiana e<br />

«aquele que se revela» –<br />

significado de «Saddam»<br />

em árabe. Não será de estranhar<br />

que enquanto a<br />

coligação ocidental bombardeia<br />

palácios, quartéis,<br />

ministérios ou centros de<br />

telecomunicações, os civis<br />

iraquianos tenham como<br />

alvo as omnipresentes estátuas,<br />

painéis, fotos e gravuras<br />

do Presidente. Um<br />

cenário que poderá assemelhar-se<br />

ao ocorrido em<br />

1989, quando os cidadãos<br />

dos países do antigo bloco<br />

CRONOLOGIA<br />

DE UM DITADOR<br />

1937(Abril) • Nasce em<br />

Al Oja, Tikrit, a norte<br />

de Bagdad<br />

1956 (Maio) • Envolve-se<br />

num golpe palaciano para<br />

derrubar o rei Faiçal II<br />

1959 (Julho) • Participa<br />

numa tentativa fracassada<br />

para assassinar o Presidente<br />

Abdul-Karim Qassem<br />

1968 (Julho) • Assume<br />

o cargo de vice-presidente<br />

1972 (Junho) • Ordena<br />

a nacionalização do petróleo<br />

1979 • Torna-se Chefe<br />

de Estado<br />

1980 (Setembro)<br />

• Manda invadir o Irão<br />

1988 (Março) • Ordena<br />

o esmagamento da rebelião<br />

curda com armas químicas<br />

1990 (Agosto) • Invade<br />

o Kuwait<br />

1991 (Janeiro) • Início<br />

da Guerra do Golfo<br />

1991 (Fevereiro)<br />

• Tropas iraquianas retiram<br />

do emirado<br />

1998 (Dezembro)<br />

• Recusa cooperar com os<br />

inspectores da ONU e Bagdad<br />

volta a ser bombardeada<br />

2003 (20 Março) • Início<br />

da nova Guerra do Golfo<br />

de Leste vandalizaram as imagens de<br />

Marx, Lenine e Estaline – sendo este último<br />

uma das figuras políticas que Saddam<br />

mais admira, a par de Maquiavel.<br />

Nascido em 1937, no seio de uma família<br />

de agricultores pobres de Al Oja, uma aldeia<br />

perto de Tikrit, diz a lenda negra que a mãe<br />

de Saddam tentou abortar quando estava<br />

grávida – uma intenção motivada pela morte<br />

do marido logo nos primeiros meses de<br />

gestação do futuro ditador. O menino converteu-se<br />

em enteado por via do novo matrimónio<br />

da mãe, e depressa manifestou<br />

vontade de fugir aos traba-<br />

lhos da terra e à tutela familiar.<br />

É ainda nesta fase que<br />

conhece um tio que haveria<br />

de ajudá-lo nos estudos, levando-o<br />

para Bagdad e<br />

moldando-o politicamente.<br />

«Há três coisas que não deviam<br />

existir neste mundo:<br />

as moscas, os persas e os judeus»<br />

é uma das máximas<br />

que o tio Khairallah Tulfah,<br />

um antigo oficial do exército<br />

que odiava o Ocidente,<br />

lhe terá inculcado para a vida.<br />

Aluno dedicado, Saddam<br />

só não conseguiu entrar<br />

para a Academia Militar<br />

em 1953, mas o tempo<br />

e a perseverança fariam<br />

dele um déspota precoce e<br />

esclarecido nos objectivos<br />

políticos: aos 17 anos assassina<br />

um primo, aos 19<br />

participa num regicídio<br />

fracassado (contra o rei<br />

Faiçal II), aos 22 envolve-<br />

-se noutra tentativa de golpe<br />

de Estado (desta vez<br />

contra o Presidente Abdul<br />

Karim Kassem), aos 31<br />

torna-se vice-presidente<br />

do Iraque e aos 42 é já o<br />

senhor supremo do país.<br />

Pelo meio, conheceu as<br />

masmorras de Bagdad e o<br />

exílio na Síria e no Egipto<br />

(onde terá flirtado com a<br />

CIA) e <strong>especial</strong>izou-se nas artes da tortura<br />

e em manobras palacianas para eliminar<br />

todo e qualquer opositor.<br />

Pagar com a traição<br />

Um dos episódios que melhor demonstram<br />

esta faceta foi a relação que manteve<br />

com o primo Ahmed Hassan al-Bakr.<br />

Este general tornou-se Presidente do Iraque<br />

na sequência do golpe que em Julho<br />

de 1968 instalou o Partido Baas no poder,<br />

e decidiu recompensar o jovem familiar<br />

com o segundo posto do regime. Saddam<br />

assumiu a chefia dos serviços de segurança<br />

e tratou de colocar os seus peões, quase<br />

todos naturais de Tikrit, nas estruturas<br />

de poder através de uma intrincada rede<br />

de informadores e espiões. Apesar das<br />

purgas, das perseguições e dos assassínios<br />

(ficaram célebres em Bagdad os enforcamentos<br />

público de judeus), era então<br />

apontado como o Kennedy do Médio<br />

Oriente: jovem, bem parecido, mulherengo,<br />

carismático e com uma enorme capacidade<br />

para «vender» os seus feitos.<br />

A nacionalização dos poços de petróleo<br />

e a recessão económica mundial dos anos<br />

70 ajudaram-no de forma decisiva. Os<br />

proventos do ouro negro permitiram-lhe<br />

construir escolas, estradas e fábricas, colocar<br />

os iraquianos no terceiro lugar entre<br />

os povos com maior rendimento per capita<br />

do mundo e reivindicar exclusivamente<br />

para si o poder.<br />

É então que coloca o Presidente al-<br />

-Bakr em prisão domiciliária (a versão oficial<br />

para o afastamento são «razões de<br />

saúde») e o força a assinar a resignação<br />

em Julho de 1979. Nos dias e semanas seguintes,<br />

mais de quatro centenas de oficiais<br />

das forças armadas e dezenas de dirigentes<br />

do Partido Baas são executados<br />

por «dissidência» ou «traição». O ambiente<br />

internacional também contribuía<br />

para que praticamente ninguém criticasse<br />

o novo Presidente. Em particular no vizinho<br />

Irão, onde o Xá foi nessa altura deposto<br />

pelos ayatollahs liderados por Khomeini,<br />

convertendo o país numa teocracia<br />

que a generalidade dos países ocidentais<br />

condenava. Aliás, foi esta animosidade<br />

56 VISÃO 21 de Março de 2003


ADS<br />

NOS ANOS 70<br />

Saddam numa<br />

pose de sedutor<br />

de cinema


REUTERS<br />

REUTERS<br />

▲<br />

GUERRA DO GOLFO II O tirano<br />

Qusai Saddam Hussein<br />

Odai Saddam Hussein<br />

O FIM DO ‘GRANDE PAI’?<br />

contra o novo Governo de Teerão que levou<br />

Saddam Hussein a reaproximar-se<br />

dos EUA e de várias chancelarias europeias,<br />

adquirindo armas para iniciar em<br />

Setembro de 1980 a guerra contra o Irão.<br />

Nos oito anos seguintes, o balanço do<br />

conflito saldou-se em milhão e meio de<br />

mortos e os dois países ainda mantêm um<br />

diferendo mediado pela ONU e pela Cruz<br />

Vermelha Internacional devido aos milhares<br />

de prisioneiros de guerra que cada<br />

um dos regimes mantém nos respectivos<br />

cárceres. Insatisfeito com as suas proezas<br />

O filho mais novo do Presidente, 37 anos, é a<br />

eminência parda do regime. Além de ser membro<br />

da direcção do Partido Baas, controla a generalidade<br />

das organizações militares e de segurança:<br />

a Guarda Republicana, a polícia política<br />

(a Mukhabarat), a unidade de élite que tem<br />

por missão zelar pela vida de Saddam Hussein<br />

(a Himaya) bem como a agência responsável<br />

pela vigilância de qualquer individualidade suspeita<br />

de dissidência ou oposição (a Amn al-<br />

-Khass). Ao contrário do seu irmão Odai, Qusai<br />

faz questão de ser discreto, raramente aparece<br />

em público, e, nos últimos anos, tem sido apontado<br />

como o delfim político de Saddam. Possui<br />

bons contactos no mundo árabe, em particular<br />

junto do Presidente da Síria, Bashar Assad.<br />

Primogénito de Saddam Hussein, 39 anos, controla<br />

a generalidade dos meios de comunicação<br />

social, tem um exército privado de 30 mil homens,<br />

chefia o Comité Olímpico Iraquiano e<br />

muitas outras entidades desportivas e culturais.<br />

A sua queda para a violência é já uma lenda –<br />

o pai chegou a metê-lo na prisão por ter assassinado<br />

um dos guarda-costas presidenciais, mas<br />

a condenação à morte foi comutada para um<br />

exílio dourado na Suíça durante 12 meses. Em<br />

Dezembro de 1996, sobreviveu a um atentado<br />

que o deixou quase paraplégico. Nada que o tenha<br />

afastado de uma vida boémia, feita de mulheres,<br />

carros de corrida e animais selvagens –<br />

gosta de aparecer na televisão rodeado de leões<br />

ou ursos...A Comissão Europeia e várias organizações<br />

não governamentais acusam-no de ser o<br />

principal beneficiário de uma rede de corrupção<br />

e tráfico de petróleo, tabaco e divisas.<br />

bélicas, no ano em que Bagdad e Teerão<br />

assinaram o cessar-fogo Saddam encarregou-se<br />

de virar as suas tropas para a minoria<br />

curda que se revoltou no Norte do<br />

Iraque, e mais de 180 mil pessoas foram<br />

mortas através do uso de armas químicas<br />

e biológicas em 280 ocasiões.<br />

Ouro para uma carruagem<br />

Concluídas estas duas aventuras militares<br />

e no dia em que celebrou o seu 52.º aniversário,<br />

Saddam Hussein achou-se no direito<br />

de exigir aos compatriotas que doassem<br />

ao erário público o ouro que tinham<br />

em casa. Um suposto contributo para a<br />

exaurida economia iraquiana que o Presi-<br />

SENHOR DE DE BAGDAD<br />

Saddam sempre gostou<br />

de ser adorado pelas<br />

multidões. Mas nunca<br />

se livrou da fama de ter<br />

vários duplos para<br />

o substituir nesse papel<br />

dente haveria de derreter pouco depois numa<br />

carruagem dourada e na qual chegou a<br />

desfilar em Bagdad, à boa maneira dos monarcas<br />

absolutos. Um pormenor na sua<br />

longa lista de excentricidades – desde gostar<br />

de ser cumprimentado pelos súbditos<br />

numa área compreendida entre os mamilos<br />

e as axilas ou a sua tendência para coleccionar<br />

armas ou chapéus à prova de bala.<br />

O maior devaneio da sua carreira política<br />

chamou-se Kuwait e acabaria por converter<br />

a sua personagem num alvo a abater.<br />

A invasão do emirado durou sete meses,<br />

mas o seu exército foi neutralizado em<br />

mês e meio após a entrada em acção de<br />

uma força multinacional liderada pelos<br />

58 VISÃO 21 de Março de 2003


EUA e que incluiu vários países árabes.<br />

Apesar da derrota militar e de ter perdido<br />

ainda o controlo de 14 das 18 províncias<br />

do país, Saddam sempre afirmou que a<br />

Mãe de Todas as Batalhas (forma como se<br />

refere à I Guerra do Golfo) só teve um<br />

vencedor: ele próprio. Porque foi essa a<br />

vontade de Deus, como revelou o profeta<br />

Maomé a Saddam Hussein no encontro<br />

que ambos tiveram a 22 de Outubro de<br />

1990, segundo a versão presidencial.<br />

A história ensina que a sobrevivência<br />

do regime de Bagdad só foi possível graças<br />

a uma ordem da Casa Branca. O pai<br />

do actual chefe máximo dos EUA, George<br />

Herbert Bush, mandou os soldados e<br />

os blindados regressarem a casa quando<br />

se encontravam a menos de duas horas da<br />

capital iraquiana por já terem cumprido a<br />

missão de libertar o Kuwait. Uma decisão<br />

da qual se deve hoje arrepender e que permitiu<br />

a Saddam consolidar ainda mais o<br />

seu poder, apesar do isolamento diplomático<br />

a que ficou votado e às sanções decretadas<br />

pela ONU. E se o povo iraquiano<br />

passou a lidar cada vez mais com a fome,<br />

o analfabetismo ou a tirania, a verdade<br />

é que Saddam foi incensado nos últimos<br />

13 anos como um deus vivo, seja nos<br />

bunkers decorados à moda de Luis XVI<br />

ou nos incontáveis palácios e mesquitas<br />

erguidos em seu nome. A partir de 1996,<br />

FALEH KHEIBER/REUTERS<br />

GUERRA DO GOLFO II<br />

Contradições<br />

financeiras<br />

do Presidente<br />

No mesmo dia em que se iniciava a nova<br />

Guerra do Golfo, 21 famílias palestinianas<br />

da Cisjordânia e da Faixa de Gaza receberam<br />

uma prenda <strong>especial</strong>. Um cheque no<br />

valor de, aproximadamente, 10 mil euros<br />

oferecido pelo Presidente do Iraque. A boa<br />

acção de Saddam Hussein teve por destinatários<br />

os parentes de jovens combatentes<br />

mortos pelas tropas israelitas, alguns<br />

deles suicidas e activistas islâmicos do Hamas,<br />

grupo colocado na lista negra de organizações<br />

terroristas elaborada pela Administração<br />

Bush.<br />

Desde o início da Intifada palestiniana<br />

contra o Estado hebraico, em Setembro<br />

de 2001, o Governo de Bagdad já enviou<br />

para os territórios ocupados mais de 35<br />

milhões de euros, mas esta última dádiva<br />

não deixa de ser surpreendente se se tiver<br />

em conta que boa parte dos 400 soldados<br />

iraquianos há quase um mês que<br />

não recebe o pré, sobretudo os que estão<br />

na fronteira com o Curdistão. Motivo que<br />

leva Washington e alguns analistas militares<br />

a considerarem que, nessa zona, deverão<br />

registar-se deserções em massa<br />

nas fileiras de Saddam.<br />

o Programa Petróleo por Alimentos passou<br />

a acudir às necessidades humanitárias<br />

do país, mas o cinismo do Presidente chegou<br />

ao ponto de ele afirmar na televisão<br />

que os seus compatriotas «não podem<br />

pensar apenas no pão», sob pena de se<br />

«transformarem em vermes ou aves». Ou<br />

de impor cortes drásticos no sistema de<br />

racionamento quando ele próprio decide<br />

fazer dieta. Algo que ocorre com alguma<br />

frequência e que até já levou o Goveno<br />

iraquiano a tentar importar uma máquina<br />

de liposucção sob a égide da ONU. Resta<br />

saber qual o tipo de vida que este amante<br />

dos luxos ocidentais pretende fazer de<br />

agora em diante. ■<br />

VISÃO 21 de Março de 2003 59


GUERRA DO GOLFO II<br />

PLANOS<br />

O Iraque<br />

depois<br />

de Saddam<br />

A seguir ao derrube do «raïs»<br />

de Bagdad, Washington ficará<br />

responsável por um país complicado<br />

e dividido. Um olhar sobre o projecto<br />

americano de reconstrução<br />

do Iraque... e do Médio Oriente<br />

ITSUO INOUYE/AP<br />

Uma das grandes – e pertinentes –<br />

reservas mantidas pelos que se<br />

opõem a esta nova guerra no Iraque<br />

é o que acontecerá depois.<br />

Mesmo que a Administração Bush não<br />

erre ao admitir um êxito militar rápido<br />

por parte dos americanos, a paz no pós-<br />

-guerra revelar-se-á seguramente complicada.<br />

Mas alguns dos que apoiam a guerra<br />

acreditam que a destruição do regime<br />

de Saddam Hussein trará grandes benefí-<br />

cios para o Médio Oriente. Apesar de ter<br />

deixado transpirar uma tonelada de cenários<br />

para vencer o exército de Saddam,<br />

a Administração dos EUA pouco disse<br />

sobre o modo de gerir o perigoso rescaldo.<br />

Sobre isso, o exclusivo tem pertencido<br />

ao próprio Bush, que costuma descrever,<br />

sempre da mesma maneira, a sua<br />

grande antevisão do Iraque: um país<br />

transformado pela guerra nas cores americanas<br />

da democracia, prosperidade e<br />

CONQUISTA<br />

A guerra, segundo<br />

vários observadores,<br />

poderá ser o mais<br />

fácil. O pior será<br />

governar depois<br />

o Iraque<br />

paz. E, segundo ele, essa grande visão deverá<br />

estender-se depois a toda aquela<br />

parte do mundo, onde o «exemplo profundo<br />

e inspirador» (a libertação do Iraque)<br />

criaria «um novo palco para a paz<br />

no Médio Oriente» e «mostraria o poder<br />

da liberdade para transformar essa região<br />

vital e levar esperança e progresso à vida<br />

de milhões de pessoas». Resumindo, é<br />

aquilo que Bush considera «uma batalha<br />

pelo futuro do mundo muçulmano».<br />

60 VISÃO 21 de Março de 2003


Estes objectivos de Bush constituem<br />

uma estreia absoluta para um país – os<br />

EUA – que nunca se importou muito com<br />

a forma como os Estados árabes eram governados,<br />

desde que o petróleo continuasse<br />

a correr barato para os depósitos das<br />

«banheiras» americanas, e para um Presidente<br />

que chegou à Casa Branca manifestando<br />

desprezo pela reconstrução de países.<br />

Vejamos o que dizem os memorandos<br />

pós-guerra de Washington<br />

1. Quem vai governar o Iraque?<br />

Até os mais visionários da Administração<br />

reconhecem que conquistar o Iraque<br />

promete ser mais fácil do que devolvê-lo<br />

aos iraquianos. Mas muita coisa depende<br />

da forma como a guerra progredir. Os planos<br />

para o pós-guerra requerem inevitavelmente<br />

uma adaptação à medida que se<br />

avança. Mas tem havido uma divisão<br />

constante no seio da Administração sobre<br />

as opções preferidas. Tanto em grandes<br />

como em pequenas questões, registam-se<br />

divergências entre o Departamento de Estado<br />

e a CIA contra o Pentágono e o gabinete<br />

do vice-presidente. Só a 20 de Janeiro<br />

o Departamento de Defesa assumiu as<br />

operações de pós-guerra no novo Gabinete<br />

de Reconstrução e Assistência Humanitária,<br />

designando Jay Garner, um general<br />

na reforma e amigo de secretário da Defesa,<br />

Donald Rumsfeld, como patrão da paz.<br />

O principal <strong>especial</strong>ista em Iraque do Departamento<br />

de Estado, Ryan Cricker, falado<br />

para ir para Bagdad como embaixador,<br />

pode não assumir o cargo por haver na<br />

Defesa tanto poder do pós-guerra.<br />

Bush referiu-se a um leque amplo de intenções<br />

americanas quando apontou como<br />

modelo para o novo Iraque a reconstrução<br />

do Japão e da Alemanha após a<br />

Segunda Guerra Mundial. Embora não o<br />

digam em público, os funcionários da Casa<br />

Branca admitem em privado que o plano<br />

é, pura e simplesmente, a conquista do<br />

Iraque. A Administração gosta de lhe chamar<br />

libertação. Mas significaria uma ocupação<br />

total à moda antiga por forças dos<br />

EUA, que governariam o país até este estar<br />

pronto a ser devolvido aos iraquianos.<br />

Os responsáveis dizem que o plano prevê<br />

forte controlo militar, sob a autoridade<br />

global do comandante da invasão, general<br />

Tommy Franks. «A única coisa que está<br />

em questão agora», diz um funcionário<br />

do Departamento de Estado, «é quanto<br />

tempo vai durar essa governação».<br />

Sobre isso, Bush tem permanecido<br />

opaco: «Vamos ficar no Iraque enquanto<br />

for preciso e nem mais um dia.» Quanto<br />

DAVID GUTTENFELDER/AP<br />

lBAGDAD<br />

A reconstrução da sociedade civil é uma das tarefas mais difíceis dos planos americanos<br />

tempo será isso, depende de decisões difíceis<br />

que ainda não foram tomadas sobre<br />

o papel dos EUA. Deverá a América estar<br />

mais preocupada em assegurar a estabilidade<br />

ou em evitar a impressão de ocupação?<br />

Deverão os EUA estabelecer estruturas<br />

políticas básicas e retirar, ou ficar<br />

mais tempo para tentar construir a sociedade<br />

civil? Segundo todos os esquemas,<br />

um efectivo completo de tropas americanas<br />

– qualquer coisa entre 50 e 200 mil –<br />

formaria a autoridade central por um mínimo<br />

de seis meses, e um número menor<br />

iria provavelmente permanecer durante<br />

dois anos, embora alguns peritos afirmem<br />

que teriam de ficar 20 a 90 mil durante<br />

anos.<br />

2. Ocupar durante quanto tempo?<br />

Os chefes do Pentágono querem entrar<br />

e sair rapidamente. Devem ter franzido o<br />

sobrolho quando Bush falou do Japão.<br />

Essa reconstrução demorou sete anos aos<br />

EUA. Não é esse o modelo, insiste o subsecretário<br />

da Defesa para a Política, Douglas<br />

Feith. «Envolveríamos os iraquianos<br />

logo que possível, e transferiríamos a responsabilidade<br />

para entidades iraquianas<br />

logo que fosse viável», diz.<br />

Os estrategos estão a tentar facilitar a<br />

transição. Apostam que uma abertura feroz<br />

– aquilo a que chamam uma «campanha<br />

de choque e temor» – anulará a vontade<br />

de resistência do Iraque e porá rapidamente<br />

fim ao regime de Saddam com<br />

pouca destruição das infra-estruturas do<br />

país. Alguns responsáveis militares até<br />

murmuram que o plano de guerra deixa<br />

de lado demasiadas redes de transporte e<br />

energia como dádiva para as necessidades<br />

do pós-guerra. Mas se as hostilidades se<br />

arrastarem, a reconstrução do Iraque pode<br />

revelar-se tão dispendiosa e complicada<br />

como os quatro anos de reconstrução<br />

da Alemanha de Hitler.<br />

3. Acções imediatas<br />

Nos primeiros dias do pós-Saddam será<br />

necessária uma grande presença militar<br />

dos EUA. Alguém terá de prestar a assistência<br />

humanitária de que os civis iraquianos<br />

precisarão. Quase 60% dos iraquianos<br />

dependem das senhas de racionamento do<br />

Governo. Os «libertadores» não serão bem<br />

recebidos se não fornecerem rapidamente<br />

aos 25 milhões de habitantes do país rações,<br />

água, abrigo e cuidados médicos.<br />

Outras missões imediatas passam pela<br />

vigilância das fronteiras, impedir os iraquianos<br />

de ajustarem contas entre si, impedir<br />

as três principais comunidades do país<br />

– curdos, sunitas e xiitas – de combaterem<br />

e encontrar quaisquer armas de destruição<br />

maciça que o Iraque possua. O Pentágono<br />

já está preocupado com a dinâmica dessa<br />

busca. «Temos de encontrar e mostrar ao<br />

mundo as armas de Saddam», diz um responsável<br />

da Defesa – de uma forma, acrescenta,<br />

que não deixe suspeitas de que os<br />

EUA forjaram as provas. Essa é uma das<br />

razões pelas quais o Pentágono, ao contrário<br />

do que é habitual, decidiu deixar 500<br />

jornalistas de todo o mundo acompanharem<br />

as forças americanas na invasão.<br />

4. Comando de emergência<br />

Garner, sob o comando de Franks, será<br />

encarregado das questões civis. Irá coordenar<br />

a reconstrução e a administração<br />

civil e – rapidamente, espera Washington<br />

– transferir a assistência humanitária dos<br />

militares para a ONU e as agências não<br />

governamentais. Inicialmente, falou-se de<br />

nomear uma personalidade civil para eliminar<br />

o ónus de uma ocupação militar,<br />

mas um responsável da Casa Branca diz<br />

que «um czar civil não é o que as pessoas<br />

têm em mente». Os EUA acham que mais<br />

um anel na cadeia de comando iria afectar<br />

a eficácia da operação.<br />

VISÃO 21 de Março de 2003 61<br />


▲<br />

GUERRA DO GOLFO II O futuro<br />

O IRAQUE DEPOIS DE SADDAM<br />

Garner e Franks terão o controlo<br />

total do país enquanto forem tomadas<br />

as decisões mais críticas sobre o<br />

futuro. Fontes da Administração di-<br />

zem que os EUA colocarão conselheiros<br />

nos ministérios iraquianos a<br />

fim de ligar directamente o gabinete<br />

de Garner aos assuntos quotidianos.<br />

Os diplomatas árabes informados<br />

sobre os planos denegriram estes<br />

conselheiros como sendo comissários<br />

ao estilo comunista. Mas Washington<br />

diz que o seu papel será ajudar<br />

a reformar a burocracia iraquiana.<br />

Alguns poderão ser americanos<br />

de origem iraquiana, e trarão para a<br />

tarefa a necessária competência técnica<br />

e a familiaridade com a democracia<br />

ocidental. Fontes da Administração<br />

dizem esperar dar a um<br />

americano de origem árabe um papel<br />

altamente visível: o general John<br />

Abizaid, um dos poucos oficiais superiores<br />

americanos que falam árabe,<br />

foi recentemente promovido a<br />

segundo adjunto de Franks. E possui<br />

uma agenda carregada.<br />

5. Reforma das forças<br />

de segurança<br />

O pesado aparelho de agentes que levava<br />

a cabo a repressão de Saddam – talvez<br />

5 mil nos vários serviços de segurança especiais<br />

– será saneado. Mas o Iraque continuará<br />

a precisar de um exército para preservar<br />

a unidade do Estado e impedir a interferência<br />

dos vizinhos. Os duros da equipa<br />

de Bush queriam uma limpeza completa.<br />

As cabeças mais frias advertiram que se<br />

o exército fosse dissolvido, os EUA iriam<br />

enfrentar milhares de soldados esfomeados<br />

e desempregados e não teriam forças competentes<br />

para ajudar a policiar o país.<br />

O Pentágono só preparou um plano rudimentar<br />

para reabilitar o grosso do exército,<br />

uma estratégia cheia de calão militar<br />

desenxabido. Parte de um documento a<br />

que tivemos acesso prevê uma abordagem<br />

em três fases: «Estabilização, transição,<br />

transformação.» Um funcionário céptico<br />

diz: «Desafio-o a indicar a diferença entre<br />

transição e transformação.»<br />

Anulação do Partido Baas. No regime de<br />

Saddam, o partido sustenta a estrutura monolítica<br />

de poder político. Eliminar o exército<br />

secreto de espiões, operacionais locais,<br />

delatores e informadores de Saddam seria<br />

difícil e perigoso. Os funcionários de Bush<br />

concordam na necessidade de um proces-<br />

JEROME DELAY/AP<br />

lMESQUITA DA MÃE DE TODAS AS GUERRAS<br />

O que vão fazer os americanos com os apoiantes de Saddam?<br />

so de limpeza, mas ainda discutem até que<br />

profundidade este deve ir.<br />

Os serviços secretos dos EUA juntaram<br />

as suas bases de dados para preparar listas<br />

de iraquianos importantes, divididos<br />

em três categorias. Primeiro, a elite culpada:<br />

o núcleo de Saddam – responsáveis<br />

militares, da segurança, serviços secretos<br />

e funcionários políticos, mais os membros<br />

da família – que serão capturados, julgados<br />

e punidos por um tribunal para crimes<br />

de guerra. Segundo, os arrependidos:<br />

funcionários superiores cuja fidelidade a<br />

Saddam é menos certa e que podem ser<br />

reabilitados através de julgamentos locais<br />

ou comissões da verdade desde que repudiem<br />

o ditador durante a guerra. Finalmente,<br />

o grupo dos dissidentes: os líderes<br />

governamentais e económicos que em<br />

privado se opõem a Saddam e serão precisos<br />

para gerir o país depois dele poderiam<br />

receber uma amnistia geral. Washington<br />

reuniu até agora mais de 2 mil<br />

nomes, mas não diz quantos se inserem<br />

em cada grupo. Os ocupantes podem ter<br />

de impedir as represálias contra os membros<br />

do partido que poderiam afectar o<br />

funcionalismo público de que um novo<br />

governante precisará.<br />

6. Gestão do petróleo<br />

Visto que a maior parte do mundo<br />

acredita que os EUA cobiçam<br />

as reservas petrolíferas do país (as<br />

segundas maiores do mundo),<br />

Washington será julgada pelo seu<br />

comportamento nesta matéria.<br />

Tem corrido o boato de que as forças<br />

britânicas serão encarregadas<br />

de tomar os campos petrolíferos<br />

durante as hostilidades, a fim de<br />

poupar os EUA à propaganda adversa.<br />

Mas funcionários superiores<br />

dos EUA dizem que esse papel das<br />

forças britânicas não foi fixado.<br />

Bush prometeu que os recursos<br />

petrolíferos do Iraque seriam usados<br />

«para benefício dos seus proprietários:<br />

o povo iraquiano». Embora<br />

alguns assessores do Pentágono<br />

esperassem que as vendas de<br />

petróleo iriam ajudar a pagar a<br />

guerra, outros, no Departamento<br />

de Estado, defendem que a política<br />

de apropriação seria condenável,<br />

sugerindo que as operações petrolíferas<br />

sejam coordenadas por uma<br />

comissão internacional até poderem<br />

ser devolvidas ao Iraque. Mas<br />

Washington espera que as receitas<br />

de petróleo no pós-guerra ajudem<br />

a financiar a reconstrução, aliviando a carga<br />

aos contribuintes americanos.<br />

7. Devolver o poder<br />

O desafio mais complicado será decidir<br />

como e quando o controlo político será devolvido<br />

aos iraquianos. Não há bons projectos<br />

para transformar um regime autoritário<br />

num regime democrático. Mas o Iraque<br />

tem desvantagens especiais. Muitos <strong>especial</strong>istas<br />

em questões iraquianas, tanto<br />

no mundo árabe como no Ocidente, temem<br />

que os EUA estejam a interpretar mal<br />

as realidades ao pensarem impor a democracia<br />

num país profundamente tribal, vingativo<br />

e cheio de ressentimento. O vazio<br />

deixado pelo colapso do punho de ferro de<br />

Saddam pode desencadear lutas pelo poder<br />

e vinganças capazes de conduzir a uma<br />

guerra civil prolongada e até a uma divisão<br />

do país. Não há nenhum democrata à espera<br />

de entrar se o ditador partir. Sunitas,<br />

xiitas e curdos disputariam a sua quota de<br />

poder. Os exilados iraquianos disputariam<br />

a supremacia aos que estão no país e que<br />

desconfiam deles. O Iraque não possui um<br />

órgão tradicional como a Loya Jirga do<br />

Afeganistão, capaz de dar uma forma rápida<br />

à governação interna. Daí que os duros<br />

62 VISÃO 21 de Março de 2003


da Administração tenham feito pressão para<br />

que se deixe o Congresso Nacional Iraquiano<br />

(o controverso grupo de exilados<br />

que agrupa as principais facções da oposição)<br />

organizar previamente um governo<br />

provisório. A Casa Branca acabou por decidir<br />

contra isso, fazendo com que os exilados<br />

se sintam traídos.<br />

A curto prazo, dizem os responsáveis,<br />

Garner apressar-se-á a nomear um conselho<br />

consultivo de iraquianos, equilibrado<br />

sensivelmente a meio por meio entre figuras<br />

do exílio e dirigentes que possam surgir<br />

no interior. Terá um papel largamente<br />

simbólico, e uma vez surgidos os partidos<br />

políticos e os novos dirigentes, poderão<br />

ter lugar eleições locais e nacionais.<br />

Washington não ditará, disse Bush, a<br />

forma precisa do novo governo do Iraque;<br />

isso é com os iraquianos, desde que não<br />

seja outra ditadura. Embora o Pentágono<br />

espere que os rudimentos sejam feitos em<br />

seis meses, a maioria dos <strong>especial</strong>istas diz<br />

que serão precisos pelo menos dois anos.<br />

Belos conceitos, mas funcionarão na<br />

prática? Gary Samore, um funcionário do<br />

Conselho de Segurança Nacional da Administração<br />

Clinton, diz não conseguir<br />

imaginar os iraquianos a tolerar um governador<br />

americano por mais de um par de<br />

meses. Outros dizem que o verdadeiro perigo<br />

não é que os EUA fiquem demasiado<br />

tempo, mas que não fiquem o tempo suficiente.<br />

A democracia, diz Amin Huweidi,<br />

um antigo embaixador egípcio no Iraque,<br />

não pode ser imposta no Iraque «carregando<br />

num botão. É um processo que demora<br />

muito tempo». Muitos europeus concordam<br />

e vêem no Afeganistão os resultados<br />

pouco satisfatórios da última invasão de<br />

Washington: um país ainda longe de estar<br />

estabilizado, democrático e até pacífico,<br />

agora ameaçado de esquecimento depois<br />

da sua «libertação». De facto, o orçamento<br />

de Bush para 2003 nem sequer pediu ao<br />

Congresso o dinheiro que os EUA se comprometeram<br />

a facultar este ano para a reconstrução<br />

do Afeganistão.<br />

8. A democracia irá florescer?<br />

Bush acha que o êxito no Iraque<br />

pode mudar todo o panorama<br />

da região de duas maneiras –<br />

incentivando os reinos escleróticos<br />

e os regimes repressivos a<br />

abraçarem a democracia e contribuindo<br />

para «pôr em marcha»<br />

a paz entre israelitas e palestinianos.<br />

Bush adoptou aqui a teologia<br />

neoconservadora: os EUA invadem<br />

uma parte disfuncional<br />

AP<br />

DAVID GUTTENFELDER/AP<br />

lRUAS DE BAGDAD<br />

Apesar da «libertação» ser uma das bandeiras de Bush, o Presidente dos EUA<br />

nunca explicou como será feita a democratização do país<br />

do mundo para a reparar, e o choque da<br />

guerra irá finalmente deixar o mundo árabe<br />

com melhor saúde. É uma ideia audaciosa,<br />

mas não um plano de trabalho. Nem<br />

Bush nem qualquer funcionário da Administração<br />

deram pormenores sobre como<br />

irá ocorrer a onda de democratização.<br />

Na região, os árabes simplesmente não<br />

compram isso. Não confiam em Bush, e estão<br />

natural e profundamente cépticos com<br />

as tentativas americanas de impor a democracia<br />

pela força. Mesmo que as coisas pudessem<br />

mudar para melhor, diz Khalil Shikaki,<br />

director do Centro Palestiniano de<br />

Estudos Políticos, em Ramallah, «era preciso<br />

ser-se verdadeiramente ingénuo para<br />

acreditar que a actual Administração dos<br />

EUA iria investir esforços sérios na promoção<br />

da boa governação na região».<br />

Entre os árabes, a visão de um pós-guerra<br />

no Médio Oriente está cheia de temores.<br />

Muitos estão convencidos de que a guerra<br />

JAY GARNER<br />

O homem<br />

escolhido para<br />

governar o Iraque<br />

a seguir à guerra<br />

irá alimentar a instabilidade regional e desencadear<br />

nova onda de antiamericanismo.<br />

As fileiras terroristas encontrariam novos<br />

recrutas para espalhar a violência na<br />

região. As forças fundamentalistas podem<br />

provocar acções repressivas que abafem<br />

qualquer abertura política. Ou, se os regimes<br />

permitirem uma ténue democracia, os<br />

fundamentalistas bem organizados podem<br />

chegar ao poder. «As consequências da<br />

guerra», diz o ministro dos Negócios Estrangeiros<br />

da Arábia Saudita, príncipe<br />

Saúd Al-Faiçal, «vão ser trágicas».<br />

A previsão de Bush de que a eliminação<br />

de Saddam incentivará o processo de paz<br />

no Médio Oriente pode ser ainda mais longínqua.<br />

Embora o líder do Iraque tenha recompensado<br />

as famílias dos suicidas palestinianos,<br />

esse dinheiro não é certamente<br />

um factor significativo no seu prolongado<br />

conflito com Israel. «Quando assentar a<br />

poeira da guerra», diz Richard Murphy, <strong>especial</strong>ista<br />

em Médio Oriente do Conselho<br />

de Relações Externas, «continuarão a ter<br />

queixas um contra o outro que não desejarão<br />

aplacar».<br />

Bush colocou a si mesmo um grande desafio.<br />

Assumiu o compromisso mais arriscado<br />

do país numa geração. Prometeu aos<br />

americanos que esta guerra vai fazer mais<br />

bem que mal. Pareceu invulgarmente confiante<br />

quando falou, mas os desejos são uma<br />

coisa e a realidade é outra, <strong>especial</strong>mente<br />

numa região habituada a miragens. ■<br />

© TIME/VISÃO<br />

GUERRA DO GOLFO II<br />

VISÃO 21 de Março de 2003 63


GUERRA DO GOLFO II Há 12 anos<br />

RECORDAÇÃO<br />

Golfo, parte I<br />

A guerra de 1991 teve como resultado visível<br />

a libertação do Kuwait. Mas o conflito de 43 dias<br />

que causou «apenas» 340 baixas entre as forças<br />

aliadas não destronou o ditador de Bagdad,<br />

agora na mira do filho do Bush de há 12 anos<br />

Quando começou efectivamente a<br />

Guerra do Golfo? Quando os primeiros<br />

tanques atravessaram o<br />

deserto do Sul do Iraque e invadiram<br />

o Kuwait para se apoderarem das<br />

suas ricas reservas petrolíferas? Ou muitos<br />

anos antes, quando as autoridades imperialistas<br />

britânicas retalharam o Médio<br />

Oriente?<br />

Apesar de os analistas terem evidenciado<br />

até à exaustão a pesada herança deixada<br />

pelo poder colonial europeu, que traçou<br />

as fronteiras dos actuais Estados do<br />

Golfo sem respeitar etnias, tribos e a multissecular<br />

história da região, oficialmente<br />

a Guerra do Golfo começou quando, em<br />

2 de Agosto de 1990, os blindados de<br />

Saddam Hussein cruzaram a fronteira<br />

com o Emirado do Kuwait.<br />

A riqueza do pequeno Estado governado<br />

por Jaber al-Ahmad al-Jaber contrastava<br />

em 1990 com a difícil situação económica<br />

do Iraque, resultado de uma sangrenta<br />

guerra de sete anos contra o Irão.<br />

Foi durante esse conflito que Saddam estabeleceu<br />

um arsenal e um poderio militares<br />

ímpares na região. Mas os cofres estavam<br />

vazios, e o preço do petróleo, perigosamente<br />

baixo, impedia a recuperação.<br />

Em 17 de Julho, Saddam acusou o Kuwait<br />

e os Emirados Árabes Unidos de<br />

inundarem de petróleo o mercado internacional,<br />

mantendo os preços demasiado<br />

baixos. E, apontando directamente o dedo<br />

ao vizinho Kuwait, acusou-o de «secar»<br />

o campo petrolífero de Rumaila,<br />

uma reserva junto à fronteira disputada<br />

pelos dois países. O ministro dos Negócios<br />

Estrangeiros iraquiano insistiu então<br />

no perdão de 30 mil milhões de dólares<br />

da dívida externa do seu país, compensação<br />

por aqueles alegados crimes. Enquanto<br />

ainda ecoavam os discursos, os tanques<br />

de Bagdad tomavam posições junto da<br />

fronteira com o Emirado.<br />

No dia 25, a embaixadora americana<br />

April Glaspie encontra-se com Saddam e<br />

dá-lhe a conhecer a posição do seu Governo:<br />

os EUA não assistirão passivos ao decorrer<br />

dos acontecimentos. As negociações<br />

entre o Iraque e o Kuwait também<br />

não correm pelo melhor e são interrompidas<br />

a 1 de Agosto. No dia seguinte, tudo se<br />

precipita: os primeiros tanques atravessam<br />

a fronteira, obrigando o emir ao exílio.<br />

Americanos enviam tropas<br />

Após a invasão, as reacções fizeram-se<br />

sentir em capitais de todo o mundo.<br />

George Bush (pai do actual Presidente<br />

dos EUA) protesta de imediato contra a<br />

acção militar, manda congelar os bens<br />

dos dois países na América e põe em alerta<br />

as suas forças militares estacionadas no<br />

Médio Oriente. Na Arábia Saudita, o país<br />

com as maiores reservas de petróleo do<br />

mundo, instala-se o pânico – e se Saddam<br />

decide também ocupar o país, tornando-<br />

-se dono e senhor de metade das reservas<br />

petrolíferas mundiais?<br />

O pedido de ajuda militar aos EUA é<br />

feito pelo reino saudita a 7 de Agosto. Enquanto<br />

soldados americanos das equipas<br />

de intervenção rápida começam a preparar-se<br />

para uma viagem até às areias do<br />

deserto, o Conselho de Segurança da<br />

ONU faz passar uma resolução condenando<br />

a invasão e impondo um embargo<br />

comercial ao país. A União Soviética, a viver<br />

a Primavera de Gorbachev, não se<br />

opõe aos americanos, e começa a formar-<br />

-se uma vasta coligação internacional.<br />

Para os americanos, a operação militar<br />

é a maior de sempre após a Guerra do<br />

Vietname. Cerca de 230 mil soldados recebem<br />

guia de marcha para a Arábia Saudita<br />

e é estabelecida a maior ponte aérea<br />

de sempre entre dois países. Aviões F15,<br />

F16, F111 e F117 são enviados para o<br />

Golfo, juntamente com o mais variado<br />

material de suporte. A máquina de guerra<br />

americana é posta em movimento.<br />

Entretanto, no Kuwait e no Iraque,<br />

Saddam manda prender cidadãos de países<br />

ocidentais – americanos, ingleses, mas<br />

também portugueses e suíços – e ordena<br />

que sejam colocados em instalações militares<br />

estratégicas, funcionando como escudos<br />

humanos contra possíveis ataques<br />

das forças dos EUA. Permanecerão detidos<br />

até Dezembro. Os primeiros relatos<br />

sobre a situação dentro do Emirado também<br />

são desanimadores: pilhagens, tortura,<br />

assassínios e roubos são prática comum<br />

das forças ocupantes.<br />

A aliança<br />

Em Novembro, Bush decide um reforço<br />

da presença militar americana no Golfo,<br />

duplicando o número de efectivos<br />

(atingirá os 500 mil homens). No dia 29,<br />

64 VISÃO 21 de Março de 2003<br />

AP/J.SCOTT APPLEWHITE


o Conselho de Segurança das Nações<br />

Unidas aprova por maioria (com os votos<br />

contra de Cuba e do Iémen e a abstenção<br />

da China) a resolução 678, que estabelece<br />

o dia 15 de Janeiro para a retirada das tropas<br />

iraquianas do Kuwait. Lançado o ultimato,<br />

os EUA reforçam o seu dispositivo,<br />

chamando reservistas que são designados<br />

para postos entretanto deixados vagos ou<br />

para reforçarem os batalhões já presentes<br />

na região. A operação Escudo do Deserto<br />

começa a ganhar os contornos de uma<br />

vasta operação militar.<br />

Na frente diplomática as coisas também<br />

não correm bem a Saddam. Dois terços<br />

dos 21 Estados-membros da Liga Árabe<br />

condenaram a invasão do Kuwait, fazendo<br />

eco das posições dos EUA, Inglaterra,<br />

França, URSS e Japão. O Egipto e outros<br />

CONFIANÇA NA VITÓRIA<br />

No Dia de Acção de Graças, durante uma visita a um acampamento de militares norte-<br />

-americanos estacionados na Arábia Saudita, George Bush lança presentes aos soldados<br />

12 países árabes oferecem tropas para enfrentar<br />

Saddam e libertar o Kuwait, entretanto<br />

transformado em 19.ª província iraquiana.<br />

Do lado das fileiras de Saddam<br />

permanecem apenas a Jordânia, a OLP,<br />

Argélia, Sudão, Tunísia e Iémen.<br />

Perante o reforço da presença militar<br />

da coligação internacional, Saddam alarga<br />

os efectivos do seu exército, que passam<br />

de 500 mil para 680 mil homens.<br />

O que mais preocupa então os aliados é a<br />

possibilidade de Saddam utilizar armas<br />

químicas, biológicas ou mesmo nucleares,<br />

já que as informações recolhidas pela CIA<br />

e pelos agentes secretos infiltrados no terreno<br />

asseguram que Bagdad possui armas<br />

de destruição maciça. A evidência tinha<br />

sido recolhida anos antes, em 1986, quando<br />

60 mil curdos foram bombardeados<br />

com armas químicas pelo exército do seu<br />

próprio país, em Halabja. Outro motivo<br />

de receio é um ataque do Iraque a Israel:<br />

em resposta à agressão, o Estado judaico<br />

poderá utilizar armas nucleares, atingindo<br />

a guerra proporções inimagináveis.<br />

No campo da diplomacia é tentada uma<br />

última jogada. Além das iniciativas de<br />

franceses e russos, que fazem constantes<br />

peregrinações a Bagdad tentando uma saída<br />

para a crise – como a que propunha<br />

que Saddam obtivesse alguma vantagem<br />

territorial, anexando por completo o campo<br />

petrolífero de Rumaila e duas pequenas<br />

ilhas ao largo da costa kuwaitiana<br />

–, no dia 9 de Janeiro o secretário de Estado<br />

americano, James Baker, encontra-se<br />

em Genebra com o ministro dos Negócios<br />

Estrangeiros do Iraque, Tareq Aziz.<br />

VISÃO 21 de Março de 2003 65<br />


▲<br />

GUERRA DO GOLFO II<br />

GOLFO,PARTE I<br />

Mas apesar das grandes expectativas, o encontro<br />

é um falhanço. Dentro de dias, os<br />

tambores da guerra voltariam a soar.<br />

O ataque<br />

A 16 de Janeiro, 24 horas após o expirar<br />

do prazo dado pelo Conselho de Segurança,<br />

os primeiros aviões americanos começaram<br />

o bombardeamento: a operação<br />

Escudo do Deserto passa a Tempestade do<br />

Deserto. Os raids partiram de bases sauditas<br />

e de outras plataformas mi-<br />

litares, como os porta-aviões<br />

estacionados no Golfo.<br />

A operação aérea foi planeada<br />

num bunker do quartel-general<br />

da Real Força Aérea<br />

Saudita. Após a invasão<br />

do Kuwait, uma célula de analistas<br />

americanos foi constituída<br />

com a missão de definir<br />

os alvos a abater. Destruir<br />

a rede de comando de Saddam,<br />

inutilizar os radares e os<br />

mísseis antiaéreos, acabar<br />

com as fábricas e laboratórios<br />

onde eram produzidas armas<br />

de destruição maciça, arrasar<br />

pistas de aterragem e infra-estruturas<br />

portuárias e rodoviárias<br />

e humilhar a sua força de<br />

elite, a Guarda Republicana,<br />

foram os objectivos definidos.<br />

No segundo dia de bombardeamentos,<br />

Saddam declara<br />

que a «mãe de todas as batalhas»<br />

está em curso e ordena o<br />

lançamento de mísseis Scud<br />

contra Israel e a Arábia Saudita.<br />

Mísseis Patriot americanos<br />

interceptam alguns, mas a cidade<br />

de Telavive é atingida,<br />

provocando a ira dos israelitas.<br />

Bush é capaz de controlar<br />

o seu aliado, que se mantém à<br />

margem do conflito – evitando<br />

assim o princípio do fim da coligação,<br />

da qual faziam parte países árabes.<br />

Os ataques dos americanos são eficazes<br />

e o poderio de Saddam é reduzido após a<br />

intensa campanha aérea. No início de Fevereiro<br />

de 1991, cerca de 120 caças iraquianos<br />

refugiam-se no Irão, deixando às<br />

forças da coligação internacional o controlo<br />

dos céus sobre o Tigre e o Eufrates.<br />

A batalha terrestre<br />

Após 39 dias de bombardeamentos<br />

acompanhados por escaramuças ao lon-<br />

Início • 2 de Agosto de<br />

1990, invasão do Kuwait<br />

Fim • 3 de Março de 1991,<br />

Iraque aceita cessar-fogo<br />

Baixas americanas<br />

• 148 mortos em combate<br />

e 145 em acidentes<br />

Baixas militares<br />

iraquianas • cerca<br />

de 100 mil<br />

Prisioneiros de guerra<br />

iraquianos • 71 mil<br />

Países da coligação •<br />

Kuwait, EUA, Arábia Saudita,<br />

Inglaterra, França, Holanda,<br />

Egipto, Síria, Omã, Qatar,<br />

Bahrein, Emirados Árabes<br />

Unidos, Canadá, Bélgica, Itália<br />

(que mandaram efectivos<br />

para o combate), Israel,<br />

Afeganistão, Bangladesh,<br />

Checoslováquia, Alemanha,<br />

Honduras, Níger, Roménia<br />

e Coreia do Sul<br />

Apoiantes do Iraque •<br />

Jordânia, Iémen, OLP, Sudão,<br />

Tunísia e Argélia<br />

go da fronteira entre o Iraque e a Arábia<br />

Saudita e tentativas de acordos de paz<br />

patrocinados pela URSS, começa a batalha<br />

terrestre. O general Norman<br />

Schwartzkopf, comandante-chefe da<br />

operação Tempestade no Deserto, conduz<br />

então uma rápida ocupação, com o<br />

apoio de meios aéreos, que em apenas<br />

cinco dias resulta na conquista do território<br />

do Kuwait. A 27 de Fevereiro, 43<br />

dias depois do início da ofensiva americana,<br />

a bandeira do Emirado adeja de<br />

novo em Kuwait City.<br />

Mas o preço da presença dos militares<br />

iraquianos manter-se-á durante bastante<br />

mais tempo. Antes da retirada, centenas<br />

66 VISÃO 21 de Março de 2003


de poços de petróleo são incendiados e as<br />

imagens de intensas colunas de fumo preto<br />

a subir nos céus enchem os ecrãs de todo<br />

o mundo. A 3 de Março, o general<br />

Schwartzkopf dita aos iraquianos os termos<br />

do cessar-fogo. Nenhum do material<br />

deixado para trás poderá ser recuperado<br />

pelas tropas derrotadas e é criada uma zo-<br />

na de exclusão aérea no Sul do Iraque,<br />

para proteger as tropas americanas ainda<br />

ali estacionadas.<br />

A Guerra do Golfo custou cerca de 60<br />

mil milhões de dólares, mas 48 mil milhões<br />

foram suportados pela Arábia Saudita,<br />

Kuwait e Japão. Cerca de 100 mil iraquianos<br />

perderam a vida, enquanto as<br />

O REGRESSO<br />

A reacção de dois soldados<br />

norte-americanos do Estado<br />

de Nova Iorque quando<br />

descobrem que no saco<br />

de plástico ao seu lado<br />

se encontra o corpo<br />

de um companheiro, morto<br />

em combate durante o mês<br />

de Março de 1991, horas<br />

antes do fim do conflito<br />

baixas dos aliados se cifraram em 340<br />

mortos, 300 dos quais eram militares<br />

americanos. Durante os 43 dias de guerra<br />

registaram-se cerca de 116 mil descolagens<br />

de aviões das forças aliadas. Os números,<br />

como os de todas as guerras, são<br />

aterradores. Mas serão certamente ultrapassados<br />

pelos que aí vêm. ■<br />

VISÃO 21 de Março de 2003 67<br />

AP/DAVID C. TURNLEY


GUERRA DO GOLFO II Em 1991<br />

lCHEGADA A KUWAIT CITY<br />

«Era meio-dia de 27 de Fevereiro quando o Batalhão Lwa, do Kuwait, entrou nos limites da capital»<br />

MEMÓRIA<br />

A libertação do Kuwait<br />

Imagens que marcaram o diário do enviado <strong>especial</strong><br />

de O Jornal na zona de conflito<br />

Aguerra era já certa quando Carlos<br />

Cáceres Monteiro, actual director<br />

da VISÃO, aterrou em Bagdad,<br />

no início de Janeiro de<br />

1991. Os habitantes tentavam sair da capital<br />

iraquiana por todos os meios, encaixotavam<br />

tudo aquilo que se pudesse partir<br />

com os bombardeamentos previsíveis,<br />

relembravam os maus momentos passados<br />

na guerra com o Irão. E, no entanto,<br />

«a cidade do medo» vivia a contagem final<br />

com aparente calma. «Ainda há pouco»,<br />

escrevia o enviado <strong>especial</strong> de O Jornal,<br />

«sobre as cúpulas policromáticas das<br />

mesquitas e os terraços das casas flutuavam<br />

os cânticos lamentosos dos muezines<br />

e os restaurantes da beira do Tigre serviam<br />

o peixe do rio, o magfsouz.»<br />

Cáceres Monteiro, então com 42 anos,<br />

aterrava com a experiência de repórter<br />

noutros palcos de guerra, vários blocos e<br />

canetas de escriba, um telefone-satélite<br />

que faria a «felicidade sem fios» de dois<br />

kuwaitianos atraídos pela parabólica liga-<br />

da ao gerador do carro, e uma máquina<br />

fotográfica que não parou de disparar. Ao<br />

longo de um mês e meio, havia de percorrer<br />

centenas de quilómetros entre o Iraque,<br />

o Kuwait, o Egipto e a Jordânia, de<br />

onde enviou reportagens para O Jornal e<br />

a TSF, estórias sempre com gente dentro.<br />

Mas, se foi no campo jordano de Azraq<br />

que viu «o pavor da guerra nos olhos»<br />

dos refugiados, dois episódios marcam de<br />

forma indelével o seu diário de guerra: a<br />

rendição de um grupo de soldados iraquianos<br />

e o «dia 1» da libertação de Kuweit<br />

City. «Viemos a saber que estavam ali<br />

escondidos há 53 dias. Alguns deles agitam<br />

panos brancos presos nas pontas de<br />

paus», escreveria. «Estamos prestes a entrar<br />

na capital do Kuwait. [...] O bombardeamento,<br />

a pouca distância, dá o pano<br />

de fundo trágico, quase patético, desta cena,<br />

com os iraquianos sentados no meio<br />

do deserto.» Doze anos depois, Cáceres<br />

Monteiro está de novo na área, agora como<br />

enviado <strong>especial</strong> da VISÃO. ■<br />

LIBERTAÇÃO, ‘DIA 1’<br />

«As mulheres soltavam<br />

gritos de júbilo, à tradicional<br />

maneira árabe»<br />

lO FIM DO PESADELO<br />

«É indiscritível a manifestação de alegria<br />

dos soldados»<br />

68 VISÃO 21 de Março de 2003<br />

CÁCERES MONTEIRO<br />

CÁCERES MONTEIRO


SUL DO IRAQUE<br />

«O bombardeamento, a pouca distância,<br />

dá o pano de fundo trágico»<br />

CÁCERES MONTEIRO<br />

‘MARCHA DA LIBERTAÇÃO’<br />

«O ambiente nesta coluna<br />

[militar] é de vitória mas,<br />

apesar disso, muito bélico.<br />

É uma marcha de arma<br />

apontada»<br />

GUERRA DO GOLFO II<br />

lRENDIÇÃO NO DESERTO<br />

«Todos [os soldados iraquianos] têm os olhos<br />

brilhantes. Será mais de terror do que de tristeza»<br />

VISÃO 21 de Março de 2003 69<br />

CÁCERES MONTEIRO<br />

CÁCERES MONTEIRO<br />

CÁCERES MONTEIRO<br />

CÁCERES MONTEIRO


GUERRA DO GOLFO II<br />

CRONOLOGIA<br />

Anos de tensão<br />

O Iraque começou a dar que falar há quase 13 anos, quando<br />

invadiu o Kuwait. O exército de Saddam foi expulso, mas<br />

o regime não foi derrubado. E o braço-de-ferro continuou<br />

1990<br />

17 JUL Saddam Hussein acusa o<br />

Kuweit e os Emirados Árabes Unidos<br />

(EAU) de produção excessiva de<br />

petróleo, fazendo assim baixar os<br />

preços<br />

2 AGO O exército iraquiano invade<br />

o Kuweit. O Conselho de Segurança<br />

(CS) da ONU impõe um embargo<br />

económico ao Iraque<br />

7 AGO O presidente dos EUA,<br />

George Bush (pai), envia tropas para<br />

o Golfo Pérsico<br />

1991<br />

17 JAN Uma coligação liderada<br />

pelos EUA lança uma devastadora<br />

guerra aérea sobre o Iraque<br />

26 FEV O Kuweit é libertado. Dois<br />

dias depois, Bagdad aceita um<br />

cessar-fogo<br />

2 MAR Muçulmanos xiitas revoltam-se<br />

contra Saddam, no Sul do Iraque. Mais<br />

tarde, no Norte, curdos associam-se<br />

à revolta.Ambas as insurreições são<br />

selvaticamente esmagadas, após um<br />

mês de combates<br />

ABRIL O Iraque começa a entregar<br />

relatórios sobre armas de destruição<br />

maciça, enquanto a ONU acusa<br />

Saddam de esconder mísseis e<br />

instalações nucleares. EUA, França e<br />

Reino Unido declaram território<br />

curdo livre uma área de 30 mil<br />

quilómetros quadrados no Norte do<br />

Iraque e restringem os voos acima<br />

do paralelo 36<br />

1992<br />

27 AGO Os EUA, apoiados pelo<br />

Reino Unido e pela França,<br />

restringem os voos no Sul do Iraque,<br />

para proteger os rebeldes xiitas<br />

1994<br />

Numa tentativa de ver levantadas as<br />

sanções, o Iraque reconhece a<br />

independência do Kuweit, aceitando<br />

as fronteiras delimitadas por uma<br />

comissão da ONU<br />

1996<br />

9 DEZ A ONU permite que o Iraque<br />

venda (limitadamente) petróleo, no<br />

primeiro levantamento de sanções<br />

desde 1990<br />

1997<br />

29 OUT O Iraque exige que os<br />

inspectores americanos da ONU<br />

abandonem o país; estes saem, mas<br />

regressam a 20 de Novembro<br />

AP/DOMINIQUE MOLLARD<br />

1990<br />

13 JAN O Iraque deixa<br />

temporariamente de cooperar,<br />

alegando que a equipa da ONU tem<br />

demasiados inspectores americanos<br />

e britânicos<br />

22 JAN O Iraque recusa inspecções<br />

em palácios presidenciais<br />

20–23 FEV Kofi Annan, secretário-<br />

-geral da ONU, assegura a<br />

cooperação iraquiana e a circulação<br />

sem restrições dos inspectores<br />

31 OUT O Iraque põe cobro à<br />

cooperação com a UNSCOM, que<br />

abandona o país<br />

14 NOV O Iraque permite que<br />

recomecem as inspecções<br />

16 DEZ Inspectores de armamento<br />

são expulsos do Iraque. Horas mais<br />

tarde, começam quatro dias de<br />

bombardeamentos americanos e<br />

britânicos sobre Bagdad<br />

1999<br />

O Iraque começa a treinar centenas<br />

de milhares de civis, desde<br />

adolescentes até septuagenários,<br />

para se defender de um ataque<br />

americano<br />

17 DEZ A ONU substitui a UNSCOM<br />

pela UNMOVIC (Comissão de<br />

Monitorização, Verificação e<br />

1992 • Armas químicas destruidas<br />

17 JANEIRO 91 • Ataque a Bagdad 1991 • Poços de petróleo incendiados 1998 • Bombardeamento de Clinton<br />

Inspecções). O Iraque rejeita a<br />

resolução<br />

2000<br />

1 MAR Hans Blix assume o lugar de<br />

administrador executivo da<br />

UNMOVIC<br />

10 AGO Hugo Chávez, presidente<br />

da Venezuela, encontra-se com<br />

Saddam na primeira visita de um<br />

chefe de Estado ao Iraque desde a<br />

Guerra do Golfo<br />

22 SET Um charter francês torna-se<br />

o primeiro voo internacional a<br />

ignorar um pedido da ONU para<br />

esperar por autorização, aterrando<br />

em Bagdad e dando origem a uma<br />

série de voos (com e sem<br />

aprovação) de países ansiosos por<br />

furar as sanções<br />

NOV O Iraque rejeita novas<br />

propostas de inspecção de<br />

armamento<br />

5 NOV O Iraque organiza dois voos<br />

comerciais domésticos, de Bagdad<br />

para Baçorá e Mossul, desafiando as<br />

restrições do espaço aéreo. Os EUA<br />

não levantam objecções, mas a<br />

jogada é vista como mais uma<br />

provocação<br />

2001<br />

16 FEV Na sua primeira intervenção<br />

militar, George W. Bush manda<br />

aviões americanos e britânicos<br />

bombardear defesas antiaéreas<br />

perto de Bagdad, no primeiro<br />

ataque a norte do paralelo 33 desde<br />

Dezembro de 1998<br />

27 FEV O ministro dos Negócios<br />

Estrangeiros iraquiano rejeita uma<br />

proposta americana para emendar<br />

as sanções da ONU, alegando que<br />

70 VISÃO 21 de Março de 2003<br />

AP/MICHEL LIPCHITZ<br />

epa<br />

REUTERS


tudo não passa de um golpe para<br />

justificar a manutenção do embargo<br />

4 JUN O Iraque suspende<br />

temporariamente as exportações de<br />

crude que não sejam para os vizinhos<br />

Turquia e Jordânia, como protesto por<br />

uma decisão do CS que alargava em<br />

apenas um mês o programa pelo qual<br />

Bagdad podia vender petróleo<br />

3 AGO O secretário de Defesa<br />

americano, Donald Rumsfeld, diz<br />

que o Iraque reconstruiu as defesas<br />

antiaéreas à volta de Bagdad desde<br />

os últimos bombardeamentos, no<br />

início do ano<br />

23 SET Negando qualquer ligação aos<br />

ataques de 11 de Setembro, o vice-<br />

-presidente iraquiano, Taha Yassin<br />

Ramadan, diz acreditar que os EUA<br />

atacarão o seu país para impor a sua<br />

vontade. E acrescenta: «Estamos<br />

confiantes em que a América caminha<br />

em direcção ao fim.»<br />

2002<br />

29 JAN No seu discurso sobre o<br />

Estado da União, Bush pede para se<br />

evitar que Irão, Iraque e Coreia do<br />

Norte adquiram armas químicas,<br />

biológicas ou nucleares. «Estados<br />

como estes, e os seus aliados<br />

terroristas, constituem um eixo do<br />

mal pronto a ameaçar a paz do<br />

mundo», diz<br />

MARÇO O vice-presidente dos EUA,<br />

Dick Cheney, recebe um aviso<br />

público da parte do Rei jordano,<br />

Abdullah II, de que alargar a guerra<br />

contra o terrorismo ao Iraque podia<br />

desestabilizar a região e deitar a<br />

perder tudo o que se conseguiu no<br />

Afeganistão. Cheney recolhe<br />

advertências semelhantes durante a<br />

sua visita ao Médio Oriente<br />

14 MAI Numa vitória para os EUA,<br />

o CS aprova por unanimidade uma<br />

série de sanções contra o Iraque,<br />

apertando o embargo militar ao<br />

regime de Saddam e facilitando a<br />

entrada de bens de primeira<br />

necessidade<br />

5 JUN Após conversações com Kofi<br />

Annan, o Iraque rejeita as propostas<br />

de inspecções de armamento<br />

1 AGO Em carta enviada a Annan, o<br />

Iraque convida Hans Blix a discutir<br />

questões técnicas sobre<br />

desarmamento<br />

6 AGO Annan escreve aos dirigentes<br />

iraquianos pedindo que aceitem as<br />

inspecções<br />

26 AGO Cheney alerta para as<br />

graves consequências de não se agir<br />

rapidamente contra Saddam,<br />

acrescentando que a lógica de quem<br />

se opõe a um ataque preventivo<br />

está «cheia de falhas»<br />

12 SET Discursando na ONU, Bush<br />

pede aos líderes mundiais que sejam<br />

mais duros para com o Iraque no<br />

que respeita às inspecções e deixa<br />

claro que se a ONU não estiver<br />

disposta a agir, os EUA fá-lo-ão<br />

16 SET Numa carta a Kofi Annan,<br />

o MNE iraquiano, Naji Sabri, diz que<br />

Bagdad autorizará o regresso dos<br />

inspectores para «acabar com<br />

quaisquer dúvidas» ainda existentes<br />

sobre armas de destruição maciça.<br />

Washington considera isto uma<br />

táctica para ganhar tempo<br />

16 OUT Bush assina uma resolução<br />

do Congresso americano<br />

autorizando o uso de forças<br />

militares, se necessário, para obrigar<br />

o Iraque a destruir as suas armas<br />

biológicas e químicas e abandonar o<br />

programa de armas nucleares<br />

5 NOV Começa o Ramadão<br />

8 NOV Numa surpreendente<br />

votação unânime, o CS aprova uma<br />

nova (e dura) resolução tendo em<br />

vista forçar Saddam a desarmar ou<br />

enfrentar «graves consequências»,<br />

que poderiam significar a guerra<br />

13 NOV Numa amarga carta ao<br />

secretário-geral, o Iraque aceita<br />

relutantemente as exigências e<br />

reitera não possuir armas de<br />

destruição maciça. Na véspera, o<br />

parlamento iraquiano havia<br />

recomendado a Saddam que<br />

rejeitasse a resolução<br />

27 NOV Responsáveis da ONU<br />

declaram que as primeiras<br />

inspecções no Iraque deverão<br />

recomeçar neste dia, embora a<br />

resolução do CS aponte para que se<br />

iniciem até 23 de Dezembro<br />

3 DEZ O vice-secretário de Defesa<br />

americano, Paul Wolfowitz,<br />

encontra-se com altos dirigentes<br />

turcos, garantindo aos jornalistas<br />

que a Turquia terá um papel a<br />

desempenhar no novo conflito do<br />

Golfo (Ancara teria disponibilizado<br />

as suas bases aéreas às forças<br />

americanas). Mas um dia depois o<br />

gabinete do primeiro-ministro<br />

Abdullah Gul declara que ainda não<br />

há uma decisão final sobre o<br />

assunto e que não se comprometeu<br />

em nada<br />

4 DEZ Termina o Ramadão<br />

24 DEZ Donald Rumsfeld começa a<br />

preparar as forças militares para o<br />

assalto ao Iraque<br />

2003<br />

2000 • Hugo Chávez visita Saddam<br />

27 JAN Hans Blix apresenta um<br />

duro relatório na ONU afirmando<br />

que Bagdad não deu provas de uma<br />

«aceitação genuína» das exigências<br />

GUERRA DO GOLFO II<br />

1998 • Inspectores da ONU retiram 2003 • Provas reais?<br />

de desarmamento<br />

28 JAN No seu discurso sobre o<br />

Estado da União, Bush acusa o<br />

Iraque de esconder armas de<br />

destruição maciça e avisa as forças<br />

armadas americanas para se<br />

prepararem<br />

4 FEV Colin Powell sublinha na<br />

ONU que Saddam constitui um<br />

perigo iminente. A França e a<br />

Alemanha pedem mais tempo para<br />

os inspectores<br />

14 FEV Hans Blix garante que a sua<br />

equipa não encontrou armas de<br />

destruição maciça<br />

1 MAR A UNMOVIC ordena ao<br />

Iraque a destruição de todos os seus<br />

mísseis Al Samoud II e de 380 outros<br />

engenhos explosivos que haviam<br />

sido ilegalmente importados<br />

14 MAR Falha mais uma semana de<br />

intensa diplomacia americana na<br />

tentativa de persuadir os membros<br />

necessários do CS a votarem por<br />

uma resolução autorizando a força.<br />

A Administração Bush critica a<br />

França por anunciar que vetará<br />

qualquer opção pela guerra<br />

16 MAR Bush, Blair e Aznar<br />

encontram-se numa cimeira na Base<br />

das Lajes, Açores. Os três líderes e<br />

Durão Barroso anunciam no final<br />

que a janela da diplomacia estará<br />

aberta apenas por mais um dia<br />

17 MAR Os EUA desistem de levar<br />

ao CS a votação de nova resolução<br />

que autorize o uso da força contra o<br />

Iraque; à 1 da manhã de 18 de<br />

Março (hora continental<br />

portuguesa), Bush faz um discurso<br />

onde dá a Saddam e filhos um<br />

ultimato de 48 horas para<br />

abandonarem o país, preparando os<br />

americanos para a II Guerra do<br />

Golfo<br />

VISÃO 21 de Março de 2003 71<br />

REUTERS/FALEH KHEIBER<br />

REUTERS<br />

REUTERS/JUAN CARLOS SOLORZANO


GUERRA DO GOLFO II De Bagdad para Lisboa<br />

IRAQUIANOS EM PORTUGAL<br />

Imigrantes de luxo<br />

A pequena, abastada e bem inserida comunidade iraquiana<br />

contesta frontalmente a guerra, mas receia falar por temer<br />

represálias sobre os familiares que residem no seu país<br />

PAULA SERRA<br />

‘ Ainda no domingo falei com um<br />

primo meu que está no Iraque.<br />

A guerra nunca acabou para o<br />

povo iraquiano. Todos os dias<br />

o país está a ser bombardeado, mas<br />

quando esta grande ofensiva americana<br />

começar, ainda vai ser pior. Só que, mesmo<br />

já estando habituadas, as pessoas<br />

querem ver um fim a tudo isto.» Tal como<br />

outros iraquianos contactos pela VI-<br />

SÃO, M. pede o anonimato por razões<br />

de segurança, sobretudo por ainda ter<br />

muitos familiares a residirem no Iraque.<br />

Teme, por isso, represálias se assinar a<br />

sua opinião sobre o «o terrível regime de<br />

Saddam Hussein».<br />

M. é um homem de negócios na casa<br />

dos 40 anos, que deixou o Iraque quando<br />

tinha 5 e que desde os 23 que não o<br />

visita. Chegou a Portugal em 1989. Solteiro,<br />

tem dois irmãos e uma irmã (todos<br />

a morarem fora do nosso país) e tem interesses<br />

no sector imobiliário nos arredores<br />

de Lisboa.<br />

Apesar de não gostar do Governo de<br />

Saddam Hussein, M. defende que «os<br />

americanos não têm qualquer legitimidade<br />

para atacar o Iraque». As inspecções<br />

da ONU, diz, «estavam a resultar».<br />

E interroga-se: «Se a guerra dos americanos<br />

é contra Saddam, porque não o tiraram<br />

de lá em 1991?» Quem vai sofrer<br />

nesta guerra, na sua opinião, «é o povo»,<br />

e afirma que «se os americanos<br />

querem fazer alguma coisa contra o Governo<br />

iraquiano, então que o façam.<br />

O Governo ainda vive melhor do que<br />

antes de 1991.» Acentua que «é ao povo,<br />

e não aos governantes, que falta comida<br />

e medicamentos, devido aos embargos<br />

dos EUA».<br />

O dinar era equivalente a cerca de 3,3<br />

dólares; agora a nota verde americana<br />

equivale... a 2 mil dinares. «Um ordenado<br />

médio no Iraque ronda os três dólares<br />

por mês», revela M.<br />

Considera «incrível» que os americanos<br />

já estejam a negociar os contratos de<br />

reconstrução do Iraque. «Ainda nem começou<br />

a guerra e os melhores negócios já<br />

estão nas mãos de Dick Cheney...»<br />

Tal como outros iraquianos contactados<br />

pela VISÃO, M. pensa que Portugal<br />

«é um país pacífico, com um excelente<br />

clima e um povo muito simpático.»<br />

E acrescenta: «Aqui nunca me considerei<br />

estrangeiro, como acontece noutros países<br />

da Europa. Nem sequer após o 11 de<br />

Setembro senti qualquer constrangimento.<br />

Os portugueses sabem que nós não temos<br />

nada que ver com Bin Laden, e muito<br />

menos com o terrorismo. Noutros países,<br />

muitos de nós ficámos detidos só por<br />

causa do nome ou por sermos muçulmanos.<br />

Até agora, nunca me senti perseguido,<br />

ninguém me fez qualquer pergunta<br />

sobre a minha vida privada, nem sobre as<br />

minhas contas bancárias...»<br />

Uma elite de 150 pessoas<br />

Números oficiais dizem que em finais<br />

de 2002 vivia em Portugal centena e<br />

meia de iraquianos. Cifra muito reduzida<br />

se comparada com a da vizinha Espanha<br />

ou a de outros países da UE, como<br />

a Alemanha ou a Inglaterra, onde as<br />

comunidades iraquianas são vastas.<br />

Também ao contrário de Espanha, Portugal<br />

não funcionará como uma «placa<br />

giratória» para iraquianos que procuram<br />

abrigo na UE ou nos EUA, já que a generalidade<br />

dos que se encontram no nosso<br />

país vivem com as famílias há mais de 10<br />

anos e no mesmo local.<br />

Lisboa conta com o maior aglomerado<br />

de iraquianos do País (96), seguindo-<br />

-se Setúbal (43) e Faro (6). Por outro lado,<br />

a centena e meia dos iraquianos fixados<br />

em Portugal pode ser considerada<br />

uma elite do mundo dos negócios (hotelaria<br />

e o imobiliário), predominando os<br />

diplomados em universidades britânicas<br />

e americanas. Entre eles contam-se ainda<br />

intelectuais como o professor Tariq<br />

Al-Koudayri, 73 anos, engenheiro químico<br />

reformado, que trabalhou para a<br />

ONU durante 18 anos.<br />

Este professor universitário, que con-<br />

UM ‘LAWRENCE’<br />

PORTUGUÊS<br />

João Mariano<br />

da Fonseca, 80 anos,<br />

nasceu em Bagdad,<br />

ainda nos tempos<br />

do império otomano<br />

tinua a publicar artigos sobre questões<br />

humanitárias e técnicas na imprensa de<br />

lingua árabe, trocou um emprego na<br />

Universidade de Bagadad, dois anos<br />

após a subida de Saddam ao poder, por<br />

uma consultadoria numa empresa petrolífera<br />

em Beirute. Já representante da<br />

ONU no Líbano, a invasão israelita obrigou-o<br />

a procurar refúgio em Viena, onde<br />

residiu até 1993 ainda como funcionário<br />

da ONU.<br />

Nesse mesmo ano fixou-se nos arredores<br />

de Lisboa, «que já conhecia quando<br />

visitava amigos que tinha em Portugal»,<br />

como o patriarca da família Al-Ba-<br />

72 VISÃO 21 de Março de 2003


ker, um homem de negócios iraquiano<br />

ligado ao sector hoteleiro.<br />

A VISÃO tentou falar com esta outra<br />

família, que considera porém o momento<br />

«inoportuno» para prestar declarações.<br />

Os abastados Al-Baker possuem vários<br />

empreendimentos turísticos em<br />

Portugal Continental e na Madeira, incluindo<br />

a Marina de Cascais e a herdade<br />

da Apostiça, no distrito de Setúbal.<br />

Esta «casta» de homens ricos que é a<br />

comunidade iraquiana em Portugal está<br />

bem inserida nos hábitos locais, apesar<br />

de continuar totalmente familiarizada<br />

com as principais praças financeiras internacionais.<br />

Poucos voltaram ao Iraque, quer por<br />

razões políticas quer simplesmente porque<br />

os afazeres lhes deixam pouco tempo<br />

para passar nas suas terras natais, entretanto<br />

devastadas pela pobreza.<br />

Não querendo confessá-lo, muitos<br />

não aceitam falar aos media porque possuem<br />

dupla e tripla nacionalidade, um<br />

tabu na sua comunidade. E a maioria teme<br />

perder os privilégios que lhe são facultados<br />

pelo facto de terem um segundo<br />

ou até terceiro passaporte, normalmente<br />

de países islâmicos.<br />

GUERRA DO GOLFO II<br />

Apesar de maioritariamente muçulmanos,<br />

os iraquianos residentes em Portugal<br />

não frequentam com regularidade<br />

as mesquitas, fazendo as suas orações<br />

quase sempre em casa.<br />

Saddam, Sharon e Bush, todos iguais<br />

Tariq Al-Koudayri, casado com uma<br />

americana e também com nacionalidade<br />

americana, é um dos poucos iraquianos<br />

que conservam apenas o seu passaporte<br />

de origem e que, sempre que necessário,<br />

renova a autorização de residência<br />

no nosso país. É também um dos<br />

poucos que acedem a falar aberta-<br />

VISÃO 21 de Março de 2003 73<br />

LUÍS BARRA<br />


GUERRA DO GOLFO II De Bagdad para Lisboa<br />

IMIGRANTES DE LUXO<br />

▲ lTARIK AL-KOUDAYRI<br />

mente à VISÃO sobre o Iraque, o regime<br />

de Sadam e as razões que fizeram de<br />

Portugal a sua segunda pátria.<br />

Portugal lembra-lhe «sobretudo muito<br />

o Líbano», país que nunca teria abandonado<br />

se não tivesse ocorrido a guerra<br />

com Israel, na década de 70.<br />

Foi, aliás, no Líbano que se licenciou<br />

em Engenharia, tendo tirado mais tarde<br />

uma <strong>especial</strong>ização nos EUA. Alguns<br />

dos seus antigos colegas assumiram posições<br />

relevantes na administração iraquiana,<br />

mas Al-Koudayri tornou-se personna<br />

non grata.<br />

Ao descrever a situação no seu país,<br />

Al-Koudayri sente uma mistura de sentimentos:<br />

detesta o regime de Saddam,<br />

mas é frontalmente contra uma guerra<br />

que «só afectará o meu povo». E acrescenta:<br />

«Não vejo qualquer diferença entre<br />

Saddam Hussein, Ariel Sharon ou<br />

George W. Bush. Saddam é um psicopata,<br />

Sharon não é um ditador per se, mas<br />

o seu background é o de um fanático, e<br />

com Bush passa-se o mesmo.» Evita falar<br />

sobre as suas convicções religiosas<br />

ou políticas: «É algo que considero do<br />

foro privado. Todas as religiões são pela<br />

paz, mas infelizmente demasiadas pessoas<br />

usam-nas para outros fins.»<br />

Para Al-Koudayri, «o futuro do Iraque<br />

é uma incerteza». E explica: «Bush não<br />

incluiu nenhuma verba no orçamento<br />

para ajudar a reconstrução do Afeganistão.<br />

Quanto ao Iraque, pensa que será<br />

diferente.» E acrescenta:<br />

«O problema no meu país agravou-se<br />

desde que invadiu o Kuwait – a tensão<br />

aumentou e atingiu todas as camadas da<br />

população. A maior parte da riqueza ficou<br />

nas mãos de Saddam. Até ao início<br />

da guerra com o Irão tínhamos reservas<br />

no valor de 35 mil milhões de dólares; a<br />

partir daí, todos os projectos industriais<br />

«Não vejo qualquer diferença entre Saddam Hussein, Ariel Sharon ou George W. Bush»<br />

foram destruídos, os mercados internacionais<br />

fechados. O país perdeu todo o<br />

seu desenvolvimento.»<br />

Na sua opinião, os EUA querem<br />

controlar o Iraque como sucedeu nos<br />

anos 50. «Em 1958, com a queda da<br />

Monarquia, o Ocidente perdeu o controlo<br />

do país, incluindo as principais<br />

bases inglesas.»<br />

Segundo Al-Koudayri, o objectivo é<br />

«estabelecer bases no Iraque, porque é<br />

um dos Estados da zona onde existem<br />

mais pessoas com educação, e inúmeras<br />

riquezas, que não se limitam ao petróleo».<br />

E, à laia de remate: «Uma das coisas que<br />

os americanos sempre mais temeram,<br />

além do comunismo, foi o pan-arabismo.<br />

Entrar no Iraque será uma forma de controlar<br />

não só a Ásia Central mas também<br />

o Médio Oriente, por meio de governos<br />

locais que apoiem a política americana.<br />

O Iraque será uma ponte para isso.»<br />

Um ‘Lawrence’ português<br />

João Mariano da Fonseca nasceu há<br />

80 anos em Bagdad. É filho de um português<br />

que chegou à região ainda antes<br />

da I Guerra Mundial e de mãe iraquiana.<br />

Conheceram-se quando ele foi preso<br />

pelos turcos (do então Império Otomano)<br />

na cidade que é hoje a capital<br />

do Iraque.<br />

Mariano da Fonseca, que possui<br />

uma das maiores colecções<br />

de arte islâmica em Portugal, viveu<br />

no Iraque praticamente toda<br />

a vida. Frequentou o colégio<br />

americano e formou-se em Engenharia,<br />

tendo-se depois <strong>especial</strong>izado-se<br />

em refrigeração em<br />

Bombaim, na Índia, país onde<br />

conheceu a sua mulher. Acabou<br />

por voltar a trabalhar para empresas<br />

estrangeiras sediadas em<br />

Bagdad, «porque, depois da primeira<br />

revolução, os estrangeiros<br />

não podiam trabalhar para empresas<br />

locais, e apesar de tudo,<br />

eu tinha nascido lá».<br />

A convite do governo português<br />

anterior ao 25 de Abril, foi<br />

o primeiro cônsul do nosso<br />

país em Bagdad. Mas foram sobretudo<br />

o seus contactos e o<br />

facto de ser iraquiano de nascimento<br />

que lhe permitiram abrir<br />

muitas portas para empresas<br />

portuguesas que durante os<br />

anos 60, mas sobretudo 70, fizeram<br />

negócios no Iraque e<br />

noutros países da região.<br />

Apesar de ter voltado ao Iraque na década<br />

de 80, deixou definitivamente o<br />

país em 1977, quando «já não era seguro<br />

morar lá». A família tinha vindo em<br />

1975 para Portugal, mas o seu objectivo<br />

teria sido imigrar para o Brasil.<br />

Quando lhe perguntamos qual é a sua<br />

nacionalidade de preferência, Mariano<br />

da Fonseca responde peremptório:<br />

«Sinto-me aquilo que sou: iraquiano,<br />

português e inglês. E gosto muito de comida<br />

árabe, que é uma mistura de comida<br />

grega, europeia e árabe propriamente<br />

dita. Enfim, bizantina...» ■<br />

74 VISÃO 21 de Março de 2003<br />

BRUNO RASCÃO


BRUNO RASCÃO<br />

CASAL LUSO-IRAQUIANO<br />

À espera do ataque<br />

Como Shamiram e Raul Silva viveram as últimas horas<br />

do ultimato de Bush a Saddam<br />

‘ Que é aquilo? Já estão a atacar?»<br />

Os negros olhos de Shamiran<br />

exorbitam de inquietação ao verem<br />

no pequeno ecrã tropas especiais<br />

americanas em acção. Ao saber<br />

que são imagens de arquivo, a iraquiana<br />

não esconde o alívio. Que dará de novo<br />

lugar a ansiedade sempre que aparecerem<br />

directos da sua Bagdad natal. São 22 e 30<br />

de quarta-feira, 19. Faltam duas horas e<br />

meia para expirar o ultimato dado por<br />

Bush a Saddam. Em Portugal não será fácil<br />

encontrar outra casa onde a iminência<br />

da guerra esteja a ser vivida com tanta<br />

preocupação.<br />

Raul Silva, 43 anos, e Shamiran, 33, conheceram-se<br />

em Bagdad em 1995 e casaram-se<br />

há quase três anos. Para trás, ela<br />

deixou os pais e três irmãos, cujo bem-estar<br />

a aflige. Sobretudo depois de um telefonema<br />

feito nessa tarde para o pai. «Liguei-lhe<br />

para desejar um feliz Dia do Pai<br />

e percebi que ele estava a chorar. Foi chamado<br />

para ir combater.»<br />

Com o seu pai, 66 anos, operário de betoneiras,<br />

vão também para a frente os seus<br />

dois irmãos, de 35 e 37. Para estes, é já a<br />

terceira mobilização, depois do conflito<br />

Irão–Iraque e da I Guerra do Golfo. Shamiran<br />

preocupa-se em saber «como é que<br />

a minha familía sobreviverá se os homens,<br />

que são quem a sustenta, vão combater».<br />

Shamiran sabe o que é estar no meio de<br />

uma guerra. Em 1991, a casa familiar foi<br />

destruída por um míssil americano. «Só<br />

ficou uma parede de pé.»<br />

Música no coração<br />

Bagdad e o Cacém estão separados por<br />

milhares de quilómetros, mas a decoração<br />

da sala de estar da família Silva reduz a<br />

distância. Os móveis portugueses estão repletos<br />

de porcelanas e estatuetas iraquianas.<br />

Mas se não fosse o embargo, o casal<br />

dificilmente se teria conhecido.<br />

Em Fevereiro de 1992, Raul Silva leu<br />

num jornal que o famoso músico iraquiano<br />

Munir Bashir estava impossibilitado<br />

de obter cordas para o alaúde, devido<br />

às sanções económicas. O português<br />

achou o episódio «ridículo» e<br />

prontificou-se, junto da embaixada do<br />

Iraque a providenciar as cordas «através<br />

de um amigo que tinha um bazar em<br />

Tânger». Um ano depois recebe uma<br />

chamada da representação diplomática<br />

iraquiana expressando-lhe gratidão pelo<br />

gesto e endereçando-lhe um convite do<br />

Governo de Bagdad para visitar o país.<br />

Em Setembro parte para o Iraque, on-<br />

GUERRA DO GOLFO II<br />

PREOCUPAÇÃO<br />

Na noite em que<br />

começou a guerra,<br />

o casal acompanhou<br />

as notícias pela CNN<br />

de contacta com as carências provocadas<br />

pelo embargo. De regresso a Lisboa, tenta<br />

dar conhecimento daquilo que presenciara.<br />

Sem sucesso. «Na altura não interessava<br />

que houvesse milhares de crianças<br />

a morrerem no Iraque.»<br />

Indiferente ao silêncio das instituições,<br />

Raul Silva continuou a viajar para o Iraque<br />

até 1996, sempre «carregado de medicamentos,<br />

leite e papas», que ia pessoalmente<br />

entregar aos hospitais e maternidades.<br />

Hoje, não hesita em classificar Saddam<br />

de «grande responsável pela situação<br />

de miséria em que o Iraque se encontra».<br />

No entanto, é às sanções económicas que<br />

atribui as maiores culpas.<br />

É numa dessas estadas em Bagdad que<br />

conhece Shamiran, uma cristã licenciada<br />

em Hotelaria e Turismo e recepcionista<br />

no hotel em que estava hospedado. Desde<br />

que está em Portugal, Shamiran passou<br />

a usar jeans e blusas e adoptou o peixe<br />

cozido com batatas como prato de eleição<br />

e o Centro Comercial Colombo como<br />

sítio ideal para passear. E confessa-se<br />

adepta do Boavista.<br />

À medida que os ponteiros avançam, as<br />

espreitadelas aos diversos canais noticiosos<br />

tornam-se mais frequentes. «Com que<br />

direito querem os americanos reconstruir<br />

o nosso país e dizer como hão-de ser as<br />

coisas? É a nossa terra, não a deles.»<br />

Shamiran não gosta do líder iraquiano,<br />

mas prefere-o a um regime islâmico. «É<br />

verdade que no Iraque não há democracia,<br />

mas não é como no Irão ou no Afeganistão,<br />

onde as mulheres têm de andar<br />

com a burqa ou o chador...». ■<br />

TIAGO FERNANDES<br />

VISÃO 21 de Março de 2003 75


GUERRA DO GOLFO II Entrevista<br />

MÁRIO SOARES<br />

Por uma mediação do Papa<br />

O anterior Presidente da República defende a continuação da luta pela paz,<br />

com o Sumo Pontífice e a diplomacia do Vaticano a mediarem o conflito<br />

lMÁRIO SOARES<br />

«Os objectivos invocados para fundamentar o ataque pelos EUA foram mudando»<br />

JOSÉ CARLOS DE VASCONCELOS<br />

Considerado um dos «pais» da democracia<br />

portuguesa, decerto o<br />

mais influente desde o 25 de<br />

Abril, aos 78 anos Mário Soares<br />

continua, com raro vigor, na primeira linha<br />

de vários combates cívicos, mantendo-se<br />

o político português mais conhecido<br />

e prestigiado um pouco por todo o<br />

mundo. Presidente da República durante<br />

dez anos, após ter sido, além do mais,<br />

primeiro-ministro, fundador e secretário-geral<br />

do PS, tem levantado a voz em<br />

defesa das causas que considera justas e<br />

intervido activamente no debate sobre a<br />

questão do Iraque. Não se querendo<br />

pronunciar, de acordo com um propósito<br />

manifestado quando deixou Belém,<br />

sobre a política interna, em <strong>especial</strong> sobre<br />

as opções e posições do seu sucessor,<br />

o actual membro do Conselho de<br />

Estado e deputado ao Parlamento Europeu,<br />

falou-nos da dramática situação<br />

que agora se vive.<br />

VISÃO: Confirmaram-se os piores temores<br />

e a guerra está aí. Como a comenta?<br />

MÁRIO SOARES: Acho que esta guerra<br />

é ilegítima, é ilegal, é imoral – e, além<br />

disso, é inútil. Os objectivos invocados<br />

para a fundamentar pelos Estados Unidos<br />

foram mudando ao longo do tempo.<br />

Primeiro começaram por ser as armas de<br />

destruição maciça, que não se provou<br />

que os iraquianos tivessem. Depois, invocou-se<br />

uma alegada ligação do Iraque à<br />

Al-Qaeda, sobre a qual também não há<br />

nenhuma prova. De seguida veio a luta<br />

contra o terrorismo, quando esta guerra<br />

só pode provocar mais terrorismo. Em<br />

quarto lugar afirmou-se tratar-se de restabelecer<br />

a democracia em todo o Médio<br />

• Esta guerra<br />

é ilegítima, é ilegal,<br />

é imoral – e, além<br />

disso, é inútil<br />

76 VISÃO 21 de Março de 2003<br />

LUÍS VASCONCELOS


Oriente, o que obviamente<br />

não se<br />

conseguirá com esta<br />

guerra: na melhor<br />

das hipóteses o<br />

Iraque irá transformar-se<br />

num protectorado<br />

norte- americano.<br />

E, finalmente,<br />

os EUA disseram<br />

que a guerra se<br />

destinava a destruir<br />

o poder de Saddam<br />

Hussein. Mas, para<br />

isso, era melhor levá-lo ao Tribunal Penal<br />

Internacional (TPI), o que não custaria<br />

tantos sacrifícios humanos nem tanta devastação<br />

ambiental e do insubstituível<br />

património histórico do Iraque.<br />

V: Mas é sabido que os Estados Unidos,<br />

sob esta Administração Bush, são contra<br />

o TPI...<br />

MS: São, de facto, contra o TPI e as Nações<br />

Unidas. E esta guerra é a primeira<br />

Guerra do Império, feita como tal e para<br />

a dominação do mundo. É uma guerra<br />

que pretende atingir as Nações Unidas<br />

e também a União Europeia – não<br />

falo da NATO, que essa já não tem razão<br />

de ser.<br />

V: Entende que ainda é possível fazer alguma<br />

coisa para evitar que a guerra continue<br />

ou assuma os piores contornos?<br />

MS: Como disse o Papa, é preciso continuar<br />

a lutar pela paz. E é indispensável<br />

haver, o mais depressa possível, uma<br />

mediação do conflito – para o parar.<br />

Ora, seriam exactamente o Papa e a diplomacia<br />

do Vaticano as entidades<br />

ideais para alcançar esse objectivo; e até<br />

para que esta guerra não assuma o carácter<br />

de guerra religiosa.<br />

V: Mas acha que ainda há condições para<br />

o Papa e a diplomacia do Vaticano mediarem<br />

o conflito e tentarem pôr termo à<br />

guerra?<br />

MS: Claro que há. Porque é que não há-<br />

-de haver?<br />

V: Quais podem ser as consequências<br />

desta guerra, ao nível da ONU e do Direito<br />

Internacional?<br />

MS: No plano das Nações Unidas é necessário<br />

que elas, apesar da machadada<br />

que levaram com esta guerra preventiva,<br />

não se deixem destruir. Não podemos esquecer<br />

que não foi preciso nenhum veto<br />

do Conselho de Segurança: no Conselho<br />

• Através da opinião<br />

pública manifesta-se<br />

a cidadania global.<br />

E vai sair caro aos<br />

governos que, contra<br />

ela, apoiaram a guerra<br />

de Segurança houve<br />

uma maioria<br />

moral a favor da<br />

paz. E foi só por isso<br />

que os Estados<br />

Unidos e a Inglaterra<br />

não apresentaram<br />

uma segunda<br />

moção e realizaram,infelizmente<br />

nos Açores, a Cimeira<br />

da Guerra<br />

– foi assim, Cimeira<br />

da Guerra, que<br />

toda a imprensa mundial a classificou.<br />

V: E quanto à União Europeia?<br />

MS: No meu entender, deve prosseguir<br />

os seus esforços para criar uma verdadeira<br />

união política e não se deixar atingir<br />

pelas divisões entre Estados membros.<br />

Divisões que infelizmente se manifestaram,<br />

através da Carta dos Oito.<br />

V: A Itália de Berlusconi estava entre os<br />

países que de início apareceram na primeira<br />

linha de apoio à posição de Bush.<br />

Entretanto, quase «desapareceu»...<br />

MS: Isso foi porque certamente o Papa<br />

lhe puxou as orelhas num encontro que<br />

tiveram. Berlusconi saiu pela porta baixa,<br />

como no teatro. Um homem de negócios<br />

como ele compreendeu que estava<br />

a fazer um mau negócio num país como<br />

a Itália.<br />

V: Dada a situação no terreno, pensa que<br />

a opinião pública mundial, que tem sido<br />

tão importante, continua a ter um papel<br />

a desempenhar e uma palavra a dizer?<br />

MS: Sim, sim. A opinião pública mundial<br />

é um fenómeno novo. Manifesta-se<br />

através dela a cidadania global, uma<br />

vontade manifestada em rede contra a<br />

guerra e a favor da paz. Vontade sobretudo<br />

impressionante nos países cujos<br />

governos apoiaram a guerra – o que lhes<br />

vai sair necessariamente caro...<br />

V: Para além da opinião pública em geral,<br />

grandes figuras mundiais têm tomado<br />

posição.<br />

MS: Sim. Não é só a opinião pública,<br />

não são só as massas, as grandes figuras<br />

têm-se manifestado contra esta guerra.<br />

Desde o Papa, que já referi, até Gorbachev,<br />

de Nelson Mandela a Jimmy Carter.<br />

E, também, desde o New York Times<br />

até países tão dependentes dos Estados<br />

Unidos como o Paquistão, a Turquia e o<br />

México. ■<br />

GUERRA DO GOLFO II<br />

FREITAS DO AMARAL<br />

Dez votos<br />

Finalmente começou a<br />

guerra, como todos já tínhamos<br />

previsto, porque<br />

anunciada e decidida há<br />

meses. Resolvida contra tudo e<br />

contra todos. Juridicamente ilegal,<br />

militarmente desnecessária,<br />

pelo menos por enquanto,<br />

e politicamente perigosa como<br />

poucas.<br />

Mas, uma vez que a guerra aí<br />

está, resta-me formular dez votos<br />

muito sinceros:<br />

1 – Que seja curta;<br />

2 – Que provoque poucas<br />

baixas;<br />

3 – Que não atinja vítimas<br />

inocentes;<br />

4 – Que seja orientada<br />

exclusivamente para alvos<br />

militares;<br />

5 – Que elimine todas<br />

as armas de destruição<br />

maciça que porventura<br />

existirem;<br />

6 – Que seja conduzida<br />

segundo o princípio<br />

da proporcionalidade, isto é:<br />

sem excessos;<br />

7 – Que respeite as leis<br />

da guerra e designadamente<br />

as convenções de Genebra;<br />

8 – Que contribua para<br />

a estabilidade do Médio<br />

Oriente e não desemboque<br />

num conflito de civilizações;<br />

9 – Que crie condições para<br />

a resolução do problema<br />

israelo-palestiniano,<br />

nomeadamente com<br />

exigências de moderação<br />

a Ariel Sharon;<br />

10 – Que não venha a<br />

provocar grandes aumentos<br />

do preço do petróleo,<br />

que muito prejudicariam,<br />

sobretudo, a Europa<br />

e Portugal.<br />

VISÃO 21 de Março de 2003 77


GUERRA DO GOLFO II Reacções em Portugal<br />

lREUNIÃO DO CONSELHO DE ESTADO<br />

Ninguém advogou o envolvimento de forças armadas portuguesas no cenário de guerra<br />

PAZ INSTITUCIONAL<br />

Tropa faz a ponte<br />

Jorge Sampaio recusou o envolvimento militar português no Iraque.<br />

Mas o ministro da Defesa, Paulo Portas, garante a capacidade das Forças Armadas<br />

PEDRO VIEIRA *<br />

Oenvolvimento ou não das Forças<br />

Armadas Portuguesas na coligação<br />

militar para derrubar Saddam<br />

Hussein tornou-se o ponto<br />

nevrálgico do entendimento entre o Presidente<br />

da República e o primeiro-ministro,<br />

na crise do Iraque. Jorge Sampaio rejeitou<br />

liminarmente esse envolvimento no «caso<br />

de não haver uma resolução específica do<br />

Conselho de Segurança». Durão Barroso,<br />

desde a visita à Áustria, há algumas semanas,<br />

repetiu, vezes sem fim, que Portugal<br />

não enviaria militares seus para o Golfo<br />

Pérsico. Num depoimento à VISÃO, porém,<br />

o ministro da Defesa, Paulo Portas<br />

fez questão de deixar claro que as Forças<br />

Armadas Portuguesas «já provaram e são<br />

capazes de cumprir as missões que o poder<br />

político lhes atribui».<br />

Ao que a VISÃO apurou, o Pentágono<br />

teria chegado a sondar a disponibilidade<br />

de Portugal para enviar efectivos para o<br />

Iraque. Fontes oficiais não só não nos<br />

confirmaram essa iniciativa, como adiantaram<br />

que essa disponibilização nunca<br />

chegou a ser ponderada. Apenas teorica-<br />

mente esse envio foi admitido, no quadro<br />

daquilo que o Governo definiu como<br />

«resposta graduada». Isto é, se o uso da<br />

força contra o Iraque tivesse sido especificamente<br />

aprovado pelo Conselho de Segurança,<br />

ficaria aberta a porta para um<br />

consenso entre o Presidente da República,<br />

o Governo e, por certo, o próprio Partido<br />

Socialista para a participação das<br />

Forças Armadas portuguesas no conflito.<br />

Sampaio em casa<br />

Não foi esse o desfecho do processo<br />

diplomático e, deste modo, Portugal, no<br />

78 VISÃO 21 de Março de 2003<br />

GONÇALO ROSA DA SILVA


JORGE SAMPAIO<br />

Unidade na diversidade<br />

Na Declaração dirigida ao País, às 20 e 30 do<br />

último dia 19, após a reunião do Conselho de<br />

Estado, o Presidente da República, Jorge Sampaio,<br />

assumiu divergências com o primeiro-<br />

-ministro, Durão Barroso, puxou dos galões ao<br />

deixar subentender que impusera ao Governo<br />

a não participação de militares portugueses<br />

no conflito e dirigiu um forte apelo à «unidade<br />

nacional». Eis os temas-chave dessa Declaração,<br />

na qual evitou a polémica acerca do<br />

fundamento jurídico para a prestação de facilidades<br />

na Base das Lajes.<br />

Guerra<br />

«A guerra deve ser sempre um último recurso,<br />

só surgindo como admissível uma<br />

vez esgotados todos os meios políticos para<br />

a evitar. Por isso, só é legítima, face ao<br />

Direito Internacional, nos casos claramente<br />

tipificados na Carta das Nações Unidas.»<br />

Regime de Saddam<br />

«Tal [o facto de a guerra ser o último recurso]<br />

não significa, como é óbvio, qualquer complacência<br />

com o regime iraquiano, que tem uma<br />

longa e deplorável história de actuações atentatórias<br />

à paz e à segurança internacionais,<br />

de flagrante desrespeito pelos direitos humanos<br />

e de desafio à autoridade do Conselho de<br />

Segurança. É obrigação do Iraque respeitar<br />

escrupulosamente não apenas a letra, como o<br />

espírito das resoluções das Nações Unidas,<br />

procedendo a um desarmamento completo e<br />

abstendo-se de manobras dilatórias.»<br />

Nações Unidas<br />

«Defendi sempre que seria necessário esgotar<br />

os caminhos pacíficos de solução, cabendo<br />

ao Conselho de Segurança, e só a<br />

este, decidir as opções a tomar, uma vez<br />

avaliado o trabalho dos inspectores. (...) É<br />

necessário, tão cedo quanto possível, que<br />

as Nações Unidas reassumam o papel central<br />

que lhes cabe como ponto de referência<br />

indispensável para as questões relativas<br />

à paz e à segurança mundiais.»<br />

plano militar, ficou-se pela cedência de<br />

facilidades na Base das Lajes. Combates,<br />

só pela televisão. Como milhares de portugueses,<br />

também Jorge Sampaio seguiu<br />

o início da ofensiva, na noite de 19 para<br />

20, na sua residência particular, depois<br />

de já conhecer o texto da declaração<br />

proferida mais tarde pelo primeiro-ministro.<br />

Durante a tarde, o Presidente da<br />

Constituição<br />

«É esta [a decisão do Conselho de Segurança,<br />

uma vez avaliado o trabalho dos<br />

inspectores], inquestionavelmente, a via<br />

que respeita a Carta das Nações Unidas e<br />

o Direito Internacional, que corresponde à<br />

tradição jurídico-cultural portuguesa reflectida<br />

na Constituição, e a que mais adequadamente<br />

corresponde aos interesses de um<br />

Estado como o nosso, proporcionando-lhe<br />

o sistema legal para defesa da sua soberania<br />

e para a regulação dos seus relacionamentos<br />

internacionais.»<br />

Forças Armadas Portuguesas<br />

«Tendo em conta a inexistência de um<br />

mandato expresso das Nações Unidas, as<br />

Forças Armadas Portuguesas não participarão<br />

neste conflito, não colaborarão nele,<br />

nem Portugal fará parte da coligação militar<br />

que se criar. Foi esta a minha posição,<br />

desde a primeira hora, para o caso de não<br />

haver uma resolução específica do Conselho<br />

de Segurança.»<br />

Base das Lajes<br />

«[Sem mencionar a Base das Lajes] Prestaremos<br />

aos nossos aliados facilidades de<br />

trânsito, à semelhança de outros países europeus,<br />

alguns dos quais têm expressado,<br />

aliás, fortes reservas a uma acção militar<br />

contra o Iraque.»<br />

O papel do Presidente<br />

«Foi este [não participação das Forças Armadas<br />

e cedência das Lajes] o entendimento que<br />

estabeleci com o Senhor Primeiro-Ministro.<br />

Outra posição do País não teria sido, para<br />

mim, aceitável. Com a legitimidade que me<br />

advém da eleição directa, compete-me resolver<br />

divergências ou conflitos institucionais<br />

quando surjam. Não fui eleito para me limitar<br />

a opinar sobre eles. Fui eleito para encontrar<br />

soluções, para estimular e construir entendimentos<br />

que assegurem, em circunstâncias como<br />

esta, a unidade nacional.»<br />

República ouviu o Conselho de Estado,<br />

ao longo de quatro horas. Dos 18 conselheiros,<br />

só não estiveram presentes Alberto<br />

João Jardim e José Manuel Galvão<br />

Teles. Devido a compromissos internacionais,<br />

Ferro Rodrigues e Vítor Constâncio<br />

abandonaram a sessão antes do<br />

seu termo. Ao que a VISÃO apurou, a<br />

reunião não produziu novidades de<br />

GUERRA DO GOLFO II<br />

Relação transatlântica<br />

«A via de consenso (...) teria sido o caminho<br />

desejável para preservar a unidade da<br />

Europa e da Aliança Atlântica. (...) Será necessário<br />

determinação para ultrapassar [as<br />

divisões políticas provocadas por esta crise],<br />

quer no plano europeu quer no domínio<br />

do relacionamento transatlântico, dois<br />

pilares afinal indispensáveis para – num<br />

quadro de recíproca confiança, de efectiva<br />

cooperação e de respeito mútuo – se defender<br />

o progresso e a estabilidade internacional.»<br />

Europa<br />

«A Europa tem que refazer a sua unidade,<br />

reafirmar com força um projecto comum,<br />

avançar nos caminhos da sua integração,<br />

reforçar a sua capacidade de afirmação<br />

externa.»<br />

P.V.<br />

monta quanto às posições conhecidas.<br />

Na quinta-feira, 20, Jorge Sampaio<br />

cumpriu a agenda prevista, tendo feito<br />

uma declaração de circunstância, na visita<br />

ao Grande Oriente Lusitano, na<br />

qual se dirigiu aos maçons: «Partilho<br />

das vossas preocupações pela hora difícil<br />

que vivemos e perfilho a inspiração<br />

humanista com que encarais a cons-<br />

VISÃO 21 de Março de 2003 79<br />

LUÍS BARRA<br />


DURÃO BARROSO<br />

Que seja<br />

depressa e bem<br />

Era noite cerrada, passavam 15 minutos das<br />

quatro da manhã de 20 de Março, quando o<br />

primeiro-ministro se dirigiu aos portugueses<br />

para falar de guerra: «Acaba de ser desencadeada<br />

pelos Estados Unidos da América e por<br />

alguns dos seus aliados uma acção militar<br />

contra o regime iraquiano.» O chefe do Governo<br />

garantiu que não existiam motivos para<br />

alarme e apelou à coesão nacional.<br />

Regime iraquiano<br />

«Este é um conflito que não desejámos. Tudo<br />

fizemos para o evitar, por meios políticos e<br />

diplomáticos. Infelizmente não foi possível. A<br />

responsabilidade cabe exclusivamente ao regime<br />

iraquiano e à sua obstinação em não<br />

cumprir as resoluções impostas, desde há 12<br />

anos, pelas Nações Unidas.»<br />

Acção militar<br />

«Nesta hora difícil, Portugal reafirma o apoio<br />

aos seus aliados, com quem compartilha os<br />

valores da Liberdade e da Democracia, e faz<br />

TROPA FAZ A PONTE<br />

▲ AVIÕES DOS EUA NAS LAJES<br />

trução de um futuro melhor.» Ao almoço,<br />

teve como convidados Nuno Morais<br />

Sarmento, ministro da Presidência, e Figueiredo<br />

Lopes, da Administração Interna,<br />

para falarem sobre os imigrantes.<br />

Noitada de Durão<br />

Já passava das duas da<br />

manhã, e tinha expirado o<br />

prazo do ultimato dado<br />

por Bush a Saddam, quando<br />

Durão Barroso abandonou<br />

o seu gabinete no<br />

palacete de São Bento.<br />

Foi para casa convencido<br />

de que nenhuma ofensiva<br />

seria desencadeada nessa<br />

madrugada. Na tarde anterior<br />

recebera informações<br />

concisas sobre a iminência<br />

dos ataques, mas a<br />

hora H mantinha-se – à<br />

americana – classified<br />

Presidente e Governo<br />

concordaram com<br />

a utilização da base aérea<br />

pelos americanos<br />

votos para que esta seja uma acção tão rápida<br />

quanto possível e que cumpra todos os<br />

seus objectivos. Espero e desejo que a vida<br />

dos inocentes possa ser poupada e que o<br />

conflito termine com o mínimo de sofrimento<br />

para todas as partes.»<br />

Participação portuguesa<br />

«Como sempre dissemos, Portugal não en-<br />

(confidencial). Durão acabou por ficar<br />

pouco menos de uma hora em casa. Logo<br />

à entrada percebeu que, a 4 777 quilómetros<br />

de distância, no Iraque, começavam<br />

a cair as primeiras bombas.<br />

O primeiro-ministro telefonou ao seu<br />

staff e a alguns dos membros do Governo.<br />

Repetiu que a guerra tinha começa-<br />

volverá neste conflito quaisquer forças militares.<br />

Cabe-nos, no âmbito político, honrar os<br />

compromissos para com os nossos aliados<br />

através do apoio já disponibilizado.»<br />

Segurança<br />

«Acompanhamos em permanência o desenvolvimento<br />

das operações, prevenindo, com tempo,<br />

quaisquer repercussões para o nosso país. O<br />

Governo tudo fez e fará para reforçar a segurança<br />

dos portugueses, por forma a garantir a tranquilidade<br />

da vida nacional. Podem estar certos<br />

de que não existem motivos para alarme.»<br />

Paz<br />

«O Governo português, pensando no desfecho<br />

do conflito, dará o seu contributo para a<br />

construção da paz, esperando fazê-lo no quadro<br />

das Nações Unidas e da União Europeia,<br />

e deseja que desta crise possa resultar um<br />

mundo mais livre e mais seguro.»<br />

Unidade nacional<br />

«Estou certo de que os portugueses contribuirão<br />

com o seu esforço responsável para que,<br />

nesta hora difícil para o mundo, possamos<br />

fortalecer a nossa coesão e afirmar a nossa<br />

unidade nacional. É esse o nosso dever para<br />

com Portugal.» S.S.<br />

do a Figueiredo Lopes, Paulo Portas,<br />

Marques Mendes, José Luís Arnaut, Nuno<br />

Morais Sarmento e Martins da Cruz.<br />

E manteve-se em contacto com eles<br />

grande parte da noite, que acabou às 5 e<br />

10 da manhã.<br />

Depois do discurso de George W.<br />

Bush, às 3 da manhã, Durão Barroso<br />

80 VISÃO 21 de Março de 2003<br />

GONÇALO ROSA DA SILVA<br />

JOSÉ ANTÓNIO RODRIGUES


voltou a São Bento, na companhia do filho<br />

mais velho, Luís, 18 anos, que insistiu<br />

em acompanhá-lo. Às 4 e 15, três minutos<br />

chegaram-lhe para reafirmar que<br />

Portugal não envolverá quaisquer forças<br />

no conflito e garantir que não existem<br />

motivos para alarme. Foi o primeiro líder<br />

europeu a fazer uma declaração pública<br />

após o início dos bombardeamentos.<br />

A comunicação de dez parágrafos<br />

que leu ao País tinha sido escrita previamente<br />

e o Presidente da República já a<br />

conhecia. Durão e o filho ficaram ainda<br />

três quartos de hora em São Bento, depois<br />

da comunicação, seguindo a acção<br />

militar pela televisão. Às dez e meia, o<br />

primeiro-ministro estava de novo na residência<br />

oficial. Duas horas depois,<br />

voou de Falcon até Bruxelas, para participar<br />

na Cimeira da Primavera.<br />

A moção da T-shirt...<br />

Na Assembleia da República, na tarde<br />

de quinta-feira, 20, o Bloco de Esquerda fazia<br />

render o seu talento mediático. Os três<br />

deputados bloquistas surgiram na bancada<br />

envergando T-shirts pretas com os dizeres<br />

«Não, em nosso nome». Acabaram por<br />

deixar o hemiciclo depois de perderem<br />

uma votação que os obrigava a não estarem<br />

naquele preparo sob a cúpula da sala<br />

do plenário. Marques Guedes, do PSD,<br />

chegou a ironizar: «O que é que trarão vestido<br />

quando discutirmos o nudismo...»<br />

... e a censura da oposição<br />

Hoje, sexta-feira, devem ser apresentadas<br />

quatro moções de censura ao Governo,<br />

subscritas pelo PS, PCP, Bloco e<br />

Verdes para serem discutidas no próximo<br />

dia 26. Na sua moção, o PS defende<br />

como prioridade «o empenhamento nas<br />

boas relações entre Portugal e os EUA,<br />

bem como entre os EUA e a União Europeia»,<br />

e responsabiliza o Governo pela<br />

quebra do «consenso nacional de<br />

mais de duas décadas na política externa».<br />

O PCP, por seu turno, lembra que<br />

sempre condenou os comportamentos<br />

de Saddam Hussein «quando os EUA o<br />

apoiavam e armavam». A ideia de que<br />

os «EUA devem necessariamente solicitar<br />

a Portugal autorização para o uso da<br />

Base das Lajes nestas novas condições»,<br />

consta da moção do Bloco de Esquerda.<br />

Os Verdes apontam para «as vítimas<br />

inocentes desta orgia de violência» e para<br />

«a catástrofe humanitária e ecológica»<br />

que aí vem. ■<br />

* COM INÊS RAPAZOTE E SÓNIA SAPAGE<br />

lBLAIR ENTRE PAPANDREU E SIMITIS<br />

Consenso quanto ao futuro do Iraque abafou divergências entre os Quinze<br />

Oprimeiro-ministro reafirmou a<br />

«prioridade» da União Europeia,<br />

após a Cimeira de ontem, 20, à<br />

noite, em Bruxelas, dedicada ao<br />

Iraque. «Para Portugal, não há nada mais<br />

importante no domínio externo que a<br />

UE.» Mas acrescentou que a Europa não<br />

deve fechar-se «sobre si mesma», mas privilegiar<br />

a «parceria transatlântica».<br />

Apesar das divergências das últimas<br />

semanas, polarizadas, so-<br />

bretudo, pela França e<br />

pela Inglaterra, os Quinze<br />

decidiram voltar-se<br />

para o futuro e definir as<br />

condições e objectivos da<br />

reconstrução do Iraque.<br />

Entre esses objctivos, o<br />

primeiro-ministro português<br />

apontou o desarmamento<br />

completo de Bagdad,<br />

o reconhecimento<br />

dos direitos do povo iraquiano<br />

e de várias minorias,<br />

o papel da ONU no<br />

auxílio humanitário e na<br />

reconstrução do Iraque,<br />

GUERRA DO GOLFO II<br />

CIMEIRA EUROPEIA<br />

UE tenta colar os cacos<br />

O futuro do Iraque marcou o Conselho da Primavera<br />

dedicado à «estratégia de Lisboa»<br />

sobre a competividade e o conhecimento<br />

Turquia: Os Quinze<br />

apelam à preservação<br />

da integridade territorial<br />

do Iraque<br />

Durão Barroso: Para<br />

Portugal, não há nada mais<br />

importante no domínio<br />

externo do que<br />

a União Europeia<br />

Paris: Só a ONU tem<br />

legitimidade para coordenar<br />

a reconstrução do Iraque<br />

soluções para o Médio Oriente, o aprofundamento<br />

do diálogo com o mundo<br />

árabe e islâmico, e o reforço da Política<br />

Externa de Segurança e Defesa. Dirigindo-se,<br />

em concreto, à Turquia e a outros<br />

países da região, os Quinze apelaram à<br />

preservação da integridade territorial<br />

do Iraque.<br />

Ainda antes do início da cimeira, a futura<br />

administração do Iraque suscitou<br />

uma tomada de posição<br />

da França. Para Paris, só<br />

as Nações Unidas têm legitimidade<br />

para tratar da<br />

coordenação da comunidade<br />

internacional sobre<br />

«as questões de estabilização<br />

e reconstrução do Iraque».<br />

Uma observação a<br />

que não é alheia a nomeação<br />

do general norte-americano<br />

na reserva, Jay<br />

Garner, um amigo do secretário<br />

da Defesa, Donald<br />

Rumsfeld, para administrador<br />

civil provisório<br />

do Iraque. ■ P.V.<br />

VISÃO 21 de Março de 2003 81<br />

FRANCOIS LENOIR/REUTERS


GUERRA DO GOLFO II<br />

CONTRA BUSH<br />

E DURÃO<br />

Os protestos frente<br />

à embaixada<br />

americana<br />

PROTESTOS<br />

A outra superpotência<br />

Os manifestantes globais querem derrotar a guerra,<br />

gritando palavras de ordem e organizando protestos<br />

em simultâneo em todo o mundo. O primeiro alvo<br />

foram as embaixadas dos EUA<br />

PAULO PENA E LUÍS RIBEIRO<br />

Estava prometido: assim que caíssem<br />

as primeiras bombas em<br />

Bagdad, os opositores da guerra,<br />

reunidos no Fórum Social Mundial,<br />

sairiam às ruas das principais cidades<br />

do mundo. Assim foi. Ontem, quinta-feira,<br />

20, Lisboa viu cinco telas brancas<br />

gigantes caírem das ameias e torreões<br />

do Castelo de São Jorge, uma caravana<br />

de automóveis a debitar o som<br />

das sirenes antiaéreas e uma concentração<br />

de 2 mil pessoas em frente da<br />

embaixada dos EUA.<br />

Voltaram os cartazes que exibem Durão<br />

Barroso com o chapéu do Tio Sam,<br />

empunhando uma pistola. Voltaram os<br />

gritos de «paz sim, guerra não». À porta<br />

da residência oficial do primeiro-ministro<br />

(ausente em Bruxelas, onde participa<br />

numa reunião do Conselho Europeu),<br />

a caravana automóvel da União<br />

de Sindicatos de Lisboa, da CGTP, pôs<br />

as buzinas a gritar. Antes, no ponto de<br />

partida, às quatro da tarde, no Rossio<br />

(agora baptizado de Praça da Paz), alternavam-se<br />

discursos contra a guerra,<br />

com altifalantes sindicalistas a incentivar<br />

o combate ao Pacote Laboral e às<br />

privatizações. Mas «sinto repúdio pelo<br />

que está a acontecer no Iraque», diz Vítor<br />

Oliveira, 55 anos, enquanto se esconde<br />

atrás de um cartaz negro com a<br />

inscrição «irracionais», emoldurada por<br />

esqueletos de borracha «para as pessoas<br />

perceberem o que é a guerra». Para os<br />

que já perceberam, trata-se de organizar<br />

a resistência. A apresentadora de televisão<br />

Maria João Seixas e a jornalista<br />

Diana Andringa juntaram-se às autarcas<br />

de Palmela, Ana Teresa Vicente<br />

(PCP), de Salvaterra, Ana Cristina Ribeiro<br />

(BE), à professora universitária<br />

Isabel Allegro e às socialistas Ana Catarina<br />

Mendes e Maria Carrilho, para lançarem<br />

um apelo – que lembra as manifestações<br />

pela autodeterminação de Timor:<br />

colocar lençóis brancos nas janelas<br />

e varandas.<br />

No alto da colina do Castelo, os panos<br />

não resistiram muito tempo. Alguns<br />

elementos da Polícia Municipal (PM),<br />

trajando à civil, acabaram com a acção<br />

lPANOS BRANCOS NO CASTELO DE SÃO JORGE<br />

Os opositores à guerra querem vê-los nas janelas e varandas de todo o País<br />

82 VISÃO 21 de Março de 2003<br />

LUÍS BARRA<br />

GONÇALO ROSA DA SILVA


de protesto «por ordem da Presidência<br />

da Câmara». Enrolaram as faixas brancas<br />

e levaram-nas para uma carrinha,<br />

ante os olhares incrédulos das manifestantes.<br />

Quando questionado, o comandante<br />

da PM adiantou que devolveria<br />

os materiais logo que os repórteres presentes<br />

guardassem os blocos e as máquinas<br />

fotográficas. Diana Andringa<br />

não conteve uma exclamação indignada:<br />

«Sabe que neste país há liberdade<br />

de imprensa?!»<br />

‘Querem petróleo...?’<br />

Por volta das seis da tarde, efectua-se<br />

a grande concentração em frente da<br />

embaixada dos EUA, onde já se acotovelavam<br />

centenas de manifestantes, dezenas<br />

de agentes fardados e mais alguns<br />

à paisana. As bandeiras brancas misturavam-se<br />

com as vermelhas do PCP, os<br />

discursos intercalavam-se com as palavras<br />

de ordem «Bush, escuta, os povos<br />

estão em luta» e «A-ssa-ssi-no» — durante<br />

horas, o silêncio não encontrou<br />

ali lugar.<br />

Camané deixou-se adormecer, na véspera,<br />

com a televisão ligada. Às duas e<br />

35 da madrugada, acordou com os mísseis<br />

lançados sobre Bagdad. «O mais<br />

importante é mudar as consciências das<br />

pessoas que estão a fazer a guerra. Por<br />

isso, estou aqui», afirmou o fadista-sensação.<br />

O seu produtor, José Mário Branco,<br />

é mais contundente: «Esta guerra é<br />

um assalto à mão armada do novo império.<br />

Nós estamos a exercer o nosso direito<br />

de cidadania, contra a vergonha<br />

deste Governo.»<br />

«Se calhar não conseguimos mudar<br />

nada, mas, pelo menos, tentamos», declarou<br />

Lúcia Moniz, actriz e cantora, à<br />

porta da embaixada americana. Por seu<br />

lado, Pedro Namora, o advogado ex-<br />

-aluno da Casa Pia, quer mostrar ao<br />

mundo que os portugueses «não estão<br />

adormecidos» perante o que classifica<br />

como um «crime». «Em que mundo<br />

vão viver as nossas crianças? Num em<br />

que vale a lei do mais forte e não a da<br />

razão?»<br />

Já a pensar nas manifestações que, no<br />

sábado, 22, prometem encher as ruas<br />

das principais cidades do planeta (em<br />

Lisboa, a concentração está marcada<br />

para as 15 horas, no Marquês do Pombal),<br />

vão-se afinando as gargantas e a<br />

criatividade. Entre as dúzias de cartazes<br />

exibidos na quinta-feira, um sobressaía:<br />

«Se quiserem petróleo, vão buscá-lo à<br />

Galiza!» ■<br />

GUERRA DO GOLFO II<br />

COMUNICAÇÃO SOCIAL<br />

Às cegas?<br />

Os portugueses seguem os ataques a Bagdad<br />

através dos cinco jornalistas portugueses<br />

que se mantêm na capital iraquiana<br />

LUÍS RIBEIRO<br />

Corremos o risco de ficar sem os<br />

nossos olhos em Bagdad. Os cinco<br />

jornalistas portugueses, assim<br />

como os quase 300 de todo o<br />

mundo, que permanecem na capital iraquiana<br />

viram ontem, quinta-feira, serlhes<br />

retirado o direito de usarem os videofones<br />

e os telefones-satélite. Elementos<br />

ao serviço do regime de Saddam revistaram<br />

os quartos de repórteres, que tiveram<br />

de esconder os equipamentos.<br />

O videofone é uma máquina do tamanho<br />

de um vídeo – ao qual se pode ligar<br />

uma câmara de televisão e um microfone<br />

– que codifica os sinais recebidos de áudio<br />

e vídeo, de forma a poderem ser transmitidos<br />

por uma linha telefónica RDIS. Em<br />

zonas onde não é possível usar uma linha<br />

fixa, utiliza-se o telefone-satélite para<br />

transmitir esses sinais, através do serviço<br />

Global Area Network, da Inmarsat, um<br />

sistema de satélites de comunicação. O<br />

problema desta tecnologia salta à vista:<br />

imagens de fraca qualidade, devido ao<br />

facto de as linhas telefónicas (pensadas<br />

lBAGDAD DEBAIXO DE FOGO<br />

Por quanto tempo vai ser possível ver estas imagens?<br />

para transportarem apenas a voz) terem<br />

uma pequena largura de banda.<br />

A apreensão dos videofones é mais um<br />

obstáculo a quem já não tem a vida facilitada.<br />

Bush, no seu discurso do ultimato,<br />

aconselhou os jornalistas a abandonarem<br />

o Iraque, dando a entender que a sua segurança<br />

não estava garantida. Isto porque,<br />

além dos bombardeamentos americanos,<br />

subsistia a hipótese de estes profissionais<br />

serem usados como escudos humanos,<br />

ou sofrerem retaliações do regime<br />

iraquiano. Mas os jornalistas portugueses<br />

que optaram por continuar em Bagdad<br />

(Paulo Camacho e Renato Freitas, da<br />

SIC, Carlos Fino e Nuno Patrício, da<br />

RTP, e Daniel do Rosário, da Rádio Renascença<br />

e do Expresso) têm estado entre<br />

os melhores – aliás, a SIC e a RTP foram<br />

mesmo as primeiras estações televisivas<br />

de todo o mundo a cobrir, em directo,<br />

o bombardeamento do palácio presidencial.<br />

Segundo a Rede Globo, os dois<br />

canais portugueses transmitiram as imagens<br />

dez minutos antes da CNN, o canal<br />

norte-americano que se notabilizou durante<br />

a (primeira) Guerra do Golfo. ■<br />

VISÃO 21 de Março de 2003 83<br />

FALEH KHEIBER/REUTERS


GUERRA DO GOLFO II<br />

SEGURANÇA<br />

Em estado<br />

‘Bravo’<br />

As Forças Armadas<br />

adoptaram o segundo<br />

grau de emergência.<br />

Mas sem alarmismos<br />

ALEXANDRA CORREIA<br />

As forças militares portuguesas entraram<br />

ontem, quinta-feira, em<br />

estado «Bravo». O que significa<br />

um reforço da segurança interna<br />

e externa das unidades. Há um maior controlo<br />

nas entradas, condiciona-se o estacionamento<br />

de viaturas perto dos edifícios militares,<br />

examina-se cuidadosamente o correio<br />

e aumenta-se a segurança em instalações<br />

estratégicas como as barragens, as<br />

centrais eléctricas, os depósitos de combustíveis<br />

e de água. O estado «Bravo» é o segundo<br />

numa escala de quatro. Ainda assim,<br />

as medidas adicionais de segurança, em<br />

Portugal, são moderadas, sem alarmismos.<br />

Nas ruas, há mais polícias, nos portos e<br />

aeroportos mais agentes do Serviço de Estrangeiros<br />

e Fronteiras (SEF). Áreas simbólicas,<br />

como, por exemplo, o Santuário de<br />

Fátima, ganham uma «atenção <strong>especial</strong>».<br />

Os sinais mais parecidos com um vago «estado<br />

de sítio» são as metralhadoras, nas<br />

mãos de três guardas, junto dos portões da<br />

embaixada dos Estados Unidos, em Lisboa.<br />

Nos aeroportos, porém, a segurança está<br />

bem mais apertada. Os passageiros, além do<br />

habitual sistema de detecção de metais, são<br />

agora revistados manualmente. As aeronaves<br />

são inspeccionadas, através de diferentes<br />

sistemas de vigilância. Joaquim Carvalho,<br />

director de Segurança no Instituto Nacional<br />

de Aviação Civil, explica ainda que se<br />

dá maior atenção a determinados voos,<br />

com um potencial de risco superior. É o caso<br />

das viagens para os Estados Unidos ou<br />

em companhias aéreas norte-americanas.<br />

«De momento, o tráfego europeu está normalíssimo.<br />

As medidas em carteira, além de<br />

garantirem a segurança do voo, pretendem<br />

dar confiança aos passageiros», diz.<br />

Sempre alerta<br />

A grande azáfama para segurar o País verifica-se,<br />

<strong>especial</strong>mente, nos gabinetes.<br />

lEMBAIXADA DOS EUA EM LISBOA<br />

A única face visível da «anormalidade»<br />

A governadora civil de Lisboa, Teresa Caeiro,<br />

diz que não é habitual falar várias vezes<br />

ao dia com o delegado regional da Protecção<br />

Civil, com os bombeiros, com as forças<br />

policiais. Não é habitual, mas acontece, por<br />

estas horas. «Aumentámos o nosso grau de<br />

sensibilidade e alerta», afirma. Citado pela<br />

Lusa, o ministro da Administração Interna,<br />

Figueiredo Lopes, sublinhou que «não houve<br />

indicações de que o território e os interesses<br />

nacionais estivessem sob a ameaça<br />

do terrorismo», mas a vigilância é permanente.<br />

«Não estamos em alerta máximo,<br />

estamos em atenção adequada à situação<br />

internacional», garantiu.<br />

A Câmara Municipal de Lisboa encontra-se<br />

em alerta «amarelo», ou seja, todos<br />

os serviços da autarquia se mantêm em permanente<br />

contacto com a direcção municipal<br />

da Protecção Civil. Este alerta, segundo<br />

um comunicado da Câmara, «compreende<br />

a iminência de situações de emergência que<br />

podem potenciar o desenvolvimento de<br />

consequências mais gravosas».<br />

Ao serviço 24 horas por dia está o Gabinete<br />

Coordenador da Segurança, órgão do<br />

Ministério da Administração Interna<br />

A nostalgia do ‘bunker’<br />

Houve, em tempos, um bunker no Palácio de<br />

São Bento. Não era propriamente um bunker,<br />

porque tinha janelas e este tipo de abrigos não<br />

se podem dar a esses luxos. Mas era o nome<br />

que os sociais-democratas davam à sala de 50<br />

metros quadrados, no rés-do-chão da residência<br />

oficial. Bunker, porque, com Cavaco Silva,<br />

era ali que se reuniriam as entidades competentes<br />

para fazerem face a uma crise. Bunker<br />

porque a sala, embora com janelas para o jardim,<br />

tinha, atrás de uma porta de cofre, um ar<br />

soturno. E o recheio resumia-se a uma mesa,<br />

umas cadeiras, dois telefones, dois vídeos e três<br />

televisões antigas na parede.<br />

(MAI), liderado pelo general Leonel Carvalho.<br />

Coordena-se ali a informação proveniente<br />

das diversas forças policiais, que aumentaram<br />

os seus efectivos. «Estamos a tomar<br />

medidas parecidas com as que activámos<br />

depois do 11 de Setembro de 2001»,<br />

diz Leonel Carvalho.<br />

O MAI mantém um contacto estreito<br />

com Ministério da Defesa, onde funciona<br />

um outro órgão, em grande actividade nesta<br />

altura, o Conselho Nacional de Planeamento<br />

Civil de Emergência. Todos os sectores<br />

fundamentais do País passam por aqui,<br />

assegurando-se, em caso de crise, que comunicações,<br />

saúde, transportes, indústria,<br />

agricultura e protecção civil continuem a<br />

funcionar.<br />

No Ministério da Saúde, funciona uma<br />

task-force. É coordenada pelo secretário de<br />

Estado da Saúde, Carlos Martins, e inclui<br />

responsáveis da direcção-geral da Saúde,<br />

do INEM, do Instituto Nacional do Sangue,<br />

etc. E no Ministério dos Negócios Estrangeiros,<br />

a recém-criada Célula de Gestão<br />

de Crises estará sempre em funcionamento,<br />

enquanto houver guerra, a tratar informação<br />

classificada. ■<br />

Mas nunca foi usada. Guterres decidiu remodelá-la<br />

e criar uma sala de Conselho de Ministros.<br />

Afinal, as reuniões habituais do Executivo «laranja»<br />

eram, na altura, realizadas no piso nobre,<br />

«sem privacidade». A porta de cofre foi<br />

substituída por uma com barreira acústica,<br />

duas janelas passaram a portas e mudou-se o<br />

mobiliário.Aí passaram a reunir-se os ministros<br />

«rosa». Hoje, com o regresso do PSD ao poder,<br />

renasceu o gabinete de crise. Não em São Bento,<br />

mas no Largo das Necessidades. A explicação,<br />

irónica, é de um socialista: «Martins da<br />

Cruz, que foi assessor de Cavaco Silva, deve ter<br />

sentido a nostalgia daquela sala de crise.»<br />

84 VISÃO 21 de Março de 2003<br />

LUÍS BARRA


Aguerra está no terreno. Além do resto: 1) contra os<br />

mais elementares princípios humanistas (e cristãos)<br />

de valorizar a paz como bem supremo e só a<br />

fazer num caso extremo, como último recurso, o<br />

que manifestamente não era o caso; 2) contra o direito à<br />

vida e à tranquilidade de populações indefesas que foram<br />

as maiores vítimas do execrando tirano de Bagdad e agora<br />

são as maiores vítimas daqueles que por este meio o querem<br />

derrubar, mas não só; 3) contra o Direito Internacional,<br />

a carta da ONU e a própria ONU, sabendo os EUA<br />

que o Conselho de Segurança rejeitaria a moção que, por<br />

isso mesmo, desistiram de apresentar; 4) contra a opinião<br />

(como as sondagens confirmam) da imensa maioria dos cidadãos<br />

do mundo, que, por toda a parte, se manifestam, e<br />

da generalidade dos grandes vultos e figuras morais de todo<br />

o mundo, incluindo dos EUA.<br />

A guerra está no terreno, se de guerra se pode falar, dada<br />

a imensa desproporção de forças em<br />

confronto, a óbvia fraqueza iraquiana,<br />

não obstante as farroncas do ainda por<br />

cima arrogante ditador. E uma das coisas<br />

que se irá ver é se o Iraque tem ou<br />

não armas de destruição maciça: recorde-se<br />

que G. W. Bush garantiu que sim,<br />

apesar de os inspectores das Nações<br />

Unidas não as terem encontrado e haverem<br />

pedido mais tempo para prosseguir<br />

o seu trabalho, após o Iraque haver, inclusive,<br />

destruído mísseis cujo alcance<br />

ultrapassava em 30 km o limite imposto pela ONU. Espero<br />

que, ao menos, de facto, o Iraque não tenha essas armas,<br />

a guerra seja breve, os bombardeamentos visem só<br />

alvos militares e os responsáveis pelo regime, haja o menor<br />

número possível de vítimas inocentes. Confesso que é,<br />

sobretudo, nisto que penso quando escrevo esta crónica.<br />

Penso nas crianças, nas mulheres, nos homens, nos jovens<br />

e nos velhos, em toda essa imensidão de pessoas concretas,<br />

que não são pontos num mapa, números de estatísticas,<br />

abstractas vítimas de uns abstractos e tecnocratas danos<br />

colaterais, em toda essa imensidão de pessoas concretas,<br />

repito, que têm rosto, nome, família, problemas, aspirações,<br />

sonhos! São elas que sobretudo contam e são as<br />

mais esquecidas pelos donos do mundo.<br />

Não posso deixar de comentar, entretanto, a posição portuguesa.<br />

Em particular, a intervenção do Presidente da<br />

República, dado que, na nossa edição semanal de ontem,<br />

quinta-feira, já se falou da deplorável «farsa» das Lajes:<br />

farsa – infelizmente não cómica mas dramática... – em<br />

sentido teatral, vicentino, de que o nosso primeiro-ministro<br />

não foi encenador, nem actor, mas mero contra-regra.<br />

Na sua comunicação ao País, Jorge Sampaio reafirmou de<br />

JOSÉ CARLOS DE VASCONCELOS<br />

Unidade, mas que unidade?<br />

❝Jorge Sampaio<br />

reafirmou de forma clara<br />

a sua posição quanto<br />

à guerra em curso. Mas<br />

apelou a uma unidade<br />

que não se sabe qual é ❞<br />

GUERRA DO GOLFO II<br />

forma clara a posição já antes por si assumida, contra a<br />

guerra e o ataque dos EUA ao Iraque, à revelia do Conselho<br />

de Segurança, ou, em última análise, contra ele; posição, como<br />

se sabe, diametralmente oposta àquela a que o Governo<br />

«amarrou» Portugal. Mais, deixou subentendido que o Executivo<br />

teria querido ir mais longe, pretendendo não só permitir<br />

a incondicional utilização da Base das Lajes, como<br />

permitiu, com a sua concordância, não só apoiar a posição<br />

de Bush, como apoiou, mas ainda comprometer as nossas<br />

Forças Armadas com a chamada «coligação militar» aliada.<br />

Não o «autorizando», ou estabelecendo com Durão Barroso<br />

um consenso nos termos do qual isso não chegaria a ser-<br />

-lhe proposto, e em compensação ele, Presidente, se limitaria<br />

a declarações como as que proferiu – Jorge Sampaio agiu<br />

seguramente, com a convicção de estar a fazer o melhor para<br />

o País; e do mesmo passo mostrou o seu entendimento<br />

dos poderes presidenciais e o estilo com que os exerce.<br />

No mínimo, porém, terá de admitir<br />

que a generalidade dos seus eleitores,<br />

considerando essencial ser ele o Chefe<br />

de Estado de todos os portugueses sem<br />

distinções, esperavam que, na defesa de<br />

certas posições essenciais, pusesse, pelo<br />

menos, o mesmo vigor com que, de modo<br />

estranho, disse ser «ridículo» classificar<br />

de «conflito institucional» a frontal<br />

divergência entre a posição do Governo<br />

e a sua sobre matéria tão importante.<br />

No final do meu último comentário escrevi que a atitude de<br />

Sampaio neste «embate» daria aos portugueses a medida daquilo<br />

de que era capaz e para que servia ou não o Presidente.<br />

Cada um fará o seu juízo, que não é simples, nem – para mim<br />

– a preto e branco... Quanto à avaliação do seu apelo, a propósito<br />

da guerra em curso, à «unidade nacional», cabe perguntar:<br />

unidade à volta de quê? Da sua posição ou da posição<br />

do Governo? Ou entende o Presidente que, a partir de agora,<br />

a posição do País é a do Governo e todos a devem apoiar?<br />

Não creio. Primeio, porque não pode haver unidade em torno<br />

de um posição que é, além do mais, contra o Direito Internacional<br />

e a ONU; e, depois, porque a ser assim, ele próprio nunca<br />

devia ter falado, ou, pelo menos, não devia ter reafirmado<br />

o que reafirmou.<br />

Deste modo, julgo que o Presidente apenas quis fazer<br />

– mas de forma infeliz, ou um pouco desastrada – um<br />

compreensível apelo à não dramatização da situação.<br />

É ilegítimo, creio eu, a partir daqui, os partidos que sustentam<br />

o Governo concluírem que os da oposição deviam<br />

retirar as suas anunciadas moções de censura. No entanto,<br />

a interpretação que fazem das palavras de Sampaio devem<br />

servir de incentivo para que, em algumas suas intervenções,<br />

ou parte delas, seja mais claro e menos ambíguo.<br />

VISÃO 21 de Março de 2003 85


GUERRA DO GOLFO II Tomadas de posição<br />

REACÇÕES NO MUNDO<br />

Mobilização geral pela paz<br />

Enquanto as ruas de muitas capitais são palco de um protesto quase globalizado<br />

contra a guerra, os governos tomam posição em lados opostos da trincheira<br />

Um pouco por todo o planeta,<br />

com <strong>especial</strong> incidência na Europa,<br />

milhões de activistas antiguerra<br />

têm vindo a mobilizar-se<br />

– sobretudo desde a madrugada de dia<br />

20 – para protestarem contra a invasão<br />

Contagem decrescente<br />

Da Cimeira dos Açores aos dias da guerra<br />

DOMINGO, 16<br />

18h35: Depois de<br />

uma reunião a quatro,<br />

na Base das Lajes,<br />

George W. Bush, Tony<br />

Blair, José María Aznar<br />

e Durão Barroso<br />

anunciaram um prazo<br />

de 24 horas para<br />

a solução diplomática<br />

da crise no Iraque.<br />

19h15: Saddam<br />

responde à Cimeira<br />

dos Açores, dizendo<br />

que é uma grande<br />

mentira que o Iraque<br />

do Iraque por uma poderosa coligação<br />

militar liderada pelos EUA. De uma forma<br />

geral, nas capitais do Velho Continente<br />

foi marcado encontro ao fim da<br />

tarde de quinta-feira diante das embaixadas<br />

da superpotência mundial, mas<br />

possua armas de<br />

destruição maciça e<br />

admite que os seus<br />

homens responderão<br />

aos ataques, retaliando<br />

onde quer que haja<br />

céu, água ou terra.<br />

22h00: O inspector das<br />

em Paris, por exemplo, a grandiosa Praça<br />

da Concórdia foi o ponto escolhido<br />

por milhares de franceses antiguerra para<br />

expressarem a sua revolta e o apoio à<br />

posição oficial do Presidente e do Executivo<br />

do seu país.<br />

Nações Unidas, Hans<br />

Blix, reage ao ultimato,<br />

afirmando que lhe<br />

parece haver divisões<br />

nos discursos dos quatro<br />

líderes.<br />

SEGUNDA-FEIRA, 17<br />

15h05: Os EUA, a<br />

Grã-Bretanha e a<br />

Espanha decidem<br />

retirar a sua resolução,<br />

desistindo, assim, de<br />

ter o apoio das Nações<br />

Unidas.<br />

86 VISÃO 21 de Março de 2003<br />

BRENDAN MCDERMID/REUTERS


Em Roma, uma vigília nocturna foi<br />

convocada para diante da embaixada<br />

americana e um sit-in para junto da Câmara<br />

de Deputados. O alinhamento do<br />

Governo de Berlusconi com as teses da<br />

Administração Bush não encontrou qualquer<br />

eco junto de uma população italiana<br />

que encheu as cidades da «bota» de<br />

bandeirolas com a palavra pace (paz) e<br />

desde o início da crise se tem desdobrado<br />

em manifestações de repúdio tanto da<br />

opção do Executivo como da própria política<br />

de Washington. Recorde-se que no<br />

célebre 13 de Fevereiro, dia do protesto<br />

global antiguerra, 3 milhões de pessoas se<br />

18h00: O secretário-<br />

-geral das Nações<br />

Unidas, Kofi Annan,<br />

anuncia que os<br />

inspectores e o pessoal<br />

humanitário devem<br />

abandonar o Iraque.<br />

18h08: Em Portugal,<br />

o Presidente da<br />

República, Jorge<br />

Sampaio, convoca<br />

o Conselho de Estado<br />

para quarta-feira,<br />

dia 19.<br />

18h27: À semelhança<br />

do PS, do BE e do PEV,<br />

concentraram na capital da Itália, naquela<br />

que foi uma das maiores movimentações<br />

de massas civis de que há memória<br />

na história da civilização ocidental. E um<br />

mês mais tarde, um milhão seguiu-lhes o<br />

exemplo na capital económica do país,<br />

Milão. Na última quarta-feira, Nápoles<br />

foi cenário de uma manifestação de grandes<br />

proporções.<br />

Ainda no mesmo país – onde a firme<br />

posição contra a guerra manifestada pelo<br />

Vaticano (o Papa considerou o conflito<br />

ilegal) encontrou grande eco e contribuiu<br />

para consciencializar os mais indecisos<br />

–, o Movimento dos Disobbedien-<br />

o PCP dá a conhecer<br />

a intenção de entregar<br />

uma moção de censura<br />

ao Governo, no<br />

Parlamento.<br />

21h00: Robin Cook, um<br />

dos ministros de Tony<br />

Blair, apresenta a sua<br />

WASHINGTON E JACARTA<br />

A polícia da capital federal americana procedeu<br />

a detenções durante uma marcha de protesto<br />

rumo à residência do secretário da Defesa,<br />

Donald Rumsfeld. Na distante Indonésia,<br />

numa outra manifestação antiguerra, eram<br />

visíveis retratos de George W. Bush com caninos<br />

de vampiro e a legenda «Autêntido Demónio»<br />

ti, partidários da desobediência civil,<br />

pretende impedir por meio de acções<br />

não-violentas a descolagem de aviões de<br />

apoio logístico às forças anglo-americanas<br />

envolvidas no assalto ao Iraque. Estes<br />

disobbedienti têm, nas últimas se-<br />

demissão, na Câmara<br />

dos Comuns. Dez horas<br />

depois, o ministro<br />

da Saúde segue-lhe<br />

o exemplo.<br />

TERÇA-FEIRA, 18<br />

01h00: George W. Bush<br />

dá um prazo de<br />

48 horas a Saddam<br />

Hussein e aos filhos<br />

para abandonarem<br />

o território e aconselha<br />

as tropas iraquianas<br />

VISÃO 21 de Março de 2003 87<br />

▲<br />

BEAWIHARTA/REUTERS<br />


▲<br />

GUERRA DO GOLFO II<br />

MOBILIZAÇÃO GERAL PELA PAZ<br />

manas, conseguido penetrar por diversas<br />

vezes em bases aéreas e destruir reservas<br />

de combustível para aeronaves.<br />

Na Grécia, milhares de manifestantes<br />

concentraram-se dia 20 frente à representação<br />

diplomática de Washington em<br />

Atenas, protegida por uma cordão de<br />

agentes do corpo de intervenção da polícia.<br />

Na véspera à noite, ao expirar o<br />

prazo do ultimato, decorrera no mesmo<br />

local uma vigília à luz das velas e ao som<br />

de cânticos pacifistas e anti-imperialistas.<br />

Na segunda cidade helénica, Salónica,<br />

centenas de fiéis haviam-se reunido<br />

na catedral para uma vigília de oração,<br />

ao que se seguiu uma ocupação temporária<br />

do consulado britânico por duas<br />

dezenas de militantes do Fórum Social<br />

Grego.<br />

Espanhóis e ingleses<br />

contra os governos<br />

Em Espanha, não obstante o alinhamento<br />

do Executivo de José María Aznar<br />

com os principais senhores da guerra,<br />

é muito forte a mobilização contra o<br />

novo conflito do Golfo – e, por tabela,<br />

contra o próprio Governo de Madrid,<br />

que atingiu níveis de popularidade baixíssimos<br />

e impossíveis de prever aquando<br />

da sua reeleição por maioria absoluta.<br />

Por isso mesmo, a Plataforma Espanhola<br />

Contra a Guerra convocou manifestações<br />

não apenas para diante da embaixada<br />

americana na capital, mas<br />

igualmente para junto de alguns edifícios<br />

governamentais e das sedes do PP,<br />

o partido do poder.<br />

Na «frente interna» do principal parceiro<br />

bélico de George W. Bush – a Grã-<br />

-Bretanha – está convocada uma grande<br />

manifestação de repúdio para amanhã,<br />

sábado, em Londres. Uma campanha de<br />

desobediência civil pacífica foi entretanto<br />

lançada pela Coligação contra uma<br />

▲<br />

CONTAGEM DECRESCENTE<br />

a não morrerem por um<br />

regime que vai cair.<br />

11h10: John Denham<br />

torna-se no terceiro<br />

ministro britânico a<br />

abandonar o Governo<br />

por causa da crise<br />

iraquiana.<br />

14h00:Uma televisão<br />

FRANCK PREVEL/AP<br />

MURAD SEZER/AP<br />

iraquiana transmite a<br />

notícia de que Saddam<br />

Hussein rejeita o<br />

ultimato e não<br />

pretende exilar-se.<br />

15h00: Debate mensal,<br />

antecipado, com o<br />

primeiro-ministro Durão<br />

Barroso, na Assembleia<br />

Guerra no Iraque, sob a forma de paragens<br />

de trabalho nas empresas e sit-ins<br />

nas universidades.<br />

Curiosa e digna de registo foi a actuação<br />

de uma militante pacifista que conseguiu<br />

infiltrar-se na base aérea de Leuchars<br />

da RAF e avariar à martelada um<br />

avião Tornado. As imediações de outra<br />

base – a de Fairford – vêm acolhendo<br />

desde há um mês um «campo da paz»<br />

ali instalado por um grupo de activistas.<br />

Em declarações, na quarta-feira, ao jor-<br />

da República (a data<br />

inicial era 26 de Março).<br />

22h00: Tony Blair ganha<br />

o apoio da Câmara dos<br />

Comuns, apesar de 139<br />

deputados do Partido<br />

Trabalhista terem votado<br />

contra a proposta do<br />

primeiro-ministro.<br />

nal francês Le Monde, uma porta-voz<br />

desse movimento sublinhou que «a<br />

maioria das pessoas no Reino Unido está<br />

horrorizada com o que se passou ontem<br />

à noite [no Iraque], mas a sua opinião<br />

é ignorada pelo pequeno grupo que<br />

governa».<br />

Também uma base aérea – a de Antuérpia<br />

– foi o local escolhido por manifestantes<br />

belgas para darem a conhecer<br />

a sua repulsa pela intervenção militar<br />

anglo-americana no Iraque.<br />

QUARTA-FEIRA, 19<br />

07h00: Há relatos<br />

de grandes<br />

tempestades de areia,<br />

no deserto do Kuwait,<br />

onde as forças<br />

britânicas avançam.<br />

08h00: Mais um<br />

ministro, David Kidney,<br />

abandona o Governo<br />

do Reino Unido.<br />

11h30: Tropas<br />

americanas entraram<br />

na zona desmilitarizada<br />

da fronteira, entre<br />

o Kuweit e o Iraque.<br />

14h30: Reúne-se<br />

o Conselho de Estado,<br />

88 VISÃO 21 de Março de 2003<br />

PETR JOSEK/REUTERS


Nos próprios EUA, os opositores à<br />

guerra anunciaram a intenção de promover<br />

acções de protesto por todo o país.<br />

A principal preocupação destes activistas<br />

é não entrarem em choque com uma população<br />

que, compreensivelmente, apoia<br />

os seus soldados (o que não é o mesmo<br />

que apoiar a Administração).<br />

Na Austrália, o movimento antiguerra<br />

convocou manifestações nas principais<br />

cidades e os estudantes universitários<br />

entraram em greve após o discurso de<br />

no Palácio de Belém,<br />

do qual resultará, horas<br />

depois, uma declaração<br />

do Presidente<br />

a República.<br />

20h30: Jorge Sampaio<br />

recorda a ilegalidade<br />

da acção militar, caso<br />

aconteça sem o aval<br />

das Nações Unidas,<br />

mas apela à «unidade<br />

nacional».<br />

Bush e do primeiro-ministro John Howard<br />

na madrugada de 20.<br />

Intervenção ‘injustificável e ilegítima’<br />

Se as pessoas anónimas dão assim a<br />

conhecer a sua posição face à intervenção<br />

militar dos aliados anglo-saxónicos<br />

no Médio Oriente, os governantes fazem<br />

o mesmo através dos canais «regulares»<br />

postos à sua disposição.<br />

Assim, o ministro dos Negócios Estrangeiros<br />

do Irão (um dos países incluí-<br />

QUINTA-FEIRA, 20<br />

00h01: Tony Blair é<br />

avisado pelos EUA de<br />

que a ofensiva militar<br />

pode começar nas duas<br />

horas seguintes.<br />

02h35: Bush faz uma<br />

declaração ao mundo,<br />

admitindo que a guerra<br />

PARIS, ANCARA E PRAGA<br />

Nas capitais francesa, turca e checa,<br />

respectivamente, foram em número<br />

de muitos milhares os manifestantes<br />

que saíram na quinta-feira à rua<br />

para manifestar o seu repúdio pela guerra<br />

conduzida por Washington contra o Iraque<br />

dos por Bush naquilo que designa por<br />

«eixo do mal») considerou «injustificáveis<br />

e ilegítimas» as operações militares<br />

contra o país vizinho, com o qual esteve<br />

envolvido numa longa guerra na década<br />

já começou e o povo<br />

iraquiano vai ser<br />

libertado.<br />

04h15: Também Durão<br />

Barroso se dirige ao<br />

País, num depoimento<br />

de três minutos: «Este<br />

é um conflito que não<br />

desejámos», disse.<br />

E: «Não há motivos<br />

para alarme.»<br />

12h00: Durão Barroso<br />

parte para Bruxelas,<br />

onde o espera a<br />

Cimeira da Primavera,<br />

com os restantes chefes<br />

de Governo europeus<br />

VISÃO 21 de Março de 2003 89


ARND WIEGMANN/REUTERS<br />

REUTERS<br />

▲<br />

GUERRA DO GOLFO II Tomadas de posição<br />

MOBILIZAÇÃO GERAL PELA PAZ<br />

de 80. A velha hostilidade Irão-Iraque leva<br />

porém Teerão a não alinhar ao lado de<br />

Bagdad, reservando-se à primeira República<br />

Islâmica a ser implantada no mundo<br />

o direito de «não intervir em benefício<br />

quer de um quer de outro campo».<br />

Historicamente muito crítico da política<br />

externa de Washington, o Governo<br />

chinês tem mantido nesta crise uma posição<br />

moderada. Embora seja membro<br />

permanente do Conselho de Segurança<br />

das Nações Unidas, a China não anunciou<br />

– ao contrário da França e da Rússia<br />

– a intenção de vetar o projecto de<br />

resolução anglo-hispano-americano que<br />

«legitimaria» a intervenção militar no<br />

país de Saddam e que não chegou afinal<br />

a ser posto à votação por decisão dos<br />

próprios proponentes, receosos de uma<br />

mais que provável derrota. Apesar desta<br />

prudência, na sequência do ataque Pe-<br />

GERHARD<br />

SCHRÖDER<br />

O chanceler<br />

alemão foi<br />

um dos líderes<br />

que mais se<br />

empenharam<br />

no combate<br />

à dinâmica<br />

belicista<br />

de Washington<br />

JACQUES CHIRAC<br />

Coube ao<br />

Presidente francês<br />

a liderança<br />

mediática<br />

da campanha<br />

contra a «guerra<br />

de Bush»<br />

quim pediu o fim imediato da acção militar<br />

e a retoma dos esforços para resolver<br />

a crise pacificamente, através da via<br />

diplomática e da acção dos inspectores<br />

de armamento da ONU. Kong Quan,<br />

porta-voz do Ministério das Relações<br />

Exteriores, declarou quinta-feira em<br />

conferência de imprensa que a guerra é<br />

uma violação da Carta da ONU e do Direito<br />

internacional.<br />

Num dos países mais críticos da intervenção,<br />

a Alemanha, o chanceler (social-democrata)<br />

Gerhard Schröder acorreu<br />

ao seu gabinete de trabalho em plena<br />

madrugada de 20, pouco depois de<br />

lançado o ataque anglo-americano contra<br />

o Iraque. Dali entrou posteriormente<br />

em contacto com Jacques Chirac e Vladimir<br />

Putine, respectivamente líderes<br />

francês e russo, com quem compartilha<br />

os pontos de vista. A Alemanha afirmou<br />

oficialmente estar consternada com o<br />

início da campanha militar e ofereceu<br />

• PAÍSES QUE APOIAM<br />

A ACÇÃO MILITAR<br />

EUROPA<br />

• Albânia Envio de tropas<br />

• Bulgária Cedência de bases e espaço aéreo;<br />

envio de um grupo de descontaminação em caso de<br />

utilização de armas químicas ou biológicas pelo Iraque<br />

• Croácia Bases e espaço aéreo; apoio logístico<br />

• Dinamarca<br />

• Espanha Aznar foi um dos impulsionadores da<br />

Carta dos Oito em apoio das intenções americanas;<br />

tropas não-combatentes; apoio logístico<br />

• Estónia<br />

• Eslováquia Envio de grupo de descontaminação<br />

• Grã-Bretanha Desde a primeira hora o maior aliado<br />

dos EUA, exigiu o desarmamento imediato do Iraque;<br />

envio de tropas, aviões e navios<br />

• Holanda<br />

• Hungria Cedência de bases, espaço aéreo e apoio<br />

logístico<br />

• Itália Berlusconi é um dos principais defensores<br />

europeus da intervenção; espaço aéreo e apoio<br />

logístico<br />

• Letónia Apoio logístico<br />

• Lituânia<br />

• Macedónia<br />

• Polónia Envio de tropas<br />

• Portugal Para Durão Barroso, o Iraque é o<br />

responsável pela situação; apoio logístico<br />

• República Checa Grupo de descontaminação<br />

• Roménia Bases aéreas e grupo de descontaminação<br />

• Ucrânia Grupo de descontaminação<br />

AMÉRICAS<br />

• Bolívia<br />

• Colômbia<br />

• El Salvador<br />

• Equador Desfeitas as hipóteses de solução pacífica,<br />

põs-se ao lado dos EUA<br />

• Estados Unidos da América<br />

• Guatemala<br />

• Honduras<br />

• Nicarágua<br />

• Panamá<br />

ÁFRICA*<br />

• Eritreia<br />

• Etiópia<br />

*Os restantes países estão contra a intervenção<br />

90 VISÃO 21 de Março de 2003<br />


OCEANIA<br />

• Austrália Seguiu sempre Washington e Londres;<br />

tropas, aviões e navios<br />

MÉDIO ORIENTE<br />

• Arábia Saudita Aliada tradicional dos EUA,<br />

ofereceu asilo político a Saddam para evitar a guerra;<br />

bases e espaço aéreo<br />

• Azerbaijão<br />

• Bahraim Apoio logístico<br />

• Emirados Árabes Unidos Tropas e base aérea<br />

• Geórgia<br />

• Israel Principal aliado dos EUA, muito interessado<br />

na queda de Saddam<br />

• Jordânia Bases, espaço aéreo e apoio logístico<br />

• Kuwait Depois da invasão iraquiana que<br />

desencadeou a I Guerra do Golfo, apoia a 2.ª edição<br />

do conflito; bases, espaço aéreo e apoio logístico<br />

• Qatar Bases, espaço aéreo e apoio logístico<br />

• Turquia Bases, espaço aéreo e tropas; negociações<br />

difíceis para o estacionamento de soldados dos EUA<br />

• Uzebequistão<br />

ÁSIA<br />

• Afeganistão<br />

• Coreia do Sul<br />

• Filipinas<br />

• Japão Considera justificada a acção militar<br />

• Taiwan<br />

• PAÍSES QUE NÃO APOIAM<br />

EUROPA<br />

• Alemanha Apesar de não apoiar, ajudará<br />

os aliados em caso de utilização de armas biológicas<br />

ou químicas pelos iraquianos<br />

• Áustria<br />

• Bélgica Sempre apostou numa resolução<br />

diplomática<br />

• França Actual «rosto» da paz; a ameaça de vetar<br />

a guerra no Conselho de Segurança irritou os EUA<br />

• Grécia<br />

• Irlanda<br />

• Luxemburgo<br />

• Noruega<br />

• Suíça<br />

• Suécia<br />

• Rússia Com a França e a Alemanha, defendeu<br />

a continuação das inspecções<br />

AMÉRICA<br />

• Argentina Se em 1991 enviou forças, desta vez<br />

ficou de fora<br />

• Brasil Considera Bush «irresponsável» e afirmou<br />

que um ataque ao Iraque seria ilegítimo<br />

• Canadá Partidário da negociação e do exílio<br />

de Saddam; só participaria na guerra com total apoio<br />

da ONU<br />

• Chile Membro não-permanente do CS,<br />

GUERRA DO GOLFO II<br />

Os países apoiantes<br />

dos EUA são desta vez<br />

muito menos do que em 1991.<br />

As principais novidades<br />

são a cisão da Europa<br />

e a ultrapassagem da ONU<br />

• SEM INFORMAÇÂO<br />

decepcionado pela incapacidade de encontrar<br />

uma saída diplomática<br />

• Cuba<br />

• México<br />

• Venezuela Repúdio da guerra «em qualquer<br />

das suas expressões»<br />

MÉDIO ORIENTE<br />

• Irão Incluído pelos EUA no Eixo do Mal, defendeu<br />

a continuação das inspecções<br />

• Síria<br />

ÁSIA<br />

• Coreia do Norte No Eixo do Mal de Bush<br />

• China Desde o início contra a intervenção militar;<br />

de acordo com as teses francesas e russas<br />

• Índia<br />

• Indonésia<br />

• Malásia<br />

• PAÍSES INDECISOS<br />

ÁSIA<br />

• Paquistão<br />

• Tailândia<br />

AMÉRICA<br />

• Peru<br />

OCEANIA<br />

• Nova Zelândia<br />

VISÃO 21 de Março de 2003 91<br />

VISÃO


▲<br />

GUERRA DO GOLFO II Tomadas de posição<br />

MOBILIZAÇÃO GERAL PELA PAZ<br />

ajuda humanitária à população iraquiana.<br />

«Agora tudo tem de ser feito para se<br />

evitar um desastre humanitário» no<br />

país, defende uma nota divulgada pelo<br />

Governo social-democrata e «verde»<br />

germânico. Mas Berlim acrescentou que<br />

continuará a autorizar forças americanas<br />

a sobrevoarem a Alemanha e a transitarem<br />

pelo seu território.<br />

Quanto à França, que ameaçou vetar<br />

uma nova resolução do Conselho de Segurança<br />

da ONU autorizando o uso da<br />

força contra o Iraque, expressou a sua<br />

«mais profunda preocupação com o início<br />

da operação militar».<br />

Terceiro elemento da troika abertamente<br />

antiguerra juntamente com Chirac<br />

e Schröder, o Presidente da Federação<br />

Russa, Vladimir Putine, disse que<br />

não havia justificação para uma campanha<br />

militar no Iraque, a qual classificou<br />

de «erro político». Falando na quinta-<br />

-feira no Kremlin, em Moscovo, Putine<br />

pediu o fim dos devastadores bombardeamentos<br />

de Bagdad e outros alvos iraquianos<br />

e reiterou a intenção de conti-<br />

RICK RYCROFT/AP<br />

nuar empenhado na busca de uma solução<br />

política para a crise. Horas antes,<br />

uma importante personalidade da vida<br />

política russa já se havia referido ao ataque<br />

à velha Mesopotâmia como «um erro<br />

trágico» (até mesmo na perspectiva<br />

dos EUA), passível de vir a prejudicar as<br />

relações de Washington com outras capitais,<br />

inclusive com Moscovo.<br />

«Do ponto de vista da comunidade<br />

internacional [a acção militar], é ilegítima,<br />

injustificada e uma ameaça à estabilidade<br />

mundial», afirmou a referida autoridade.<br />

O ataque «é mal concebido,<br />

indevido e pode prejudicar algumas das<br />

importantes parcerias americanas e suas<br />

relações exteriores», argumentou.<br />

O Governo russo vem, desde o início<br />

da crise, criticando a posição dos EUA<br />

de querer desarmar o Iraque por via da<br />

força.<br />

Em Nova Iorque, o embaixador iraquiano<br />

na ONU, Mohammed Aldouri,<br />

reiterou alguns dos argumentos dos países<br />

que mais frontalmente questionam a<br />

legalidade da guerra, classificando a intervenção<br />

militar anglo-americana no<br />

Iraque de «violação do Direito interna-<br />

cional». Aldouri disse que pediria ao<br />

Conselho de Segurança e à ONU, como<br />

um todo, que fizessem as forças aliadas<br />

responder pelo ataque ao seu país.<br />

Alinhados com a América<br />

Numa declaração algo tardia, feita na<br />

tarde de 20, o primeiro-ministro britânico,<br />

Tony Blair (que se debate com sérias<br />

dificuldades internas), veio reiterar aquilo<br />

de que já toda a gente estava ao corrente:<br />

que forças armadas do seu país<br />

participam na ofensiva bélica ao lado<br />

dos americanos e que o objectivo da<br />

guerra é derrubar Saddam Hussein.<br />

Outro dos aliados de Washington e<br />

grande apoiante da acção militar, o chefe<br />

do Governo da Espanha, José María<br />

Aznar, convocou uma reunião ministerial<br />

para quinta-feira. Aznar, que conversou<br />

com Bush e Blair horas antes do<br />

bombardeamento do Iraque, disponibilizou<br />

duas bases aéreas para os EUA,<br />

mas as forças armadas espanholas não<br />

se envolverão no conflito.<br />

Na Ásia, o Japão e as Filipinas ofereceram<br />

apoio ao ataque, mas a Malásia e líderes<br />

muçulmanos da região condenaram a<br />

92 VISÃO 21 de Março de 2003


acção e advertiram que os americanos pagariam<br />

um dia por ela um preço elevado.<br />

Quanto ao primeiro-ministro japonês,<br />

Junichiro Koizumi, reiterou o seu<br />

«apoio moral» a Washington, contra-<br />

SYDNEY<br />

E MADRID<br />

Tanto australianos<br />

como espanhóis<br />

quiseram<br />

manifestar<br />

publicamente<br />

e de forma<br />

inequívoca<br />

que não estão<br />

ao lado dos<br />

respectivos<br />

governos no<br />

presente conflito<br />

riando a opinião pública largamente<br />

maioritária no seu país. «Compreendo e<br />

apoio o início do uso da força pelos<br />

EUA», afirmou Koizumi em conferência<br />

de imprensa.<br />

lBERLIM<br />

Numa bricadeira com o nome de Bush, estudantes alemães dizem ser precisas árvores, não arbustos<br />

GUERRA DO GOLFO II<br />

Na vizinha Coreia do Sul, o Presidente<br />

Roh Moo-Hyun, afirmou que o seu<br />

Executivo trabalharia para minimizar o<br />

impacto da guerra no país e ofereceria<br />

ajuda e tropas quando cessassem as hostilidades.<br />

O primeiro-ministro tailandês, Thaksin<br />

Shinawatra, afirmou que Banguecoque<br />

não participa na guerra mas está disponível<br />

para colaborar na reconstrução<br />

do Iraque após o termo das hostilidades.<br />

Que o governante não transmite a opinião<br />

da totalidade dos seus compatriotas<br />

é atestado pelo facto de o Grupo de Muçulmanos<br />

para a Paz ter afirmado que os<br />

americanos «atraíram mais inimigos do<br />

que nunca, não só no mundo muçulmano<br />

mas também entre os budistas».<br />

‘Data negra da História’<br />

Quanto à Índia, pertence ao número<br />

dos países que desaprovam a intervenção<br />

militar, mas manteve o silêncio.<br />

Já o Paquistão, seu vizinho e inimigo,<br />

declarou através do ministro da Informação,<br />

Rashid Ahmed, que não apoia a<br />

guerra contra o Iraque e manifestou a<br />

intenção de continuar a fazer pressão<br />

pela paz.<br />

Outros países muçulmanos expressaram<br />

forte oposição. Numa posição unânime,<br />

o vice-primeiro-ministro da Malásia,<br />

Abdullah Ahmad Badawi, disse na<br />

televisão que o ataque é «uma data negra<br />

da História», e a oposição conservadora<br />

disse pela voz do líder do Partido<br />

Islâmico que «esta guerra desprezível<br />

põe em evidência a maldade da América<br />

e dos seus aliados».<br />

A Presidente da Indonésia, Megawati<br />

Sukarnoputri, afirmou que seu Governo<br />

se opõe fortemente ao ataque e exortou<br />

as Nações Unidas a convocar uma reunião<br />

para analisar a situação mundial.<br />

Por seu turno, líderes islâmicos reagiram<br />

com cólera ao ataque ao Iraque. O pequno<br />

grupo radical Hizbut Tahrir exortou<br />

mesmo à guerra santa «para defender<br />

a dignidade de um país muçulmano<br />

e do seu povo».<br />

Já a homóloga filipina de Megawati,<br />

Gloria Arroyo, disse que Manila integra<br />

a «coligação da vontade», referindo-se<br />

algo ambiguamente ao facto de o seu<br />

país estar do lado dos EUA.<br />

A posição dos paises não-alinhados,<br />

cujo movimento é presentemente dirigido<br />

por Cuba, Malásia e África do Sul,<br />

consideram, finalmente, «um acto ilegítimo<br />

de agressão» a «acção militar unilateral<br />

dos EUA e aliados». ■<br />

VISÃO 21 de Março de 2003 93<br />

ANDREA COMAS/REUTERS<br />

HERBERT KNOSOWSKI/AP


GUERRA DO GOLFO II “E aqui vai uma frase de paleio de situação no dito dossier, máí nada”<br />

PROTESTO CONTRA<br />

A GUERRA<br />

Mal foi anunciado<br />

que as tropas<br />

britânicas estavam<br />

prontas a ir para<br />

o Iraque, a reacção<br />

dos londrinos não<br />

se fez esperar<br />

GRÃ-BRETANHA<br />

O futuro de Blair<br />

As próximas semanas decidirão se o primeiro-ministro<br />

sobrevive a Saddam Hussein<br />

Era pegar ou largar. Se o Parlamento<br />

votasse a retirada das tropas<br />

britânicas estacionadas no Iraque<br />

estaria, ao mesmo tempo, a decidir<br />

a saída do seu primeiro-ministro, avisou<br />

Tony Blair quando, na terça-feira,<br />

18, se apresentou aos deputados, pedindo<br />

luz verde para avançar para a guerra,<br />

mas sem o sine qua non que muitos políticos<br />

do seu partido tinham exigido:<br />

uma resolução do Conselho de Segurança<br />

da ONU a sancionar o ataque.<br />

Blair deitou mão a tudo o que pôde.<br />

O artigo do jornal Times sobre a votação<br />

dizia que ele «nunca fez um discurso<br />

mais difícil, nem mais importante nem<br />

melhor» e soubera escolher o tom: dirigira-se<br />

«não à plateia, mas ao coração».<br />

Aparentemente, saiu-se bem. Até uma<br />

das suas colegas de Governo não conseguiu<br />

conter as lágrimas, emocionada,<br />

quando o ouvia.<br />

«Quem irá festejar e quem irá chorar,<br />

se retirarmos as nossas tropas?», perguntou<br />

aos deputados. No final, fizeram-se<br />

as contas e o pior tinha passado:<br />

ao contrário do que previam alguns analistas,<br />

não ficara dependente dos conservadores<br />

para atacar o Iraque. É verdade<br />

que 139 trabalhistas não foram sensíveis<br />

aos seus argumentos e votaram contra,<br />

entre eles 17 que, por sinal, até tinham<br />

estado a seu lado nos debates anteriores.<br />

Mas a inversa também foi verdadeira:<br />

94<br />

conseguiu recuperar alguns dos seus críticos.<br />

Por agora, a situação estava salva.<br />

Mais a mais, Blair entrara no Parlamento<br />

já com uma baixa, apesar de o<br />

ataque ainda não ter começado. O ministro<br />

dos Assuntos Parlamentares, Robin<br />

Cook, juntara-se aos outros membros<br />

do Governo que decidiram demitir-<br />

-se por causa do apoio da Grã-Bretanha<br />

a este ataque. Foi uma saída que, segundo<br />

a imprensa britânica, teve «dignidade<br />

e força destrutiva». Mas não feriu mortalmente<br />

o primeiro-ministro.<br />

Três horas antes da votação, já o Ministério<br />

do Interior se antecipara, colocando<br />

na sua página da Internet instruções<br />

aos britânicos sobre o que deviam<br />

ter em casa, como prevenção para a hipótese<br />

de um ataque terrorista. Precisariam<br />

de uma lanterna, algumas latas de<br />

comida, garrafas de água e cobertores.<br />

As recomendações ficaram bem aquém<br />

das que receberam os cidadãos<br />

dos Estados Unidos.<br />

Aí, o Governo elaborou<br />

uma brochura de<br />

56 páginas, com o título<br />

Estão prontos? E mesmo<br />

os que não estivessem<br />

deveriam passar a ter à<br />

mão não só víveres para<br />

três dias, como sacos-cama,<br />

rádios de pilhas e até<br />

T-shirts de algodão que<br />

REUTERS/TOBY MELVILLE<br />

possam transformar-se em máscaras de<br />

gás improvisadas. Em Londres, não só<br />

as instruções foram menos drásticas, como<br />

até teve que ficar a aguardar para<br />

outro dia o simulacro de atentado ao<br />

Metro, pois a polícia da capital tinha tarefas<br />

de segurança mais urgentes.<br />

No dia seguinte à votação, Blair apareceu<br />

de surpresa numa reunião do grupo<br />

parlamentar do seu partido para tentar<br />

minorar os estragos. Garantiu que,<br />

desta vez, e ao contrário da Guerra do<br />

Golfo, só serão atacadas as instalações<br />

militares e os edifícios do Governo.<br />

E, num gesto de boa vontade para com<br />

os seus dissidentes, nomeou até uma das<br />

suas colegas mais críticas, Clare Short,<br />

para o gabinete <strong>especial</strong> que criou para<br />

a guerra ao Iraque.<br />

Nas próximas semanas a evolução<br />

dos ataques irá, certamente, voltar a levá-lo<br />

ao Parlamento. E terá de, de novo,<br />

fazer contas. Além disso, corre o risco<br />

de a moda da rebeldia que atingiu a sua<br />

bancada a propósito do Iraque venha a<br />

pegar, mesmo para questões internas e,<br />

aparentemente, bem mais pacíficas.<br />

A próxima lei a ser votada será a que<br />

contém um novo modelo de gestão hospitalar.<br />

Uma centena de trabalhistas<br />

anunciaram já que são contra. ■<br />

TONY BLAIR<br />

No Parlamento,<br />

dirigiu-se «não<br />

à plateia, mas<br />

ao coração»,<br />

escreveu-se<br />

no jornal Times<br />

REUTERS/PAUL MCERLANE


GUERRA DO GOLFO II<br />

AMÉRICA<br />

O epicentro, a 10 000 km da frente<br />

A vida em Manhattan não difere muito da normalidade: Bagdad fica longe e...<br />

Washington não parece perto<br />

LÚCIA GUIMARÃES • NOVA IORQUE<br />

‘ Ohhhh!». A exclamação uníssona<br />

encheu o restaurante. O<br />

ecrã de TV grande anunciava<br />

o início dos combates terrestres<br />

e novos bombardeamentos a Bagdad.<br />

Mas a emoção da plateia de 20 pessoas<br />

era reservada ao ecrã pequeno, que exibia<br />

a final da partida de básquete entre a equipa<br />

universitária da Califórnia e a de Connecticut.<br />

Estava a ganhar a Califórnia.<br />

Com licença, lembram-se de que o país<br />

está em guerra? A pergunta não foi feita e<br />

seria frívola naquele momento. Nenhum<br />

par de olhos desviava a atenção para<br />

Christiane Amanpour, da CNN, em Kuwait<br />

City. Nova Iorque, capital mundial<br />

dos alvos do terror, parecia demasiado<br />

ocupada para se concentrar no maior esforço<br />

bélico jamais mobilizado pelos<br />

EUA. A cena no popular bar irlandês, perto<br />

de Times Square, não parecia perturbar<br />

os frequentadores. Christiane Amanpour<br />

continuou os seus movimentos labiais<br />

emudecidos pelo controlo remoto.<br />

O que pensar de uma guerra que mobiliza<br />

polícias com máscaras de gás, reúne<br />

numa operação militar governantes de<br />

três Estados mas fracassa na captura da<br />

imaginação popular? A cidade amanheceu<br />

na quinta-feira, 20, um pouco mais<br />

cautelosa, mas não subjugada pela gravidade<br />

da guerra. O troféu limão vai para o<br />

tablóide Daily News, que na sua primeira<br />

edição bradou: «Bom Dia, Bagdad.»<br />

‘Surf‘e rotina<br />

Alertados pelo primeiro bombardeamento,<br />

na noite anterior, muitos nova-iorquinos<br />

que não tinham necessidade de se<br />

dirigir a Manhattan evitaram a ilha. Os<br />

aeroportos registaram atrasos por causa<br />

de um temporal. Os governadores de Nova<br />

Iorque, Connecticut e New Jersey convocaram<br />

uma conferência de imprensa<br />

conjunta na estação ferroviária de Grand<br />

Central e posaram diante de um contigente<br />

da Guarda Nacional que foi trazido para<br />

aumentar a visibilidade da Operação<br />

Atlas de prevenção ao terrorismo. Vendedores<br />

de bilhetes de metro, uma espécie<br />

lIMAGEM RARA, NO ROCKFELLER CENTER<br />

Não muito longe dali, na Broadway, havia quem preferisse ter os televisores sintonizados no surf...<br />

em extinção por causa dos cartões magnéticos,<br />

passaram a dispor de máscaras de<br />

gás nos seus cubículos envidraçados.<br />

As escolas mantiveram horários de rotina<br />

e alguns professores queixaram-se da<br />

falta de planos de emergência. Numa<br />

grande loja de equipamentos electrónicos<br />

da Broadway, as televisões não estavam<br />

sintonizadas nas notícias. Os monitores<br />

de alta definição exibiam cenas de surf.<br />

«Deus ama-te.» A frase, disparada contra<br />

a repórter pelo pregador na carruagem<br />

de metro, tinha um tom de audácia. Deus<br />

costuma ser invocado sem parcimónia<br />

pelos pedintes, mas em pleno Alerta Laranja<br />

o tipo que impingia folhetos em nome<br />

de Jesus Cristo estava a cometer uma<br />

gaffe contra a etiqueta antiterror.<br />

Na estação de Times Square, um polícia<br />

relaxado dizia que nada mudou depois<br />

do disparo do primeiro míssil de cruzeiro.<br />

«O nosso patrulhamento já foi intensificado<br />

há mais de um mês», comentou.<br />

Lá em cima, o contigente policial<br />

agressivo e o protesto pacifista eram o<br />

único sinal de que a guerra havia começado.<br />

No passeio em frente do auditório da<br />

MTV, adolescentes esperavam ansiosas o<br />

início do show ao vivo. Um quarteirão<br />

abaixo, turistas acotovelavam-se para<br />

comprar bilhetes de teatro com desconto.<br />

Mais a sul, Wall Street exibia o seu lado<br />

maníaco-depressivo. A bolsa caiu 135<br />

pontos de manhã, por conta de uma frase<br />

do discurso de Bush: «A campanha pode<br />

ser mais longa do que alguns previram.»<br />

E fechou com um ganho de 21 pontos,<br />

depois de os corretores colados aos ecrãs<br />

de TV terem concluído que a vitória será<br />

rápida e indolor.<br />

Ao saltar da última viagem de metro do<br />

dia, fui saudada pelo cantor habitual da<br />

estação da Rua 79. «Smile», entoou, começando<br />

os versos da canção popular.<br />

O chapéu no chão à sua frenta continha<br />

alguns trocos. O seu sorriso lembrava os<br />

adjectivos usados por inúmeros jornalistas<br />

remanescentes em Bagdad. Ao descreverem<br />

o silêncio que precedeu os mísseis,<br />

eles repetiam: estranho e assustador. ■<br />

VISÃO 21 de Março de 2003 95<br />

AP/TINA FINEBERG


GUERRA DO GOLFO II Depoimentos<br />

REACÇÕES<br />

O que eles disseram<br />

O conflito visto por algumas personalidades<br />

D. JOSÉ POLICARPO<br />

CARDEAL-PATRIARCA<br />

DE LISBOA<br />

Igrejas são só para orar<br />

(...) «Neste momento, a atitude<br />

da Igreja só pode ser a<br />

da oração mais intensa, pedindo<br />

a Deus que inspire os<br />

decisores a reporem, o mais rapidamente<br />

possível, a paz; na nossa oração, terão um lugar<br />

muito particular as vítimas desta guerra,<br />

na população civil. Peço às comunidades cristãs<br />

que intensifiquem a oração pela paz e aos<br />

párocos que zelem para que as igrejas sejam<br />

apenas espaço para expressão da nossa oração<br />

e da nossa esperança, sob a sua responsabilidade<br />

pastoral.»<br />

JOSÉ ANTÓNIO RODRIGUES<br />

ROMANO PRODI<br />

PRESIDENTE<br />

DA COMISSÃO EUROPEIA<br />

Mau momento<br />

para a PESC<br />

(...) «Hoje [20.03] resta-nos<br />

desejar que a guerra seja<br />

curta, que haja o menor número<br />

de vítimas possível e que a região não<br />

seja demasiado afectada. (...) A integridade<br />

territorial do Iraque deve ser respeitada. A<br />

Comissão está disposta a prestar ajuda humanitária,<br />

de forma rápida e eficaz, sob auspícios<br />

internacionais, onde ela for mais necessária.<br />

As Nações Unidas tiveram um papel<br />

crucial e continuarão a tê-lo no futuro. (...) Há<br />

que reconhecer que este é um mau momento<br />

para a Política Externa e de Segurança Comum,<br />

para a União Europeia em geral, para a<br />

autoridade das Nações Unidas, para a NATO<br />

e para as relações transatlânticas.»<br />

AP/YVES LOGGHE<br />

PAULO PORTAS<br />

MINISTRO DA DEFESA<br />

E PRESIDENTE DO CDS-PP<br />

Forças Armadas<br />

preparadas<br />

«A decisão de estar com os<br />

JOSÉ ANTÓNIO RODRIGUES<br />

aliados decorre de uma<br />

orientação política de um<br />

Governo que preza a relação transatlântica e<br />

que ainda no ano passado publicou um Con-<br />

ceito Estratégico de Defesa Nacional em que<br />

as armas de destruição maciça e o terrorismo<br />

são considerados ameaças globais a sociedades<br />

como a nossa. A não participação militar<br />

no teatro das operações decorre da orientação<br />

expressa pelo Governo, no sentido de que<br />

graduaria a nossa participação em função da<br />

existência ou não de uma nova resolução expressamente<br />

habilitante do uso da força. Ou<br />

seja, não decorre de qualquer menor vontade,<br />

menor preparação ou menor capacidade das<br />

Forças Armadas Portuguesas, que as têm, já<br />

provaram e são capazes de cumprir as missões<br />

que o poder político lhes atribui.»<br />

FERRO RODRIGUES<br />

LÍDER DO PARTIDO<br />

SOCIALISTA<br />

Lamento atitude<br />

do Governo<br />

«Hoje [dia 20 de Março] é<br />

um dia de luto para a União<br />

Europeia, para as Nações<br />

Unidas e para a Humanidade. A extrema violência<br />

ilegítima começou a fazer-se sentir no<br />

Iraque, à margem do Direito Internacional e<br />

contra o Conselho de Segurança. Lamento<br />

profundamente a atitude do Governo português<br />

(…). Lamento ainda profundamente<br />

que os EUA estejam na primeira linha da<br />

violação do Direito Internacional e do fortalecimento<br />

da base social do terrorismo internacional<br />

que importa combater e não estimular.»<br />

LUÍS BARRA<br />

CARLOS CARVALHAS<br />

LÍDER DO PARTIDO<br />

COMUNISTA<br />

PORTUGUÊS<br />

Força contra o direito<br />

«O início da guerra no Iraque<br />

representa uma derrota<br />

moral e ética para os EUA e<br />

para Durão Barroso. A força impôs-se ao direito<br />

(…). É uma guerra inglória, imoral e evitável<br />

e que devia envergonhar aqueles que,<br />

nos Açores, colocaram a nossa bandeira nos<br />

preparativos de uma guerra junto dos falcões<br />

que sempre a desejaram (…). Estamos certos<br />

de que os portugueses não aceitam ficar associados<br />

a esta guerra e à carnificina.»<br />

BRUNO RASCÃO<br />

VERA JARDIM<br />

EX-MINISTRO<br />

DA JUSTIÇA DO PS<br />

Guerra é uma<br />

precipitação<br />

«Como afirmou o Presidente<br />

da República, a guerra é<br />

sempre uma tragédia (…).<br />

O primeiro-ministro deu o seu apoio a uma<br />

guerra lançada de forma unilateral e à margem<br />

das Nações Unidas. As soluções diplomáticas<br />

para desarmar o Iraque por meios<br />

pacíficos não foram esgotadas. O PS sempre<br />

entendeu que o regime iraquiano é um<br />

perigo para a paz mundial, mas considera<br />

esta guerra uma precipitação.»<br />

GUILHERME SILVA<br />

LÍDER DA BANCADA<br />

DO PSD<br />

Poupar os civis<br />

«Esperamos e desejamos<br />

que possa ser poupada a<br />

vida de inocentes e que este<br />

conflito termine com o<br />

menor sofrimento possível para todas as<br />

partes. Saddam Hussein pôde evitar a<br />

guerra. Não quis evitar a guerra. Cabe agora<br />

aos Estados Unidos, e aos seus aliados<br />

na acção militar, tudo fazerem para que as<br />

populações civis, as pessoas inocentes, o<br />

povo do Iraque, já tão martirizado pela ditadura,<br />

não seja atingido. O objectivo é desarmar<br />

o Iraque, o que, como os factos demonstram,<br />

impõe o derrube do ditador de<br />

Bagdad.»<br />

PAULO PEDROSO<br />

PORTA-VOZ DO PS<br />

Executivo quebrou<br />

consenso<br />

«O Governo atrelou o País<br />

a uma guerra ilegítima que<br />

visa impor o domínio americano<br />

naquela parte do<br />

mundo. A guerra foi precipitada. Ainda havia<br />

condições para negociar a paz (…). Foi<br />

o Executivo que quebrou o consenso e a<br />

unidade ao apoiar incondicionalmente os<br />

EUA.»<br />

96 VISÃO 21 de Março de 2003<br />

INÁCIO LUDGERO<br />

LUIS BARRA<br />

LUIS BARRA


www.visaoonline.pt<br />

GUERRA DO GOLFO II<br />

OPINIÃO DOS LEITORES<br />

Uma maioria contra a maioria<br />

Os comentários e as mensagens que chegaram à VISAOONLINE<br />

e à nossa redacção dão conta da larga insatisfação com a ofensiva lançada contra<br />

o Iraque e o apoio do Governo português<br />

Como é possível [George W. Bush] dizer<br />

que vai iniciar a guerra e ao mesmo tempo<br />

que vai lançar alimentos e medicamentos?<br />

Ambos têm escasseado durante 11 anos e<br />

agora é que os vão mandar. Juntamente com<br />

as bombas? Lamento profundamente que o<br />

meu país se tenha aliado a tão miserável<br />

guerra, de contornos que nada têm a ver<br />

com terrorismo, mas sim com interesses puramente<br />

económicos. Em meu nome não.<br />

ISABEL SANTOS<br />

A segurança e a organização mundial, já<br />

de si algo frágeis, recebem um golpe que será<br />

provavelmente demasiado forte. O quero,<br />

posso e mando estará legitimado no futuro.<br />

Desejava que o mal menor de não ver<br />

o nosso nome envolvido nesta brutalidade<br />

pudesse ser uma realidade. Somos pequenos<br />

mas temos consciência.<br />

FRED ROCHA<br />

Recuso aceitar ter como meu defensor,<br />

do meu país e da Europa, o Presidente dos<br />

EUA, George Bush. Recuso acreditar que<br />

Bush e a sua administração ataquem o iraque<br />

por razões humanitárias, para libertar o<br />

povo iraquiano de um ditador. E Sharon?E<br />

Eduardo dos Santos? E Mugabe? Recuso o<br />

conceito de guerra preventiva. Preventiva é<br />

a conversação e o diálogo.<br />

JOSÉ ANTÓNIO SANTOS<br />

O século do povo começa agora. É preciso<br />

demonstrar aos governantes que o exército<br />

da paz está atento. A posição do Governo<br />

português envergonha. É preciso sair, protestar<br />

e lutar pacificamente pela plaz. Caramba!<br />

Será que o Papa é terrorista?<br />

MARTA MARTINEZ<br />

Quando vejo nos artigos de primeira página<br />

o nosso primeiro-ministro ao lado dos primeiros-ministros<br />

de Espanha e Inglaterra e<br />

com o Presidente dos Estados Unidos da<br />

América, resta-me apenas dizer: que pequeno<br />

que é o nosso cherne no meio dos tubarões!<br />

NUNO GUSTAVO<br />

A França e a Alemanha pretendem fazer<br />

um directório para governar a União Europeia.<br />

Que me lembre, não vi ninguém comentar<br />

o perigo de os dois maiores países<br />

da Europa pretenderem ter um ascendente<br />

sobre os restantes, quebrando, eles sim, a<br />

unidade da Europa, que se baseia na igualdade<br />

das nações. Esse é um perigo real para<br />

a Europa e, por isso, renovo o meu apoio<br />

à posição do Governo português que foi<br />

hábil e corajoso.<br />

GABRIEL MOREIRA<br />

Não vale a pena declarar-me contra<br />

uma guerra que, contra tudo e contra todos,<br />

teima em avançar. Não existem regras?<br />

Em termos caseiros, para que votei<br />

eu em Sampaio? Na minha empresa, se<br />

desobedecesse ao meu patrão, seria posto<br />

no olho da rua. Afinal de contas, foi o que<br />

fez Durão Barroso em relação a Sampaio.<br />

Por que carga de água não é este último<br />

despedido?<br />

MANUEL ARAÚJO BALHAU<br />

Hoje [19 de Março] é Dia do Pai. No Iraque<br />

é dia da mãe de todas as guerras. (...)<br />

Aqui, em Portugal, lá, no Iraque, as crianças<br />

têm pai. Umas vão continuar a poder tê-lo,<br />

outras vão para sempre perdê-lo. Para milhões<br />

de crianças, haverá menos pais e haverá<br />

muita guerra. Cairão bombas que esmagarão<br />

flores que nascem. Morrerão<br />

crianças que nunca chegaram a nascer. Hoje<br />

é Dia do Pai. Hoje é dia da guerra. Onde<br />

está Deus? Onde está o Pai?<br />

JOSÉ BRANDÃO<br />

Sr. Durão Barroso, como se sentirá quando<br />

milhares de inocentes morrerem? Como<br />

se sentirá se eventualmente acontecerem<br />

atentados na Europa? A responsabilidade<br />

será de Saddam, não é? Oxalá que<br />

não caia nenhum dos nossos filhos, pois, se<br />

isso vier a acontecer, também cá poderão<br />

nascer alguns terroristas.<br />

JOÃO MATEUS<br />

Será que Bush prometeu [a Durão Barroso]<br />

substituir os fundos estruturais que a<br />

comunidade europeia não lhe dará, castigando-o<br />

pela sua atitude separatista dentro<br />

da UE? Cá estaremos para ver. Se estivermos.<br />

ANTÓNIO MELO<br />

Claro que é mais fácil e cómodo ficar<br />

na indiferença ou então tomar partido pelo<br />

lado francês. Todas as evoluções conquistadas<br />

na posição do sr. Hussein foram<br />

conseguidas não à custa da benevolência<br />

da comunidade internacional mas sim à<br />

custa da força e da ameaça. Esta é a única<br />

linguagem que este senhor entende e<br />

respeita.<br />

JOSÉ HENRIQUES<br />

É certo e sabido que os EUA têm necessidade<br />

de ter as suas guerras para satisfazer<br />

a sua indústria belicista. Também é certo<br />

que o que está em causa nesta lamentável<br />

situação é o petróleo, não o desarmamento<br />

do tirano Saddam. É lamentável que quem<br />

não partilha deste ideário seja considerado<br />

de esquerda. Freitas do Amaral, prémios<br />

Nobel da Paz são o quê?<br />

ÁLVARO MATOS<br />

Gostaria francamente de ver uma só medida<br />

não bélica que pudesse resolver a situação.<br />

Parece-me curto falar em via pacífica<br />

e diplomática sem explicitar qual a receita<br />

para forçar Saddam a colaborar. Talvez<br />

houvesse uma solução se deixasse de haver<br />

tanto fanatismo contra democracias tolerantes<br />

e tanta tolerância com regimes fanáticos.<br />

FERNANDO COSTA<br />

O Governo de Durão Barroso pode ser<br />

co-responsabilizado pelo genocídio de<br />

um povo já tão martirizado pela sanguinária<br />

dinastia Hussein. Que Deus lhe<br />

perdoe.<br />

A. FERREIRA DIAS<br />

VISÃO 21 de Março de 2003 97


GUERRA DO GOLFO II<br />

Era esperada mas, apesar disso, entre essa espera e o actual<br />

acto do começo da guerra vai uma distância semelhante<br />

à que sentimos quando alguém que amamos está<br />

com uma doença que sabemos fatal e o momento irreversível<br />

da sua morte.<br />

Não há dúvida, sobretudo para quem seguiu a evolução do<br />

Iraque nos últimos 30 anos, que Saddam Hussein foi um ditador<br />

implacável e sanguinário, não tendo quaisquer limites à sua<br />

violência.<br />

Mas as ditaduras não se destroem de fora para dentro. A libertação<br />

de um povo é feita pelas suas próprias mãos. Nós, portugueses,<br />

sabemos que essa possibilidade de decidirmos o nosso<br />

próprio destino é o cerne do processo de libertação. A tentativa<br />

de estabelecer uma equivalência com o processo de Timor-<br />

-Leste não colhe porque Timor estava nas mãos de uma potência<br />

estrangeira. Exit o argumento de que outros países vão libertar<br />

o Iraque.<br />

A mudança de regime num país é um longo<br />

processo que não pode deixar de assentar<br />

na cultura e nas tradições de um povo. Todos<br />

os que aplicaram «manuais» à feitura da democracia<br />

acabaram por ver uma manobra de<br />

«ricochete» em que voltaram à cena, ainda<br />

que disfarçados, alguns dos velhos hábitos do<br />

regime anterior.<br />

Na Rússia, aos privilégios da «nomenklatura»<br />

vieram a suceder as várias máfias que atiram cerca de 60%<br />

da população para a pobreza. No Koweit que na I Guerra do<br />

Golfo ia tornar-se «democrático», as mulheres não têm direito<br />

de voto! Exit o argumento de que a guerra vai mudar o regime<br />

do Iraque.<br />

Uma guerra como a que acaba de começar não tem qualquer<br />

justificação. É certo que, aparentemente, tudo partiu do trágico<br />

dia 11/9. E nos últimos dias o presidente Bush voltou a invocar<br />

essa data. A meus olhos, prostituiu-a, transformando esse memento<br />

de dor e perda do povo americano num «trunfo» do seu<br />

póquer político. Atitude inadmissível num líder político. Hoje<br />

dos verdadeiros líderes políticos esperam todos os que se dedicam<br />

às ciências políticas «competência, compaixão e cuidado».<br />

A vingança pertence aos piores instintos e não tem lugar entre<br />

povos civilizados.<br />

Não chega, porém, o apelo aos valores éticos contemporâneos<br />

para tornar esta guerra imoral. Ela é-o também por violar<br />

a legalidade das relações internacionais tais como, desde há 50<br />

anos, os povos livres de então a definiram e institucionalizaram<br />

na Organização das Nações Unidas.<br />

Todos os que no mundo reconhecemos os progressos científicos<br />

e tecnológicos da era da globalização, reconhecemos, ao<br />

mesmo tempo, a desordem internacional a que tem dado ori-<br />

MARIA DE LOURDES PINTASILGO<br />

A guerra ilegal e a libertação dos povos<br />

❝Bush prostituiu<br />

o 11 de Setembro,<br />

transformando-o<br />

num ‘trunfo’<br />

do seu póquer<br />

político ❞<br />

gem. Por isso, pensamos e tentamos imaginar instituições reguladoras<br />

que garantam o acesso de todos os homens e mulheres<br />

aos possíveis benefícios da globalização. Ora a ONU e, em particular,<br />

o seu Conselho de Segurança, é a única instituição reguladora<br />

dos conflitos entre Estados. A sua legalidade tem de ser<br />

defendida face à guerra de agressão que os Estados Unidos, o<br />

Reino Unido e a Espanha unilateralmente decidiram. Este trabalho<br />

deve começar já.<br />

E a primeira reivindicação é a da «soberania» da ONU em<br />

relação ao Iraque, imediatamente após o fim da guerra. Nem<br />

por uma hora é aceitável a «soberania» dos EUA sobre o Iraque.<br />

Os impérios coloniais, mesmo breves, terminaram. Já temos<br />

que lidar a plano mundial com a sua hegemonia em<br />

áreas em que está em jogo a sobrevivência das pessoas e do<br />

próprio planeta. Que, ao menos, a hegemonia territorial seja<br />

contida!<br />

O tempo para pensar o futuro – conceitos<br />

e instituições – é o trabalho urgente para<br />

quem sente que esta guerra lhe diz respeito.<br />

E a quem?<br />

A todos os que, em todos os países, têm<br />

mostrado a sua repulsa pela guerra, <strong>especial</strong>mente<br />

com as características de ilegitimidade<br />

de que esta vem ferida. A sua palavra, os seus<br />

gestos, não podem ser filtrados pelas censuras<br />

mais ou menos claras de que padecem<br />

quem as quer fazer ignorar. Os povos podem exprimir-se como<br />

entenderem desde que o façam, em cada situação, dentro dos limites<br />

legais. E os poderes políticos – os que não são ditaduras,<br />

claro! – têm o dever de os ouvir e de tomar em linha de conta<br />

o que exprimem.<br />

Reconheço na última declaração do Presidente da República<br />

o desejo de interpretar o sentir da maioria dos portugueses –<br />

mais de 60%. Porque essa declaração não foi, em alguns órgãos<br />

de imprensa devidamente interpretada. Dela foram publicados<br />

excertos como se de um artigo de qualquer de nós se tratasse.<br />

Ora o que o PR declarou à Nação, tendo como princípios orientadores<br />

os que constam do art. 7.º da Constituição, foi a aplicação<br />

dos seus actos próprios tais como formulados na referida<br />

Constituição: «exercer as funções de Comandante Supremo das<br />

Forças Armadas»; «declarar a guerra (...) e fazer a paz».<br />

Foi nesse contexto que declarou: «Tendo em conta a inexistência<br />

de um mandato expresso das Nações Unidas, as Forças<br />

Armadas Portuguesas não participarão neste conflito, não colaborarão<br />

nele, nem Portugal fará parte da coligação militar<br />

que se criar.»<br />

É óbvio que uma tal declaração vale como lei, melhor, retira<br />

qualquer legitimidade a todos os órgãos do Estado que tivessem<br />

a veleidade de agir contrariamente à sua letra e ao seu<br />

espírito.<br />

98 VISÃO 21 de Março de 2003

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