Edição especial - Visão
Edição especial - Visão
Edição especial - Visão
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
www.visaoonline.pt<br />
21 DE MARÇO DE 2003 • PORTUGAL €2,60<br />
EXTRA<br />
EDIÇÃO<br />
A GUERRA.<br />
Bagdad, 20 de Março de 2003
Conselho de Gerência: Francisco Pinto Balsemão, Pierre Lamunière, Jean-Claude<br />
Marchand, Luiz Vasconcellos e Miguel Costa Gomes<br />
Director-Geral: Miguel Costa Gomes<br />
Directores Editoriais: Fernanda Dias e Carlos Cáceres Monteiro<br />
Directora Comercial e Publicidade: Maria João Peixe Dias<br />
Director de Desenvolvimento de Negócios: João Xara-Brasil<br />
Director de Produção e Compras: Manuel Parreira<br />
Director de Circulação: Francisco Moita<br />
Director de Marketing: Ricardo Sécio<br />
Director Administrativo e Financeiro: Joaquim Carreira<br />
Director Marketing Directo: William Pereira<br />
Director de Sistemas Informáticos: José Calé<br />
Director: Carlos Cáceres Monteiro<br />
Directores Adjuntos: Cláudia Lobo e Pedro Camacho<br />
Editores Executivos: Filipe Luís e Rui Tavares Guedes<br />
Gabinete Editorial: José Carlos de Vasconcelos (Coordenador); Daniel Ricardo<br />
(Editor Executivo), Edite Soeiro e Fernando Dacosta (Editores)<br />
Gabinete Gráfico: Eduardo Barreto (Coordenador) e José Pinto Nogueira (Editor<br />
Chefe) e João Carlos Mendes (Editor)<br />
Editores: Ana Pereira da Silva (Em Foco); Áurea Sampaio (Portugal); João<br />
Paulo Vieira (Economia); Luís Almeida Martins (Mundo); Pedro Dias de Almeida<br />
(Cultura); Rosa Ruela (Sociedade) e Pedro Vieira (adjunto, Europa).<br />
Visaoonline: Francisco Galope e Manuel Barros Moura (adjunto). <strong>Visão</strong> 7: Ana<br />
Pinheiro. Fotografia: Luís Vasconcelos e Gonçalo Rosa da Silva (adjunto)<br />
Redactores Principais e Grandes Repórteres: Ana Margarida Carvalho, Filipe Fialho;<br />
Miguel Carvalho; Paulo Chitas e Rui Costa Pinto<br />
Redacção: Alexandra Correia, Ana Tomás Ribeiro, António José Brás, Carla Alves Ribeiro,<br />
Clara Cardoso (Visaoonline), Emília Caetano, Florbela Alves (Porto), Gabriela<br />
Lourenço, Henrique Botequilha, Inês Rapazote, João Dias Miguel, José Plácido Júnior,<br />
Luísa Oliveira, Luís Ribeiro, Paulo Pena, Paula Serra, Paulo Santos, Ricardo Fonseca,<br />
Rita Montez, Sara Belo Luís, Sara Sá, Sílvia Souto Cunha, Sónia Calheiros<br />
(<strong>Visão</strong> 7), Sónia Sapage, Susana Oliveira (<strong>Visão</strong> 7) e Teresa Campos (Visaoonline).<br />
Grafismo: Teresa Sengo (Coordenadora), Pedro Monteiro (Coordenador <strong>Visão</strong> 7),<br />
Carlota Romaneiro, Nuno Silva, Paulo Reis, Ana Rita Rosa (<strong>Visão</strong> 7) e<br />
Francisco Rodrigues (Visaoonline).<br />
Infografia: Jonas Reker e Manuela Tomé<br />
Fotografia: António Xavier, Inácio Ludgero, Luís Barra, Lucília Monteiro (Porto);<br />
J. António Rodrigues (Açores); Acácio Madaleno e Fernando Negreira (Digitalização)<br />
Delegação do Porto: Germano Silva (Delegado).<br />
Colunistas: Alexandre Castro Caldas, António Lobo Antunes; António Mega Ferreira;<br />
António Muñoz Molina, Boaventura de Sousa Santos, Diogo Freitas do Amaral, Eduardo<br />
Lourenço, Helena Roseta, João Mário Grilo, José Saramago, José Silva Pinto, Manuel<br />
António Pina, Maria de Lourdes Pintasilgo e Pedro Norton.<br />
Colaboradores da Redacção: Clara Soares, Cesaltina Pinto, Cláudia Borges,<br />
Eduardo Gageiro, Isabel Nery, José António Salvador, Júlio Santos, Mafalda César<br />
Machado, Manuel Vilas-Boas, Mário Campos, Mário Rui Cardoso, Miguel Judas,<br />
Nuno Miguel Guedes, Rui Pimentel, Sara Rodrigues e Tiago Alves<br />
Correspondentes: Lúcia Guimarães e Helena Lopes (EUA), Maité Gonzàlez<br />
(Madrid), Jill Joliffe (Áustrália) e Norma Couri (Brasil), Nahum Sirotsky (Israel).<br />
Assistentes Editoriais: Sofia Vicente, Inês Belo, Maria de Lurdes Abreu e Luis Pinto.<br />
Secretariado: Paula Godinho (Secretária de Direcção); Teresa Rodrigues e Ana<br />
Paula Figueiredo (Secretárias de Redacção), Fernando Moreno (Apoio).<br />
Base de Dados: Sandra Pinto e Susana Lopes.<br />
Produção gráfica: Manuel Fernandes (Director-Adjunto); João Paulo Batlle y Font<br />
e Nuno Gonçalves.<br />
Revisão: Rui Carvalho e António Ribeiro (VISÃO 7, VISÃO online)<br />
Marketing: Filipa Saldanha.<br />
Exclusivos para Portugal: TIME, TIME Digital, Le Nouvel Observateur, El Pais,<br />
Far Eastern Economic Review e GraphicNews, The New York Times<br />
Serviço de telefotos: Associated Press, Reuters e Lusa.<br />
Redacção: Rua Calvet de Magalhães, n.º 242. Laveiras.<br />
2770-022 Paço de Arcos<br />
Telef.: 214698000, Fax: 214698547<br />
Delegação Norte: R. Monte dos Burgos, n.º 1080, 4250–314 Porto.<br />
Telef.: 228347520 Fax: 228347557<br />
Publicidade<br />
Telefone: 214698228 • Fax: 214698543<br />
Directora Coordenadora: Isabel Figueiredo<br />
Tel.: 214698220 • Coordenador: Carlos Varão Telef.: 214698227 • Contactos: Luís Barata<br />
e Miguel Teixeira Diniz • Assistente de planeamento: Aurora Sousa<br />
• Assistente: Rosa Pinto • Coordenadores de materiais: José António Lopes<br />
Delegação Norte<br />
Directora: Ângela Almeida • Contacto: Vitor Cunha e Helena Almeida<br />
– Telef.: 228347520, Fax: 228347555<br />
Assinaturas<br />
Telefone: 214698800 • Fax: 214698501<br />
Serviço de atendimento: Pedro Fernandes (responsável)<br />
Envie o seu pedido para:<br />
Edimpresa, Editora Lda. – Remessa Livre 1120 – 2771-960 Paço de Arcos<br />
assinaturas@acj.pt<br />
Edimpresa, Editora, Lda.<br />
NPC 501859349<br />
Capital Social: 997 595,80 euros<br />
CRC Oeiras nº. 5537<br />
Omniger SGPS, Lda. 66,67%<br />
Edipresse International, S.a.r.l. 33,33%<br />
R. Calvet de Magalhães, n.º 242<br />
Laveiras . 27700-022 Paço de Arcos<br />
Telef.: 214698000 – Fax: 214698500<br />
Delegação Norte: Rua Monte dos Burgos,<br />
1080, 4250-314 Porto<br />
Tel.: 228347520 – Fax: 228302331<br />
Impressão: Lisgráfica – Casal de Santa<br />
Leopoldina – 2745 Queluz de Baixo<br />
Distribuição: VASP – Sociedade de<br />
Transportes e Distribuição, Lda. Complexo CREL –<br />
Bela Vista/Rua da Tascoa, 4.º Piso Massamá – 2745<br />
Queluz Telef: 214398500. Fax. 214302499<br />
Tiragem:<br />
96 600 exemplares<br />
Registo na DGCS nº: 112348<br />
N.º Depósito Legal: 127961/98<br />
ISSN 0872/3540<br />
Interdita a reprodução, mesmo parcial, de textos, fotografias<br />
ou ilustrações sob quaisquer meios, e para quaisquer fins, inclusive comerciais<br />
Esta edição da VISÃO foi feita ao longo do<br />
dia de ontem, 20, o primeiro desta Guerra<br />
do Golfo II, e não repete um único<br />
texto da revista «normal» que se encontra<br />
já nas bancas, com o título Apocalipse<br />
Now. Não deve ser lida, por isso, como<br />
uma segunda edição, mas sim como<br />
um número verdadeiramente «extra»,<br />
que completa, e infelizmente confirma, o<br />
quadro global que se anunciava e a que<br />
demos expressão na capa anterior.<br />
Mário Soares, Eduardo Lourenço,<br />
Freitas do Amaral, Maria Lourdes Pintasilgo<br />
e Helena Roseta dizem-nos, nesta<br />
VISÃO, o que pensam, depois de terem<br />
caído as primeiras bombas no Iraque.<br />
Reflexões que complementam as de José<br />
Saramago e de Noam Chomsky, além de<br />
outro artigo de Freitas do Amaral, publicados<br />
na revista saída quinta-feira.<br />
A Guerra do Golfo II está ainda no começo,<br />
e não foi com o prometido ataque<br />
«esmagador» que os EUA iniciaram as<br />
hostilidades militares. Mas é uma questão<br />
de tempo, segundo a generalidade<br />
dos observadores, sejam políticos, sejam<br />
GUERRA DO GOLFO II<br />
Uma edição extraordinária<br />
<strong>Edição</strong> EXTRA 21 de Março de 2003<br />
O Ataque ..........................................................4<br />
Opinião:<br />
Eduardo Lourenço ..........................9<br />
As imagens que não<br />
se esquecem ............................................12<br />
Jordânia: a fronteira<br />
do inferno....................................................32<br />
Armas: guerra a partir<br />
dos céus ........................................................36<br />
Mesopotâmia:<br />
o berço da civilização ..........40<br />
Tommy Franks: homem<br />
de cortar a direito ........................42<br />
Ajuda: um grando dano<br />
colateral ........................................................44<br />
Opinião:<br />
Helena Roseta ..................................47<br />
Economia: o preço<br />
da batalha..................................................48<br />
Bombas em alta,<br />
petróleo em baixa ........................50<br />
George W. Bush:<br />
o dono da guerra ............................52<br />
Jacques Chirac:<br />
o homem do ‘não’........................54<br />
Saddam Hussein:<br />
o fim do grande ‘pai’? ..........56<br />
Planos: o Iraque<br />
depois de Saddam ......................60<br />
Recordação: Golfo,<br />
parte I ..............................................................64<br />
Iraquianos em Portugal:<br />
imigrantes de luxo ........................72<br />
militares ou jornalistas. É o caso de Paulo<br />
Camacho, o enviado <strong>especial</strong> da SIC,<br />
que nos transmite, num pequeno depoimento,<br />
as primeiras impressões de quem<br />
vive este início de guerra em Bagdad.<br />
Uma imagem não vale apenas mil palavras.<br />
É também uma arma poderosa<br />
para assinalar os grandes acontecimentos,<br />
mesmo quando são trágicos, como<br />
esta guerra. Dedicamos-lhe, por isso, um<br />
espaço digno e alargado, numa revista<br />
que concebemos com o objectivo de a<br />
oferecer aos nossos leitores como um<br />
verdadeiro documento histórico.<br />
Filipe Luís, editor executivo da VISÃO<br />
e nosso enviado à Jordânia, conta, nesta<br />
edição, os momento dramáticos que se<br />
vivem na fronteira com o Iraque, assim<br />
como o ambiente em Amã. Carlos Cáceres<br />
Monteiro, director da VISÃO, que<br />
cobriu a Guerra do Golfo, em 1991, para<br />
O Jornal, encontra-se, no momento<br />
em que ultimamos esta edição, na Síria,<br />
junto da fronteira com o país de Saddam.<br />
Esperamos publicar, já na próxima edição,<br />
uma reportagem da sua autoria.<br />
Entrevista:<br />
Mário Soares ........................................76<br />
Opinião: Diogo Freitas<br />
do Amaral ..................................................77<br />
Portugal:<br />
as reacções................................................78<br />
Cimeira europeia: UE<br />
tenta colar os cacos ..................83<br />
Comentário: José Carlos<br />
de Vasconcelos ..................................85<br />
Reacções no mundo:<br />
mobilização geral<br />
pela paz ........................................................86<br />
Grã-Bretanha:<br />
o futuro de Blair ............................94<br />
América: o epicentro,<br />
a 10 000 km da frente ..........95<br />
O que eles disseram ................96<br />
Correio do Leitor ..........................97<br />
Opinião: Maria<br />
de Lourdes Pintasilgo ..........98<br />
VISÃO 21 de Março de 2003 3
GUERRA DO GOLFO II<br />
BAGDAD, 20 DE MARÇO<br />
O relógio marcava 5 horas<br />
e 34 minutos (2 e 34 em Portugal<br />
continental) quando as sirenes<br />
começaram a soar na cidade.<br />
O ultimato dado por George W.<br />
Bush tinha-se esgotado há apenas<br />
hora e meia e a data estava<br />
destinada a ficar marcada<br />
no calendário como<br />
a de 17 de Janeiro de 1991: doze<br />
anos e dois meses depois,<br />
a capital iraquiana voltava a ser<br />
bombardeada por forças<br />
americanas e britânicas.<br />
Um Presidente com o mesmo<br />
nome próprio e apelido do que<br />
liderou a primeira Guerra<br />
do Golfo ordenava o início<br />
do segundo conflito com<br />
a mesma designação. Mas, desta<br />
vez, com um propósito diferente<br />
e em circunstâncias distintas.<br />
Em 1991, George H. Bush reuniu<br />
à sua volta uma larga coligação<br />
de países para obrigar o exército<br />
de Saddam Hussein a sair<br />
do Kuwait. Agora, George W. Bush<br />
avança quase sozinho, e debaixo<br />
de um coro mundial de protestos,<br />
na sua guerra pela «libertação»<br />
do Iraque. Sem o aval<br />
das Nações Unidas<br />
REUTERS/REUTERS TELEVISION
CHIPRE<br />
Mar<br />
Mediterrâneo<br />
EGIPTO<br />
Cartum<br />
GUERRA DO DO GOLFO II<br />
“E aqui vai uma frase de paleio de situação no dito dossier, máí nada”<br />
Ancara<br />
Nicósia<br />
LÍBANO<br />
ISRAEL<br />
Jerusalém<br />
SUDÃO<br />
TURQUIA<br />
Incirlik<br />
Beirute<br />
Amã<br />
Damasco<br />
JORDÂNIA<br />
Mar<br />
Vermelho<br />
SÍRIA<br />
Darbakir Batman<br />
Arar<br />
IRAQUE<br />
Bases no Kuwait<br />
Bagdad<br />
ARÁBIA SAUDITA<br />
San'a<br />
Riade<br />
KUWAIT<br />
Bases no Bahrein<br />
Golfo<br />
Pérsico<br />
Príncipe Sultan<br />
LEGENDA DO MAPA<br />
IÉMEN<br />
IRÃO<br />
BAHREIN<br />
QATAR<br />
Base aérea<br />
Base naval<br />
Base do exército<br />
Bases no Qatar<br />
EAU<br />
Mar Arábico<br />
OMÃ
GUERRA DO GOLFO II<br />
Como a guerra começou<br />
Uma hora e meia depois de terminado o prazo dado por Bush para que Saddam<br />
abandonasse o Iraque, concretizou-se aquilo que muitos, ao longo dos últimos meses,<br />
foram considerando inevitável: o início da segunda Guerra do Golfo. De navios<br />
estacionados no Mediterrâneo, mar Vermelho e no Golfo Pérsico foram disparados<br />
cerca de quatro dezenas de mísseis Tomahawk. Em simultâneo, aviões bombardeiros B-2,<br />
B-1 e B-52 participaram também no ataque, bem como dois caças-bombardeiros F-117,<br />
que deitaram quatro bombas «inteligentes» GBU-27 sobre bunkers. O objectivo<br />
das primeiras acções era o de poder acabar com a guerra logo no início.<br />
Ou seja: aniquilando Saddam e a cúpula de poder iraquiano<br />
O primeiro dia<br />
As horas decisivas de 20 de Março<br />
O Presidente dos EUA, George W. Bush,<br />
telefona ao primeiro-ministro britânico<br />
Tony Blair a informá-lo que pretende<br />
atacar Bagdad dentro em breve<br />
Termina o ultimato dado por George W.<br />
Bush para que Saddam Hussein<br />
e os seus filhos abandonem o Iraque<br />
Sirenes de alarme ecoam em Bagdad<br />
e começam a ouvir-se explosões na cidade<br />
e o barulho de aviões militares no céu<br />
Ari Fleischer, porta-voz da Casa Branca,<br />
confirma: «Começaram as primeiras<br />
etapas do desarmamento do Iraque»<br />
George W. Bush surge na televisão<br />
a informar que os EUA lançaram um ataque<br />
contra «alvos de oportunidade militar»<br />
no Iraque. Descreve a acção como<br />
o início da operação «para desarmar<br />
o Iraque e libertar o seu povo»<br />
O primeiro-ministro Durão Barroso dirige-se<br />
ao País e declara que «nesta hora difícil,<br />
Portugal reafirma o apoio aos seus aliados»<br />
As sirenes calam-se em Bagdad<br />
Saddam Hussein aparece na televisão<br />
oficial iraquiana e afirma: «O Iraque<br />
sairá vitorioso»<br />
China exige o fim dos ataques<br />
França denuncia «a guerra ilegítima<br />
e perigosa»<br />
Presidente russo Vladimir Putin<br />
condena a acção militar como<br />
«um grande erro político»<br />
VISÃO
GUERRA DO GOLFO II A ofensiva<br />
ATAQUE<br />
Como um murro nos queixos<br />
Em vez do bombardeamento intenso e devastador, a primeira guerra preventiva<br />
de Bush iniciou-se com um golpe curto e fugaz no coração de Bagdad. A invasão<br />
segue dentro de momentos<br />
EXPLOSÃO<br />
Bagdad foi sacudida<br />
por dois raides aéreos<br />
no primeiro dia de guerra<br />
8 VISÃO 21 de Março de 2003
AP/APTN<br />
RUI TAVARES GUEDES<br />
Os comandos militares norte-<br />
-americanos tinham avisado.<br />
Durante meses, disseram que<br />
esta guerra seria diferente de<br />
todas as outras, incluindo a sua predecessora,<br />
de 1991, no mesmo cenário.<br />
Mas ninguém os levou a sério. Todos ficaram<br />
à espera de uma noite semelhante<br />
à que fez a glória da CNN: bombardeamentos<br />
intensos e rastos dos disparos<br />
de antiaéreas, nos céus de Bagdad,<br />
a prolongarem-se durante horas. Afinal,<br />
foi mesmo diferente.<br />
Ainda o prazo dado no ultimato de<br />
George W. Bush não tinha terminado e<br />
já chegavam os relatos dos primeiros tiros:<br />
de forma sistemática, forças norte-<br />
-americanas começaram a destruir as<br />
baterias de artilharia iraquianas colocadas<br />
junto à fronteira com o Kuwait.<br />
Com um objectivo preciso: destruir a<br />
ameaça principal a um avanço de tropas<br />
terrestres pelo Sul, em direcção à<br />
capital iraquiana.<br />
Depois, hora e meia após a conclusão<br />
do ultimato, deu-se o início oficial<br />
do conflito: um ataque cirúrgico sobre<br />
Bagdad, tentando cortar, à primeira, as<br />
cabeças principais do regime iraquiano.<br />
E, em vez das imagens de «destruição<br />
devastadora» que tinham sido prometi-<br />
A CERTEZA DE UMA ESPERA<br />
«Em 1991, as sessões de bombardeamento<br />
a Bagdad foram experiências muito<br />
mais assustadoras do que a vivida nestas<br />
duas últimas noites. A reacção da defesa<br />
iraquiana, condicionada pela experiência<br />
da guerra com o Irão, travada com armas<br />
iguais, tornava infernal qualquer raide norte-americano,<br />
com sirenes que nunca mais<br />
se calavam, fogo interminável de antiaéreas<br />
e aquela chuva de balas tracejantes<br />
que ficou na memória de todos nós.<br />
Desta vez, não. Tem sido muito diferente.<br />
A pressão ficou quase limitada à impossibilidade<br />
de dormir. Talvez por já terem percebido<br />
que as armas não são iguais, que<br />
nem vale a pena responder, tudo é mais<br />
calmo, menos stressante, mais ‘racional’.<br />
Pelo menos até agora, enquanto o pior não<br />
chegar.»<br />
DEPOIMENTO DE PAULO CAMACHO,<br />
ENVIADO ESPECIAL DA SIC EM BAGDAD,<br />
RECOLHIDO ONTEM À NOITE, QUINTA-FEIRA,<br />
20 DE MARÇO, ÀS 22 HORAS DE LISBOA<br />
GUERRA DO GOLFO II<br />
das, as câmaras de televisão (e <strong>especial</strong>mente<br />
os videofones) apenas exibiam a<br />
imagem de um amanhecer suave e de<br />
céu limpo, em Bagdad. Explosão visível<br />
houve apenas uma, com uma bola de<br />
fogo a erguer-se sobre os telhados da<br />
cidade, já na claridade inicial de quinta-feira,<br />
20.<br />
Com todas as cautelas<br />
A primeira guerra preventiva da Administração<br />
Bush teve um início tão<br />
surpreendente e original quanto a estratégia<br />
de defesa com que os «falcões»<br />
da Casa Branca a tentam justificar,<br />
perante um mundo dividido e cada<br />
vez mais incrédulo. A guerra não<br />
começou com o «big bang» que alguns<br />
militares tinham prometido, nem sequer<br />
com uma ofensiva de larga escala.<br />
Também não se assistiu, nas primeiras<br />
horas, a um discurso demorado e bem<br />
fundamentado do Presidente dos EUA,<br />
a explicar ao mundo as razões por que<br />
tinha acabado de lançar o planeta em<br />
guerra. Não houve frases de cunho heróico<br />
ou a mínima aproximação, sequer,<br />
a uma imitação barata de uma<br />
cópia de um discurso de Churchill. Nada<br />
disso. Bush resolveu o problema<br />
com um discurso de quatro minutos e<br />
trinta frases em que anunciou ter dado<br />
ordem para se iniciarem «as primei-<br />
VISÃO 21 de Março de 2003 9<br />
JOSÉ OLIVEIRA<br />
▲
▲<br />
GUERRA DO GOLFO II A ofensiva<br />
COMO UM MURRO NOS QUEIXOS<br />
ras etapas» da libertação do Iraque.<br />
Depois do coro de protestos que se<br />
levantou em todo o mundo, do fracasso<br />
das batalhas diplomáticas, da retirada<br />
forçada da segunda resolução no<br />
Conselho de Segurança das Nações<br />
Unidas, a ideia com que se fica é que os<br />
planos de batalha foram alterados de<br />
forma a tentar garantir um início de<br />
guerra o mais limpo possível. A aposta<br />
foi mais na demonstração de força do<br />
que no peso ou no número de bombas<br />
despejadas.<br />
Como o Pentágono foi o primeiro a<br />
reconhecer, a guerra começou com<br />
uma tentativa de a substituir, com um<br />
pouco de sorte, por uma simples operação<br />
de eliminação de Saddam, em quase<br />
tudo semelhante à ordenada, em<br />
1999, por Bill Clinton contra Bin Laden,<br />
no Afeganistão. Era quase como<br />
ganhar a lotaria: vencer a guerra com<br />
um único tiro. Apenas com um míssil<br />
contra Saddam.<br />
Os estrategos do Pentágono chamaram-lhe<br />
«janela de oportunidade». Ao<br />
que parece, o ataque surpresa foi fruto<br />
de uma operação complexa que incluiu<br />
informações secretas, espionagem electrónica,<br />
acção de militares de operações<br />
especiais e uma tecnologia apura-<br />
Bagdad já está<br />
a arder<br />
No segundo dia da guerra, os iraquianos deitaram-se<br />
com Bagdad em chamas. Na quinta-feira,<br />
20, menos de 15 horas depois do primeiro<br />
assalto, uma segunda vaga de ataques<br />
com bombas anti-bunker e mísseis de cruzeiro<br />
Tomahawk guiados por satélite atingiu a<br />
cidade às 21 horas locais (18 horas em Lisboa),<br />
incendiando três edifícios governamentais.<br />
As explosões sucederam-se com intervalos<br />
de segundos, durante dez minutos. Um<br />
mar de chamas e espessas colunas de fumo<br />
eram visíveis na margem esquerda do rio Tigre,<br />
onde está situado o Ministério das Comunicações<br />
e do Planeamento. As chamas<br />
consumiram parte do edifício que alberga os<br />
escritórios do vice-presidente Tarek Aziz, e<br />
um outro, de quatro andares, situado junto<br />
de um palácio presidencial. Uma densa e negra<br />
coluna de fumo foi vista também por cima<br />
da refinaria de Al Dura, na zona sul da capital<br />
iraquiana. Os aviões voaram a baixa al-<br />
REUTERS/FALEH KHEIBER<br />
REUTERS/RUSSELL BOYCE<br />
da, que permitiu aos comandos militares<br />
alterarem, rapidamente, as coordenadas<br />
dos mísseis cruzeiro para um<br />
ataque preciso e directo contra o palácio<br />
onde se pensava que estivesse a<br />
dormir o líder iraquiano, os seus filhos<br />
Qusai e Odai, bem como grande parte<br />
da estrutura dirigente do regime. Saddam<br />
percebeu bem o objectivo desse<br />
ataque. E por isso apareceu, na manhã<br />
de quinta-feira, 20, na televisão iraquia-<br />
titude, mas de nada valeram os tracejados<br />
das antiaéreas que coloriram os céus nocturnos<br />
de Bagdad. De resto, o fogo defensivo<br />
iraquiano tem sido menos vigoroso do que<br />
aquele que se verificou às primeiras horas da<br />
‘ESTOU VIVO’<br />
Pouco depois do primeiro<br />
ataque, Saddam apareceu<br />
na televisão<br />
na, pouco tempo após as explosões.<br />
Apenas para provar que estava vivo.<br />
Apesar dessa aparição de Saddam na<br />
televisão, alguns militares norte-americanos<br />
continuavam a acreditar, ao fim<br />
do dia de quinta-feira, que tinham conseguido,<br />
pelo menos, debilitar a cadeia<br />
de comando iraquiana, minando-lhe o<br />
poder de coordenação.<br />
A reacção das forças de Bagdad limitou-se<br />
ao lançamento de alguns mísseis<br />
EM MISSÃO<br />
Um F-18 parte da base<br />
no Kuwait para o ataque<br />
primeira Guerra do Golfo, em Janeiro de<br />
1991. A última sirene soou à meia-noite, hora<br />
local, assinalando o fim do alerta aéreo. E<br />
toda a noite a televisão mostrou imagens de<br />
Saddam Hussein reunido com os membros<br />
10 VISÃO 21 de Março de 2003
BAGDAD<br />
Um ferido dá entrada<br />
no hospital<br />
Scud em direcção ao Kuwait, o que sublinhou<br />
mais uma diferença em relação<br />
ao conflito de 1991: na primeira Guerra<br />
do Golfo tinham sido capazes de enviar<br />
mísseis até Israel. Agora, as bombas<br />
pouco voaram.<br />
Segunda vaga<br />
Ao contrário do que sucedeu há 12<br />
anos, desta vez a acção terrestre foi<br />
quase simultânea com o início das ope-<br />
do seu gabinete, sem ser possível determinar<br />
quando as imagens foram captadas.<br />
O segundo ataque foi mais intenso do que<br />
o bombardeamento que iniciou a operação<br />
Liberdade para o Iraque, às 5 e 35, quando<br />
nasciam os primeiros raios de sol em Bagdad.<br />
Pelo menos um dos mais de 40 impactos<br />
que atingiram a cidade foi visível a menos<br />
de um quilómetro do mítico Hotel Al<br />
Rashid, no centro da capital iraquiana. Esse<br />
primeiro ataque durou também cerca de<br />
dez minutos e, segundo o Governo iraquiano,<br />
atingiu o edifício da rádio e da televisão<br />
e um edifício da alfândega, ambos vazios.<br />
Também foi destruída a casa onde viviam<br />
a mulher de Saddam, Zaida Jeirula, e<br />
as três filhas. Mas o Presidente iraquiano e<br />
os seus dois filhos, que eram os principais<br />
alvos do ataque, terão escapado ilesos, segundo<br />
admitem os próprios responsáveis<br />
norte-americanos. Entretanto, a Cruz Vermelha<br />
Internacional confirmou, em Bagdad,<br />
a morte de um civil e ferimentos noutras<br />
14 pessoas.<br />
M.R.C.<br />
rações aéreas. Menos de 20 horas depois<br />
do início do conflito, tropas norteamericanas<br />
e britânicas atravessaram a<br />
fronteira do Kuwait e instalaram-se vários<br />
quilómetros no interior do Iraque.<br />
Quase ao mesmo tempo, um novo<br />
raide foi lançado sobre Bagdad e, mais<br />
uma vez, com uma selecção criteriosa<br />
de alvos: edifícios governamentais e palácios<br />
presidenciais. Como o primeiro,<br />
este ataque foi rápido e quase não houve<br />
reacção de defesa por parte dos iraquianos.<br />
A táctica engendrada pelos comandos<br />
americanos parece, assim, ter como<br />
objectivo atingir o adversário em pontos<br />
sensíveis e, com isso, desmoralizá-<br />
-lo progressivamente, convidando à deserção.<br />
Ao fim de um ano a fazer e a refazer<br />
planos, o general Tommy Franks,<br />
comandante das forças aliadas, parece<br />
ter decidido adiar os planos do «big<br />
bang» e utilizar a mesma táctica que<br />
Muhammad Ali celebrizou nos ringues<br />
de boxe: picar como uma abelha e voar<br />
como uma borboleta. O primeiro dia<br />
de guerra foi assim, em tudo semelhante<br />
ao primeiro assalto de um Ali vigoroso,<br />
dos tempos em que ainda respondia<br />
pelo nome de Cassius Clay: golpes rápidos,<br />
curtos e incisivos, em diversas partes<br />
do corpo, sempre em movimento e<br />
sem dar hipótese de resposta. Falta<br />
agora o KO. E o ataque em massa,<br />
enorme e devastador que foi sempre<br />
prometido pelos militares americanos.<br />
A guerra, afinal, ainda mal começou. E<br />
ninguém acredita que termine sem o<br />
derramento de muito sangue. ■<br />
GUERRA DO GOLFO II<br />
EDUARDO LOURENÇO<br />
Profetas<br />
Os olhos de Ezequiel cegaram.<br />
Estamos sem futuro,<br />
salvo o da chuva<br />
de bombas que a cortina<br />
do Bem estende sobre Bagdad. E<br />
o mundo. Mas o espectro do profeta<br />
bíblico não impressionará o<br />
piedoso Presidente dos Estados<br />
Unidos. Ele está seriamente convicto<br />
que Deus o encarregou de<br />
libertar o mundo do monstruoso<br />
Saddam Hussein. Sabe do que<br />
fala, pois foi ele ou os seus antecessores<br />
que o inventaram.<br />
Quando a cortina de fogo se<br />
extinguir, o que não tardará muito,<br />
o mundo não será o mesmo.<br />
Hoje começa, a sério, um novo<br />
século. Porventura, uma nova<br />
era. Qual? A de um tempo político<br />
assumido do poder do mais<br />
forte sobre o mais fraco. Não é<br />
uma novidade. Mas nunca o<br />
mais forte foi tão insolente e impunemente<br />
forte como esta<br />
América que exorciza em Bagdad<br />
um medo íntimo e conscientemente<br />
cultivado. Esse pânico é,<br />
em grande parte, o fruto da sua<br />
própria política de hegemonia<br />
messiânica sobre o mundo.<br />
De aqui em diante, o mundo<br />
inteiro, do Alasca à Terra do Fogo,<br />
tem o direito, e mesmo o dever,<br />
de se considerar ameaçado<br />
por um imperialismo sob a bandeira<br />
de Deus tal como o fundamentalismo<br />
americano o vive e<br />
expande. E, mesmo, de entrar em<br />
resistência. Felizmente, desse<br />
mundo, e em primeiro lugar, faz<br />
parte a própria América. Ela<br />
acordará mais cedo do que se<br />
imagina deste pesadelo, da sua e<br />
nossa angústia. É por aí que passa<br />
o que neste momento nos resta<br />
de esperança. Sem ela, o reino<br />
do arbítrio instalar-se-ia sobre o<br />
mundo. E, a título póstumo,<br />
Adolfo Hitler triunfaria em toda<br />
a linha. O que os olhos abertos<br />
de Ezequiel não permitirão.<br />
VISÃO 21 de Março de 2003 11<br />
REUTERS/GORAN TOMASEVIC
GUERRA DO GOLFO II<br />
O segundo ataque das forças americanas contra Bagdad foi muito mais<br />
intenso do que o registado na madrugada de 20. Vários edifícios foram atingidos.<br />
A grande ofensiva contra a capital iraquiana começou<br />
VISÃO /Jonas reker<br />
Lago<br />
Urmia<br />
TURQUIA<br />
TURQUIA<br />
IRAQUE<br />
IRÃO<br />
ARÁBIA<br />
SAUDITA<br />
EGIPTO<br />
OMÃ<br />
Mossul<br />
IÉMEN<br />
SUDÃO<br />
ZONA DE EXCLUSÃO AÉREA<br />
100 km<br />
SÍRIA<br />
N<br />
PISTAS DE AVIAÇÃO<br />
Rio Tigre<br />
OLEODUTOS<br />
IRÃO<br />
Kirkuk<br />
PRINCIPAIS CAMPOS DE PETRÓLEO<br />
BASES MILITARES IRAQUIANAS<br />
Rio Eufrates<br />
ÀREA CURDA<br />
Anah<br />
Tikrit<br />
Lago<br />
Tharthar
Ar Rutbah<br />
Misseis de cruzeiro foram lançados contra o centro<br />
da cidade, sacudindo-a com grandes explosões<br />
ZONA DE EXCLUSÃO AÉREA<br />
Lago<br />
Ramazza<br />
Apoiados por blindados,<br />
mais de um milhar<br />
de efectivos da 1ª Divisão<br />
de Fuzileiros entraram<br />
no Iraque pela povoação<br />
de Um Qasr, 50 Km<br />
a sul da cidade<br />
de Baçorá. Também<br />
participaram tropas<br />
britânicas. Iniciou-se,<br />
assim, a invasão terrestre<br />
do Iraque<br />
ARÁBIA<br />
SAUDITA<br />
As Salman<br />
Baçorá<br />
Golfo<br />
Pérsico<br />
KUWAIT<br />
Forças da infantaria britânicas tomaram a península<br />
de Fao, ponto estratégico para a conquista de Baçorá<br />
A 2ª Brigada da 3ª Divisão de Infantaria destruiu<br />
2 dos 3 postos iraquianos na fronteira Sul.<br />
Objectivo: criar uma cortina de fogo que marcará<br />
o começo da guerra terrestre<br />
13
AP/JEROME DELAY<br />
“E aqui vai uma frase de paleio de situação no dito dossier, máí nada”
PONTARIA MINISTERIAL<br />
GUERRA DO GOLFO II<br />
Os edifícios do Governo, em Bagdad,<br />
foram dos primeiros alvos atingidos na<br />
quinta-feira à noite, durante o segundo<br />
bombardeamento, pelos mísseis<br />
americanos. O Ministério do Comércio<br />
também não escapou ileso<br />
REUTERS/ROYAL NAVY
REUTERS/TIMOTHY SMITH
FRENESIM AERONAVAL<br />
Os porta-aviões dos EUA revelaram-se<br />
decisivos durante o ataque. Na pista<br />
do USS Constellation, a actividade<br />
do Esquadrão 38 de Controlo Marítimo<br />
foi quase sempre incessante desde<br />
as primeiras horas de quinta-feira, 20
REUTERS/U.S.NAVY PHOTOGRAPH/PATRICK REILLY<br />
“E aqui vai uma frase de paleio de situação no dito dossier, máí nada”<br />
CUSPIDORES DE FOGO<br />
Fundeado no mar Vermelho, o destroyer<br />
USS Donald Cook foi um dos vasos<br />
de guerra que disparou mísseis Tomahawk<br />
contra o território iraquiano
GUERRA DO GOLFO II<br />
MÍSSIL DE SUA<br />
MAJESTADE<br />
Um submarino britânico<br />
estacionado no Golfo<br />
lança um dos primeiros<br />
Tomahawk do arsenal<br />
da Marinha Real<br />
em direcção a Bagdad<br />
REUTERS/ROYAL NAVY
“E aqui vai uma frase de paleio de situação no dito dossier, máí nada”
GUERRA DO GOLFO II<br />
AMEAÇA QUÍMICA<br />
Soldados americanos no Kuwait<br />
vestem fatos de protecção<br />
nuclear, biológica e química,<br />
dentro de um bunker, após uma<br />
sirene alertar para a hipótese<br />
de um ataque com gás<br />
AP/ED WRAY
GUERRA DO GOLFO II<br />
FALSO ALARME<br />
Os mísseis iraquianos lançados<br />
sobre o Kuwait eram ogivas<br />
convencionais, mas obrigaram<br />
os jornalistas da BBC, escondidos<br />
num abrigo do hotel, a testar<br />
os equipamentos contra a guerra<br />
química e bacteriológica
AP/WALLY SANTANA
JEAN-MARC BOUJU/AP<br />
GUERRA DO GOLFO II “E ??? aqui vai uma frase de paleio de situação no dito dossier, máí nada”<br />
24 VISÃO 21 de Março de 2003
GUERRA DO GOLFO II<br />
CONQUISTADORES<br />
A Infantaria norte-americana<br />
prepara-se para marchar,<br />
na tarde de quinta-feira, 20,<br />
pelo deserto do Kuwait,<br />
rumo a território iraquiano<br />
VISÃO 21 de Março de 2003 25
AP/ED WRAY<br />
GUERRA DO GOLFO II
ESCUDOS<br />
PROTECTORES<br />
Soldados dos EUA em acção<br />
no Kuwait, em Doha,<br />
dispararam mísseis Patriot<br />
que interceptaram e destruíram<br />
mísseis iraquianos
GUERRA DO GOLFO II<br />
“E aqui vai uma frase de paleio de situação no dito dossier, máí nada”
GUERRA DO GOLFO II<br />
A CAMINHO DO IRAQUE<br />
A 3.ª Brigada da 101.ª Divisão<br />
Aerotransportada dos EUA<br />
foi das primeiras unidades<br />
a entrar no país de Saddam<br />
AP/JEAN-MARC BOUJU
GUERRA DO GOLFO II “E aqui vai uma frase de paleio de situação no dito dossier, máí nada”<br />
CURDOS IRAQUIANOS<br />
O sorriso das crianças dentro<br />
de uma tenda de refugiados,<br />
poucas horas antes do início<br />
da guerra, na região<br />
de Rashank, perto da cidade<br />
de Dohuk, na zona administrada<br />
pelos curdos, no Norte<br />
do Iraque, desde 1991
GUERRA DO GOLFO II<br />
REUTERS
GUERRA DO GOLFO II<br />
FILIPE LUÍS • ENVIADO ESPECIAL<br />
Cai a noitinha em Azraq, uma espécie<br />
de Pegões, onde a estrada<br />
que vem de Amã, capital da Jordânia,<br />
se divide em dois braços,<br />
um em direcção à Arábia Saudita, a 90<br />
quilómetros, o outro rumo a Al Karama<br />
(fronteira do Iraque), um pouco mais longe.<br />
Faltam, precisamente, oito horas para<br />
o primeiro ataque americano a Bagdad.<br />
É de Al Karama que regressamos, depois<br />
de um dia a comer pó e areia, tendo o Iraque<br />
à vista, a poucas centenas de metros.<br />
Tínhamo-lo visto todo o dia, num vaivém<br />
Com os refugiados<br />
JORDÂNIA<br />
A fronteira do inferno<br />
Agora que as bombas começaram a cair no Iraque, a linha que separa<br />
a Jordânia do país de Saddam pode parecer um ponto de esperança<br />
para os refugiados. Mas há, também, um inferno que os aguarda.<br />
Histórias da fronteira entre a ansiedade e a guerra<br />
incessante, naquela estrada estilo IP, uma<br />
semi-recta de quase 400 quilómetros a<br />
rasgar o deserto, uma peneplanície cheia<br />
de pedregulhos pretos, como que atingida<br />
por uma maré negra vinda de um mar<br />
inexistente. Tínhamos trocado sorrisos<br />
com os motoristas iraquianos daqueles<br />
autotanques de matrícula azul escura e<br />
inscrições em árabe, dezenas, centenas de<br />
autotanques, ou melhor dizendo, de camiões<br />
velhos, quase todos Mercedes, de<br />
focinho comprido, com tanques ferrugentos<br />
carregados de combustível em cima.<br />
São eles que asseguram os fornecinmentos<br />
de fuel iraquiano à Jordânia. Vêm<br />
FRONTEIRA<br />
DE KARAMA<br />
É o controlo possível,<br />
sob o olhar do rei<br />
Abdullah, da Jordânia<br />
cheios, regressam vazios, voltam no outro<br />
dia. Naquele telheiro de Azraq, à beira da<br />
estrada, os camionistas reúnem-se aos<br />
magotes. Cada camião que deveria regressar<br />
ao Iraque faz ali a sua pausa. Os homens<br />
trocam impressões. Paramos o carro,<br />
lançamos um salam, sorriem muito.<br />
Mas não falam inglês. Excepto, vagamente,<br />
um deles, que julgo perceber se chama<br />
Ahmed, e chegou a ter contacto com pessoal<br />
das Nações Unidas. Com alguma dificuldade,<br />
consigo entender que discutem<br />
se devem voltar esta noite ou esperar pela<br />
manhã. O ultimato de Bush expira antes<br />
que atinjam o destino, um ponto no<br />
32 VISÃO 21 de Março de 2003<br />
LEFTERIS PITARAKIS/AP
Iraque que não identifico. Ele, Ahmed, vai<br />
regressar. Tem mais um frete para o meio-<br />
-dia do dia seguinte e não o falhará. Afinal,<br />
a fronteira continua a funcionar normalmente.<br />
Estivéssemos no México e este<br />
compadre diria, com filosófica bonomia:<br />
«No pasa nada.»<br />
Bagdad: estranhos relatos<br />
Sabemos, horas mais tarde, que o tímido<br />
ataque inicial parece só um aviso dos<br />
americanos: «Estamos aqui.» Mas a guerra<br />
não precisa de muitas horas para começar<br />
a sério e em várias frentes. Seis mísseis<br />
Scud iraquianos terão sido lançados<br />
contra o Kuwait. Nas 24 horas seguintes,<br />
surgem informações de fogo de artilharia<br />
da coligação anglo-americana sobre posições<br />
iraquianas, num primeiro avanço de<br />
tropas a partir do mesmo Kuwait. Há registos<br />
de movimentações de forças terrestres<br />
no Norte do Iraque. E as explosões<br />
voltam a Bagdad.<br />
Nada com que os negociantes iraquianos,<br />
da capital, com quem converso em<br />
Ruwaished, a 75 quilómetros da fronteira,<br />
horas antes do primeiro ataque, não estivessem<br />
a contar. Pela hora do almoço de<br />
quarta-feira, 19, e com a ajuda de um intérprete<br />
de ocasião, um comerciante local,<br />
dizem-me que as ruas de Bagdad têm<br />
vivido dias absolutamente tranquilos.<br />
«Não há movimentos de tropas, as autoridades<br />
aparentam uma estranha calma.<br />
Enfim, isso quer dizer alguma coisa.»<br />
O que é que isso quer dizer, ninguém especificou.<br />
Mas é evidente que se trata do<br />
vórtice do tufão, a falsa bonança entre as<br />
ameaças de meses e os bombardeamentos<br />
das próximas semanas. Um momento irreal<br />
de paragem do tempo.<br />
Ruwaished é uma sinistra terriola, mas<br />
é o melhor que se pode arranjar no meio<br />
do deserto pedregoso e poeirento, nas<br />
proximidades dos campos de refugiados.<br />
Ali, os moradores acumulam-se em cubículos<br />
de familiares ou nos currais das ovelhas<br />
(um mistério, a alimentação dos rebanhos,<br />
a pastarem nada entre as pedras...),<br />
para alugar quartos e casas a jornalistas<br />
internacionais. Começam por pedir<br />
500 dólares por noite, com garantia de<br />
aluguer por dois meses. E há quem pague.<br />
Este jackpot justifica-se, porque o lugarejo<br />
tem uma posição estratégica antes da<br />
fronteira com o Iraque. E está a apenas 30<br />
quilómetros dos campos de refugiados<br />
(que as autoridades dizem estar prontos<br />
mas que, conforme confirmámos com os<br />
próprios olhos, só um milagre fará com<br />
que fiquem capazes de receber, a tempo,<br />
um único fugido da guerra). Em Ruwaished<br />
consegue-se, numa ou outra loja, uma<br />
ligação à Internet, um comerciante tem<br />
um computador para alugar, há rede de<br />
telemóvel, e o vento não levanta tanta<br />
areia. Este é um lugar onde se pode saborear<br />
um belo naco de carneiro, enrolado<br />
em pão árabe, mas onde o artista cozi-<br />
GUERRA DO GOLFO II<br />
lAL-RUWEISHID, A CERCA DE 50 KM DA FRONTEIRA COM O IRAQUE<br />
Fugiram de casa nas traseiras de um camião. Decidiram procurar a paz no país vizinho<br />
lPREPARATIVOS<br />
No campo de refugiados de Al-Ruweishid espera-se a chegada de milhares de iraquianos<br />
nheiro Mohammad também desenrasca<br />
um hambúrguer com todos. Evidentemente<br />
que o carneiro é muito melhor.<br />
A fronteira<br />
Poucas horas antes do ataque, a fronteira<br />
com o Iraque é uma desilusão. Dois arcos<br />
de betão armado, uma área militar<br />
VISÃO 21 de Março de 2003 33<br />
LEFTERIS PITARAKIS/AP KHALIL MAZRAWI/AP<br />
▲
▲<br />
GUERRA DO GOLFO II<br />
CAMPO<br />
DE REFUGIADOS<br />
Os iraquianos<br />
vão juntar-se<br />
a nacionais<br />
de outros estados<br />
que aqui<br />
encontram abrigo<br />
A FRONTEIRA DO INFERNO<br />
e alfandegária, depois o posto iraquiano,<br />
que não conseguimos ver. Do lado de lá<br />
da fronteira, o mesmo deserto, os mesmos<br />
calhaus e a mesma areia. Continuará a ser<br />
uma desilusão, nos dias imediatos ao fim<br />
do ultimato. Bagdad está a cerca de 500<br />
quilómetros. As bombas, por enquanto,<br />
também. Os autotanques iraquianos continuam<br />
a circular. Não há aparato militar,<br />
nem hordas de refugiados a forçar a entrada<br />
na Jordânia. Aliás, não podem, por<br />
enquanto. As autoridades jordanas aguardam<br />
um momento mais dramático da<br />
guerra, um êxodo digno desse nome, para<br />
começarem a receber iraquianos sem visto<br />
no passaporte. E esses, com plafond<br />
marcado, 5 mil, numa primeira fase, têm<br />
destino certo para um dos campos de Ruwaished.<br />
No segundo campo, destinado a<br />
nacionais não iraquianos, estão já alojadas<br />
algumas dezenas de pessoas, em trânsito<br />
para os países de origem.<br />
No entanto, sabemos que é ali que muitas<br />
coisas se poderão passar. Será por ali<br />
que se exercerá a pressão dos refugiados.<br />
Será por ali que os jornalistas, já aos milhares,<br />
na Jordânia, têm esperança de entrar<br />
no Iraque. Aquela é, para uns e para<br />
outros, a fronteira da esperança<br />
Mas será, seguramente, a fronteira do<br />
inferno. Não apenas pelo factor da guerra,<br />
mas também pelo pesadelo do refúgio.<br />
O campo «iraquiano» de Ruwaished está<br />
instalado no pior sítio que atravessámos,<br />
em toda a longa viagem rumo à fronteira<br />
iraquiana. Uma paisagem e um ambiente<br />
a fazer lembrar a versão do planeta Marte<br />
num conhecido filme de Schwarzenegger.<br />
O vento gelado faz redemoinhos e le-<br />
vanta nuvens de pó que entram pelo cabelo,<br />
pelas roupas, pelos olhos. E é ali que<br />
desamparados trabalhadores, como Ahmed,<br />
30 anos, Mossud, 25 e Edah, 22, têm<br />
trabalhado, dia e noite, a montar latrinas,<br />
a instalar tubos e a escavar uma enorme<br />
fossa para onde será encaminhada a improvisada<br />
rede de esgotos. Pior: é ali que<br />
terão de sobreviver, primeiro ao frio, depois<br />
sob sol inclemente, cinco a dez mil<br />
desgraçados fugidos às bombas, aos tiros<br />
e à fome. Olha-se para o campo e pensase<br />
que melhor seria arriscar a bomba.<br />
Modernas, as cabinas de zinco, equipadas<br />
com latrina, autoclismo, lavatório e reservatório<br />
de água, parecem ter condições.<br />
Mas, entre a bruma das areias, parecem,<br />
ao longe, tristes e imóveis marcianos no<br />
seu planeta inóspito. Na ausência de qualquer<br />
responsável do Crescente Vermelho<br />
ou de qualquer outra autoridade, interpelo<br />
os homens sobre o andamento dos trabalhos.<br />
Mossud, o que melhor arranha o inglês,<br />
desafia-me a experimentar uma latrina.<br />
Faço-lhe notar que a fossa ainda não<br />
está tapada. Ri-se muito. Acredita que está<br />
a trabalhar para o boneco já que, na sua<br />
opinião, não chegarão refugiados nenhuns.<br />
Pergunto-lhe pelas tendas. Diz que<br />
tendas, tendas, só mesmo as da polícia, lá<br />
em cima. E aponta para uma dobra de terreno<br />
mais elevada, a cerca de 40 metros.<br />
Apesar das tentativas, a polícia, hoje, não<br />
está para conversas com jornalistas.<br />
Escudo humano à vista<br />
A fronteira do inferno é, assim, neste<br />
mesmo momento em que as bombas continuam<br />
a fustigar alvos iraquianos, uma<br />
estação perdida no espaço e no tempo.<br />
Um apeadeiro do faroeste onde, dentro<br />
em breve, a cidade dos refugiados começará<br />
a crescer e onde a oportunidade fará<br />
medrar a vizinha e medonha Ruwaished<br />
que, embora conte apenas com uma rua,<br />
é já uma metrópole internacional onde se<br />
pode ouvir uma babilónia de línguas. Mas<br />
é aqui, nos confins leste da Jordânia, que<br />
se jogará a vida e a morte de alguns milhares<br />
de inocentes.<br />
Vejamos se é ou não assim: em Amã,<br />
quinta-feira, enquanto as televisões internacionais<br />
mostram o evoluir da guerra e<br />
dos bombardeamentos, as Nações Unidas<br />
e várias ONGs associadas apresentam o<br />
ponto da situação. A UNICEF lembra<br />
que as crianças serão sempre as maiores<br />
vítimas. O representante do PAM (Programa<br />
Alimentar Mundial) estima que<br />
cerca de 2 milhões de pessoas vão precisar<br />
de assistência, no decurso das próximas<br />
duas semanas (para o que será necessário<br />
um reforço de 1 bilião de dólares) e<br />
pede aos países vizinhos (Jordânia, Irão,<br />
Síria, Turquia) que abram as fronteiras<br />
por razões humanitárias. Outra responsável<br />
da ONU lembra que assistiremos a um<br />
combate terrível contra a cólera, o tifo e a<br />
desinteria e chama a atenção para o facto<br />
de 600 mil iraquinaos sofrerem de diabetes.<br />
Olha-se para os campos jordanos de<br />
acolhimento, em <strong>especial</strong> para a falta de<br />
cooperação das próprias condições da natureza<br />
e pergunta-se «como?»<br />
O tempo urge. A guerra começou e está<br />
para lavar e durar. Não deixa de ser irónico<br />
deparar, no lobby de um hotel, em<br />
Amã, com um britânico, exibindo um cartaz<br />
que diz: «Disponível para dar entrevistas.»<br />
Trata-se, segundo se lê no mesmo<br />
cartaz, de um «escudo humano». Mas o<br />
que é que ele ainda estará aqui a fazer? ■<br />
34 VISÃO 21 de Março de 2003<br />
LEFTERIS PITARAKIS/AP
ALI JAREKJI/REUTERS<br />
CONSEQUÊNCIAS<br />
Quando o vizinho<br />
é a guerra<br />
Reservas de trigo, açúcar, arroz e combustível a postos<br />
para enfrentar o conflito. Mas temem-se manifestações<br />
violentas e uma malfeitoria israelita...<br />
FILIPE LUÍS • ENVIADO ESPECIAL<br />
Jalaba Hussein (Montanha de Hussein)<br />
é uma das melhores zonas comerciais<br />
de Amã. O espectáculo vazio<br />
das suas lojas e centros comerciais é<br />
bem um retrato da ansiedade dos jordanos,<br />
agora que rebentou a guerra no vizinho Iraque.<br />
Os jordanos não compram. E não<br />
compram há meses. A guerra acena-lhes<br />
com os fantasmas da inflação, do desemprego<br />
e da miséria. Os cidadãos preocupam-se<br />
e as autoridades, entaladas entre o discreto<br />
apoio que quase se vêem obrigadas a dar<br />
aos americanos e a opinião pública hostil à<br />
guerra e a Israel, desejam que o pesadelo<br />
passe depressa. Na própria véspera de expirar<br />
o ultimato, quarta-feira, 19, o conselho<br />
de ministros do Governo jordano debateu a<br />
crise e anunciou medidas, já postas em prática.<br />
Os ministros do Interior, Negócios Estrangeiros,<br />
dos Recursos Aquáticos, da Saúde,<br />
dos Recursos Minerais e da Energia e<br />
dos Assuntos Islâmicos apresentaram planos<br />
de contingência. Mohammad Adwan,<br />
ministro da Informação, disse aos jornalistas<br />
que não há razões para preocupação relativamente<br />
aos fornecimentos de produtos<br />
essenciais, alimentares e energéticos. A Jordânia<br />
possui 200 mil toneladas de reserva<br />
de trigo, o que daria para alimentar o país<br />
durante quatro meses. As reservas de açúcar,<br />
arroz e óleo vegetal dão para seis meses.<br />
As refinarias têm 270 mil toneladas de petróleo.<br />
Precavido para a vizinhança da guerra<br />
(a Jordânia está muito dependente do<br />
crude iraquiano) o Governo passou os últimos<br />
dois meses a duplicar as reservas. Mesmo<br />
assim, em caso de interrupção de fornecimento,<br />
a Jordânia só terá petróleo para<br />
dois meses.<br />
Mas todas estas contas, bem como a linguagem<br />
utilizada, nos últimos dias, pelas<br />
autoridades, são evidências da proximidade<br />
da guerra. Por exemplo, o Governo<br />
acaba de apelar à população que colabore<br />
com as autoridades em quaisquer medidas<br />
ou circunstâncias excepcionais que, decorrentes<br />
do conflito, venham a tornar-se necessárias<br />
ou a verificar-se.<br />
O factor israelita<br />
Com metade da população de origem palestiniana,<br />
a Jordânia é um dos países onde<br />
se teme, caso a guerra dure muito tempo, a<br />
ocorrência de manifestações populares vio-<br />
GUERRA DO GUERRA GOLFO DOII<br />
MUÇULMANOS<br />
Os jordanos<br />
receiam que<br />
os israelitas<br />
aproveitem para<br />
expulsar massas<br />
de populações<br />
palestinianas para<br />
a Jordânia<br />
lentas, contra os EUA e contra Israel. Sobretudo,<br />
os jordanos temem que os israelitas<br />
aproveitem a onda para expulsar massas<br />
de populações palestinianas para a Jordânia.<br />
Uma hipótese de que o homem da rua<br />
fala constantemente, e que as autoridades<br />
levam muito a sério. Analistas garantem<br />
que, enquanto durar a guerra, ocorrerão distúrbios<br />
em campos de refugiados palestinianos,<br />
em áreas urbanas muito povoadas e<br />
nas zonas mais pobres do Sul do país. Cauteloso,<br />
o líder islamita Abdul Latif Arabiyat<br />
afirmou esta semana que «embora seja nosso<br />
direito rejeitar esta guerra o mais firmemente<br />
possível, fá-lo-emos sem nunca desrespeitar<br />
a lei, como sempre fizemos».<br />
A maior manifestação antiguerra, realizada<br />
até agora em Amã, não terá ultrapassado as<br />
cinco mil pessoas. Continuará a ser assim?<br />
Entretanto, o Governo viu-se obrigado<br />
a desmentir rumores que davam como<br />
certa a presença de uma unidade israelita<br />
a operar, com os americanos, na fronteira<br />
jordano-iraquiana, onde se encontram baterias<br />
antimíssil, para interceptar possíveis<br />
projécteis lançados de solo iraquiano contra<br />
Israel. O Executivo refere, quase todos<br />
os dias, que a Jordânia não participa na<br />
guerra nem servirá de base para qualquer<br />
agressão contra o Iraque.<br />
Embora não participe na guerra, a Jordânia<br />
sabe que estará entre os que vão sofrer<br />
as suas consequências. A discreta,<br />
contida, ajuda aos americanos na fronteira<br />
é um serviço mínimo que garante a sobrevivência<br />
ao pequeno reino hachemita no<br />
xadrez do pós-guerra. Mas o espinho de<br />
Israel cravado no seu flanco oeste permanece<br />
sem solução à vista, qualquer que<br />
seja a duração e o resultado prático do<br />
conflito. Até quando? ■<br />
VISÃO 21 de Março de 2003 35
REUTERS/PETER MACDIARMID AP/AIR FORCE<br />
GUERRA DO GOLFO II O arsenal<br />
ARMAS<br />
Guerra a partir dos céus<br />
O primeiro capítulo da ofensiva contra o Iraque começa no ar: com os clássicos B-52<br />
e F-16 a aliarem-se, desta vez, às novas «bombas inteligentes»<br />
B-1B<br />
De velocidade supersónica (1 500 km/h) e de alcance intercontinental, está equipado com armas<br />
convencionais (incluindo de fragmentação) e de precisão (como a nova JDAM)<br />
B-52<br />
De longo alcance, velocidade supersónica<br />
e multimissões, constitui o peso-pesado<br />
dos bombardeiros americanos, estando equipado<br />
com todo o tipo de armas e em maior quantidade<br />
do que os anteriores<br />
B-2 STEALTH<br />
Armado com dispositivos nucleares, convencionais<br />
e de precisão, a sua característica principal é no entanto<br />
o ser indetectável aos radares inimigos<br />
REUTERS/HYUNGWON KANG<br />
F-117A NIGHTHAWK<br />
Caça de ataque puro e duro. Por conseguir<br />
escapar aos radares adversários recebeu<br />
o nome de invisível, o que lhe permite<br />
acções-relâmpago de grande eficácia. Pode<br />
ser abastecido em pleno voo e pode<br />
transportar todo o tipo de armas para<br />
os mais variados tipos de ataque<br />
36 VISÃO 20 de Março de 2003<br />
AP/HERNANDEZ
REUTERS/VICENZO PINTO<br />
AP/USAF<br />
F-16<br />
Para muitos o melhor caça de sempre, devido à sua elevada versatilidade de manobras<br />
e grande eficácia quer no combate aéreo quer no ataque a alvos terrestres. Está equipado<br />
com um canhão de 20 mm e até nove mísseis de cruzeiro. Dispõe ainda de um sistema<br />
electrónico de contramedidas para «iludir» a trajectória de mísseis inimigos<br />
EA-6B<br />
PROWLER<br />
Pode dizer-se que<br />
representa os olhos<br />
e os ouvidos da Força<br />
Aérea americana.<br />
Este avião consegue<br />
captar todo o tipo<br />
de comunicação e decifrar<br />
qualquer código. Está<br />
armado com o ALQ-99<br />
e também com um<br />
avançado sistema<br />
de anti-radiação dos<br />
mísseis inimigos (HARM)<br />
AC-130<br />
Além do apoio aéreo em combate, cumpre também com <strong>especial</strong> eficácia a vigilância<br />
do espaço aéreo, e, para lá dos seus oito canhões, dispõe de um sofisticado equipamento<br />
de contramedidas, de onde se destaca um sistema de bloqueio à navegação<br />
do avião inimigo (ALQ-99)<br />
GUERRA DO GOLFO II<br />
F15-EAGLE<br />
Considerado o ícone da aviação táctica dos EUA,<br />
atinge os 2 500 Km/h e tem uma autonomia<br />
de voo superior a 5 000 km. Está armado com<br />
um canhão de 20 mm e pode comportar até 120<br />
mísseis de cruzeiro Sparrow e SideWinder<br />
A-10 THUNDERBOLT II<br />
Tem sobretudo a função de dar apoio aéreo<br />
a operações terrestres, sendo <strong>especial</strong>mente<br />
eficaz na destruição de blindados inimigos.<br />
Dispõe de um canhão de 30 mm e de variada<br />
artilharia como: mísseis de cruzeiro e de precisão<br />
(guiados por laser), bombas de pequeno<br />
e médio impacto e contramedidas<br />
VISÃO 21 de Março de 2003 37<br />
EPA/RADOSTA<br />
REUTERS/AIR FORCE AP/VICENT PARKER
REUTERS/RAYTHEON<br />
GUERRA DO GOLFO II O arsenal<br />
TOMAHAWK<br />
Destinado a alvos terrestres, pode ser disparado<br />
a quase 2 000 km de distância. Composto<br />
de ogivas de explosivos ou nucleares,<br />
o facto de voar muito abaixo da linha de radar<br />
e de libertar pouco calor (o que dificulta<br />
a sua intercepção) faz com que continue a<br />
merecer as preferências dos americanos<br />
AGM-142<br />
De características semelhantes ao AGM-142,<br />
detém um maior índice de precisão<br />
para alvos mais específicos. Alcance: 85 km<br />
AP/DANIEL SMITH<br />
AIM-7<br />
SPARROW<br />
Míssil ar-ar guiado<br />
por radar, com vista<br />
à intercepção de mísseis<br />
inimigos.<br />
Alcance: 22 a 40 km<br />
STORM SHADOW<br />
É o último grito em mísseis de cruzeiro<br />
«inteligentes». Guiado por GPS,<br />
é particularmente eficaz na destruição<br />
de edifícios fortificados. Alcance: 250 km<br />
AP<br />
MOAB (MASSIVE ORDINANCE AIR BUST)<br />
Considerada a «mãe de todas as bombas», é talvez o engenho que mais se aproxima<br />
de um dispositivo nuclear. Guiada por cinco satélites, é composta por uma mistura de nitrato<br />
de amónio e alumínio em pó. Quando rebenta, cria uma onda de choque de centenas<br />
de metros, à qual nada sobrevive.<br />
38 VISÃO 21 de Março de 2003<br />
AP/STEVE HELBER AP/MAYHEW JR.
AGM-45<br />
MAVERICK<br />
Míssil para alvos<br />
de superficíe, guiado por<br />
infravermelhos. Alcance:<br />
informação classificada<br />
AIM-9<br />
SIDEWINDER<br />
Míssil guiado por calor,<br />
é considerado muito eficaz<br />
na neutralização de aviões.<br />
Alcance: 17 km<br />
JDAM (JOIN DIRECT<br />
AIR MUNITION)<br />
Trata-se sobretudo de um kit de orientação<br />
de bomba, através de um satélite GPS.<br />
Tem um alcance de 15 milhas<br />
E-BOMB<br />
É no fundo um gerador de impulsos<br />
electromagnéticos que avaria todos<br />
os circuitos electrónicos de todas<br />
as estruturas de defesa adversárias, o que<br />
as deixa quase inoperacionais. A importância<br />
deste novo engenho para o Pentágono<br />
é tal, que os seus componentes foram<br />
mantidos em segredo.<br />
HTI J-1000<br />
Bomba incendiária de alta temperatura<br />
(1000 graus centígrados), destina-se<br />
a destruir eventuais arsenais de agentes<br />
químicos e bacteriológicos<br />
As armas e o número de homens com que o regime de Saddam Hussein<br />
conta para fazer frente ao ataque norte-americano e britânico<br />
EXÉRCITO Efectivo total mais de 350 mil elementos<br />
Exército regular (divisões) 17<br />
Guarda Republicana (divisões) 6<br />
Militares 60 a 70 mil<br />
Guarda Republicana Especial<br />
(brigadas) – <strong>especial</strong>izada<br />
em guerra urbana 4<br />
Militares 20 a 25 mil<br />
Organização de Segurança Especial (militares) 1 500<br />
Principais tanques de guerra 2 200 a 2 600<br />
Tanques T72 500 a 700<br />
Tanques ligeiros (BMP-2, BDRM-2) 1 800<br />
Veículos blindados de transporte de pessoal 1 800<br />
Viaturas autopropulsadas de artilharia 200<br />
Obuses rebocados 1 500 a 1 900<br />
MiG-21<br />
FORÇA AÉREA Efectivo 20 mil<br />
Aviões de intercepção e de ataque ao solo 200 a 300<br />
Helicópteros de combate 100<br />
SA-6<br />
As bateria de mísseis podem ser<br />
recolocadas em nova posição de fogo<br />
em menos de 15 minutos<br />
Ogiva: 59 quilos<br />
Alcance: 25 km<br />
SA-7<br />
Missil anti-aéreo<br />
de tiro simples<br />
Alcance: 3,5 km<br />
Mísseis<br />
Mísseis terra-ar: SA-2, SA-3, SA-6 400<br />
Mísseis terra-terra:<br />
Al-Samoud possivelmente 50 a 60<br />
Plataformas e mísseis SCUD: 2 a 20<br />
Fontes: International Institute for Strategic Studies, Jane s, Periscope, Center for Strategic Studies, GlobalSecurity.org<br />
GUERRA DO GOLFO II<br />
SCUD-B<br />
Ogiva: uma tonelada<br />
Alcance: 480 km<br />
Tanque M-72<br />
DEFESA ANTI-AÉREA Efectivo 17 mil<br />
Mísseis terra-ar portáteis 1 000<br />
Armas anti-aéreas 6 mil<br />
SA-2<br />
Sistema duplo de mísseis<br />
Ogiva: 195 quilos<br />
Alcance: 30 km<br />
Altitude: 25 mil metros<br />
VISÃO 21 de Março de 2003 39<br />
VISÃO/GRAPHIC NEWS
GUERRA DO GOLFO II Avalancha de barbárie<br />
MESOPOTÂMIA<br />
O berço da<br />
civilização<br />
em perigo<br />
Os bombardeamentos<br />
anglo-americanos<br />
da nova Guerra do Golfo<br />
poderão destruir locais<br />
arqueológicos dos mais<br />
importantes do mundo<br />
HOLLAND COTTER<br />
OIraque tem centenas de milhares<br />
de sítios arqueológicos. Destes,<br />
foram identificados cerca de<br />
10 mil, mas só uma pequena parte<br />
foi explorada. Qualquer deles pode alterar<br />
o que sabemos da história humana,<br />
como aconteceu com as escavações já<br />
efectuadas. Algumas revelaram as primeiras<br />
aldeias e cidades conhecidas e os primeiros<br />
exemplos de escrita.<br />
O país é igualmente um dos principais<br />
centros de arte e cultura do Islão. Alberga<br />
alguns dos primeiros exemplos sobreviventes<br />
de arquitectura islâmica – a Grande<br />
Mesquita de Samarra e o palácio de<br />
Ukhaidar – e é também uma atracção para<br />
a peregrinação religiosa. Os túmulos do<br />
imã Ali e do seu filho Hussein, fundadores<br />
do ramo xiita do Islão, em Najaf e Carbala,<br />
são dos mais venerados do mundo<br />
muçulmano.<br />
Durante a Guerra do Golfo, em 1991,<br />
pelo menos um importante monumento<br />
arqueológico, o colossal zigurate de Ur, foi<br />
bombardeado. As explosões danificaram<br />
estruturas frágeis como a grande abóbada<br />
de Ctesífona e a universidade do século<br />
XIII denominada Mustansíria, em Bagdad.<br />
Vejamos alguns dos sítios arqueológicos<br />
que correm maior risco com a guerra:<br />
• UR, que floresceu no terceiro milénio<br />
antes de Cristo e é identificada na Bíblia<br />
SUMÉRIA<br />
Cabeça de leão, de<br />
prata, e fundações<br />
de um edifício, que<br />
datam de 2500 a.C.<br />
FOTOS: THE NEW YORK TIMES/JOHN MALCOLM RUSSELL<br />
como terra natal de Abraão. Nos anos 20<br />
e 30 do século XX, uma equipa anglo-<br />
-americana escavou um cemitério real em<br />
que eram sepultados os membros de uma<br />
poderosa elite juntamente com os criados<br />
e peças requintadamente lavradas. Mas a<br />
característica mais espectacular de Ur é o<br />
seu imenso zigurate, ou torre com rampas,<br />
a mais preservada do Iraque. Embora<br />
as escavações estejam mais avançadas<br />
aqui do que em qualquer outro sítio do<br />
Iraque, estão longe de estar concluídas,<br />
ainda com muitas camadas por descobrir.<br />
• BABILÓNIA (1700-600 a.C.) é um fascínio<br />
histórico. Construída nas margens do Eufrates,<br />
foi a capital de Hamurábi, Nabucodonozor<br />
e Alexandre Magno. Foram ali<br />
descobertos os vestígios monumentais da<br />
Porta Ishtar, e procede-se a tentativas de<br />
identificação dos locais da Torre de Babel<br />
e dos Jardins Suspensos. Como local de<br />
cativeiro dos hebreus bíblicos, a cidade é<br />
um símbolo recorrente da narrativa judaico-cristã.<br />
O sítio de Nipur, um importante<br />
centro religioso da antiga Babilónia dedicado<br />
ao deus Enlil, também se situa nesta<br />
região do Iraque, uns 160 km a sul de<br />
Babilónia. Foi ali descoberta uma ampla<br />
sequência de olaria pré-islâmica.<br />
• NÍNIVE, no Norte do país, foi a cidade imperial<br />
dos reis assírios Senequeribe (704-<br />
-681 a.C.) e Assurbanípal (668-627 a.C.).<br />
Foram ali encontrados palácios reais com<br />
magníficas esculturas, bem como mais de<br />
20 mil placas cuneiformes da biblioteca de<br />
Assurbanípal. O profeta bíblico Jonas pregou<br />
em Nínive. Depois da Guerra do Golfo,<br />
as esculturas dos palácios escavados foram<br />
saqueadas. Nínive consta da lista dos<br />
cem sítios de valor artístico-cultural mais<br />
ameaçados elaborada pelo Observatório<br />
dos Monumentos do Mundo.<br />
• CTESÍFONA (100 a.C. a 900 d.C.) é uma das<br />
grandes maravilhas arquitectónicas. O salão<br />
de audiências é apenas uma cobertura,<br />
mas a sua graciosa abóbada, com 36 metros<br />
de altura e 25 de vão, está intacta. Pensa-se<br />
que as fissuras ocorridas em 1991 foram<br />
reparadas por arqueólogos iraquianos,<br />
mas os abalos mais violentos das instalações<br />
militares próximas podem destruí-la.<br />
Embora permaneçam enterrados quantidades<br />
desconhecidas de documentação<br />
do Iraque antigo, a arte islâmica está quase<br />
toda a descoberto, e abundam os monumentos<br />
com profundo significado cultural<br />
e religioso.<br />
• BAGDAD é um desses locais. Outrora lendária<br />
pela sua riqueza, saber e beleza (muitas<br />
dos contos d’As Mil e Uma Noites passam-se<br />
ali), foi por diversas vezes devastada.<br />
E embora nada reste da sua planta circular<br />
original, sobrevivem edifícios soberbos<br />
do período medieval tardio, como túmulos,<br />
mesquitas, minaretes, a universidade<br />
e a venerada mesquita e altar de Cadumain.<br />
Bagdad alberga igualmente o maior<br />
museu arqueológico do país, com a melhor<br />
colecção de arte suméria, babilónica e<br />
assíria existente no mundo.<br />
• SAMARRA, que foi capital dinástica por<br />
breve período, possui edifícios islâmicos<br />
extraordinariamente precoces. As ruínas<br />
da Grande Mesquita de Mutawaki, do século<br />
IX, têm intacto o seu minarete em es-<br />
40 VISÃO 21 de Março de 2003
piral, um ícone da arte islâmica. A cidade<br />
alberga ainda um dos mais antigos túmulos<br />
islâmicos conhecidos, um antigo palácio<br />
califal e a única ponte de tijolo do Iraque,<br />
datada de 1128.<br />
• MOSUL, a terceira maior cidade do Iraque<br />
(depois de Bagdad e Baçorá), no Norte,<br />
junto do Tigre, está pouco estudada pelos<br />
investigadores ocidentais. A sua rica<br />
arquitectura inclui o minarete inclinado<br />
da agora destruída mesquita de Nur Ad-<br />
-Din. A cidade também atrai peregrinos<br />
aos túmulos de personalidades muçulmanas<br />
e reúne alguns dos primeiros mosteiros<br />
cristãos, datados do século IV. O seu<br />
museu alberga importantes antiguidades<br />
assírias das escavações realizadas em Nínive,<br />
Corsabade e Assur.<br />
Dos muitos monumentos islâmicos fora<br />
das cidades, um dos mais antigos é o<br />
palácio fortificado de Ukaidar, do século<br />
VIII. Ninguém sabe por que razão fica<br />
num lugar tão remoto, mas as terras circundantes<br />
eram provavelmente irrigadas<br />
para culturas e jardins, e o palácio parece<br />
ter sido uma cidade em miniatura que se<br />
sustentava a si própria. Arquitectonicamente,<br />
é também um exemplo da tendência<br />
multicultural que sempre definiu a cultura<br />
islâmica, neste caso juntando influências<br />
persas, sírias e bizantinas.<br />
«Se qualquer dos altares sagrados xiitas<br />
de Carbala, Najaf e Cadumain forem atingidos,<br />
só poderemos esperar uma reacção<br />
indignada de todos os muçulmanos», disse<br />
Zainab Bahrani, que nasceu no Iraque<br />
e ensina arte islâmica na Universidade de<br />
Columbia. «Seria como bombardear a catedral<br />
de S. Pedro, em Roma». ■<br />
© The New York Times/VISÃO<br />
ZIGURATES<br />
As ruínas do templo<br />
de Enlil e a grande<br />
mesquita<br />
de Mutavaki,<br />
em Samarra,<br />
são apenas<br />
dois dos locais<br />
ameaçados<br />
Berço da civilização – de Babilónia a Bagdad<br />
Zigurate de Ur<br />
Templo piramidal sumério<br />
Mosul<br />
Museu de História<br />
Assíria e Islâmica<br />
Código de<br />
Hamurábi<br />
O rei assírio Assurbanipal<br />
(em cima) fundou a grande<br />
biblioteca de Nineve<br />
Bagdad<br />
Museu de Antiguidades<br />
Palácios e Mesquitas<br />
Babilónia<br />
Samarra<br />
Antiga capital<br />
árabe.<br />
Século XIX<br />
Sítios<br />
arqueológicos<br />
assírios<br />
Nimrud Assur<br />
Kerbala<br />
Local sagrado<br />
Uruk<br />
Eridu<br />
Escrita cuneiforme<br />
A mais antiga forma de escrita,<br />
criada pelos sumérios<br />
cerca de 3000 a.C.<br />
Ur<br />
Baçorá<br />
Considerada o local<br />
do Jardim do Éden<br />
GUERRA DO GOLFO II<br />
3000 AC 2000 AC 1000 AC 1000 DC 1918<br />
Domínio sumério<br />
babilónico/assírio parto árabe<br />
Neobabilónico<br />
persa<br />
grego<br />
mongol<br />
A partir de 7000 a.C. Camponeses<br />
do Norte migram para sul, fixando-se<br />
na Mesopotâmia – terra entre-os-rios<br />
Ctesífona: Antigo<br />
viaduto de tijolo<br />
Nipur<br />
Centro<br />
religioso<br />
sumério<br />
100 km<br />
otomano<br />
Período sumério Desenvolvem-se<br />
as artes, a agricultura e a ciência. Surgem<br />
cidades-estado, como Eridu, Uruk e Ur<br />
– considerada a mais antiga cidade do mundo<br />
Babilónico O rei Hamurábi congrega<br />
as cidades-estado em redor de Babilónia<br />
em 1750 a.C. O código de Hamurábi<br />
é o antecessor do actual sistema jurídico<br />
Assírio Império poderoso, a norte, invade<br />
e destrói Babilónia em 689 a.C.<br />
Neobabilónico Nabucodonozor II reconstrói<br />
a cidade. A sua Torre de Babel e os Jardins<br />
Suspensos contribuem para fazer de Babilónia<br />
a mais esplêndida cidade do mundo antigo<br />
Persa Ciro o Grande conquista<br />
a Mesopotâmia em 539 a.C. – região que se<br />
torna a província mais rica do império persa<br />
Grego Alexandre o Grande conquista a<br />
Mesopotâmia em 331 a.C. – as ideias helénicas<br />
conjugam-se com as tradições locais<br />
Partiano/Sassânico Novas tribos<br />
persas derrotam os gregos por volta<br />
de 130 a.C. Constroem uma nova<br />
e esplêndida capital, Ctesífona<br />
Árabe Os árabes muçulmanos derrotam<br />
os persas em 637. Bagdad é proclamada<br />
capital, em 762, e torna-se o centro intelectual<br />
durante a era de ouro do Islão<br />
Mongol Hordas mongóis destroem Bagdad,<br />
em 1258, massacrando o califa e os cidadãos.<br />
A economia fica de rastos, durante séculos<br />
Otomano Os turcos conquistam a região,<br />
em 153. A ocupação perdura até ao colapso<br />
do império Otomano, em 1918<br />
VISÃO 21 de Março de 2003 41<br />
©GN/VISÃO
GUERRA DO GOLFO II O comandante<br />
TOMMY FRANKS<br />
Homem de cortar<br />
a direito<br />
O comandante das forças invasoras odeia a ribalta,<br />
mas é obrigado, desta vez, a ocupar o centro do palco<br />
na guerra contra o Iraque<br />
Há generais para todos os gostos –<br />
barulhentos e impertinentes, cerebrais<br />
e livrescos, e, ocasionalmente,<br />
um pouco irritantes. Tommy<br />
Ray Franks não é nada disso: é expedito,<br />
divertido, muito reservado, ferozmente trabalhador<br />
e, todos o dizem, um excelente líder<br />
de soldados, particularmente tropas recrutadas.<br />
É também, pelo menos em público,<br />
o tipo forte e calado, o bom soldado<br />
que evita a ribalta em contraste marcado<br />
com alguns dos seus antecessores no Comando<br />
Central. Tudo isto faz de Franks, 57<br />
anos, o homem ideal como general de mão<br />
da segunda Administração Bush. O almirante<br />
reformado Archie Clemins, que comandou<br />
a Esquadra do Pacífico quando<br />
Franks prestou serviço na Coreia durante<br />
seis anos, referiu que «muitos generais têm<br />
uma personalidade para os meios de comunicação,<br />
e depois têm a sua personalidade<br />
real. Com Tommy, o que vemos é o<br />
que temos».<br />
Agora, quando os EUA concluem uma<br />
guerra no Afeganistão e lançam uma segunda<br />
no Iraque, é cada vez mais claro que<br />
Franks não é a metade melhor de Donald<br />
Rumsfeld, é certamente a sua outra metade,<br />
o seu alter ego, o soldado do soldado<br />
que pode influenciar o supercivil e lembrar-lhe<br />
delicadamente que as batalhas se<br />
ganham não com ostenta-<br />
ção, mas geralmente com<br />
números. Se o Afeganistão<br />
tivesse sido travado à moda<br />
de Rumsfeld, podíamos ainda<br />
ter comandos montados<br />
em mulas à procura dos talibãs.<br />
Se a guerra tivesse sido<br />
travada à moda de<br />
Franks, talvez se tivesse<br />
apanhado Usama bin Laden<br />
há muito tempo – mas<br />
só pondo, previamente,<br />
cem mil efectivos em posição.<br />
É um pouco exagerado<br />
dizer que Franks e Rummy<br />
são como a tartaruga e a le-<br />
VIDA DE GENERAL<br />
– Acorda todos os dias às<br />
4 da manhã, e faz ginástica<br />
durante 30 minutos<br />
– É fã de música country<br />
(Garth Brooks e Travis Tritt)<br />
e de canções pop dos anos 50<br />
– Foi três vezes ferido<br />
em combate<br />
– Quando se casou, há 35<br />
anos, prometeu à mulher<br />
Cathy que abandonaria<br />
o exército dois anos depois.<br />
Mas nunca despiu o uniforme<br />
bre: um está sempre com pressa; o outro<br />
leva o seu tempo. Mas é justo dizer que as<br />
capacidades e instintos de cada um compensam<br />
as fraquezas do outro.<br />
Quartel-general<br />
O Comando Central dos EUA (Centcom)<br />
é uma das organizações mais estranhas<br />
das Forças Armadas americanas.<br />
Não tem tropas a que chame suas, apenas<br />
a responsabilidade por um imenso arco<br />
que vai do Corno de África ao Paquistão,<br />
que alberga algumas das zonas mais perigosas<br />
do mundo. A tarefa de Franks – assegurada<br />
no passado por homens como<br />
Norman Schwarzkopf e Anthony Zinni –<br />
é manter contacto com os dirigentes civis<br />
de cada um dos 25 países da região no caso<br />
de os EUA precisarem de entrar a curto<br />
prazo para limpar as coisas. O trabalho<br />
do Centcom é simultaneamente estratégico<br />
(há que estar de boas relações com o<br />
general Pervez Musharraf do Paquistão) e<br />
tremendamente pormenorizado (há que<br />
assegurar que um quarto de milhão de<br />
efectivos têm o suficiente de tudo, desde<br />
balas tracejantes a lâminas de barba descartáveis).<br />
A partir de um enorme quartel-<br />
-general em Tampa, na Florida, que parece<br />
um grande hipermercado sem os<br />
anúncios luminosos, Franks e um quadro<br />
de 3 200 militares co-<br />
mandam a guerra. Agora,<br />
estão todos estacionados<br />
no Qatar, a comandar as<br />
operações.<br />
Planos revistos<br />
Há mais de um ano,<br />
quando o Presidente<br />
George W. Bush e Rumsfeld<br />
pediram pela primeira<br />
vez a Franks um plano para<br />
derrubar Saddam, este<br />
disse que precisava de cinco<br />
divisões e cinco porta-<br />
-aviões para fazer o trabalho.<br />
É sabido que o cons-<br />
METÓDICO<br />
Tommy Franks passou<br />
um ano a preparar<br />
os planos desta guerra<br />
ternado Rumsfeld devolveu o plano duas<br />
ou três vezes, pedindo ao general para reduzir<br />
as forças a metade, ou mesmo mais. Seguindo<br />
a doutrina de Powell que todos os<br />
generais da era Vietname subscrevem,<br />
Franks queria uma força esmagadora para<br />
garantir que a América se imporia. Rumsfeld<br />
pretendia que ele tornasse isso mais rápido<br />
e ligeiro, em parte porque não desejava<br />
esperar os quatro ou cinco meses necessários<br />
para aprontar todas essas tropas.<br />
Agora, com a guerra já iniciada, o plano parece<br />
notavelmente similar ao que Franks<br />
propôs há mais de um ano: há cinco porta-<br />
42 VISÃO 21 de Março de 2003
-aviões deslocados no Mediterrâneo e no<br />
Golfo Pérsico, o equivalente a cinco divisões<br />
foi projectado para posições em redor<br />
do Iraque, e estão na região 250 mil efectivos<br />
no total.<br />
Muitos dos que conseguiram quatro estrelas<br />
nos ombros no passado dizem que<br />
Franks já excedeu as expectativas dos seus<br />
detractores. «Rumsfeld nem sempre sabe o<br />
que quer, mas sabe o que não quer», diz<br />
um responsável do Pentágono. «Franks é<br />
bom a indicar-lhe o que ele quer.»<br />
Franks dá-se bem com Rumsfeld. E, numa<br />
entrevista, Rumsfeld manifestou orgu-<br />
AP/SCOTT MARTIN<br />
lho no seu marechal de campo<br />
por ser aberto a novas<br />
ideias. «É inteligente e rápido,<br />
e sabe do seu ofício», disse.<br />
«Domina completamente<br />
essas matérias. Só se importa<br />
com o que é a maneira mais<br />
eficaz de pôr poder militar<br />
num alvo militar – o que não<br />
é a norma, necessariamente.»<br />
Espírito de soldado<br />
Franks retrai-se claramente<br />
de travar batalhas que não<br />
possa vencer. E como todo o<br />
bom soldado, o general sabe<br />
quando deve manter a cabeça<br />
baixa. Rumsfeld adora a ribalta;<br />
Franks adora ficar fora<br />
dela. «Franks achava que<br />
Schwarzkopf teve um perfil<br />
demasiado alto durante a<br />
Guerra do Golfo», diz um subordinado<br />
que trabalhou no<br />
Centcom. «Acha isso espalhafatoso.»<br />
De facto, Franks<br />
sente-se bem melhor atrás do<br />
pano. Um oficial da Marinha<br />
refere isso doutra maneira:<br />
«Tem sido um tipo de perfil<br />
baixo durante toda a carreira.<br />
Foi o segredo do seu êxito.»<br />
Franks nasceu na pequena<br />
cidade de Wynnewood,<br />
mas mudou-se com o pai<br />
mecânico e a mãe doméstica<br />
para Midland ao mesmo<br />
tempo que o clã Bush chegava<br />
do Connecticut. As<br />
duas famílias não se conheciam,<br />
mas Franks andou no<br />
liceu com a futura mulher<br />
de Bush, Laura.<br />
Perfil militar<br />
Foi na poeirenta Midland<br />
que Franks conheceu alguns<br />
dos prazeres mais simples da vida: caçar<br />
pássaros e andar de bicicleta, fumar charutos<br />
e beber margaritas. Depois do liceu, foi<br />
para a Universidade do Texas, mas abandonou<br />
e alistou-se no Exército. Começou<br />
como soldado raso em 1965, mas acabou<br />
como oficial de artilharia passados dois<br />
anos. No Vietname, esteve a maior parte<br />
do tempo à frente de tropas terrestres dos<br />
EUA com a 9.ª Divisão de Infantaria, dirigindo<br />
o fogo de artilharia contra as posições<br />
inimigas. Franks foi ferido três vezes,<br />
pelo menos uma com gravidade. As suas<br />
pernas conservam as cicatrizes, mas os<br />
GUERRA DO GOLFO II<br />
pormenores são escassos porque Franks,<br />
como muitos outros veteranos de guerra,<br />
querem que seja assim. Vários oficiais que<br />
conviveram com ele durante anos dizem<br />
que nunca o ouviram falar disso. A sua<br />
biografia oficial refere apenas que tem três<br />
Corações Púrpura.<br />
Percorreu firmemente a escadaria promocional,<br />
muitas vezes despretensiosa, do<br />
Exército, servindo no Texas, Coreia, Alemanha<br />
e no Pentágono. Depressa ganhou<br />
reputação de inovador em armas de combate.<br />
O general reformado Crosbie Saint<br />
afirma que Franks foi, na prática, o autor<br />
da ideia de utilizar artilharia de longo alcance<br />
contra alvos em movimento.<br />
Mas Franks destacou-se noutra missão<br />
de todas as outras estrelas em ascensão: fazer<br />
pela sorte. Nos anos 80 e 90, quando<br />
ainda era oficial inferior, teve cargos junto<br />
de homens que iriam entrar no clube mais<br />
exclusivo do Exército: o dos generais de<br />
quatro estrelas. Só há nove no Exército.<br />
«Há muitos jovens coronéis que nunca são<br />
notados», revela o general na reforma Richard<br />
Lawrence, sob cujo comando<br />
Franks serviu duas vezes. «Tommy teve a<br />
vantagem de estar perto de pessoas que subiram<br />
muito nas fileiras.»<br />
Isso foi muito antes de Franks ser um<br />
homem predestinado. Depois de servir na<br />
Tempestade no Deserto a comandar unidades<br />
de helicópteros e terrestres, o alto<br />
comando do Exército confiou-lhe a tarefa<br />
de reformular o serviço para o mundo do<br />
pós-guerra fria. «Tem uma capacidade excepcional<br />
para encarar situações complexas<br />
e passar do conceito à aplicação», diz<br />
Sullivan, que iniciou esse esforço. Nos<br />
anos 90, Franks deparou com uma vaga<br />
contínua de encargos valiosos, culminando<br />
no Comando Central, e a sua quarta estrela,<br />
em Julho de 2000.<br />
O 11 de Setembro lançou Franks numa<br />
trajectória diferente. A guerra no Afeganistão<br />
foi uma operação inicialmente conduzida<br />
pela CIA mas que gradualmente se<br />
transformou numa operação mais tradicional<br />
do Centcom. Franks, de início, não<br />
agradou à Casa Branca. Bush e Rumsfeld<br />
estavam impacientes com o progresso da<br />
guerra. Franks tinha a reforma prevista para<br />
meados de 2002, e se a equipa de Bush<br />
tivesse querido trocar de generais, poderia<br />
facilmente tê-lo feito. Mas Bush pediu a<br />
Franks para ficar ao serviço mais um ano<br />
por ser fácil trabalhar com ele. E nessa altura<br />
o general já tinha ganho a confiança<br />
de Rumsfeld. ■<br />
@TIME/VISÃO<br />
VISÃO 21 de Março de 2003 43
GUERRA DO GOLFO II Tragédia humanitária<br />
lABANDONO<br />
Um grupo de curdos prepara-se para sair da cidade de Dohuk, na região administrada<br />
pela minoria que se separou do regime de Saddam em 1991<br />
AJUDA<br />
Um grande<br />
dano colateral<br />
Dez milhões de iraquianos, mais de um terço da população,<br />
precisarão de cuidados urgentes, após a ofensiva,<br />
que poderá causar 500 mil baixas, prevê a ONU<br />
HENRIQUE BOTEQUILHA<br />
Apartir do momento em que as primeiras<br />
bombas caíram sobre Bagdad,<br />
começou a contagem decrescente<br />
para uma catástrofe humanitária<br />
superior àquela que os iraquianos<br />
sofreram em 1991.<br />
A Operação Tempestade no Deserto<br />
causou 3 500 mortos, em consequência directa<br />
da ofensiva, mais cerca de 110 mil civis<br />
(70 mil dos quais crianças) vítimas do<br />
que se chamou «efeitos adversos sobre a<br />
saúde, provocados pela guerra».<br />
Além disso, deixou um embargo económico<br />
como herança, que tem mantido<br />
60% da população iraquiana totalmente<br />
dependente do Estado em matéria alimentar,<br />
além de danos sérios nos sistemas de<br />
abastecimento de água e de energia.<br />
Se a situação era negra, com o ataque<br />
militar em curso poderá tornar-se «num<br />
pesadelo», na expressão de Ramiro Lopes<br />
da Silva, o português que coordena a acção<br />
humanitária da ONU no Iraque e que, em<br />
vésperas dos primeiros bombardeamentos,<br />
montou base em Larnaca, no Chipre.<br />
A guerra, segundo um relatório confi-<br />
dencial elaborado no início deste ano pelas<br />
Nações Unidas, poderá produzir meio milhão<br />
de baixas, entre mortos e feridos graves,<br />
cem mil em combate e 400 mil no caos<br />
que se seguirá.<br />
Inicialmente secreto, para afastar a ideia<br />
de que se considerava o ataque inevitável,<br />
o documento acabou por ser revelado por<br />
um grupo antiguerra da Universidade de<br />
Cambridge, no Reino Unido. A ONU autenticou<br />
a sua veracidade. Destituir Saddam<br />
Hussein pela força, diz o relatório, implica<br />
sérios riscos de fome e doenças. Cerca<br />
de 10 milhões de iraquianos, incluindo<br />
2 milhões de refugiados e deslocados, precisarão<br />
de assistência urgente.<br />
Ramiro Lopes da Silva confirma a existência<br />
de «condições para uma gigantesca<br />
deslocação de pessoas e enormes necessidades<br />
alimentares». Já Ruud Lubbers, alto<br />
comissário das Nações Unidas para os Refugiados<br />
(ACNUR), deixara um aviso no<br />
mesmo tom: «Acreditem-me [a guerra no<br />
Iraque], será um desastre do ponto de vista<br />
humanitário.»<br />
Petróleo por fome<br />
A primeira consequência da guerra<br />
anunciada contra o Iraque foi a suspensão<br />
do programa Petróleo por Alimentos,<br />
iniciado em 1996, para reduzir os efeitos<br />
do embargo, na população civil.<br />
Agora, sem produção de petróleo, o<br />
Governo de Bagdad deixa de fornecer<br />
comida, em rações diárias de 2, 215 quilocalorias<br />
cada, a 24 milhões de pessoas.<br />
Espera-se que o stock se esgote em menos<br />
de um mês. Envolvendo 46 mil funcionários,<br />
foi a maior operação de distribuição<br />
de alimentos de sempre.<br />
Apesar do feito histórico, muitas famílias,<br />
não tendo forma de ganhar dinheiro,<br />
vendiam as suas rações para comprar outros<br />
bens, como medicamentos e roupas.<br />
De acordo com a UNICEF, 18 milhões<br />
de pessoas viviam mesmo numa situação<br />
de insegurança alimentar. E na hora do<br />
ataque militar, o Iraque apresentava o indicador<br />
perturbante de 500 mil crianças<br />
malnutridas. A taxa de mortalidade infantil<br />
(136 por mil nado-vivos) é actualmente<br />
2,5 vezes maior do que em 1991.<br />
A agência de assuntos humanitários da<br />
ONU prevê, por outro lado, que metade<br />
dos iraquianos deixe de ter acesso a água<br />
potável, conduzindo à proliferação de<br />
doenças como a cólera, a disenteria e o<br />
sarampo, que poderão atingir a escala de<br />
epidemias ou até de pandemias. Os hospitais<br />
e clínicas de saúde dispõem de medicamentos<br />
suficientes para três a quatro<br />
44 VISÃO 21 de Março de 2003<br />
REUTERS<br />
DAVID GUTTENFELDER/AP
semanas apenas. No caso de se confirmar<br />
que os bombardeamentos atingirão<br />
maior intensidade na região centro do<br />
país, sobretudo em Bagdad, espera-se um<br />
movimento de civis para sul do país, onde<br />
se deverá concentrar a grande fatia de<br />
pessoas necessitadas de assistência imediata:<br />
5,4 milhões, segundo o estudo da<br />
ONU. A norte, nas três províncias administradas<br />
pelos curdos, diz o mesmo documento,<br />
mais 3,7 milhões vão carecer de<br />
auxílio com urgência. Com estradas, pontes,<br />
linhas de caminho-de-ferro e portos<br />
destruídos ou inacessíveis, será tudo muito<br />
mais difícil.<br />
‘Catástrofe iminente’<br />
Enquanto se posicionam para prestar<br />
auxílio à população iraquiana, as organizações<br />
humanitárias fazem contas ao total de<br />
pessoas deslocadas de suas casas, entre<br />
dois e três milhões.<br />
O ACNUR prevê, por seu lado, um movimento<br />
de, pelo menos, 600 mil refugiados<br />
para os países vizinhos. Na versão pessimista,<br />
o número atinge 1,45 milhões. Metade<br />
deverá seguir para o Irão, os restantes<br />
para a Turquia, Arábia Saudita, Jordânia e<br />
Síria. Estes somam-se a cerca de 900 mil<br />
refugiados já existentes no Iraque, a maioria<br />
dos quais curdos.<br />
Nas cidades controladas por esta minoria<br />
iraquiana tem-se assistido a um estranho<br />
movimento de partidas e chega-<br />
DEPENDÊNCIA<br />
Com o início<br />
da guerra, foi abandonado<br />
o programa Petróleo por<br />
Alimentos, que fornecia<br />
comida a 24 milhões<br />
de iraquianos, ou seja, quase<br />
a totalidade da população<br />
das. Por um lado, são as famílias curdas<br />
que abandonam a região, temendo agressões<br />
de Bagdad com armas químicas. Por<br />
outro, chegam milhares de pessoas que<br />
fogem do conflito no centro do país.<br />
O parlamento do Curdistão declarou o<br />
estado de emergência.<br />
Para financiar as suas nove agências destacadas<br />
para a operação<br />
Iraque, as Nações Unidas<br />
precisariam de 123 milhões<br />
de dólares, dos quais<br />
quase metade seria dirigido<br />
para o ACNUR. Mas na<br />
sede da organização, em<br />
Nova Iorque, só entraram<br />
34 milhões.<br />
Na Jordânia, estavam a<br />
ser preparadas condições<br />
de acolhimento para 35<br />
mil pessoas (ver peça de<br />
Filipe Luís, enviado <strong>especial</strong><br />
à Jordânia, nas páginas<br />
anteriores). Devido à<br />
falta de fundos, não se<br />
conseguiu ir além das 10<br />
mil. A falta de meios já levou<br />
o secretário-geral da<br />
organização, Kofi Annan,<br />
a pedir a atenção da comunidade<br />
internacional<br />
para a crise humanitária<br />
que se avizinha. E receia<br />
ter de voltar a fazê-lo.<br />
Água potável • Metade<br />
dos iraquianos poderá ficar<br />
sem acesso a água própria<br />
para consumo e mais vulnerável<br />
a doenças como a cólera,<br />
a desinteria e o sarampo<br />
Refugiados • A ONU<br />
espera, pelo menos, 600 mil.<br />
As piores previsões apontam<br />
para 1,4 milhões refugiados,<br />
que se somam a cerca de<br />
900 mil já existentes no país,<br />
a maioria dos quais curdos<br />
Financiamento • As nove<br />
agências das Nações Unidas<br />
envolvidas na operação<br />
Iraque precisam de 123<br />
milhões de euros. A parte<br />
de leão destina-se ao auxílio<br />
a refugiados. Do total, só<br />
entraram nos cofres<br />
da organização 34 milhões<br />
lRAMIRO LOPES DA SILVA<br />
A ofensiva poderá tornar-se «um pesadelo», diz<br />
o chefe da agência humanitária da ONU no Iraque<br />
lAJUDA PORTUGUESA DE 16 TONELADAS<br />
Medicamentos e comida destinados à Jordânia<br />
Nessa altura, «envolvendo somas muito<br />
superiores».<br />
Da Turquia, um responsável da ONG<br />
Crescente Azul relata à VISÃO um «êxodo<br />
gigantesco» de iraquianos rumo a norte.<br />
Segundo Mozaffer Bacca, em 1991, o<br />
número de refugiados quedou-se pelos 50<br />
mil. Agora, crê, poderá atingir 200 mil:<br />
«Mesmo com boa vonta-<br />
de, entre os meios disponibilizados<br />
pelo Governo<br />
turco e outras organizações,<br />
não há capacidade<br />
para socorrer esta gente<br />
toda. A catástrofe é iminente.»<br />
Última cruz em Bagdad<br />
Quem tem família numa<br />
aldeia remota do Iraque ou<br />
dinheiro para pagar uma<br />
viagem para uma qualquer<br />
fronteira, partiu. Mas os<br />
efeitos do embargo deixaram<br />
uma vasta parte da população<br />
de Bagdad sem<br />
meios para se preparar para<br />
o conflito: um veículo de<br />
transporte, combustível ou<br />
até compras de mercearia<br />
para abastecer a despensa.<br />
«Se esta crise se prolongar,<br />
a situação ficará muito difícil<br />
de sustentar», declara<br />
VISÃO 21 de Março de 2003 45<br />
DIMITRI MESSINIS/AP<br />
▲
GUERRA DO GOLFO II Tragédia humanitária<br />
CAMPO DE REFUGIADOS<br />
Montada na fronteira<br />
entre o Iraque<br />
e a Jordânia, cidade<br />
de lona não deverá<br />
ter capacidade para<br />
o êxodo que se prevê:<br />
600 mil pessoas<br />
em todas as fronteiras<br />
dos países vizinhos<br />
UM GRANDE DANO COLATERAL<br />
à VISÃO Roland Huguenin Benjamim,<br />
porta-voz do Comité Internacional da<br />
Cruz Vermelha (CICV) na capital iraquiana,<br />
que reclama ser a única ONG que permaneceu<br />
no país.<br />
Com Benjamin ficaram outros cinco internacionais,<br />
o núcleo duro de uma equipa<br />
da Cruz Vermelha e Crescente Vermelho,<br />
que inclui mais quatro expatriados, na região<br />
Norte, e 350 iraquianos prontos a trabalhar<br />
em todo o território. Cabe-lhes garantir,<br />
em caso de danos ou avarias, que as<br />
bombas de água e os geradores de electricidade<br />
continuem a funcionar para manter<br />
a operacionalidade dos hospitais.<br />
Fora do Iraque, várias ONGs internacionais<br />
estão a posicionar-se nas fronteiras<br />
dos países vizinhos. Só à sua conta, o<br />
CICV espera auxiliar 250 mil refugiados.<br />
A confirmar-se a operação, será a maior de<br />
sempre da organização.<br />
Do lado português, está agendada para<br />
sábado, 22, a chegada de uma equipa<br />
exploratória da Assistência Médica Internacional<br />
(AMI) à Jordânia, com vista<br />
à instalação de uma unidade clínica, na<br />
fronteira com o Iraque. Os primeiros<br />
planos da ONG previam o estabelecimento<br />
de uma missão de emergência no<br />
país de Saddam. Mas não foram concedidos<br />
os vistos necessários.<br />
Quando a ONU mandou retirar todo o<br />
seu pessoal de Bagdad, Fernando Nobre,<br />
médico e presidente da AMI, ficou inco-<br />
modado: «Deve ser precisamente num<br />
momento como este que se deve ficar e<br />
apoiar a população civil iraquiana. Tiro o<br />
chapéu aos elementos da Cruz Vermelha e<br />
do Crescente Vermelho que se mantêm na<br />
cidade.»<br />
Remédios depois das bombas<br />
Na noite do ultimato, segunda-feira,<br />
17, de George W. Bush a Saddam Hussein,<br />
dando-lhe 48 horas para sair do<br />
Iraque com os dois filhos, o Presidente<br />
dos EUA anunciou distribuição de alimentos<br />
e de medicamentos, mal as forças<br />
da aliança dirigida pelo seu país alcançassem<br />
a vitória.<br />
«Já não se separa a componente humanitária<br />
de uma ofensiva militar», assinala<br />
Fernando Nobre. O perigo, nota, surge no<br />
momento em que são as próprias forças<br />
beligerantes que controlam a assistência às<br />
populações.<br />
Nas operações terrestres, as forças americanas<br />
têm preparadas equipas que acompanham<br />
a evolução militar no terreno e<br />
que serão as primeiras a entrar em contacto<br />
com as comunidades iraquinas carenciadas<br />
de auxílio. «São parecidos connosco,<br />
excepto nas armas que empunham»,<br />
ironiza um responsável da ONG Mercy<br />
Corps, recordando a sua experiência no<br />
Afeganistão. Só na altura que acharem<br />
conveniente, as tropas permitirão o acesso<br />
de outras organizações.<br />
Numa reunião na Suíça, várias ONGs<br />
exigiram aos governos envolvidos na guerra<br />
do Iraque que façam uma distinção clara<br />
entre assuntos militares e humanitárias.<br />
«Os civis às organizações civis», reivindicou<br />
a porta-voz da Oxfam.<br />
Além da «perversidade da questão», como<br />
classifica João José Fernandes, da ONG<br />
Oikos, sobra a possível perda da confiança<br />
das populações, que são assistidas por quem<br />
os atacou – «efeitos colaterais».<br />
«Sabemos hoje que 10% das bombas<br />
utilizadas num ataque falham o alvo e que,<br />
no Afeganistão, morreram 11 mil pessoas –<br />
não eram militares talibãs, eram civis», recorda<br />
Fernando Nobre. Na madrugada de<br />
quinta-feira, 19, o início da ofensiva esteve<br />
longe da ameaça, revelada há um mês, da<br />
utilização de três mil bombas no primeiro<br />
raide aéreo anglo-americano. «E nessa altura<br />
alguém se lembrou das 300 que iam<br />
cair ao lado?» ■<br />
▲ 46VISÃO 21 de Março de 2003<br />
JEAN-MARC FERRE/AP<br />
lAPELO DA CRUZ VERMELHA<br />
«Respeitem a Convenção de Genebra»<br />
GLEB GARANISH/REUTERS
Aguerra dita «preventiva» instaura um novo<br />
tempo, que tanto pode ser o de uma nova<br />
«ordem» determinada pela hegemonia<br />
americana como o de um novo caos de<br />
consequências ainda imprevisíveis. Não consigo<br />
imaginar um mundo em que as tentativas de resolver<br />
pacificamente conflitos entre Estados deixam<br />
de ter qualquer utilidade. Esta guerra, ilegítima e<br />
imoral, é um tremendo passo atrás na história da civilização.<br />
O sonho da Carta das Nações Unidas,<br />
baseado no respeito universal pelos<br />
direitos do homem, vai ser<br />
muito difícil de reconstruir.<br />
Em 1932, Einstein escrevia uma<br />
carta a Freud pondo-lhe a pergunta<br />
que considerava mais importante<br />
para a humanidade:<br />
Haverá alguma maneira de libertar<br />
os seres humanos da fatalidade<br />
da guerra? Einstein, pacifista<br />
militante, defendia a necessidade<br />
de uma organização supranacional<br />
para a solução dos conflitos<br />
entre Estados. Mas pensava que<br />
era preciso ir mais longe e perguntava:<br />
poderá o estudo do desenvolvimento<br />
psíquico dos seres<br />
humanos levar a que eles se<br />
tornem mais resistentes à psicose<br />
do ódio e da destruição?<br />
A resposta de Freud é lapidar. A humanidade, escreve,<br />
vive desde tempos imemoriais um processo de<br />
evolução cultural, a que alguns chamam civilização,<br />
de certo modo comparável à domesticação de<br />
certas espécies animais. Ora a guerra é a forma<br />
mais violenta de afrontar a atitude psíquica, imposta<br />
por este processo cultural, de controlar as pulsões<br />
de destruição e morte. É por isso que não a suportamos.<br />
Não se trata, sequer, de uma aversão intelectual<br />
ou afectiva: é uma intolerância constitucional,<br />
uma «idiossincrasia magnificada».<br />
HELENA ROSETA<br />
Um passo atrás na civilização<br />
Portugal não está militarmente na guerra, mas está politicamente<br />
a favor dos que a conduzem<br />
❝A mensagem essencial<br />
do PR e do PM é que<br />
os portugueses podem<br />
estar tranquilos. Não, não<br />
podemos. Não estamos<br />
«por cá, todos bem»,<br />
como antigamente.<br />
Estamos preocupados,<br />
solidários dos inocentes<br />
que esta guerra matará<br />
e perplexos quanto<br />
ao futuro colectivo ❞<br />
GUERRA DO GOLFO MUNDO II<br />
Palavras que ressoam com uma actualidade premente.<br />
Estamos perante uma guerra feita à margem<br />
da Carta das Nações Unidas e do direito internacional<br />
e contra a opinião da esmagadora<br />
maioria dos países do mundo. Confesso por isso<br />
que não posso deixar de me sentir profundamente<br />
decepcionada com a posição de Portugal neste<br />
conflito. Enquanto o Chefe do Estado condena<br />
a guerra e recusa qualquer envio de tropas, o<br />
primeiro-ministro, cedendo embora nesse ponto,<br />
proclama o seu apoio político à<br />
Administração Bush. No Parla-<br />
mento, até agora, houve debate<br />
mas nenhuma votação. Em suma,<br />
Portugal não está militarmente<br />
na guerra, mas está politicamente<br />
a favor dos que a<br />
conduzem. A mensagem essencial<br />
do PR e do PM é que os<br />
portugueses podem estar tranquilos.<br />
Não, não podemos. Não<br />
estamos «por cá, todos bem»,<br />
como antigamente. Estamos<br />
preocupados, angustiados, solidários<br />
dos inocentes que esta<br />
guerra matará e perplexos<br />
quanto ao futuro colectivo.<br />
Por mim, fico sem perceber<br />
os apelos à unidade e coesão<br />
nacional feitos por Jorge Sampaio<br />
e Durão Barroso nas últimas<br />
horas. Unidade contra ou a favor da guerra?<br />
É insustentável esta dualidade. Como ser humano,<br />
quero poder expressar a minha revolta contra<br />
esta guerra. Como portuguesa, tenho direito a<br />
exigir dos órgãos máximos do meu país uma posição<br />
coesa de que não foram capazes e cuja ausência<br />
não parece incomodá-los. Como deputada,<br />
quero ter a oportunidade de expressar o meu<br />
não a tudo isto. E como cidadã estarei na rua ao<br />
lado de todos os que denunciam a ilegitimidade<br />
desta guerra. Mesmo sabendo que a paz, agora, é<br />
ainda mais difícil.<br />
VISÃO 21 de Março de 2003 47
GUERRA DO GOLFO II Dinheiro<br />
ECONOMIA<br />
O preço<br />
da batalha<br />
A factura é pesada. Os EUA<br />
gastarão mais de cem mil<br />
milhões de euros com<br />
a intervenção no Iraque<br />
PAULO SANTOS<br />
Ainda não se sabe, ao certo, quanto<br />
custará a intervenção no Iraque.<br />
Existe, porém, uma certeza:<br />
a factura será muito pesada. Segundo<br />
o Congresso norte-americano a<br />
guerra irá emagrecer os cofres do Governo<br />
em 95 mil milhões de euros. De acordo<br />
com as contas daquele organismo, o<br />
conflito irá custar 24 mil milhões de euros<br />
por mês aos contribuintes dos EUA. Números<br />
que vêm confirmar outras estimativas<br />
anteriores, que apontavam um intervalo<br />
mais vasto, compreendido entre os cem<br />
mil milhões e 200 mil milhões de euros.<br />
A própria Administração Bush já admitiu<br />
publicamente que os custos da intervenção<br />
no Iraque não ultrapassarão os cem mil<br />
milhões de euros e solicitou ao Congresso<br />
autorização para utilizar, já, 90 mil milhões.<br />
No entanto, este cenário tem por base a expectativa<br />
de uma guerra curta e coroada de<br />
êxito. O que pode não acontecer.<br />
O grande ponto de referência nesta matéria<br />
é a Guerra do Golfo, de 1991, responsável<br />
por um rombo de 61 mil milhões de<br />
euros nos cofres do tesouro norte-americano.<br />
Desta vez, porém, os objectivos são<br />
mais ambiciosos. Não se limitarão a uma<br />
intervenção, uma vez que os EUA e os alia-<br />
dos deverão deixar uma força de ocupação<br />
no Iraque. E serão os norte-americanos a<br />
arcar com a maior fatia dos custos. Uma<br />
força de ocupação custará entre 1 e 4 mil<br />
milhões de euros por mês. E, para já, ninguém<br />
faz ideia de quanto tempo será necessário<br />
manter tropas norte-americanas no<br />
Iraque, depois de o conflito estar resolvido.<br />
Ou seja, a factura é uma incógnita. Cada<br />
míssil teleguiado, por exemplo, custa várias<br />
centenas de milhares de euros.<br />
E não é possível dizer, ainda,<br />
quantos serão utilizados.<br />
Mas seja qual for o desfecho,<br />
as tropas americanas terão<br />
de regressar a casa. Só esta<br />
operação envolve uma verba<br />
de 9 mil milhões de euros.<br />
Contas feitas, os Estados<br />
Unidos irão gastar neste confronto<br />
mais do que Portugal<br />
produz num só ano. Apesar<br />
de, para nós, ser uma verba<br />
exorbitante, para os EUA ela<br />
não é tão significativa, uma vez<br />
que o produto interno bruto<br />
(PIB) do país é superior a 10<br />
biliões de euros. Isto é, 200 mil<br />
milhões representam apenas<br />
2% do PIB norte-americano.<br />
Por outras palavras, para su-<br />
AVIAÇÃO<br />
Os voos comerciais<br />
são as primeiras vítimas<br />
do conflito.<br />
Segue-se o turismo<br />
portar esta guerra, os EUA precisam de<br />
uma percentagem de dinheiros públicos<br />
idêntica à que Manuela Ferreira Leite necessitou<br />
no final do ano passado para pôr<br />
o défice das contas nacionais dentro dos limites<br />
impostos por Bruxelas.<br />
O reverso da medalha<br />
No entanto, não será apenas pelo seu<br />
custo que a guerra vai trazer problemas pa-<br />
Crescimento<br />
assegurado<br />
Independentemente da sua duração,<br />
a guerra porá em marcha o crescimento<br />
da economia americana<br />
5<br />
4<br />
3<br />
Guerra<br />
longa<br />
3,3%<br />
2<br />
Guerra<br />
1<br />
curta<br />
0<br />
-1<br />
-2<br />
-3<br />
2,9%<br />
2002 2003 2004<br />
Fonte: Wells Fargo<br />
48 VISÃO 21 de Março de 2003<br />
VISÃO<br />
FERRAN PAREDES/REUTERS
lOCUPAÇÃO<br />
A manutenção de forças no Iraque pode custar 4 mil milhões de euros por mês<br />
ra a economia. No curto prazo até poderá<br />
ser benéfica (ver gráfico) e contribuir para<br />
o seu crescimento. Ainda recentemente,<br />
um estudo feito pelo maior organismo patronal<br />
do Reino Unido concluía que uma<br />
guerra curta e bem sucedida seria mais benéfica<br />
para a economia dos EUA do que se<br />
não houver guerra nenhuma.<br />
Só que acaba por ter efeitos negativos<br />
num prazo mais longo, pois cria problemas<br />
orçamentais para o país e provoca<br />
uma subida das taxas de juro, o que, por<br />
sua vez, leva a um menor investimento e<br />
retrai o consumo. O Congresso já fez algumas<br />
previsões para os próximos dez<br />
anos e as contas são pouco animadoras:<br />
que os gastos com a guerra poderão transformar<br />
um superavit de 890 mil milhões<br />
de euros – estimado para as contas públicas<br />
dos EUA nos próximos dez anos –<br />
num défice de 1,82 biliões de euros.<br />
O peso dos números é menos complicado<br />
quando encaramos a questão na<br />
perspectiva do curto prazo. De acordo<br />
com a referida organização patronal britânica,<br />
o mais provável é que a intervenção<br />
seja curta e bem sucedida, o que resultará<br />
na queda do preço do petróleo<br />
abaixo dos 20 dólares. Boas notícias para<br />
o crescimento económico dos EUA, que<br />
poderá subir 2,9% no final do ano. Um estudo<br />
da casa financeira Well Fargo confirma<br />
estes dados e conclui que, em caso de<br />
guerra de curta duração, o PIB norte-<br />
-americano possa atingir um crescimento<br />
perto dos 3% em 2004. A mesma instituição<br />
financeira refere que, em caso de conflito<br />
prolongado, a economia norte-americana<br />
poderá passar por uma recessão<br />
com um crescimento negativo de quase<br />
3% no decorrer de 2003.<br />
A guerra para lá dos EUA<br />
Horst Koehler, director-geral do Fundo<br />
Monetário Internacional (FMI), admitiu<br />
recentemente, em entrevista ao diário es-<br />
KUNI TAKAHASHI/AP<br />
panhol El País, que «uma guerra, independentemente<br />
do tempo que durar, irá<br />
complicar a situação económica nos EUA<br />
e aumentar a incerteza na economia mundial».<br />
Um problema que acabará por complicar<br />
ainda mais a vida das Bolsas em todo<br />
o mundo. A preocupação é tal que os<br />
EUA e o Japão já assinaram um acordo de<br />
cooperação para suportarem os mercados<br />
financeiros, caso se verifique uma crise internacional<br />
provocada pela guerra no Iraque.<br />
O acordo foi celebrado entre Heizo<br />
Takenaka, ministro das Finanças japonês<br />
e o presidente da Reserva Federal norte-<br />
-americana, Alan Greenspan.<br />
A recessão e os efeitos da guerra estão a<br />
preocupar também as instâncias máximas<br />
da União Europeia (UE). Segundo um relatório<br />
da Comissão Europeia, a guerra<br />
poderá levar a economia dos Quinze à recessão.<br />
Algo que não é novo para Portugal,<br />
que já está nessa situação. Mas este organismo<br />
vai mais longe e admite que o impacto<br />
desta guerra será mais devastador<br />
que o da Guerra do Golfo em 1991.<br />
Por cá, também se vão desenhando<br />
cenários possíveis para o que poderá<br />
acontecer após o conflito. De acordo<br />
com um relatório do Banco Espírito<br />
Santo, «uma resolução rápida e eficaz<br />
do conflito do Iraque, com a diminuição<br />
dos níveis de incerteza e o regresso do<br />
preço do petróleo a níveis mais baixos<br />
permitirá o crescimento das economias<br />
no segundo semestre de 2003». No entanto,<br />
o mesmo documento deixa o alerta:<br />
«Um conflito demorado, com danos<br />
significativos na oferta de petróleo, levaria<br />
a economia portuguesa para um período<br />
de recessão.»<br />
Em termos económicos, as grandes vítimas<br />
serão, sem dúvida, as companhias aéreas.<br />
Por um lado, esta é uma actividade<br />
muito exposta à variação do preço dos<br />
combustíveis. Por outro, o sector prevê<br />
que durante o conflito se assista a uma re-<br />
GUERRA EXTRA•GUERRA<br />
DO GOLFO II<br />
lREBENTAR MILHÕES<br />
Um míssil teleguiado custa várias centenas de milhares de euros<br />
dução de 20% do número de passageiros.<br />
Também o turismo sente os efeitos de um<br />
conflito mundial. O número de reservas<br />
nos hotéis para este Verão está muito<br />
abaixo do habitual.<br />
Outros efeitos económicos colaterais,<br />
menos visíveis, deixarão igualmente marcas.<br />
Uma guerra acaba sempre por afectar<br />
a economia como um todo. Os tempos de<br />
incerteza provocam, invariavelmente, uma<br />
retracção do consumo e do investimento e<br />
estes dois fenómenos conjugados não deixam<br />
nenhum sector ileso. Melhor, quase<br />
nenhum. Existem sempre os que tiram dividendos<br />
elevados de uma guerra. Nos últimos<br />
dois anos, a indústria de armamento<br />
aumentou significativamente as suas vendas<br />
e encomendas. As petrolíferas também<br />
vêem os seus lucros subirem, sobretudo<br />
com a expectativa da distribuição do bolo<br />
petrolífero iraquiano, após o conflito.<br />
Negócios avançam<br />
Antes ainda de ter sido disparada a primeira<br />
bala, já o Governo norte-americano<br />
havia convidado várias empresas do país a<br />
competirem nos projectos de reconstrução<br />
do Iraque. Para além dos edifícios, estão<br />
em causa a construção de infra-estruturas<br />
de educação, saúde, transporte, energia,<br />
entre outras, naquilo que já foi chamado<br />
como o maior projecto de reconstrução<br />
desde a Segunda Guerra Mundial. Segundo<br />
alguns números já avançados, embora<br />
não oficiais, o negócio de reconstrução<br />
do país poderá ascender aos 30 mil<br />
milhões de euros. Uma quantia avultada<br />
mas que está ao alcance do Iraque, detentor<br />
das segundas maiores reservas de petróleo<br />
do mundo. Além disso, nos últimos<br />
anos, estas rerservas têm estado a ser exploradas<br />
a metade da sua capacidade. O<br />
ouro negro abunda por aquelas paragens.<br />
Este parece ser um daqueles casos em que<br />
o final da história já se sabe antes mesmo<br />
do primeiro episódio. Será? ■<br />
VISÃO 21 de Março de 2003 49<br />
STEVE HELBER/AP
GUERRA DO GOLFO II Dinheiro<br />
l‘SADDAM OIL’<br />
O retrato do ditador iraquiano numa velha refinaria nas imediações de Bagdad<br />
CRISE<br />
Bombas em alta,<br />
petróleo em baixa<br />
Os primeiros mísseis lançados sobre território<br />
iraquiano bastaram para fazer cair o preço do crude<br />
Opetróleo é uma das personagens<br />
centrais do conflito no Golfo. O<br />
Iraque, alvo estratégico das forças<br />
aliadas, possui as segundas maiores<br />
reservas mundiais, logo a seguir à Arábia<br />
Saudita (ver infografia). A sua importância<br />
económica é óbvia.<br />
No jogo das expectativas, a incerteza sobre<br />
uma eventual intervenção militar con-<br />
duziu o barril de crude acima dos 30 dólares,<br />
o preço mais elevado desde a primeira<br />
Guerra do Golfo, em 1991, quando chegou<br />
a ultrapassar os 40 dólares.<br />
Mas a agonia inflacionista desapareceu<br />
no momento em que foram disparadas as<br />
primeiras balas, nesta segunda Guerra do<br />
Golfo. Em Londres, na sessão de mercado<br />
a seguir aos bombardeamentos da madru-<br />
Da falência<br />
ao estrelato<br />
A guerra é um tempo de incerteza. Regra geral,<br />
qualquer conflito abala o mundo dos negócios.<br />
Mas nem todos podem dizer o mesmo.<br />
Nos EUA, uma empresa que, recentemente,<br />
solicitou a protecção de credores às instâncias<br />
judiciais está a bater os recordes de subida<br />
em bolsa. Em vez de falir, a empresa tornou-se<br />
numa das mais procuradas pelos investidores.<br />
Chama-se Boots & Coots e é <strong>especial</strong>izada<br />
em responder a emergências que<br />
surjam em poços petrolíferos. Na última semana,<br />
conseguiu uma valorização de cerca de<br />
250 por cento. Nada mau para quem estava à<br />
beira de encerrar as portas e mandar os funcionários<br />
para casa. As acções desta companhia,<br />
cotadas na Bolsa de Nova Iorque a pouco<br />
mais de 70 cêntimos de dólar, estão, actualmente,<br />
a ser transaccionadas acima dos<br />
dois dólares. Tem havido uma verdadeira corrida<br />
à Boots & Coots: só na passada quarta-<br />
-feira, 19, foram transaccionados quase 80<br />
milhões de títulos.<br />
Desde que começou a falar-se da possibilidade<br />
dos iraquianos incendiarem os poços de<br />
petróleo, em retaliação do avanço das forças<br />
aliadas, os investidores viram na Boots &<br />
Coots à beira da falência uma excelente oportunidade<br />
para aplicar o seu dinheiro. E se os<br />
poços forem incendiados, a empresa vai mesmo<br />
ter muito trabalho, no Iraque. Quem comprou<br />
acções por alguns cêntimos pode muito<br />
bem ver o seu dinheiro multiplicar-se, em poucos<br />
meses.<br />
gada de quarta para quinta-feira passadas,<br />
o barril de brent tinha descido até aos 25,5<br />
dólares. Mais uma vez, são as expectativas<br />
a liderar o mercado. O preço baixa, porque<br />
os agentes esperam uma guerra de<br />
curta duração e favorável às forças aliadas.<br />
A história serve de conselheira. Em<br />
1991, as tropas norte-americanas fizeram<br />
uma intervenção rápida – de 17 de Janeiro<br />
a 28 de Fevereiro – e bem sucedida, que<br />
arrastou para baixo o preço do crude. A<br />
Organização dos Países Exportadores de<br />
Petróleo (OPEP) também deu uma ajuda<br />
ao optimismo. Os produtores garantiram<br />
que estão em condições de responder a<br />
qualquer falta de abastecimento decorrente<br />
da guerra. O presidente deste organismo,<br />
Abdullah al Attiyah, confessou, recentemente,<br />
o empenho dos produtores em<br />
manter a estabilidade do mercado.<br />
Todavia, ainda não é líquido que esta<br />
50 VISÃO 21 de Março de 2003<br />
JOCKEL FINCK/AP
ONDE ESTÁ O PETRÓLEO<br />
O Iraque tem as maiores reservas do mundo e é o segundo maior<br />
produtor de petróleo do globo. Os Estados Unidos estão menos<br />
dependentes do crude do Médio Oriente que a Europa e o Japão<br />
% DA PRODUÇÃO MUNDIAL E DURAÇÃO DAS RESERVAS DE CADA REGIÃO EM ANOS<br />
NO MUNDO...<br />
Ex- União Soviética<br />
6,2 21<br />
América do Norte<br />
6,1 13,5<br />
América Central<br />
e do Sul<br />
9,1 39<br />
TURQUIA<br />
Mar<br />
Mediterrâneo<br />
L Í BANO<br />
EGIPTO<br />
ISRAEL<br />
SUDÃ O<br />
S Í RIA<br />
JORDÂ NIA<br />
Mar<br />
Vermelho<br />
ERITREIA<br />
Europa<br />
1,8 7/8<br />
Iraque<br />
10,7 135 Irão<br />
Bagdad<br />
8,6<br />
Kuwait<br />
9,2 115<br />
65<br />
685,6<br />
Europa<br />
Ásia-Pacífico<br />
América do Norte<br />
Ex-União Soviética<br />
África<br />
América Central e do Sul<br />
Médio Oriente<br />
África<br />
7,3 27,5<br />
Arábia Saudita<br />
25 65<br />
PRODUÇÃO, EM MILHARES DE MILHÕES E BARRIS, EM 2001<br />
NO MUNDO...<br />
...NO MÉDIO<br />
ORIENTE<br />
76,7<br />
96,0<br />
43,8 63,9 65,4<br />
18,7<br />
Arábia Saudita<br />
261,7<br />
Médio Oriente<br />
65,3 87<br />
BAHREIN<br />
QATAR<br />
I É MEN<br />
Iraque<br />
Emirados Árabes Unidos<br />
Kuwait<br />
112,597,8 96,5 89,7<br />
25,4<br />
guerra seja curta. Os EUA e os seus aliados<br />
poderão encontrar obstáculos inesperados<br />
e demorar mais do que inicialmente<br />
previam. De acordo com um estudo da<br />
maior organização patronal britânica, um<br />
conflito prolongado poderá atirar o preço<br />
do petróleo para os 80 dólares por barril.<br />
Uma escalada deste nível poderia não<br />
só provocar mais um atraso na recuperação<br />
da economia mundial, como arrastar<br />
o mundo para uma nova recessão. E o petróleo,<br />
a matéria-prima que mais influên-<br />
Irão<br />
Ásia-Pacífico<br />
4,2 15,5<br />
...NO MÉDIO<br />
ORIENTE<br />
Emirados<br />
Árabes Unidos<br />
9,3 105<br />
Outros<br />
OMÃ<br />
Mar<br />
Arábico<br />
Quem<br />
compra<br />
mais<br />
% DAS<br />
IMPORTAÇÕES<br />
DE CRUDE<br />
PROVENIENTES<br />
DO GOLFO<br />
PÉRSICO<br />
76,0<br />
Europa<br />
Ocidental<br />
36,0<br />
Japão<br />
EUA 25,3<br />
JORDÂNIA<br />
Oleoduto<br />
TURQUIA<br />
SIRIA<br />
IRAQUE<br />
Qurna Ocidental II<br />
Majnoon<br />
Bin Umar<br />
Saddam<br />
Nassiryah<br />
Rumalia Mishrif Norte<br />
Rumalia Mishrif Sul<br />
Halfaya<br />
Ratawi<br />
Qurna Ocidental I<br />
Tuba<br />
Gharaf<br />
Rafifin<br />
Khurmala<br />
Saba Luhais<br />
Al Ahdab<br />
Amara<br />
Qurna Ocidental DS 6<br />
Hemrin<br />
cia tem na conjuntura económica, não é<br />
inocente, nesta matéria. O seu elevado<br />
preço já provocou várias recessões no<br />
mundo, como a crise petrolífera dos anos<br />
70, com efeitos devastadores para o bem-<br />
-estar das populações.<br />
O caso muda de figura se a intervenção<br />
for coroada de êxito. Alguns analistas<br />
acreditam que os preços do petróleo poderão<br />
cair abaixo dos 20 dólares por barril.<br />
Se Saddam Hussein for deposto, o Iraque<br />
voltará a fornecer petróleo, de acordo com<br />
Bagdad<br />
GUERRA DO GOLFO II<br />
as suas potencialidades – actualmente, liberta<br />
para o mercado cerca de metade da<br />
sua capacidade. Regressando a produção<br />
aos níveis registados antes da guerra de<br />
1991 – mais de 3,5 milhões de barris por<br />
dia – poderá registar-se uma pressão sobre<br />
os mercados internacionais que atirará o<br />
barril para valores muito baixos.<br />
Este é o cenário mais agradável e desejado<br />
pelos mercados. Mas a verdade é<br />
que não passa disso mesmo: uma mera<br />
hipótese. ■<br />
VISÃO 21 de Março de 2003 51<br />
JAZIDA<br />
PRODUÇÃO<br />
MILHARES DE<br />
BARRIS DIÁRIOS<br />
1 000<br />
600<br />
500<br />
300<br />
300<br />
250<br />
250<br />
225<br />
200<br />
200<br />
180<br />
100<br />
100<br />
100<br />
100<br />
90<br />
80<br />
65<br />
60<br />
Mosul<br />
14<br />
Kirkuk<br />
19<br />
Tikrit<br />
Lukoil<br />
TotalFina<br />
TotalFina<br />
Tatneft<br />
Eni/Repsol<br />
Tatneft<br />
Mashinoimport<br />
BHP<br />
Shell/Can Oxy/Petronas<br />
Zarubezhneft<br />
ONGC/Sonatrach/Pertamina<br />
TPAO/Japex<br />
Pacific<br />
Stroyexport/Bow Canada<br />
Slavnet<br />
CNPC<br />
PetroVietnam<br />
Bashneft<br />
Stroyexport/Bow Canada<br />
4<br />
1<br />
Petróleo<br />
EMPRESA<br />
EXPLORADORA NACIONALIDADE<br />
Gás<br />
natural<br />
IRÃ O<br />
100km<br />
12 13<br />
Repartir<br />
o crude<br />
Curiosamente, não se encontra uma única<br />
petrolífera norte-americana entre as 19 principais<br />
5<br />
8<br />
17 3<br />
2<br />
9 1<br />
6 10<br />
18<br />
Baçorá<br />
15 7 11<br />
empresas que exploram<br />
poços iraquianos<br />
ARÁ BIA SAUDITA<br />
KUWAIT<br />
1<br />
2<br />
3<br />
4<br />
5<br />
6<br />
7<br />
8<br />
9<br />
10<br />
11<br />
12<br />
13<br />
14<br />
15<br />
16<br />
17<br />
18<br />
19<br />
16<br />
©GN/VISÃO<br />
Rússia<br />
França<br />
França<br />
Rússia<br />
Itália, Espanha<br />
Rússia<br />
Rússia<br />
Austrália<br />
Holanda, Canadá, Malásia<br />
Rússia<br />
Índia, Argélia, Indonésia<br />
Turquia, Japão<br />
Reino Unido<br />
Rússia e Canadá<br />
Rússia<br />
China<br />
Vietnam<br />
Rússia<br />
Rússia, Canadá<br />
Fonte: BP, Deutsche Bank e El País
GUERRA DO GOLFO II Em nome de Deus<br />
GEORGE W. BUSH<br />
O dono da guerra<br />
À falta de autorização da ONU, o Presidente dos EUA<br />
invoca uma espécie de legitimidade divina para<br />
a guerra com Saddam<br />
EMÍLIA CAETANO<br />
Quando o republicano George W.<br />
Bush chegou à Casa Branca, em<br />
Janeiro de 2001, as expectativas<br />
eram baixas. Tornara-se o 43.º<br />
Presidente dos EUA depois do que muitos<br />
americanos viam como uma vitória «de<br />
secretaria», com menos meio milhão de<br />
votos do que o seu opositor. E o resto do<br />
mundo sorria desse líder tão pouco entendido<br />
em política externa que trocava os<br />
nomes dos dirigentes de alguns países. A<br />
partir dali, tudo o que ele conseguisse só<br />
podia ser ganho.<br />
Se a sua vitória deixara a América<br />
drasticamente dividida ao meio, ele<br />
apressou-se a levar para Washington o<br />
seu lema de «abraçar um democrata por<br />
dia», que já usara como governador do<br />
Texas. Rapidamente mandou para o<br />
Congresso uma lei sobre Educação em<br />
que deixava cair uma promessa eleitoral<br />
muito criticada pelos democratas: um<br />
subsídio <strong>especial</strong> para o ensino privado.<br />
O diploma passou facilmente. Pouco depois,<br />
convidava o clã Kennedy, a poderosa<br />
dinastia democrática da América, para<br />
uma sessão de cinema na Casa Branca.<br />
O filme? Treze dias, uma versão abonatória<br />
para JFK sobre o modo como se<br />
saiu da crise dos mísseis, em 1962.<br />
As sequelas deixadas pela eleição iam-<br />
-se desvanecendo. É verda-<br />
de que as suas gaffes deram<br />
origem a um livro, e claro<br />
que não era muito culto.<br />
Mas também não queria<br />
parecê-lo: ele próprio confessava<br />
que não gostava de<br />
ler e que a sua primeira nota<br />
num teste de inglês fora<br />
zero. Mas ganhava uma<br />
imagem simpática. Muitos<br />
começavam a ver nele o<br />
que os americanos chamam<br />
«just a regular guy»,<br />
um tipo como os outros. E<br />
a forma como lidara com a<br />
lei da Educação mostrava<br />
1975 • Lança-se no negócio<br />
do petróleo, criando<br />
a empresa Arbusto<br />
1978 • Candidata-se<br />
a um lugar no Congresso<br />
pelo Texas, mas perde<br />
1988 • Ajuda a organizar<br />
a campanha presidencial<br />
do pai<br />
1994 • Derrota a democrata<br />
Ann Richards e torna-se<br />
governador do Texas<br />
que, afinal, não era nada parvo. Em Fevereiro<br />
já conseguia 61% de opiniões favoráveis<br />
nas sondagens.<br />
Mas a sua verdadeira oportunidade estava<br />
para chegar, em 11 de Setembro de<br />
2001. A maneira como surgiu na televisão,<br />
entre as equipas de socorro no<br />
«Ground Zero» e a voz grosssa com que<br />
falou para o exterior reparavam a humilhação<br />
do ataque. «Na nossa dor e na<br />
nossa raiva encontrámos a nossa missão<br />
e o nosso momento», disse então Bush.<br />
As palavras aplicavam-se, direitinhas, a<br />
ele próprio.<br />
Bush, o filho<br />
A notícia da entrada oficial de Bush na<br />
corrida à Casa Branca, no Verão de 2000,<br />
surgira no jornal francês Libération com o<br />
título George II, candidato como o papá.<br />
«O meu pai é o homem que se aproxima<br />
mais do que considero um ser perfeito»,<br />
dizia ele numa passagem citada pelo jornal<br />
francês. E o autor do artigo descrevia<br />
assim o futuro Presidente: «Sempre comparado<br />
ao pai, W. seguiu-lhe as pisadas<br />
tant bien que mal».<br />
Sabe-se que George Walker Bush teve<br />
os seus wild years, que é como quem diz,<br />
o seu «período selvagem»: «Aos 17 anos<br />
fiz tudo o que se faz aos 17 anos.» Mas<br />
não é bem assim. No seu caso, esse tempo<br />
foi muito além da adolescência. Se para<br />
muitos esse é o preço a<br />
pagar para se autonomizarem<br />
dos pais, ele escolheu<br />
fazer exactamente o<br />
contrário: seguiu uma a<br />
uma as etapas do pai. Durante<br />
muito tempo, deu-<br />
-se mal.<br />
Nascido a 6 de Julho<br />
de 1946 em New Haven,<br />
no Connecticut, filho<br />
mais velho dos Bush, a<br />
família levou-o muito cedo<br />
para o Texas. Depois,<br />
seguiu-se uma vida atrás<br />
do pai, mas muitos passos<br />
atrás. Andou no mesmo<br />
liceu e na mesma universidade – Yale –<br />
onde, aliás, só terá entrado devido à quota<br />
para filhos dos ex-alunos, pois não tinha<br />
média suficiente. Se o pai fora um<br />
aluno brilhante e campeão de baseball na<br />
universidade, o filho nem tanto. Mas tragédia,<br />
a sua infância só conhecera uma: a<br />
morte da irmã, Robin, com leucemia, tinha<br />
ele 7 anos.<br />
Em 1968 escapou à Guerra do Vietname<br />
alistando-se como piloto na Air National<br />
Guard do Texas. Para a História ficarão<br />
versões diferentes: se foi apenas o<br />
apelido ou a mão directa do pai que lhe<br />
conseguiu um lugar naquela corporação<br />
que tinha na altura, ao que consta, 100<br />
mil candidatos na lista de espera.<br />
Depois andou de emprego em emprego,<br />
nos anos em que se queixava aos ami-<br />
52 VISÃO 21 de Março de 2003
gos de ter «muito nome, mas nenhum dinheiro».<br />
Licenciado em História, vai para<br />
Harvard tirar um master em gestão. Em<br />
1975 tenta a sua sorte no negócio da família,<br />
o petróleo, criando a Arbusto Energy<br />
Inc, usando o seu apelido em espanhol,<br />
uma língua que conhece.<br />
Apesar das ajudas de muitos amigos do<br />
pai, os negócios dão para o torto, e o mesmo<br />
acontece à sua candidatura ao Congresso,<br />
em 1978, quando decide seguir a<br />
carreira política de Bush sénior, já então<br />
senador e líder republicano. No ano seguinte<br />
casará com Laura, uma professora<br />
e bibliotecária, mas nem por isso assentará.<br />
Pelo menos, completamente.<br />
Da sua juventude ficam excessos de<br />
vária ordem. George W. seria detido várias<br />
vezes, a primeira por uma garotice<br />
O PRESIDENTE<br />
NORTE-AMERICANO<br />
Todas as manhãs<br />
ele lê textos bíblicos<br />
na Casa Branca<br />
como roubar uma decoração de Natal,<br />
mas seguiram-se outras já mais à séria:<br />
condução sob o efeito do álcool, e mesmo,<br />
segundo versões não confirmadas,<br />
por posse de cocaína. Invariavelmente, o<br />
apelido salvou-o. Mas a propensão para<br />
o álcool sobreviveu ao casamento. Ele<br />
conta que o grande ponto de viragem na<br />
sua vida se deu na manhã seguinte ao<br />
40.º aniversário, em que acordou maldisposto<br />
depois dos excessos da véspera.<br />
Decidiu então não voltar a beber. Contam<br />
os amigos que Laura lhe dera um ultimato:<br />
«Eu ou o Jack Daniels», numa<br />
alusão ao bourbon que o marido provavelmente<br />
mais consumia.<br />
Até aí, apenas uma coisa lhe correra<br />
bem. Depois do fracasso da sua incursão<br />
pelos petróleos, comprou umas quotas da<br />
GUERRA DO GOLFO II<br />
empresa que possuía a equipa de baseball<br />
Texas Rangers. Se nunca fora um bom jogador<br />
como o pai, conseguiu tornar-se dirigente<br />
da companhia, ainda por cima<br />
com êxito. Começou mesmo aí a sua fortuna<br />
pessoal. E a sua vocação como gestor<br />
estava descoberta.<br />
Ele e Deus<br />
A biografia oficial de Bush aponta-o como<br />
um compassionate conservative, o<br />
que, em tradução livre, significa um «conservador<br />
com preocupações sociais ou<br />
humanitárias».<br />
Mas a definição ajusta-se mal a um político<br />
que assinou todas as mais de 150<br />
execuções que lhe passaram pelas mãos<br />
quando governava o Texas. Mesmo no<br />
mediático caso de Carla Faye Tucker foi<br />
indiferente aos apelos de clemência, inclusive<br />
do Papa.<br />
Bush deixou de beber por si só. Garante<br />
que nunca frequentou os Alcoólicos<br />
Anónimos nem é fã de psicoterapias. Mas,<br />
naquela manhã a seguir aos seus 40 anos,<br />
não mudou apenas de hábitos, mas de vida:<br />
descobriu a religião. Ainda recentemente<br />
a Newsweek dedicou a capa a um<br />
artigo sobre Bush e Deus, em que explicava<br />
«como a fé define a sua agenda». E lá<br />
foi desenterrar passagens dos seus discursos,<br />
como as referências ao «eixo do mal».<br />
Bush, que lê de manhã textos bíblicos<br />
na Casa Branca, chama the walk, o caminho,<br />
ao percurso que iniciou depois daquele<br />
dia de 1986. E escolheu um tom<br />
quase messiânico para explicar o ataque<br />
ao Iraque: «A liberdade que prezamos<br />
não é uma oferta de América ao mundo,<br />
mas uma oferta de Deus à Humanidade.»<br />
Se muitos consideram a sua decisão um<br />
atentado ao Direito internacional, ele<br />
apresenta-se como tendo uma espécie de<br />
legitimidade do Além. Mas, uma vez mais,<br />
foi indiferente ao Papa.<br />
Os analistas americanos dizem que<br />
sempre se soube que George W. travaria<br />
esta guerra, com ou sem o 11 de Setembro.<br />
E não apenas pelo petróleo. Para ele,<br />
a batalha tem um não-sei-quê de pessoal.<br />
Sempre poderá ir um pouco mais longe<br />
do que o pai, a quem muitos criticam não<br />
ter derrubado Saddam na Guerra do Golfo<br />
de 1991. Bush pode agora voltar ao seu<br />
discurso do 11 de Setembro: «Encontrámos<br />
a nossa missão e o nosso momento.»<br />
Claro que ele fala sempre da «larga coligação»<br />
que o seu país lidera, mas sabendo<br />
que se trata apenas de uma figura de<br />
estilo. Para o melhor ou para o pior, o resultado<br />
desta guerra será dele. ■<br />
VISÃO 21 de Março de 2003 53<br />
REUTERS/WIN MCNAMEE
GUERRA DO GOLFO II O resistente<br />
JACQUES CHIRAC<br />
O homem do ‘não’<br />
Em menos de um ano, deixou de ser a «anedota nacional»<br />
para se tornar no herói dos franceses e ser olhado por<br />
meio mundo como uma espécie de super-homem da paz<br />
RUI TAVARES GUEDES<br />
Ohomem tem um lema: «Na vida<br />
política como na vida em geral,<br />
enfrentamos altos e baixos. É preciso<br />
menosprezar os altos e valorizar<br />
os reveses.» Aos 70 anos de idade, e<br />
após quatro décadas na primeira linha da<br />
política francesa, compreende-se que seja<br />
este o lema de Jacques Chirac: poucos, como<br />
ele, sobreviveram a tantas derrotas e<br />
mortes anunciadas, traições, suspeitas e<br />
processos de intenções.<br />
Em França, monsieur le Président é hoje<br />
a única verdadeira unanimidade nacional.<br />
As sondagens dão-lhe uma taxa de<br />
aprovação da opinião pública superior à<br />
maioria de circunstância (82%) com que,<br />
em Maio do ano passado, derrotou Jean-<br />
-Marie Le Pen na segunda volta das presidenciais.<br />
A sua última entrevista televisiva,<br />
dada no gabinete do Palácio do Eliseu –<br />
onde reafirmou a decisão de vetar no<br />
Conselho de Segurança das Nações Unidas<br />
qualquer resolução que abrisse as portas<br />
a uma intervenção militar no Iraque –,<br />
foi seguida por uma assistência recorde de<br />
17,5 milhões de espectadores. O apoio é<br />
tão esmagador que até os seus mais ferozes<br />
críticos se tornaram adeptos entusiastas:<br />
Marie Georges Buffet,<br />
secretária-geral do Partido<br />
Comunista Francês,<br />
endereçou-lhe elogios públicos;<br />
François Hollande,<br />
líder dos socialistas,<br />
manifestou-se «orgulhoso»<br />
com o seu desempenho,<br />
e Jack Lang, o ex-ministro<br />
de Mitterrand e de<br />
Jospin, que muitos acreditam<br />
que será candidato<br />
ao Eliseu nas próximas<br />
eleições, não fez a coisa<br />
por menos e afirmou-se<br />
«a cem por cento» com<br />
as propostas de Chirac<br />
para o conflito iraquiano.<br />
Fora de fronteiras, um<br />
grupo de intelectuais eu-<br />
FESTA DE ANOS<br />
A 29 de Novembro último,<br />
Jacques Chirac celebrou 70<br />
anos e, pela primeira vez desde<br />
que entrou na vida política,<br />
recebeu felicitações de todo<br />
o mundo. Duas foram significativas:<br />
• Tony Blair ofereceu-lhe uma<br />
caneta Churchill e enviou-lhe<br />
uma carta a prestar homenagem<br />
ao que qualificou de<br />
«grande homem»<br />
• Durão Barroso enviou uma<br />
mensagem, lembrando que<br />
Chirac sendo Sagitário, como<br />
sua mulher e sua mãe, deve<br />
ser «uma excelente pessoa»<br />
ropeus (como o cineasta espanhol Pedro<br />
Almodóvar, o escritor alemão Günther<br />
Grass, a prémio Nobel italiana de Medicina<br />
Rita Levi Montalcini e o escritor sueco<br />
Per Olof Enquist) chegou mesmo ao ponto<br />
de publicar uma carta aberta no Le<br />
Monde agradecendo a forma como o Presidente<br />
francês tem enfrentado os EUA<br />
nos últimos tempos. Debaixo do título<br />
«Continue, Jacques Chirac», os intelectuais<br />
pediam-lhe para manter a sua acção<br />
«de apoio à paz, à legalidade internacional<br />
e ao desarmamento», não hesitando em<br />
utilizar, caso fosse necessário, o direito de<br />
veto de que a França usufrui na ONU.<br />
As únicas vozes discordantes vieram da<br />
direita francesa, de alguns poucos deputados<br />
da União por um Movimento Popular<br />
(UMP), a coligação que representa a tradicional<br />
base de apoio eleitoral de Chirac.<br />
Mas essa parece ser a sina do Presidente<br />
francês: surpreender, surpreender sempre,<br />
mesmo mudando de campo político caso<br />
seja necessário.<br />
A estranha consagração<br />
A consagração de Jacques Chirac torna-<br />
-se surpreendente quando se observa o estado<br />
em que ele se encontrava há precisamente<br />
um ano, quando tentava ser reeleito<br />
para o Eliseu após um<br />
primeiro mandato (então<br />
ainda de sete anos) marcado<br />
por escândalos sucessivos<br />
e uma coabitação com<br />
um governo socialista que<br />
quase o tinha empurrado<br />
para um papel decorativo<br />
só comparável ao da rainha<br />
de Inglaterra.<br />
Nessa época, alguns dos<br />
principais best-sellers das livrarias<br />
de Paris eram obras<br />
de investigação jornalística<br />
ou de ajuste de contas político<br />
relatando ou denunciando<br />
os aspectos mais<br />
sombrios de Chirac: as suas<br />
ligações a ditadores africanos,<br />
as redes de interesses e<br />
PRESIDENTE DE FRANÇA<br />
A persistência de Jacques<br />
Chirac em recusar a guerra<br />
tem-lhe valido elogios<br />
de todo o mundo. Mesmo<br />
dos seus antigos adversários<br />
de jogos de favores em que se movimentava,<br />
os desvios de dinheiro durante a sua<br />
longa gestão da Câmara de Paris. Nos bonecos<br />
do Guignol (o Contra-Informação<br />
gaulês) ele era o Super-Mentiroso. E se nas<br />
sondagens parecia ter garantida a vitória<br />
na primeira volta, era apenas para ser claramente<br />
derrotado pelo socialista Lionel<br />
Jospin na ronda decisiva. Em nenhum plano<br />
aparecia aquilo que entrará para os livros<br />
de História como o «sismo Le Pen»:<br />
o candidato da extrema-direita foi o segundo<br />
mais votado, beneficiando da grande<br />
divisão de votos entre os eleitores de esquerda.<br />
Chirac ficava assim com o caminho<br />
aberto para a reeleição, apesar de ter<br />
obtido a mais baixa votação alguma vez<br />
averbada por um Presidente francês: apenas<br />
19,8 por cento.<br />
A verdade é que começava nesse momento<br />
– de forma absolutamente inesperada<br />
– mais uma vertiginosa aceleração para<br />
o cume, na montanha-russa de Chirac.<br />
54 VISÃO 21 de Março de 2003
Mas nada a que o Presidente francês<br />
não esteja habituado desde que fez a sua<br />
entrada na vida política, a 28 de Novembro<br />
de 1962, ao ser nomeado chefe de gabinete<br />
do primeiro-ministro Georges<br />
Pompidou, após estudos de Ciências Políticas<br />
e o serviço militar em Argel. Em pouco<br />
tempo, o impetuoso Chirac, que nos<br />
tempos universitários chegou a «namorar»<br />
a militância comunista, torna-se um<br />
dos mais fiéis colaboradores de Pompidou<br />
– são os dias em que ganha o apodo de<br />
«Bulldozer», tal a forma «diplomática»<br />
como tratava rapidamente de qualquer<br />
problema.<br />
Esse estilo impetuoso viria mais tarde a<br />
revelar-se decisivo, quando, após a morte<br />
de Pompidou, então no Eliseu, Chirac comete<br />
a sua primeira traição: em vez de<br />
apoiar Chaban-Delmas para a presidência,<br />
muda-se com mais 43 deputados gaulistas<br />
para as hostes de Valéry Giscard<br />
d’Éstaing. A recompensa não tardou: Gis-<br />
card bate Mitterrand e nomeia Chirac primeiro-ministro.<br />
Só que o «casamento» não dura muito<br />
tempo. Menos de dois anos depois, corta<br />
também com Giscard, bate com a porta,<br />
sai do governo e transforma completamente<br />
o partido gaulista, alterando as suas<br />
siglas de UDR para RPR. E, passados poucos<br />
meses, toma a decisão de se candidatar<br />
às primeiras eleições para maîre (presidente<br />
da câmara) de Paris, cargo que conquista<br />
contrariando todas as sondagens.<br />
Completadas as primeiras subidas e<br />
descidas, a montanha-russa nunca mais<br />
pára, e o palácio do Hôtel de Ville, junto<br />
do Sena, torna-se uma espécie de retaguarda,<br />
aonde regressa sempre que os<br />
seus sonhos terminam em pesadelo: como<br />
nas eleições presidenciais de 1981,<br />
em que é eliminado logo à primeira volta,<br />
ou em 1988, quando sofre uma humilhante<br />
derrota face a Mitterrand, numa<br />
altura em que a «sua» direita detinha a<br />
maioria sociológica do «hexágono».<br />
O seu sonho de chegar ao Eliseu só é<br />
atingido em 1995, quando, num sprint digno<br />
das melhores lendas da Volta à França,<br />
bate o seu antigo amigo Balladur à primeira<br />
volta e Jospin à segunda. Mas a glória<br />
mostra-se efémera, pois a sua tentação pela<br />
montanha-russa não o larga: ao fim de<br />
dois anos na Presidência, dissolve o Parlamento,<br />
convoca legislativas antecipadas<br />
com o propósito de reforçar a maioria de<br />
direita e... vê os socialistas de Lionel Jospin<br />
obrigarem-no a cinco anos de humilhante<br />
coabitação.<br />
É nessa altura que a sua mulher, Bernadette,<br />
profere uma frase que ficará célebre:<br />
«Os franceses não amam o meu marido.»<br />
Agora, ninguém o diria. Até porque, com<br />
o seu teimoso «não» à guerra de Bush, o<br />
septuagenário Chirac conseguiu aquilo<br />
que muitos já julgavam impossível: colocar<br />
de novo a França no primeiro plano<br />
da política internacional. ■<br />
VISÃO 21 de Março de 2003 55<br />
REUTERS/PHILIPPE WOJAZER
GUERRA DO GOLFO II O tirano<br />
SADDAM HUSSEIN<br />
O fim do ‘Grande Pai’?<br />
Após quase 35 anos de poder absoluto, o ainda Presidente do Iraque<br />
enfrenta o último desafio da sua vida política<br />
FILIPE FIALHO<br />
Humor negro é algo que nunca faltou<br />
a Saddam Hussein. Quando o<br />
televisor de um dos seus compatriotas<br />
se avariava, a recomendação<br />
presidencial era invariavelmente a<br />
mesma: «Ponham um retrato meu no<br />
ecrã!» Nos próximos dias, caso se mantenham<br />
as emissões televisivas com as ladainhas<br />
do costume em louvor do homem<br />
que governa em Bagdad desde 1968, os<br />
iraquianos vão ter a oportunidade de desobedecer.<br />
Um gesto im-<br />
pensável caso não estivesse<br />
em curso uma operação<br />
militar que todos sabem<br />
destinar-se a depor o homem<br />
que é simultâneamente<br />
Chefe do Estado,<br />
comandante-chefe das<br />
Forças Armadas, presidente<br />
do Conselho Supremo<br />
da Revolução e secretário-<br />
-geral do Partido Baas,<br />
mas que prefere ser tratado<br />
como Papá Saddam,<br />
Grande Professor ou<br />
Grande Pai. E a entrada<br />
das tropas americanas, inglesas<br />
ou australianas, é<br />
apenas a primeira oportunidade<br />
do ajuste de contas<br />
entre a generalidade da<br />
população iraquiana e<br />
«aquele que se revela» –<br />
significado de «Saddam»<br />
em árabe. Não será de estranhar<br />
que enquanto a<br />
coligação ocidental bombardeia<br />
palácios, quartéis,<br />
ministérios ou centros de<br />
telecomunicações, os civis<br />
iraquianos tenham como<br />
alvo as omnipresentes estátuas,<br />
painéis, fotos e gravuras<br />
do Presidente. Um<br />
cenário que poderá assemelhar-se<br />
ao ocorrido em<br />
1989, quando os cidadãos<br />
dos países do antigo bloco<br />
CRONOLOGIA<br />
DE UM DITADOR<br />
1937(Abril) • Nasce em<br />
Al Oja, Tikrit, a norte<br />
de Bagdad<br />
1956 (Maio) • Envolve-se<br />
num golpe palaciano para<br />
derrubar o rei Faiçal II<br />
1959 (Julho) • Participa<br />
numa tentativa fracassada<br />
para assassinar o Presidente<br />
Abdul-Karim Qassem<br />
1968 (Julho) • Assume<br />
o cargo de vice-presidente<br />
1972 (Junho) • Ordena<br />
a nacionalização do petróleo<br />
1979 • Torna-se Chefe<br />
de Estado<br />
1980 (Setembro)<br />
• Manda invadir o Irão<br />
1988 (Março) • Ordena<br />
o esmagamento da rebelião<br />
curda com armas químicas<br />
1990 (Agosto) • Invade<br />
o Kuwait<br />
1991 (Janeiro) • Início<br />
da Guerra do Golfo<br />
1991 (Fevereiro)<br />
• Tropas iraquianas retiram<br />
do emirado<br />
1998 (Dezembro)<br />
• Recusa cooperar com os<br />
inspectores da ONU e Bagdad<br />
volta a ser bombardeada<br />
2003 (20 Março) • Início<br />
da nova Guerra do Golfo<br />
de Leste vandalizaram as imagens de<br />
Marx, Lenine e Estaline – sendo este último<br />
uma das figuras políticas que Saddam<br />
mais admira, a par de Maquiavel.<br />
Nascido em 1937, no seio de uma família<br />
de agricultores pobres de Al Oja, uma aldeia<br />
perto de Tikrit, diz a lenda negra que a mãe<br />
de Saddam tentou abortar quando estava<br />
grávida – uma intenção motivada pela morte<br />
do marido logo nos primeiros meses de<br />
gestação do futuro ditador. O menino converteu-se<br />
em enteado por via do novo matrimónio<br />
da mãe, e depressa manifestou<br />
vontade de fugir aos traba-<br />
lhos da terra e à tutela familiar.<br />
É ainda nesta fase que<br />
conhece um tio que haveria<br />
de ajudá-lo nos estudos, levando-o<br />
para Bagdad e<br />
moldando-o politicamente.<br />
«Há três coisas que não deviam<br />
existir neste mundo:<br />
as moscas, os persas e os judeus»<br />
é uma das máximas<br />
que o tio Khairallah Tulfah,<br />
um antigo oficial do exército<br />
que odiava o Ocidente,<br />
lhe terá inculcado para a vida.<br />
Aluno dedicado, Saddam<br />
só não conseguiu entrar<br />
para a Academia Militar<br />
em 1953, mas o tempo<br />
e a perseverança fariam<br />
dele um déspota precoce e<br />
esclarecido nos objectivos<br />
políticos: aos 17 anos assassina<br />
um primo, aos 19<br />
participa num regicídio<br />
fracassado (contra o rei<br />
Faiçal II), aos 22 envolve-<br />
-se noutra tentativa de golpe<br />
de Estado (desta vez<br />
contra o Presidente Abdul<br />
Karim Kassem), aos 31<br />
torna-se vice-presidente<br />
do Iraque e aos 42 é já o<br />
senhor supremo do país.<br />
Pelo meio, conheceu as<br />
masmorras de Bagdad e o<br />
exílio na Síria e no Egipto<br />
(onde terá flirtado com a<br />
CIA) e <strong>especial</strong>izou-se nas artes da tortura<br />
e em manobras palacianas para eliminar<br />
todo e qualquer opositor.<br />
Pagar com a traição<br />
Um dos episódios que melhor demonstram<br />
esta faceta foi a relação que manteve<br />
com o primo Ahmed Hassan al-Bakr.<br />
Este general tornou-se Presidente do Iraque<br />
na sequência do golpe que em Julho<br />
de 1968 instalou o Partido Baas no poder,<br />
e decidiu recompensar o jovem familiar<br />
com o segundo posto do regime. Saddam<br />
assumiu a chefia dos serviços de segurança<br />
e tratou de colocar os seus peões, quase<br />
todos naturais de Tikrit, nas estruturas<br />
de poder através de uma intrincada rede<br />
de informadores e espiões. Apesar das<br />
purgas, das perseguições e dos assassínios<br />
(ficaram célebres em Bagdad os enforcamentos<br />
público de judeus), era então<br />
apontado como o Kennedy do Médio<br />
Oriente: jovem, bem parecido, mulherengo,<br />
carismático e com uma enorme capacidade<br />
para «vender» os seus feitos.<br />
A nacionalização dos poços de petróleo<br />
e a recessão económica mundial dos anos<br />
70 ajudaram-no de forma decisiva. Os<br />
proventos do ouro negro permitiram-lhe<br />
construir escolas, estradas e fábricas, colocar<br />
os iraquianos no terceiro lugar entre<br />
os povos com maior rendimento per capita<br />
do mundo e reivindicar exclusivamente<br />
para si o poder.<br />
É então que coloca o Presidente al-<br />
-Bakr em prisão domiciliária (a versão oficial<br />
para o afastamento são «razões de<br />
saúde») e o força a assinar a resignação<br />
em Julho de 1979. Nos dias e semanas seguintes,<br />
mais de quatro centenas de oficiais<br />
das forças armadas e dezenas de dirigentes<br />
do Partido Baas são executados<br />
por «dissidência» ou «traição». O ambiente<br />
internacional também contribuía<br />
para que praticamente ninguém criticasse<br />
o novo Presidente. Em particular no vizinho<br />
Irão, onde o Xá foi nessa altura deposto<br />
pelos ayatollahs liderados por Khomeini,<br />
convertendo o país numa teocracia<br />
que a generalidade dos países ocidentais<br />
condenava. Aliás, foi esta animosidade<br />
56 VISÃO 21 de Março de 2003
ADS<br />
NOS ANOS 70<br />
Saddam numa<br />
pose de sedutor<br />
de cinema
REUTERS<br />
REUTERS<br />
▲<br />
GUERRA DO GOLFO II O tirano<br />
Qusai Saddam Hussein<br />
Odai Saddam Hussein<br />
O FIM DO ‘GRANDE PAI’?<br />
contra o novo Governo de Teerão que levou<br />
Saddam Hussein a reaproximar-se<br />
dos EUA e de várias chancelarias europeias,<br />
adquirindo armas para iniciar em<br />
Setembro de 1980 a guerra contra o Irão.<br />
Nos oito anos seguintes, o balanço do<br />
conflito saldou-se em milhão e meio de<br />
mortos e os dois países ainda mantêm um<br />
diferendo mediado pela ONU e pela Cruz<br />
Vermelha Internacional devido aos milhares<br />
de prisioneiros de guerra que cada<br />
um dos regimes mantém nos respectivos<br />
cárceres. Insatisfeito com as suas proezas<br />
O filho mais novo do Presidente, 37 anos, é a<br />
eminência parda do regime. Além de ser membro<br />
da direcção do Partido Baas, controla a generalidade<br />
das organizações militares e de segurança:<br />
a Guarda Republicana, a polícia política<br />
(a Mukhabarat), a unidade de élite que tem<br />
por missão zelar pela vida de Saddam Hussein<br />
(a Himaya) bem como a agência responsável<br />
pela vigilância de qualquer individualidade suspeita<br />
de dissidência ou oposição (a Amn al-<br />
-Khass). Ao contrário do seu irmão Odai, Qusai<br />
faz questão de ser discreto, raramente aparece<br />
em público, e, nos últimos anos, tem sido apontado<br />
como o delfim político de Saddam. Possui<br />
bons contactos no mundo árabe, em particular<br />
junto do Presidente da Síria, Bashar Assad.<br />
Primogénito de Saddam Hussein, 39 anos, controla<br />
a generalidade dos meios de comunicação<br />
social, tem um exército privado de 30 mil homens,<br />
chefia o Comité Olímpico Iraquiano e<br />
muitas outras entidades desportivas e culturais.<br />
A sua queda para a violência é já uma lenda –<br />
o pai chegou a metê-lo na prisão por ter assassinado<br />
um dos guarda-costas presidenciais, mas<br />
a condenação à morte foi comutada para um<br />
exílio dourado na Suíça durante 12 meses. Em<br />
Dezembro de 1996, sobreviveu a um atentado<br />
que o deixou quase paraplégico. Nada que o tenha<br />
afastado de uma vida boémia, feita de mulheres,<br />
carros de corrida e animais selvagens –<br />
gosta de aparecer na televisão rodeado de leões<br />
ou ursos...A Comissão Europeia e várias organizações<br />
não governamentais acusam-no de ser o<br />
principal beneficiário de uma rede de corrupção<br />
e tráfico de petróleo, tabaco e divisas.<br />
bélicas, no ano em que Bagdad e Teerão<br />
assinaram o cessar-fogo Saddam encarregou-se<br />
de virar as suas tropas para a minoria<br />
curda que se revoltou no Norte do<br />
Iraque, e mais de 180 mil pessoas foram<br />
mortas através do uso de armas químicas<br />
e biológicas em 280 ocasiões.<br />
Ouro para uma carruagem<br />
Concluídas estas duas aventuras militares<br />
e no dia em que celebrou o seu 52.º aniversário,<br />
Saddam Hussein achou-se no direito<br />
de exigir aos compatriotas que doassem<br />
ao erário público o ouro que tinham<br />
em casa. Um suposto contributo para a<br />
exaurida economia iraquiana que o Presi-<br />
SENHOR DE DE BAGDAD<br />
Saddam sempre gostou<br />
de ser adorado pelas<br />
multidões. Mas nunca<br />
se livrou da fama de ter<br />
vários duplos para<br />
o substituir nesse papel<br />
dente haveria de derreter pouco depois numa<br />
carruagem dourada e na qual chegou a<br />
desfilar em Bagdad, à boa maneira dos monarcas<br />
absolutos. Um pormenor na sua<br />
longa lista de excentricidades – desde gostar<br />
de ser cumprimentado pelos súbditos<br />
numa área compreendida entre os mamilos<br />
e as axilas ou a sua tendência para coleccionar<br />
armas ou chapéus à prova de bala.<br />
O maior devaneio da sua carreira política<br />
chamou-se Kuwait e acabaria por converter<br />
a sua personagem num alvo a abater.<br />
A invasão do emirado durou sete meses,<br />
mas o seu exército foi neutralizado em<br />
mês e meio após a entrada em acção de<br />
uma força multinacional liderada pelos<br />
58 VISÃO 21 de Março de 2003
EUA e que incluiu vários países árabes.<br />
Apesar da derrota militar e de ter perdido<br />
ainda o controlo de 14 das 18 províncias<br />
do país, Saddam sempre afirmou que a<br />
Mãe de Todas as Batalhas (forma como se<br />
refere à I Guerra do Golfo) só teve um<br />
vencedor: ele próprio. Porque foi essa a<br />
vontade de Deus, como revelou o profeta<br />
Maomé a Saddam Hussein no encontro<br />
que ambos tiveram a 22 de Outubro de<br />
1990, segundo a versão presidencial.<br />
A história ensina que a sobrevivência<br />
do regime de Bagdad só foi possível graças<br />
a uma ordem da Casa Branca. O pai<br />
do actual chefe máximo dos EUA, George<br />
Herbert Bush, mandou os soldados e<br />
os blindados regressarem a casa quando<br />
se encontravam a menos de duas horas da<br />
capital iraquiana por já terem cumprido a<br />
missão de libertar o Kuwait. Uma decisão<br />
da qual se deve hoje arrepender e que permitiu<br />
a Saddam consolidar ainda mais o<br />
seu poder, apesar do isolamento diplomático<br />
a que ficou votado e às sanções decretadas<br />
pela ONU. E se o povo iraquiano<br />
passou a lidar cada vez mais com a fome,<br />
o analfabetismo ou a tirania, a verdade<br />
é que Saddam foi incensado nos últimos<br />
13 anos como um deus vivo, seja nos<br />
bunkers decorados à moda de Luis XVI<br />
ou nos incontáveis palácios e mesquitas<br />
erguidos em seu nome. A partir de 1996,<br />
FALEH KHEIBER/REUTERS<br />
GUERRA DO GOLFO II<br />
Contradições<br />
financeiras<br />
do Presidente<br />
No mesmo dia em que se iniciava a nova<br />
Guerra do Golfo, 21 famílias palestinianas<br />
da Cisjordânia e da Faixa de Gaza receberam<br />
uma prenda <strong>especial</strong>. Um cheque no<br />
valor de, aproximadamente, 10 mil euros<br />
oferecido pelo Presidente do Iraque. A boa<br />
acção de Saddam Hussein teve por destinatários<br />
os parentes de jovens combatentes<br />
mortos pelas tropas israelitas, alguns<br />
deles suicidas e activistas islâmicos do Hamas,<br />
grupo colocado na lista negra de organizações<br />
terroristas elaborada pela Administração<br />
Bush.<br />
Desde o início da Intifada palestiniana<br />
contra o Estado hebraico, em Setembro<br />
de 2001, o Governo de Bagdad já enviou<br />
para os territórios ocupados mais de 35<br />
milhões de euros, mas esta última dádiva<br />
não deixa de ser surpreendente se se tiver<br />
em conta que boa parte dos 400 soldados<br />
iraquianos há quase um mês que<br />
não recebe o pré, sobretudo os que estão<br />
na fronteira com o Curdistão. Motivo que<br />
leva Washington e alguns analistas militares<br />
a considerarem que, nessa zona, deverão<br />
registar-se deserções em massa<br />
nas fileiras de Saddam.<br />
o Programa Petróleo por Alimentos passou<br />
a acudir às necessidades humanitárias<br />
do país, mas o cinismo do Presidente chegou<br />
ao ponto de ele afirmar na televisão<br />
que os seus compatriotas «não podem<br />
pensar apenas no pão», sob pena de se<br />
«transformarem em vermes ou aves». Ou<br />
de impor cortes drásticos no sistema de<br />
racionamento quando ele próprio decide<br />
fazer dieta. Algo que ocorre com alguma<br />
frequência e que até já levou o Goveno<br />
iraquiano a tentar importar uma máquina<br />
de liposucção sob a égide da ONU. Resta<br />
saber qual o tipo de vida que este amante<br />
dos luxos ocidentais pretende fazer de<br />
agora em diante. ■<br />
VISÃO 21 de Março de 2003 59
GUERRA DO GOLFO II<br />
PLANOS<br />
O Iraque<br />
depois<br />
de Saddam<br />
A seguir ao derrube do «raïs»<br />
de Bagdad, Washington ficará<br />
responsável por um país complicado<br />
e dividido. Um olhar sobre o projecto<br />
americano de reconstrução<br />
do Iraque... e do Médio Oriente<br />
ITSUO INOUYE/AP<br />
Uma das grandes – e pertinentes –<br />
reservas mantidas pelos que se<br />
opõem a esta nova guerra no Iraque<br />
é o que acontecerá depois.<br />
Mesmo que a Administração Bush não<br />
erre ao admitir um êxito militar rápido<br />
por parte dos americanos, a paz no pós-<br />
-guerra revelar-se-á seguramente complicada.<br />
Mas alguns dos que apoiam a guerra<br />
acreditam que a destruição do regime<br />
de Saddam Hussein trará grandes benefí-<br />
cios para o Médio Oriente. Apesar de ter<br />
deixado transpirar uma tonelada de cenários<br />
para vencer o exército de Saddam,<br />
a Administração dos EUA pouco disse<br />
sobre o modo de gerir o perigoso rescaldo.<br />
Sobre isso, o exclusivo tem pertencido<br />
ao próprio Bush, que costuma descrever,<br />
sempre da mesma maneira, a sua<br />
grande antevisão do Iraque: um país<br />
transformado pela guerra nas cores americanas<br />
da democracia, prosperidade e<br />
CONQUISTA<br />
A guerra, segundo<br />
vários observadores,<br />
poderá ser o mais<br />
fácil. O pior será<br />
governar depois<br />
o Iraque<br />
paz. E, segundo ele, essa grande visão deverá<br />
estender-se depois a toda aquela<br />
parte do mundo, onde o «exemplo profundo<br />
e inspirador» (a libertação do Iraque)<br />
criaria «um novo palco para a paz<br />
no Médio Oriente» e «mostraria o poder<br />
da liberdade para transformar essa região<br />
vital e levar esperança e progresso à vida<br />
de milhões de pessoas». Resumindo, é<br />
aquilo que Bush considera «uma batalha<br />
pelo futuro do mundo muçulmano».<br />
60 VISÃO 21 de Março de 2003
Estes objectivos de Bush constituem<br />
uma estreia absoluta para um país – os<br />
EUA – que nunca se importou muito com<br />
a forma como os Estados árabes eram governados,<br />
desde que o petróleo continuasse<br />
a correr barato para os depósitos das<br />
«banheiras» americanas, e para um Presidente<br />
que chegou à Casa Branca manifestando<br />
desprezo pela reconstrução de países.<br />
Vejamos o que dizem os memorandos<br />
pós-guerra de Washington<br />
1. Quem vai governar o Iraque?<br />
Até os mais visionários da Administração<br />
reconhecem que conquistar o Iraque<br />
promete ser mais fácil do que devolvê-lo<br />
aos iraquianos. Mas muita coisa depende<br />
da forma como a guerra progredir. Os planos<br />
para o pós-guerra requerem inevitavelmente<br />
uma adaptação à medida que se<br />
avança. Mas tem havido uma divisão<br />
constante no seio da Administração sobre<br />
as opções preferidas. Tanto em grandes<br />
como em pequenas questões, registam-se<br />
divergências entre o Departamento de Estado<br />
e a CIA contra o Pentágono e o gabinete<br />
do vice-presidente. Só a 20 de Janeiro<br />
o Departamento de Defesa assumiu as<br />
operações de pós-guerra no novo Gabinete<br />
de Reconstrução e Assistência Humanitária,<br />
designando Jay Garner, um general<br />
na reforma e amigo de secretário da Defesa,<br />
Donald Rumsfeld, como patrão da paz.<br />
O principal <strong>especial</strong>ista em Iraque do Departamento<br />
de Estado, Ryan Cricker, falado<br />
para ir para Bagdad como embaixador,<br />
pode não assumir o cargo por haver na<br />
Defesa tanto poder do pós-guerra.<br />
Bush referiu-se a um leque amplo de intenções<br />
americanas quando apontou como<br />
modelo para o novo Iraque a reconstrução<br />
do Japão e da Alemanha após a<br />
Segunda Guerra Mundial. Embora não o<br />
digam em público, os funcionários da Casa<br />
Branca admitem em privado que o plano<br />
é, pura e simplesmente, a conquista do<br />
Iraque. A Administração gosta de lhe chamar<br />
libertação. Mas significaria uma ocupação<br />
total à moda antiga por forças dos<br />
EUA, que governariam o país até este estar<br />
pronto a ser devolvido aos iraquianos.<br />
Os responsáveis dizem que o plano prevê<br />
forte controlo militar, sob a autoridade<br />
global do comandante da invasão, general<br />
Tommy Franks. «A única coisa que está<br />
em questão agora», diz um funcionário<br />
do Departamento de Estado, «é quanto<br />
tempo vai durar essa governação».<br />
Sobre isso, Bush tem permanecido<br />
opaco: «Vamos ficar no Iraque enquanto<br />
for preciso e nem mais um dia.» Quanto<br />
DAVID GUTTENFELDER/AP<br />
lBAGDAD<br />
A reconstrução da sociedade civil é uma das tarefas mais difíceis dos planos americanos<br />
tempo será isso, depende de decisões difíceis<br />
que ainda não foram tomadas sobre<br />
o papel dos EUA. Deverá a América estar<br />
mais preocupada em assegurar a estabilidade<br />
ou em evitar a impressão de ocupação?<br />
Deverão os EUA estabelecer estruturas<br />
políticas básicas e retirar, ou ficar<br />
mais tempo para tentar construir a sociedade<br />
civil? Segundo todos os esquemas,<br />
um efectivo completo de tropas americanas<br />
– qualquer coisa entre 50 e 200 mil –<br />
formaria a autoridade central por um mínimo<br />
de seis meses, e um número menor<br />
iria provavelmente permanecer durante<br />
dois anos, embora alguns peritos afirmem<br />
que teriam de ficar 20 a 90 mil durante<br />
anos.<br />
2. Ocupar durante quanto tempo?<br />
Os chefes do Pentágono querem entrar<br />
e sair rapidamente. Devem ter franzido o<br />
sobrolho quando Bush falou do Japão.<br />
Essa reconstrução demorou sete anos aos<br />
EUA. Não é esse o modelo, insiste o subsecretário<br />
da Defesa para a Política, Douglas<br />
Feith. «Envolveríamos os iraquianos<br />
logo que possível, e transferiríamos a responsabilidade<br />
para entidades iraquianas<br />
logo que fosse viável», diz.<br />
Os estrategos estão a tentar facilitar a<br />
transição. Apostam que uma abertura feroz<br />
– aquilo a que chamam uma «campanha<br />
de choque e temor» – anulará a vontade<br />
de resistência do Iraque e porá rapidamente<br />
fim ao regime de Saddam com<br />
pouca destruição das infra-estruturas do<br />
país. Alguns responsáveis militares até<br />
murmuram que o plano de guerra deixa<br />
de lado demasiadas redes de transporte e<br />
energia como dádiva para as necessidades<br />
do pós-guerra. Mas se as hostilidades se<br />
arrastarem, a reconstrução do Iraque pode<br />
revelar-se tão dispendiosa e complicada<br />
como os quatro anos de reconstrução<br />
da Alemanha de Hitler.<br />
3. Acções imediatas<br />
Nos primeiros dias do pós-Saddam será<br />
necessária uma grande presença militar<br />
dos EUA. Alguém terá de prestar a assistência<br />
humanitária de que os civis iraquianos<br />
precisarão. Quase 60% dos iraquianos<br />
dependem das senhas de racionamento do<br />
Governo. Os «libertadores» não serão bem<br />
recebidos se não fornecerem rapidamente<br />
aos 25 milhões de habitantes do país rações,<br />
água, abrigo e cuidados médicos.<br />
Outras missões imediatas passam pela<br />
vigilância das fronteiras, impedir os iraquianos<br />
de ajustarem contas entre si, impedir<br />
as três principais comunidades do país<br />
– curdos, sunitas e xiitas – de combaterem<br />
e encontrar quaisquer armas de destruição<br />
maciça que o Iraque possua. O Pentágono<br />
já está preocupado com a dinâmica dessa<br />
busca. «Temos de encontrar e mostrar ao<br />
mundo as armas de Saddam», diz um responsável<br />
da Defesa – de uma forma, acrescenta,<br />
que não deixe suspeitas de que os<br />
EUA forjaram as provas. Essa é uma das<br />
razões pelas quais o Pentágono, ao contrário<br />
do que é habitual, decidiu deixar 500<br />
jornalistas de todo o mundo acompanharem<br />
as forças americanas na invasão.<br />
4. Comando de emergência<br />
Garner, sob o comando de Franks, será<br />
encarregado das questões civis. Irá coordenar<br />
a reconstrução e a administração<br />
civil e – rapidamente, espera Washington<br />
– transferir a assistência humanitária dos<br />
militares para a ONU e as agências não<br />
governamentais. Inicialmente, falou-se de<br />
nomear uma personalidade civil para eliminar<br />
o ónus de uma ocupação militar,<br />
mas um responsável da Casa Branca diz<br />
que «um czar civil não é o que as pessoas<br />
têm em mente». Os EUA acham que mais<br />
um anel na cadeia de comando iria afectar<br />
a eficácia da operação.<br />
VISÃO 21 de Março de 2003 61<br />
▲
▲<br />
GUERRA DO GOLFO II O futuro<br />
O IRAQUE DEPOIS DE SADDAM<br />
Garner e Franks terão o controlo<br />
total do país enquanto forem tomadas<br />
as decisões mais críticas sobre o<br />
futuro. Fontes da Administração di-<br />
zem que os EUA colocarão conselheiros<br />
nos ministérios iraquianos a<br />
fim de ligar directamente o gabinete<br />
de Garner aos assuntos quotidianos.<br />
Os diplomatas árabes informados<br />
sobre os planos denegriram estes<br />
conselheiros como sendo comissários<br />
ao estilo comunista. Mas Washington<br />
diz que o seu papel será ajudar<br />
a reformar a burocracia iraquiana.<br />
Alguns poderão ser americanos<br />
de origem iraquiana, e trarão para a<br />
tarefa a necessária competência técnica<br />
e a familiaridade com a democracia<br />
ocidental. Fontes da Administração<br />
dizem esperar dar a um<br />
americano de origem árabe um papel<br />
altamente visível: o general John<br />
Abizaid, um dos poucos oficiais superiores<br />
americanos que falam árabe,<br />
foi recentemente promovido a<br />
segundo adjunto de Franks. E possui<br />
uma agenda carregada.<br />
5. Reforma das forças<br />
de segurança<br />
O pesado aparelho de agentes que levava<br />
a cabo a repressão de Saddam – talvez<br />
5 mil nos vários serviços de segurança especiais<br />
– será saneado. Mas o Iraque continuará<br />
a precisar de um exército para preservar<br />
a unidade do Estado e impedir a interferência<br />
dos vizinhos. Os duros da equipa<br />
de Bush queriam uma limpeza completa.<br />
As cabeças mais frias advertiram que se<br />
o exército fosse dissolvido, os EUA iriam<br />
enfrentar milhares de soldados esfomeados<br />
e desempregados e não teriam forças competentes<br />
para ajudar a policiar o país.<br />
O Pentágono só preparou um plano rudimentar<br />
para reabilitar o grosso do exército,<br />
uma estratégia cheia de calão militar<br />
desenxabido. Parte de um documento a<br />
que tivemos acesso prevê uma abordagem<br />
em três fases: «Estabilização, transição,<br />
transformação.» Um funcionário céptico<br />
diz: «Desafio-o a indicar a diferença entre<br />
transição e transformação.»<br />
Anulação do Partido Baas. No regime de<br />
Saddam, o partido sustenta a estrutura monolítica<br />
de poder político. Eliminar o exército<br />
secreto de espiões, operacionais locais,<br />
delatores e informadores de Saddam seria<br />
difícil e perigoso. Os funcionários de Bush<br />
concordam na necessidade de um proces-<br />
JEROME DELAY/AP<br />
lMESQUITA DA MÃE DE TODAS AS GUERRAS<br />
O que vão fazer os americanos com os apoiantes de Saddam?<br />
so de limpeza, mas ainda discutem até que<br />
profundidade este deve ir.<br />
Os serviços secretos dos EUA juntaram<br />
as suas bases de dados para preparar listas<br />
de iraquianos importantes, divididos<br />
em três categorias. Primeiro, a elite culpada:<br />
o núcleo de Saddam – responsáveis<br />
militares, da segurança, serviços secretos<br />
e funcionários políticos, mais os membros<br />
da família – que serão capturados, julgados<br />
e punidos por um tribunal para crimes<br />
de guerra. Segundo, os arrependidos:<br />
funcionários superiores cuja fidelidade a<br />
Saddam é menos certa e que podem ser<br />
reabilitados através de julgamentos locais<br />
ou comissões da verdade desde que repudiem<br />
o ditador durante a guerra. Finalmente,<br />
o grupo dos dissidentes: os líderes<br />
governamentais e económicos que em<br />
privado se opõem a Saddam e serão precisos<br />
para gerir o país depois dele poderiam<br />
receber uma amnistia geral. Washington<br />
reuniu até agora mais de 2 mil<br />
nomes, mas não diz quantos se inserem<br />
em cada grupo. Os ocupantes podem ter<br />
de impedir as represálias contra os membros<br />
do partido que poderiam afectar o<br />
funcionalismo público de que um novo<br />
governante precisará.<br />
6. Gestão do petróleo<br />
Visto que a maior parte do mundo<br />
acredita que os EUA cobiçam<br />
as reservas petrolíferas do país (as<br />
segundas maiores do mundo),<br />
Washington será julgada pelo seu<br />
comportamento nesta matéria.<br />
Tem corrido o boato de que as forças<br />
britânicas serão encarregadas<br />
de tomar os campos petrolíferos<br />
durante as hostilidades, a fim de<br />
poupar os EUA à propaganda adversa.<br />
Mas funcionários superiores<br />
dos EUA dizem que esse papel das<br />
forças britânicas não foi fixado.<br />
Bush prometeu que os recursos<br />
petrolíferos do Iraque seriam usados<br />
«para benefício dos seus proprietários:<br />
o povo iraquiano». Embora<br />
alguns assessores do Pentágono<br />
esperassem que as vendas de<br />
petróleo iriam ajudar a pagar a<br />
guerra, outros, no Departamento<br />
de Estado, defendem que a política<br />
de apropriação seria condenável,<br />
sugerindo que as operações petrolíferas<br />
sejam coordenadas por uma<br />
comissão internacional até poderem<br />
ser devolvidas ao Iraque. Mas<br />
Washington espera que as receitas<br />
de petróleo no pós-guerra ajudem<br />
a financiar a reconstrução, aliviando a carga<br />
aos contribuintes americanos.<br />
7. Devolver o poder<br />
O desafio mais complicado será decidir<br />
como e quando o controlo político será devolvido<br />
aos iraquianos. Não há bons projectos<br />
para transformar um regime autoritário<br />
num regime democrático. Mas o Iraque<br />
tem desvantagens especiais. Muitos <strong>especial</strong>istas<br />
em questões iraquianas, tanto<br />
no mundo árabe como no Ocidente, temem<br />
que os EUA estejam a interpretar mal<br />
as realidades ao pensarem impor a democracia<br />
num país profundamente tribal, vingativo<br />
e cheio de ressentimento. O vazio<br />
deixado pelo colapso do punho de ferro de<br />
Saddam pode desencadear lutas pelo poder<br />
e vinganças capazes de conduzir a uma<br />
guerra civil prolongada e até a uma divisão<br />
do país. Não há nenhum democrata à espera<br />
de entrar se o ditador partir. Sunitas,<br />
xiitas e curdos disputariam a sua quota de<br />
poder. Os exilados iraquianos disputariam<br />
a supremacia aos que estão no país e que<br />
desconfiam deles. O Iraque não possui um<br />
órgão tradicional como a Loya Jirga do<br />
Afeganistão, capaz de dar uma forma rápida<br />
à governação interna. Daí que os duros<br />
62 VISÃO 21 de Março de 2003
da Administração tenham feito pressão para<br />
que se deixe o Congresso Nacional Iraquiano<br />
(o controverso grupo de exilados<br />
que agrupa as principais facções da oposição)<br />
organizar previamente um governo<br />
provisório. A Casa Branca acabou por decidir<br />
contra isso, fazendo com que os exilados<br />
se sintam traídos.<br />
A curto prazo, dizem os responsáveis,<br />
Garner apressar-se-á a nomear um conselho<br />
consultivo de iraquianos, equilibrado<br />
sensivelmente a meio por meio entre figuras<br />
do exílio e dirigentes que possam surgir<br />
no interior. Terá um papel largamente<br />
simbólico, e uma vez surgidos os partidos<br />
políticos e os novos dirigentes, poderão<br />
ter lugar eleições locais e nacionais.<br />
Washington não ditará, disse Bush, a<br />
forma precisa do novo governo do Iraque;<br />
isso é com os iraquianos, desde que não<br />
seja outra ditadura. Embora o Pentágono<br />
espere que os rudimentos sejam feitos em<br />
seis meses, a maioria dos <strong>especial</strong>istas diz<br />
que serão precisos pelo menos dois anos.<br />
Belos conceitos, mas funcionarão na<br />
prática? Gary Samore, um funcionário do<br />
Conselho de Segurança Nacional da Administração<br />
Clinton, diz não conseguir<br />
imaginar os iraquianos a tolerar um governador<br />
americano por mais de um par de<br />
meses. Outros dizem que o verdadeiro perigo<br />
não é que os EUA fiquem demasiado<br />
tempo, mas que não fiquem o tempo suficiente.<br />
A democracia, diz Amin Huweidi,<br />
um antigo embaixador egípcio no Iraque,<br />
não pode ser imposta no Iraque «carregando<br />
num botão. É um processo que demora<br />
muito tempo». Muitos europeus concordam<br />
e vêem no Afeganistão os resultados<br />
pouco satisfatórios da última invasão de<br />
Washington: um país ainda longe de estar<br />
estabilizado, democrático e até pacífico,<br />
agora ameaçado de esquecimento depois<br />
da sua «libertação». De facto, o orçamento<br />
de Bush para 2003 nem sequer pediu ao<br />
Congresso o dinheiro que os EUA se comprometeram<br />
a facultar este ano para a reconstrução<br />
do Afeganistão.<br />
8. A democracia irá florescer?<br />
Bush acha que o êxito no Iraque<br />
pode mudar todo o panorama<br />
da região de duas maneiras –<br />
incentivando os reinos escleróticos<br />
e os regimes repressivos a<br />
abraçarem a democracia e contribuindo<br />
para «pôr em marcha»<br />
a paz entre israelitas e palestinianos.<br />
Bush adoptou aqui a teologia<br />
neoconservadora: os EUA invadem<br />
uma parte disfuncional<br />
AP<br />
DAVID GUTTENFELDER/AP<br />
lRUAS DE BAGDAD<br />
Apesar da «libertação» ser uma das bandeiras de Bush, o Presidente dos EUA<br />
nunca explicou como será feita a democratização do país<br />
do mundo para a reparar, e o choque da<br />
guerra irá finalmente deixar o mundo árabe<br />
com melhor saúde. É uma ideia audaciosa,<br />
mas não um plano de trabalho. Nem<br />
Bush nem qualquer funcionário da Administração<br />
deram pormenores sobre como<br />
irá ocorrer a onda de democratização.<br />
Na região, os árabes simplesmente não<br />
compram isso. Não confiam em Bush, e estão<br />
natural e profundamente cépticos com<br />
as tentativas americanas de impor a democracia<br />
pela força. Mesmo que as coisas pudessem<br />
mudar para melhor, diz Khalil Shikaki,<br />
director do Centro Palestiniano de<br />
Estudos Políticos, em Ramallah, «era preciso<br />
ser-se verdadeiramente ingénuo para<br />
acreditar que a actual Administração dos<br />
EUA iria investir esforços sérios na promoção<br />
da boa governação na região».<br />
Entre os árabes, a visão de um pós-guerra<br />
no Médio Oriente está cheia de temores.<br />
Muitos estão convencidos de que a guerra<br />
JAY GARNER<br />
O homem<br />
escolhido para<br />
governar o Iraque<br />
a seguir à guerra<br />
irá alimentar a instabilidade regional e desencadear<br />
nova onda de antiamericanismo.<br />
As fileiras terroristas encontrariam novos<br />
recrutas para espalhar a violência na<br />
região. As forças fundamentalistas podem<br />
provocar acções repressivas que abafem<br />
qualquer abertura política. Ou, se os regimes<br />
permitirem uma ténue democracia, os<br />
fundamentalistas bem organizados podem<br />
chegar ao poder. «As consequências da<br />
guerra», diz o ministro dos Negócios Estrangeiros<br />
da Arábia Saudita, príncipe<br />
Saúd Al-Faiçal, «vão ser trágicas».<br />
A previsão de Bush de que a eliminação<br />
de Saddam incentivará o processo de paz<br />
no Médio Oriente pode ser ainda mais longínqua.<br />
Embora o líder do Iraque tenha recompensado<br />
as famílias dos suicidas palestinianos,<br />
esse dinheiro não é certamente<br />
um factor significativo no seu prolongado<br />
conflito com Israel. «Quando assentar a<br />
poeira da guerra», diz Richard Murphy, <strong>especial</strong>ista<br />
em Médio Oriente do Conselho<br />
de Relações Externas, «continuarão a ter<br />
queixas um contra o outro que não desejarão<br />
aplacar».<br />
Bush colocou a si mesmo um grande desafio.<br />
Assumiu o compromisso mais arriscado<br />
do país numa geração. Prometeu aos<br />
americanos que esta guerra vai fazer mais<br />
bem que mal. Pareceu invulgarmente confiante<br />
quando falou, mas os desejos são uma<br />
coisa e a realidade é outra, <strong>especial</strong>mente<br />
numa região habituada a miragens. ■<br />
© TIME/VISÃO<br />
GUERRA DO GOLFO II<br />
VISÃO 21 de Março de 2003 63
GUERRA DO GOLFO II Há 12 anos<br />
RECORDAÇÃO<br />
Golfo, parte I<br />
A guerra de 1991 teve como resultado visível<br />
a libertação do Kuwait. Mas o conflito de 43 dias<br />
que causou «apenas» 340 baixas entre as forças<br />
aliadas não destronou o ditador de Bagdad,<br />
agora na mira do filho do Bush de há 12 anos<br />
Quando começou efectivamente a<br />
Guerra do Golfo? Quando os primeiros<br />
tanques atravessaram o<br />
deserto do Sul do Iraque e invadiram<br />
o Kuwait para se apoderarem das<br />
suas ricas reservas petrolíferas? Ou muitos<br />
anos antes, quando as autoridades imperialistas<br />
britânicas retalharam o Médio<br />
Oriente?<br />
Apesar de os analistas terem evidenciado<br />
até à exaustão a pesada herança deixada<br />
pelo poder colonial europeu, que traçou<br />
as fronteiras dos actuais Estados do<br />
Golfo sem respeitar etnias, tribos e a multissecular<br />
história da região, oficialmente<br />
a Guerra do Golfo começou quando, em<br />
2 de Agosto de 1990, os blindados de<br />
Saddam Hussein cruzaram a fronteira<br />
com o Emirado do Kuwait.<br />
A riqueza do pequeno Estado governado<br />
por Jaber al-Ahmad al-Jaber contrastava<br />
em 1990 com a difícil situação económica<br />
do Iraque, resultado de uma sangrenta<br />
guerra de sete anos contra o Irão.<br />
Foi durante esse conflito que Saddam estabeleceu<br />
um arsenal e um poderio militares<br />
ímpares na região. Mas os cofres estavam<br />
vazios, e o preço do petróleo, perigosamente<br />
baixo, impedia a recuperação.<br />
Em 17 de Julho, Saddam acusou o Kuwait<br />
e os Emirados Árabes Unidos de<br />
inundarem de petróleo o mercado internacional,<br />
mantendo os preços demasiado<br />
baixos. E, apontando directamente o dedo<br />
ao vizinho Kuwait, acusou-o de «secar»<br />
o campo petrolífero de Rumaila,<br />
uma reserva junto à fronteira disputada<br />
pelos dois países. O ministro dos Negócios<br />
Estrangeiros iraquiano insistiu então<br />
no perdão de 30 mil milhões de dólares<br />
da dívida externa do seu país, compensação<br />
por aqueles alegados crimes. Enquanto<br />
ainda ecoavam os discursos, os tanques<br />
de Bagdad tomavam posições junto da<br />
fronteira com o Emirado.<br />
No dia 25, a embaixadora americana<br />
April Glaspie encontra-se com Saddam e<br />
dá-lhe a conhecer a posição do seu Governo:<br />
os EUA não assistirão passivos ao decorrer<br />
dos acontecimentos. As negociações<br />
entre o Iraque e o Kuwait também<br />
não correm pelo melhor e são interrompidas<br />
a 1 de Agosto. No dia seguinte, tudo se<br />
precipita: os primeiros tanques atravessam<br />
a fronteira, obrigando o emir ao exílio.<br />
Americanos enviam tropas<br />
Após a invasão, as reacções fizeram-se<br />
sentir em capitais de todo o mundo.<br />
George Bush (pai do actual Presidente<br />
dos EUA) protesta de imediato contra a<br />
acção militar, manda congelar os bens<br />
dos dois países na América e põe em alerta<br />
as suas forças militares estacionadas no<br />
Médio Oriente. Na Arábia Saudita, o país<br />
com as maiores reservas de petróleo do<br />
mundo, instala-se o pânico – e se Saddam<br />
decide também ocupar o país, tornando-<br />
-se dono e senhor de metade das reservas<br />
petrolíferas mundiais?<br />
O pedido de ajuda militar aos EUA é<br />
feito pelo reino saudita a 7 de Agosto. Enquanto<br />
soldados americanos das equipas<br />
de intervenção rápida começam a preparar-se<br />
para uma viagem até às areias do<br />
deserto, o Conselho de Segurança da<br />
ONU faz passar uma resolução condenando<br />
a invasão e impondo um embargo<br />
comercial ao país. A União Soviética, a viver<br />
a Primavera de Gorbachev, não se<br />
opõe aos americanos, e começa a formar-<br />
-se uma vasta coligação internacional.<br />
Para os americanos, a operação militar<br />
é a maior de sempre após a Guerra do<br />
Vietname. Cerca de 230 mil soldados recebem<br />
guia de marcha para a Arábia Saudita<br />
e é estabelecida a maior ponte aérea<br />
de sempre entre dois países. Aviões F15,<br />
F16, F111 e F117 são enviados para o<br />
Golfo, juntamente com o mais variado<br />
material de suporte. A máquina de guerra<br />
americana é posta em movimento.<br />
Entretanto, no Kuwait e no Iraque,<br />
Saddam manda prender cidadãos de países<br />
ocidentais – americanos, ingleses, mas<br />
também portugueses e suíços – e ordena<br />
que sejam colocados em instalações militares<br />
estratégicas, funcionando como escudos<br />
humanos contra possíveis ataques<br />
das forças dos EUA. Permanecerão detidos<br />
até Dezembro. Os primeiros relatos<br />
sobre a situação dentro do Emirado também<br />
são desanimadores: pilhagens, tortura,<br />
assassínios e roubos são prática comum<br />
das forças ocupantes.<br />
A aliança<br />
Em Novembro, Bush decide um reforço<br />
da presença militar americana no Golfo,<br />
duplicando o número de efectivos<br />
(atingirá os 500 mil homens). No dia 29,<br />
64 VISÃO 21 de Março de 2003<br />
AP/J.SCOTT APPLEWHITE
o Conselho de Segurança das Nações<br />
Unidas aprova por maioria (com os votos<br />
contra de Cuba e do Iémen e a abstenção<br />
da China) a resolução 678, que estabelece<br />
o dia 15 de Janeiro para a retirada das tropas<br />
iraquianas do Kuwait. Lançado o ultimato,<br />
os EUA reforçam o seu dispositivo,<br />
chamando reservistas que são designados<br />
para postos entretanto deixados vagos ou<br />
para reforçarem os batalhões já presentes<br />
na região. A operação Escudo do Deserto<br />
começa a ganhar os contornos de uma<br />
vasta operação militar.<br />
Na frente diplomática as coisas também<br />
não correm bem a Saddam. Dois terços<br />
dos 21 Estados-membros da Liga Árabe<br />
condenaram a invasão do Kuwait, fazendo<br />
eco das posições dos EUA, Inglaterra,<br />
França, URSS e Japão. O Egipto e outros<br />
CONFIANÇA NA VITÓRIA<br />
No Dia de Acção de Graças, durante uma visita a um acampamento de militares norte-<br />
-americanos estacionados na Arábia Saudita, George Bush lança presentes aos soldados<br />
12 países árabes oferecem tropas para enfrentar<br />
Saddam e libertar o Kuwait, entretanto<br />
transformado em 19.ª província iraquiana.<br />
Do lado das fileiras de Saddam<br />
permanecem apenas a Jordânia, a OLP,<br />
Argélia, Sudão, Tunísia e Iémen.<br />
Perante o reforço da presença militar<br />
da coligação internacional, Saddam alarga<br />
os efectivos do seu exército, que passam<br />
de 500 mil para 680 mil homens.<br />
O que mais preocupa então os aliados é a<br />
possibilidade de Saddam utilizar armas<br />
químicas, biológicas ou mesmo nucleares,<br />
já que as informações recolhidas pela CIA<br />
e pelos agentes secretos infiltrados no terreno<br />
asseguram que Bagdad possui armas<br />
de destruição maciça. A evidência tinha<br />
sido recolhida anos antes, em 1986, quando<br />
60 mil curdos foram bombardeados<br />
com armas químicas pelo exército do seu<br />
próprio país, em Halabja. Outro motivo<br />
de receio é um ataque do Iraque a Israel:<br />
em resposta à agressão, o Estado judaico<br />
poderá utilizar armas nucleares, atingindo<br />
a guerra proporções inimagináveis.<br />
No campo da diplomacia é tentada uma<br />
última jogada. Além das iniciativas de<br />
franceses e russos, que fazem constantes<br />
peregrinações a Bagdad tentando uma saída<br />
para a crise – como a que propunha<br />
que Saddam obtivesse alguma vantagem<br />
territorial, anexando por completo o campo<br />
petrolífero de Rumaila e duas pequenas<br />
ilhas ao largo da costa kuwaitiana<br />
–, no dia 9 de Janeiro o secretário de Estado<br />
americano, James Baker, encontra-se<br />
em Genebra com o ministro dos Negócios<br />
Estrangeiros do Iraque, Tareq Aziz.<br />
VISÃO 21 de Março de 2003 65<br />
▲
▲<br />
GUERRA DO GOLFO II<br />
GOLFO,PARTE I<br />
Mas apesar das grandes expectativas, o encontro<br />
é um falhanço. Dentro de dias, os<br />
tambores da guerra voltariam a soar.<br />
O ataque<br />
A 16 de Janeiro, 24 horas após o expirar<br />
do prazo dado pelo Conselho de Segurança,<br />
os primeiros aviões americanos começaram<br />
o bombardeamento: a operação<br />
Escudo do Deserto passa a Tempestade do<br />
Deserto. Os raids partiram de bases sauditas<br />
e de outras plataformas mi-<br />
litares, como os porta-aviões<br />
estacionados no Golfo.<br />
A operação aérea foi planeada<br />
num bunker do quartel-general<br />
da Real Força Aérea<br />
Saudita. Após a invasão<br />
do Kuwait, uma célula de analistas<br />
americanos foi constituída<br />
com a missão de definir<br />
os alvos a abater. Destruir<br />
a rede de comando de Saddam,<br />
inutilizar os radares e os<br />
mísseis antiaéreos, acabar<br />
com as fábricas e laboratórios<br />
onde eram produzidas armas<br />
de destruição maciça, arrasar<br />
pistas de aterragem e infra-estruturas<br />
portuárias e rodoviárias<br />
e humilhar a sua força de<br />
elite, a Guarda Republicana,<br />
foram os objectivos definidos.<br />
No segundo dia de bombardeamentos,<br />
Saddam declara<br />
que a «mãe de todas as batalhas»<br />
está em curso e ordena o<br />
lançamento de mísseis Scud<br />
contra Israel e a Arábia Saudita.<br />
Mísseis Patriot americanos<br />
interceptam alguns, mas a cidade<br />
de Telavive é atingida,<br />
provocando a ira dos israelitas.<br />
Bush é capaz de controlar<br />
o seu aliado, que se mantém à<br />
margem do conflito – evitando<br />
assim o princípio do fim da coligação,<br />
da qual faziam parte países árabes.<br />
Os ataques dos americanos são eficazes<br />
e o poderio de Saddam é reduzido após a<br />
intensa campanha aérea. No início de Fevereiro<br />
de 1991, cerca de 120 caças iraquianos<br />
refugiam-se no Irão, deixando às<br />
forças da coligação internacional o controlo<br />
dos céus sobre o Tigre e o Eufrates.<br />
A batalha terrestre<br />
Após 39 dias de bombardeamentos<br />
acompanhados por escaramuças ao lon-<br />
Início • 2 de Agosto de<br />
1990, invasão do Kuwait<br />
Fim • 3 de Março de 1991,<br />
Iraque aceita cessar-fogo<br />
Baixas americanas<br />
• 148 mortos em combate<br />
e 145 em acidentes<br />
Baixas militares<br />
iraquianas • cerca<br />
de 100 mil<br />
Prisioneiros de guerra<br />
iraquianos • 71 mil<br />
Países da coligação •<br />
Kuwait, EUA, Arábia Saudita,<br />
Inglaterra, França, Holanda,<br />
Egipto, Síria, Omã, Qatar,<br />
Bahrein, Emirados Árabes<br />
Unidos, Canadá, Bélgica, Itália<br />
(que mandaram efectivos<br />
para o combate), Israel,<br />
Afeganistão, Bangladesh,<br />
Checoslováquia, Alemanha,<br />
Honduras, Níger, Roménia<br />
e Coreia do Sul<br />
Apoiantes do Iraque •<br />
Jordânia, Iémen, OLP, Sudão,<br />
Tunísia e Argélia<br />
go da fronteira entre o Iraque e a Arábia<br />
Saudita e tentativas de acordos de paz<br />
patrocinados pela URSS, começa a batalha<br />
terrestre. O general Norman<br />
Schwartzkopf, comandante-chefe da<br />
operação Tempestade no Deserto, conduz<br />
então uma rápida ocupação, com o<br />
apoio de meios aéreos, que em apenas<br />
cinco dias resulta na conquista do território<br />
do Kuwait. A 27 de Fevereiro, 43<br />
dias depois do início da ofensiva americana,<br />
a bandeira do Emirado adeja de<br />
novo em Kuwait City.<br />
Mas o preço da presença dos militares<br />
iraquianos manter-se-á durante bastante<br />
mais tempo. Antes da retirada, centenas<br />
66 VISÃO 21 de Março de 2003
de poços de petróleo são incendiados e as<br />
imagens de intensas colunas de fumo preto<br />
a subir nos céus enchem os ecrãs de todo<br />
o mundo. A 3 de Março, o general<br />
Schwartzkopf dita aos iraquianos os termos<br />
do cessar-fogo. Nenhum do material<br />
deixado para trás poderá ser recuperado<br />
pelas tropas derrotadas e é criada uma zo-<br />
na de exclusão aérea no Sul do Iraque,<br />
para proteger as tropas americanas ainda<br />
ali estacionadas.<br />
A Guerra do Golfo custou cerca de 60<br />
mil milhões de dólares, mas 48 mil milhões<br />
foram suportados pela Arábia Saudita,<br />
Kuwait e Japão. Cerca de 100 mil iraquianos<br />
perderam a vida, enquanto as<br />
O REGRESSO<br />
A reacção de dois soldados<br />
norte-americanos do Estado<br />
de Nova Iorque quando<br />
descobrem que no saco<br />
de plástico ao seu lado<br />
se encontra o corpo<br />
de um companheiro, morto<br />
em combate durante o mês<br />
de Março de 1991, horas<br />
antes do fim do conflito<br />
baixas dos aliados se cifraram em 340<br />
mortos, 300 dos quais eram militares<br />
americanos. Durante os 43 dias de guerra<br />
registaram-se cerca de 116 mil descolagens<br />
de aviões das forças aliadas. Os números,<br />
como os de todas as guerras, são<br />
aterradores. Mas serão certamente ultrapassados<br />
pelos que aí vêm. ■<br />
VISÃO 21 de Março de 2003 67<br />
AP/DAVID C. TURNLEY
GUERRA DO GOLFO II Em 1991<br />
lCHEGADA A KUWAIT CITY<br />
«Era meio-dia de 27 de Fevereiro quando o Batalhão Lwa, do Kuwait, entrou nos limites da capital»<br />
MEMÓRIA<br />
A libertação do Kuwait<br />
Imagens que marcaram o diário do enviado <strong>especial</strong><br />
de O Jornal na zona de conflito<br />
Aguerra era já certa quando Carlos<br />
Cáceres Monteiro, actual director<br />
da VISÃO, aterrou em Bagdad,<br />
no início de Janeiro de<br />
1991. Os habitantes tentavam sair da capital<br />
iraquiana por todos os meios, encaixotavam<br />
tudo aquilo que se pudesse partir<br />
com os bombardeamentos previsíveis,<br />
relembravam os maus momentos passados<br />
na guerra com o Irão. E, no entanto,<br />
«a cidade do medo» vivia a contagem final<br />
com aparente calma. «Ainda há pouco»,<br />
escrevia o enviado <strong>especial</strong> de O Jornal,<br />
«sobre as cúpulas policromáticas das<br />
mesquitas e os terraços das casas flutuavam<br />
os cânticos lamentosos dos muezines<br />
e os restaurantes da beira do Tigre serviam<br />
o peixe do rio, o magfsouz.»<br />
Cáceres Monteiro, então com 42 anos,<br />
aterrava com a experiência de repórter<br />
noutros palcos de guerra, vários blocos e<br />
canetas de escriba, um telefone-satélite<br />
que faria a «felicidade sem fios» de dois<br />
kuwaitianos atraídos pela parabólica liga-<br />
da ao gerador do carro, e uma máquina<br />
fotográfica que não parou de disparar. Ao<br />
longo de um mês e meio, havia de percorrer<br />
centenas de quilómetros entre o Iraque,<br />
o Kuwait, o Egipto e a Jordânia, de<br />
onde enviou reportagens para O Jornal e<br />
a TSF, estórias sempre com gente dentro.<br />
Mas, se foi no campo jordano de Azraq<br />
que viu «o pavor da guerra nos olhos»<br />
dos refugiados, dois episódios marcam de<br />
forma indelével o seu diário de guerra: a<br />
rendição de um grupo de soldados iraquianos<br />
e o «dia 1» da libertação de Kuweit<br />
City. «Viemos a saber que estavam ali<br />
escondidos há 53 dias. Alguns deles agitam<br />
panos brancos presos nas pontas de<br />
paus», escreveria. «Estamos prestes a entrar<br />
na capital do Kuwait. [...] O bombardeamento,<br />
a pouca distância, dá o pano<br />
de fundo trágico, quase patético, desta cena,<br />
com os iraquianos sentados no meio<br />
do deserto.» Doze anos depois, Cáceres<br />
Monteiro está de novo na área, agora como<br />
enviado <strong>especial</strong> da VISÃO. ■<br />
LIBERTAÇÃO, ‘DIA 1’<br />
«As mulheres soltavam<br />
gritos de júbilo, à tradicional<br />
maneira árabe»<br />
lO FIM DO PESADELO<br />
«É indiscritível a manifestação de alegria<br />
dos soldados»<br />
68 VISÃO 21 de Março de 2003<br />
CÁCERES MONTEIRO<br />
CÁCERES MONTEIRO
SUL DO IRAQUE<br />
«O bombardeamento, a pouca distância,<br />
dá o pano de fundo trágico»<br />
CÁCERES MONTEIRO<br />
‘MARCHA DA LIBERTAÇÃO’<br />
«O ambiente nesta coluna<br />
[militar] é de vitória mas,<br />
apesar disso, muito bélico.<br />
É uma marcha de arma<br />
apontada»<br />
GUERRA DO GOLFO II<br />
lRENDIÇÃO NO DESERTO<br />
«Todos [os soldados iraquianos] têm os olhos<br />
brilhantes. Será mais de terror do que de tristeza»<br />
VISÃO 21 de Março de 2003 69<br />
CÁCERES MONTEIRO<br />
CÁCERES MONTEIRO<br />
CÁCERES MONTEIRO<br />
CÁCERES MONTEIRO
GUERRA DO GOLFO II<br />
CRONOLOGIA<br />
Anos de tensão<br />
O Iraque começou a dar que falar há quase 13 anos, quando<br />
invadiu o Kuwait. O exército de Saddam foi expulso, mas<br />
o regime não foi derrubado. E o braço-de-ferro continuou<br />
1990<br />
17 JUL Saddam Hussein acusa o<br />
Kuweit e os Emirados Árabes Unidos<br />
(EAU) de produção excessiva de<br />
petróleo, fazendo assim baixar os<br />
preços<br />
2 AGO O exército iraquiano invade<br />
o Kuweit. O Conselho de Segurança<br />
(CS) da ONU impõe um embargo<br />
económico ao Iraque<br />
7 AGO O presidente dos EUA,<br />
George Bush (pai), envia tropas para<br />
o Golfo Pérsico<br />
1991<br />
17 JAN Uma coligação liderada<br />
pelos EUA lança uma devastadora<br />
guerra aérea sobre o Iraque<br />
26 FEV O Kuweit é libertado. Dois<br />
dias depois, Bagdad aceita um<br />
cessar-fogo<br />
2 MAR Muçulmanos xiitas revoltam-se<br />
contra Saddam, no Sul do Iraque. Mais<br />
tarde, no Norte, curdos associam-se<br />
à revolta.Ambas as insurreições são<br />
selvaticamente esmagadas, após um<br />
mês de combates<br />
ABRIL O Iraque começa a entregar<br />
relatórios sobre armas de destruição<br />
maciça, enquanto a ONU acusa<br />
Saddam de esconder mísseis e<br />
instalações nucleares. EUA, França e<br />
Reino Unido declaram território<br />
curdo livre uma área de 30 mil<br />
quilómetros quadrados no Norte do<br />
Iraque e restringem os voos acima<br />
do paralelo 36<br />
1992<br />
27 AGO Os EUA, apoiados pelo<br />
Reino Unido e pela França,<br />
restringem os voos no Sul do Iraque,<br />
para proteger os rebeldes xiitas<br />
1994<br />
Numa tentativa de ver levantadas as<br />
sanções, o Iraque reconhece a<br />
independência do Kuweit, aceitando<br />
as fronteiras delimitadas por uma<br />
comissão da ONU<br />
1996<br />
9 DEZ A ONU permite que o Iraque<br />
venda (limitadamente) petróleo, no<br />
primeiro levantamento de sanções<br />
desde 1990<br />
1997<br />
29 OUT O Iraque exige que os<br />
inspectores americanos da ONU<br />
abandonem o país; estes saem, mas<br />
regressam a 20 de Novembro<br />
AP/DOMINIQUE MOLLARD<br />
1990<br />
13 JAN O Iraque deixa<br />
temporariamente de cooperar,<br />
alegando que a equipa da ONU tem<br />
demasiados inspectores americanos<br />
e britânicos<br />
22 JAN O Iraque recusa inspecções<br />
em palácios presidenciais<br />
20–23 FEV Kofi Annan, secretário-<br />
-geral da ONU, assegura a<br />
cooperação iraquiana e a circulação<br />
sem restrições dos inspectores<br />
31 OUT O Iraque põe cobro à<br />
cooperação com a UNSCOM, que<br />
abandona o país<br />
14 NOV O Iraque permite que<br />
recomecem as inspecções<br />
16 DEZ Inspectores de armamento<br />
são expulsos do Iraque. Horas mais<br />
tarde, começam quatro dias de<br />
bombardeamentos americanos e<br />
britânicos sobre Bagdad<br />
1999<br />
O Iraque começa a treinar centenas<br />
de milhares de civis, desde<br />
adolescentes até septuagenários,<br />
para se defender de um ataque<br />
americano<br />
17 DEZ A ONU substitui a UNSCOM<br />
pela UNMOVIC (Comissão de<br />
Monitorização, Verificação e<br />
1992 • Armas químicas destruidas<br />
17 JANEIRO 91 • Ataque a Bagdad 1991 • Poços de petróleo incendiados 1998 • Bombardeamento de Clinton<br />
Inspecções). O Iraque rejeita a<br />
resolução<br />
2000<br />
1 MAR Hans Blix assume o lugar de<br />
administrador executivo da<br />
UNMOVIC<br />
10 AGO Hugo Chávez, presidente<br />
da Venezuela, encontra-se com<br />
Saddam na primeira visita de um<br />
chefe de Estado ao Iraque desde a<br />
Guerra do Golfo<br />
22 SET Um charter francês torna-se<br />
o primeiro voo internacional a<br />
ignorar um pedido da ONU para<br />
esperar por autorização, aterrando<br />
em Bagdad e dando origem a uma<br />
série de voos (com e sem<br />
aprovação) de países ansiosos por<br />
furar as sanções<br />
NOV O Iraque rejeita novas<br />
propostas de inspecção de<br />
armamento<br />
5 NOV O Iraque organiza dois voos<br />
comerciais domésticos, de Bagdad<br />
para Baçorá e Mossul, desafiando as<br />
restrições do espaço aéreo. Os EUA<br />
não levantam objecções, mas a<br />
jogada é vista como mais uma<br />
provocação<br />
2001<br />
16 FEV Na sua primeira intervenção<br />
militar, George W. Bush manda<br />
aviões americanos e britânicos<br />
bombardear defesas antiaéreas<br />
perto de Bagdad, no primeiro<br />
ataque a norte do paralelo 33 desde<br />
Dezembro de 1998<br />
27 FEV O ministro dos Negócios<br />
Estrangeiros iraquiano rejeita uma<br />
proposta americana para emendar<br />
as sanções da ONU, alegando que<br />
70 VISÃO 21 de Março de 2003<br />
AP/MICHEL LIPCHITZ<br />
epa<br />
REUTERS
tudo não passa de um golpe para<br />
justificar a manutenção do embargo<br />
4 JUN O Iraque suspende<br />
temporariamente as exportações de<br />
crude que não sejam para os vizinhos<br />
Turquia e Jordânia, como protesto por<br />
uma decisão do CS que alargava em<br />
apenas um mês o programa pelo qual<br />
Bagdad podia vender petróleo<br />
3 AGO O secretário de Defesa<br />
americano, Donald Rumsfeld, diz<br />
que o Iraque reconstruiu as defesas<br />
antiaéreas à volta de Bagdad desde<br />
os últimos bombardeamentos, no<br />
início do ano<br />
23 SET Negando qualquer ligação aos<br />
ataques de 11 de Setembro, o vice-<br />
-presidente iraquiano, Taha Yassin<br />
Ramadan, diz acreditar que os EUA<br />
atacarão o seu país para impor a sua<br />
vontade. E acrescenta: «Estamos<br />
confiantes em que a América caminha<br />
em direcção ao fim.»<br />
2002<br />
29 JAN No seu discurso sobre o<br />
Estado da União, Bush pede para se<br />
evitar que Irão, Iraque e Coreia do<br />
Norte adquiram armas químicas,<br />
biológicas ou nucleares. «Estados<br />
como estes, e os seus aliados<br />
terroristas, constituem um eixo do<br />
mal pronto a ameaçar a paz do<br />
mundo», diz<br />
MARÇO O vice-presidente dos EUA,<br />
Dick Cheney, recebe um aviso<br />
público da parte do Rei jordano,<br />
Abdullah II, de que alargar a guerra<br />
contra o terrorismo ao Iraque podia<br />
desestabilizar a região e deitar a<br />
perder tudo o que se conseguiu no<br />
Afeganistão. Cheney recolhe<br />
advertências semelhantes durante a<br />
sua visita ao Médio Oriente<br />
14 MAI Numa vitória para os EUA,<br />
o CS aprova por unanimidade uma<br />
série de sanções contra o Iraque,<br />
apertando o embargo militar ao<br />
regime de Saddam e facilitando a<br />
entrada de bens de primeira<br />
necessidade<br />
5 JUN Após conversações com Kofi<br />
Annan, o Iraque rejeita as propostas<br />
de inspecções de armamento<br />
1 AGO Em carta enviada a Annan, o<br />
Iraque convida Hans Blix a discutir<br />
questões técnicas sobre<br />
desarmamento<br />
6 AGO Annan escreve aos dirigentes<br />
iraquianos pedindo que aceitem as<br />
inspecções<br />
26 AGO Cheney alerta para as<br />
graves consequências de não se agir<br />
rapidamente contra Saddam,<br />
acrescentando que a lógica de quem<br />
se opõe a um ataque preventivo<br />
está «cheia de falhas»<br />
12 SET Discursando na ONU, Bush<br />
pede aos líderes mundiais que sejam<br />
mais duros para com o Iraque no<br />
que respeita às inspecções e deixa<br />
claro que se a ONU não estiver<br />
disposta a agir, os EUA fá-lo-ão<br />
16 SET Numa carta a Kofi Annan,<br />
o MNE iraquiano, Naji Sabri, diz que<br />
Bagdad autorizará o regresso dos<br />
inspectores para «acabar com<br />
quaisquer dúvidas» ainda existentes<br />
sobre armas de destruição maciça.<br />
Washington considera isto uma<br />
táctica para ganhar tempo<br />
16 OUT Bush assina uma resolução<br />
do Congresso americano<br />
autorizando o uso de forças<br />
militares, se necessário, para obrigar<br />
o Iraque a destruir as suas armas<br />
biológicas e químicas e abandonar o<br />
programa de armas nucleares<br />
5 NOV Começa o Ramadão<br />
8 NOV Numa surpreendente<br />
votação unânime, o CS aprova uma<br />
nova (e dura) resolução tendo em<br />
vista forçar Saddam a desarmar ou<br />
enfrentar «graves consequências»,<br />
que poderiam significar a guerra<br />
13 NOV Numa amarga carta ao<br />
secretário-geral, o Iraque aceita<br />
relutantemente as exigências e<br />
reitera não possuir armas de<br />
destruição maciça. Na véspera, o<br />
parlamento iraquiano havia<br />
recomendado a Saddam que<br />
rejeitasse a resolução<br />
27 NOV Responsáveis da ONU<br />
declaram que as primeiras<br />
inspecções no Iraque deverão<br />
recomeçar neste dia, embora a<br />
resolução do CS aponte para que se<br />
iniciem até 23 de Dezembro<br />
3 DEZ O vice-secretário de Defesa<br />
americano, Paul Wolfowitz,<br />
encontra-se com altos dirigentes<br />
turcos, garantindo aos jornalistas<br />
que a Turquia terá um papel a<br />
desempenhar no novo conflito do<br />
Golfo (Ancara teria disponibilizado<br />
as suas bases aéreas às forças<br />
americanas). Mas um dia depois o<br />
gabinete do primeiro-ministro<br />
Abdullah Gul declara que ainda não<br />
há uma decisão final sobre o<br />
assunto e que não se comprometeu<br />
em nada<br />
4 DEZ Termina o Ramadão<br />
24 DEZ Donald Rumsfeld começa a<br />
preparar as forças militares para o<br />
assalto ao Iraque<br />
2003<br />
2000 • Hugo Chávez visita Saddam<br />
27 JAN Hans Blix apresenta um<br />
duro relatório na ONU afirmando<br />
que Bagdad não deu provas de uma<br />
«aceitação genuína» das exigências<br />
GUERRA DO GOLFO II<br />
1998 • Inspectores da ONU retiram 2003 • Provas reais?<br />
de desarmamento<br />
28 JAN No seu discurso sobre o<br />
Estado da União, Bush acusa o<br />
Iraque de esconder armas de<br />
destruição maciça e avisa as forças<br />
armadas americanas para se<br />
prepararem<br />
4 FEV Colin Powell sublinha na<br />
ONU que Saddam constitui um<br />
perigo iminente. A França e a<br />
Alemanha pedem mais tempo para<br />
os inspectores<br />
14 FEV Hans Blix garante que a sua<br />
equipa não encontrou armas de<br />
destruição maciça<br />
1 MAR A UNMOVIC ordena ao<br />
Iraque a destruição de todos os seus<br />
mísseis Al Samoud II e de 380 outros<br />
engenhos explosivos que haviam<br />
sido ilegalmente importados<br />
14 MAR Falha mais uma semana de<br />
intensa diplomacia americana na<br />
tentativa de persuadir os membros<br />
necessários do CS a votarem por<br />
uma resolução autorizando a força.<br />
A Administração Bush critica a<br />
França por anunciar que vetará<br />
qualquer opção pela guerra<br />
16 MAR Bush, Blair e Aznar<br />
encontram-se numa cimeira na Base<br />
das Lajes, Açores. Os três líderes e<br />
Durão Barroso anunciam no final<br />
que a janela da diplomacia estará<br />
aberta apenas por mais um dia<br />
17 MAR Os EUA desistem de levar<br />
ao CS a votação de nova resolução<br />
que autorize o uso da força contra o<br />
Iraque; à 1 da manhã de 18 de<br />
Março (hora continental<br />
portuguesa), Bush faz um discurso<br />
onde dá a Saddam e filhos um<br />
ultimato de 48 horas para<br />
abandonarem o país, preparando os<br />
americanos para a II Guerra do<br />
Golfo<br />
VISÃO 21 de Março de 2003 71<br />
REUTERS/FALEH KHEIBER<br />
REUTERS<br />
REUTERS/JUAN CARLOS SOLORZANO
GUERRA DO GOLFO II De Bagdad para Lisboa<br />
IRAQUIANOS EM PORTUGAL<br />
Imigrantes de luxo<br />
A pequena, abastada e bem inserida comunidade iraquiana<br />
contesta frontalmente a guerra, mas receia falar por temer<br />
represálias sobre os familiares que residem no seu país<br />
PAULA SERRA<br />
‘ Ainda no domingo falei com um<br />
primo meu que está no Iraque.<br />
A guerra nunca acabou para o<br />
povo iraquiano. Todos os dias<br />
o país está a ser bombardeado, mas<br />
quando esta grande ofensiva americana<br />
começar, ainda vai ser pior. Só que, mesmo<br />
já estando habituadas, as pessoas<br />
querem ver um fim a tudo isto.» Tal como<br />
outros iraquianos contactos pela VI-<br />
SÃO, M. pede o anonimato por razões<br />
de segurança, sobretudo por ainda ter<br />
muitos familiares a residirem no Iraque.<br />
Teme, por isso, represálias se assinar a<br />
sua opinião sobre o «o terrível regime de<br />
Saddam Hussein».<br />
M. é um homem de negócios na casa<br />
dos 40 anos, que deixou o Iraque quando<br />
tinha 5 e que desde os 23 que não o<br />
visita. Chegou a Portugal em 1989. Solteiro,<br />
tem dois irmãos e uma irmã (todos<br />
a morarem fora do nosso país) e tem interesses<br />
no sector imobiliário nos arredores<br />
de Lisboa.<br />
Apesar de não gostar do Governo de<br />
Saddam Hussein, M. defende que «os<br />
americanos não têm qualquer legitimidade<br />
para atacar o Iraque». As inspecções<br />
da ONU, diz, «estavam a resultar».<br />
E interroga-se: «Se a guerra dos americanos<br />
é contra Saddam, porque não o tiraram<br />
de lá em 1991?» Quem vai sofrer<br />
nesta guerra, na sua opinião, «é o povo»,<br />
e afirma que «se os americanos<br />
querem fazer alguma coisa contra o Governo<br />
iraquiano, então que o façam.<br />
O Governo ainda vive melhor do que<br />
antes de 1991.» Acentua que «é ao povo,<br />
e não aos governantes, que falta comida<br />
e medicamentos, devido aos embargos<br />
dos EUA».<br />
O dinar era equivalente a cerca de 3,3<br />
dólares; agora a nota verde americana<br />
equivale... a 2 mil dinares. «Um ordenado<br />
médio no Iraque ronda os três dólares<br />
por mês», revela M.<br />
Considera «incrível» que os americanos<br />
já estejam a negociar os contratos de<br />
reconstrução do Iraque. «Ainda nem começou<br />
a guerra e os melhores negócios já<br />
estão nas mãos de Dick Cheney...»<br />
Tal como outros iraquianos contactados<br />
pela VISÃO, M. pensa que Portugal<br />
«é um país pacífico, com um excelente<br />
clima e um povo muito simpático.»<br />
E acrescenta: «Aqui nunca me considerei<br />
estrangeiro, como acontece noutros países<br />
da Europa. Nem sequer após o 11 de<br />
Setembro senti qualquer constrangimento.<br />
Os portugueses sabem que nós não temos<br />
nada que ver com Bin Laden, e muito<br />
menos com o terrorismo. Noutros países,<br />
muitos de nós ficámos detidos só por<br />
causa do nome ou por sermos muçulmanos.<br />
Até agora, nunca me senti perseguido,<br />
ninguém me fez qualquer pergunta<br />
sobre a minha vida privada, nem sobre as<br />
minhas contas bancárias...»<br />
Uma elite de 150 pessoas<br />
Números oficiais dizem que em finais<br />
de 2002 vivia em Portugal centena e<br />
meia de iraquianos. Cifra muito reduzida<br />
se comparada com a da vizinha Espanha<br />
ou a de outros países da UE, como<br />
a Alemanha ou a Inglaterra, onde as<br />
comunidades iraquianas são vastas.<br />
Também ao contrário de Espanha, Portugal<br />
não funcionará como uma «placa<br />
giratória» para iraquianos que procuram<br />
abrigo na UE ou nos EUA, já que a generalidade<br />
dos que se encontram no nosso<br />
país vivem com as famílias há mais de 10<br />
anos e no mesmo local.<br />
Lisboa conta com o maior aglomerado<br />
de iraquianos do País (96), seguindo-<br />
-se Setúbal (43) e Faro (6). Por outro lado,<br />
a centena e meia dos iraquianos fixados<br />
em Portugal pode ser considerada<br />
uma elite do mundo dos negócios (hotelaria<br />
e o imobiliário), predominando os<br />
diplomados em universidades britânicas<br />
e americanas. Entre eles contam-se ainda<br />
intelectuais como o professor Tariq<br />
Al-Koudayri, 73 anos, engenheiro químico<br />
reformado, que trabalhou para a<br />
ONU durante 18 anos.<br />
Este professor universitário, que con-<br />
UM ‘LAWRENCE’<br />
PORTUGUÊS<br />
João Mariano<br />
da Fonseca, 80 anos,<br />
nasceu em Bagdad,<br />
ainda nos tempos<br />
do império otomano<br />
tinua a publicar artigos sobre questões<br />
humanitárias e técnicas na imprensa de<br />
lingua árabe, trocou um emprego na<br />
Universidade de Bagadad, dois anos<br />
após a subida de Saddam ao poder, por<br />
uma consultadoria numa empresa petrolífera<br />
em Beirute. Já representante da<br />
ONU no Líbano, a invasão israelita obrigou-o<br />
a procurar refúgio em Viena, onde<br />
residiu até 1993 ainda como funcionário<br />
da ONU.<br />
Nesse mesmo ano fixou-se nos arredores<br />
de Lisboa, «que já conhecia quando<br />
visitava amigos que tinha em Portugal»,<br />
como o patriarca da família Al-Ba-<br />
72 VISÃO 21 de Março de 2003
ker, um homem de negócios iraquiano<br />
ligado ao sector hoteleiro.<br />
A VISÃO tentou falar com esta outra<br />
família, que considera porém o momento<br />
«inoportuno» para prestar declarações.<br />
Os abastados Al-Baker possuem vários<br />
empreendimentos turísticos em<br />
Portugal Continental e na Madeira, incluindo<br />
a Marina de Cascais e a herdade<br />
da Apostiça, no distrito de Setúbal.<br />
Esta «casta» de homens ricos que é a<br />
comunidade iraquiana em Portugal está<br />
bem inserida nos hábitos locais, apesar<br />
de continuar totalmente familiarizada<br />
com as principais praças financeiras internacionais.<br />
Poucos voltaram ao Iraque, quer por<br />
razões políticas quer simplesmente porque<br />
os afazeres lhes deixam pouco tempo<br />
para passar nas suas terras natais, entretanto<br />
devastadas pela pobreza.<br />
Não querendo confessá-lo, muitos<br />
não aceitam falar aos media porque possuem<br />
dupla e tripla nacionalidade, um<br />
tabu na sua comunidade. E a maioria teme<br />
perder os privilégios que lhe são facultados<br />
pelo facto de terem um segundo<br />
ou até terceiro passaporte, normalmente<br />
de países islâmicos.<br />
GUERRA DO GOLFO II<br />
Apesar de maioritariamente muçulmanos,<br />
os iraquianos residentes em Portugal<br />
não frequentam com regularidade<br />
as mesquitas, fazendo as suas orações<br />
quase sempre em casa.<br />
Saddam, Sharon e Bush, todos iguais<br />
Tariq Al-Koudayri, casado com uma<br />
americana e também com nacionalidade<br />
americana, é um dos poucos iraquianos<br />
que conservam apenas o seu passaporte<br />
de origem e que, sempre que necessário,<br />
renova a autorização de residência<br />
no nosso país. É também um dos<br />
poucos que acedem a falar aberta-<br />
VISÃO 21 de Março de 2003 73<br />
LUÍS BARRA<br />
▲
GUERRA DO GOLFO II De Bagdad para Lisboa<br />
IMIGRANTES DE LUXO<br />
▲ lTARIK AL-KOUDAYRI<br />
mente à VISÃO sobre o Iraque, o regime<br />
de Sadam e as razões que fizeram de<br />
Portugal a sua segunda pátria.<br />
Portugal lembra-lhe «sobretudo muito<br />
o Líbano», país que nunca teria abandonado<br />
se não tivesse ocorrido a guerra<br />
com Israel, na década de 70.<br />
Foi, aliás, no Líbano que se licenciou<br />
em Engenharia, tendo tirado mais tarde<br />
uma <strong>especial</strong>ização nos EUA. Alguns<br />
dos seus antigos colegas assumiram posições<br />
relevantes na administração iraquiana,<br />
mas Al-Koudayri tornou-se personna<br />
non grata.<br />
Ao descrever a situação no seu país,<br />
Al-Koudayri sente uma mistura de sentimentos:<br />
detesta o regime de Saddam,<br />
mas é frontalmente contra uma guerra<br />
que «só afectará o meu povo». E acrescenta:<br />
«Não vejo qualquer diferença entre<br />
Saddam Hussein, Ariel Sharon ou<br />
George W. Bush. Saddam é um psicopata,<br />
Sharon não é um ditador per se, mas<br />
o seu background é o de um fanático, e<br />
com Bush passa-se o mesmo.» Evita falar<br />
sobre as suas convicções religiosas<br />
ou políticas: «É algo que considero do<br />
foro privado. Todas as religiões são pela<br />
paz, mas infelizmente demasiadas pessoas<br />
usam-nas para outros fins.»<br />
Para Al-Koudayri, «o futuro do Iraque<br />
é uma incerteza». E explica: «Bush não<br />
incluiu nenhuma verba no orçamento<br />
para ajudar a reconstrução do Afeganistão.<br />
Quanto ao Iraque, pensa que será<br />
diferente.» E acrescenta:<br />
«O problema no meu país agravou-se<br />
desde que invadiu o Kuwait – a tensão<br />
aumentou e atingiu todas as camadas da<br />
população. A maior parte da riqueza ficou<br />
nas mãos de Saddam. Até ao início<br />
da guerra com o Irão tínhamos reservas<br />
no valor de 35 mil milhões de dólares; a<br />
partir daí, todos os projectos industriais<br />
«Não vejo qualquer diferença entre Saddam Hussein, Ariel Sharon ou George W. Bush»<br />
foram destruídos, os mercados internacionais<br />
fechados. O país perdeu todo o<br />
seu desenvolvimento.»<br />
Na sua opinião, os EUA querem<br />
controlar o Iraque como sucedeu nos<br />
anos 50. «Em 1958, com a queda da<br />
Monarquia, o Ocidente perdeu o controlo<br />
do país, incluindo as principais<br />
bases inglesas.»<br />
Segundo Al-Koudayri, o objectivo é<br />
«estabelecer bases no Iraque, porque é<br />
um dos Estados da zona onde existem<br />
mais pessoas com educação, e inúmeras<br />
riquezas, que não se limitam ao petróleo».<br />
E, à laia de remate: «Uma das coisas que<br />
os americanos sempre mais temeram,<br />
além do comunismo, foi o pan-arabismo.<br />
Entrar no Iraque será uma forma de controlar<br />
não só a Ásia Central mas também<br />
o Médio Oriente, por meio de governos<br />
locais que apoiem a política americana.<br />
O Iraque será uma ponte para isso.»<br />
Um ‘Lawrence’ português<br />
João Mariano da Fonseca nasceu há<br />
80 anos em Bagdad. É filho de um português<br />
que chegou à região ainda antes<br />
da I Guerra Mundial e de mãe iraquiana.<br />
Conheceram-se quando ele foi preso<br />
pelos turcos (do então Império Otomano)<br />
na cidade que é hoje a capital<br />
do Iraque.<br />
Mariano da Fonseca, que possui<br />
uma das maiores colecções<br />
de arte islâmica em Portugal, viveu<br />
no Iraque praticamente toda<br />
a vida. Frequentou o colégio<br />
americano e formou-se em Engenharia,<br />
tendo-se depois <strong>especial</strong>izado-se<br />
em refrigeração em<br />
Bombaim, na Índia, país onde<br />
conheceu a sua mulher. Acabou<br />
por voltar a trabalhar para empresas<br />
estrangeiras sediadas em<br />
Bagdad, «porque, depois da primeira<br />
revolução, os estrangeiros<br />
não podiam trabalhar para empresas<br />
locais, e apesar de tudo,<br />
eu tinha nascido lá».<br />
A convite do governo português<br />
anterior ao 25 de Abril, foi<br />
o primeiro cônsul do nosso<br />
país em Bagdad. Mas foram sobretudo<br />
o seus contactos e o<br />
facto de ser iraquiano de nascimento<br />
que lhe permitiram abrir<br />
muitas portas para empresas<br />
portuguesas que durante os<br />
anos 60, mas sobretudo 70, fizeram<br />
negócios no Iraque e<br />
noutros países da região.<br />
Apesar de ter voltado ao Iraque na década<br />
de 80, deixou definitivamente o<br />
país em 1977, quando «já não era seguro<br />
morar lá». A família tinha vindo em<br />
1975 para Portugal, mas o seu objectivo<br />
teria sido imigrar para o Brasil.<br />
Quando lhe perguntamos qual é a sua<br />
nacionalidade de preferência, Mariano<br />
da Fonseca responde peremptório:<br />
«Sinto-me aquilo que sou: iraquiano,<br />
português e inglês. E gosto muito de comida<br />
árabe, que é uma mistura de comida<br />
grega, europeia e árabe propriamente<br />
dita. Enfim, bizantina...» ■<br />
74 VISÃO 21 de Março de 2003<br />
BRUNO RASCÃO
BRUNO RASCÃO<br />
CASAL LUSO-IRAQUIANO<br />
À espera do ataque<br />
Como Shamiram e Raul Silva viveram as últimas horas<br />
do ultimato de Bush a Saddam<br />
‘ Que é aquilo? Já estão a atacar?»<br />
Os negros olhos de Shamiran<br />
exorbitam de inquietação ao verem<br />
no pequeno ecrã tropas especiais<br />
americanas em acção. Ao saber<br />
que são imagens de arquivo, a iraquiana<br />
não esconde o alívio. Que dará de novo<br />
lugar a ansiedade sempre que aparecerem<br />
directos da sua Bagdad natal. São 22 e 30<br />
de quarta-feira, 19. Faltam duas horas e<br />
meia para expirar o ultimato dado por<br />
Bush a Saddam. Em Portugal não será fácil<br />
encontrar outra casa onde a iminência<br />
da guerra esteja a ser vivida com tanta<br />
preocupação.<br />
Raul Silva, 43 anos, e Shamiran, 33, conheceram-se<br />
em Bagdad em 1995 e casaram-se<br />
há quase três anos. Para trás, ela<br />
deixou os pais e três irmãos, cujo bem-estar<br />
a aflige. Sobretudo depois de um telefonema<br />
feito nessa tarde para o pai. «Liguei-lhe<br />
para desejar um feliz Dia do Pai<br />
e percebi que ele estava a chorar. Foi chamado<br />
para ir combater.»<br />
Com o seu pai, 66 anos, operário de betoneiras,<br />
vão também para a frente os seus<br />
dois irmãos, de 35 e 37. Para estes, é já a<br />
terceira mobilização, depois do conflito<br />
Irão–Iraque e da I Guerra do Golfo. Shamiran<br />
preocupa-se em saber «como é que<br />
a minha familía sobreviverá se os homens,<br />
que são quem a sustenta, vão combater».<br />
Shamiran sabe o que é estar no meio de<br />
uma guerra. Em 1991, a casa familiar foi<br />
destruída por um míssil americano. «Só<br />
ficou uma parede de pé.»<br />
Música no coração<br />
Bagdad e o Cacém estão separados por<br />
milhares de quilómetros, mas a decoração<br />
da sala de estar da família Silva reduz a<br />
distância. Os móveis portugueses estão repletos<br />
de porcelanas e estatuetas iraquianas.<br />
Mas se não fosse o embargo, o casal<br />
dificilmente se teria conhecido.<br />
Em Fevereiro de 1992, Raul Silva leu<br />
num jornal que o famoso músico iraquiano<br />
Munir Bashir estava impossibilitado<br />
de obter cordas para o alaúde, devido<br />
às sanções económicas. O português<br />
achou o episódio «ridículo» e<br />
prontificou-se, junto da embaixada do<br />
Iraque a providenciar as cordas «através<br />
de um amigo que tinha um bazar em<br />
Tânger». Um ano depois recebe uma<br />
chamada da representação diplomática<br />
iraquiana expressando-lhe gratidão pelo<br />
gesto e endereçando-lhe um convite do<br />
Governo de Bagdad para visitar o país.<br />
Em Setembro parte para o Iraque, on-<br />
GUERRA DO GOLFO II<br />
PREOCUPAÇÃO<br />
Na noite em que<br />
começou a guerra,<br />
o casal acompanhou<br />
as notícias pela CNN<br />
de contacta com as carências provocadas<br />
pelo embargo. De regresso a Lisboa, tenta<br />
dar conhecimento daquilo que presenciara.<br />
Sem sucesso. «Na altura não interessava<br />
que houvesse milhares de crianças<br />
a morrerem no Iraque.»<br />
Indiferente ao silêncio das instituições,<br />
Raul Silva continuou a viajar para o Iraque<br />
até 1996, sempre «carregado de medicamentos,<br />
leite e papas», que ia pessoalmente<br />
entregar aos hospitais e maternidades.<br />
Hoje, não hesita em classificar Saddam<br />
de «grande responsável pela situação<br />
de miséria em que o Iraque se encontra».<br />
No entanto, é às sanções económicas que<br />
atribui as maiores culpas.<br />
É numa dessas estadas em Bagdad que<br />
conhece Shamiran, uma cristã licenciada<br />
em Hotelaria e Turismo e recepcionista<br />
no hotel em que estava hospedado. Desde<br />
que está em Portugal, Shamiran passou<br />
a usar jeans e blusas e adoptou o peixe<br />
cozido com batatas como prato de eleição<br />
e o Centro Comercial Colombo como<br />
sítio ideal para passear. E confessa-se<br />
adepta do Boavista.<br />
À medida que os ponteiros avançam, as<br />
espreitadelas aos diversos canais noticiosos<br />
tornam-se mais frequentes. «Com que<br />
direito querem os americanos reconstruir<br />
o nosso país e dizer como hão-de ser as<br />
coisas? É a nossa terra, não a deles.»<br />
Shamiran não gosta do líder iraquiano,<br />
mas prefere-o a um regime islâmico. «É<br />
verdade que no Iraque não há democracia,<br />
mas não é como no Irão ou no Afeganistão,<br />
onde as mulheres têm de andar<br />
com a burqa ou o chador...». ■<br />
TIAGO FERNANDES<br />
VISÃO 21 de Março de 2003 75
GUERRA DO GOLFO II Entrevista<br />
MÁRIO SOARES<br />
Por uma mediação do Papa<br />
O anterior Presidente da República defende a continuação da luta pela paz,<br />
com o Sumo Pontífice e a diplomacia do Vaticano a mediarem o conflito<br />
lMÁRIO SOARES<br />
«Os objectivos invocados para fundamentar o ataque pelos EUA foram mudando»<br />
JOSÉ CARLOS DE VASCONCELOS<br />
Considerado um dos «pais» da democracia<br />
portuguesa, decerto o<br />
mais influente desde o 25 de<br />
Abril, aos 78 anos Mário Soares<br />
continua, com raro vigor, na primeira linha<br />
de vários combates cívicos, mantendo-se<br />
o político português mais conhecido<br />
e prestigiado um pouco por todo o<br />
mundo. Presidente da República durante<br />
dez anos, após ter sido, além do mais,<br />
primeiro-ministro, fundador e secretário-geral<br />
do PS, tem levantado a voz em<br />
defesa das causas que considera justas e<br />
intervido activamente no debate sobre a<br />
questão do Iraque. Não se querendo<br />
pronunciar, de acordo com um propósito<br />
manifestado quando deixou Belém,<br />
sobre a política interna, em <strong>especial</strong> sobre<br />
as opções e posições do seu sucessor,<br />
o actual membro do Conselho de<br />
Estado e deputado ao Parlamento Europeu,<br />
falou-nos da dramática situação<br />
que agora se vive.<br />
VISÃO: Confirmaram-se os piores temores<br />
e a guerra está aí. Como a comenta?<br />
MÁRIO SOARES: Acho que esta guerra<br />
é ilegítima, é ilegal, é imoral – e, além<br />
disso, é inútil. Os objectivos invocados<br />
para a fundamentar pelos Estados Unidos<br />
foram mudando ao longo do tempo.<br />
Primeiro começaram por ser as armas de<br />
destruição maciça, que não se provou<br />
que os iraquianos tivessem. Depois, invocou-se<br />
uma alegada ligação do Iraque à<br />
Al-Qaeda, sobre a qual também não há<br />
nenhuma prova. De seguida veio a luta<br />
contra o terrorismo, quando esta guerra<br />
só pode provocar mais terrorismo. Em<br />
quarto lugar afirmou-se tratar-se de restabelecer<br />
a democracia em todo o Médio<br />
• Esta guerra<br />
é ilegítima, é ilegal,<br />
é imoral – e, além<br />
disso, é inútil<br />
76 VISÃO 21 de Março de 2003<br />
LUÍS VASCONCELOS
Oriente, o que obviamente<br />
não se<br />
conseguirá com esta<br />
guerra: na melhor<br />
das hipóteses o<br />
Iraque irá transformar-se<br />
num protectorado<br />
norte- americano.<br />
E, finalmente,<br />
os EUA disseram<br />
que a guerra se<br />
destinava a destruir<br />
o poder de Saddam<br />
Hussein. Mas, para<br />
isso, era melhor levá-lo ao Tribunal Penal<br />
Internacional (TPI), o que não custaria<br />
tantos sacrifícios humanos nem tanta devastação<br />
ambiental e do insubstituível<br />
património histórico do Iraque.<br />
V: Mas é sabido que os Estados Unidos,<br />
sob esta Administração Bush, são contra<br />
o TPI...<br />
MS: São, de facto, contra o TPI e as Nações<br />
Unidas. E esta guerra é a primeira<br />
Guerra do Império, feita como tal e para<br />
a dominação do mundo. É uma guerra<br />
que pretende atingir as Nações Unidas<br />
e também a União Europeia – não<br />
falo da NATO, que essa já não tem razão<br />
de ser.<br />
V: Entende que ainda é possível fazer alguma<br />
coisa para evitar que a guerra continue<br />
ou assuma os piores contornos?<br />
MS: Como disse o Papa, é preciso continuar<br />
a lutar pela paz. E é indispensável<br />
haver, o mais depressa possível, uma<br />
mediação do conflito – para o parar.<br />
Ora, seriam exactamente o Papa e a diplomacia<br />
do Vaticano as entidades<br />
ideais para alcançar esse objectivo; e até<br />
para que esta guerra não assuma o carácter<br />
de guerra religiosa.<br />
V: Mas acha que ainda há condições para<br />
o Papa e a diplomacia do Vaticano mediarem<br />
o conflito e tentarem pôr termo à<br />
guerra?<br />
MS: Claro que há. Porque é que não há-<br />
-de haver?<br />
V: Quais podem ser as consequências<br />
desta guerra, ao nível da ONU e do Direito<br />
Internacional?<br />
MS: No plano das Nações Unidas é necessário<br />
que elas, apesar da machadada<br />
que levaram com esta guerra preventiva,<br />
não se deixem destruir. Não podemos esquecer<br />
que não foi preciso nenhum veto<br />
do Conselho de Segurança: no Conselho<br />
• Através da opinião<br />
pública manifesta-se<br />
a cidadania global.<br />
E vai sair caro aos<br />
governos que, contra<br />
ela, apoiaram a guerra<br />
de Segurança houve<br />
uma maioria<br />
moral a favor da<br />
paz. E foi só por isso<br />
que os Estados<br />
Unidos e a Inglaterra<br />
não apresentaram<br />
uma segunda<br />
moção e realizaram,infelizmente<br />
nos Açores, a Cimeira<br />
da Guerra<br />
– foi assim, Cimeira<br />
da Guerra, que<br />
toda a imprensa mundial a classificou.<br />
V: E quanto à União Europeia?<br />
MS: No meu entender, deve prosseguir<br />
os seus esforços para criar uma verdadeira<br />
união política e não se deixar atingir<br />
pelas divisões entre Estados membros.<br />
Divisões que infelizmente se manifestaram,<br />
através da Carta dos Oito.<br />
V: A Itália de Berlusconi estava entre os<br />
países que de início apareceram na primeira<br />
linha de apoio à posição de Bush.<br />
Entretanto, quase «desapareceu»...<br />
MS: Isso foi porque certamente o Papa<br />
lhe puxou as orelhas num encontro que<br />
tiveram. Berlusconi saiu pela porta baixa,<br />
como no teatro. Um homem de negócios<br />
como ele compreendeu que estava<br />
a fazer um mau negócio num país como<br />
a Itália.<br />
V: Dada a situação no terreno, pensa que<br />
a opinião pública mundial, que tem sido<br />
tão importante, continua a ter um papel<br />
a desempenhar e uma palavra a dizer?<br />
MS: Sim, sim. A opinião pública mundial<br />
é um fenómeno novo. Manifesta-se<br />
através dela a cidadania global, uma<br />
vontade manifestada em rede contra a<br />
guerra e a favor da paz. Vontade sobretudo<br />
impressionante nos países cujos<br />
governos apoiaram a guerra – o que lhes<br />
vai sair necessariamente caro...<br />
V: Para além da opinião pública em geral,<br />
grandes figuras mundiais têm tomado<br />
posição.<br />
MS: Sim. Não é só a opinião pública,<br />
não são só as massas, as grandes figuras<br />
têm-se manifestado contra esta guerra.<br />
Desde o Papa, que já referi, até Gorbachev,<br />
de Nelson Mandela a Jimmy Carter.<br />
E, também, desde o New York Times<br />
até países tão dependentes dos Estados<br />
Unidos como o Paquistão, a Turquia e o<br />
México. ■<br />
GUERRA DO GOLFO II<br />
FREITAS DO AMARAL<br />
Dez votos<br />
Finalmente começou a<br />
guerra, como todos já tínhamos<br />
previsto, porque<br />
anunciada e decidida há<br />
meses. Resolvida contra tudo e<br />
contra todos. Juridicamente ilegal,<br />
militarmente desnecessária,<br />
pelo menos por enquanto,<br />
e politicamente perigosa como<br />
poucas.<br />
Mas, uma vez que a guerra aí<br />
está, resta-me formular dez votos<br />
muito sinceros:<br />
1 – Que seja curta;<br />
2 – Que provoque poucas<br />
baixas;<br />
3 – Que não atinja vítimas<br />
inocentes;<br />
4 – Que seja orientada<br />
exclusivamente para alvos<br />
militares;<br />
5 – Que elimine todas<br />
as armas de destruição<br />
maciça que porventura<br />
existirem;<br />
6 – Que seja conduzida<br />
segundo o princípio<br />
da proporcionalidade, isto é:<br />
sem excessos;<br />
7 – Que respeite as leis<br />
da guerra e designadamente<br />
as convenções de Genebra;<br />
8 – Que contribua para<br />
a estabilidade do Médio<br />
Oriente e não desemboque<br />
num conflito de civilizações;<br />
9 – Que crie condições para<br />
a resolução do problema<br />
israelo-palestiniano,<br />
nomeadamente com<br />
exigências de moderação<br />
a Ariel Sharon;<br />
10 – Que não venha a<br />
provocar grandes aumentos<br />
do preço do petróleo,<br />
que muito prejudicariam,<br />
sobretudo, a Europa<br />
e Portugal.<br />
VISÃO 21 de Março de 2003 77
GUERRA DO GOLFO II Reacções em Portugal<br />
lREUNIÃO DO CONSELHO DE ESTADO<br />
Ninguém advogou o envolvimento de forças armadas portuguesas no cenário de guerra<br />
PAZ INSTITUCIONAL<br />
Tropa faz a ponte<br />
Jorge Sampaio recusou o envolvimento militar português no Iraque.<br />
Mas o ministro da Defesa, Paulo Portas, garante a capacidade das Forças Armadas<br />
PEDRO VIEIRA *<br />
Oenvolvimento ou não das Forças<br />
Armadas Portuguesas na coligação<br />
militar para derrubar Saddam<br />
Hussein tornou-se o ponto<br />
nevrálgico do entendimento entre o Presidente<br />
da República e o primeiro-ministro,<br />
na crise do Iraque. Jorge Sampaio rejeitou<br />
liminarmente esse envolvimento no «caso<br />
de não haver uma resolução específica do<br />
Conselho de Segurança». Durão Barroso,<br />
desde a visita à Áustria, há algumas semanas,<br />
repetiu, vezes sem fim, que Portugal<br />
não enviaria militares seus para o Golfo<br />
Pérsico. Num depoimento à VISÃO, porém,<br />
o ministro da Defesa, Paulo Portas<br />
fez questão de deixar claro que as Forças<br />
Armadas Portuguesas «já provaram e são<br />
capazes de cumprir as missões que o poder<br />
político lhes atribui».<br />
Ao que a VISÃO apurou, o Pentágono<br />
teria chegado a sondar a disponibilidade<br />
de Portugal para enviar efectivos para o<br />
Iraque. Fontes oficiais não só não nos<br />
confirmaram essa iniciativa, como adiantaram<br />
que essa disponibilização nunca<br />
chegou a ser ponderada. Apenas teorica-<br />
mente esse envio foi admitido, no quadro<br />
daquilo que o Governo definiu como<br />
«resposta graduada». Isto é, se o uso da<br />
força contra o Iraque tivesse sido especificamente<br />
aprovado pelo Conselho de Segurança,<br />
ficaria aberta a porta para um<br />
consenso entre o Presidente da República,<br />
o Governo e, por certo, o próprio Partido<br />
Socialista para a participação das<br />
Forças Armadas portuguesas no conflito.<br />
Sampaio em casa<br />
Não foi esse o desfecho do processo<br />
diplomático e, deste modo, Portugal, no<br />
78 VISÃO 21 de Março de 2003<br />
GONÇALO ROSA DA SILVA
JORGE SAMPAIO<br />
Unidade na diversidade<br />
Na Declaração dirigida ao País, às 20 e 30 do<br />
último dia 19, após a reunião do Conselho de<br />
Estado, o Presidente da República, Jorge Sampaio,<br />
assumiu divergências com o primeiro-<br />
-ministro, Durão Barroso, puxou dos galões ao<br />
deixar subentender que impusera ao Governo<br />
a não participação de militares portugueses<br />
no conflito e dirigiu um forte apelo à «unidade<br />
nacional». Eis os temas-chave dessa Declaração,<br />
na qual evitou a polémica acerca do<br />
fundamento jurídico para a prestação de facilidades<br />
na Base das Lajes.<br />
Guerra<br />
«A guerra deve ser sempre um último recurso,<br />
só surgindo como admissível uma<br />
vez esgotados todos os meios políticos para<br />
a evitar. Por isso, só é legítima, face ao<br />
Direito Internacional, nos casos claramente<br />
tipificados na Carta das Nações Unidas.»<br />
Regime de Saddam<br />
«Tal [o facto de a guerra ser o último recurso]<br />
não significa, como é óbvio, qualquer complacência<br />
com o regime iraquiano, que tem uma<br />
longa e deplorável história de actuações atentatórias<br />
à paz e à segurança internacionais,<br />
de flagrante desrespeito pelos direitos humanos<br />
e de desafio à autoridade do Conselho de<br />
Segurança. É obrigação do Iraque respeitar<br />
escrupulosamente não apenas a letra, como o<br />
espírito das resoluções das Nações Unidas,<br />
procedendo a um desarmamento completo e<br />
abstendo-se de manobras dilatórias.»<br />
Nações Unidas<br />
«Defendi sempre que seria necessário esgotar<br />
os caminhos pacíficos de solução, cabendo<br />
ao Conselho de Segurança, e só a<br />
este, decidir as opções a tomar, uma vez<br />
avaliado o trabalho dos inspectores. (...) É<br />
necessário, tão cedo quanto possível, que<br />
as Nações Unidas reassumam o papel central<br />
que lhes cabe como ponto de referência<br />
indispensável para as questões relativas<br />
à paz e à segurança mundiais.»<br />
plano militar, ficou-se pela cedência de<br />
facilidades na Base das Lajes. Combates,<br />
só pela televisão. Como milhares de portugueses,<br />
também Jorge Sampaio seguiu<br />
o início da ofensiva, na noite de 19 para<br />
20, na sua residência particular, depois<br />
de já conhecer o texto da declaração<br />
proferida mais tarde pelo primeiro-ministro.<br />
Durante a tarde, o Presidente da<br />
Constituição<br />
«É esta [a decisão do Conselho de Segurança,<br />
uma vez avaliado o trabalho dos<br />
inspectores], inquestionavelmente, a via<br />
que respeita a Carta das Nações Unidas e<br />
o Direito Internacional, que corresponde à<br />
tradição jurídico-cultural portuguesa reflectida<br />
na Constituição, e a que mais adequadamente<br />
corresponde aos interesses de um<br />
Estado como o nosso, proporcionando-lhe<br />
o sistema legal para defesa da sua soberania<br />
e para a regulação dos seus relacionamentos<br />
internacionais.»<br />
Forças Armadas Portuguesas<br />
«Tendo em conta a inexistência de um<br />
mandato expresso das Nações Unidas, as<br />
Forças Armadas Portuguesas não participarão<br />
neste conflito, não colaborarão nele,<br />
nem Portugal fará parte da coligação militar<br />
que se criar. Foi esta a minha posição,<br />
desde a primeira hora, para o caso de não<br />
haver uma resolução específica do Conselho<br />
de Segurança.»<br />
Base das Lajes<br />
«[Sem mencionar a Base das Lajes] Prestaremos<br />
aos nossos aliados facilidades de<br />
trânsito, à semelhança de outros países europeus,<br />
alguns dos quais têm expressado,<br />
aliás, fortes reservas a uma acção militar<br />
contra o Iraque.»<br />
O papel do Presidente<br />
«Foi este [não participação das Forças Armadas<br />
e cedência das Lajes] o entendimento que<br />
estabeleci com o Senhor Primeiro-Ministro.<br />
Outra posição do País não teria sido, para<br />
mim, aceitável. Com a legitimidade que me<br />
advém da eleição directa, compete-me resolver<br />
divergências ou conflitos institucionais<br />
quando surjam. Não fui eleito para me limitar<br />
a opinar sobre eles. Fui eleito para encontrar<br />
soluções, para estimular e construir entendimentos<br />
que assegurem, em circunstâncias como<br />
esta, a unidade nacional.»<br />
República ouviu o Conselho de Estado,<br />
ao longo de quatro horas. Dos 18 conselheiros,<br />
só não estiveram presentes Alberto<br />
João Jardim e José Manuel Galvão<br />
Teles. Devido a compromissos internacionais,<br />
Ferro Rodrigues e Vítor Constâncio<br />
abandonaram a sessão antes do<br />
seu termo. Ao que a VISÃO apurou, a<br />
reunião não produziu novidades de<br />
GUERRA DO GOLFO II<br />
Relação transatlântica<br />
«A via de consenso (...) teria sido o caminho<br />
desejável para preservar a unidade da<br />
Europa e da Aliança Atlântica. (...) Será necessário<br />
determinação para ultrapassar [as<br />
divisões políticas provocadas por esta crise],<br />
quer no plano europeu quer no domínio<br />
do relacionamento transatlântico, dois<br />
pilares afinal indispensáveis para – num<br />
quadro de recíproca confiança, de efectiva<br />
cooperação e de respeito mútuo – se defender<br />
o progresso e a estabilidade internacional.»<br />
Europa<br />
«A Europa tem que refazer a sua unidade,<br />
reafirmar com força um projecto comum,<br />
avançar nos caminhos da sua integração,<br />
reforçar a sua capacidade de afirmação<br />
externa.»<br />
P.V.<br />
monta quanto às posições conhecidas.<br />
Na quinta-feira, 20, Jorge Sampaio<br />
cumpriu a agenda prevista, tendo feito<br />
uma declaração de circunstância, na visita<br />
ao Grande Oriente Lusitano, na<br />
qual se dirigiu aos maçons: «Partilho<br />
das vossas preocupações pela hora difícil<br />
que vivemos e perfilho a inspiração<br />
humanista com que encarais a cons-<br />
VISÃO 21 de Março de 2003 79<br />
LUÍS BARRA<br />
▲
DURÃO BARROSO<br />
Que seja<br />
depressa e bem<br />
Era noite cerrada, passavam 15 minutos das<br />
quatro da manhã de 20 de Março, quando o<br />
primeiro-ministro se dirigiu aos portugueses<br />
para falar de guerra: «Acaba de ser desencadeada<br />
pelos Estados Unidos da América e por<br />
alguns dos seus aliados uma acção militar<br />
contra o regime iraquiano.» O chefe do Governo<br />
garantiu que não existiam motivos para<br />
alarme e apelou à coesão nacional.<br />
Regime iraquiano<br />
«Este é um conflito que não desejámos. Tudo<br />
fizemos para o evitar, por meios políticos e<br />
diplomáticos. Infelizmente não foi possível. A<br />
responsabilidade cabe exclusivamente ao regime<br />
iraquiano e à sua obstinação em não<br />
cumprir as resoluções impostas, desde há 12<br />
anos, pelas Nações Unidas.»<br />
Acção militar<br />
«Nesta hora difícil, Portugal reafirma o apoio<br />
aos seus aliados, com quem compartilha os<br />
valores da Liberdade e da Democracia, e faz<br />
TROPA FAZ A PONTE<br />
▲ AVIÕES DOS EUA NAS LAJES<br />
trução de um futuro melhor.» Ao almoço,<br />
teve como convidados Nuno Morais<br />
Sarmento, ministro da Presidência, e Figueiredo<br />
Lopes, da Administração Interna,<br />
para falarem sobre os imigrantes.<br />
Noitada de Durão<br />
Já passava das duas da<br />
manhã, e tinha expirado o<br />
prazo do ultimato dado<br />
por Bush a Saddam, quando<br />
Durão Barroso abandonou<br />
o seu gabinete no<br />
palacete de São Bento.<br />
Foi para casa convencido<br />
de que nenhuma ofensiva<br />
seria desencadeada nessa<br />
madrugada. Na tarde anterior<br />
recebera informações<br />
concisas sobre a iminência<br />
dos ataques, mas a<br />
hora H mantinha-se – à<br />
americana – classified<br />
Presidente e Governo<br />
concordaram com<br />
a utilização da base aérea<br />
pelos americanos<br />
votos para que esta seja uma acção tão rápida<br />
quanto possível e que cumpra todos os<br />
seus objectivos. Espero e desejo que a vida<br />
dos inocentes possa ser poupada e que o<br />
conflito termine com o mínimo de sofrimento<br />
para todas as partes.»<br />
Participação portuguesa<br />
«Como sempre dissemos, Portugal não en-<br />
(confidencial). Durão acabou por ficar<br />
pouco menos de uma hora em casa. Logo<br />
à entrada percebeu que, a 4 777 quilómetros<br />
de distância, no Iraque, começavam<br />
a cair as primeiras bombas.<br />
O primeiro-ministro telefonou ao seu<br />
staff e a alguns dos membros do Governo.<br />
Repetiu que a guerra tinha começa-<br />
volverá neste conflito quaisquer forças militares.<br />
Cabe-nos, no âmbito político, honrar os<br />
compromissos para com os nossos aliados<br />
através do apoio já disponibilizado.»<br />
Segurança<br />
«Acompanhamos em permanência o desenvolvimento<br />
das operações, prevenindo, com tempo,<br />
quaisquer repercussões para o nosso país. O<br />
Governo tudo fez e fará para reforçar a segurança<br />
dos portugueses, por forma a garantir a tranquilidade<br />
da vida nacional. Podem estar certos<br />
de que não existem motivos para alarme.»<br />
Paz<br />
«O Governo português, pensando no desfecho<br />
do conflito, dará o seu contributo para a<br />
construção da paz, esperando fazê-lo no quadro<br />
das Nações Unidas e da União Europeia,<br />
e deseja que desta crise possa resultar um<br />
mundo mais livre e mais seguro.»<br />
Unidade nacional<br />
«Estou certo de que os portugueses contribuirão<br />
com o seu esforço responsável para que,<br />
nesta hora difícil para o mundo, possamos<br />
fortalecer a nossa coesão e afirmar a nossa<br />
unidade nacional. É esse o nosso dever para<br />
com Portugal.» S.S.<br />
do a Figueiredo Lopes, Paulo Portas,<br />
Marques Mendes, José Luís Arnaut, Nuno<br />
Morais Sarmento e Martins da Cruz.<br />
E manteve-se em contacto com eles<br />
grande parte da noite, que acabou às 5 e<br />
10 da manhã.<br />
Depois do discurso de George W.<br />
Bush, às 3 da manhã, Durão Barroso<br />
80 VISÃO 21 de Março de 2003<br />
GONÇALO ROSA DA SILVA<br />
JOSÉ ANTÓNIO RODRIGUES
voltou a São Bento, na companhia do filho<br />
mais velho, Luís, 18 anos, que insistiu<br />
em acompanhá-lo. Às 4 e 15, três minutos<br />
chegaram-lhe para reafirmar que<br />
Portugal não envolverá quaisquer forças<br />
no conflito e garantir que não existem<br />
motivos para alarme. Foi o primeiro líder<br />
europeu a fazer uma declaração pública<br />
após o início dos bombardeamentos.<br />
A comunicação de dez parágrafos<br />
que leu ao País tinha sido escrita previamente<br />
e o Presidente da República já a<br />
conhecia. Durão e o filho ficaram ainda<br />
três quartos de hora em São Bento, depois<br />
da comunicação, seguindo a acção<br />
militar pela televisão. Às dez e meia, o<br />
primeiro-ministro estava de novo na residência<br />
oficial. Duas horas depois,<br />
voou de Falcon até Bruxelas, para participar<br />
na Cimeira da Primavera.<br />
A moção da T-shirt...<br />
Na Assembleia da República, na tarde<br />
de quinta-feira, 20, o Bloco de Esquerda fazia<br />
render o seu talento mediático. Os três<br />
deputados bloquistas surgiram na bancada<br />
envergando T-shirts pretas com os dizeres<br />
«Não, em nosso nome». Acabaram por<br />
deixar o hemiciclo depois de perderem<br />
uma votação que os obrigava a não estarem<br />
naquele preparo sob a cúpula da sala<br />
do plenário. Marques Guedes, do PSD,<br />
chegou a ironizar: «O que é que trarão vestido<br />
quando discutirmos o nudismo...»<br />
... e a censura da oposição<br />
Hoje, sexta-feira, devem ser apresentadas<br />
quatro moções de censura ao Governo,<br />
subscritas pelo PS, PCP, Bloco e<br />
Verdes para serem discutidas no próximo<br />
dia 26. Na sua moção, o PS defende<br />
como prioridade «o empenhamento nas<br />
boas relações entre Portugal e os EUA,<br />
bem como entre os EUA e a União Europeia»,<br />
e responsabiliza o Governo pela<br />
quebra do «consenso nacional de<br />
mais de duas décadas na política externa».<br />
O PCP, por seu turno, lembra que<br />
sempre condenou os comportamentos<br />
de Saddam Hussein «quando os EUA o<br />
apoiavam e armavam». A ideia de que<br />
os «EUA devem necessariamente solicitar<br />
a Portugal autorização para o uso da<br />
Base das Lajes nestas novas condições»,<br />
consta da moção do Bloco de Esquerda.<br />
Os Verdes apontam para «as vítimas<br />
inocentes desta orgia de violência» e para<br />
«a catástrofe humanitária e ecológica»<br />
que aí vem. ■<br />
* COM INÊS RAPAZOTE E SÓNIA SAPAGE<br />
lBLAIR ENTRE PAPANDREU E SIMITIS<br />
Consenso quanto ao futuro do Iraque abafou divergências entre os Quinze<br />
Oprimeiro-ministro reafirmou a<br />
«prioridade» da União Europeia,<br />
após a Cimeira de ontem, 20, à<br />
noite, em Bruxelas, dedicada ao<br />
Iraque. «Para Portugal, não há nada mais<br />
importante no domínio externo que a<br />
UE.» Mas acrescentou que a Europa não<br />
deve fechar-se «sobre si mesma», mas privilegiar<br />
a «parceria transatlântica».<br />
Apesar das divergências das últimas<br />
semanas, polarizadas, so-<br />
bretudo, pela França e<br />
pela Inglaterra, os Quinze<br />
decidiram voltar-se<br />
para o futuro e definir as<br />
condições e objectivos da<br />
reconstrução do Iraque.<br />
Entre esses objctivos, o<br />
primeiro-ministro português<br />
apontou o desarmamento<br />
completo de Bagdad,<br />
o reconhecimento<br />
dos direitos do povo iraquiano<br />
e de várias minorias,<br />
o papel da ONU no<br />
auxílio humanitário e na<br />
reconstrução do Iraque,<br />
GUERRA DO GOLFO II<br />
CIMEIRA EUROPEIA<br />
UE tenta colar os cacos<br />
O futuro do Iraque marcou o Conselho da Primavera<br />
dedicado à «estratégia de Lisboa»<br />
sobre a competividade e o conhecimento<br />
Turquia: Os Quinze<br />
apelam à preservação<br />
da integridade territorial<br />
do Iraque<br />
Durão Barroso: Para<br />
Portugal, não há nada mais<br />
importante no domínio<br />
externo do que<br />
a União Europeia<br />
Paris: Só a ONU tem<br />
legitimidade para coordenar<br />
a reconstrução do Iraque<br />
soluções para o Médio Oriente, o aprofundamento<br />
do diálogo com o mundo<br />
árabe e islâmico, e o reforço da Política<br />
Externa de Segurança e Defesa. Dirigindo-se,<br />
em concreto, à Turquia e a outros<br />
países da região, os Quinze apelaram à<br />
preservação da integridade territorial<br />
do Iraque.<br />
Ainda antes do início da cimeira, a futura<br />
administração do Iraque suscitou<br />
uma tomada de posição<br />
da França. Para Paris, só<br />
as Nações Unidas têm legitimidade<br />
para tratar da<br />
coordenação da comunidade<br />
internacional sobre<br />
«as questões de estabilização<br />
e reconstrução do Iraque».<br />
Uma observação a<br />
que não é alheia a nomeação<br />
do general norte-americano<br />
na reserva, Jay<br />
Garner, um amigo do secretário<br />
da Defesa, Donald<br />
Rumsfeld, para administrador<br />
civil provisório<br />
do Iraque. ■ P.V.<br />
VISÃO 21 de Março de 2003 81<br />
FRANCOIS LENOIR/REUTERS
GUERRA DO GOLFO II<br />
CONTRA BUSH<br />
E DURÃO<br />
Os protestos frente<br />
à embaixada<br />
americana<br />
PROTESTOS<br />
A outra superpotência<br />
Os manifestantes globais querem derrotar a guerra,<br />
gritando palavras de ordem e organizando protestos<br />
em simultâneo em todo o mundo. O primeiro alvo<br />
foram as embaixadas dos EUA<br />
PAULO PENA E LUÍS RIBEIRO<br />
Estava prometido: assim que caíssem<br />
as primeiras bombas em<br />
Bagdad, os opositores da guerra,<br />
reunidos no Fórum Social Mundial,<br />
sairiam às ruas das principais cidades<br />
do mundo. Assim foi. Ontem, quinta-feira,<br />
20, Lisboa viu cinco telas brancas<br />
gigantes caírem das ameias e torreões<br />
do Castelo de São Jorge, uma caravana<br />
de automóveis a debitar o som<br />
das sirenes antiaéreas e uma concentração<br />
de 2 mil pessoas em frente da<br />
embaixada dos EUA.<br />
Voltaram os cartazes que exibem Durão<br />
Barroso com o chapéu do Tio Sam,<br />
empunhando uma pistola. Voltaram os<br />
gritos de «paz sim, guerra não». À porta<br />
da residência oficial do primeiro-ministro<br />
(ausente em Bruxelas, onde participa<br />
numa reunião do Conselho Europeu),<br />
a caravana automóvel da União<br />
de Sindicatos de Lisboa, da CGTP, pôs<br />
as buzinas a gritar. Antes, no ponto de<br />
partida, às quatro da tarde, no Rossio<br />
(agora baptizado de Praça da Paz), alternavam-se<br />
discursos contra a guerra,<br />
com altifalantes sindicalistas a incentivar<br />
o combate ao Pacote Laboral e às<br />
privatizações. Mas «sinto repúdio pelo<br />
que está a acontecer no Iraque», diz Vítor<br />
Oliveira, 55 anos, enquanto se esconde<br />
atrás de um cartaz negro com a<br />
inscrição «irracionais», emoldurada por<br />
esqueletos de borracha «para as pessoas<br />
perceberem o que é a guerra». Para os<br />
que já perceberam, trata-se de organizar<br />
a resistência. A apresentadora de televisão<br />
Maria João Seixas e a jornalista<br />
Diana Andringa juntaram-se às autarcas<br />
de Palmela, Ana Teresa Vicente<br />
(PCP), de Salvaterra, Ana Cristina Ribeiro<br />
(BE), à professora universitária<br />
Isabel Allegro e às socialistas Ana Catarina<br />
Mendes e Maria Carrilho, para lançarem<br />
um apelo – que lembra as manifestações<br />
pela autodeterminação de Timor:<br />
colocar lençóis brancos nas janelas<br />
e varandas.<br />
No alto da colina do Castelo, os panos<br />
não resistiram muito tempo. Alguns<br />
elementos da Polícia Municipal (PM),<br />
trajando à civil, acabaram com a acção<br />
lPANOS BRANCOS NO CASTELO DE SÃO JORGE<br />
Os opositores à guerra querem vê-los nas janelas e varandas de todo o País<br />
82 VISÃO 21 de Março de 2003<br />
LUÍS BARRA<br />
GONÇALO ROSA DA SILVA
de protesto «por ordem da Presidência<br />
da Câmara». Enrolaram as faixas brancas<br />
e levaram-nas para uma carrinha,<br />
ante os olhares incrédulos das manifestantes.<br />
Quando questionado, o comandante<br />
da PM adiantou que devolveria<br />
os materiais logo que os repórteres presentes<br />
guardassem os blocos e as máquinas<br />
fotográficas. Diana Andringa<br />
não conteve uma exclamação indignada:<br />
«Sabe que neste país há liberdade<br />
de imprensa?!»<br />
‘Querem petróleo...?’<br />
Por volta das seis da tarde, efectua-se<br />
a grande concentração em frente da<br />
embaixada dos EUA, onde já se acotovelavam<br />
centenas de manifestantes, dezenas<br />
de agentes fardados e mais alguns<br />
à paisana. As bandeiras brancas misturavam-se<br />
com as vermelhas do PCP, os<br />
discursos intercalavam-se com as palavras<br />
de ordem «Bush, escuta, os povos<br />
estão em luta» e «A-ssa-ssi-no» — durante<br />
horas, o silêncio não encontrou<br />
ali lugar.<br />
Camané deixou-se adormecer, na véspera,<br />
com a televisão ligada. Às duas e<br />
35 da madrugada, acordou com os mísseis<br />
lançados sobre Bagdad. «O mais<br />
importante é mudar as consciências das<br />
pessoas que estão a fazer a guerra. Por<br />
isso, estou aqui», afirmou o fadista-sensação.<br />
O seu produtor, José Mário Branco,<br />
é mais contundente: «Esta guerra é<br />
um assalto à mão armada do novo império.<br />
Nós estamos a exercer o nosso direito<br />
de cidadania, contra a vergonha<br />
deste Governo.»<br />
«Se calhar não conseguimos mudar<br />
nada, mas, pelo menos, tentamos», declarou<br />
Lúcia Moniz, actriz e cantora, à<br />
porta da embaixada americana. Por seu<br />
lado, Pedro Namora, o advogado ex-<br />
-aluno da Casa Pia, quer mostrar ao<br />
mundo que os portugueses «não estão<br />
adormecidos» perante o que classifica<br />
como um «crime». «Em que mundo<br />
vão viver as nossas crianças? Num em<br />
que vale a lei do mais forte e não a da<br />
razão?»<br />
Já a pensar nas manifestações que, no<br />
sábado, 22, prometem encher as ruas<br />
das principais cidades do planeta (em<br />
Lisboa, a concentração está marcada<br />
para as 15 horas, no Marquês do Pombal),<br />
vão-se afinando as gargantas e a<br />
criatividade. Entre as dúzias de cartazes<br />
exibidos na quinta-feira, um sobressaía:<br />
«Se quiserem petróleo, vão buscá-lo à<br />
Galiza!» ■<br />
GUERRA DO GOLFO II<br />
COMUNICAÇÃO SOCIAL<br />
Às cegas?<br />
Os portugueses seguem os ataques a Bagdad<br />
através dos cinco jornalistas portugueses<br />
que se mantêm na capital iraquiana<br />
LUÍS RIBEIRO<br />
Corremos o risco de ficar sem os<br />
nossos olhos em Bagdad. Os cinco<br />
jornalistas portugueses, assim<br />
como os quase 300 de todo o<br />
mundo, que permanecem na capital iraquiana<br />
viram ontem, quinta-feira, serlhes<br />
retirado o direito de usarem os videofones<br />
e os telefones-satélite. Elementos<br />
ao serviço do regime de Saddam revistaram<br />
os quartos de repórteres, que tiveram<br />
de esconder os equipamentos.<br />
O videofone é uma máquina do tamanho<br />
de um vídeo – ao qual se pode ligar<br />
uma câmara de televisão e um microfone<br />
– que codifica os sinais recebidos de áudio<br />
e vídeo, de forma a poderem ser transmitidos<br />
por uma linha telefónica RDIS. Em<br />
zonas onde não é possível usar uma linha<br />
fixa, utiliza-se o telefone-satélite para<br />
transmitir esses sinais, através do serviço<br />
Global Area Network, da Inmarsat, um<br />
sistema de satélites de comunicação. O<br />
problema desta tecnologia salta à vista:<br />
imagens de fraca qualidade, devido ao<br />
facto de as linhas telefónicas (pensadas<br />
lBAGDAD DEBAIXO DE FOGO<br />
Por quanto tempo vai ser possível ver estas imagens?<br />
para transportarem apenas a voz) terem<br />
uma pequena largura de banda.<br />
A apreensão dos videofones é mais um<br />
obstáculo a quem já não tem a vida facilitada.<br />
Bush, no seu discurso do ultimato,<br />
aconselhou os jornalistas a abandonarem<br />
o Iraque, dando a entender que a sua segurança<br />
não estava garantida. Isto porque,<br />
além dos bombardeamentos americanos,<br />
subsistia a hipótese de estes profissionais<br />
serem usados como escudos humanos,<br />
ou sofrerem retaliações do regime<br />
iraquiano. Mas os jornalistas portugueses<br />
que optaram por continuar em Bagdad<br />
(Paulo Camacho e Renato Freitas, da<br />
SIC, Carlos Fino e Nuno Patrício, da<br />
RTP, e Daniel do Rosário, da Rádio Renascença<br />
e do Expresso) têm estado entre<br />
os melhores – aliás, a SIC e a RTP foram<br />
mesmo as primeiras estações televisivas<br />
de todo o mundo a cobrir, em directo,<br />
o bombardeamento do palácio presidencial.<br />
Segundo a Rede Globo, os dois<br />
canais portugueses transmitiram as imagens<br />
dez minutos antes da CNN, o canal<br />
norte-americano que se notabilizou durante<br />
a (primeira) Guerra do Golfo. ■<br />
VISÃO 21 de Março de 2003 83<br />
FALEH KHEIBER/REUTERS
GUERRA DO GOLFO II<br />
SEGURANÇA<br />
Em estado<br />
‘Bravo’<br />
As Forças Armadas<br />
adoptaram o segundo<br />
grau de emergência.<br />
Mas sem alarmismos<br />
ALEXANDRA CORREIA<br />
As forças militares portuguesas entraram<br />
ontem, quinta-feira, em<br />
estado «Bravo». O que significa<br />
um reforço da segurança interna<br />
e externa das unidades. Há um maior controlo<br />
nas entradas, condiciona-se o estacionamento<br />
de viaturas perto dos edifícios militares,<br />
examina-se cuidadosamente o correio<br />
e aumenta-se a segurança em instalações<br />
estratégicas como as barragens, as<br />
centrais eléctricas, os depósitos de combustíveis<br />
e de água. O estado «Bravo» é o segundo<br />
numa escala de quatro. Ainda assim,<br />
as medidas adicionais de segurança, em<br />
Portugal, são moderadas, sem alarmismos.<br />
Nas ruas, há mais polícias, nos portos e<br />
aeroportos mais agentes do Serviço de Estrangeiros<br />
e Fronteiras (SEF). Áreas simbólicas,<br />
como, por exemplo, o Santuário de<br />
Fátima, ganham uma «atenção <strong>especial</strong>».<br />
Os sinais mais parecidos com um vago «estado<br />
de sítio» são as metralhadoras, nas<br />
mãos de três guardas, junto dos portões da<br />
embaixada dos Estados Unidos, em Lisboa.<br />
Nos aeroportos, porém, a segurança está<br />
bem mais apertada. Os passageiros, além do<br />
habitual sistema de detecção de metais, são<br />
agora revistados manualmente. As aeronaves<br />
são inspeccionadas, através de diferentes<br />
sistemas de vigilância. Joaquim Carvalho,<br />
director de Segurança no Instituto Nacional<br />
de Aviação Civil, explica ainda que se<br />
dá maior atenção a determinados voos,<br />
com um potencial de risco superior. É o caso<br />
das viagens para os Estados Unidos ou<br />
em companhias aéreas norte-americanas.<br />
«De momento, o tráfego europeu está normalíssimo.<br />
As medidas em carteira, além de<br />
garantirem a segurança do voo, pretendem<br />
dar confiança aos passageiros», diz.<br />
Sempre alerta<br />
A grande azáfama para segurar o País verifica-se,<br />
<strong>especial</strong>mente, nos gabinetes.<br />
lEMBAIXADA DOS EUA EM LISBOA<br />
A única face visível da «anormalidade»<br />
A governadora civil de Lisboa, Teresa Caeiro,<br />
diz que não é habitual falar várias vezes<br />
ao dia com o delegado regional da Protecção<br />
Civil, com os bombeiros, com as forças<br />
policiais. Não é habitual, mas acontece, por<br />
estas horas. «Aumentámos o nosso grau de<br />
sensibilidade e alerta», afirma. Citado pela<br />
Lusa, o ministro da Administração Interna,<br />
Figueiredo Lopes, sublinhou que «não houve<br />
indicações de que o território e os interesses<br />
nacionais estivessem sob a ameaça<br />
do terrorismo», mas a vigilância é permanente.<br />
«Não estamos em alerta máximo,<br />
estamos em atenção adequada à situação<br />
internacional», garantiu.<br />
A Câmara Municipal de Lisboa encontra-se<br />
em alerta «amarelo», ou seja, todos<br />
os serviços da autarquia se mantêm em permanente<br />
contacto com a direcção municipal<br />
da Protecção Civil. Este alerta, segundo<br />
um comunicado da Câmara, «compreende<br />
a iminência de situações de emergência que<br />
podem potenciar o desenvolvimento de<br />
consequências mais gravosas».<br />
Ao serviço 24 horas por dia está o Gabinete<br />
Coordenador da Segurança, órgão do<br />
Ministério da Administração Interna<br />
A nostalgia do ‘bunker’<br />
Houve, em tempos, um bunker no Palácio de<br />
São Bento. Não era propriamente um bunker,<br />
porque tinha janelas e este tipo de abrigos não<br />
se podem dar a esses luxos. Mas era o nome<br />
que os sociais-democratas davam à sala de 50<br />
metros quadrados, no rés-do-chão da residência<br />
oficial. Bunker, porque, com Cavaco Silva,<br />
era ali que se reuniriam as entidades competentes<br />
para fazerem face a uma crise. Bunker<br />
porque a sala, embora com janelas para o jardim,<br />
tinha, atrás de uma porta de cofre, um ar<br />
soturno. E o recheio resumia-se a uma mesa,<br />
umas cadeiras, dois telefones, dois vídeos e três<br />
televisões antigas na parede.<br />
(MAI), liderado pelo general Leonel Carvalho.<br />
Coordena-se ali a informação proveniente<br />
das diversas forças policiais, que aumentaram<br />
os seus efectivos. «Estamos a tomar<br />
medidas parecidas com as que activámos<br />
depois do 11 de Setembro de 2001»,<br />
diz Leonel Carvalho.<br />
O MAI mantém um contacto estreito<br />
com Ministério da Defesa, onde funciona<br />
um outro órgão, em grande actividade nesta<br />
altura, o Conselho Nacional de Planeamento<br />
Civil de Emergência. Todos os sectores<br />
fundamentais do País passam por aqui,<br />
assegurando-se, em caso de crise, que comunicações,<br />
saúde, transportes, indústria,<br />
agricultura e protecção civil continuem a<br />
funcionar.<br />
No Ministério da Saúde, funciona uma<br />
task-force. É coordenada pelo secretário de<br />
Estado da Saúde, Carlos Martins, e inclui<br />
responsáveis da direcção-geral da Saúde,<br />
do INEM, do Instituto Nacional do Sangue,<br />
etc. E no Ministério dos Negócios Estrangeiros,<br />
a recém-criada Célula de Gestão<br />
de Crises estará sempre em funcionamento,<br />
enquanto houver guerra, a tratar informação<br />
classificada. ■<br />
Mas nunca foi usada. Guterres decidiu remodelá-la<br />
e criar uma sala de Conselho de Ministros.<br />
Afinal, as reuniões habituais do Executivo «laranja»<br />
eram, na altura, realizadas no piso nobre,<br />
«sem privacidade». A porta de cofre foi<br />
substituída por uma com barreira acústica,<br />
duas janelas passaram a portas e mudou-se o<br />
mobiliário.Aí passaram a reunir-se os ministros<br />
«rosa». Hoje, com o regresso do PSD ao poder,<br />
renasceu o gabinete de crise. Não em São Bento,<br />
mas no Largo das Necessidades. A explicação,<br />
irónica, é de um socialista: «Martins da<br />
Cruz, que foi assessor de Cavaco Silva, deve ter<br />
sentido a nostalgia daquela sala de crise.»<br />
84 VISÃO 21 de Março de 2003<br />
LUÍS BARRA
Aguerra está no terreno. Além do resto: 1) contra os<br />
mais elementares princípios humanistas (e cristãos)<br />
de valorizar a paz como bem supremo e só a<br />
fazer num caso extremo, como último recurso, o<br />
que manifestamente não era o caso; 2) contra o direito à<br />
vida e à tranquilidade de populações indefesas que foram<br />
as maiores vítimas do execrando tirano de Bagdad e agora<br />
são as maiores vítimas daqueles que por este meio o querem<br />
derrubar, mas não só; 3) contra o Direito Internacional,<br />
a carta da ONU e a própria ONU, sabendo os EUA<br />
que o Conselho de Segurança rejeitaria a moção que, por<br />
isso mesmo, desistiram de apresentar; 4) contra a opinião<br />
(como as sondagens confirmam) da imensa maioria dos cidadãos<br />
do mundo, que, por toda a parte, se manifestam, e<br />
da generalidade dos grandes vultos e figuras morais de todo<br />
o mundo, incluindo dos EUA.<br />
A guerra está no terreno, se de guerra se pode falar, dada<br />
a imensa desproporção de forças em<br />
confronto, a óbvia fraqueza iraquiana,<br />
não obstante as farroncas do ainda por<br />
cima arrogante ditador. E uma das coisas<br />
que se irá ver é se o Iraque tem ou<br />
não armas de destruição maciça: recorde-se<br />
que G. W. Bush garantiu que sim,<br />
apesar de os inspectores das Nações<br />
Unidas não as terem encontrado e haverem<br />
pedido mais tempo para prosseguir<br />
o seu trabalho, após o Iraque haver, inclusive,<br />
destruído mísseis cujo alcance<br />
ultrapassava em 30 km o limite imposto pela ONU. Espero<br />
que, ao menos, de facto, o Iraque não tenha essas armas,<br />
a guerra seja breve, os bombardeamentos visem só<br />
alvos militares e os responsáveis pelo regime, haja o menor<br />
número possível de vítimas inocentes. Confesso que é,<br />
sobretudo, nisto que penso quando escrevo esta crónica.<br />
Penso nas crianças, nas mulheres, nos homens, nos jovens<br />
e nos velhos, em toda essa imensidão de pessoas concretas,<br />
que não são pontos num mapa, números de estatísticas,<br />
abstractas vítimas de uns abstractos e tecnocratas danos<br />
colaterais, em toda essa imensidão de pessoas concretas,<br />
repito, que têm rosto, nome, família, problemas, aspirações,<br />
sonhos! São elas que sobretudo contam e são as<br />
mais esquecidas pelos donos do mundo.<br />
Não posso deixar de comentar, entretanto, a posição portuguesa.<br />
Em particular, a intervenção do Presidente da<br />
República, dado que, na nossa edição semanal de ontem,<br />
quinta-feira, já se falou da deplorável «farsa» das Lajes:<br />
farsa – infelizmente não cómica mas dramática... – em<br />
sentido teatral, vicentino, de que o nosso primeiro-ministro<br />
não foi encenador, nem actor, mas mero contra-regra.<br />
Na sua comunicação ao País, Jorge Sampaio reafirmou de<br />
JOSÉ CARLOS DE VASCONCELOS<br />
Unidade, mas que unidade?<br />
❝Jorge Sampaio<br />
reafirmou de forma clara<br />
a sua posição quanto<br />
à guerra em curso. Mas<br />
apelou a uma unidade<br />
que não se sabe qual é ❞<br />
GUERRA DO GOLFO II<br />
forma clara a posição já antes por si assumida, contra a<br />
guerra e o ataque dos EUA ao Iraque, à revelia do Conselho<br />
de Segurança, ou, em última análise, contra ele; posição, como<br />
se sabe, diametralmente oposta àquela a que o Governo<br />
«amarrou» Portugal. Mais, deixou subentendido que o Executivo<br />
teria querido ir mais longe, pretendendo não só permitir<br />
a incondicional utilização da Base das Lajes, como<br />
permitiu, com a sua concordância, não só apoiar a posição<br />
de Bush, como apoiou, mas ainda comprometer as nossas<br />
Forças Armadas com a chamada «coligação militar» aliada.<br />
Não o «autorizando», ou estabelecendo com Durão Barroso<br />
um consenso nos termos do qual isso não chegaria a ser-<br />
-lhe proposto, e em compensação ele, Presidente, se limitaria<br />
a declarações como as que proferiu – Jorge Sampaio agiu<br />
seguramente, com a convicção de estar a fazer o melhor para<br />
o País; e do mesmo passo mostrou o seu entendimento<br />
dos poderes presidenciais e o estilo com que os exerce.<br />
No mínimo, porém, terá de admitir<br />
que a generalidade dos seus eleitores,<br />
considerando essencial ser ele o Chefe<br />
de Estado de todos os portugueses sem<br />
distinções, esperavam que, na defesa de<br />
certas posições essenciais, pusesse, pelo<br />
menos, o mesmo vigor com que, de modo<br />
estranho, disse ser «ridículo» classificar<br />
de «conflito institucional» a frontal<br />
divergência entre a posição do Governo<br />
e a sua sobre matéria tão importante.<br />
No final do meu último comentário escrevi que a atitude de<br />
Sampaio neste «embate» daria aos portugueses a medida daquilo<br />
de que era capaz e para que servia ou não o Presidente.<br />
Cada um fará o seu juízo, que não é simples, nem – para mim<br />
– a preto e branco... Quanto à avaliação do seu apelo, a propósito<br />
da guerra em curso, à «unidade nacional», cabe perguntar:<br />
unidade à volta de quê? Da sua posição ou da posição<br />
do Governo? Ou entende o Presidente que, a partir de agora,<br />
a posição do País é a do Governo e todos a devem apoiar?<br />
Não creio. Primeio, porque não pode haver unidade em torno<br />
de um posição que é, além do mais, contra o Direito Internacional<br />
e a ONU; e, depois, porque a ser assim, ele próprio nunca<br />
devia ter falado, ou, pelo menos, não devia ter reafirmado<br />
o que reafirmou.<br />
Deste modo, julgo que o Presidente apenas quis fazer<br />
– mas de forma infeliz, ou um pouco desastrada – um<br />
compreensível apelo à não dramatização da situação.<br />
É ilegítimo, creio eu, a partir daqui, os partidos que sustentam<br />
o Governo concluírem que os da oposição deviam<br />
retirar as suas anunciadas moções de censura. No entanto,<br />
a interpretação que fazem das palavras de Sampaio devem<br />
servir de incentivo para que, em algumas suas intervenções,<br />
ou parte delas, seja mais claro e menos ambíguo.<br />
VISÃO 21 de Março de 2003 85
GUERRA DO GOLFO II Tomadas de posição<br />
REACÇÕES NO MUNDO<br />
Mobilização geral pela paz<br />
Enquanto as ruas de muitas capitais são palco de um protesto quase globalizado<br />
contra a guerra, os governos tomam posição em lados opostos da trincheira<br />
Um pouco por todo o planeta,<br />
com <strong>especial</strong> incidência na Europa,<br />
milhões de activistas antiguerra<br />
têm vindo a mobilizar-se<br />
– sobretudo desde a madrugada de dia<br />
20 – para protestarem contra a invasão<br />
Contagem decrescente<br />
Da Cimeira dos Açores aos dias da guerra<br />
DOMINGO, 16<br />
18h35: Depois de<br />
uma reunião a quatro,<br />
na Base das Lajes,<br />
George W. Bush, Tony<br />
Blair, José María Aznar<br />
e Durão Barroso<br />
anunciaram um prazo<br />
de 24 horas para<br />
a solução diplomática<br />
da crise no Iraque.<br />
19h15: Saddam<br />
responde à Cimeira<br />
dos Açores, dizendo<br />
que é uma grande<br />
mentira que o Iraque<br />
do Iraque por uma poderosa coligação<br />
militar liderada pelos EUA. De uma forma<br />
geral, nas capitais do Velho Continente<br />
foi marcado encontro ao fim da<br />
tarde de quinta-feira diante das embaixadas<br />
da superpotência mundial, mas<br />
possua armas de<br />
destruição maciça e<br />
admite que os seus<br />
homens responderão<br />
aos ataques, retaliando<br />
onde quer que haja<br />
céu, água ou terra.<br />
22h00: O inspector das<br />
em Paris, por exemplo, a grandiosa Praça<br />
da Concórdia foi o ponto escolhido<br />
por milhares de franceses antiguerra para<br />
expressarem a sua revolta e o apoio à<br />
posição oficial do Presidente e do Executivo<br />
do seu país.<br />
Nações Unidas, Hans<br />
Blix, reage ao ultimato,<br />
afirmando que lhe<br />
parece haver divisões<br />
nos discursos dos quatro<br />
líderes.<br />
SEGUNDA-FEIRA, 17<br />
15h05: Os EUA, a<br />
Grã-Bretanha e a<br />
Espanha decidem<br />
retirar a sua resolução,<br />
desistindo, assim, de<br />
ter o apoio das Nações<br />
Unidas.<br />
86 VISÃO 21 de Março de 2003<br />
BRENDAN MCDERMID/REUTERS
Em Roma, uma vigília nocturna foi<br />
convocada para diante da embaixada<br />
americana e um sit-in para junto da Câmara<br />
de Deputados. O alinhamento do<br />
Governo de Berlusconi com as teses da<br />
Administração Bush não encontrou qualquer<br />
eco junto de uma população italiana<br />
que encheu as cidades da «bota» de<br />
bandeirolas com a palavra pace (paz) e<br />
desde o início da crise se tem desdobrado<br />
em manifestações de repúdio tanto da<br />
opção do Executivo como da própria política<br />
de Washington. Recorde-se que no<br />
célebre 13 de Fevereiro, dia do protesto<br />
global antiguerra, 3 milhões de pessoas se<br />
18h00: O secretário-<br />
-geral das Nações<br />
Unidas, Kofi Annan,<br />
anuncia que os<br />
inspectores e o pessoal<br />
humanitário devem<br />
abandonar o Iraque.<br />
18h08: Em Portugal,<br />
o Presidente da<br />
República, Jorge<br />
Sampaio, convoca<br />
o Conselho de Estado<br />
para quarta-feira,<br />
dia 19.<br />
18h27: À semelhança<br />
do PS, do BE e do PEV,<br />
concentraram na capital da Itália, naquela<br />
que foi uma das maiores movimentações<br />
de massas civis de que há memória<br />
na história da civilização ocidental. E um<br />
mês mais tarde, um milhão seguiu-lhes o<br />
exemplo na capital económica do país,<br />
Milão. Na última quarta-feira, Nápoles<br />
foi cenário de uma manifestação de grandes<br />
proporções.<br />
Ainda no mesmo país – onde a firme<br />
posição contra a guerra manifestada pelo<br />
Vaticano (o Papa considerou o conflito<br />
ilegal) encontrou grande eco e contribuiu<br />
para consciencializar os mais indecisos<br />
–, o Movimento dos Disobbedien-<br />
o PCP dá a conhecer<br />
a intenção de entregar<br />
uma moção de censura<br />
ao Governo, no<br />
Parlamento.<br />
21h00: Robin Cook, um<br />
dos ministros de Tony<br />
Blair, apresenta a sua<br />
WASHINGTON E JACARTA<br />
A polícia da capital federal americana procedeu<br />
a detenções durante uma marcha de protesto<br />
rumo à residência do secretário da Defesa,<br />
Donald Rumsfeld. Na distante Indonésia,<br />
numa outra manifestação antiguerra, eram<br />
visíveis retratos de George W. Bush com caninos<br />
de vampiro e a legenda «Autêntido Demónio»<br />
ti, partidários da desobediência civil,<br />
pretende impedir por meio de acções<br />
não-violentas a descolagem de aviões de<br />
apoio logístico às forças anglo-americanas<br />
envolvidas no assalto ao Iraque. Estes<br />
disobbedienti têm, nas últimas se-<br />
demissão, na Câmara<br />
dos Comuns. Dez horas<br />
depois, o ministro<br />
da Saúde segue-lhe<br />
o exemplo.<br />
TERÇA-FEIRA, 18<br />
01h00: George W. Bush<br />
dá um prazo de<br />
48 horas a Saddam<br />
Hussein e aos filhos<br />
para abandonarem<br />
o território e aconselha<br />
as tropas iraquianas<br />
VISÃO 21 de Março de 2003 87<br />
▲<br />
BEAWIHARTA/REUTERS<br />
▲
▲<br />
GUERRA DO GOLFO II<br />
MOBILIZAÇÃO GERAL PELA PAZ<br />
manas, conseguido penetrar por diversas<br />
vezes em bases aéreas e destruir reservas<br />
de combustível para aeronaves.<br />
Na Grécia, milhares de manifestantes<br />
concentraram-se dia 20 frente à representação<br />
diplomática de Washington em<br />
Atenas, protegida por uma cordão de<br />
agentes do corpo de intervenção da polícia.<br />
Na véspera à noite, ao expirar o<br />
prazo do ultimato, decorrera no mesmo<br />
local uma vigília à luz das velas e ao som<br />
de cânticos pacifistas e anti-imperialistas.<br />
Na segunda cidade helénica, Salónica,<br />
centenas de fiéis haviam-se reunido<br />
na catedral para uma vigília de oração,<br />
ao que se seguiu uma ocupação temporária<br />
do consulado britânico por duas<br />
dezenas de militantes do Fórum Social<br />
Grego.<br />
Espanhóis e ingleses<br />
contra os governos<br />
Em Espanha, não obstante o alinhamento<br />
do Executivo de José María Aznar<br />
com os principais senhores da guerra,<br />
é muito forte a mobilização contra o<br />
novo conflito do Golfo – e, por tabela,<br />
contra o próprio Governo de Madrid,<br />
que atingiu níveis de popularidade baixíssimos<br />
e impossíveis de prever aquando<br />
da sua reeleição por maioria absoluta.<br />
Por isso mesmo, a Plataforma Espanhola<br />
Contra a Guerra convocou manifestações<br />
não apenas para diante da embaixada<br />
americana na capital, mas<br />
igualmente para junto de alguns edifícios<br />
governamentais e das sedes do PP,<br />
o partido do poder.<br />
Na «frente interna» do principal parceiro<br />
bélico de George W. Bush – a Grã-<br />
-Bretanha – está convocada uma grande<br />
manifestação de repúdio para amanhã,<br />
sábado, em Londres. Uma campanha de<br />
desobediência civil pacífica foi entretanto<br />
lançada pela Coligação contra uma<br />
▲<br />
CONTAGEM DECRESCENTE<br />
a não morrerem por um<br />
regime que vai cair.<br />
11h10: John Denham<br />
torna-se no terceiro<br />
ministro britânico a<br />
abandonar o Governo<br />
por causa da crise<br />
iraquiana.<br />
14h00:Uma televisão<br />
FRANCK PREVEL/AP<br />
MURAD SEZER/AP<br />
iraquiana transmite a<br />
notícia de que Saddam<br />
Hussein rejeita o<br />
ultimato e não<br />
pretende exilar-se.<br />
15h00: Debate mensal,<br />
antecipado, com o<br />
primeiro-ministro Durão<br />
Barroso, na Assembleia<br />
Guerra no Iraque, sob a forma de paragens<br />
de trabalho nas empresas e sit-ins<br />
nas universidades.<br />
Curiosa e digna de registo foi a actuação<br />
de uma militante pacifista que conseguiu<br />
infiltrar-se na base aérea de Leuchars<br />
da RAF e avariar à martelada um<br />
avião Tornado. As imediações de outra<br />
base – a de Fairford – vêm acolhendo<br />
desde há um mês um «campo da paz»<br />
ali instalado por um grupo de activistas.<br />
Em declarações, na quarta-feira, ao jor-<br />
da República (a data<br />
inicial era 26 de Março).<br />
22h00: Tony Blair ganha<br />
o apoio da Câmara dos<br />
Comuns, apesar de 139<br />
deputados do Partido<br />
Trabalhista terem votado<br />
contra a proposta do<br />
primeiro-ministro.<br />
nal francês Le Monde, uma porta-voz<br />
desse movimento sublinhou que «a<br />
maioria das pessoas no Reino Unido está<br />
horrorizada com o que se passou ontem<br />
à noite [no Iraque], mas a sua opinião<br />
é ignorada pelo pequeno grupo que<br />
governa».<br />
Também uma base aérea – a de Antuérpia<br />
– foi o local escolhido por manifestantes<br />
belgas para darem a conhecer<br />
a sua repulsa pela intervenção militar<br />
anglo-americana no Iraque.<br />
QUARTA-FEIRA, 19<br />
07h00: Há relatos<br />
de grandes<br />
tempestades de areia,<br />
no deserto do Kuwait,<br />
onde as forças<br />
britânicas avançam.<br />
08h00: Mais um<br />
ministro, David Kidney,<br />
abandona o Governo<br />
do Reino Unido.<br />
11h30: Tropas<br />
americanas entraram<br />
na zona desmilitarizada<br />
da fronteira, entre<br />
o Kuweit e o Iraque.<br />
14h30: Reúne-se<br />
o Conselho de Estado,<br />
88 VISÃO 21 de Março de 2003<br />
PETR JOSEK/REUTERS
Nos próprios EUA, os opositores à<br />
guerra anunciaram a intenção de promover<br />
acções de protesto por todo o país.<br />
A principal preocupação destes activistas<br />
é não entrarem em choque com uma população<br />
que, compreensivelmente, apoia<br />
os seus soldados (o que não é o mesmo<br />
que apoiar a Administração).<br />
Na Austrália, o movimento antiguerra<br />
convocou manifestações nas principais<br />
cidades e os estudantes universitários<br />
entraram em greve após o discurso de<br />
no Palácio de Belém,<br />
do qual resultará, horas<br />
depois, uma declaração<br />
do Presidente<br />
a República.<br />
20h30: Jorge Sampaio<br />
recorda a ilegalidade<br />
da acção militar, caso<br />
aconteça sem o aval<br />
das Nações Unidas,<br />
mas apela à «unidade<br />
nacional».<br />
Bush e do primeiro-ministro John Howard<br />
na madrugada de 20.<br />
Intervenção ‘injustificável e ilegítima’<br />
Se as pessoas anónimas dão assim a<br />
conhecer a sua posição face à intervenção<br />
militar dos aliados anglo-saxónicos<br />
no Médio Oriente, os governantes fazem<br />
o mesmo através dos canais «regulares»<br />
postos à sua disposição.<br />
Assim, o ministro dos Negócios Estrangeiros<br />
do Irão (um dos países incluí-<br />
QUINTA-FEIRA, 20<br />
00h01: Tony Blair é<br />
avisado pelos EUA de<br />
que a ofensiva militar<br />
pode começar nas duas<br />
horas seguintes.<br />
02h35: Bush faz uma<br />
declaração ao mundo,<br />
admitindo que a guerra<br />
PARIS, ANCARA E PRAGA<br />
Nas capitais francesa, turca e checa,<br />
respectivamente, foram em número<br />
de muitos milhares os manifestantes<br />
que saíram na quinta-feira à rua<br />
para manifestar o seu repúdio pela guerra<br />
conduzida por Washington contra o Iraque<br />
dos por Bush naquilo que designa por<br />
«eixo do mal») considerou «injustificáveis<br />
e ilegítimas» as operações militares<br />
contra o país vizinho, com o qual esteve<br />
envolvido numa longa guerra na década<br />
já começou e o povo<br />
iraquiano vai ser<br />
libertado.<br />
04h15: Também Durão<br />
Barroso se dirige ao<br />
País, num depoimento<br />
de três minutos: «Este<br />
é um conflito que não<br />
desejámos», disse.<br />
E: «Não há motivos<br />
para alarme.»<br />
12h00: Durão Barroso<br />
parte para Bruxelas,<br />
onde o espera a<br />
Cimeira da Primavera,<br />
com os restantes chefes<br />
de Governo europeus<br />
VISÃO 21 de Março de 2003 89
ARND WIEGMANN/REUTERS<br />
REUTERS<br />
▲<br />
GUERRA DO GOLFO II Tomadas de posição<br />
MOBILIZAÇÃO GERAL PELA PAZ<br />
de 80. A velha hostilidade Irão-Iraque leva<br />
porém Teerão a não alinhar ao lado de<br />
Bagdad, reservando-se à primeira República<br />
Islâmica a ser implantada no mundo<br />
o direito de «não intervir em benefício<br />
quer de um quer de outro campo».<br />
Historicamente muito crítico da política<br />
externa de Washington, o Governo<br />
chinês tem mantido nesta crise uma posição<br />
moderada. Embora seja membro<br />
permanente do Conselho de Segurança<br />
das Nações Unidas, a China não anunciou<br />
– ao contrário da França e da Rússia<br />
– a intenção de vetar o projecto de<br />
resolução anglo-hispano-americano que<br />
«legitimaria» a intervenção militar no<br />
país de Saddam e que não chegou afinal<br />
a ser posto à votação por decisão dos<br />
próprios proponentes, receosos de uma<br />
mais que provável derrota. Apesar desta<br />
prudência, na sequência do ataque Pe-<br />
GERHARD<br />
SCHRÖDER<br />
O chanceler<br />
alemão foi<br />
um dos líderes<br />
que mais se<br />
empenharam<br />
no combate<br />
à dinâmica<br />
belicista<br />
de Washington<br />
JACQUES CHIRAC<br />
Coube ao<br />
Presidente francês<br />
a liderança<br />
mediática<br />
da campanha<br />
contra a «guerra<br />
de Bush»<br />
quim pediu o fim imediato da acção militar<br />
e a retoma dos esforços para resolver<br />
a crise pacificamente, através da via<br />
diplomática e da acção dos inspectores<br />
de armamento da ONU. Kong Quan,<br />
porta-voz do Ministério das Relações<br />
Exteriores, declarou quinta-feira em<br />
conferência de imprensa que a guerra é<br />
uma violação da Carta da ONU e do Direito<br />
internacional.<br />
Num dos países mais críticos da intervenção,<br />
a Alemanha, o chanceler (social-democrata)<br />
Gerhard Schröder acorreu<br />
ao seu gabinete de trabalho em plena<br />
madrugada de 20, pouco depois de<br />
lançado o ataque anglo-americano contra<br />
o Iraque. Dali entrou posteriormente<br />
em contacto com Jacques Chirac e Vladimir<br />
Putine, respectivamente líderes<br />
francês e russo, com quem compartilha<br />
os pontos de vista. A Alemanha afirmou<br />
oficialmente estar consternada com o<br />
início da campanha militar e ofereceu<br />
• PAÍSES QUE APOIAM<br />
A ACÇÃO MILITAR<br />
EUROPA<br />
• Albânia Envio de tropas<br />
• Bulgária Cedência de bases e espaço aéreo;<br />
envio de um grupo de descontaminação em caso de<br />
utilização de armas químicas ou biológicas pelo Iraque<br />
• Croácia Bases e espaço aéreo; apoio logístico<br />
• Dinamarca<br />
• Espanha Aznar foi um dos impulsionadores da<br />
Carta dos Oito em apoio das intenções americanas;<br />
tropas não-combatentes; apoio logístico<br />
• Estónia<br />
• Eslováquia Envio de grupo de descontaminação<br />
• Grã-Bretanha Desde a primeira hora o maior aliado<br />
dos EUA, exigiu o desarmamento imediato do Iraque;<br />
envio de tropas, aviões e navios<br />
• Holanda<br />
• Hungria Cedência de bases, espaço aéreo e apoio<br />
logístico<br />
• Itália Berlusconi é um dos principais defensores<br />
europeus da intervenção; espaço aéreo e apoio<br />
logístico<br />
• Letónia Apoio logístico<br />
• Lituânia<br />
• Macedónia<br />
• Polónia Envio de tropas<br />
• Portugal Para Durão Barroso, o Iraque é o<br />
responsável pela situação; apoio logístico<br />
• República Checa Grupo de descontaminação<br />
• Roménia Bases aéreas e grupo de descontaminação<br />
• Ucrânia Grupo de descontaminação<br />
AMÉRICAS<br />
• Bolívia<br />
• Colômbia<br />
• El Salvador<br />
• Equador Desfeitas as hipóteses de solução pacífica,<br />
põs-se ao lado dos EUA<br />
• Estados Unidos da América<br />
• Guatemala<br />
• Honduras<br />
• Nicarágua<br />
• Panamá<br />
ÁFRICA*<br />
• Eritreia<br />
• Etiópia<br />
*Os restantes países estão contra a intervenção<br />
90 VISÃO 21 de Março de 2003<br />
▲
OCEANIA<br />
• Austrália Seguiu sempre Washington e Londres;<br />
tropas, aviões e navios<br />
MÉDIO ORIENTE<br />
• Arábia Saudita Aliada tradicional dos EUA,<br />
ofereceu asilo político a Saddam para evitar a guerra;<br />
bases e espaço aéreo<br />
• Azerbaijão<br />
• Bahraim Apoio logístico<br />
• Emirados Árabes Unidos Tropas e base aérea<br />
• Geórgia<br />
• Israel Principal aliado dos EUA, muito interessado<br />
na queda de Saddam<br />
• Jordânia Bases, espaço aéreo e apoio logístico<br />
• Kuwait Depois da invasão iraquiana que<br />
desencadeou a I Guerra do Golfo, apoia a 2.ª edição<br />
do conflito; bases, espaço aéreo e apoio logístico<br />
• Qatar Bases, espaço aéreo e apoio logístico<br />
• Turquia Bases, espaço aéreo e tropas; negociações<br />
difíceis para o estacionamento de soldados dos EUA<br />
• Uzebequistão<br />
ÁSIA<br />
• Afeganistão<br />
• Coreia do Sul<br />
• Filipinas<br />
• Japão Considera justificada a acção militar<br />
• Taiwan<br />
• PAÍSES QUE NÃO APOIAM<br />
EUROPA<br />
• Alemanha Apesar de não apoiar, ajudará<br />
os aliados em caso de utilização de armas biológicas<br />
ou químicas pelos iraquianos<br />
• Áustria<br />
• Bélgica Sempre apostou numa resolução<br />
diplomática<br />
• França Actual «rosto» da paz; a ameaça de vetar<br />
a guerra no Conselho de Segurança irritou os EUA<br />
• Grécia<br />
• Irlanda<br />
• Luxemburgo<br />
• Noruega<br />
• Suíça<br />
• Suécia<br />
• Rússia Com a França e a Alemanha, defendeu<br />
a continuação das inspecções<br />
AMÉRICA<br />
• Argentina Se em 1991 enviou forças, desta vez<br />
ficou de fora<br />
• Brasil Considera Bush «irresponsável» e afirmou<br />
que um ataque ao Iraque seria ilegítimo<br />
• Canadá Partidário da negociação e do exílio<br />
de Saddam; só participaria na guerra com total apoio<br />
da ONU<br />
• Chile Membro não-permanente do CS,<br />
GUERRA DO GOLFO II<br />
Os países apoiantes<br />
dos EUA são desta vez<br />
muito menos do que em 1991.<br />
As principais novidades<br />
são a cisão da Europa<br />
e a ultrapassagem da ONU<br />
• SEM INFORMAÇÂO<br />
decepcionado pela incapacidade de encontrar<br />
uma saída diplomática<br />
• Cuba<br />
• México<br />
• Venezuela Repúdio da guerra «em qualquer<br />
das suas expressões»<br />
MÉDIO ORIENTE<br />
• Irão Incluído pelos EUA no Eixo do Mal, defendeu<br />
a continuação das inspecções<br />
• Síria<br />
ÁSIA<br />
• Coreia do Norte No Eixo do Mal de Bush<br />
• China Desde o início contra a intervenção militar;<br />
de acordo com as teses francesas e russas<br />
• Índia<br />
• Indonésia<br />
• Malásia<br />
• PAÍSES INDECISOS<br />
ÁSIA<br />
• Paquistão<br />
• Tailândia<br />
AMÉRICA<br />
• Peru<br />
OCEANIA<br />
• Nova Zelândia<br />
VISÃO 21 de Março de 2003 91<br />
VISÃO
▲<br />
GUERRA DO GOLFO II Tomadas de posição<br />
MOBILIZAÇÃO GERAL PELA PAZ<br />
ajuda humanitária à população iraquiana.<br />
«Agora tudo tem de ser feito para se<br />
evitar um desastre humanitário» no<br />
país, defende uma nota divulgada pelo<br />
Governo social-democrata e «verde»<br />
germânico. Mas Berlim acrescentou que<br />
continuará a autorizar forças americanas<br />
a sobrevoarem a Alemanha e a transitarem<br />
pelo seu território.<br />
Quanto à França, que ameaçou vetar<br />
uma nova resolução do Conselho de Segurança<br />
da ONU autorizando o uso da<br />
força contra o Iraque, expressou a sua<br />
«mais profunda preocupação com o início<br />
da operação militar».<br />
Terceiro elemento da troika abertamente<br />
antiguerra juntamente com Chirac<br />
e Schröder, o Presidente da Federação<br />
Russa, Vladimir Putine, disse que<br />
não havia justificação para uma campanha<br />
militar no Iraque, a qual classificou<br />
de «erro político». Falando na quinta-<br />
-feira no Kremlin, em Moscovo, Putine<br />
pediu o fim dos devastadores bombardeamentos<br />
de Bagdad e outros alvos iraquianos<br />
e reiterou a intenção de conti-<br />
RICK RYCROFT/AP<br />
nuar empenhado na busca de uma solução<br />
política para a crise. Horas antes,<br />
uma importante personalidade da vida<br />
política russa já se havia referido ao ataque<br />
à velha Mesopotâmia como «um erro<br />
trágico» (até mesmo na perspectiva<br />
dos EUA), passível de vir a prejudicar as<br />
relações de Washington com outras capitais,<br />
inclusive com Moscovo.<br />
«Do ponto de vista da comunidade<br />
internacional [a acção militar], é ilegítima,<br />
injustificada e uma ameaça à estabilidade<br />
mundial», afirmou a referida autoridade.<br />
O ataque «é mal concebido,<br />
indevido e pode prejudicar algumas das<br />
importantes parcerias americanas e suas<br />
relações exteriores», argumentou.<br />
O Governo russo vem, desde o início<br />
da crise, criticando a posição dos EUA<br />
de querer desarmar o Iraque por via da<br />
força.<br />
Em Nova Iorque, o embaixador iraquiano<br />
na ONU, Mohammed Aldouri,<br />
reiterou alguns dos argumentos dos países<br />
que mais frontalmente questionam a<br />
legalidade da guerra, classificando a intervenção<br />
militar anglo-americana no<br />
Iraque de «violação do Direito interna-<br />
cional». Aldouri disse que pediria ao<br />
Conselho de Segurança e à ONU, como<br />
um todo, que fizessem as forças aliadas<br />
responder pelo ataque ao seu país.<br />
Alinhados com a América<br />
Numa declaração algo tardia, feita na<br />
tarde de 20, o primeiro-ministro britânico,<br />
Tony Blair (que se debate com sérias<br />
dificuldades internas), veio reiterar aquilo<br />
de que já toda a gente estava ao corrente:<br />
que forças armadas do seu país<br />
participam na ofensiva bélica ao lado<br />
dos americanos e que o objectivo da<br />
guerra é derrubar Saddam Hussein.<br />
Outro dos aliados de Washington e<br />
grande apoiante da acção militar, o chefe<br />
do Governo da Espanha, José María<br />
Aznar, convocou uma reunião ministerial<br />
para quinta-feira. Aznar, que conversou<br />
com Bush e Blair horas antes do<br />
bombardeamento do Iraque, disponibilizou<br />
duas bases aéreas para os EUA,<br />
mas as forças armadas espanholas não<br />
se envolverão no conflito.<br />
Na Ásia, o Japão e as Filipinas ofereceram<br />
apoio ao ataque, mas a Malásia e líderes<br />
muçulmanos da região condenaram a<br />
92 VISÃO 21 de Março de 2003
acção e advertiram que os americanos pagariam<br />
um dia por ela um preço elevado.<br />
Quanto ao primeiro-ministro japonês,<br />
Junichiro Koizumi, reiterou o seu<br />
«apoio moral» a Washington, contra-<br />
SYDNEY<br />
E MADRID<br />
Tanto australianos<br />
como espanhóis<br />
quiseram<br />
manifestar<br />
publicamente<br />
e de forma<br />
inequívoca<br />
que não estão<br />
ao lado dos<br />
respectivos<br />
governos no<br />
presente conflito<br />
riando a opinião pública largamente<br />
maioritária no seu país. «Compreendo e<br />
apoio o início do uso da força pelos<br />
EUA», afirmou Koizumi em conferência<br />
de imprensa.<br />
lBERLIM<br />
Numa bricadeira com o nome de Bush, estudantes alemães dizem ser precisas árvores, não arbustos<br />
GUERRA DO GOLFO II<br />
Na vizinha Coreia do Sul, o Presidente<br />
Roh Moo-Hyun, afirmou que o seu<br />
Executivo trabalharia para minimizar o<br />
impacto da guerra no país e ofereceria<br />
ajuda e tropas quando cessassem as hostilidades.<br />
O primeiro-ministro tailandês, Thaksin<br />
Shinawatra, afirmou que Banguecoque<br />
não participa na guerra mas está disponível<br />
para colaborar na reconstrução<br />
do Iraque após o termo das hostilidades.<br />
Que o governante não transmite a opinião<br />
da totalidade dos seus compatriotas<br />
é atestado pelo facto de o Grupo de Muçulmanos<br />
para a Paz ter afirmado que os<br />
americanos «atraíram mais inimigos do<br />
que nunca, não só no mundo muçulmano<br />
mas também entre os budistas».<br />
‘Data negra da História’<br />
Quanto à Índia, pertence ao número<br />
dos países que desaprovam a intervenção<br />
militar, mas manteve o silêncio.<br />
Já o Paquistão, seu vizinho e inimigo,<br />
declarou através do ministro da Informação,<br />
Rashid Ahmed, que não apoia a<br />
guerra contra o Iraque e manifestou a<br />
intenção de continuar a fazer pressão<br />
pela paz.<br />
Outros países muçulmanos expressaram<br />
forte oposição. Numa posição unânime,<br />
o vice-primeiro-ministro da Malásia,<br />
Abdullah Ahmad Badawi, disse na<br />
televisão que o ataque é «uma data negra<br />
da História», e a oposição conservadora<br />
disse pela voz do líder do Partido<br />
Islâmico que «esta guerra desprezível<br />
põe em evidência a maldade da América<br />
e dos seus aliados».<br />
A Presidente da Indonésia, Megawati<br />
Sukarnoputri, afirmou que seu Governo<br />
se opõe fortemente ao ataque e exortou<br />
as Nações Unidas a convocar uma reunião<br />
para analisar a situação mundial.<br />
Por seu turno, líderes islâmicos reagiram<br />
com cólera ao ataque ao Iraque. O pequno<br />
grupo radical Hizbut Tahrir exortou<br />
mesmo à guerra santa «para defender<br />
a dignidade de um país muçulmano<br />
e do seu povo».<br />
Já a homóloga filipina de Megawati,<br />
Gloria Arroyo, disse que Manila integra<br />
a «coligação da vontade», referindo-se<br />
algo ambiguamente ao facto de o seu<br />
país estar do lado dos EUA.<br />
A posição dos paises não-alinhados,<br />
cujo movimento é presentemente dirigido<br />
por Cuba, Malásia e África do Sul,<br />
consideram, finalmente, «um acto ilegítimo<br />
de agressão» a «acção militar unilateral<br />
dos EUA e aliados». ■<br />
VISÃO 21 de Março de 2003 93<br />
ANDREA COMAS/REUTERS<br />
HERBERT KNOSOWSKI/AP
GUERRA DO GOLFO II “E aqui vai uma frase de paleio de situação no dito dossier, máí nada”<br />
PROTESTO CONTRA<br />
A GUERRA<br />
Mal foi anunciado<br />
que as tropas<br />
britânicas estavam<br />
prontas a ir para<br />
o Iraque, a reacção<br />
dos londrinos não<br />
se fez esperar<br />
GRÃ-BRETANHA<br />
O futuro de Blair<br />
As próximas semanas decidirão se o primeiro-ministro<br />
sobrevive a Saddam Hussein<br />
Era pegar ou largar. Se o Parlamento<br />
votasse a retirada das tropas<br />
britânicas estacionadas no Iraque<br />
estaria, ao mesmo tempo, a decidir<br />
a saída do seu primeiro-ministro, avisou<br />
Tony Blair quando, na terça-feira,<br />
18, se apresentou aos deputados, pedindo<br />
luz verde para avançar para a guerra,<br />
mas sem o sine qua non que muitos políticos<br />
do seu partido tinham exigido:<br />
uma resolução do Conselho de Segurança<br />
da ONU a sancionar o ataque.<br />
Blair deitou mão a tudo o que pôde.<br />
O artigo do jornal Times sobre a votação<br />
dizia que ele «nunca fez um discurso<br />
mais difícil, nem mais importante nem<br />
melhor» e soubera escolher o tom: dirigira-se<br />
«não à plateia, mas ao coração».<br />
Aparentemente, saiu-se bem. Até uma<br />
das suas colegas de Governo não conseguiu<br />
conter as lágrimas, emocionada,<br />
quando o ouvia.<br />
«Quem irá festejar e quem irá chorar,<br />
se retirarmos as nossas tropas?», perguntou<br />
aos deputados. No final, fizeram-se<br />
as contas e o pior tinha passado:<br />
ao contrário do que previam alguns analistas,<br />
não ficara dependente dos conservadores<br />
para atacar o Iraque. É verdade<br />
que 139 trabalhistas não foram sensíveis<br />
aos seus argumentos e votaram contra,<br />
entre eles 17 que, por sinal, até tinham<br />
estado a seu lado nos debates anteriores.<br />
Mas a inversa também foi verdadeira:<br />
94<br />
conseguiu recuperar alguns dos seus críticos.<br />
Por agora, a situação estava salva.<br />
Mais a mais, Blair entrara no Parlamento<br />
já com uma baixa, apesar de o<br />
ataque ainda não ter começado. O ministro<br />
dos Assuntos Parlamentares, Robin<br />
Cook, juntara-se aos outros membros<br />
do Governo que decidiram demitir-<br />
-se por causa do apoio da Grã-Bretanha<br />
a este ataque. Foi uma saída que, segundo<br />
a imprensa britânica, teve «dignidade<br />
e força destrutiva». Mas não feriu mortalmente<br />
o primeiro-ministro.<br />
Três horas antes da votação, já o Ministério<br />
do Interior se antecipara, colocando<br />
na sua página da Internet instruções<br />
aos britânicos sobre o que deviam<br />
ter em casa, como prevenção para a hipótese<br />
de um ataque terrorista. Precisariam<br />
de uma lanterna, algumas latas de<br />
comida, garrafas de água e cobertores.<br />
As recomendações ficaram bem aquém<br />
das que receberam os cidadãos<br />
dos Estados Unidos.<br />
Aí, o Governo elaborou<br />
uma brochura de<br />
56 páginas, com o título<br />
Estão prontos? E mesmo<br />
os que não estivessem<br />
deveriam passar a ter à<br />
mão não só víveres para<br />
três dias, como sacos-cama,<br />
rádios de pilhas e até<br />
T-shirts de algodão que<br />
REUTERS/TOBY MELVILLE<br />
possam transformar-se em máscaras de<br />
gás improvisadas. Em Londres, não só<br />
as instruções foram menos drásticas, como<br />
até teve que ficar a aguardar para<br />
outro dia o simulacro de atentado ao<br />
Metro, pois a polícia da capital tinha tarefas<br />
de segurança mais urgentes.<br />
No dia seguinte à votação, Blair apareceu<br />
de surpresa numa reunião do grupo<br />
parlamentar do seu partido para tentar<br />
minorar os estragos. Garantiu que,<br />
desta vez, e ao contrário da Guerra do<br />
Golfo, só serão atacadas as instalações<br />
militares e os edifícios do Governo.<br />
E, num gesto de boa vontade para com<br />
os seus dissidentes, nomeou até uma das<br />
suas colegas mais críticas, Clare Short,<br />
para o gabinete <strong>especial</strong> que criou para<br />
a guerra ao Iraque.<br />
Nas próximas semanas a evolução<br />
dos ataques irá, certamente, voltar a levá-lo<br />
ao Parlamento. E terá de, de novo,<br />
fazer contas. Além disso, corre o risco<br />
de a moda da rebeldia que atingiu a sua<br />
bancada a propósito do Iraque venha a<br />
pegar, mesmo para questões internas e,<br />
aparentemente, bem mais pacíficas.<br />
A próxima lei a ser votada será a que<br />
contém um novo modelo de gestão hospitalar.<br />
Uma centena de trabalhistas<br />
anunciaram já que são contra. ■<br />
TONY BLAIR<br />
No Parlamento,<br />
dirigiu-se «não<br />
à plateia, mas<br />
ao coração»,<br />
escreveu-se<br />
no jornal Times<br />
REUTERS/PAUL MCERLANE
GUERRA DO GOLFO II<br />
AMÉRICA<br />
O epicentro, a 10 000 km da frente<br />
A vida em Manhattan não difere muito da normalidade: Bagdad fica longe e...<br />
Washington não parece perto<br />
LÚCIA GUIMARÃES • NOVA IORQUE<br />
‘ Ohhhh!». A exclamação uníssona<br />
encheu o restaurante. O<br />
ecrã de TV grande anunciava<br />
o início dos combates terrestres<br />
e novos bombardeamentos a Bagdad.<br />
Mas a emoção da plateia de 20 pessoas<br />
era reservada ao ecrã pequeno, que exibia<br />
a final da partida de básquete entre a equipa<br />
universitária da Califórnia e a de Connecticut.<br />
Estava a ganhar a Califórnia.<br />
Com licença, lembram-se de que o país<br />
está em guerra? A pergunta não foi feita e<br />
seria frívola naquele momento. Nenhum<br />
par de olhos desviava a atenção para<br />
Christiane Amanpour, da CNN, em Kuwait<br />
City. Nova Iorque, capital mundial<br />
dos alvos do terror, parecia demasiado<br />
ocupada para se concentrar no maior esforço<br />
bélico jamais mobilizado pelos<br />
EUA. A cena no popular bar irlandês, perto<br />
de Times Square, não parecia perturbar<br />
os frequentadores. Christiane Amanpour<br />
continuou os seus movimentos labiais<br />
emudecidos pelo controlo remoto.<br />
O que pensar de uma guerra que mobiliza<br />
polícias com máscaras de gás, reúne<br />
numa operação militar governantes de<br />
três Estados mas fracassa na captura da<br />
imaginação popular? A cidade amanheceu<br />
na quinta-feira, 20, um pouco mais<br />
cautelosa, mas não subjugada pela gravidade<br />
da guerra. O troféu limão vai para o<br />
tablóide Daily News, que na sua primeira<br />
edição bradou: «Bom Dia, Bagdad.»<br />
‘Surf‘e rotina<br />
Alertados pelo primeiro bombardeamento,<br />
na noite anterior, muitos nova-iorquinos<br />
que não tinham necessidade de se<br />
dirigir a Manhattan evitaram a ilha. Os<br />
aeroportos registaram atrasos por causa<br />
de um temporal. Os governadores de Nova<br />
Iorque, Connecticut e New Jersey convocaram<br />
uma conferência de imprensa<br />
conjunta na estação ferroviária de Grand<br />
Central e posaram diante de um contigente<br />
da Guarda Nacional que foi trazido para<br />
aumentar a visibilidade da Operação<br />
Atlas de prevenção ao terrorismo. Vendedores<br />
de bilhetes de metro, uma espécie<br />
lIMAGEM RARA, NO ROCKFELLER CENTER<br />
Não muito longe dali, na Broadway, havia quem preferisse ter os televisores sintonizados no surf...<br />
em extinção por causa dos cartões magnéticos,<br />
passaram a dispor de máscaras de<br />
gás nos seus cubículos envidraçados.<br />
As escolas mantiveram horários de rotina<br />
e alguns professores queixaram-se da<br />
falta de planos de emergência. Numa<br />
grande loja de equipamentos electrónicos<br />
da Broadway, as televisões não estavam<br />
sintonizadas nas notícias. Os monitores<br />
de alta definição exibiam cenas de surf.<br />
«Deus ama-te.» A frase, disparada contra<br />
a repórter pelo pregador na carruagem<br />
de metro, tinha um tom de audácia. Deus<br />
costuma ser invocado sem parcimónia<br />
pelos pedintes, mas em pleno Alerta Laranja<br />
o tipo que impingia folhetos em nome<br />
de Jesus Cristo estava a cometer uma<br />
gaffe contra a etiqueta antiterror.<br />
Na estação de Times Square, um polícia<br />
relaxado dizia que nada mudou depois<br />
do disparo do primeiro míssil de cruzeiro.<br />
«O nosso patrulhamento já foi intensificado<br />
há mais de um mês», comentou.<br />
Lá em cima, o contigente policial<br />
agressivo e o protesto pacifista eram o<br />
único sinal de que a guerra havia começado.<br />
No passeio em frente do auditório da<br />
MTV, adolescentes esperavam ansiosas o<br />
início do show ao vivo. Um quarteirão<br />
abaixo, turistas acotovelavam-se para<br />
comprar bilhetes de teatro com desconto.<br />
Mais a sul, Wall Street exibia o seu lado<br />
maníaco-depressivo. A bolsa caiu 135<br />
pontos de manhã, por conta de uma frase<br />
do discurso de Bush: «A campanha pode<br />
ser mais longa do que alguns previram.»<br />
E fechou com um ganho de 21 pontos,<br />
depois de os corretores colados aos ecrãs<br />
de TV terem concluído que a vitória será<br />
rápida e indolor.<br />
Ao saltar da última viagem de metro do<br />
dia, fui saudada pelo cantor habitual da<br />
estação da Rua 79. «Smile», entoou, começando<br />
os versos da canção popular.<br />
O chapéu no chão à sua frenta continha<br />
alguns trocos. O seu sorriso lembrava os<br />
adjectivos usados por inúmeros jornalistas<br />
remanescentes em Bagdad. Ao descreverem<br />
o silêncio que precedeu os mísseis,<br />
eles repetiam: estranho e assustador. ■<br />
VISÃO 21 de Março de 2003 95<br />
AP/TINA FINEBERG
GUERRA DO GOLFO II Depoimentos<br />
REACÇÕES<br />
O que eles disseram<br />
O conflito visto por algumas personalidades<br />
D. JOSÉ POLICARPO<br />
CARDEAL-PATRIARCA<br />
DE LISBOA<br />
Igrejas são só para orar<br />
(...) «Neste momento, a atitude<br />
da Igreja só pode ser a<br />
da oração mais intensa, pedindo<br />
a Deus que inspire os<br />
decisores a reporem, o mais rapidamente<br />
possível, a paz; na nossa oração, terão um lugar<br />
muito particular as vítimas desta guerra,<br />
na população civil. Peço às comunidades cristãs<br />
que intensifiquem a oração pela paz e aos<br />
párocos que zelem para que as igrejas sejam<br />
apenas espaço para expressão da nossa oração<br />
e da nossa esperança, sob a sua responsabilidade<br />
pastoral.»<br />
JOSÉ ANTÓNIO RODRIGUES<br />
ROMANO PRODI<br />
PRESIDENTE<br />
DA COMISSÃO EUROPEIA<br />
Mau momento<br />
para a PESC<br />
(...) «Hoje [20.03] resta-nos<br />
desejar que a guerra seja<br />
curta, que haja o menor número<br />
de vítimas possível e que a região não<br />
seja demasiado afectada. (...) A integridade<br />
territorial do Iraque deve ser respeitada. A<br />
Comissão está disposta a prestar ajuda humanitária,<br />
de forma rápida e eficaz, sob auspícios<br />
internacionais, onde ela for mais necessária.<br />
As Nações Unidas tiveram um papel<br />
crucial e continuarão a tê-lo no futuro. (...) Há<br />
que reconhecer que este é um mau momento<br />
para a Política Externa e de Segurança Comum,<br />
para a União Europeia em geral, para a<br />
autoridade das Nações Unidas, para a NATO<br />
e para as relações transatlânticas.»<br />
AP/YVES LOGGHE<br />
PAULO PORTAS<br />
MINISTRO DA DEFESA<br />
E PRESIDENTE DO CDS-PP<br />
Forças Armadas<br />
preparadas<br />
«A decisão de estar com os<br />
JOSÉ ANTÓNIO RODRIGUES<br />
aliados decorre de uma<br />
orientação política de um<br />
Governo que preza a relação transatlântica e<br />
que ainda no ano passado publicou um Con-<br />
ceito Estratégico de Defesa Nacional em que<br />
as armas de destruição maciça e o terrorismo<br />
são considerados ameaças globais a sociedades<br />
como a nossa. A não participação militar<br />
no teatro das operações decorre da orientação<br />
expressa pelo Governo, no sentido de que<br />
graduaria a nossa participação em função da<br />
existência ou não de uma nova resolução expressamente<br />
habilitante do uso da força. Ou<br />
seja, não decorre de qualquer menor vontade,<br />
menor preparação ou menor capacidade das<br />
Forças Armadas Portuguesas, que as têm, já<br />
provaram e são capazes de cumprir as missões<br />
que o poder político lhes atribui.»<br />
FERRO RODRIGUES<br />
LÍDER DO PARTIDO<br />
SOCIALISTA<br />
Lamento atitude<br />
do Governo<br />
«Hoje [dia 20 de Março] é<br />
um dia de luto para a União<br />
Europeia, para as Nações<br />
Unidas e para a Humanidade. A extrema violência<br />
ilegítima começou a fazer-se sentir no<br />
Iraque, à margem do Direito Internacional e<br />
contra o Conselho de Segurança. Lamento<br />
profundamente a atitude do Governo português<br />
(…). Lamento ainda profundamente<br />
que os EUA estejam na primeira linha da<br />
violação do Direito Internacional e do fortalecimento<br />
da base social do terrorismo internacional<br />
que importa combater e não estimular.»<br />
LUÍS BARRA<br />
CARLOS CARVALHAS<br />
LÍDER DO PARTIDO<br />
COMUNISTA<br />
PORTUGUÊS<br />
Força contra o direito<br />
«O início da guerra no Iraque<br />
representa uma derrota<br />
moral e ética para os EUA e<br />
para Durão Barroso. A força impôs-se ao direito<br />
(…). É uma guerra inglória, imoral e evitável<br />
e que devia envergonhar aqueles que,<br />
nos Açores, colocaram a nossa bandeira nos<br />
preparativos de uma guerra junto dos falcões<br />
que sempre a desejaram (…). Estamos certos<br />
de que os portugueses não aceitam ficar associados<br />
a esta guerra e à carnificina.»<br />
BRUNO RASCÃO<br />
VERA JARDIM<br />
EX-MINISTRO<br />
DA JUSTIÇA DO PS<br />
Guerra é uma<br />
precipitação<br />
«Como afirmou o Presidente<br />
da República, a guerra é<br />
sempre uma tragédia (…).<br />
O primeiro-ministro deu o seu apoio a uma<br />
guerra lançada de forma unilateral e à margem<br />
das Nações Unidas. As soluções diplomáticas<br />
para desarmar o Iraque por meios<br />
pacíficos não foram esgotadas. O PS sempre<br />
entendeu que o regime iraquiano é um<br />
perigo para a paz mundial, mas considera<br />
esta guerra uma precipitação.»<br />
GUILHERME SILVA<br />
LÍDER DA BANCADA<br />
DO PSD<br />
Poupar os civis<br />
«Esperamos e desejamos<br />
que possa ser poupada a<br />
vida de inocentes e que este<br />
conflito termine com o<br />
menor sofrimento possível para todas as<br />
partes. Saddam Hussein pôde evitar a<br />
guerra. Não quis evitar a guerra. Cabe agora<br />
aos Estados Unidos, e aos seus aliados<br />
na acção militar, tudo fazerem para que as<br />
populações civis, as pessoas inocentes, o<br />
povo do Iraque, já tão martirizado pela ditadura,<br />
não seja atingido. O objectivo é desarmar<br />
o Iraque, o que, como os factos demonstram,<br />
impõe o derrube do ditador de<br />
Bagdad.»<br />
PAULO PEDROSO<br />
PORTA-VOZ DO PS<br />
Executivo quebrou<br />
consenso<br />
«O Governo atrelou o País<br />
a uma guerra ilegítima que<br />
visa impor o domínio americano<br />
naquela parte do<br />
mundo. A guerra foi precipitada. Ainda havia<br />
condições para negociar a paz (…). Foi<br />
o Executivo que quebrou o consenso e a<br />
unidade ao apoiar incondicionalmente os<br />
EUA.»<br />
96 VISÃO 21 de Março de 2003<br />
INÁCIO LUDGERO<br />
LUIS BARRA<br />
LUIS BARRA
www.visaoonline.pt<br />
GUERRA DO GOLFO II<br />
OPINIÃO DOS LEITORES<br />
Uma maioria contra a maioria<br />
Os comentários e as mensagens que chegaram à VISAOONLINE<br />
e à nossa redacção dão conta da larga insatisfação com a ofensiva lançada contra<br />
o Iraque e o apoio do Governo português<br />
Como é possível [George W. Bush] dizer<br />
que vai iniciar a guerra e ao mesmo tempo<br />
que vai lançar alimentos e medicamentos?<br />
Ambos têm escasseado durante 11 anos e<br />
agora é que os vão mandar. Juntamente com<br />
as bombas? Lamento profundamente que o<br />
meu país se tenha aliado a tão miserável<br />
guerra, de contornos que nada têm a ver<br />
com terrorismo, mas sim com interesses puramente<br />
económicos. Em meu nome não.<br />
ISABEL SANTOS<br />
A segurança e a organização mundial, já<br />
de si algo frágeis, recebem um golpe que será<br />
provavelmente demasiado forte. O quero,<br />
posso e mando estará legitimado no futuro.<br />
Desejava que o mal menor de não ver<br />
o nosso nome envolvido nesta brutalidade<br />
pudesse ser uma realidade. Somos pequenos<br />
mas temos consciência.<br />
FRED ROCHA<br />
Recuso aceitar ter como meu defensor,<br />
do meu país e da Europa, o Presidente dos<br />
EUA, George Bush. Recuso acreditar que<br />
Bush e a sua administração ataquem o iraque<br />
por razões humanitárias, para libertar o<br />
povo iraquiano de um ditador. E Sharon?E<br />
Eduardo dos Santos? E Mugabe? Recuso o<br />
conceito de guerra preventiva. Preventiva é<br />
a conversação e o diálogo.<br />
JOSÉ ANTÓNIO SANTOS<br />
O século do povo começa agora. É preciso<br />
demonstrar aos governantes que o exército<br />
da paz está atento. A posição do Governo<br />
português envergonha. É preciso sair, protestar<br />
e lutar pacificamente pela plaz. Caramba!<br />
Será que o Papa é terrorista?<br />
MARTA MARTINEZ<br />
Quando vejo nos artigos de primeira página<br />
o nosso primeiro-ministro ao lado dos primeiros-ministros<br />
de Espanha e Inglaterra e<br />
com o Presidente dos Estados Unidos da<br />
América, resta-me apenas dizer: que pequeno<br />
que é o nosso cherne no meio dos tubarões!<br />
NUNO GUSTAVO<br />
A França e a Alemanha pretendem fazer<br />
um directório para governar a União Europeia.<br />
Que me lembre, não vi ninguém comentar<br />
o perigo de os dois maiores países<br />
da Europa pretenderem ter um ascendente<br />
sobre os restantes, quebrando, eles sim, a<br />
unidade da Europa, que se baseia na igualdade<br />
das nações. Esse é um perigo real para<br />
a Europa e, por isso, renovo o meu apoio<br />
à posição do Governo português que foi<br />
hábil e corajoso.<br />
GABRIEL MOREIRA<br />
Não vale a pena declarar-me contra<br />
uma guerra que, contra tudo e contra todos,<br />
teima em avançar. Não existem regras?<br />
Em termos caseiros, para que votei<br />
eu em Sampaio? Na minha empresa, se<br />
desobedecesse ao meu patrão, seria posto<br />
no olho da rua. Afinal de contas, foi o que<br />
fez Durão Barroso em relação a Sampaio.<br />
Por que carga de água não é este último<br />
despedido?<br />
MANUEL ARAÚJO BALHAU<br />
Hoje [19 de Março] é Dia do Pai. No Iraque<br />
é dia da mãe de todas as guerras. (...)<br />
Aqui, em Portugal, lá, no Iraque, as crianças<br />
têm pai. Umas vão continuar a poder tê-lo,<br />
outras vão para sempre perdê-lo. Para milhões<br />
de crianças, haverá menos pais e haverá<br />
muita guerra. Cairão bombas que esmagarão<br />
flores que nascem. Morrerão<br />
crianças que nunca chegaram a nascer. Hoje<br />
é Dia do Pai. Hoje é dia da guerra. Onde<br />
está Deus? Onde está o Pai?<br />
JOSÉ BRANDÃO<br />
Sr. Durão Barroso, como se sentirá quando<br />
milhares de inocentes morrerem? Como<br />
se sentirá se eventualmente acontecerem<br />
atentados na Europa? A responsabilidade<br />
será de Saddam, não é? Oxalá que<br />
não caia nenhum dos nossos filhos, pois, se<br />
isso vier a acontecer, também cá poderão<br />
nascer alguns terroristas.<br />
JOÃO MATEUS<br />
Será que Bush prometeu [a Durão Barroso]<br />
substituir os fundos estruturais que a<br />
comunidade europeia não lhe dará, castigando-o<br />
pela sua atitude separatista dentro<br />
da UE? Cá estaremos para ver. Se estivermos.<br />
ANTÓNIO MELO<br />
Claro que é mais fácil e cómodo ficar<br />
na indiferença ou então tomar partido pelo<br />
lado francês. Todas as evoluções conquistadas<br />
na posição do sr. Hussein foram<br />
conseguidas não à custa da benevolência<br />
da comunidade internacional mas sim à<br />
custa da força e da ameaça. Esta é a única<br />
linguagem que este senhor entende e<br />
respeita.<br />
JOSÉ HENRIQUES<br />
É certo e sabido que os EUA têm necessidade<br />
de ter as suas guerras para satisfazer<br />
a sua indústria belicista. Também é certo<br />
que o que está em causa nesta lamentável<br />
situação é o petróleo, não o desarmamento<br />
do tirano Saddam. É lamentável que quem<br />
não partilha deste ideário seja considerado<br />
de esquerda. Freitas do Amaral, prémios<br />
Nobel da Paz são o quê?<br />
ÁLVARO MATOS<br />
Gostaria francamente de ver uma só medida<br />
não bélica que pudesse resolver a situação.<br />
Parece-me curto falar em via pacífica<br />
e diplomática sem explicitar qual a receita<br />
para forçar Saddam a colaborar. Talvez<br />
houvesse uma solução se deixasse de haver<br />
tanto fanatismo contra democracias tolerantes<br />
e tanta tolerância com regimes fanáticos.<br />
FERNANDO COSTA<br />
O Governo de Durão Barroso pode ser<br />
co-responsabilizado pelo genocídio de<br />
um povo já tão martirizado pela sanguinária<br />
dinastia Hussein. Que Deus lhe<br />
perdoe.<br />
A. FERREIRA DIAS<br />
VISÃO 21 de Março de 2003 97
GUERRA DO GOLFO II<br />
Era esperada mas, apesar disso, entre essa espera e o actual<br />
acto do começo da guerra vai uma distância semelhante<br />
à que sentimos quando alguém que amamos está<br />
com uma doença que sabemos fatal e o momento irreversível<br />
da sua morte.<br />
Não há dúvida, sobretudo para quem seguiu a evolução do<br />
Iraque nos últimos 30 anos, que Saddam Hussein foi um ditador<br />
implacável e sanguinário, não tendo quaisquer limites à sua<br />
violência.<br />
Mas as ditaduras não se destroem de fora para dentro. A libertação<br />
de um povo é feita pelas suas próprias mãos. Nós, portugueses,<br />
sabemos que essa possibilidade de decidirmos o nosso<br />
próprio destino é o cerne do processo de libertação. A tentativa<br />
de estabelecer uma equivalência com o processo de Timor-<br />
-Leste não colhe porque Timor estava nas mãos de uma potência<br />
estrangeira. Exit o argumento de que outros países vão libertar<br />
o Iraque.<br />
A mudança de regime num país é um longo<br />
processo que não pode deixar de assentar<br />
na cultura e nas tradições de um povo. Todos<br />
os que aplicaram «manuais» à feitura da democracia<br />
acabaram por ver uma manobra de<br />
«ricochete» em que voltaram à cena, ainda<br />
que disfarçados, alguns dos velhos hábitos do<br />
regime anterior.<br />
Na Rússia, aos privilégios da «nomenklatura»<br />
vieram a suceder as várias máfias que atiram cerca de 60%<br />
da população para a pobreza. No Koweit que na I Guerra do<br />
Golfo ia tornar-se «democrático», as mulheres não têm direito<br />
de voto! Exit o argumento de que a guerra vai mudar o regime<br />
do Iraque.<br />
Uma guerra como a que acaba de começar não tem qualquer<br />
justificação. É certo que, aparentemente, tudo partiu do trágico<br />
dia 11/9. E nos últimos dias o presidente Bush voltou a invocar<br />
essa data. A meus olhos, prostituiu-a, transformando esse memento<br />
de dor e perda do povo americano num «trunfo» do seu<br />
póquer político. Atitude inadmissível num líder político. Hoje<br />
dos verdadeiros líderes políticos esperam todos os que se dedicam<br />
às ciências políticas «competência, compaixão e cuidado».<br />
A vingança pertence aos piores instintos e não tem lugar entre<br />
povos civilizados.<br />
Não chega, porém, o apelo aos valores éticos contemporâneos<br />
para tornar esta guerra imoral. Ela é-o também por violar<br />
a legalidade das relações internacionais tais como, desde há 50<br />
anos, os povos livres de então a definiram e institucionalizaram<br />
na Organização das Nações Unidas.<br />
Todos os que no mundo reconhecemos os progressos científicos<br />
e tecnológicos da era da globalização, reconhecemos, ao<br />
mesmo tempo, a desordem internacional a que tem dado ori-<br />
MARIA DE LOURDES PINTASILGO<br />
A guerra ilegal e a libertação dos povos<br />
❝Bush prostituiu<br />
o 11 de Setembro,<br />
transformando-o<br />
num ‘trunfo’<br />
do seu póquer<br />
político ❞<br />
gem. Por isso, pensamos e tentamos imaginar instituições reguladoras<br />
que garantam o acesso de todos os homens e mulheres<br />
aos possíveis benefícios da globalização. Ora a ONU e, em particular,<br />
o seu Conselho de Segurança, é a única instituição reguladora<br />
dos conflitos entre Estados. A sua legalidade tem de ser<br />
defendida face à guerra de agressão que os Estados Unidos, o<br />
Reino Unido e a Espanha unilateralmente decidiram. Este trabalho<br />
deve começar já.<br />
E a primeira reivindicação é a da «soberania» da ONU em<br />
relação ao Iraque, imediatamente após o fim da guerra. Nem<br />
por uma hora é aceitável a «soberania» dos EUA sobre o Iraque.<br />
Os impérios coloniais, mesmo breves, terminaram. Já temos<br />
que lidar a plano mundial com a sua hegemonia em<br />
áreas em que está em jogo a sobrevivência das pessoas e do<br />
próprio planeta. Que, ao menos, a hegemonia territorial seja<br />
contida!<br />
O tempo para pensar o futuro – conceitos<br />
e instituições – é o trabalho urgente para<br />
quem sente que esta guerra lhe diz respeito.<br />
E a quem?<br />
A todos os que, em todos os países, têm<br />
mostrado a sua repulsa pela guerra, <strong>especial</strong>mente<br />
com as características de ilegitimidade<br />
de que esta vem ferida. A sua palavra, os seus<br />
gestos, não podem ser filtrados pelas censuras<br />
mais ou menos claras de que padecem<br />
quem as quer fazer ignorar. Os povos podem exprimir-se como<br />
entenderem desde que o façam, em cada situação, dentro dos limites<br />
legais. E os poderes políticos – os que não são ditaduras,<br />
claro! – têm o dever de os ouvir e de tomar em linha de conta<br />
o que exprimem.<br />
Reconheço na última declaração do Presidente da República<br />
o desejo de interpretar o sentir da maioria dos portugueses –<br />
mais de 60%. Porque essa declaração não foi, em alguns órgãos<br />
de imprensa devidamente interpretada. Dela foram publicados<br />
excertos como se de um artigo de qualquer de nós se tratasse.<br />
Ora o que o PR declarou à Nação, tendo como princípios orientadores<br />
os que constam do art. 7.º da Constituição, foi a aplicação<br />
dos seus actos próprios tais como formulados na referida<br />
Constituição: «exercer as funções de Comandante Supremo das<br />
Forças Armadas»; «declarar a guerra (...) e fazer a paz».<br />
Foi nesse contexto que declarou: «Tendo em conta a inexistência<br />
de um mandato expresso das Nações Unidas, as Forças<br />
Armadas Portuguesas não participarão neste conflito, não colaborarão<br />
nele, nem Portugal fará parte da coligação militar<br />
que se criar.»<br />
É óbvio que uma tal declaração vale como lei, melhor, retira<br />
qualquer legitimidade a todos os órgãos do Estado que tivessem<br />
a veleidade de agir contrariamente à sua letra e ao seu<br />
espírito.<br />
98 VISÃO 21 de Março de 2003