Edição especial - Visão
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▲<br />
GUERRA DO GOLFO II<br />
CAMPO<br />
DE REFUGIADOS<br />
Os iraquianos<br />
vão juntar-se<br />
a nacionais<br />
de outros estados<br />
que aqui<br />
encontram abrigo<br />
A FRONTEIRA DO INFERNO<br />
e alfandegária, depois o posto iraquiano,<br />
que não conseguimos ver. Do lado de lá<br />
da fronteira, o mesmo deserto, os mesmos<br />
calhaus e a mesma areia. Continuará a ser<br />
uma desilusão, nos dias imediatos ao fim<br />
do ultimato. Bagdad está a cerca de 500<br />
quilómetros. As bombas, por enquanto,<br />
também. Os autotanques iraquianos continuam<br />
a circular. Não há aparato militar,<br />
nem hordas de refugiados a forçar a entrada<br />
na Jordânia. Aliás, não podem, por<br />
enquanto. As autoridades jordanas aguardam<br />
um momento mais dramático da<br />
guerra, um êxodo digno desse nome, para<br />
começarem a receber iraquianos sem visto<br />
no passaporte. E esses, com plafond<br />
marcado, 5 mil, numa primeira fase, têm<br />
destino certo para um dos campos de Ruwaished.<br />
No segundo campo, destinado a<br />
nacionais não iraquianos, estão já alojadas<br />
algumas dezenas de pessoas, em trânsito<br />
para os países de origem.<br />
No entanto, sabemos que é ali que muitas<br />
coisas se poderão passar. Será por ali<br />
que se exercerá a pressão dos refugiados.<br />
Será por ali que os jornalistas, já aos milhares,<br />
na Jordânia, têm esperança de entrar<br />
no Iraque. Aquela é, para uns e para<br />
outros, a fronteira da esperança<br />
Mas será, seguramente, a fronteira do<br />
inferno. Não apenas pelo factor da guerra,<br />
mas também pelo pesadelo do refúgio.<br />
O campo «iraquiano» de Ruwaished está<br />
instalado no pior sítio que atravessámos,<br />
em toda a longa viagem rumo à fronteira<br />
iraquiana. Uma paisagem e um ambiente<br />
a fazer lembrar a versão do planeta Marte<br />
num conhecido filme de Schwarzenegger.<br />
O vento gelado faz redemoinhos e le-<br />
vanta nuvens de pó que entram pelo cabelo,<br />
pelas roupas, pelos olhos. E é ali que<br />
desamparados trabalhadores, como Ahmed,<br />
30 anos, Mossud, 25 e Edah, 22, têm<br />
trabalhado, dia e noite, a montar latrinas,<br />
a instalar tubos e a escavar uma enorme<br />
fossa para onde será encaminhada a improvisada<br />
rede de esgotos. Pior: é ali que<br />
terão de sobreviver, primeiro ao frio, depois<br />
sob sol inclemente, cinco a dez mil<br />
desgraçados fugidos às bombas, aos tiros<br />
e à fome. Olha-se para o campo e pensase<br />
que melhor seria arriscar a bomba.<br />
Modernas, as cabinas de zinco, equipadas<br />
com latrina, autoclismo, lavatório e reservatório<br />
de água, parecem ter condições.<br />
Mas, entre a bruma das areias, parecem,<br />
ao longe, tristes e imóveis marcianos no<br />
seu planeta inóspito. Na ausência de qualquer<br />
responsável do Crescente Vermelho<br />
ou de qualquer outra autoridade, interpelo<br />
os homens sobre o andamento dos trabalhos.<br />
Mossud, o que melhor arranha o inglês,<br />
desafia-me a experimentar uma latrina.<br />
Faço-lhe notar que a fossa ainda não<br />
está tapada. Ri-se muito. Acredita que está<br />
a trabalhar para o boneco já que, na sua<br />
opinião, não chegarão refugiados nenhuns.<br />
Pergunto-lhe pelas tendas. Diz que<br />
tendas, tendas, só mesmo as da polícia, lá<br />
em cima. E aponta para uma dobra de terreno<br />
mais elevada, a cerca de 40 metros.<br />
Apesar das tentativas, a polícia, hoje, não<br />
está para conversas com jornalistas.<br />
Escudo humano à vista<br />
A fronteira do inferno é, assim, neste<br />
mesmo momento em que as bombas continuam<br />
a fustigar alvos iraquianos, uma<br />
estação perdida no espaço e no tempo.<br />
Um apeadeiro do faroeste onde, dentro<br />
em breve, a cidade dos refugiados começará<br />
a crescer e onde a oportunidade fará<br />
medrar a vizinha e medonha Ruwaished<br />
que, embora conte apenas com uma rua,<br />
é já uma metrópole internacional onde se<br />
pode ouvir uma babilónia de línguas. Mas<br />
é aqui, nos confins leste da Jordânia, que<br />
se jogará a vida e a morte de alguns milhares<br />
de inocentes.<br />
Vejamos se é ou não assim: em Amã,<br />
quinta-feira, enquanto as televisões internacionais<br />
mostram o evoluir da guerra e<br />
dos bombardeamentos, as Nações Unidas<br />
e várias ONGs associadas apresentam o<br />
ponto da situação. A UNICEF lembra<br />
que as crianças serão sempre as maiores<br />
vítimas. O representante do PAM (Programa<br />
Alimentar Mundial) estima que<br />
cerca de 2 milhões de pessoas vão precisar<br />
de assistência, no decurso das próximas<br />
duas semanas (para o que será necessário<br />
um reforço de 1 bilião de dólares) e<br />
pede aos países vizinhos (Jordânia, Irão,<br />
Síria, Turquia) que abram as fronteiras<br />
por razões humanitárias. Outra responsável<br />
da ONU lembra que assistiremos a um<br />
combate terrível contra a cólera, o tifo e a<br />
desinteria e chama a atenção para o facto<br />
de 600 mil iraquinaos sofrerem de diabetes.<br />
Olha-se para os campos jordanos de<br />
acolhimento, em <strong>especial</strong> para a falta de<br />
cooperação das próprias condições da natureza<br />
e pergunta-se «como?»<br />
O tempo urge. A guerra começou e está<br />
para lavar e durar. Não deixa de ser irónico<br />
deparar, no lobby de um hotel, em<br />
Amã, com um britânico, exibindo um cartaz<br />
que diz: «Disponível para dar entrevistas.»<br />
Trata-se, segundo se lê no mesmo<br />
cartaz, de um «escudo humano». Mas o<br />
que é que ele ainda estará aqui a fazer? ■<br />
34 VISÃO 21 de Março de 2003<br />
LEFTERIS PITARAKIS/AP