Edição especial - Visão
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GUERRA DO GOLFO II O resistente<br />
JACQUES CHIRAC<br />
O homem do ‘não’<br />
Em menos de um ano, deixou de ser a «anedota nacional»<br />
para se tornar no herói dos franceses e ser olhado por<br />
meio mundo como uma espécie de super-homem da paz<br />
RUI TAVARES GUEDES<br />
Ohomem tem um lema: «Na vida<br />
política como na vida em geral,<br />
enfrentamos altos e baixos. É preciso<br />
menosprezar os altos e valorizar<br />
os reveses.» Aos 70 anos de idade, e<br />
após quatro décadas na primeira linha da<br />
política francesa, compreende-se que seja<br />
este o lema de Jacques Chirac: poucos, como<br />
ele, sobreviveram a tantas derrotas e<br />
mortes anunciadas, traições, suspeitas e<br />
processos de intenções.<br />
Em França, monsieur le Président é hoje<br />
a única verdadeira unanimidade nacional.<br />
As sondagens dão-lhe uma taxa de<br />
aprovação da opinião pública superior à<br />
maioria de circunstância (82%) com que,<br />
em Maio do ano passado, derrotou Jean-<br />
-Marie Le Pen na segunda volta das presidenciais.<br />
A sua última entrevista televisiva,<br />
dada no gabinete do Palácio do Eliseu –<br />
onde reafirmou a decisão de vetar no<br />
Conselho de Segurança das Nações Unidas<br />
qualquer resolução que abrisse as portas<br />
a uma intervenção militar no Iraque –,<br />
foi seguida por uma assistência recorde de<br />
17,5 milhões de espectadores. O apoio é<br />
tão esmagador que até os seus mais ferozes<br />
críticos se tornaram adeptos entusiastas:<br />
Marie Georges Buffet,<br />
secretária-geral do Partido<br />
Comunista Francês,<br />
endereçou-lhe elogios públicos;<br />
François Hollande,<br />
líder dos socialistas,<br />
manifestou-se «orgulhoso»<br />
com o seu desempenho,<br />
e Jack Lang, o ex-ministro<br />
de Mitterrand e de<br />
Jospin, que muitos acreditam<br />
que será candidato<br />
ao Eliseu nas próximas<br />
eleições, não fez a coisa<br />
por menos e afirmou-se<br />
«a cem por cento» com<br />
as propostas de Chirac<br />
para o conflito iraquiano.<br />
Fora de fronteiras, um<br />
grupo de intelectuais eu-<br />
FESTA DE ANOS<br />
A 29 de Novembro último,<br />
Jacques Chirac celebrou 70<br />
anos e, pela primeira vez desde<br />
que entrou na vida política,<br />
recebeu felicitações de todo<br />
o mundo. Duas foram significativas:<br />
• Tony Blair ofereceu-lhe uma<br />
caneta Churchill e enviou-lhe<br />
uma carta a prestar homenagem<br />
ao que qualificou de<br />
«grande homem»<br />
• Durão Barroso enviou uma<br />
mensagem, lembrando que<br />
Chirac sendo Sagitário, como<br />
sua mulher e sua mãe, deve<br />
ser «uma excelente pessoa»<br />
ropeus (como o cineasta espanhol Pedro<br />
Almodóvar, o escritor alemão Günther<br />
Grass, a prémio Nobel italiana de Medicina<br />
Rita Levi Montalcini e o escritor sueco<br />
Per Olof Enquist) chegou mesmo ao ponto<br />
de publicar uma carta aberta no Le<br />
Monde agradecendo a forma como o Presidente<br />
francês tem enfrentado os EUA<br />
nos últimos tempos. Debaixo do título<br />
«Continue, Jacques Chirac», os intelectuais<br />
pediam-lhe para manter a sua acção<br />
«de apoio à paz, à legalidade internacional<br />
e ao desarmamento», não hesitando em<br />
utilizar, caso fosse necessário, o direito de<br />
veto de que a França usufrui na ONU.<br />
As únicas vozes discordantes vieram da<br />
direita francesa, de alguns poucos deputados<br />
da União por um Movimento Popular<br />
(UMP), a coligação que representa a tradicional<br />
base de apoio eleitoral de Chirac.<br />
Mas essa parece ser a sina do Presidente<br />
francês: surpreender, surpreender sempre,<br />
mesmo mudando de campo político caso<br />
seja necessário.<br />
A estranha consagração<br />
A consagração de Jacques Chirac torna-<br />
-se surpreendente quando se observa o estado<br />
em que ele se encontrava há precisamente<br />
um ano, quando tentava ser reeleito<br />
para o Eliseu após um<br />
primeiro mandato (então<br />
ainda de sete anos) marcado<br />
por escândalos sucessivos<br />
e uma coabitação com<br />
um governo socialista que<br />
quase o tinha empurrado<br />
para um papel decorativo<br />
só comparável ao da rainha<br />
de Inglaterra.<br />
Nessa época, alguns dos<br />
principais best-sellers das livrarias<br />
de Paris eram obras<br />
de investigação jornalística<br />
ou de ajuste de contas político<br />
relatando ou denunciando<br />
os aspectos mais<br />
sombrios de Chirac: as suas<br />
ligações a ditadores africanos,<br />
as redes de interesses e<br />
PRESIDENTE DE FRANÇA<br />
A persistência de Jacques<br />
Chirac em recusar a guerra<br />
tem-lhe valido elogios<br />
de todo o mundo. Mesmo<br />
dos seus antigos adversários<br />
de jogos de favores em que se movimentava,<br />
os desvios de dinheiro durante a sua<br />
longa gestão da Câmara de Paris. Nos bonecos<br />
do Guignol (o Contra-Informação<br />
gaulês) ele era o Super-Mentiroso. E se nas<br />
sondagens parecia ter garantida a vitória<br />
na primeira volta, era apenas para ser claramente<br />
derrotado pelo socialista Lionel<br />
Jospin na ronda decisiva. Em nenhum plano<br />
aparecia aquilo que entrará para os livros<br />
de História como o «sismo Le Pen»:<br />
o candidato da extrema-direita foi o segundo<br />
mais votado, beneficiando da grande<br />
divisão de votos entre os eleitores de esquerda.<br />
Chirac ficava assim com o caminho<br />
aberto para a reeleição, apesar de ter<br />
obtido a mais baixa votação alguma vez<br />
averbada por um Presidente francês: apenas<br />
19,8 por cento.<br />
A verdade é que começava nesse momento<br />
– de forma absolutamente inesperada<br />
– mais uma vertiginosa aceleração para<br />
o cume, na montanha-russa de Chirac.<br />
54 VISÃO 21 de Março de 2003