Edição especial - Visão
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GUERRA DO GOLFO II O tirano<br />
SADDAM HUSSEIN<br />
O fim do ‘Grande Pai’?<br />
Após quase 35 anos de poder absoluto, o ainda Presidente do Iraque<br />
enfrenta o último desafio da sua vida política<br />
FILIPE FIALHO<br />
Humor negro é algo que nunca faltou<br />
a Saddam Hussein. Quando o<br />
televisor de um dos seus compatriotas<br />
se avariava, a recomendação<br />
presidencial era invariavelmente a<br />
mesma: «Ponham um retrato meu no<br />
ecrã!» Nos próximos dias, caso se mantenham<br />
as emissões televisivas com as ladainhas<br />
do costume em louvor do homem<br />
que governa em Bagdad desde 1968, os<br />
iraquianos vão ter a oportunidade de desobedecer.<br />
Um gesto im-<br />
pensável caso não estivesse<br />
em curso uma operação<br />
militar que todos sabem<br />
destinar-se a depor o homem<br />
que é simultâneamente<br />
Chefe do Estado,<br />
comandante-chefe das<br />
Forças Armadas, presidente<br />
do Conselho Supremo<br />
da Revolução e secretário-<br />
-geral do Partido Baas,<br />
mas que prefere ser tratado<br />
como Papá Saddam,<br />
Grande Professor ou<br />
Grande Pai. E a entrada<br />
das tropas americanas, inglesas<br />
ou australianas, é<br />
apenas a primeira oportunidade<br />
do ajuste de contas<br />
entre a generalidade da<br />
população iraquiana e<br />
«aquele que se revela» –<br />
significado de «Saddam»<br />
em árabe. Não será de estranhar<br />
que enquanto a<br />
coligação ocidental bombardeia<br />
palácios, quartéis,<br />
ministérios ou centros de<br />
telecomunicações, os civis<br />
iraquianos tenham como<br />
alvo as omnipresentes estátuas,<br />
painéis, fotos e gravuras<br />
do Presidente. Um<br />
cenário que poderá assemelhar-se<br />
ao ocorrido em<br />
1989, quando os cidadãos<br />
dos países do antigo bloco<br />
CRONOLOGIA<br />
DE UM DITADOR<br />
1937(Abril) • Nasce em<br />
Al Oja, Tikrit, a norte<br />
de Bagdad<br />
1956 (Maio) • Envolve-se<br />
num golpe palaciano para<br />
derrubar o rei Faiçal II<br />
1959 (Julho) • Participa<br />
numa tentativa fracassada<br />
para assassinar o Presidente<br />
Abdul-Karim Qassem<br />
1968 (Julho) • Assume<br />
o cargo de vice-presidente<br />
1972 (Junho) • Ordena<br />
a nacionalização do petróleo<br />
1979 • Torna-se Chefe<br />
de Estado<br />
1980 (Setembro)<br />
• Manda invadir o Irão<br />
1988 (Março) • Ordena<br />
o esmagamento da rebelião<br />
curda com armas químicas<br />
1990 (Agosto) • Invade<br />
o Kuwait<br />
1991 (Janeiro) • Início<br />
da Guerra do Golfo<br />
1991 (Fevereiro)<br />
• Tropas iraquianas retiram<br />
do emirado<br />
1998 (Dezembro)<br />
• Recusa cooperar com os<br />
inspectores da ONU e Bagdad<br />
volta a ser bombardeada<br />
2003 (20 Março) • Início<br />
da nova Guerra do Golfo<br />
de Leste vandalizaram as imagens de<br />
Marx, Lenine e Estaline – sendo este último<br />
uma das figuras políticas que Saddam<br />
mais admira, a par de Maquiavel.<br />
Nascido em 1937, no seio de uma família<br />
de agricultores pobres de Al Oja, uma aldeia<br />
perto de Tikrit, diz a lenda negra que a mãe<br />
de Saddam tentou abortar quando estava<br />
grávida – uma intenção motivada pela morte<br />
do marido logo nos primeiros meses de<br />
gestação do futuro ditador. O menino converteu-se<br />
em enteado por via do novo matrimónio<br />
da mãe, e depressa manifestou<br />
vontade de fugir aos traba-<br />
lhos da terra e à tutela familiar.<br />
É ainda nesta fase que<br />
conhece um tio que haveria<br />
de ajudá-lo nos estudos, levando-o<br />
para Bagdad e<br />
moldando-o politicamente.<br />
«Há três coisas que não deviam<br />
existir neste mundo:<br />
as moscas, os persas e os judeus»<br />
é uma das máximas<br />
que o tio Khairallah Tulfah,<br />
um antigo oficial do exército<br />
que odiava o Ocidente,<br />
lhe terá inculcado para a vida.<br />
Aluno dedicado, Saddam<br />
só não conseguiu entrar<br />
para a Academia Militar<br />
em 1953, mas o tempo<br />
e a perseverança fariam<br />
dele um déspota precoce e<br />
esclarecido nos objectivos<br />
políticos: aos 17 anos assassina<br />
um primo, aos 19<br />
participa num regicídio<br />
fracassado (contra o rei<br />
Faiçal II), aos 22 envolve-<br />
-se noutra tentativa de golpe<br />
de Estado (desta vez<br />
contra o Presidente Abdul<br />
Karim Kassem), aos 31<br />
torna-se vice-presidente<br />
do Iraque e aos 42 é já o<br />
senhor supremo do país.<br />
Pelo meio, conheceu as<br />
masmorras de Bagdad e o<br />
exílio na Síria e no Egipto<br />
(onde terá flirtado com a<br />
CIA) e <strong>especial</strong>izou-se nas artes da tortura<br />
e em manobras palacianas para eliminar<br />
todo e qualquer opositor.<br />
Pagar com a traição<br />
Um dos episódios que melhor demonstram<br />
esta faceta foi a relação que manteve<br />
com o primo Ahmed Hassan al-Bakr.<br />
Este general tornou-se Presidente do Iraque<br />
na sequência do golpe que em Julho<br />
de 1968 instalou o Partido Baas no poder,<br />
e decidiu recompensar o jovem familiar<br />
com o segundo posto do regime. Saddam<br />
assumiu a chefia dos serviços de segurança<br />
e tratou de colocar os seus peões, quase<br />
todos naturais de Tikrit, nas estruturas<br />
de poder através de uma intrincada rede<br />
de informadores e espiões. Apesar das<br />
purgas, das perseguições e dos assassínios<br />
(ficaram célebres em Bagdad os enforcamentos<br />
público de judeus), era então<br />
apontado como o Kennedy do Médio<br />
Oriente: jovem, bem parecido, mulherengo,<br />
carismático e com uma enorme capacidade<br />
para «vender» os seus feitos.<br />
A nacionalização dos poços de petróleo<br />
e a recessão económica mundial dos anos<br />
70 ajudaram-no de forma decisiva. Os<br />
proventos do ouro negro permitiram-lhe<br />
construir escolas, estradas e fábricas, colocar<br />
os iraquianos no terceiro lugar entre<br />
os povos com maior rendimento per capita<br />
do mundo e reivindicar exclusivamente<br />
para si o poder.<br />
É então que coloca o Presidente al-<br />
-Bakr em prisão domiciliária (a versão oficial<br />
para o afastamento são «razões de<br />
saúde») e o força a assinar a resignação<br />
em Julho de 1979. Nos dias e semanas seguintes,<br />
mais de quatro centenas de oficiais<br />
das forças armadas e dezenas de dirigentes<br />
do Partido Baas são executados<br />
por «dissidência» ou «traição». O ambiente<br />
internacional também contribuía<br />
para que praticamente ninguém criticasse<br />
o novo Presidente. Em particular no vizinho<br />
Irão, onde o Xá foi nessa altura deposto<br />
pelos ayatollahs liderados por Khomeini,<br />
convertendo o país numa teocracia<br />
que a generalidade dos países ocidentais<br />
condenava. Aliás, foi esta animosidade<br />
56 VISÃO 21 de Março de 2003