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Os Silêncios de Eça

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<strong>Os</strong> <strong>Silêncios</strong> <strong>de</strong> <strong>Eça</strong> 1<br />

1. Num momento a vários títulos <strong>de</strong>cisivo d’A Correspondência <strong>de</strong> Fradique<br />

Men<strong>de</strong>s, po<strong>de</strong> ler-se:<br />

Logo que comecei a coleccionar as cartas dispersas <strong>de</strong> Fradique Men<strong>de</strong>s,<br />

escrevi a Madame Lobrinska contando o meu empenho em fixar num estudo<br />

carinhoso as feições <strong>de</strong>sse transcen<strong>de</strong>nte espírito – e implorando, se não<br />

alguns extractos dos seus manuscritos, ao menos algumas revelações sobre a<br />

sua natureza. A resposta <strong>de</strong> Madame Lobrinska foi uma recusa, bem<br />

<strong>de</strong>terminada, bem <strong>de</strong>duzida, – mostrando que <strong>de</strong>certo sob «os claros olhos <strong>de</strong><br />

Juno» estava uma clara razão <strong>de</strong> Minerva. «<strong>Os</strong> papéis <strong>de</strong> Carlos Fradique<br />

(dizia em suma) tinham-lhe sido confiados, a ela que vivia longe da<br />

publicida<strong>de</strong>, e do mundo que se interessa e lucra na publicida<strong>de</strong>, com o<br />

intuito <strong>de</strong> que, para sempre, conservassem o carácter íntimo e secreto em que<br />

tanto tempo Fradique os mantivera: e nestas condições o revelar a sua<br />

natureza seria manifestamente contrariar o recatado e altivo sentimento que<br />

ditara esse legado…» Isto vinha escrito, com uma letra grossa e redonda,<br />

numa larga folha <strong>de</strong> papel áspero, on<strong>de</strong> a um canto brilhava a ouro sob uma<br />

coroa <strong>de</strong> ouro esta divisa – «Per Terram Ad Cœlum». 1<br />

Poucos textos <strong>de</strong> <strong>Eça</strong> (talvez nenhum outro texto <strong>de</strong> <strong>Eça</strong>) seriam tão expressivos<br />

como este para encetarmos uma reflexão sobre os seus silêncios. Porque o que aqui está<br />

em causa é, <strong>de</strong> facto, a história <strong>de</strong> um silêncio, história em que habilmente se inscreve<br />

uma pon<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> largo alcance, acerca da posterida<strong>de</strong> do escritor, do <strong>de</strong>stino póstumo<br />

da sua obra e dos silêncios que esse <strong>de</strong>stino gera ou po<strong>de</strong> gerar. E como noutros casos<br />

consabidamente aconteceu – por exemplo, n’A Ilustre Casa <strong>de</strong> Ramires, a propósito da<br />

escrita da narrativa ou da questão do plágio –, também aqui o escritor soube insinuar, em<br />

inscrição metaficcional, uma doutrina que indirectamente o envolve sem expressa ou<br />

directamente o comprometer.<br />

1 In R. Zilberman et alii, <strong>Eça</strong> e outros: diálogos com a ficção <strong>de</strong> <strong>Eça</strong> <strong>de</strong> Queirós. Porto Alegre:<br />

EDIPUCRS, 2002, pp. 21-35.


De Fradique Men<strong>de</strong>s conhecemos, então, pouco mais do que aquilo que alguém –<br />

Madame Lobrinska, investida da condição <strong>de</strong> legatária - quis revelar; e por isso, a<br />

imagem cultural <strong>de</strong> Fradique ficou condicionada, para todo o sempre, por uma vonta<strong>de</strong><br />

outra, que não a sua, vonta<strong>de</strong> que postumamente tratou <strong>de</strong> o silenciar.<br />

Não entrarei aqui na questão tortuosa <strong>de</strong> discutir a legitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse gesto <strong>de</strong><br />

ocultação que Libuska protagonizou; do mesmo modo, não aventarei hipóteses, por mais<br />

engenhosas que sejam, para tentar discernir o que se encerra no “cofre espanhol do<br />

século XIV, <strong>de</strong> ferro lavrado, que Fradique <strong>de</strong>nominava a vala comum”, para on<strong>de</strong><br />

arrojava os seus manuscritos <strong>de</strong> publicação sempre adiada. Como se sabe, essa foi uma<br />

questão largamente discutida pelos amigos <strong>de</strong> Fradique e, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>les, por António<br />

Sardinha, num interessante ensaio não isento <strong>de</strong> propósito i<strong>de</strong>ológico 2 .<br />

Em vez disso, direi que, como Fradique Men<strong>de</strong>s (mas não, evi<strong>de</strong>ntemente, na<br />

mesma dimensão e com diferentes implicações), também <strong>Eça</strong> <strong>de</strong> Queirós foi um escritor<br />

se não <strong>de</strong>liberadamente silenciado por outros, pelo menos abundantemente póstumo. E<br />

foi-o como resultado <strong>de</strong> um auto-silenciamento que po<strong>de</strong> e <strong>de</strong>ve ser questionado,<br />

conforme aqui farei; o que daí resultou foi, como se sabe, uma história editorial<br />

complexa e, no mínimo, controversa, cujo edifício <strong>de</strong>sigual só há pouco tempo<br />

começou a ser reparado – até on<strong>de</strong> isso é possível, evi<strong>de</strong>ntemente – por estudos <strong>de</strong> crítica<br />

genética e por uma edição crítica em curso <strong>de</strong> preparação. Em resumo: se <strong>Eça</strong> publicou<br />

muito em vida, muito também <strong>de</strong>ixou por publicar; o que daí resultou foi,<br />

paradoxalmente, o ensur<strong>de</strong>cedor silêncio <strong>de</strong> textos que não pu<strong>de</strong>ram ficar calados,<br />

mesmo quando foram publicados (como quase sempre aconteceu) <strong>de</strong> forma muito<br />

precária e até não isenta <strong>de</strong> gestos censórios. <strong>Os</strong> her<strong>de</strong>iros do escritor e, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>les,<br />

editores pouco escrupulosos respon<strong>de</strong>m por isso.<br />

2. Aquilo que costuma fazer-se, no que à criação literária diz respeito, é explicar<br />

ou tentar explicar as razões pelas quais um escritor escreve e publica um texto. Seja <strong>de</strong><br />

um ponto <strong>de</strong> vista histórico-literário, socioliterário, psicanalítico ou <strong>de</strong> outro qualquer<br />

ângulo <strong>de</strong> abordagem, tentamos enten<strong>de</strong>r por que razão ou razões o escritor diz uma<br />

palavra cuja sorte <strong>de</strong>pois é confiada à comunida<strong>de</strong> cultural. Poucas vezes interrogamos<br />

as razões do silêncio: o silêncio dificilmente sondável do que fica por escrever ou o


silêncio mais acessível, mas ainda assim não raro problemático, do que, tendo sido<br />

escrito, fica por publicar. E contudo, penso que os silêncios <strong>de</strong> um escritor constituem um<br />

terreno <strong>de</strong> indagação potencialmente muito fértil, para melhor enten<strong>de</strong>rmos o que na sua<br />

obra autorizada se enuncia.<br />

<strong>Eça</strong> <strong>de</strong> Queirós foi um escritor, passe o paradoxo, abundante em silêncios.<br />

Atravessa a sua obra – a que publicou, mas sobretudo a que não publicou e, antes <strong>de</strong>la, a<br />

que não chegou a escrever - uma espécie <strong>de</strong> síndrome do silêncio, em função do qual<br />

po<strong>de</strong> mesmo afirmar-se que, nele, no princípio não era o verbo, mas a sua ausência. Só<br />

com consi<strong>de</strong>rável esforço (e mesmo com algum sofrimento) ao silêncio fundador se<br />

seguiu uma palavra literária criada e assumida como tal; <strong>de</strong>pois – quer dizer: <strong>de</strong>pois da<br />

morte física do escritor –, reinstaurou-se, por um tempo breve, o silêncio que ele <strong>de</strong> certa<br />

forma procurara e que outros, com maior ou com menor legitimida<strong>de</strong>, vieram a superar.<br />

3. Para bem enten<strong>de</strong>rmos o alcance e a dimensão dos silêncios <strong>de</strong> <strong>Eça</strong> importa<br />

dizer que, se há escritor que, no seu tempo e sob o signo dos paradigmas culturais que o<br />

regeram, viveu uma árdua aprendizagem da escrita, esse escritor foi, por certo, <strong>Eça</strong> <strong>de</strong><br />

Queirós. As notícias que, neste aspecto, <strong>de</strong>le temos começam por falar <strong>de</strong> tentativas<br />

frustradas que, na prática, correspon<strong>de</strong>m a silêncios: o jovem <strong>Eça</strong> parece, <strong>de</strong> facto, ter<br />

sido fértil em projectos falhados, que provavelmente pouco mais foram do que isso<br />

mesmo. De uma História <strong>de</strong> um Lindo Corpo testemunhada por Jaime Batalha Reis,<br />

pouco mais se sabe do que esse testemunho 3 ; e do relato Uma Conspiração em Havana,<br />

atestado na correspondência do mesmo Batalha Reis não ficou praticamente nada mais, a<br />

não ser essa atestação.<br />

Antes disso e <strong>de</strong>pois disso, <strong>Eça</strong> <strong>de</strong> Queirós tarda em afirmar-se na plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

uma autoria inteiramente assumida nos planos estético, i<strong>de</strong>ológico e jurídico. A este<br />

propósito, convém lembrar que, embora sob o signo <strong>de</strong> uma encenação textual <strong>de</strong> recorte<br />

romântico, o primeiro texto publicado que <strong>de</strong> <strong>Eça</strong> se conhece traduz uma experiência <strong>de</strong><br />

apocrifia: “Na margem do papel marcado, on<strong>de</strong> se viam ainda estes restos <strong>de</strong> uma velha<br />

cantiga, alguém escreveu estas notas <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nadas e bizarras.” Estes “restos <strong>de</strong> uma<br />

velha cantiga” com que abre o folhetim “Notas Marginais”, em 1866, possuem<br />

consabidamente um tom heiniano que prece<strong>de</strong> a palavra queirosiana propriamente dita,


palavra, <strong>de</strong> resto, reduzida àquela breve informação 4 ; o que se lhe segue são as “notas<br />

<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nadas e bizarras” que ocupam todo o resto do folhetim, como se o jovem <strong>Eça</strong><br />

permanecesse refugiado sob a ocultação <strong>de</strong> um texto apresentado como <strong>de</strong> autoria<br />

alheia. Uma autoria alheia que, assim, acaba por funcionar como factor <strong>de</strong> silenciamento.<br />

A isto seguem-se parcerias, estratagemas vários e mais mistificações: em 1867,<br />

no Distrito <strong>de</strong> Évora, cenário <strong>de</strong> experiências fundadoras <strong>de</strong> <strong>de</strong>sdobramento, que mais<br />

tar<strong>de</strong> hão-<strong>de</strong> dar frutos saborosos; nas páginas da Revolução <strong>de</strong> Setembro e d’O Primeiro<br />

<strong>de</strong> Janeiro, em 1869, quando, com as cumplicida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Batalha Reis e Antero <strong>de</strong><br />

Quental, emerge o primeiro Fradique Men<strong>de</strong>s, tentativa <strong>de</strong> alterida<strong>de</strong> agora mais<br />

consistente do que a daquele jornalista que no Distrito <strong>de</strong> Évora assinava com as iniciais<br />

A.Z. as correspondências do Reino; em 1870, nova parceria e nova mistificação, <strong>de</strong>sta<br />

vez com Ramalho Ortigão, nas páginas do Diário <strong>de</strong> Notícias, quando se publicam as<br />

cartas que, ainda nesse ano, originam a publicação <strong>de</strong> um romance epistolar chamado O<br />

Mistério da Estrada <strong>de</strong> Sintra: é esse o primeiro a que <strong>Eça</strong> dá o seu nome <strong>de</strong> autor, mas<br />

não ainda <strong>de</strong> forma inteiramente individualizada, do mesmo modo que a autoria d’As<br />

Farpas, em 1871-72, é ainda compartida; e no que às responsabilida<strong>de</strong>s autorais diz<br />

respeito, a <strong>de</strong>strinça só acontece com a publicação dos dois volumes <strong>de</strong> Uma Campanha<br />

Alegre, em 1890-91, o que não impe<strong>de</strong> <strong>Eça</strong> <strong>de</strong> ce<strong>de</strong>r à tentação do silenciamento,<br />

traduzido na supressão <strong>de</strong> textos d’As Farpas originais.<br />

Tarda muito, então, em aparecer um autor <strong>de</strong> livros literários chamado <strong>Eça</strong> <strong>de</strong><br />

Queirós: só em 1876 isso ocorre, quando se publica a segunda versão d’O Crime do<br />

Padre Amaro. É caso para dizer, que, aos 31 anos e comparado com outros, <strong>Eça</strong> não era<br />

talvez, em livro, um autor serôdio; mas para quem tanto tinha já escrito não se po<strong>de</strong> dizer<br />

que fosse cedo para aparecer nessa condição. Por <strong>de</strong>trás da <strong>de</strong>mora estava o que tenho<br />

vindo a sugerir: uma quase inelutável tendência para a ocultação, mesmo para o silêncio,<br />

ambas evi<strong>de</strong>nciando uma espécie <strong>de</strong> retracção <strong>de</strong> uma adiada capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> afirmação<br />

autoral. E contudo, essa afirmação autoral era quase obrigatória em quem viveu as<br />

solidarieda<strong>de</strong>s geracionais e as vinculações i<strong>de</strong>ológicas que são conhecidas e que quase<br />

impunham maior ousadia e <strong>de</strong>senvoltura autoral.<br />

É certo que, imediatamente antes da versão <strong>de</strong> 1876, <strong>Eça</strong> publicara (mais certo<br />

seria talvez dizer que fora publicada) uma primeira versão d’O Crime do Padre Amaro.


Nesse caso e por razões que têm que ver com a publicação quase tentativa daquele relato<br />

nas páginas da Revista Oci<strong>de</strong>ntal, o silenciamento foi subsequente e processou-se <strong>de</strong><br />

forma por assim dizer mais drástica: o jovem romancista procurou rasurar o erro (erro <strong>de</strong><br />

que não foi único responsável, aliás), reescreveu o romance e inscreveu no seu<br />

fronstispício a expressão “Edição <strong>de</strong>finitiva”. Também por isso, aquela incipiente<br />

primeira versão <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rada um texto não-autorizado, o que explica a sua<br />

exclusão <strong>de</strong> uma edição crítica que o entenda como tal; mas além disso, a superação da<br />

primeira pela segunda versão mais não faz, neste momento <strong>de</strong>cisivo da formação do<br />

romancista, do que inaugurar um processo muitas vezes reiterado ao longo da vida<br />

literária <strong>de</strong> <strong>Eça</strong> e, por estranho que possa parecer, mesmo <strong>de</strong>pois da sua morte. Por outras<br />

palavras: ao escrever uma nova versão, com intervenções estruturais e semântico-<br />

pragmáticas que em muito transcen<strong>de</strong>m a revisão estilística <strong>de</strong> curto alcance textual, <strong>Eça</strong><br />

busca cancelar a versão anterior e reduzir ao silêncio uma palavra já enunciada. Isso<br />

mesmo veio a acontecer, como se sabe, com essa “Edição <strong>de</strong>finitiva” d’O Crime do<br />

Padre Amaro, logo anulada por uma terceira versão, essa sim <strong>de</strong>finitiva, em 1880.<br />

4. A problemática do silêncio em <strong>Eça</strong> <strong>de</strong> Queirós, nos termos em que tenho vindo<br />

a analisá-la, envolve estádios e motivações muito diversas, <strong>de</strong> que a atribulada história<br />

literária d’ O Crime do Padre Amaro é apenas um episódio.<br />

O bem evi<strong>de</strong>nte lugar <strong>de</strong> representação <strong>de</strong>sses vários estádios e motivações <strong>de</strong><br />

silenciamento da palavra literária encontra-se no espólio do escritor. É verda<strong>de</strong> que todos<br />

os espólios po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>rados, por aquilo que encerram, testemunho <strong>de</strong> dúvidas, <strong>de</strong><br />

hesitações e, em última instância, atestação do silêncio, entendido como suspensão da<br />

publicida<strong>de</strong> daquilo que chegou a ser escrito; um silêncio que é tanto mais expressivo e<br />

mesmo dramático, quanto mais adiantado (por vezes até acabado) se encontra o texto<br />

confinado à vala comum <strong>de</strong> um espólio. No caso do espólio <strong>de</strong> <strong>Eça</strong> <strong>de</strong> Queirós, a<br />

situação é, como se sabe, complexa e diversificada, uma vez que nele se encontram<br />

materiais que cobrem um arco <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>s e <strong>de</strong> momentos escriturais muito amplo. Da<br />

recolha incipiente e informe <strong>de</strong> elementos estruturantes da narrativa (como as<br />

personagens apenas elencadas e mal caracterizadas) à transcodificação pela escrita <strong>de</strong><br />

uma adaptação teatral <strong>de</strong> um romance, são variadas as situações que se nos <strong>de</strong>param 5 .


Várias <strong>de</strong>las correspon<strong>de</strong>m a esboços (digamos assim) que estariam, pela sua natureza,<br />

con<strong>de</strong>nados a permanecer para todo o sempre materiais <strong>de</strong> trabalho reservados, muito<br />

aquém <strong>de</strong> qualquer hipótese <strong>de</strong> publicação; outros encontram-se em momento <strong>de</strong><br />

elaboração já consi<strong>de</strong>ravelmente adiantado, mas ainda assim não isentos <strong>de</strong> problemas e<br />

<strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong>s, como é eloquentemente evi<strong>de</strong>nciado pelas <strong>de</strong>sastrosas publicações<br />

póstumas d’A Capital, d’O Con<strong>de</strong> d’Abranhos, do Alves & Ciª (todos em 1925) e d’A<br />

Tragédia da Rua das Flores, mais recentemente.<br />

É verda<strong>de</strong> que não se encontra no espólio queirosiano (no que é conhecido,<br />

entenda-se) nenhum texto que possa dizer-se inequivocamente acabado e, por isso,<br />

objecto <strong>de</strong> um silenciamento atribuível apenas e só a auto-censura moral, i<strong>de</strong>ológica ou<br />

estética. Não é necessário, contudo, que o texto esteja acabado para que o escritor o<br />

reduza ao silêncio. Em <strong>Eça</strong>, aliás e como é sabido, esse momento <strong>de</strong> acabamento<br />

irreversível nem com a última prova tipográfica estava consumado, pois que, conforme<br />

se viu, uma nova versão frequentemente reabria o processo <strong>de</strong> escrita. O episódio d’A<br />

Batalha do Caia mostra que a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> não publicar o que se escrevera (ou até <strong>de</strong> não<br />

escrever o que fora projectado) era uma <strong>de</strong>cisão problemática e não isenta <strong>de</strong><br />

pon<strong>de</strong>rações sinuosas.<br />

Relembre-se esse episódio, nos seus traços largos. Tendo concebido um relato que<br />

narraria a invasão <strong>de</strong> Portugal por Espanha, <strong>Eça</strong> consulta o amigo Ramalho Ortigão e<br />

pe<strong>de</strong>-lhe ajuda, colocando-o perante a hipótese <strong>de</strong> não publicar esse texto provavelmente<br />

ainda nem escrito, quando muito apenas esboçado; uma tal mutilação <strong>de</strong>veria, contudo,<br />

ser <strong>de</strong>vidamente compensada pelo po<strong>de</strong>r político a quem a catástrofe chocaria, para mais<br />

sendo relatada, mesmo que como invenção ficcional, por um funcionário do Estado com<br />

responsabilida<strong>de</strong>s diplomáticas. As palavras <strong>de</strong> <strong>Eça</strong>, na carta a Ramalho, não podiam ser<br />

mais explícitas: “Além do escândalo, quero dinheiro”. A proposta não primava, como<br />

parece claro, pela lisura ética e, por isso, a resposta <strong>de</strong> Ramalho a um tal enredo só podia<br />

ser uma indignada recusa e a acusação <strong>de</strong> chantagem 6 .<br />

O que daqui me interessa reter não são, contudo, as divergências éticas entre dois<br />

amigos, por causa <strong>de</strong>ste episódio lamentável. O que importa sublinhar agora é que, por<br />

causa <strong>de</strong>le, um escritor expressamente <strong>de</strong>clara o seguinte:


Ma pensé [sic] intime é esta: que o livro (sendo útil como meio <strong>de</strong><br />

mostrar ao País as consequências <strong>de</strong> prolongar uma tão horrorosa condição <strong>de</strong><br />

abaixamento) – é, por um lado, inoportuno, por outro um ataque <strong>de</strong> folha em<br />

folha à vizinha Espanha: e serve portanto apenas para criar irritação. Por isso<br />

era talvez melhor que se não publicasse. 7<br />

Falar, como <strong>Eça</strong> faz, <strong>de</strong> um “livro” é certamente um exagero. A verda<strong>de</strong>, porém, é<br />

que algo mais ficou <strong>de</strong>ste projecto do que o “plano-argumento” a que a carta citada se<br />

refere: ficou um relato já relativamente circunstanciado, em 34 páginas a lápis, que é o<br />

que conhecemos com o título A Catástrofe.<br />

Seja como for, estamos aqui perante uma situação realmente singular: a situação<br />

<strong>de</strong> um romancista que, num tempo pessoal <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> energia criativa e num tempo<br />

cultural e social em que as práticas literárias existiam em função <strong>de</strong> um público amplo,<br />

concebe um romance e enceta a sua escrita <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo pensando não na sua publicação,<br />

mas na sua suspensão. Exagerando um pouco (mas não muito) po<strong>de</strong>r-se-ia até dizer que o<br />

projecto d’A Batalha do Caia se assemelha ao daquelas armas temíveis, que existem<br />

para não ser utilizadas, representando, por isso mesmo, uma ameaça com consi<strong>de</strong>rável<br />

peso estratégico.<br />

É cedo, por certo, para se falar numa estética queirosiana do silêncio; mas não é<br />

<strong>de</strong>sajustado enten<strong>de</strong>r este episódio d’A Batalha do Caia como um estádio importante <strong>de</strong><br />

maturação do trabalho literário queirosiano, estádio que envolve não só componentes e<br />

<strong>de</strong>cisões estéticas, mas também (ou até sobretudo) componentes e <strong>de</strong>cisões políticas,<br />

projectadas num fundo com fortes implicações éticas. No termo <strong>de</strong>ssa maturação,<br />

reencontraremos Fradique Men<strong>de</strong>s e a sua vocação para o silêncio.<br />

O que A Batalha do Caia sugere, antes <strong>de</strong> lá chegarmos, é que existem, em <strong>Eça</strong>,<br />

motivações para o silêncio que importa indagar. Obe<strong>de</strong>ce-se assim à intuição <strong>de</strong> que os<br />

silêncios do escritor, não sendo certamente mais significativos do que os discursos que<br />

assumiu plenamente - isto é: os textos que concebeu, que escreveu e que, pela<br />

publicação, autorizou -, evi<strong>de</strong>nciam preocupações estéticas e éticas que po<strong>de</strong>m iluminar<br />

os textos autorizados e, em geral, a estética queirosiana enquanto filosofia artística<br />

orientada para uma prática cultural <strong>de</strong> feição literária.<br />

Para bem atingirmos o alcance <strong>de</strong>sta hipótese <strong>de</strong> trabalho, torna-se necessário<br />

relembrar aquilo que, com uma frequência não <strong>de</strong>stituída <strong>de</strong> ligeireza, parece esquecido:


do conjunto da obra literária usualmente reconhecida como da autoria <strong>de</strong> <strong>Eça</strong>, vários<br />

títulos não o são, em absoluto rigor. A Capital, O Con<strong>de</strong> d’Abranhos, Alves & Ciª e A<br />

Tragédia da Rua das Flores, bem como diversos outros textos <strong>de</strong> menor notorieda<strong>de</strong> -<br />

por exemplo, as Lendas <strong>de</strong> Santos –, foram objecto <strong>de</strong> publicações póstumas, <strong>de</strong> muito<br />

duvidosa factura e em termos que não é forçado supor distantes <strong>de</strong> uma vonta<strong>de</strong> autoral<br />

que, nos casos citados, optou pela omissão. As edições póstumas trataram <strong>de</strong> ignorar<br />

essa omissão, pagando para isso o preço <strong>de</strong> intervenções cujo alcance e consequências<br />

são agora patenteadas pelas edições críticas já publicadas 8 .<br />

Em vida, a vonta<strong>de</strong> autoral queirosiana contemplou e consumou, até às últimas<br />

consequências, um conjunto relativamente escasso <strong>de</strong> títulos: <strong>de</strong> exclusiva autoria<br />

queirosiana, foram publicados, antes <strong>de</strong> 1900, quatro romances e uma novela: O Crime<br />

do Padre Amaro, O Primo Basílio, O Mandarim, <strong>Os</strong> Maias e A Relíquia; o romance O<br />

Mistério da Estrada <strong>de</strong> Sintra é um texto a quatro mãos (contando com as duas <strong>de</strong><br />

Ramalho Ortigão) e a sua última publicação em vida <strong>de</strong> <strong>Eça</strong> revela, por parte <strong>de</strong>ste seu<br />

co-autor, sérias dúvidas quanto à bonda<strong>de</strong> estética <strong>de</strong> uma empresa conjunta quase<br />

<strong>de</strong>sautorizada: “O que pensamos hoje do romance que escrevemos há catorze anos?”<br />

interroga-se <strong>Eça</strong>, dando voz também a Ramalho; “pensamos simplesmente – louvores a<br />

Deus! – que ele é execrável; e nenhum <strong>de</strong> nós, quer como romancista, quer como crítico,<br />

<strong>de</strong>seja, nem ao seu pior inimigo, um livro igual.”<br />

Aos Contos não chegou <strong>Eça</strong> <strong>de</strong> Queirós a dar corpo <strong>de</strong> livro, esse livro em que o<br />

escritor teria que tomar <strong>de</strong>cisões macro-compositivas e paratextuais, que <strong>de</strong>veriam ir da<br />

or<strong>de</strong>nação dos relatos ao título, sem esquecer, antes disso, a escolha daquilo que valeria<br />

ou não valeria a pena consagrar em volume. Para além disso e como se o Destino se<br />

empenhasse em coadjuvar a vocação queirosiana para a publicida<strong>de</strong> póstuma, mesmo<br />

obras em curso <strong>de</strong> publicação à data da morte, acabaram, em rigor, por ser póstumas:<br />

aconteceu assim com A Ilustre Casa <strong>de</strong> Ramires, com A Correspondência <strong>de</strong> Fradique<br />

Men<strong>de</strong>s e com A Cida<strong>de</strong> e as Serras, textos em que aquilo que pertence a <strong>Eça</strong> e o que<br />

proveio <strong>de</strong> intervenções estranhas, efectivamente existentes, apareceu fundido, a <strong>de</strong>safiar<br />

o labor <strong>de</strong> editores com capacida<strong>de</strong> e com coragem para, finalmente, separarem, até on<strong>de</strong><br />

isso é possível, o trigo do joio. Com razão, Guerra da Cal classificou estes três títulos<br />

como semi-póstumos, remetendo, com essa expressão, para a existência <strong>de</strong> uma tensão


entre responsabilida<strong>de</strong> autoral e responsabilida<strong>de</strong> editorial, tensão que, sobretudo nestes<br />

casos, parece inevitável.<br />

Perante o que fica dito, é importante notar o seguinte: <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> 1888, ano da<br />

publicação d’<strong>Os</strong> Maias, e até à sua morte (ou seja, durante doze anos), <strong>Eça</strong> não voltou a<br />

publicar qualquer obra ficcional nova. O romancista <strong>Eça</strong> <strong>de</strong> Queirós, publicado em livro e<br />

por si só, começa apenas em 1876, com a segunda versão d’O Crime do Padre Amaro, e<br />

acaba logo em 1888, com <strong>Os</strong> Maias; e se aceitarmos que a terceira versão do Crime (a <strong>de</strong><br />

1880) cancelou (quer dizer: <strong>de</strong>sautorizou) a segunda versão, então o tempo <strong>de</strong> vida do<br />

<strong>Eça</strong> romancista com obra publicada e por ele autorizada dura os curtos <strong>de</strong>z anos que<br />

me<strong>de</strong>iam entre O Primo Basílio (1878) e <strong>Os</strong> Maias.<br />

Tudo isto ganha uma dimensão e um significado mais complexos, quando<br />

verificamos que, como foi já sugerido, <strong>Eça</strong> publicou pouco, mas escreveu muito. De certa<br />

forma, terá até escrito mais do que aquilo que viu publicado ou até do que aquilo que<br />

quis, efectivamente, publicar. E é por isso que a indagação sobre os seus silêncios faz<br />

sentido, também porque esses silêncios não são <strong>de</strong>terminados por falta <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>s<br />

para publicar, eventualmente pela recusa <strong>de</strong> editores, coisa <strong>de</strong> que <strong>Eça</strong> não po<strong>de</strong> queixar-<br />

se. Mais: o silêncio queirosiano, consumado por suspensão da publicida<strong>de</strong>, é uma atitu<strong>de</strong><br />

que se não restringe a textos ficcionais, mas que atinge, num processo que envolve toda a<br />

activida<strong>de</strong> escritural queisosiana, outros textos que, como se verá, não são, <strong>de</strong>ste ponto <strong>de</strong><br />

vista, menos significativos. Antes <strong>de</strong> lá chegarmos, vale a pena observar os casos mais<br />

conhecidos (que são os dos textos ficcionais <strong>de</strong>ixados inéditos) e aventar, para eles,<br />

explicações que neste momento não po<strong>de</strong>m ser muito circunstanciadas.<br />

5. D’A Batalha do Caia já se falou aqui. No que à motivação para o silêncio diz<br />

respeito, trata-se talvez do caso <strong>de</strong> menos problemática explicação, se fizermos fé no<br />

diálogo epistolar mantido com Ramalho Ortigão e, naturalmente, no que sabemos (e não<br />

é pouco) daquele projecto e do contexto em que ele aparecia. Po<strong>de</strong>, então, afirmar-se com<br />

alguma segurança: <strong>Eça</strong> <strong>de</strong> Queirós suspen<strong>de</strong>u A Batalha do Caia por razões políticas e<br />

i<strong>de</strong>ológicas, adoptando um comportamento muito próximo da auto-censura, com o<br />

estímulo da reprimenda <strong>de</strong> Ramalho Ortigão e da reacção assustada dos escassos leitores


(talvez só um e na posição <strong>de</strong> ouvinte) que tiveram acesso a alguma coisa do texto.<br />

Relembro um passo da carta a Ramalho:<br />

Eu li o esboço ao Vaz, rapaz distinto, nosso attaché em Londres: estou<br />

a vê-lo no meu sofá, com as mãos apertadas na cabeça, murmurando com um<br />

ar azabumbado: - «Que escândalo! Que escândalo!» - Quando eu cheguei ao<br />

capítulo (li-o no plano-argumento) da fuga do rei, e da anarquia em Lisboa –<br />

o rapaz ergueu-se, pálido:<br />

- Oh, amigo! Oh, amigo!<br />

Et il avait <strong>de</strong>s larmes dans la voix!<br />

Despediu-se <strong>de</strong> mim, dizendo com um tom lúgubre: - Queime isso!<br />

Queime isso! 9 ”<br />

No caso d’A Tragédia da Rua das Flores a questão é talvez mais complexa,<br />

sobretudo se tivermos em conta que se trata agora <strong>de</strong> um texto mais <strong>de</strong>senvolvido e<br />

elaborado do que A Batalha do Caia. Ainda assim, não é certamente arriscado supor que<br />

a con<strong>de</strong>nação do manuscrito à vasta gaveta dos projectos para sempre inacabados teve<br />

que ver com cautelas <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m moral, que são as inerentes ao tema que estrutura o relato.<br />

O testemunho <strong>de</strong> <strong>Eça</strong> a este propósito é elucidativo, testemunho expresso numa carta <strong>de</strong><br />

1877 ao seu editor, em que o escritor parecia querer contrariar os riscos da “imoralida<strong>de</strong>”<br />

que para outros eram evi<strong>de</strong>ntes: “Uma das novelas está quase pronta – é só copiá-la:<br />

chama-se O Desastre da Travessa do Caldas ou, talvez, não sei ainda, O Caso Atroz da<br />

Genoveva. Trata-se dum incesto involuntário. Alguns amigos a quem comuniquei a i<strong>de</strong>ia<br />

<strong>de</strong>la e parte da execução, ficaram impressionados, ainda que um pouco escandalizados. –<br />

Não quer dizer que seja imoral. É cruel…” 10<br />

Além <strong>de</strong> silenciado, o romance-virtual A Tragédia da Rua das Flores foi<br />

compensado (ou redimensionado, em registo menos chocante) n’<strong>Os</strong> Maias, romance em<br />

que reconhecemos algumas situações e personagens recuperadas da Tragédia e o mesmo<br />

tema, reduzido, contudo, a um patamar menos chocante e talvez menos “absurdo”<br />

(expressão <strong>de</strong> João da Ega), se tal é possível: incesto entre irmãos.<br />

Bem diferente <strong>de</strong>ste é o caso d’A Capital!, a começar pelo facto <strong>de</strong> estarmos<br />

agora perante um texto que chegou a ter fronstispício impresso e provas já paginadas,<br />

embora, como sempre, muito emendadas. Porquê, então, o cancelamento ou (talvez<br />

melhor) o fracasso da publicação? Provavelmente por razões puramente aci<strong>de</strong>ntais, como


se novos projectos e mesmo transformações da poética e da prática literária queirosianas,<br />

em movimento evolutivo acelerado, tivessem prejudicado o acabamento e a consumação<br />

plena <strong>de</strong>ssa que po<strong>de</strong>ria ter sido a gran<strong>de</strong> obra <strong>de</strong> <strong>Eça</strong> <strong>de</strong> Queirós.<br />

Vale a pena citar, a este propósito uma carta <strong>de</strong> <strong>Eça</strong> a Ramalho Ortigão, <strong>de</strong> 20 <strong>de</strong><br />

Fevereiro <strong>de</strong> 1881, em que o escritor <strong>de</strong>clara: “Quando eu estive em Lisboa, o Malheiro<br />

pediu-me que escrevesse para o «Diário» um romance […] Para o satisfazer, interrompi a<br />

«Capital», estragando-a para sempre, creio eu, porque vejo agora que não po<strong>de</strong>rei<br />

recuperar o fio <strong>de</strong> veia e <strong>de</strong> sentimento em que ela ia tratada”. O romance prometido ao<br />

Diário <strong>de</strong> Portugal, substituído <strong>de</strong>pois pel’O Mandarim e adiado para as calendas <strong>de</strong><br />

1888, é, evi<strong>de</strong>ntemente, <strong>Os</strong> Maias; e o preço pago por <strong>Eça</strong> para dar forma a esse vasto e<br />

complexo projecto foi o “estrago” provocado n’A Capital! que é talvez, do ponto <strong>de</strong> vista<br />

que tenho vindo a contemplar, o caso menos interessante, porventura da mesma família,<br />

neste aspecto, <strong>de</strong> Alves & Ciª.<br />

Bem mais interessante é o processo d’O Con<strong>de</strong> d’Abranhos. O que <strong>de</strong>le nos<br />

chegou foi um manuscrito a lápis, com o aspecto <strong>de</strong> ter sido escrito <strong>de</strong> um jacto,<br />

certamente em 1879 e relatando a biografia ficcional <strong>de</strong> um homem <strong>de</strong> Estado a quem um<br />

zeloso secretário paga o tributo <strong>de</strong> admiração que esse relato biográfico, <strong>de</strong> coloração<br />

panegírica, bem traduz.<br />

Tematicamente, O Con<strong>de</strong> d’Abranhos pouco acrescenta à produção literária<br />

queirosiana provinda da militância realista e socialista <strong>de</strong> um escritor vocacionado para<br />

fazer o processo crítico dos costumes políticos, culturais e sociais do constitucionalismo<br />

português; do ponto <strong>de</strong> vista da estratégia narrativa perfilhada, a situação é, contudo, um<br />

tanto melindrosa: o retrato <strong>de</strong> um político medíocre e corrupto, traçado por um secretário<br />

servil, parcial e mesmo imbecilizado implica uma relação comunicativa cuja<br />

funcionalida<strong>de</strong> crítica requer uma leitura que <strong>de</strong>duza do <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> Zagalo o inverso<br />

do que ele afirma. A propensão radicalmente irónica que rege a narrativa aponta, então,<br />

mais longe do que era usual nos romances <strong>de</strong> narrador anónimo, heterodiegético e<br />

distanciado, até on<strong>de</strong> isso era possível. De forma porventura um tanto redutora, po<strong>de</strong><br />

afirmar-se que O Con<strong>de</strong> d’Abranhos encena um <strong>de</strong>sajustamento: o arriscado<br />

<strong>de</strong>sajustamento entre a componente semântica da narrativa (enquanto crítica a um sistema<br />

social) e a sua funcionalida<strong>de</strong> pragmática, solicitando uma leitura sinuosa e não linear dos


juízos do narrador fanatizado por essa contrafacção do talento que em vida se chamou<br />

Alípio Severo Abranhos. <strong>Eça</strong> <strong>de</strong> Queirós apercebe-se, por certo, disso mesmo; e, sendo o<br />

escritor o que era em 1879, entre a publicação d’O Primo Basílio e a da terceira versão<br />

d’O Crime do Padre Amaro, o resultado do que chamei <strong>de</strong>sajustamento entre semântica e<br />

pragmática do relato só podia ser o silenciamento da palavra <strong>de</strong> Zagalo.<br />

6. Não serão consi<strong>de</strong>rados neste momento outros silêncios queirosianos, com forte<br />

incidência no plano doutrinário. O que neles observamos é o esboço, logo seguido <strong>de</strong><br />

suspensão e cancelamento, <strong>de</strong> reflexões metaliterárias e metaculturais. Textos como<br />

“I<strong>de</strong>alismo e Realismo” (texto <strong>de</strong> 1879, assim <strong>de</strong>signado pelo filho <strong>de</strong> <strong>Eça</strong>, que o incluiu<br />

nas Cartas Inéditas <strong>de</strong> Fradique Men<strong>de</strong>s e mais Páginas Esquecidas, <strong>de</strong> 1929), “O<br />

‘Francesismo’” (provavelmente <strong>de</strong> 1887) ou a carta <strong>de</strong> Fradique Men<strong>de</strong>s “A E…”<br />

(também publicada postumamente no mesmo volume <strong>de</strong> 1929) carecem <strong>de</strong> uma análise<br />

alongada, que agora não po<strong>de</strong> ser feita, análise que, por outro lado, faz <strong>de</strong>rivar a questão<br />

dos silêncios <strong>de</strong> <strong>Eça</strong> para esse campo doutrinário que, sendo por assim dizer paralelo (e<br />

interactivo) com o campo da criação literária propriamente dita, não se confun<strong>de</strong> com ele.<br />

Isto sem embargo <strong>de</strong> reconhecermos que a carta <strong>de</strong> Fradique “A E…” constitui um<br />

documento que, <strong>de</strong>ste ponto <strong>de</strong> vista, é um tanto híbrido, uma vez que a sua condição<br />

ficcional surge estrategicamente <strong>de</strong>svanecida por ser o <strong>de</strong>stinatário quem é: <strong>Eça</strong> <strong>de</strong><br />

Queirós.<br />

Com Fradique Men<strong>de</strong>s, com o fradiquismo entendido como pensamento e como<br />

poética <strong>de</strong>le <strong>de</strong>duzidos, chega, no tempo do que chamamos o último <strong>Eça</strong>, o momento<br />

culminante do silêncio e, por isso, termo <strong>de</strong> chegada <strong>de</strong> um fundamental veio evolutivo<br />

da obra e da estética queirosianas. Silêncio agora condividido, <strong>de</strong> forma algo ambígua,<br />

por <strong>Eça</strong> e por esse outro que <strong>de</strong>le tenta autonomizar-se, mas silêncio que, em registo <strong>de</strong><br />

ironia trágica, juntará numa única a morte do escritor e a falência da palavra literária,<br />

quando, em 1900, morre <strong>Eça</strong> e se conhece <strong>de</strong> Fradique Men<strong>de</strong>s o escasso legado que são<br />

as suas cartas, mas não a obra que ele, afinal, não tinha.<br />

A vocação para o silêncio que em Fradique Men<strong>de</strong>s surpreen<strong>de</strong>mos é, como se<br />

viu no início, confirmada por alguém que se assume como legatária, mas também como<br />

executora cúmplice <strong>de</strong> uma atitu<strong>de</strong> estética e <strong>de</strong> uma ética da criação literária. Depois <strong>de</strong>


tantos outros silêncios, assumidamente queirosianos e motivados por razões variadas, o<br />

silêncio em que se resolve a poética fradiquista surge inequivocamente enunciado em<br />

vida pelo próprio Fradique, num contexto em que antes <strong>de</strong> mais se questiona a<br />

possibilida<strong>de</strong> da representação do real e, perante a sua falência, a própria legitimida<strong>de</strong> da<br />

literatura. No fundo, é já a impossibilida<strong>de</strong> do livro (ou o absurdo do seu excesso,<br />

parodicamente encenado n’A Cida<strong>de</strong> e as Serras) que no final da sua vida literária <strong>Eça</strong><br />

<strong>de</strong> Queirós traz à cena literária do seu tempo, juntamente com outros que, voluntária ou<br />

involuntariamente, viveram essa impossibilida<strong>de</strong>, logo então ou mais tar<strong>de</strong>: Cesário<br />

Ver<strong>de</strong>, Mallarmé, Camilo Pessanha, os “poetas complementares” <strong>de</strong> Antonio Machado<br />

ou Bernardo Soares.<br />

Um dia o biógrafo <strong>de</strong> Fradique pergunta-lhe: “– Fradique! porque não escreve<br />

você toda essa sua viagem à África?” O espanto com que Fradique acolhe esta sugestão<br />

prenuncia uma resposta em que se esboça exactamente uma poética do silêncio:<br />

- Não tenho sobre a África, nem sobre coisa alguma neste mundo, conclusões<br />

que por alterarem o curso do pensar contemporâneo valesse a pena registar…<br />

Só podia apresentar uma série <strong>de</strong> impressões, <strong>de</strong> paisagens. E então pior!<br />

Porque o verbo humano, tal como o falamos, é ainda impotente para encarnar<br />

a menor impressão intelectual ou reproduzir a simples forma <strong>de</strong> um<br />

arbusto… 11<br />

Aquém da “absoluta beleza” que logo <strong>de</strong>pois Fradique evoca, o verbo humano<br />

parece talhado para um <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> imperfeição. O corolário inevitável <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>stino era,<br />

evi<strong>de</strong>ntemente, o silêncio, esse mesmo silêncio que um Fradique sem obra legou à<br />

posterida<strong>de</strong>. Um silêncio cuja amargura e sentimento <strong>de</strong> falência mal se disfarçam sob<br />

um programa que soa a melancólica compensação: a “sublime ambição <strong>de</strong> só produzir<br />

verda<strong>de</strong>s absolutamente <strong>de</strong>finitivas, por meio <strong>de</strong> formas absolutamente belas.” 12<br />

Como Fradique, mas também diferentemente <strong>de</strong>le – num jogo <strong>de</strong> ambivalências,<br />

<strong>de</strong> sombras e <strong>de</strong> disfarces que talentosamente soube encenar -, <strong>Eça</strong> <strong>de</strong> Queirós está<br />

próximo e está longe <strong>de</strong> uma poética do silêncio. Está próximo, porque também ele,<br />

porventura <strong>de</strong> forma doutrinariamente menos elaborada (mas também menos artificial, é<br />

certo), viveu, enten<strong>de</strong>u e consumou o silêncio como forma <strong>de</strong> evitar a imperfeição da<br />

palavra literária, a sua inoportunida<strong>de</strong> ou até a sua ilegitimida<strong>de</strong>. Mas <strong>Eça</strong> distanciou-se<br />

<strong>de</strong> Fradique Men<strong>de</strong>s – e nesse distanciamento vai muito <strong>de</strong> uma afirmação da autonomia


<strong>de</strong> Fradique, mais do que da <strong>de</strong> <strong>Eça</strong>, que disso não carecia -, porque foi capaz <strong>de</strong> publicar<br />

o publicável, <strong>de</strong> conviver com a imperfeição e <strong>de</strong> resolver os seus dramas. Nesse sentido,<br />

ele preferiu estar ao lado dos Michelet, Balzac, Renan, Taine, Flaubert ou Goncourt que<br />

Fradique <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhava pela suas alegadas limitações e, com eles, ousar uma palavra<br />

libertadora. Libertadora <strong>de</strong> quem a enunciava, libertadora dos seus contemporâneos e<br />

também dos que hoje continuamos a lê-lo; uma palavra que, contudo, só ganha a<br />

magistral expressivida<strong>de</strong> que lhe reconhecemos, porque ecoa na caixa <strong>de</strong> ressonância<br />

dos silêncios <strong>de</strong> <strong>Eça</strong>, da poética que difusamente os enquadra e <strong>de</strong> uma incontornável<br />

ética da responsabilida<strong>de</strong> artística.


Notas<br />

1<br />

<strong>Eça</strong> <strong>de</strong> Queirós, A Correspondência <strong>de</strong> Fradique Men<strong>de</strong>s, Lisboa, Livros do Brasil, s.d.,<br />

pp. 100-101.<br />

2<br />

Cf. A. Sardinha, “O espólio <strong>de</strong> Fradique”, in Eloy do Amaral e Cardoso Martha (orgs.),<br />

<strong>Eça</strong> <strong>de</strong> Queiroz. In Memoriam, 2ª ed., Coimbra, Atlântida, 1947, pp. 346-376; para uma<br />

discussão mais alargada e com outras implicações, cf. o nosso (e <strong>de</strong> M. do Rosário<br />

Milheiro) A Construção da Narrativa Queirrosiana. O Espólio <strong>de</strong> <strong>Eça</strong> <strong>de</strong> Queirós,<br />

Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1989, pp. 47 ss.<br />

3 Batalha situa o episódio em 1870, aproximadamente. “Um dia veio mostrar-nos, ao<br />

Antero <strong>de</strong> Quental e a mim, o primeiro esboço, muito <strong>de</strong>senvolvido — tão extenso que<br />

levou várias noites a ler — <strong>de</strong> um romance intitulado «História <strong>de</strong> Um Lindo Corpo».”<br />

(Cf. “Na primeira fase da vida literária <strong>de</strong> <strong>Eça</strong> <strong>de</strong> Queirós”, in Prosas Bárbaras, Lisboa,<br />

Livros do Brasil, s/d., p. 44.<br />

4<br />

Cf. Maria Manuela Gouveia Delille, A recepção literária <strong>de</strong> H. Heine no Romantismo<br />

português (<strong>de</strong> 1844 a 1871), Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, pp. 265<br />

ss.<br />

5<br />

Cf. Carlos Reis e Maria do Rosário Milheiro, op. cit., passim.<br />

6<br />

Cf. cartas <strong>de</strong> <strong>Eça</strong> <strong>de</strong> Queirós a Ramalho Ortigão, <strong>de</strong> 10 e 28 <strong>de</strong> Novembro <strong>de</strong> 1878, in<br />

Correspondência; leitura, coord., prefácio e notas <strong>de</strong> Guilherme <strong>de</strong> Castilho; Lisboa, Imp.<br />

Nacional-Casa da Moeda, 1983, pp. 160-175.<br />

7<br />

Loc. cit., p. 166.<br />

8<br />

Vejam-se as edições críticas d’A Capital! (Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,<br />

1992) e <strong>de</strong> Alves & Ciª. (Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1994), por Luiz<br />

Fagun<strong>de</strong>s Duarte e por este mesmo e Irene Fialho.<br />

9<br />

Correspondência, ed. cit., p. 164.<br />

10<br />

Citada por José Maria d’<strong>Eça</strong> <strong>de</strong> Queirós, na introdução a A Capital, 9ª ed., Porto, Lello<br />

& Irmão, 1971, p. 12.<br />

11<br />

A Correspondência <strong>de</strong> Fradique Men<strong>de</strong>s, ed. cit., pp. 104-105.<br />

12<br />

A Correspondência <strong>de</strong> Fradique Men<strong>de</strong>s, ed. cit., p. 106.

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