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Eclesiastes - Igreja Batista Vida Nova

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INTRODUÇÃO AO ECLESIASTES<br />

Luciano R. Peterlevitz 1<br />

1 Luciano Robson Peterlevitz leciona matérias de Hebraico Bíblico e Antigo Testamento. Doutorando e<br />

Mestre em Ciências da Religião, na área de Bíblia, pela Universidade Metodista de São Paulo.<br />

Atualmente trabalha como Coordenador Acadêmico no Seminário <strong>Batista</strong> de Campinas, e pastoreia a<br />

Missão <strong>Batista</strong> <strong>Vida</strong> <strong>Nova</strong>, em <strong>Nova</strong> Odessa/SP.<br />

1


INTRODUÇÃO<br />

Jó, Salmos, Provérbios, <strong>Eclesiastes</strong> e Cântico dos Cânticos são denominados de livros<br />

poéticos. Entretanto, dentre os poéticos do Antigo Testamento, <strong>Eclesiastes</strong> é bastante<br />

singular. Não encontramos nesse livro a paixão e dramaticidade de Jó; a súplica e o<br />

louvor, muito comuns nos Salmos, estão totalmente ausentes em <strong>Eclesiastes</strong>. A doutrina<br />

proverbial de Provérbios, representante da antiga sapiencialidade israelita, não faz parte<br />

do propósito do autor do livro. A ternura e o amor de Cântico dos Cânticos estão longe<br />

de atrair o escritor de <strong>Eclesiastes</strong>. Na verdade, na contemplação da fugacidade da vida,<br />

o livro assume tons bastante pessimistas.<br />

Por meio de suas afirmativas um tanto céticas, e às vezes até contraditórias, o<br />

<strong>Eclesiastes</strong> propõe uma nova maneira de entender o significado da vida. Isso é muito<br />

significativo para a nossa contemporaneidade, que frustradamente busca pelo propósito<br />

da vida. Ed René Kivitz comenta, em um de seus livros, que em frente ao cemitério do<br />

Araçá, em São Paulo, alguém pichou: “Olhe ao redor. Estranho, né?”. Aquele grafiteiro<br />

não se referia à quietude do lado de dentro do muro, mas à turbulência e à agitação ao<br />

lado de fora. Queria respostas sobre o que todo mundo faz. As questões, para aquele<br />

grafiteiro, eram: Por que esta correria? Por que estamos vivos? Certamente o autor de<br />

<strong>Eclesiastes</strong> tem muito a dizer sobre essas questões. Pois o livro procura pelo sentido<br />

último da existência humana.<br />

2


1. ANÁLISE GERAL<br />

1.1 Título do livro<br />

O livro recebe o nome de “<strong>Eclesiastes</strong>”, uma palavra de origem grega, que oriunda - se<br />

de ekklesia, “assembléia”. No hebraico, o livro é intitulado Qohelet, que tem o mesmo<br />

sentido do termo grego: “orador”, “pregador”. Esta palavra hebraica origina-se de<br />

qahal, “reunir, congregar”. Provavelmente Qohelet “significava alguém que convocava<br />

ou, mais provavelmente, quem falava a um encontro de pessoas, e daí (grego<br />

ekklesiastes) o conhecido título em português ‘o Pregador’.” 2<br />

É provável que Qohelet signifique “aquele que reúne”, e, portanto, o Qohelet seria<br />

alguém que reuniu alunos para aprender; reuniu ditos e reflexões, contidos no livro.<br />

1.2 Autoria e data<br />

Muitos estudiosos atribuem o livro de <strong>Eclesiastes</strong> a Salomão. Supostamente algumas<br />

evidências no livro apontam à autoria salomônica:<br />

1) O autor identifica-se como “filho de Davi” (1.1).<br />

2) A sabedoria do autor se coaduna com a sabedoria de Salomão (1.12, 12.9,11; cf. 1Rs<br />

3.12; 4.29-34).<br />

3) As riquezas e as conquistas do Coélet 3 , descritas em 2.4-9, se encaixam perfeitamente<br />

na grandeza do reinado de Salomão.<br />

Assim, a Salomão são atribuídos três livros poéticos: Cântico dos Cânticos, Provérbios<br />

e Coélet. Aludindo a isso, um rabino afirmou 4 :<br />

Quando um homem é jovem, canta canções de amor (Cântico dos Cânticos)<br />

Quando um homem se torna adulto, enuncia máximas de vida (Provérbios)<br />

Quando um homem fica velho, fala da vaidade das coisas (Coélet)<br />

2 FLEMING, Donald C. “<strong>Eclesiastes</strong>”. Em FRUCE, F.F (Editor). Comentário Bíblico NVI – Antigo e<br />

Novo Testamento. São Paulo: Editora <strong>Vida</strong>, 2009, p.958.<br />

3 Seguindo a sugestão de vários hebraístas, transliteraremos o termo Qohelet por Coélet.<br />

4 RAVASI, Gianfranco, Cântico dos Cânticos. São Paulo: Paulinas, 1988, 203p. (Pequeno Comentário<br />

Bíblico – AT), p.21.<br />

3


Entretanto, existem outras evidências que contradizem a autoria salomônica:<br />

1) Segundo os comentaristas da Bíblia de Estudo Almeida, “o hebraico característico da<br />

sua redação e as idéias nele expostas correspondem a uma época posterior”. 5 Para<br />

Lasor, Hubbard e Bush, “tanto o vocabulário quanto a estrutura das frases são pósexílicos,<br />

mais próximos do estilo da Mishná que qualquer outro livro do Antigo<br />

Testamento” 6 .<br />

2) É verdade que as experiências do Coélet lembram as experiências de Salomão (2.4-<br />

9). Mas a nota a seguir instiga à reavaliação da autoria salomônica de <strong>Eclesiastes</strong>: “(...)<br />

a afirmação em 1.16 e 2.9 de que ele ultrapassou todos que os que governaram<br />

Jerusalém entes dele não seria significativa se seu pai fosse o único antecessor. Também<br />

se nota que a linguagem do livro difere em vários aspectos da encontrada em outras<br />

obras de Salomão.” 7<br />

3) É verdade que o Coélet identifica-se como “sábio” (1.12; 12.9). Mas ele também<br />

reconhece a inacessibilidade da sabedoria (“... mas a sabedoria estava longe de mim”,<br />

7.23), e também afirma que a sabedoria é vaidade (2.12-15).<br />

4) O trabalho opressor condenado em <strong>Eclesiastes</strong> dificilmente se encaixa com a política<br />

escravista implantada por Salomão (4.1; 5.8; 8.9; 10.5-7; cf. 1Rs 4.20-28; 5.13).<br />

Além destas considerações, é preciso considerar que a expressão “filho de Davi” não<br />

seria necessariamente uma alusão a Salomão, mas a qualquer descendente da linhagem<br />

de Davi. Nota-se que em nenhum lugar do livro o autor é chamado de Salomão.<br />

Muitos comentaristas datam o livro no período helênico (cerca de 300 – 200 a.C),<br />

quando a Palestina passou a ser governada pelos Ptolomeus 8 , que exploravam o país<br />

mediante a exigência de pagamentos tributários. Neste caso, os mais prejudicados<br />

seriam os pequenos fazendeiros. Esses tributos eram efetuados não com produtos<br />

agropecuários (porcentagens da colheita ou dos rebanhos ovinos e bovinos), mas com<br />

uma taxa fixa em moeda corrente. Esse sistema tributário gerou uma grande crise na<br />

Palestina, onde uma das índoles principais era o distanciamento entre os pequenos<br />

proprietários e fazendeiros e a minoria de funcionários estrangeiros, da classe rica<br />

aristocrática, instalados no país. Os valores da lealdade e compaixão humanas foram<br />

ocupados pelos valores materialistas da riqueza. Muitos judeus sentiam-se impotentes<br />

de melhorar a situação. Pode-se situar o Coélet nesse contexto de incerteza e<br />

inquietação.<br />

5<br />

Sociedade Bíblica do Brasil. 1999; 2005. Bíblia de Estudo Almeida - Revista e Atualizada. Sociedade<br />

Bíblica do Brasil<br />

6<br />

LASOR, William S; HUBBART, David A.; BUSH, Frederic W. Introdução ao Antigo Testamento.<br />

Trad. Lucy Yamakami. 1ª Ed. São Paulo: <strong>Vida</strong> <strong>Nova</strong>, 1999, p.544.<br />

7<br />

HILL, Andrew E. & WALTON, J.H. Panorama do Antigo Testamento. São Paulo: Editora <strong>Vida</strong>, 2006,<br />

p.402.<br />

8<br />

Os Ptolomeus, que tinham por sobrenome “Lágidas”, são os descendentes de Ptolomeu I, um dos<br />

generais de Alexandre Magno. Após a morte de Alexandre, Ptolomeu I governou o Egito, a Palestina e a<br />

Fenícia. A Palestina ficou sob o domínio dos Lágidas até 200 a.C., quando passou a ser dominada pelos<br />

Selêucidas, da dinastia de Selêuco, outro general de Alexandre.<br />

4


Assim, o Coélet responde às crises econômicas de duas formas: de um lado, dirige-se ao<br />

seu povo, sugerindo a ele uma espiritualidade marcada por um rigoroso ascetismo. E de<br />

outro lado, “ataca os fundamentos intelectuais, a chamada ‘sabedoria’ da economia<br />

monetária helênica, que estava causando tamanha destruição na vida de seus<br />

companheiros” 9 .<br />

Portanto, as experiências do Coélet podem ser identificadas com as de Salomão. Mas<br />

também existem boas evidências para datarmos o livro na época do helenismo, sendo<br />

assim bem posterior a Salomão. “Para concluir, não é impossível que Salomão seja<br />

Qohelet, mas as evidências opostas são suficientes para gerar dúvidas. Como as<br />

Escrituras não comentam o assunto, não podemos identificar Qohelet com certeza.” 10<br />

Alguns estudiosos sugerem que o Coélet pode ser um pseudônimo, ou seja, um anônimo<br />

que escreve como se fosse Salomão. Para Lasor, Hubbart e Bush, a identificação de<br />

Coélet com Salomão não objetiva enganar seus leitores, antes, produz um efeito<br />

literário.<br />

“As palavras do cabeça do movimento de sabedoria de Israel teriam peso diante dos<br />

sábios a quem o Coélete queria corrigir. Além disso, o próprio Salomão talvez servisse<br />

como modelo da vida que o Coélet se esforçava por avaliar. A sabedoria, o prazer, a<br />

riqueza, a influência, as realizações eram atributos louvados pelos sábios. O autor não<br />

conseguiria oferecer melhor das limitações deles que no próprio caso de Salomão.” 11<br />

Assim, “Parece que o nosso autor seguiu a prática comum de se identificar com alguma<br />

pessoa importante para acrescentar peso ao seu argumento” 12 .<br />

1.3 Um livro cético?<br />

A canonicidade de <strong>Eclesiastes</strong> foi questionada por uma das vertentes da antiga tradição<br />

judaica, a escola de Shammai. O pessimismo e o humanismo foram notados no livro,<br />

não só por esta escola judaica, mas também por vários cristãos dos primeiros séculos da<br />

<strong>Igreja</strong>. “Ele é considerado livro difícil de interpretar, desorientador, até embaraçoso ou<br />

inconveniente, imbuído de mentalidade tacanha ou muito pessimista.” 13<br />

Mas as contradições encontradas no livro podem muito bem servir ao propósito do<br />

Coélet. É que ele utilizou-se de um estilo dialético, onde se faz uma afirmação e em<br />

seguida se contesta a mesma; justapõe-se o positivo e o negativo. Cito pelo menos dois<br />

exemplos:<br />

9<br />

CERESKO, Antony R. A sabedoria no Antigo Testamento: espiritualidade libertadora. Tradução Adail<br />

Ubirajara Sobral, Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Paulus, 2004, p.102 (Bíblia e sociologia).<br />

10<br />

HILL, Andrew E. & WALTON, J.H. Panorama do Antigo Testamento, p.402.<br />

11<br />

LASOR, William S; HUBBART, David A.; BUSH, Frederic W. Introdução ao Antigo Testamento,<br />

p.545.<br />

12<br />

FLEMING, Donald C. “<strong>Eclesiastes</strong>”, p.959.<br />

13<br />

PRÉVOST, J. P. “Coélet”. Em: MONLOUBOU, Louis et alli. Os Salmos e Outros Escritos. Trad.<br />

Benôni Lemos. São Paulo: Paulus, 1996, p.193 (Biblioteca de Ciências Bíblicas 9).<br />

5


Em 2.13-14a fala-se da vantagem da sabedoria sobre a insensatez,<br />

mas em seguida, nos v. 14b-15, contesta-se tal vantagem: “o sábio morre<br />

como o insensato” (v.16).<br />

Em 3.12-13, Coélet exorta seus leitores a regozijar-se com a<br />

bondade da criação, desfrutando do trabalho, mas, em contraposição, ele já<br />

havia afirmado que o homem é incapaz de reter ou possuir qualquer lucro<br />

dos seus trabalhos (1.3, 14; 2.21).<br />

Mediante esse estilo dialético, e considerando a crise que o povo judeu enfrentava na<br />

época helenista, Coélet elabora um convite para se caminhar com ele pelo caminho<br />

escuro, das incertezas. O povo já conhecia o Deus Uno, redentor e criador. Mas Coélet<br />

enfatiza o Deus que não pode ser conhecido por meras explicações teológicas (5.1-2).<br />

“Às vezes, tem-se de aprender a viver sem explicações e permitir que Deus fique livre<br />

para ser Deus.” 14 Podemos chamar a “espiritualidade” do livro de “ceticismo”. Trata-se<br />

de uma espiritualidade que se rende ao inatingível, e renuncia a possibilidade do mais<br />

profundo desejo do coração humano: entender a vida (8.17).<br />

Ademais, julgar o Coélet de pessimista é omitir suas considerações sobre a felicidade.<br />

Nas próprias passagens em que ele fala da vaidade, insere várias reflexões sobre a<br />

felicidade: 2.24; 3.12-13, 22; 5.18; 8.15; 9.7-9; 11.7-9. Coélet convida os leitores a<br />

saborearem a felicidade! Assim, ele escreveu “palavras agradáveis” (12.10).<br />

1.4 Palavras chaves<br />

Há seis palavras ou frases chaves, através das quais podemos condensar a mensagem de<br />

<strong>Eclesiastes</strong>:<br />

1) “Vaidade”, hebel, 39x (33 x no restante do AT)<br />

2) “Debaixo do sol”, tahath hashamesh, 29x, aludindo o que é terrestre,<br />

preso à terra.<br />

3) “Deus”, Elohim, 40x, o Deus criador, Onipotente, infinito; não aparece<br />

“Adonai” ou “Javé”, o Deus pessoal da aliança.<br />

4) “Sábio”, “Sabedoria”, hokhmah e hakam, 45x, cujo significado é um<br />

discernimento entre o bem e o mal. A sabedoria é uma prudência prática.<br />

5) “Eternidade”, olam, 7 x (1.4; 1.10; 2.16; 3.11; 3.14; 9.6; 12.5).<br />

6) “Trabalho”, ‘amal, “fadiga, trabalho árduo”, 38x.<br />

14 CERESKO, Antony R. A sabedoria no Antigo Testamento: espiritualidade libertadora, p.104.<br />

6


1.5 Estrutura<br />

Recorremos à estrutura adotada por Ivo Storniolo 15 :<br />

I. Enquadramento (1.1-3)<br />

II. Cosmologia (1.4-11)<br />

III. Antropologia (1.12-3.15)<br />

IV. Sociologia 1 (3.16-4.16)<br />

V. Religião (4.17.5.6)<br />

VI. Sociologia 2 (5.7-6.10)<br />

VII. Ideologia (6.11-9.6)<br />

VIII. Ética (9.7-12.7)<br />

IX. Enquadramento (12.8)<br />

Conclusão (acréscimos posteriores)<br />

Primeiro epílogo (12.9-11)<br />

Segundo epílogo (12.12-14)<br />

Storniolo diz que Coélet elaborou seu livro dentro de uma estruturação tipicamente<br />

semita, ou seja, a estrutura concêntrica, formada nesse livro por nove elementos. Oito<br />

elementos são construídos ao redor de um centro, sendo que os quatro primeiros<br />

correspondem simetricamente aos quatro últimos, como indicamos acima.<br />

Reconhecendo algumas influências gregas em <strong>Eclesiastes</strong>, Storniolo afirma que a parte<br />

II corresponde à VIII, pois a ética é fundamentada pelo mundo físico. “Isso parece dizer<br />

que a ética deve ser, no mundo humano, o reflexo e a continuidade da ordem e<br />

equilíbrio da própria natureza.” 16 A parte III corresponde à VII, pois grande parte das<br />

angústias humanas podem ser explicadas a partir da construção ideológicas que<br />

deturpam o valor do ser humano. As partes IV e VI também são correspondentes. De<br />

fato, essas partes tratam de uma sociologia que observa as desigualdades sociais: a<br />

“maldade no lugar da justiça” (3.16). Observa-se que 4.1-3 pode ser aproximado de 5.8-<br />

9.<br />

A partir dessa estruturação, Storniolo nota que a Religião ocupa um lugar de destaque.<br />

Ela está “bem no centro da problemática social”, diz Storniolo.<br />

Ainda sobre a estrutura de <strong>Eclesiastes</strong>, outros estudiosos atribuíram uma importância<br />

especial à repetição de palavras-chaves. O padrão estrutural do livro parece ser<br />

determinado pela palavra hebel, “vaidade”, que aparece 37 x. O número de versículos<br />

de cada metade do livro (1.1-6.9 e 6.10-12.14) é 111, ou três vezes trinta e sete. Ainda<br />

destaca-se que em cada refrão de 1.2 e 12.8 três vezes aparece o termo hebel.<br />

15<br />

STORNIOLO, Ivo. Trabalho e felicidade- O livro de Eclesitastes. São Paulo: Paulus, 2002, p.25<br />

(Bíblia e cotidiano).<br />

16<br />

STORNIOLO, Ivo. Trabalho e felicidade- O livro de Eclesitastes, p.25.<br />

7


Após 12.8, vem o que alguns estudiosos chamam de calofão. “Ele era usado na<br />

literatura do Antigo Oriente Médio para apresentar mais detalhes sobre o autor e<br />

condensar o ensino do manuscrito ou na tábua (...) nada aqui reverte e nega a mensagem<br />

do livro ou corrige seu ensino.” 17 Dessa forma, todas as afirmações de <strong>Eclesiastes</strong><br />

devem ser lidas à luz do final livro, principalmente a partir do que é dito em 12.13:<br />

“Teme a Deus e obedece aos seus mandamentos; porque este é o propósito do homem.”<br />

(Almeida Século XXI). O Coélet convida seus leitores a desfrutarem dos prazeres da<br />

vida. Mas isso não significa uma vivência desregrada e longe da vontade de Deus.<br />

Significa, sim, enxergar o temor a Deus como princípio da vida abundante e feliz.<br />

1.6 Esboço:<br />

Adotamos o esboço de Donald Fleming 18 :<br />

I. ACEITE O QUE DEUS DÁ E DESFRUTE (1.1 – 4.16)<br />

1) O mundo como parece (1.1-11)<br />

2) A busca pelo sentido da vida (1.12 – 2.26)<br />

3) Tudo acontece no tempo certo (3.1-15)<br />

4) Não há ordem moral no mundo (3.16 – 4.3)<br />

5) A futilidade das realizações (4.4-16)<br />

II. TIRE O MÁXIMO DAS DIVERSAS CIRCUNSTÂNCIAS DA VIDA (5.1<br />

– 10.20)<br />

1) Conselhos sobre a religião (5.1-7)<br />

2) A riqueza é inútil sem o contentamento (5.8 – 6.12)<br />

3) A valor da sabedoria num mundo imperfeito (7.1-14)<br />

4) Um conselho para se evitarem os extremos (7.15-29)<br />

5) A conciliação é o caminho para a sobrevivência (8.1-9)<br />

6) Não há justiça na vida (8.10-17)<br />

7) Em vista da morte, tenha prazer na vida (9.1-12)<br />

8) A sabedoria é melhor que a tolice (9.13 – 10.20)<br />

17 HILL, Andrew E. & WALTON, J.H. Panorama do Antigo Testamento, p.407.<br />

18 FLEMING, Donald C. “<strong>Eclesiastes</strong>”, p.960.<br />

8


III. TENHA UMA ATITUDE POSITIVA EM RELAÇÃO À VIDA (11.1 –<br />

12.14)<br />

1) Seja ousado, apesar das incertezas (11.1-8)<br />

2) Usufruir a vida é uma responsabilidade (11.9 – 12.8)<br />

3) Comentários finais (12.9-14)<br />

2. CONTEÚDOS TEOLÓGICOS<br />

2.1 A vaidade e a morte<br />

Tudo é vaidade, ou melhor, “vaidade das vaidades” (1.2). A nota da Bíblia do Peregrino<br />

esclarece o sentido da expressão hebraica:<br />

“O vocábulo hébel significa sopro, e, por translação o que não tem substância, o vazio o<br />

oco, nada. A construção é uma espécie de superlativo – como ‘cântico dos cânticos’<br />

significa ‘o melhor cântico’. Poderíamos traduzir sopro ligeiro, suspiro leve, ou então,<br />

vazio completo, total falta de sentido, nada de nada...” 19<br />

Para Ivo Storniolo, o que Coélet “pretende é frisar a condição efêmera da vida humana:<br />

entre o passado que já se foi e o futuro completamente incerto, resta o momento fugitivo<br />

do presente, a única dimensão em que o homem pode realmente fruir a vida”. 20<br />

Portanto, “vaidade”, que é o termo chave do livro, aparece do início (1.2) ao fim (12.8),<br />

alude às coisas ilusórias, que ao invés de conferir significado à vida, proporciona<br />

decepção.<br />

Assim, Coélet advoga que a felicidade não está relacionada às circunstancias imediatas<br />

da vida. Ela não se constrói a partir de conquistas pessoais. Aliás, essas conquistas nada<br />

apontam senão à frustrante busca da felicidade não conquistada por elas. Oscar Wilde<br />

tinha razão: “neste mundo só há duas tragédias – uma é conseguir o que se quer, a outra<br />

é conseguir.”<br />

“Tudo é vaidade”, ou seja, “tudo é passageiro” (1.2; cf. Tg 4.14). Contrapondo-se a essa<br />

efemeridade, está a eternidade de Deus (3.14). Por isso, numa oração, alguém disse<br />

para Deus: “Os que têm tudo, e não a ti, riem-se daqueles que nada tem, a não ser a ti”.<br />

Deus é eterno. As obras de Deus são eternas (3.14). Deus colocou a eternidade no<br />

coração do homem, entretanto, o homem não conhece as obras eternas de Deus (3.11). É<br />

uma grande ironia o homem, criado para a eternidade, prender-se demasiadamente nas<br />

coisas efêmeras existentes debaixo do sol. O homem tem a eternidade dentro de si, mas<br />

19 Bíblia do Peregrino. São Paulo: Paulus, 2002, nota de rodapé de Ec 1.2.<br />

20 STORNIOLO, Ivo. Trabalho e felicidade- O livro de Eclesitastes. São Paulo: Paulus, 2002, p.29<br />

(Bíblia e cotidiano).<br />

9


deseja as coisas que não são eternas. Assim, a fugacidade ameaça engolir a eternidade.<br />

Segundo a obsersavaçao do Coélet, os elementos temporais (riqueza, sabedoria, poder)<br />

sempre ameaçam dominar com muito mais firmeza o coração do homem do que aquilo<br />

que é atemporal. Mas o ser humano só encontra sua verdadeira realização em Deus.<br />

Corrobora a isso a afirmação de C. S. Lewis: “Ora, um automóvel feito para andar com<br />

gasolina não andará bem com nenhum outro combustível; e Deus projetou a máquina<br />

humana para andar à base dele mesmo”. 21<br />

Da efemeridade (1.2-3), o Coélet passa à monotonia cósmica (1.5-7), que reproduz ou<br />

explica a monotonia de todas as coisas (v.4, 8-11). O ritmo cíclico da criação é<br />

observado: o sol que nasce e se põe, repetidamente; o vento que sopra e depois retorna<br />

ao seu ponto de partida; os rios que sempre correm para o mar, sem encher o mar. Tudo<br />

isso causa estranheza para o Coélet (v.8), levando-o à seguinte afirmativa: “O que foi<br />

será, e o que se fez, se fará novamente; não há nada de novo debaixo do sol.” (v.9). Esse<br />

ciclo repetitivo dos elementos naturais aponta à ilusão das conquistas humanas, pois,<br />

assim como para a natureza, há um destino (morte) marcado para a humanidade (2.14;<br />

5.16; 6.10; 9.3).<br />

É notável que o Coélet, antes de concluir seu livro afirmando a fugacidade da vida<br />

(12.8), descreve o processo de chegada da morte (12.1-7). “A descrição da morte, feita<br />

pelo Coélet, parece basear-se na narrativa de Gênesis 2, onde o sopro divino e o pó da<br />

terra foram combinados para formar o homem. Na morte, o processo parece reverter-se:<br />

‘...e o pó volte à terra, como o era, e o espírito (sopro) volte a Deus, que o deu”<br />

(12.7)...” 22<br />

Aliás, no livro de <strong>Eclesiastes</strong>, os termos “morte” e “vaidade” (fugacidade) estão<br />

intimamente relacionados. Observando a inevitabilidade da morte, Coélet conclui que<br />

“tudo é vaidade” e corrida atrás do vento. A morte anula as realizações humanas, e<br />

iguala todos num mesmo nível (2.16; 3.20; 6.7; 9.2-3;). Por isso, em alguns casos, a<br />

morte é melhor do que a vida (6.3; 7.2).<br />

2.2 O trabalho<br />

Para o Coélet, o trabalho é bem melhor traduzido por opressão e ilusão (2.18-22, 24, 26;<br />

3.10, 13; 4.4, 6, 8; 5.12, 16, 18, 19; 8.16-17; 10.15). O termo hebraico ‘amal,<br />

“trabalho”, também pode ser traduzido por “fadiga”, ou “trabalho árduo”. Sobre esta<br />

palavra, a Bíblia de Jerusalém comenta: “evoca, a maioria das vezes, trabalho penoso<br />

semelhante ao do escravo (cf. Dt 26.7), donde a fatiga, o sofrimento” 23 .<br />

O autor de <strong>Eclesiastes</strong> não questiona o trabalho em si, mas aquele “em que tanto se<br />

esforça debaixo do sol” (1.2). Para muitos estudiosos, a expressão “debaixo do sol”<br />

21 LEWIS, C. S. O cristianismo puro e simples. São Paulo: ABU Editora, 1989, p.27.<br />

22LASOR,<br />

William S; HUBBART, David A.; BUSH, Frederic W. Introdução ao Antigo Testamento,<br />

p.555.<br />

23<br />

Bíblia de Jerusalém – <strong>Nova</strong> Edição, revista e ampliada. 5ª Impressão. São Paulo: Paulus, 2008, em<br />

nota de rodapé sobre de 1.3.<br />

10


alude a tudo aquilo que pertence ao âmbito terrestre material, em contraposição ao céu,<br />

onde Deus está. Entretanto, “debaixo do sol” parece referir-se principalmente ao<br />

“árduo trabalho do camponês, que transpira e se queima sob o sol quente no campo.<br />

De sua produção depende a sustentação de todo o sistema nacional e também do<br />

sistema estrangeiro do Egito dos Ptolomeus, graças à exportação de vinho e óleo,<br />

produtos incentivados pelo monopólio estatal daquela época. A esse trabalho do<br />

campesinato é reservado o termo hebraico ‘amal...” 24<br />

Portanto, Coélet escreve para aqueles que são massacrados pelo trabalho. “O trabalho é<br />

a melhor e a pior das coisas: a melhor, se é livre; a pior, se é escravo” (É. C. Alain).<br />

2.3 A bondade de Deus através da criação de Deus<br />

Coélet contempla a bondade de Deus através da criação. Para ele, tudo o que Deus criou<br />

é bom. Alguns eruditos até relacionam o livro a Gn 1-3, afirmando que o Coélet<br />

deliberadamente alude aos primeiros capítulos de Gênesis. Destaca-se, assim, a bondade<br />

de Deus na criação (ver 2.24-25; 3.13; 5.19).<br />

O autor de <strong>Eclesiastes</strong> desenvolve a teologia da graça de Deus numa sociedade que<br />

tentava sabotar a participação das pessoas nas bênçãos da criação divina. A sociedade<br />

do Coélet valorizava demasiadamente o lucro. A elite de Judá avantajava-se sobre os<br />

mais pobres, lhes arrancado a porção devida para o bom sustento da vida. É nesse<br />

cenário que o livro reafirma a “porção” devida a cada trabalhador (2.10, “recompensa” -<br />

ARA, cf. 2.21; 3.22; 5.18; 9.9). A “porção” (hebraico heleq) é a dádiva divina, para a<br />

qual todos tem acesso igualmente. “‘Porção’ contrasta com ‘proveito’ ou ‘ganho’<br />

(yitron), outra palavra freqüente (1.3; 2.11, 13; 3.9; 5.9, 16 [Tm 8, 15]; 7.12; 10.10s.; cf.<br />

a palavra afim, motar, ‘vantagem’, 3.19). ‘Proveito’ descreve o saldo positivo que o<br />

esforço humano pode gerar; ‘porção’ retrata a parte concedida pela graça divina.” 25<br />

O termo hebraico yitron, que ocorre 18 vezes em <strong>Eclesiastes</strong>, também pode ser<br />

traduzido “lucro”, e origina-se no mundo comercial da antiga Judá. “Coélet parece se<br />

apropriar propositadamente da linguagem do comércio para subverter e sabotar a atitude<br />

e a mentalidade que o comércio pressupõe.” 26 Para ele, a matemática é uma ciência<br />

imprecisa. Em 4.6, o “um” é na verdade “mais que” dois, ou, melhor que dois. Dessa<br />

forma, Coélet se opõe à sabedoria fundamentada nos cálculos da economia monetária, e<br />

conclama seus ouvintes a diminuírem o esforço pelo lucro e a gozarem mais da graça do<br />

Deus criador.<br />

24<br />

STORNIOLO, Ivo. Trabalho e felicidade- O livro de Eclesitastes, p.31.<br />

25<br />

LASOR, William S; HUBBART, David A.; BUSH, Frederic W. Introdução ao Antigo Testamento,<br />

p.555.<br />

26<br />

CERESKO, Antony R. A sabedoria no Antigo Testamento: espiritualidade libertadora, p.105.<br />

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Donald C. Fleming afirma corretamente, sobre o Coélet: “Ele não afirma ter encontrado<br />

a resposta para o problema do sofrimento e do mal, mas mesmo assim está seguro de<br />

que Deus é um Criador bom, e que, no desfrutar dos presentes dados por ele, o homem<br />

pode encontrar ao menos algum significado na vida (3.11ss).” 27<br />

2.4 A felicidade como dom de Deus<br />

As observações de Coélet apontam que a felicidade não se constrói a partir de<br />

realizações pessoais, nem se encontra nos prazeres terrestres. Heráclito de Éfeso disse<br />

acertadamente que se a felicidade estivesse nos prazeres do corpo, diríamos felizes os<br />

bois, quando encontram ervilhas para comer.<br />

Na verdade, a felicidade é um dom de Deus (2.25; 3.13; 5.18). Em 2.26 lemos que Deus<br />

“dá sabedoria, conhecimento e felicidade ao homem”. A raiz do verbo hebraico natan,<br />

“dar”, aparece várias vezes no livro de <strong>Eclesiastes</strong>, tendo Deus por sujeito. Comentando<br />

sobre 2.24-26, relacionando esses versos com os versos antecedentes, Storniolo afirma:<br />

“A felicidade até agora havia sido procurada como fruto de riquezas e esforços do<br />

homem. A partir de agora ela é percebida dentro de um novo cenário, e é descoberta<br />

como dom de Deus.” 28 É notável que uma vida prazerosa é um “dom” de Deus; “dom” é<br />

a tradução do hebraico mattah, “presente”, “recompensa” (cf. 3.13; 5.19).<br />

É curioso que, conforme notamos acima na estrutura de <strong>Eclesiastes</strong>, a Religião ocupa o<br />

lugar central no livro. Mas a felicidade não está nos valores religiosos, nas promessas e<br />

nos votos (cf. 5.1-6). É que “no contexto da filosofia de Qohélet da felicidade, de<br />

explicitar que Deus, como doador de todas as dádivas da felicidade e como aquele que<br />

torna mais uma vez possível a experiência da própria felicidade (5.18), é o<br />

absolutamente indisponível”. 29<br />

“A mensagem de <strong>Eclesiastes</strong> é que a vida a ser buscada é centrada em Deus. Os<br />

prazeres não satisfazem de forma duradoura, podem ser desfrutados como dons<br />

divinos.” 30<br />

Há de se considerar, também, que a verdadeira felicidade não advém do exercício da<br />

filosofia. Essa afirmação é muito importante no contexto do Coélet, em que a filosofia<br />

grega estourava como proposta para as respostas existências do ser humano. “Os<br />

filósofos helenistas eram da opinião de que o ser humano pode alcançar a felicidade<br />

unicamente pelo esforço próprio, mais precisamente desvalorizando tudo o que é<br />

inatingível.” 31<br />

27 FLEMING, Donald C. “<strong>Eclesiastes</strong>”. p.958.<br />

28 STORNIOLO, Ivo. Trabalho e felicidade- O livro de Eclesitastes, p.51.<br />

29 SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, Ludger. “O livro do <strong>Eclesiastes</strong> (Qohélet)”, em ZENGUER,<br />

Erich e outros autores. Introdução ao Antigo Testamento. Tradução de Werner Fuchs. São Paulo: Edições<br />

Loyola, 2003, p.339 (Coleção Bíblica Loyola, 36).<br />

30 HILL, Andrew E. & WALTON, J.H. Panorama do Antigo Testamento, p.405.<br />

31 SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, Ludger. “O livro do <strong>Eclesiastes</strong> (Qohélet)”, p.339.<br />

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Portanto, a felicidade não é algo para ser conquistado pelo homem, mas é algo para ser<br />

doado por Deus. O foco não está na alegria em si, mas Naquele que é a fonte da alegria<br />

(2.24).<br />

John Piper pergunta: O que Deus poderia dar para o nosso prazer que prova que Ele é<br />

extremamente amoroso? Piper responde: “Há apenas uma resposta possível: ele mesmo.<br />

Se ele nos priva da contemplação dele e da sua comunhão, não importa o que ele nos dê,<br />

não estará amando.” 32 O mesmo autor ainda afirma: “A felicidade de Deus em Deus é a<br />

base da nossa felicidade.” 33<br />

Mas, é também notável que o Coélet convida seus leitores a aproveitarem das alegrias<br />

da vida (5.18; 9.9). Isso é um alerta à teologia cristã da ressurreição futura, pois o Coélet<br />

exorta a “não desvalorizar a ‘vida presente’ à custa da ‘vida no além’”. 34<br />

32 PIPER, John. Teologia da Alegria – A plenitude da satisfação em Deus. São Paulo: Shedd, 2001, p.35.<br />

33 PIPER, John. Teologia da Alegria – A plenitude da satisfação em Deus, p.37.<br />

34 SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, Ludger. “O livro do <strong>Eclesiastes</strong> (Qohélet)”, p.340.<br />

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