Gostos e aromas o Gosto cosmopolita <strong>DA</strong> GASTRONOMIA DE LISBOA a integração <strong>de</strong> cores, aromas e sabores nos comeres <strong>de</strong> lisboa tem <strong>de</strong>corrido sem sobressaltos, havendo actualmente ruas lisboetas que cheiram mais a áfrica e ao oriente do que a alfacinha David Lopes Ramos Jornalista 74.75 mtpaml
Gran<strong>de</strong> cida<strong>de</strong> “<strong>de</strong> muitas e <strong>de</strong>svairadas gentes”, na <strong>de</strong>finição expressiva do nosso primeiro gran<strong>de</strong> repórter, o cronista Fernão Lopes (século XIV), terra on<strong>de</strong> eram “mais os estrangeiros do que os naturais”, na observação do ilustre erudito Damião <strong>de</strong> Góis (século XVI), <strong>Lisboa</strong> mantém, no século XXI, essa faceta <strong>de</strong> lugar <strong>de</strong> passagem e <strong>de</strong> encontro <strong>de</strong> povos e <strong>de</strong> culturas diversas, cuja paisagem gastronómica po<strong>de</strong> ser comparada a um arco-íris, tal é a sua varieda<strong>de</strong> e colorido. Neste particular, tanto po<strong>de</strong>mos falar <strong>de</strong> imigração (o que nos chega do estrangeiro), como <strong>de</strong> migração (o que chega à cida<strong>de</strong> capital vindo <strong>de</strong> outras regiões do País). Muitos e diferentes factores contribuíram para a diversida<strong>de</strong> e cosmopolitismo culinário lisboeta. O menor dos quais não foi, certamente, o dos Descobrimentos, que trouxe para a Europa produtos e especiarias exóticas, como certas frutas (ananás, papaia, manga, entre muitos outros) e condimentos, como a pimenta, a noz moscada, a canela, o gengibre, o cardamomo, mas também outros, como as batatas ou os feijões, que <strong>de</strong>sempenham um papel <strong>de</strong> importância ímpar na nossa alimentação quotidiana. Outros acontecimentos mais recentes, como foi a <strong>de</strong>scolonização tardia, fizeram chegar a Portugal <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong> africanos e indianos, bem como orientais. A integração <strong>de</strong> todas estas cores, aromas e sabores tem-se feito, até agora, sem gran<strong>de</strong>s sobressaltos, havendo actualmente ruas lisboetas que cheiram mais a África e ao Oriente do que a “alfacinha”. Excelentes mestres Num texto muitas vezes citado sobre as características do “prato nacional” (em Os Gatos IV, Clássica Editora), o escritor Fialho d’Almeida (1857-1911) <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>, não sem exagero, embora compreensível à luz da época em que foi escrito, que “é sem dúvida alguma a cozinha portuguesa, a mais requintada, a mais voluptuosa e a mais sápida cozinha do mundo, e a única gran<strong>de</strong> concepção que tivemos, <strong>de</strong> carácter anónimo, digna <strong>de</strong> arcar com a das epopeias cíclicas das raças aglutinativas e persistentes, com a hindu, a germânica, etc.”. Reconhece, porém, que “tivemos mestres excelentes, herdando por exemplo do árabe a caçarola e a arte <strong>de</strong> fritar e refogar, o que foi muito, e que as <strong>de</strong>scobertas não nos serviram só pra dar vazante ao espírito batalhador e às más inclinações dos fidalgos fadistas que se arruinavam na metrópole, senão <strong>de</strong>las auferimos, com as especiarias do Oriente, os picantes do Brasil, e a arte <strong>de</strong> doçar dos países gulosos, a Turquia e a Índia, e os sultanatos mouros da costa <strong>de</strong> África, subsídios culinários, condutos, mimos, receitas, que muito cedo nos fizeram tomar a dianteira dos povos gastrónomos. Assim também não há povo que se gabe <strong>de</strong> tamanha porção <strong>de</strong> pratos nacionais”. Gostos e aromas Mas Fialho d’Almeida era muito crítico em relação ao fascínio que os ilustres da sua terra e os burgueses endinheirados revelavam pelos francesismos culinários: “Actualmente entre nós a arte <strong>de</strong> cozinhar e comer <strong>de</strong>grada-se, como tudo o mais, por falta <strong>de</strong> coesão nos gostos do público, e por culpa dos inovadores acéfalos, para quem as coisas nacionais não valem a mais reles ‘bouta<strong>de</strong>’ anglo-gaulesa. Os pratos nacionais, tirando uma ou outra casa <strong>de</strong> província, poucas, on<strong>de</strong> ainda fielmente se observa a tradição gastronómica da antiga vida, <strong>de</strong>saparecem das mesas, ou são <strong>de</strong>turpadas pela <strong>de</strong>satenção e sardónica má-fé <strong>de</strong> toda a gente.” O contributo galego Há um tema não abordado pelo escritor natural <strong>de</strong> Vila <strong>de</strong> Fra<strong>de</strong>s, que é o da importância <strong>de</strong>cisiva do contributo dos galegos na vida lisboeta dos finais do século XIX, em particular no sector da restauração. Há pratos, como as iscas com elas (bifes <strong>de</strong> fígado <strong>de</strong> vitela ou <strong>de</strong> porco, finissimamente cortados, fritos em banha <strong>de</strong> porco, servidos na companhia <strong>de</strong> batatas cozidas), o bacalhau à Brás, a meia <strong>de</strong>sfeita <strong>de</strong> bacalhau com grão <strong>de</strong> bico, as amêijoas à Bulhão Pato (homenagem <strong>de</strong> um tasqueiro galego ao escritor, gastrónomo e caçador, autor <strong>de</strong> Paquita, também apreciador <strong>de</strong> espanholas, que foi Bulhão Pato, igualmente autor <strong>de</strong> uma receita <strong>de</strong> lebre no espeto, um belo petisco) e fiquemo-nos por aqui.