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Revista Sinais Sociais N5 pdf - Sesc

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v.2 nº5<br />

setembro > dezembro | 2007<br />

SESC | Serviço Social do Comércio<br />

Administração Nacional<br />

iSSN 1809-9815<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 1-148 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007


SESC | Serviço Social do Comércio | Administração Nacional<br />

PRESiDENtE Do CoNSELHo NACioNAL Do SESC<br />

Antonio oliveira Santos<br />

DiREtoR GERAL Do DEPARtAmENto NACioNAL Do SESC<br />

maron Emile Abi-Abib<br />

CooRDENAÇÃo<br />

Gerência de Estudos e Pesquisas / Divisão de Planejamento e Desenvolvimento<br />

CoNSELHo EDitoRiAL<br />

Álvaro de melo Salmito<br />

Luis Fernando de mello Costa<br />

mauricio blanco<br />

Raimundo Vóssio brígido Filho<br />

secretário executivo<br />

Sebastião Henriques Chaves<br />

assessoria editorial<br />

Andréa Reza<br />

EDiÇÃo<br />

Assessoria de Divulgação e Promoção / Direção Geral<br />

Christiane Caetano<br />

projeto gráfico<br />

Vinicius borges<br />

revisão<br />

márcio mará<br />

<strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong> / Serviço Social do Comércio.<br />

Departamento Nacional - vol.2, n.5 (setembro/<br />

dezembro) - Rio de Janeiro, 2007<br />

v. ; 29,5x20,7 cm.<br />

Quadrimestral<br />

iSSN 1809-9815<br />

1. Pensamento social. 2. Contemporaneidade. 3. brasil.<br />

i. Serviço Social do Comércio. Departamento Nacional<br />

As opiniões expressas nesta revista são de inteira responsabilidade dos autores.<br />

As edições podem ser acessadas eletronicamente em www.sesc.com.br.


SumÁRio<br />

EDitoRiAL4<br />

bioGRAFiAS5<br />

A iNSuPoRtÁVEL LEVEzA Do CAPitAL8<br />

ExCERtoS A PARtiR DE bAuDRiLLARD<br />

André Queiroz<br />

muDANÇAS SoCiEtÁRiAS E<br />

CRiSE Do EmPREGo44<br />

miStiFiCAÇõES, LimitES E PoSSibiLiDADES DA FoRmAÇÃo PRoFiSSioNAL<br />

Gaudêncio Frigotto<br />

CoNFuSõES Em toRNo DA<br />

NoÇÃo DE PúbLiCo76<br />

o CASo DA EDuCAÇÃo SuPERioR<br />

(PRoViDA PoR QuEm, PARA QuEm?)<br />

Ricardo barros, mirela de Carvalho, Samuel Franco, Rosane mendonça e Paulo tafner<br />

ENtRE A ESPERANÇA E A REALiDADE<br />

SobRE A ARtE E o SEu ENSiNo100<br />

Ronaldo Rosas Reis<br />

SobRE o RELAtiViSmo EStétiCo<br />

PóS-moDERNo E SEu<br />

imPACto ExtRA-EStétiCo128<br />

Walzi C. S. da Silva


EDitoRiAL<br />

Vive-se uma época de muitas perguntas à procura de respostas.<br />

Pode-se afirmar que as mudanças ocorridas nas últimas décadas<br />

obrigaram os produtores de conhecimento a rever paradigmas e<br />

chaves de pensamento. As formas de pensar demonstraram-se condutos<br />

inadequados à sua finalidade.<br />

A leitura da produção científica contemporânea indica a pesquisa<br />

de respostas em sintonia com indagações antecedentes. Sabem os<br />

pensadores da contemporaneidade que suas reflexões são obras em<br />

aberto, suscetíveis de serem apenas aproximações pálidas do que<br />

intentam compreender. Entretanto, possuem a consciência da construção<br />

passo a passo, com avanços e recuos. mais importante do que<br />

a verdade procurada é a busca sem esmorecimento. Se não existe o<br />

caminho, cabe ao caminhante fazê-lo.<br />

o quinto número da revista <strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong> é uma manifestação clara<br />

destas assertivas, e bom indicador do quadro de revisão e novas<br />

compreensões de distintas questões apresentadas na ordem econômica<br />

e social dos dias de hoje.<br />

os temas abordados pelos articulistas não são inéditos. inéditas<br />

são suas leituras dos fenômenos escolhidos. São artigos polêmicos<br />

e questionadores, que trazem novos olhares sobre os objetos analisados,<br />

contribuindo significativamente para os propósitos da revista<br />

<strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong>, de incentivar a pluralidade de pensamento.<br />

Esperamos que tais exames sejam incorporados como referência<br />

ao processo de reflexão da academia e da sociedade, tão necessário<br />

em um país que se transforma numa velocidade maior do que a nossa<br />

capacidade de entendimento.<br />

Antonio oliveira Santos<br />

Presidente do Conselho Nacional do SESC


ioGRAFiAS<br />

André Queiroz<br />

é filósofo. Cursou Artes Cênicas na uni-Rio. mestre em Filosofia (PuC-Rio),<br />

doutor em Psicologia Clínica (PuC-SP). Professor no Programa de Pós-Graduação<br />

em Comunicação e no Departamento de Estudos Culturais e mídia<br />

da uFF. Escritor e ensaísta, autor de A morte falada (7Letras, 1998); Foucault<br />

– o paradoxo das passagens (Pazulin, 1999); tela atravessada – ensaios<br />

sobre cinema e filosofia (Cejup, 2001); o sonho de nunca (7Letras, 2004);<br />

outros nomes, sopro (7Letras, 2004); o presente, o intolerável... Foucault e<br />

a história do presente (7Letras/Faperj, 2004); Em direção a ingmar bergman<br />

(7Letras, 2007); Antonin Artaud, meu próximo... (Pazulin, 2007) e de inflexões<br />

baudrillard (a sair). Coorganizador dos seguintes livros: Foucault hoje? (7Letras/PPCom-uFF,<br />

2007); barthes e blanchot: um encontro possível? (7Letras/<br />

PPCom-uFF, 2007) e de Pensar de outra maneira a partir de Cláudio ulpiano<br />

(Pazulin, 2007).<br />

Gaudêncio Frigotto<br />

Doutor em Educação pela PuC-SP. Professor do Programa de Pós-Graduação<br />

em Políticas Públicas e Formação Humana da universidade do Estado do Rio de<br />

Janeiro e professor titular associado da Faculdade de Educação da universidade<br />

Federal Fluminense. integrante do Conselho Diretivo do Conselho Latino-<br />

Americano de Ciências <strong>Sociais</strong> (Clacso) e membro do Comitê Acadêmico do<br />

instituto de Pensamento e Cultura (ipecal), com sede no méxico.<br />

Principais livros e artigos nos últimos anos: Fundamentos científicos e técnicos<br />

da relação trabalho e educação no brasil hoje.2006; Frigotto, G. e Civatta,<br />

m. A formação do cidadão produtivo; A cultura do mercado no ensino<br />

médio técnico.2006; Educação crise do capitalismo real.2005; A produtividade<br />

da escola improdutiva.2006; (org.) Educação e crise do trabalho: perspectiva<br />

de final de século.2006; Frigotto, G. Escola Pública da atualidade: Lições<br />

da história.2005; ética, trabalho e educação.2005; Frigotto, G, Ciavata, m. e Ramos,<br />

m.(org) Ensino médio integrado – Concepção e contradições.2005; Frigotto,<br />

G. & Gentili, P. A cidadania negada – Políticas de exclusão na educação<br />

e no trabalho.2002; Frigotto, G. e Ciavatta, m. (orgs) Ensino médio – ciência,<br />

cultura e trabalho.2004; Sujeitos e conhecimento: os sentidos do Ensino médio.<br />

in. Frigotto, G e Ciavatta, m (orgs.). Ensino médio, ciência, cultura e trabalho.2004;<br />

A dupla face do trabalho: criação e/ou destruição da vida. in Fri-


gotto, G. e Ciavatta, m. A experiência do trabalho e a educação básica. 2002;<br />

Fundamentos de um projeto político-pedagógico. in Vários, Dermeval Saviani<br />

e a Educação brasileira. 1994.<br />

Ricardo Paes de barros<br />

é graduado em Engenharia Eletrônica no instituto tecnológico da Aeronáutica<br />

(itA), mestre em Estatística pelo instituto de matemática Pura e Aplicada<br />

(impa) e doutor em Economia pela universidade de Chicago. Desde 1979,<br />

tem trabalhado como pesquisador do instituto de Pesquisa Econômica Aplicada<br />

(ipea), onde conduz pesquisas no campo de desigualdade social, educação,<br />

pobreza e mercado de trabalho no brasil e na América Latina.<br />

mirela de Carvalho<br />

é graduada em Economia pelo instituto de Economia da universidade Federal<br />

do Rio de Janeiro (iE-uFRJ), mestre e doutora em Sociologia pelo instituto universitário<br />

de Pesquisa do Rio de Janeiro (iuperj). Desde 2000 é pesquisadora no<br />

ipea, onde participou de diversas pesquisas sobre desigualdade social, educação,<br />

pobreza e mercado de trabalho no brasil e na América Latina.<br />

Paulo tafner<br />

é economista, pesquisador do ipea (instituto de Pesquisa Econômica Aplicada),<br />

foi coordenador do Grupo de Estudos da Previdência, da Diretoria de<br />

Estudos macroeconômicos do ipea/RJ e editor da publicação “brasil: o estado<br />

de uma nação”, edições de 2005 e 2006. é também professor do Departamento<br />

de Economia da universidade Candido mendes.<br />

Ronaldo Rosas Reis<br />

Doutor em Comunicação e Cultura pela universidade Federal do Rio de Janeiro<br />

(1994) com Pós-Doutorado em Educação pela universidade Federal de<br />

minas Gerais (2001). Professor associado da Faculdade de Educação e do Programa<br />

de Pós-Graduação em Educação da universidade Federal Fluminense.<br />

Coordenador do Neddate-uFF (Núcleo de Estudos, Documentação e Dados<br />

sobre trabalho e Educação) e pesquisador do CNPq. Publicou pela editora<br />

Cortez o livro Educação e estética. Ensaios sobre arte e formação humana no<br />

pós-modernismo (2006) e os ensaios sobre cinema “os dois mundos de Ale-


xander K. Classe, cultura e consumo em Adeus, Lênin!”, no livro A diversidade<br />

cultural vai ao cinema, da editora Autêntica (2006), e “Cinema, multiculturalismo<br />

e dominação econômica”, na revista Crítica marxista, da editora Revan/Cemarx<br />

(2005) – Contato: ronaldo.rosas@globo.com e ronaldo3@vm.uff.br.<br />

Rosane Silva Pinto de mendonça<br />

é graduada em Economia pela universidade do Estado do Rio de Janeiro<br />

(uerj), mestre em Economia pela Pontifícia universidade Católica do Rio de<br />

Janeiro (PuC/RJ) e doutora em Economia pela universidade Federal do Rio de<br />

Janeiro (uFRJ). Atualmente, é professora adjunta do Departamento de Economia<br />

da universidade Federal Fluminense (uFF) e pesquisadora colaboradora<br />

no ipea, onde desenvolve desde 1987 diversas pesquisas na área de educação,<br />

pobreza e desigualdade de renda no brasil e na América Latina.<br />

Samuel Franco<br />

é graduado em Ciências Estatísticas pela Escola Nacional de Ciências Estatísticas<br />

(Ence/ibGE), mestrando em Estudos Populacionais e Pesquisas <strong>Sociais</strong><br />

pela mesma escola. Desde 2002 é assistente de pesquisa no ipea, onde participou<br />

de diversas pesquisas sobre desigualdade social, educação, pobreza<br />

e mercado de trabalho no brasil e na América Latina.<br />

Walzi C. Sampaio da Silva<br />

é sociólogo, doutor em Filosofia pela universidade de São Paulo e mestre em<br />

Sociologia pelo iuperj, com pesquisa co-desenvolvida na universidade do<br />

texas (Austin/tx-EuA). Ex-pesquisador do CNPQ, Fapesp; ex-bolsista Fullbright<br />

e originariamente professor da universidade Federal do Rio de Janeiro e<br />

da universidade Católica de Petrópolis, encontra-se atualmente na direção<br />

do Departamento de Filosofia da universidade Federal Fluminense (Niterói/<br />

RJ). Desenvolvendo trabalho sobre filosofia da mente, ciência da cognição e<br />

o impacto da tecnologia e ciência contemporâneas sobre as disciplinas clássicas<br />

da filosofia: daí o interesse na subsistência da estética como disciplina<br />

filosófica, sob uma perspectiva pós-moderna. Foi precursor no brasil do estudo<br />

dos Programas Fortes, trazendo-os a debate acadêmico em 1983. trabalhou<br />

em campos correlatos como racionalidade não-clássica, antifundacionismo<br />

em lógica, ceticismo e epistemologia naturalizada. Publicou diversos<br />

artigos nestas áreas, bem como estudos sobre relativismo em epistemologia,<br />

ética, estética e filosofia da ciência. Contato: wdasilva@vm.uff.br


A iNSuPoRtÁVEL<br />

LEVEzA Do CAPitAL<br />

ExCERtoS A PARtiR DE bAuDRiLLARD<br />

André Queiroz<br />

8<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 8-43 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007


Falência geral de tudo por causa de todos!<br />

Falência geral de todos por causa de tudo!<br />

Desfile das nações para o meu Desprezo!<br />

(...) E tu, brasil, ‘república irmã’, blague de<br />

Pedro Álvares Cabral, que nem te queria<br />

Descobrir!<br />

Ponham-me um pano por cima de tudo isso!<br />

Álvaro de Campos<br />

Resumo: o ensaio que ora apresentamos discute os modos de funcionamento<br />

do capital na sociedade contemporânea: seus limites, seus deslimites.<br />

E também, a questão que se dá é a das resistências: como resistir a um poder<br />

absoluto? Do texto, propriamente dito, ele se apresenta em duas camadas:<br />

uma primeira, na que o conceito fica como que subsumido à narrativa alegórica:<br />

trata-se de compor um cenário de claustro, como modo de recolhimento<br />

típico às sociedades de capitalismo industrial. Ainda nesta camada, fazse<br />

discreta a passagem às formas de clausura no “aberto” das modulações<br />

financeiras, e não mais nos interiores das instituições fechadas. Na segunda<br />

camada, a narrativa cede espaço às apresentações das teses filosóficas acerca<br />

dos modos de expressão do capital. E então, a letra de Jean baudrillard,<br />

entre as de Foucault, as de Lyotard, as de Deleuze, emergirá com nitidez na<br />

apresentação de sua visada.<br />

Resume: in this essay we discuss the ways Capital functions in contemporary<br />

society: its limits, its dislimits. And also, a question of resistances posits itself:<br />

how to resist an absolute power? in our text as such that power shows itself<br />

in two layers. on the first one, the concept stays subsumed under the allegorical<br />

narrative. it concerns the composing of a cloister setting (scene) as<br />

a way of withdrawal typical of industrialized capitalist societies. Still on this<br />

first layer, the passage to the cloister forms in the “open” of financial modulations<br />

is discreet and does not occur anymore in the interiors of closed institutions.<br />

on the second layer, the narrative cedes space to the presentation<br />

of philosophical theses about the Capital’s modes of expression. And then,<br />

the handwriting of Jean baudrillard, among those of Foucault, Lyotard, and<br />

Deleuze, shall clearly emerge from the presentation of his gaze.<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 8-43 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007<br />

9


10<br />

1<br />

Começamos como quem fabula cenários inóspitos. Distintos e em<br />

desequilíbrio, os cenários. No entanto, algo os enovela, a sua condição,<br />

qual seja, a de ser um claustro. Ainda assim, por ora, é pouco o<br />

que acenamos àqueles que se reconhecem na distinção do bom entendimento.<br />

Necessário será o esmero em nuanças. E então, vejamos:<br />

um claustro, um encerro. Nele se está em depósito. talvez, quem o<br />

saberia, como o personagem-narrador de Nítido nulo, de Vergílio<br />

Ferreira: à frente, o barulhar das águas-marinhas que estouram nas<br />

pedras do cais. E então, tão logo, o silêncio. De seu recolhimento em<br />

línguas de espuma, o silêncio. outra vez, o esparramo, o das águas<br />

na vontade renovada das marés. Vez outra, o recuo. isto o que se<br />

tem à frente. um cenário em aberto. Quem sabe se à travessia? Não<br />

há travessia. o que há é o claustro. A despeito do que se tem à frente<br />

- o cenário, é o claustro o horizonte. Às costas, no entorno, abaixo,<br />

onipresente, a cela larga e limpa. E está-se dentro. Nada sendo<br />

o que restasse ao corpo para além do esforço inútil de pernas, de<br />

braços, do tronco num esticar-se dele a fim de retardar a hora na que<br />

a vontade verga a um adentro ainda mais adentro 1 (os desvãos do<br />

nós, o labirinto da pessoa), a vontade encarquilhada, em paralisia, a<br />

ponto do seu impossível se for o caso a retomada, o ensejo d’algum<br />

esforço, o pôr-se a prumo em retirada, a vida sob os pés. Nada. Aqui,<br />

nenhum. A condição na que se está é irrevogável, a condenação à<br />

morte a emparedar o homem e seu limite, como se todo o tempo<br />

de que dispõe acabasse por ser o que o comprime: corpo, vontade<br />

– inscritos estes no passamento, e então o susto de tão logo a morte.<br />

Apenas um fato: nada, ninguém será aquele que virá bater à porta a<br />

anunciar o desfecho: local e hora. E mesmo o modo a que se atrelará<br />

no corpo o seu ocaso. Não há palavra nem gente que deixe ver o<br />

traçado da senha. Nada, nenhum. Faltam as pistas, a indicação precisa<br />

para que se forjassem os acenos desde o limite ao que o antecipasse<br />

no preparo daquele que vai morrer - isto será o que falta, isto já é o<br />

1 Da física do cárcere, é Graciliano Ramos quem o diz: “medonho confessar isto: chegamos<br />

a temer a responsabilidade e o movimento, enervamo-nos a arrastar no espaço<br />

exíguo os membros pesados. bambos, fracos, não nos agüentaríamos lá fora; a menor<br />

desgraça é continuarmos presos.” (1956, vol.2, pp.89-90)<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 8-43 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007


que falta. No corpo, as justas. o aceite barbárico. o corpo à prova. os<br />

sacrifícios como que numa testagem a ver se se está acondicionado,<br />

a ver se se evitará os gritos quaisquer da delação na hora mesma em<br />

que a agonia se encerrará. Nada, nenhum. tudo, o que falta. E mesmo<br />

o número dos que estarão em vigília à cena, ninguém o diz, ninguém<br />

o dirá, e talvez que se creia que a solidão será o aporte, que se terá<br />

a si mesmo e tão-somente no quando da desdita, a morte de dentes<br />

alvos, de uma brancura que dói às vistas, e no contorno da cena o que<br />

será seria a solidão daquele que morre? nenhum os olhos a averiguar<br />

o que se dará no encontro, o corpo exposto ao abutre de Prometeu,<br />

as vísceras renovadas a cada fisgada numa morte que se adia e<br />

que se renova no morrer diário a que se estaria entregue. Nada, nenhum.<br />

Apenas que se saberá do desfecho quando do próprio, a sua<br />

circularidade inultrapassada numa tautologia de rituais e sentenças<br />

a evocar o indistindo entre o agora e o não-mais. Apenas quando.<br />

Nada, ninguém dará as pistas de forma prévia como que a amenizá-lo<br />

no costume que se traz desde o pensamento, a pele curtida ao sol<br />

desta verdade ainda que ingrata – o morrer já e já na consumição do<br />

corpo à míngua, e então eis que se fizesse inteiro o ato que a tudo<br />

encerrasse, nada ninguém a enunciá-lo quanto a este então – quando<br />

o então?: semana que vem, ou o mês das festas de fim de ano, ou<br />

o quando do retorno d’alguma nau e apenas quando, porque dizse<br />

(diria-se, fosse o caso o dizer) que seu percurso é o tempo do interstício<br />

a um estrangeiro em agonia... Quando o então? isto fica em<br />

aberto. Nada, ninguém seria quem o encerrasse numa confissão. mas<br />

nada, também, o que se faça aqui em semelhança à situação outra,<br />

inóspita também, outra cena, a de um Joseph K., o personagem de<br />

Kafka. Lá, o aberto – aquilo de que não se dispunha dizendo respeito<br />

aos autos do processo: o que se fizera? Qual o dano? Qual a alínea<br />

de um suposto contrato a que se manchara quem sabe se num descuido,<br />

quem sabe se em reclame da condição desalmada, na grita de<br />

injúrias, no declame de impropérios, num sortilégio de imprecações?!<br />

Joseph K nada sabe de um seu delito. Sabe-se enredado. tomado em<br />

assalto na manhã em que estava em casa. três as pancadas na porta<br />

de madeira barata. E entra alguém, entrará alguém. Alguém foi quem<br />

o disse, alguém foi quem lhe trouxe a petição: vem, siga-me! E se for<br />

o caso da inquirição repetindo-se a despeito da boca em repuxo que<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 8-43 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007<br />

11


fiz? qual erro? Será o silêncio a casa da palavra sem rebate. Está entre<br />

uma quitação aparente e uma moratória ilimitada aquele que atende<br />

pelo nome do condenado de Kafka. o tempo, d’algum modo, não se<br />

lhe furta ao jogo. Está em condição fluida a escorrer entre os dedos<br />

de quem manipula as cartas no resgate da regra. tudo o que se troca<br />

e aqui nada, ou pouco, pouquíssimo é o que se manipula uma vez<br />

que se está refém. Faltaria pouco, talvez, para que se dispusesse das<br />

regras. bastava um dizer delas àquele a que se toma em juízo. Nada,<br />

nenhum. bastaria que se se desse ao aprendizado das portas – porque<br />

algumas destas levam à casa de correção, algumas outras conduzem<br />

ao cenário de espelhos, outras ao entre-pernas da secretária de<br />

decote vasto a fazer de si o princípio de um mundo, e outras ainda<br />

serão as portas que remetem aos jurados em permanente recesso.<br />

Em qual entrar? Em qual buscar o ingresso, a chave-mestra que em<br />

abrindo todas pudesse deixar que se escolhesse o caminho por onde<br />

seguir, quem o saberia dizer? Seria o caso, o fosse, saber por onde<br />

andar. Não se sabe. Se se soubesse seria já uma forma de saber, e se<br />

se está refém se o está de todo o saber de que não se dispõe. Está-se<br />

refém deste ou daquele saber que se lhe volta a mira ostensiva no<br />

corpo de seus enunciados, de sua pragmática, o percurso retilíneo<br />

dos homens da lei a chegar desde a porta da casa em que se mora<br />

e a dizer a este: vem, siga-me! tudo ‘o aquilo’ que se troca, mas aqui<br />

pouco, pouquíssimo. E sequer o segredo, dito às escondidas, a indicação<br />

no jogo de crianças: está frio, muito frio, está esquentando, está<br />

quente, está pelando. Cerrou-se a hora às brincadeiras da inocência.<br />

Alguém que chega tem a dizer apenas a frase mesma que nada constrange<br />

e que a tudo convoca: vem, siga-me! 2 E como o escape? onde<br />

2 Do segredo do seqüestro, a forma do tomar a si sem explicações, dirá Graciliano<br />

Ramos: “mal fechara os olhos numa leve sonolência, alguém me sacudira e soprara<br />

ao ouvido: ‘-Viajar’. Para onde? Essa idéia de nos poderem levar para um lado ou<br />

para outro, sem explicações, é extremamente dolorosa, não conseguimos familiarizar-nos<br />

com ela. Deve haver uma razão para que assim procedam, mas, ignorando-a,<br />

achamo-nos cercados de incongruências. temos a impressão de que apenas desejam<br />

esmagar-nos, pulverizar-nos, suprimir o direito de nos sentarmos ou dormir se estamos<br />

cansados. Será necessária esta despersonalização? Depois de submeter-se a<br />

semelhante regime, um indivíduo é absolvido e mandam-no embora. Pouco lhe serve<br />

a absolvição: habituado a mover-se como se o puxassem por cordéis, dificilmente se<br />

libertará. Condenaram-no antes do julgamento, e nada compensa o horrível dano.”<br />

(Ramos, G., op.cit., vol., pp.45-46).<br />

12<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 8-43 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007


a presença dos outros, de todos, das massas no firme propósito de<br />

sublevar? Como o escape? bastaria que se se desse à prestidigitação<br />

do sufrágio – estamos a pensar no Estado de direito. Convocar a todos<br />

a que se marcasse um x numa cédula qualquer: se se quer vê-lo<br />

preso, algemado, depositado no fundo de uma cela limpa e larga, ou<br />

se se quer que o esqueçam tal como ele o estava ainda há pouco, no<br />

dentro de uma casa com apenas uma porta, e um nada de janelas.<br />

No entanto, nada, nenhum. E assim serão as horas as vielas curvas<br />

que levam a um outro modo de se o estar: se se está condenado<br />

todo tempo qual não será a parte do arremedo, qual seja, a de uma<br />

quitação embora aparente quando faz-se que se liberta da dívida a<br />

corromper, ou mesmo quando de um seu sursis recorrente no que a<br />

suspensão de todo gesto definitivo reincide no peito o vigor do agora...<br />

m’a quanto é que dura este ‘agora’ senão a totalidade do tempo,<br />

ele mesmo esta superfície na que se perfaz o malabaris?!<br />

Voltemos ao romance de Vergílio Ferreira. E lá, aqui, é o tempo<br />

na sua totalidade o tempo que resta. Nada sendo o que se lhe encurvasse<br />

num afora. o que fazer então? Conspirar contra o tempo?<br />

Forjar-lhe uma letargia: arrancar os ponteiros do relógio na parede<br />

da sentença? mas veja lá: não se pára o tempo! outro relógio, em digitais,<br />

ousaria o espocar das horas, o tilintar dos segundos a derrapar<br />

na pele em foice. ou quem sabe se menos, se se de forma arcaica,<br />

fosse da sucessão dos dias que se inauguram aos que se encerram<br />

de que fossem se desprendendo os restos da duração, esta a forma<br />

da contagem, e sabe-se lá qual dia depois de qual noite, se fizesse<br />

inteira a vontade da consumação naqueles que julgam e executam, e<br />

então, mas só então, a sessão fosse anunciada. talvez. ocupamos os<br />

espaços do talvez. outro talvez seria se exausto do sublevar no tempo,<br />

uma vez, outra vez exaurida a fatia do anseio decalcada à precipitação,<br />

qual seja, a de dispor o corpo no confronto diário com qualquer<br />

que seja a regra, a disciplina, aquilo a que se atende por bons<br />

modos, e tudo isto somado outra coisa não fosse do que a tentativa<br />

de tomar a si o tempo em precipício, fazendo vir consigo as horas no<br />

desaprumo delas, os humores em alto forno, a resolução arrancada à<br />

junta dos que dirigem como quem grita ‘que seja agora, que seja breve!’.<br />

Sublevar no tempo. Arrancar-se do lugar de refém, a condição<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 8-43 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007<br />

13


de estar prostrado. Quem o saberia? Haveria de estar algum olhar de<br />

repreensão à espreita a ver o que cabe àquele corpo em depósito na<br />

cela larga e limpa, haveria de estar a sentinela em lugar e função precisos<br />

e irretocáveis, a vigilância, a delação como que na captura de<br />

todo detalhe, haveria de se colocar sob risco o resoluto das decisões<br />

sobre ‘o quando’ e ‘o como’ da execução ao ponto da intervenção<br />

daquele, o interessado, vir a afetar a regulação nos humores dos outros,<br />

os supostos desinteressados, os assim chamados homens de lei<br />

(e então, seria o caso: interessá-los?). mas não! Nada o que se conseguira,<br />

nada o que se conseguiria. Digamos que para lá da cela, para<br />

lá dos sons que a preenchem, para lá da brisa que descortina um<br />

horizonte imaginado, não haja ninguém. Ninguém esteja por agir.<br />

Apenas e tão somente que o que se dê se realize no sem-conluio<br />

de um desígnio. o tempo restrito a ser o tempo que resta. Ninguém<br />

estando algures a dizer o seu tamanho. Está-se num aberto. Nele encerrado.<br />

Na forma de um claustro. Sob o olhar da sentinela que nada<br />

vê tamanha a indiferença face ao rumor das horas inapreensíveis.<br />

Entretanto, está ali a sentinela a olhar. Como está ali o condenado a<br />

contar o tempo. Aqui é Jorge, o condenado, a dizer: marrei contra o<br />

tabuleiro. Se marrei. Há-de haver uma saída, há-de haver uma saída,<br />

mas não a vejo. talvez o meu filho – boa piada, o meu filho. o guarda,<br />

vejo-o, estará a pensá-lo também? Não é provável, um guarda não<br />

pensa, guarda o que pensam os outros 3 .<br />

14<br />

2<br />

Como se defender diante de um poder absoluto? Como vislumbrar<br />

uma saída? Como embaralhar as horas e as regras no intento<br />

d’alguma permuta? Lá fora, o barulhar das ondas, lá fora a sonoridade<br />

da infância que se gasta em torneios de bola e mergulho. No<br />

entorno, atrás, a parede lisa da cela larga e limpa. Está-se dentro – já<br />

dissemos. Sublevar no tempo – o que resta? Fazê-lo funcionar em<br />

benefício próprio – suas rodas a constranger, suas roldanas a emperrar?<br />

Cerrar os olhos. Desde o lóbulo das orelhas a lâmina, cerrar<br />

os olhos? Estou (estamos) na praia. Desde lá ousamos a enxerga em<br />

3 Ferreira, V.; Nítido Nulo. Lisboa: Portugália Editora, 1971, p.15.<br />

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ecuo até onde estávamos. Ainda há pouco, a cela. Agora, a praia.<br />

Como foi que suportamos? Como duramos, insistidos, para além<br />

das horas que eram o tempo todo do que dispúnhamos? Como o<br />

desespero e o desamparo não nos desautorizou da persistência? 4<br />

Aqui estamos. Vilipendiados, mofinos, é certo. mas aqui estamos.<br />

todas as personagens da história a nos visitar. E mesmo o Graciliano<br />

que fora personagem de si-próprio num romance em memórias.<br />

E mesmo o Jorge de ainda pouco agora o de Vergílio Ferreira. E<br />

mesmo o Kafka em Joseph k., ou outro dele, o Gregor Samsa situado<br />

entre as paredes do quarto dos fundos onde os olhos do mundo<br />

faltam ao testemunho. todos trazemos o horizonte arranjado ao<br />

jeito de basculantes gradeados que os pés não alcançam. todos<br />

avançamos na direção da inquietude. o desespero já ali a nos acenar:<br />

vem, siga-me! Está-se aí. Em recuo. Como que à espreita. tudo<br />

o que se tem são os sinais do mundo em desabamento. E como<br />

que em crescendo este desmonte que sequer se sabe os caminhos.<br />

Nada o que se sabe. tudo o que se suporta. o peso nos ombros a<br />

ponto da enverga. o corpo exaurido. tudo o que se tem é a cantilena,<br />

o cantochão, a ladainha, o ritornello, e tudo sendo apenas<br />

um no corpo, na vontade, no verso em sussurro: sublevar, sublevar,<br />

sublevar...<br />

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3<br />

Agora, aqui é outro o local. Estamos dentro de uma empresa que<br />

está dentro de um filme. marcelo Piñeyro é quem o dirige, o filme<br />

5 . Estamos em meio a um processo de seleção para uma vaga<br />

apenas. Sete, os candidatos. trata-se de persistir aos desníveis do<br />

percurso. trata-se de sobreviver ao que se lhes vier no quando da<br />

travessia que é todo tempo. mas qual a travessia? onde será que<br />

ela se inaugura? Como a sua inscrição precisa nos motes do que<br />

fazer, o seu rumo? Quais as regras? o que se tem de fazer? Nin-<br />

4 Da psicologia do cárcere, outra vez, é Graciliano Ramos a dizer: “Não lhes feriam<br />

somente o corpo: tentavam, encharcando-os na lama, no opróbrio, embotar-lhes o<br />

espírito, paralisar-lhes a vontade.” (Ramos, G., op.cit., vol.1, p.151).<br />

5 trata-se de “o que você faria?”, baseado na peça teatral “El método Grönholm”, de<br />

Jordi Galcerán. o filme tem produção espanhola e argentina.<br />

15


guém o dirá. Ninguém será aquele que da empresa fará os esclarecimentos.<br />

um cenário inóspito, com certeza. Da empresa apenas<br />

uma funcionária, a bela secretária de nenhum decote, mas com as<br />

mãos lisas que bem podem deslizar seguras nas pernas d’algum<br />

candidato inseguro. traz no rosto um sorriso estampado que antes<br />

indica os pisares em falso do que a retidão de que se lhes espera –<br />

não se espantem da condição de estarem todos reféns! De fato,<br />

este é o caso. Sete os candidatos. Está-se dentro de uma sala larga<br />

e limpa. tudo o que há nela se dá ao formato high-tech. Portas que<br />

abrem ou fecham sozinhas. Vez por outra, para o estranhamento<br />

de todos, eis que se encontra trancada uma porta. Ninguém foi<br />

quem veio trancá-la. Assim como ninguém será aquele que sairá.<br />

Está-se ilhado. Apenas se escuta o som automático das travas eletrônicas.<br />

Shut out the door! Ninguém foi quem gritou a injunção.<br />

Nenhuma foi a injunção gritada. Ninguém foi quem trancou a porta.<br />

A porta trancou-se. E está-se dentro. Num claustro. No entanto,<br />

vejamos, se se trata de um claustro, trata-se de um claustro hipermoderno.<br />

bastaria que se gritasse ‘estou preso’, que se bradasse o<br />

texto dos nossos direitos de cidadão/consumidor - o ir e vir à solta<br />

e às claras, sob a matriz do consumo, e a porta se abriria. ou que se<br />

alegasse o anseio do estar-se incluso, os riscos à pressão arterial, a<br />

ligeira dor no lado esquerdo do peito elevada desde o braço, e,<br />

outra vez e sempre, a porta se abriria. Ninguém está preso. mas<br />

parece-nos que a ninguém cabe a recusa quando se está no interior<br />

da empresa. Ainda que se gore da condição do lá estar sob tutela<br />

de sabe-se lá o quê, as regras, o código, o contrato. Ninguém será<br />

capaz do grito de recusa: basta! basta! Ninguém será aquele que<br />

mesmo sabendo do deslimite que sugere o processo seletivo, furtar-se-á<br />

a sua condição. Está-se dentro. Num claustro. Palmo e meio<br />

do mundo de lá fora, a rua, mas ninguém será aquele que ousará<br />

esta travessia. Como no filme de buñuel, o anjo exterminador. o<br />

banquete à casa de grã-finos. moet Chandon. Caviar às pencas.<br />

Chistes sob ternos de casimira. Conversas regadas aos aditivos ilícitos.<br />

Negócios resolvidos e tramados no tempo do jantar. E então,<br />

depois, no elevado da hora, quando se encerraria o banquete, ninguém<br />

será aquele que conseguirá atravessar a porta, tomar a rua,<br />

conduzir-se à casa onde se mora. Estão presos na sala de estar sob<br />

16<br />

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o desmantelo dos hábitos de boa vizinhança. Sem quaisquer motivos<br />

aparentes. mas ninguém será o aquele da travessia. isto lá, em<br />

buñuel. Aqui, no filme de Piñeyro, é a empresa, e dentro da empresa,<br />

a sala de reunião. A sala larga e limpa. Como limpa/alva/asséptica<br />

parece ser a face de todos. Num claustro, mas com distinção.<br />

todos são (somos/fomos) diretores de empresas multinacionais;<br />

editores de revistas de alta-costura; manager de livros que vendem<br />

a rodo e que trazem na capa estampado o sorriso largo daquele que<br />

o escreveu; executivos que envergam a instrumentação de dois,<br />

três, quatro, cinco idiomas falados/lidos/escritos na ponta da língua<br />

distintiva e classista; funcionários de alta estirpe, daqueles que se<br />

dão inteiros à rítmica da empresa seja ela o que for, proceda ela<br />

como tiver de proceder. mesmo que ela, a empresa, seja destas que<br />

faturam milhões de dólares ao ano e isto a despeito dos seus gases<br />

tóxicos, de negócios emaranhados em falcatruas, do superáficit<br />

primário garantido na compra de suas moedas pobres pelo arremedo<br />

de Estado que se lha associa, os empréstimos a perder de vista<br />

os juros, as facilitações nas carteiras de crédito federal, a máxima<br />

operante sendo aquela que diz um mínimo de Estado, um máximo<br />

de liberdade – sendo aqui a tal liberdade o que se entende por liberdade<br />

fiscal, o livre tráfego (tráfico) dos capitais estratosféricos e<br />

especulativos, sendo ali, o Estado minimal que lhes convier (Estado<br />

penal e fiscal voltado aos contribuintes, aqueles que rosnam a sua<br />

existência minguada lá fora); lá dentro, são (somos/fomos) todos<br />

homens de negócio, e isto a tal ponto que se for o caso o do vasculho<br />

de uma biografia, o traço que constrange será aquele que sugira<br />

o ‘comum’ do coletivo como mote desde o qual se se dá à narrativa<br />

um qualquer em exposição pública, ainda que lá atrás no tempo<br />

o sindicalismo: será que foi sindicalista? mas como pôde a recusa<br />

da empresa? Atentemos aqui o desnível: como a recusa da empresa?<br />

Este o pecado capital. o capital pecado. o pôr-se d’outro lado.<br />

Do lado de fora da sala limpa e larga. Do lado de lá, embaixo, a rua,<br />

e da rua o que nos chega é a sonoridade amarga dos que recusam.<br />

o que será que se recusa? Recusa-se a anorexia do capital face ao<br />

trabalho produtivo. Recusa-se os seus desmanches, a sua desterritorialização<br />

a sugerir que o mapa do mundo é todo o espaço que se<br />

esquadrinha em face dos humores do agora: o desvão para onde se<br />

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desloca a produção for ainda o caso a produção; o exílio ao que se<br />

condenam hordas e hordas de gentes for o caso ainda o de se pensar<br />

nos imigrantes, nos deserdados, nos deixados à solta às segundas-feiras<br />

ao sol de todo dia quando, diz-se, a fome aperta a fazer<br />

esquecer os órgãos desinvestidos de suas funções de outrora o arranjo.<br />

Recusa-se a cooptação em regimes de otimização absoluta<br />

nos que flutuam levas e levas de capital autônomo à toda e qualquer<br />

inscrição que mesmo um marx talvez se perguntasse pelo<br />

quando de sua falência, de sua autofagia, uma vez abandonada a<br />

parte viva do trabalho que lhe nutria a um avante no tempo e no<br />

espaço, ou que o retivesse na contramão d’alguma conquista, os<br />

trabalhadores na moldagem de um tempo outro, quem sabe uma<br />

nova teoria da colonização, quem o saberia dizer os pontos que do<br />

mundo todo se lhes forneceria um oeste a desbravar, e agora não<br />

mais, apenas à solta o capital a promover a Revolução como superação<br />

às avessas do estado de coisas, ele o capital, a unir-se num<br />

enleio em patchwork, sob os altos brados da convocatória: capitalistas<br />

de todo o mundo, uni-vos! mas quando que não? Leve solto<br />

magérrimo anoréxico como que a se desmanchar no ar fosse o caso<br />

pensá-lo pesadiço, as regras da produção a constrangê-lo, quem o<br />

saberia dizer se não e como, ou outro o constrangimento, os registros<br />

de inscrição no corpo da cidade-cidadã, a sua legislação que,<br />

aqui e ali, acabasse por onerá-lo, são as despesas demais que se<br />

gasta (gastava) com o corpo funcional e então a produção pouca, as<br />

demissões; são (seriam, foram) o que se disse serem as conquistas<br />

históricas dos trabalhadores a fazer valer quem sabe se um recuo às<br />

condições (metafísicas?) de um valor de uso, moldadas às coisas,<br />

buscar sabe-se se lá onde o resgate da finalidade que se impunha<br />

ao trabalhar do trabalho o trabalhador, e agora não mais, daí a recusa,<br />

lá da rua ouve-se o estribilho, são já as sirenas dos carros de<br />

polícia a dizer que o Estado ainda existe para além do seu borrão<br />

em tinta num papel gasto e que se faz que esquece for o caso o<br />

capital, mas não, aqui são as levas de gentes a dizer que basta!, a<br />

tentar uma sabotagem um sabot em meio às roldanas da maquinaria<br />

industrial, ‘um tamanco senão eu sufoco’ entre as peças de moldagem<br />

em linha daquele que somos, mas qual? Qual se não mais,<br />

seria o caso o grito a dizer que a greve é esta paragem no tempo,<br />

18<br />

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uma sublevação no tempo, um fazer retroagir em horas e dias e meses<br />

e anos a condição de um expurgo, a sanguinária legislação do<br />

Estado a conferir os lugares àqueles de direitos e os deslugares<br />

àqueles de fato, seria o caso a grita, ‘tem um megafone às mãos e às<br />

palavras soltas em corredeira’, ‘tem uns braços cruzados a sugerir<br />

que pára o tempo que não pára’, ‘tem um poste, um caixote ao qual<br />

se destila a função reescrita do palanque, as massas a postos, tem<br />

ouvidos moucos a massa que se vos destina, encargos de abano, as<br />

orelhas de burro e estás cansado de ser o zaratustra que a tudo<br />

convoca convocaria a greve entre homens e não mais a greve, não<br />

mais há greve, qualquer que fosse a paragem seria já o paradeiro<br />

no qual fostes lançado, tu mesmo e a todos, e entre todos as massas<br />

6 , e mesmo aquela de que se diria o lúmpen proletariado de outrora<br />

e agora todos (as massas zeradas, os supranumerários, os<br />

inimpregáveis), os trabalhadores que se viam à espera de um tão<br />

logo o dia de ingresso em levas de produção, e então isto, traz uma<br />

greve às mãos, traz um cravo no coldre de tua capitania, os capitães<br />

de um abril português, e não mais, aqui e agora, a sirena que toca<br />

empanturra a audição nos golpes de cassetete, é o Estado a tocarte,<br />

é o Estado a dizer-te: ‘o que será que queres ainda agora deste<br />

mim enfastiado, ou será que não ouvistes dizer do mundo que foi o<br />

mundo mesmo o que inexoravelmente ruiu, e que as alíneas de ainda,<br />

um dia outro dia, o contrato que vos corrompia, é justo o de que<br />

não-mais, a condição renovada do que agora sufocas; o que será<br />

que queres de mim, eu o Estado, o Estado que sou - outrora a crítica<br />

exacerbada de ser eu aquele que vos esmagara nos meus enlaces<br />

escusos com as gentes do capital, nos sombrios acordes em que<br />

vingava a cantilena dos vossos açoites, população de um lado, o<br />

6 baudrillard diz: “A greve se justificava, historicamente, num sistema de produção<br />

como violência organizada, visando arrancar à violência inversa do capital uma fração<br />

da mais-valia, senão do poder. Hoje, essa greve está morta: 1) Porque o capital tem<br />

condições de deixar que todas as greves levem ao desgaste – e isso porque já não se<br />

está num sistema de produção (maximização da mais-valia). Pereça o lucro, desde que<br />

a reprodução da forma da relação social seja salva! 2) Porque essas greves, no fundo,<br />

nada mudam: hoje, o capital redistribui a si mesmo, por constituir isso para ele uma<br />

questão de vida ou morte. Na melhor das hipóteses, a greve arranca ao capital o que<br />

este teria concedido de qualquer maneira com o tempo, de acordo com sua própria<br />

lógica.” (1976, p.35).<br />

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navio negreiro, o vosso bairro operário, eventualmente, o cárcere<br />

das memórias de um Graciliano, ou ainda a morte em batalha sangrenta,<br />

isto por um lado, e d’outro lado, irredutíveis os lados, aqui e<br />

agora o lado outro, a corja de que se me denunciavam o apreço a<br />

aquiescência a luxúria, Felinto muller no apronto das ordenanças<br />

de sua polícia mineira a guardar as costas de Vargas no sono do<br />

Catete, ou ainda outro, um Franco às touradas com os chifres afiados<br />

vazando o estômago dos catalães, um Salazar mais aquém a<br />

propor quem sabe se um novo tratado à melancolia lusitana no resgate<br />

das tordesilhas doutrora, um mussolini de rédeas curtas em<br />

que tudo se lhe dá à tutela, um Estado Novo, concentracionário,<br />

cerceado aos vasos comunicantes, envolto todo ele no abusivo das<br />

legislações excessivas, mas sempre e sempre um Estado, estava lá,<br />

eu, o Estado a cumprir as funções de um meu juízo coletivo, eu<br />

juro, juro de pés juntos, estava eu, o Estado a fazer inserir a todos 7 ,<br />

a depositar cada qual no lugar de sua destinação, e então isto, ainda<br />

agora o vosso praguejo, os trabalhadores, os obreiros do mundo<br />

todo à vossa casa, estavam todos a conspirar de entre as entranhas<br />

do meu corpo de mil portas, e aqui, e agora, ainda agora no agora<br />

de meu desmonte o vosso praguejo, outra vez e sempre o vosso<br />

praguejo, o que será esperas de mim”’, e então as sirenas, a polícia<br />

que chega, ‘é preciso dispersar, voltar às suas casas, é mister sufocar,<br />

sufocar aqueles que insistem na recusa a todo o contrato, e mesmo<br />

este um contrato renovado, precário que o seja, temporário que lhe<br />

caiba o jeito o modo; trago a ti um trabalho outro o seu regime,<br />

quem sabe se a zero hora diária e semanal, um celular no bolso e<br />

isto, apenas isto, a participação nos lucros da empresa, agora isto, o<br />

Estado-empresa, isto que vai seguindo assim, e que assim vai rumando<br />

a história, porque tu deves formular outras teses que te garantam<br />

alguma redenção, no final das provas, no dia final do juízo a<br />

tua forma outrada de produção, imaterial o nome, não é isto o que<br />

7 Deleuze & Guattari dizem da Forma-Estado: “São os elementos principais de um<br />

aparelho de Estado que procede por um-Dois, distribui as distinções binárias e forma<br />

um meio de interioridade. é uma dupla articulação que faz do aparelho de Estado um<br />

estrato”. E mais adiante: “(...) o Estado não se define pela existência de chefes, e sim<br />

pela perpetuação ou conservação de órgãos de poder. A preocupação do Estado é<br />

conservar.” (1980, p.12 e p.19).<br />

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se diz agora, o trabalho que renova, o trabalho que desaliena, imaterial<br />

o nome, ouvi dizer que desde a itália nova recente recentíssima<br />

diz-se deste trabalho a sua imaterialidade, os rumores do tempo<br />

escasso, o trabalho que é todo tempo o tempo todo o do trabalho<br />

mas que agora é válido, a construção de si, a saída pela micropolítica<br />

num arremedo às teias constituintes na que parece que capital e<br />

trabalho não mais se reclamam, não mais se engalfinham, não mais<br />

se pretendem a uma superação qualquer da condição histórica e<br />

pontual, a produção na que se produz aquele que produz, sem<br />

qualquer demanda transcendente, sem qualquer constrangimento<br />

de resguardo num dentro qualquer, nenhuma fábrica, nenhum intramuros,<br />

nenhum acerto de corpo no corpo de uma fila, nenhuma<br />

ortopedia que acople as juntas dos ossos e musculatura aos contornos<br />

de tornos ou outra maquinaria 8 , tens contra mim o trabalho de<br />

tua tese, imaterial o nome, não seria isto o que proclamas, agora<br />

que podes o poder do construir-te, e tanto isto, que ainda dirás a<br />

mim o teu regozijo, creio nisto, palavra do Estado, amém’, e então,<br />

as sirenas, lá embaixo, na rua, a polícia a dispersar a multidão, e lá<br />

em cima, no lado de dentro do cortinado, da sala ambientada a tal<br />

grau que se for de ser o verão o mais tórrido ainda assim será a sala<br />

refrigerada, e se for de ser o frio aquilo que amofinasse a alma seria<br />

a sala larga e limpa a estufa a aquecer, a sala asséptica, a sala da<br />

concorrência privada na que os homens do filme farão as vezes dos<br />

gladiadores pós-modernos, nada de sangue, nada da crueldade artaudiana<br />

– a do corpo exposto ao lacero, a peste desde os baixos –<br />

estômago, intestino, fígado, no fraquejo da vontade, o corpo à fúria<br />

o revolto nada, nada da morte violenta, a morte será lenta e dosa-<br />

8 Do trabalho co-extensivo aos diversos campos da vida, diz baudrillard: “o trabalho<br />

(também sob a forma de lazer) invade toda a vida como repressão fundamental,<br />

como controle, como ocupação permanente em lugares e tempos regulados,<br />

de acordo com um código onipresente. é preciso fixar as pessoas em todo<br />

lugar, na escola, na fábrica, na praia, ou diante da tevê, ou então na reciclagem<br />

– mobilização geral permanente. (...) Ninguém mais os arranca selvagemente da<br />

vida para entregá-los à máquina – vocês são integrados aí com sua infância, seus<br />

tiques, suas relações humanas, suas pulsões inconscientes e sua recusa do trabalho<br />

-, consegue-se para cada um de vocês um lugar em tudo isso, um emprego<br />

personalizado ou, à falta de outra coisa, um desemprego calculado de acordo com<br />

sua equação pessoal.” (1976, p.24).<br />

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da 9 , a morte que se destila no jogo, no carteado da sorte, basta que<br />

se resolva a gincana, que se atravessem os percalços, que se saltem<br />

os obstáculos, a questão é qual a regra? Quem diz a regra que não<br />

se diz? Qual o caminho a que se tem de seguir e que se leva a algures<br />

– algures será sempre mais adentro, mais a fundo, mais geminado<br />

aos contornos de uma empresa que flutua acima. Para além do<br />

mundo da rua. No esquecimento de tudo o que for a recusa.<br />

22<br />

4<br />

Como reconhecer um poder absoluto? Como atestar a condição<br />

inultrapassável a que ele nos destinaria? Como admitir que se esgotaram<br />

as saídas, que as zonas sem o pontilhado de seu traço se nos<br />

falta de todo? onde será que começaria o seu desmantelo, houvesse<br />

este possível de entre as cartas que embaralhamos? Não bastaria que<br />

as portas se abrissem num escancaro delas? mas será que se tratam<br />

de portas que se abrem e fecham à nossa revelia? Será que a condição<br />

de recuo, inclusa no claustro, demanda esta suspensão do livre<br />

circular? Já vimos d’algum modo que bem pode haver uma porta<br />

fechada, um corpo no interior do que ela encerra e a experiência<br />

do claustro se fazer no que se nos dá em aberto: o tempo que resta.<br />

Sublevar no tempo? Precipitá-lo sem precipitarmo-nos no que se<br />

precipita? onde será estaríamos? Sobrepostos a descrever a condição<br />

do mundo em narrativa? Está-se dentro. incluso. Enleado. talvez<br />

não necessariamente subsumido. A condição de Jorge. A de Joseph<br />

K. Continuar a mover-se ainda que entre os limites da cela pouca. Perambular<br />

as pernas entre as salas subseqüentes do tribunal. moverse.<br />

Sublevar. Arriscar a recusa. ter os pés sujos junto à terra que nos<br />

9 baudrillard é quem diz esta troca: o capital trocando com os trabalhadores: dá-se<br />

lhes o trabalho que é forma de trocar a morte violenta do sacrifício primitivo pela<br />

morte lenta do trabalho contumaz. Questão será: o que dá em troca o trabalhador? A<br />

matéria mesma do que se produz? Não, nada. Fosse o caso, a troca estaria completa.<br />

Aquele dá, este recebe, este repõe, aquele aquiesce. No entanto, o Capital continua<br />

dando a fim de tornar irregular a troca, afim de paralisá-la: dá o salário, e isto dando,<br />

impede a reposição. Aquele que dá ao não parar de dar gera o acúmulo da dívida<br />

naquele que recebe, e do crédito naquele que oferta. Nascimento da dívida infinita.<br />

Ampliação em larga escala do acúmulo primitivo do capital. (Cf. baudrillard, op.cit.,<br />

pp.55-60).<br />

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estou ao arremate. Pouca coisa, bem pouca, mas lá ter os pés. Neles<br />

sentir a sua (nossa) calosidade. As texturas várias em que se assentam<br />

os desníveis junto ao piso. marrar contra o tabuleiro. talvez um filho<br />

se nos chegue em salva. Pouco provável, mas talvez. ocupamos os<br />

espaços do talvez. talvez a sentinela seja dada à corrupção. Cerrar as<br />

grades antes que os olhos. Desde o lóbulo da orelha, retirar o estilete<br />

camuflado, cerrar as grades. Voltar a ver o mundo para além do basculante<br />

a que não alçamos. Lá fora, o barulhar das ondas ou os rumores<br />

das ruas, tudo agora mesmo disposto àquele que se é, àquele a que<br />

atende pelo nome da pessoa que somos, ou ainda mais, quem sabe<br />

estivéssemos em meio à turba, perdidos no seu anônimo, o das massas<br />

em movimento, quem sabe lá começássemos a grande política:<br />

convocar, urdir, incendiar, remover, dispersar, recompor, recomeçar a<br />

ação. Haveria a ação. Haveria a turba. Aprontaria-se um rol de coisas<br />

desde o comum-de-dois-e-doutros – muitos enquanto muitos, cada<br />

qual um bárbaro. talvez o fosse. um claustro? Reverter a condição<br />

do claustro. Lá fora. Lá fora. Lá fora. Repetir em ladainha na certeza<br />

abusiva de que haja um lá fora. Crianças que brincam em jogos de<br />

amarelinha. A inocência dispondo de nós, reconstruindo-nos desde<br />

os vales escarpados nos que pensávamos que nunca mais o pôr-se a<br />

prumo em retirada – uma vida sob os pés. E estamos na reversão do<br />

claustro. Estamos. um poder absoluto? Quem sabe d’outro modo,<br />

àquela outra narrativa. A porta que apenas se fecha for o caso o seu<br />

fechar em anuência ao que ousamos. Arriscarmos a discrição. instituirmos<br />

a fachada. A carta que nos apresenta. traz um continente<br />

às costas, a cartografia das filiações pululando de sobre a pele, os<br />

agenciamentos de um passado recente, a luta que se envergara, os<br />

compromissos assumidos quando de um comum-de-dois-e-doutros.<br />

Agora tudo é o que se esquece. Faz-se que se esquece. Denega-se.<br />

Subtrai-se se for o caso o simular a condição de. Alçar a um cargo na<br />

empresa-mundo. Emoldurar-se num perfil prévio a nós – código da<br />

perfídia. Enregelar-se. A sala larga e limpa. Lá fora, a rua. Há a rua? A<br />

arruaça? A arenga? Polis subsumida. mas qual onde como quando<br />

houve? um claustro! um claustro! Será possível um outro de nossa<br />

condição quando não atentamos sequer que haja um outro – uma<br />

outra condição à mercê das mãos? Lá fora, lá fora – ironia a cantilena<br />

a repetir-se se não congrega, se sequer diz ao que vem, ao que aten-<br />

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de, ao que se presta. Lá fora, lá fora, a rua, a praia, os barulhos, tudo<br />

se ajeitando em ser o ruído a que se elimina, for o caso a reforma da<br />

sala. Começa-se pela acústica. Chegar-se-á à genética. Ao código. À<br />

eugenia. Ao controle. tudo o que atende em ser o nome dos muitos,<br />

aqui e agora, sendo o que é o demoníaco. Denega-se. Diz-se: nunca<br />

vi, não sei do que se trata, não conheço! A ‘cara’ lavada nos jogos do<br />

falso. Quem sabe o que me espera? Que será eu ganho com isto? Não<br />

há ninguém a dizer. Nunca haverá, de fato, ninguém do outro lado da<br />

porta. ou da lei. ou do mérito. ou da tela catódica na qual aprendese<br />

(apreende-se) o mundo. o mundo? No mais, a empresa, o capital,<br />

os seus desníveis flutuantes. Está-se aí. E neste aí não se fica parado. o<br />

contrário a regra: está-se superexcitado, convulso, compulsivo, cocainado.<br />

o imperativo é o mover-se: mover-se desbragadamente. Como<br />

que numa aflição de urtigas. os pés não tocam o chão. o chão está lá<br />

fora. E não há, não houve, não se ouve as pistas de que haja um lá fora.<br />

No entanto, insiste-se, a porta está aberta, basta que se queira dobrála.<br />

basta que se tenha vontade de sair. Não há a vontade. A vontade é<br />

o que não existe.<br />

24<br />

5<br />

Será que mesmo à imanência um absoluto ousaria o perfazer-se?<br />

tornar-se ele o imperativo, a condição de possibilidade da qual<br />

não se deriva, nada o que se lhe desagregasse – um novo transcendental?<br />

o capital, este absoluto? mister pensar o capital. Qual o<br />

seu limite? o que será não se lhe ajusta ao axioma: conectar, produzir,<br />

circular, reproduzir? onde o seu desmantelo, condição inequívoca<br />

do que não se lhe conjuga? Ao quê, apenas se lhe resta o<br />

conjurar? Desde a sua condenação, o desterro, a quem, a quê? o<br />

quê, o aterrador? o quê que se lhe fosse um incongruente no desarme<br />

da cadeia de possíveis? uma intempestividade abrupta,<br />

abusiva, o acidente que lhe precipitasse ao fim irrevogável? o quê<br />

o aquilo que se lhe mostrando irredutível o fizesse recuar, os pés<br />

nos freios, o freio-motor, o estancar, e não-mais? Desde então, o<br />

não-mais. o quê? ou o quanto este não-mais que acabasse por ser<br />

uma outra via, um atalho abeirado à rodovia, e tão logo seriam as<br />

casas, e tão logo o povoado, as gentes na ordenança das coisas, o<br />

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pequenino mercado das trocas – fazer girar, circular, evitar o acúmulo:<br />

o toma-lá-dá-cá da troca bem-sucedida de que nos fala marcel<br />

mauss na dádiva a conjurar o excesso, fazer a festa do desperdício,<br />

a produção improdutiva, um potlach, a despesa, novíssima<br />

teoria da colonização 10 , a América-refugo do lúmpen-proletariado<br />

inglês, e logo e logo, século e meio de história, o processo contumaz<br />

do novo acúmulo, as condições renovadas da fartança nas<br />

quais se verá subsumidas cotas imensas de trabalho vivo, e então,<br />

a América-império. onde a China de borges no diagrama do impossível,<br />

o assombro da incongruência? A enciclopédia dos animais<br />

incompatíveis: os alados; os do imperador; os avessos ao toque;<br />

os que vistos de perto parecem pantufas; os imaginários<br />

– boitatá, mula-sem-cabeça, saci pererê, mão branca; o caçador de<br />

cangaceiros, Antônio das mortes? 11 tudo aqui, lá, enumerado no<br />

rigor da classificação alfabética a dispô-los em um só quadrante?<br />

Qual o quadrante? Como o quadrante? Ainda, o quadrante? Qual<br />

o que se mostrasse razoável a aquietar as espécies zombeteiras? o<br />

capital, este mapa móvel? tudo se lhe escoando de entre os dedos,<br />

tudo o escorregadio a que não se agarra, e como a permanência da<br />

regra, ela mesma a regra, na observância do que dela se exila? Não<br />

ficaria a regra segredada a si própria – a regra em degredo, a regra<br />

segregada, a regra desregrada, ela própria, toda ela a errança que a<br />

nada ninguém governa, que a nada ninguém ela agarra e liga – os<br />

10 Cf. mauss, m., “Ensaio sobre a dádiva – forma e razão da troca nas sociedades primitivas”.<br />

Da obrigação do dar, da obrigação de receber a fim de evitar o acúmulo, e,<br />

conseqüentemente, o poder daquele que acumula. Forma de conjurar a dívida, de<br />

facilitação de resgate. Se há dívida, há o resgate. Para além do acúmulo primitivo, a<br />

dívida tornar-se-á irresgatável. Cf. também, marx, K.; “A nova teoria da colonização”.<br />

in: o Capital – Crítica da economia política, vol.i, cap.xxV (pp.883-893). marx acena<br />

com a deriva em face da condição de espoliação do trabalhador inglês quando de<br />

sua migração aos Estados unidos da América. Lá, ele se torna produtor, o que é dizer,<br />

reinscreve-se na condição viva do trabalhar do trabalho.<br />

11 Cf. Foucault, m. (1966). Sobre a alusão à China de borges, e à Enciclopédia Chinesa,<br />

ver a introdução. A questão aludida é: como dispor sobre o mesmo solo de pensamento,<br />

sobre a mesma tábua de valoração a incongruência? Não lhe encerraria a esta tábua<br />

que, supostamente, agregasse a todos? A questão aqui é: o capital, este ‘lugar’ que a<br />

tudo limita ‘nos’ seus interiores. o que se lhe foge? o que se lhe é irredutível? o que<br />

se lhe precipita ao fim?<br />

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operários à solta, tomar a si o ‘que fazer’ das horas, prensá-las no<br />

sentido que faltara, estabelecer as cotas da transferência social,<br />

promover cesuras: o capital em Colono num pesadelo de édipo o<br />

destituído, os trabalhadores em Pasárgada, na cama do rei nu a fazer<br />

rolar cabeça cabaça cabaço, será (seria) a epopéia dum novo<br />

tempo, ou menos bem menos aqui outra vez, estaríamos todos, um<br />

todo e qualquer, a rever as cenas da história no recontar em paródia<br />

a condição outra do desterro, aqui, sendo ela própria o cenário<br />

propício à fênix capitália, ela, a evanescida, a fazer que cai, e sacoleja,<br />

a fazer que é crise a artimanha o artifício, a fingir que é dor a<br />

dor que deveras simula, condição paroxística do desplante. Jean-<br />

François Lyotard a dizer: “Retrato de um capital quase esquizofrênico.<br />

Por vezes chamado perverso, mas é então uma perversão<br />

normal, a perversão de uma libido maquinando os seus fluxos sobre<br />

um corpo sem órgãos em que se pode agarrar a tudo e a nada,<br />

tal como os fluxos de energia material e econômica podem, sob<br />

forma de produção, isto é, de conversão, investir-se sobre qualquer<br />

das regiões da superfície do corpo social, do socius plano e<br />

indiferente. investimentos viajantes, que fazem desaparecer nos<br />

seus périplos todos os territórios limitados.” 12 Agarrar a tudo e a<br />

nada. Agarrar. Largar. Deixar fazer. Laissez-faire. Princípio da nãointervenção.<br />

isto se for o caso. Ainda assim, o caso (este, aquele,<br />

aquel’outro) não lhe esgotaria as formas do fazer. Agarrar. Largar.<br />

Vez ou outra, a cela larga e limpa donde se vislumbra o cais. Jorge<br />

a marrar contra tabuleiros. Vez ou outra, a sala limpa e larga d’onde<br />

se esquece a rua. Afinal, homens de negócios em que o tabuleiro<br />

é a casa dos que não têm. o capital a atender por nomes diversos,<br />

ele mesmo legião. Capital agregador; capital de exportação; capital<br />

concentracionário; capital de produção; capital de sobreprodução;<br />

capital signo; capital doador de trabalho: trabalhadores de todo o<br />

mundo, vinde a mim, e quem sabe o tudo que lhes darei, se prostrados,<br />

me adorares. o capital a converter. Subsunção do trabalho<br />

ao capital: organizar a esfera da produção de mercadorias, organizar<br />

a esfera da reprodução da força de trabalho, ainda além um<br />

tanto, subsumir a integralidade do tempo sob a lei da troca desi-<br />

12 Lyotard, J.-F., 1976, p.100.<br />

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gual que é a sua própria lei. tornar lei a expansão do que for a lei.<br />

Autolegislar(-se). Espraiar em todas as direções o seu jogo (jugo)<br />

de espelhos. Estamos todos reféns, somos todos Alice. Está-se dentro.<br />

Refletido, consumido, consubstanciado. é-se o duplo no que<br />

ele constrange: a morte diferida, a morte lenta. Forma de dizer o<br />

trabalho. o riso, o escárnio, vontade de participar, de estar dentro<br />

da sala. Lá embaixo, a rua. mas há a rua? Resta a rua? Vinga a rua?<br />

A porta aberta, escancarada. Quase que se convida ao ir-se: ‘Segue,<br />

vai’. Passagem grátis, pão com mortadela, a obra acabou, a<br />

farra acabou, queres ir para minas, queres ir para Sampa, Sampa,<br />

minas não há mais. Emancipação social: ‘segue, vai!’ Não te iludas,<br />

somos todos reféns na caça de um sorriso de gato, a violência urbana<br />

na equivalência do que for díspar, improvável, impossível. o<br />

capital a exilar - a regra é vária: a) quem não for geômetra; b) quem<br />

tiver a palma da mão amarela; c) quem for ser ‘gauche’ na vida; d)<br />

quem não acreditar no seqüestro do Abílio Diniz; e) quem não<br />

souber inglês, francês, javanês; f ) quem não for amigo da vizinha<br />

do andar de cima, que diz-se, ela dá e desce; g) quem não gostar do<br />

branco azul amarelo; h) quem não souber dizer em quinze segundos<br />

quem foi Plínio Salgado; i) quem não tiver as barbas de molho;<br />

j) quem achar a nudez do rei fastidiosa; l) quem não souber combinar<br />

o tom da bolsa com o estofado do sofá; m) todas as alternativas<br />

ao inverso; n) nenhuma das anteriores. A falsa questão é buscar o<br />

razoável da regra, aquilo que em se dando fosse a regra mesma, e<br />

que, a despeito do movimento das coisas, lá permanecesse em ser<br />

a regra a que se contraria, regra localizada, regra sitiada, regra ensimesmada<br />

(alguém algum a dizer: tem um édipo ali!), regra depositada<br />

em invólucro, a tese com relação à qual se lhe dessem inumeráveis<br />

antíteses no avanço, na marcha de brancaleone, e em<br />

cada uma destas, a recusa, e por cada uma delas o enunciar do<br />

novo novíssimo, a desprega, qual? qual? – trocar a regra pela desregra,<br />

fazer da regra a ex-regra, trocar as premissas, afirmar de peito<br />

nu a suposta opção revolucionária, dentre as opções acima: ‘letra<br />

n: nenhuma das respostas anteriores’, olhar ao lado em busca, à<br />

caça das gentes, quede o megafone, quede a sirena agora eu (o<br />

policial, agora, come lá em casa, eu a lhe preparar quitutes), agora<br />

eu quem a disparo, ‘companheiros, companheiros, é preciso lutar,<br />

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se compor à porta da fábrica, é preciso parar, é preciso não esmorecer,<br />

é preciso mostrar a eles a nossa força, é preciso cruzar os<br />

braços, é preciso se organizar, companheiros, companheiros’. mostrar<br />

a eles, organizar, de forma ordenada, um de cada vez, por turnos,<br />

a produção. Está-se (estava) a falar da produção? Livre circular:<br />

condição do trabalho livre, condição do capital desterritorializado.<br />

Esta uma equivalência, um claustro – não se lhe poder a recusa. A<br />

porta aberta, escancarada, o convite ao ir-se: ‘vai, segue’. Fluxo de<br />

riqueza não qualificada no encontro de um fluxo de trabalho não<br />

qualificado, esta uma conjugação. Aqui, Eric Alliez, os Estilhaços<br />

do capital: ‘A relação salarial que estabelece, ao acaso, os fluxos de<br />

capital e de trabalho não qualificado não distingue o empresário e<br />

o trabalhador não qualificado como as encarnações individuais de<br />

cada um desses dois fluxos, sem reuni-los, ao mesmo tempo, na<br />

categoria de sujeito livre e na noção de produção, na atividade produtiva<br />

em geral como essência subjetiva e abstrata da riqueza –<br />

mesmo que esta diga respeito objetivamente à propriedade privada<br />

da classe capitalista. Portanto, existe um igualitarismo formal e<br />

um humanismo essencial do capitalismo, que não nega nem a diferença<br />

substancial entre aquilo que o capitalista possui e o que o<br />

trabalhador possui, nem a desigualdade da troca entre uma porção<br />

de vida e uma soma de dinheiro, nem, por conseguinte, o conteúdo<br />

de suas respectivas liberdades: por um lado, a liberdade de empreender,<br />

por outro lado, a liberdade de submeter seu tempo e<br />

seus gestos 13 . Duas metades, a liberdade: liberdade de empreender<br />

no multiplicar-se, um lado; outro lado, liberdade de submeterse,<br />

o tempo, os gestos. ‘Companheiros, companheiros...’, o grito vai<br />

ganhando a si a condição descolorada da afonia – tão logo, tornarse-á<br />

presidente de República o dono de um grito assim afônico,<br />

minguado, ramerrão, copioso, carpideiro, cantochão, grito paródico<br />

na exigência de trabalho, um pouco de trabalho senão eu sufoco,<br />

as mãos estendidas de pedinte, tão logo será o capital a rir de<br />

tudo, riso de gazela estridente no espatifo de cristais, economia<br />

política como modelo de simulação, aqui, agora, o que se reproduz<br />

é o próprio trabalho, trabalho como forma e não como força,<br />

13 Alliez, E. & Feher, m., 1988, p.193.<br />

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trabalho como benfeitoria, central única de estágios, queiram se<br />

cadastrar, as filas dão voltas em quarteirões, trabalho voluntário: a<br />

cura à sensação do estar-se inútil, à sensação de que se é inútil –<br />

sarcasmo ao paroxismo, arranjar um trabalho, trabalho como bem<br />

de redistribuição social, baudrillard a rir de tudo, ironia mordaz 14 ,<br />

‘companheiros, companheiros, vamos cruzar os braços, mostrar a<br />

eles’ – a eles o espetáculo, para eles a performance, a quem isto?<br />

Quem o ‘eles’? Atacar a regra, fazer que se vira à curva duma boa<br />

esperança renovada. Virar à curva? Quem sabe será o vazio à espreita?!<br />

Quem o saberia dizer, andou-se dizendo, andou-se sugerindo<br />

do dehors, do fora - não há o fora. Não mais o fora. o capital<br />

circunscrevendo os espaços móveis do ecúmeno. A regra, a ex-regra,<br />

a des-regra, tudo o que se comuta. o capital a fazer bonito no<br />

gingado de pernas: começaria tudo outra vez se preciso fosse - esta<br />

longa avenida de gás neon 15 . Aqui é Lyotard, uma vez mais: ‘Qualquer<br />

objeto pode entrar no Kapital desde que se possa trocar; o<br />

que se pode trocar, metamorfosear-se de dinheiro em máquina, de<br />

mercadoria em mercadoria, de força de trabalho em trabalho, de<br />

trabalho em salário, tudo isto a partir do momento em que é permutável<br />

(segundo a lei do valor) é objeto para o Kapital: e assim<br />

não há mais do que uma enorme desordem em que os objetos<br />

aparecem e desaparecem sem cessar, dorsos de golfinhos à superfície<br />

do mar, em que a sua objetividade cede à sua obsolescência,<br />

em que o importante tende a já não ser o objeto, concreção herdada<br />

dos códigos, mas o movimento metamórfico, a fluidez. Não o<br />

golfinho, mas o rasto que se inscreve à superfície, a marca energética”<br />

16 . o claustro, o aberto. Já não há portas. Ninguém a precisar<br />

delas. Está-se subsumido, consubstanciado. A praia à frente, a rua<br />

embaixo, e o que importam praia, rua, a inocência, a baía, o brincar<br />

das crianças, se o que se vê é o beco? E nele, nada ninguém<br />

encerrado. Nada ninguém está retido. Sequer há traços de engol-<br />

14 Vejamos este curto parágrafo de baudrillard: “o trabalho tornou-se, como a Seguridade<br />

Social, como os bens de consumo, um bem de redistribuição social. Enorme<br />

paradoxo: o trabalho é cada vez menos uma força produtiva e cada vez mais um produto”.<br />

(1976, p.39).<br />

15 Referência às músicas de Luís Gonzaga Júnior (música incidental).<br />

16 Lyotard, J-F., op.cit., pp.95-96.<br />

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famento no sinuoso dos rostos. Estão a aprontar relatórios, a contar<br />

o que produziram, a duplicar a produção na contagem mesma<br />

dela, e a tal ponto isto, que quem sabe, sequer importe a produção,<br />

mas apenas a contagem – subsunção da produção na reprodução,<br />

do fazer do que se fez à narrativa envelopada. uma narrativa,<br />

ao menos. uma tragédia, ao menos. Forma de dizer que não se<br />

está calado. mas se está estamos.<br />

30<br />

6<br />

Combater na imanência. Sequer o vislumbre do que viria desde<br />

o fora do capital. trata-se antes, ele mesmo, o capital, do aquilo a<br />

que se encaminha a um de fora. o desmanche não lhe sendo avesso<br />

não lhe revelaria o anverso. Sublevar no tempo? Fazer que se<br />

pára quando da circulação ininterrupta das coisas, dos modos, das<br />

mercadorias, das formas na que se é (na que se está) – quem o saberia<br />

o que é que se deflagra? também o vimos: são os sortilégios<br />

do aberto no que o tempo não se comprime entre dois pontos em<br />

cesura – origem e fim. A origem sendo toda a hora na que se principia<br />

os jogos da significação, a produção dos efeitos de verdade.<br />

o fim estando suspenso. Consigo, o telos que o situasse no longe.<br />

Finalidades múltiplas sem fim. irromper a dicotomia capital, trabalho?<br />

Arrancar a este aos ditames da produção que o debilitara no<br />

jogo da exploração capitalista, que o inscrevera (absorto) em cotas<br />

de trabalho morto, reavivá-lo no processo da gestão do sentido,<br />

ainda isto? Abandonar o capital, subscrevê-lo ao solipsismo, deixálo<br />

entregue ao sepulcro, será isto? também aqui o efeito contrário<br />

o que se dera. o capital fora aquele a tomar a dianteira, a emancipar-se.<br />

Vimos isto. Questão então é: submeter-se aos jogos do<br />

dentro? Esfumar-se na mágica dos enunciados a sugerir agora, desde<br />

agora, que a processualidade, a movença no seu abstrato seria<br />

a salva-guarda em face do intolerável? Pouco, ainda pouco. Sequer<br />

se trata de recusar a recusa pela improbabilidade desta, por vezes<br />

antes, outro modo, o do aquietar-se àquele intolerável. Quem<br />

sabe se numa sua aquiescência, o corpo exaurido, a impressão de<br />

que se dorme o sono dos justos no barbarismo do presente. Nada<br />

mais uma barricada. Faríamos (fizemos) o de que pudemos! – esta,<br />

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a lápide da lisonja a si, a autocamaradagem da camarilha, parvoíce<br />

fin-de-siècle, um milênio novo novíssimo a novidade às costas a<br />

carregar na corcunda de asno, expressão da vontade dos que não<br />

a tem nos graus elevados o seu modo, e então o que resta senão o<br />

participar? o yá-yá do asno de zaratustra sobrelevado à condição<br />

de pensamento único, o pensamento fraco fraquíssimo minguado.<br />

Que importa isto: é prosa que dá prêmio, a práxis que consagra.<br />

E então, jogar. Vai-se ao jogo. ‘Vai, segue!’ Dispor as peças sobre<br />

o tabuleiro. Aprontar o relógio na marcação das jogadas. Avançar<br />

os peões. Participar à exaustão, mãos hábeis de prestidigitador no<br />

embaralhar das cartas, distribuir as prendas, ordenar as apostas.<br />

Formas diversas a do participar. Está-se dentro. No jogo, no jugo.<br />

A face limpa/alva/asséptica – a face distinta. Envergam-se títulos,<br />

alguma pompa, gestos de novo rico. talvez se esteja o tempo todo<br />

num regozijo, no júbilo da hora na que convém a crítica. Lava-se<br />

a alma, branqueiam-se os ossos, está-se refeito, volta-se ao jogo.<br />

Faz parecer que se é sério, que se é firme, que se é nobre. Quem<br />

o saberia dizer o mérito, quem o recusaria aqueles, os cavaleiros<br />

d’outrora a destemperança, e que aqui e agora isto pouco, a crítica<br />

participativa, o sentar-se à mesa das negociações no apreço do que<br />

se tem a angariar num jogo de partes (pergunta contumaz: o que<br />

eu ganho com isto?), as prestações de conta do que se tem feito às<br />

agências do fomento, capital outro modo o nome, o pensamento<br />

crítico num aprumo de jeito e formatação, ele todo ele numa escrituração<br />

de si em prosa de pouca monta, o texto linear mesquinho<br />

objetivo programático, o rumor das ruas restrito ao que se averigua<br />

nos relatórios de pesquisa – pesquisa paga se for o caso o estar inscrito<br />

nas redes de contato (é a casta a abrir as portas ao pensar de<br />

um pensamento castrado), afinal se estaria a criticar aquilo de que<br />

se promove no dia-a-dia, mas vimos, já vimos, for o caso a comuta,<br />

o capital troca com isto, não temer, ó andarilho contabilista, não<br />

corres risco, o capital troca consigo.<br />

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32<br />

7<br />

Desde as ruas a insurreição. baudrillard a dizer dos graffiti de Nova<br />

iorque de 1972 17 . Nada é que durará o movimento, mas houve o movimento.<br />

baudrillard afirma: ‘uns e outros nasceram depois da repressão<br />

às grandes manifestações urbanas de 1966/1970. ofensiva<br />

selvagem como as manifestações, mas de um outro tipo e que mudou<br />

de conteúdo e de terreno. tipo novo de intervenção na cidade,<br />

não mais como lugar de poder econômico e político, mas como espaço/tempo<br />

do poder terrorista da mídia, dos signos e da cultura dominante’<br />

18 . outra cidade, outra forma de insurreição. outro o diagrama<br />

no que ela, a cidade, se arregimenta. outro o modo, a recusa.<br />

Não mais a cidade de que nos falara Foucault, o projeto político de<br />

sua máxima funcionalidade em saturação. Cidade dos dentros: de<br />

um a outro é que se caminha caminhava. Da família à escola, da escola<br />

à caserna, da caserna à fábrica, e, eventualmente, ao hospital, ou<br />

à prisão. Sempre é que se está dentro. De um dentro a outro, e em<br />

cada um destes dentros sempre num mais adentro, o ir-se de que se<br />

dispõe. Pois se se está à família, nela não se está à solta, está-se arranjado<br />

nas distribuições de papéis e funções: está-se pai, está-se filho,<br />

está-se à mesa, está-se ao quarto. Pois se se está à fábrica, nela não se<br />

anda aos esbarrões, está-se amoldado às linhas de produção d’algo,<br />

está-se à mira daquele que se lhe volta o olhar que fiscaliza, está-se<br />

em fila for o caso o encaminhar-se ao refeitório, está-se dentro do<br />

avental que autoriza que se se dê ao trabalhar das horas que se te<br />

escaparão no que for de ser o que se realiza, está-se no lugar próprio<br />

que se ocupa for de ser a chamada a convocar o teu nome, está-se<br />

dentro do nome que se te afixa às fichas e aos prontuários desde os<br />

quais a tua história infame se constrói, segundo a segundo, hora a<br />

hora, vis-à-vis, sobretudo do quando de um esbarrão às lâminas afia-<br />

17 Diz baudrillard: “os jovens entram à noite nas garagens de ônibus e de metrô,<br />

vão ao interior dos veículos e se soltam graficamente. No dia seguinte, todas as linhas<br />

cruzam manhattan nos dois sentidos. Apagam-se os desenhos (o que é difícil),<br />

detêm-se grafiteiros, prendem-se grafiteiros, proíbe-se a venda de sprays e outros<br />

artefatos – isso em nada os afeta: eles os fabricam artesanalmente e recomeçam todas<br />

as noites.” (1976, p.99)<br />

18 baudrillard, op.cit, p.100.<br />

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das do poder 19 . De um dentro a outro, e mesmo que se se creia à<br />

evasão quando de uma vertigem na que papéis e funções se nos escapam,<br />

se emaranham, se desordenam, e eis que se queira tomar<br />

sob rédeas curtas o fazer das horas nas que suamos, e então o ordenar<br />

aos outros aqueles que não ouviram o levante da Coluna a que<br />

se cheguem até bem junto aonde terminam os muros da fábrica, a muralha<br />

da cidade, ordenar como quem convoca em fúria à marcha dos<br />

que não podem a marcha: “Companheiros, companheiros”, sempre<br />

e sempre é que se estará dentro, e tão logo será a sirena a entoar o<br />

seu silvo, e tão logo será o corpus clínico que virá tomar-te aos braços<br />

de um Simão bacamarte no delírio de machado de Assis, o seu<br />

alienista. Na cidade de Foucault, em que se está dentro, tudo o que<br />

for resistência resiste desde aí, e firma-se na recusa do que se forja<br />

como o pensar do pensamento do dentro. Aqui, agora, na cidade de<br />

baudrillard, ‘já não estamos na cidade das paredes e muros vermelhos<br />

das fábricas e das periferias operárias. Nessa cidade, já se inscrevia,<br />

no próprio espaço, a dimensão histórica da luta de classes, a negatividade<br />

da força de trabalho, uma especificidade social irredutível.<br />

Hoje, a fábrica, como modelo de socialização pelo capital, não desapareceu,<br />

mas cede lugar, na estratégia geral, à cidade inteira como<br />

espaço do código. A matriz do urbano já não é a da realização de uma<br />

força (a força de trabalho), mas a da realização de uma diferença (a<br />

operação do signo). A metalurgia transformou-se em semiurgia’ 20 .<br />

baudrillard está a falar que os dentros se esgarçaram, que os invólucros<br />

desde os quais/nos quais se emolduravam os jogos de disciplina<br />

se romperam quais cristais finos no elevar das vozes de soprano, a<br />

resistência quem o saberia dizer, talvez menos, talvez que fosse no<br />

19 michel Foucault a falar da existência do infame desde os efeitos do poder, os esbarrões<br />

às suas pragmáticas: ‘Para que alguma coisa delas (as vidas dos infames) chegue<br />

até nós, foi preciso, no entanto, que um feixe de luz, ao menos por um instante,<br />

viesse iluminá-las. Luz que vem de outro lugar. o que as arranca da noite em que elas<br />

teriam podido, e talvez sempre devido, permanecer é o encontro com o poder: sem<br />

esse choque, nenhuma palavra, sem dúvida, estaria mais ali para lembrar seu fugidio<br />

trajeto. o poder que espreitava essas vidas, que as perseguiu, que prestou atenção,<br />

ainda que por um instante, em suas queixas e em seu pequeno tumulto, e que as<br />

marcou com suas garras, foi ele que suscitou as poucas palavras que disso nos restam.’<br />

(1977, p.207).<br />

20 baudrillard, 1976, p.100.<br />

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cansaço da opereta, a promoção do patronato, o formato do espetáculo,<br />

e então, o trocar das peças, o arranjar d’outro arranjo, o capital<br />

mesmo a dizer que um certo Estado cansa, que um certo Estado custa<br />

caro a si, que a cidade dos dentros intercambiáveis bem que melhor se<br />

forja na coextensão dos seus espaços como numa suposta homogeneidade<br />

deles, e veja que não apenas quanto a uma sua função, dizemos<br />

da família escola caserna fábrica hospital prisão, não apenas no<br />

emaranhado das funções que quem sabe persistisse aqui e ali irredutíveis<br />

cada qual à outra; outra a questão a que baudrillard está apontando,<br />

esta coextensão na que a cidade se estira a todos os lados, na<br />

que a cidade é toda hora e todo tempo a esteira na que deslizam os<br />

pés de passantes, pés quantos pés quiserem puderem a corredeira<br />

dos transeuntes, irão ao comércio talvez, irão às compras, irão aos fast<br />

foods, irão às festas que ‘bombam’ por aí, irão ao museu no consumo<br />

das artes, irão às academias, irão ao sexo que se lhes dá num convulso<br />

de braços pernas quadril tórax tonificados, irão às salas de projeção<br />

aquinhoar os seus dotes - os filmes aos borbotões no festival de uns<br />

quatrocentos deles e nada que se é, nada o que se será se não se conseguir<br />

assistir a uns 30 ou 40 ou 50 (superar-se em números, ‘recordarse’<br />

aqui a sinonímia do bater o seu próprio recorde), irão ao limpo/asséptico/alvo<br />

dos espaços da empresa-mundo, tornar-se apto, up to<br />

date, a cápsula de ecstasy no bolso, a garrafinha de água mineral, o<br />

olhar vidrado, a boca trincada, os lábios revirados secos sequíssimos,<br />

livre circular dos autômatos, a cidade de baudrillard na qual ‘tudo é<br />

concebido, projetado e realizado na base de uma definição analítica:<br />

moradia, transporte, trabalho, lazer, jogo e cultura – termos comutáveis<br />

no tabuleiro da cidade, num espaço homogêneo definido como ambiente<br />

total’ 21 , nunca é que se está no entre um e outro, entre a casa e<br />

a escola, o caminho; entre a família e o quartel, uns quarteirões; en-<br />

21 idem, idem. Diz baudrillard: “A cidade já não é o polígono político-industrial que<br />

foi na altura do século xix.; é o polígono dos signos, da mídia, do código. Sua verdade<br />

deixou de repente de estar num lugar geográfico, ao contrário da fábrica ou mesmo do<br />

gueto tradicional. Sua verdade, o encarceramento na forma/signo, está em toda parte.<br />

é o gueto da televisão, da publicidade, o gueto dos consumidores/consumidos, dos<br />

leitores lidos de antemão, dos decodificadores codificados de todas as mensagens, usuários/usados<br />

do metrô, dos animadores/animados das horas de lazer etc. cada espaço/<br />

tempo da vida urbana é um gueto, e todos estão conectados entre si.” (p.101)<br />

34<br />

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tre a caserna e a fábrica, o descansar da marcha, aqui, lá, na cidade de<br />

baudrillard nada nenhum o de que se contrapõe os tempos os modos,<br />

tudo o que se comuta, tudo o que se dá na coextensão das formas,<br />

e mesmo que se esteja no sexo se estará na ginástica, e mesmo<br />

que se esteja no museu se estará na praça das trocas, e mesmo que<br />

se esteja entre os livros se estará no trabalho do aperfeiçoar-se, e<br />

mesmo que se esteja frente à tv se estará no trânsito dos signos, na/<br />

sob maquinação deles, no consumo de estéticas do existir quando à<br />

performance – que é todo tempo toda prova todo espaço, aqui e agora<br />

é dizer do presente total, cápsula de compressão saturada, gueto<br />

móvel movente no que o circular é imperativo e o estar parado<br />

digno de susto e insulto. E então, os grafiteiros da Nova iorque de<br />

1972, a resistência outra. tomar as paredes de assalto. Lá, nelas, deixar<br />

uma inscrição. Sequer o nome que alguém algum identificasse se<br />

se for um incauto, se se for um agente da polícia, se se for um escrivão<br />

na função do registro, nomes que dizem apenas àqueles que se<br />

tocam ‘na exclusividade radical do clã, da turma, da gangue, da faixa<br />

etária, do grupo ou da etnia – vocativo totêmico, devolução do nome’<br />

como numa troca simbólica a se ofertar como uma dádiva 22 . Aqui, lá,<br />

tudo o que se toma for o caso o pensar nos jogos e nas pragmáticas<br />

da oficialidade constituída, constituinte, não mais a permuta (que<br />

não é sinonímia à troca simbólica), não mais a comuta que seria a<br />

inscrição no código (seus jogos) desde o qual opera a cidade e o<br />

pensamento da cidade do capital. Exclusividade radical do clã, da<br />

turma, da gangue: de si a si, desde o si ao si que atende em ser recusa<br />

ao que se lhes subsumisse num determinante geral – quem sabe<br />

fosse o Estado, quem sabe fosse o capital, quem sabe o seu código;<br />

desde o si ao si, a recusa a fazer o capital precipitar-se na lacuna que<br />

se inaugura ‘naquilo’ que não se lhe volta, ‘naquilo’ que não se lhe<br />

destina - senão e apenas como catástrofe 23 . Dos grafiteiros de Nova<br />

iorque, a escrituração de que eles promovem, nenhum o conteúdo –<br />

22 Cf. baudrillard, op.cit., p.102.<br />

23 Pierre Clastres a dizer a recusa dos primitivos face a qualquer modulação geral que<br />

se lhes arrancasse da sua existência singular. Clastres identificará no Estado esta forma<br />

concêntrica, agregadora na justa medida em que subsume e aniquila aos outros. No<br />

caso do Estado moderno, dirá Clastres, Estado etnocida – a sua peculiaridade.<br />

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uma significação profunda a se fazer vasculhada nos escrutínios do<br />

poder: quem foi o que quer o que significa? Nenhuma vontade de<br />

dizer a um outro o aquilo mesmo que nunca fora dito, o aquilo em<br />

reserva a que se traz no dizer, desde o dizer, quem sabe, a condição<br />

do emancipar-se. Nada o que se representa. Nada o que se apresenta<br />

sob. Nenhuma mensagem subliminar que falasse aos cristãos, ou<br />

aos de esquerda, ou àqueles que têm a palma da mão amarela, ou<br />

àquele’outros que estando em aparelhos secretos, sob os disfarces<br />

de alcunhas comuns, esperassem o signo sinal da convocatória ao<br />

avante! Nada disto. Sob o tempo espaço da cidade de comutação<br />

hiper-rápida, cidade do capital sem anverso, os grafiteiros estão a<br />

ofertar o vazio daqu(eles) que não trocam àqueles que não trocam<br />

também, o capital estando aí, no forjar de que se troca quando o que<br />

se faz é permutar sob o signo da indiferença, o comutar indiferentemente<br />

que já seria o condenar de todo e qualquer outro à obsolescência,<br />

‘segue, vai’, o capital a emitir os seus sinais, ‘segue, vai’ sempre<br />

afora o fora como aquilo a que se conquista num esticar de<br />

braços de tarântula, este deus renovado na forma do capital, deusaranha-de-tentáculos-vascularizados,<br />

um novo jogo de fronteiras<br />

fronteiriças ao deserto que se anexa, à floresta que se desmata numa<br />

ação de grileiros, o conjurar do outro enquanto outro o que for de<br />

ser aquele a que se recusa, e então, os grafiteiros: spray à mão, um<br />

nada a dizer no que se diz, um nome que nada significa por trás do<br />

significante solto Snake i Snake ii Snake iii twiggy superkool kool killer,<br />

a invenção de uma nova língua outra língua perto bem perto das<br />

glossolalias de Antonin Artaud na recusa da linguagem oficial hegemônica<br />

imperativa opressora 24 , aqui, os grafiteiros, deles dirá baudrillard,<br />

uma insurreição pelos signos.<br />

outra forma o mesmo dizer de baudrillard aos jogos entre capital,<br />

trabalho? baudrillard está a dizer a recusa, outra vez: recusa a tudo o<br />

que se lhe oferta desde o capital, qual seja, senão o trabalho mesmo<br />

24 Artaud: “Esta forma de cristalização surda e multiforme do pensamento, que escolhe<br />

num momento dado sua forma. Há uma cristalização imediata e direta do eu no centro<br />

de todas as formas possíveis, de todos os modos do pensamento”, e então, a resistência<br />

artaudiana: “um grande fervor pensante e superpovoado levava a meu eu como um<br />

abismo pleno. um vento carnal e ressoante soprava...” (1975, p.14 e p.11).<br />

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que é morte lenta 25 ? baudrillard a dizer: “Entendemo-lo geralmente<br />

no sentido de extenuação física. mas é preciso entendê-lo de outra<br />

maneira: o trabalho não se opõe, como uma espécie de morte, à ‘realização<br />

da vida’ – esta é a visão idealista; o trabalho se opõe como<br />

uma morte lenta à morte violenta. Esta é a realidade simbólica. o<br />

trabalho se opõe como morte diferida à morte imediata do sacrifício.<br />

Contra toda visão piedosa e ‘revolucionária’ do tipo ‘o trabalho<br />

(ou a cultura) é o inverso da vida’, é preciso sustentar que a única<br />

alternativa ao trabalho não é o tempo livre nem o não-trabalho, é<br />

o sacrifício.” 26 baudrillard dirá a genealogia do trabalhador: do prisioneiro<br />

de guerra como o condenado à morte, ao servus= o que se<br />

conserva na promoção do butim, do bem de prestígio; tornar-se-á<br />

o escravo, irá-se à domesticidade suntuária, e então, ao labor servil.<br />

Nada ainda aqui, o trabalhador. Falta-lhe a dimensão do ‘livre circular’,<br />

a condição sine quae non do trabalhador livre, pudemos ver aqui<br />

– dois fluxos num encontro, a categoria de sujeito livre e a noção de<br />

produção, condição básica à emancipação, a quê? A quê? liberto ao<br />

trabalho. Este, o trabalhador. trabalho como morte diferida. outra<br />

vez, aqui, Jean baudrillard: “Lenta ou violenta, imediata ou diferida, a<br />

escansão da morte é decisiva; é ela que distingue radicalmente dois<br />

tipos de organização: a da economia e a do sacrifício. Vivemos, irreversivelmente<br />

na primeira, que não cessa de se arraigar na ‘diferança<br />

(différance)’ da morte” 27 . E então, será dizer do capital aquele que<br />

ao subsumir o trabalho a si, ao inscrevê-lo na longa duração diferida<br />

de sua movença, inscreve ao trabalhador na vida, ao arrancar-lhe a<br />

dimensão do sacrifício. Como se lhes dissesse, operando para além<br />

do dito, as suas pragmáticas: Estás condenado à vida, não a uma qualquer<br />

senão a esta na que sou-te o tempo inteiro, na que estás ocluso,<br />

consubstanciado, na que podes o todo de teu regozijo, o deitar-se<br />

à rede do mundo sendo eu mesmo – o capital: a rede, o mundo, a<br />

mão no empurro, e o espaço livre no que se embalança o embalar<br />

25 trabalhar do latino tripaliãre, ‘torturar com o tripãliu’, este de tripãlis, derivado<br />

de três + palus, pois este instrumento de tortura era formado por três paus. Cf. José<br />

Pedro machado, Dicionário etimológico da língua portuguesa. Lisboa: Editorial Confluência,<br />

1967 (p.2232).<br />

26 baudrillard, op.cit., p.56.<br />

27 idem, idem.<br />

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da rede. Aqui, agora, o poder, o capital não como o que condena à<br />

morte, mas o que deixa à vida – ‘uma vida que o escravo não tem o<br />

direito de devolver 28 . onde, a troca? onde, o desde si ao si? onde,<br />

um outro senão o jogo, o jugo, o estar proscrito no quando e no<br />

como da subsunção? onde, o de fora (dehors)? Recusar o jogo, o<br />

jugo. tomar a si o que se lhe tomara. inscrever-se de sob no que se<br />

lhe subscrevera. baudrillard a dizer: “Recusa de não ser condenado<br />

à morte, de viver na mortal liberdade condicional do poder, recusa<br />

de dever a vida e de nunca resgatar essa vida, bem como de estar,<br />

na verdade, obrigado a saldar essa dívida de longo prazo na morte<br />

lenta do trabalho, sem que essa morte lenta mude alguma coisa a<br />

partir de então na dimensão abjeta, na fatalidade do poder. A morte<br />

violenta muda tudo, a morte lenta nada muda” 29 . Jorge, o personagem<br />

de Vergílio Ferreira, a tomar a si as rédeas de sua condenação:<br />

condenar-se. Joseph K, personagem de Kafka, a recusar a andança no<br />

entre entre-se dos jogos: precipitar-se quando dispunha (dispôs-se<br />

a ele) do estar-se entre a quitação aparente e a moratória ilimitada.<br />

tomar a si o quanto é que dura deste agora, depô-lo de sua condição<br />

aberta, o claustro, subvertê-lo a ponto da rendição: não mais o agora.<br />

Precipitar-se. (Des)inscrever-se à dívida infinita: as artimanhas do<br />

contrato. (Des)tratar, (des)onerar-se, (des)iludir-se. Nunca é que será<br />

(seria) a terra prometida: fabulação do jogo de quem joga o jogar-se<br />

nele, o jogar com o ele que dá o jogo. Nunca é que será (seria) o<br />

resgate à condição (metafísica, metafórica?) do valor ao uso, o valor<br />

de uso – senão e apenas como fetiche o que seria dizer o seu impossível,<br />

esta impostura. outra vez, baudrillard: “(...) o poder dá sempre<br />

mais, para melhor submeter, e a sociedade ou os indivíduos podem<br />

chegar até a destruição de si mesmos para dar-lhe fim. trata-se da<br />

única arma absoluta, e sua simples ameaça coletiva pode abalar o<br />

poder. Diante dessa mera ‘chantagem’ simbólica (barricadas de 1968,<br />

tomada de reféns), o poder se desune: como ele vive de minha mor-<br />

28 idem, idem.<br />

29 idem, p. 57. baudrillard: “A morte nunca deve ser entendida como experiência real<br />

de um sujeito ou de um corpo, mas como uma forma – eventualmente a de uma relação<br />

social – na qual se perde a determinação do sujeito e do valor. é a obrigação da<br />

reversibilidade que leva à extinção tanto a determinação quanto a indeterminação.”<br />

(op.cit., nota 2, p.11)<br />

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te lenta, oponho a ele minha morte violenta. E é porque vivemos de<br />

morte lenta que sonhamos com a morte violenta. Esse mesmo sonho<br />

é insuportável para o poder 30 .<br />

Cidade de Foucault, cidade de baudrillard. Resistir desde de dentro,<br />

um cenário. Recusa radical de todo e qualquer jogo (jugo), outro<br />

cenário 31 . Cidades distintas, cartografias de processos de dominação<br />

diferidos. outras as formas do resistir, do recusar. Aqui, baudrillard<br />

a sugerir a radical recusa: não trocar com ‘aquele aquilo’ que não<br />

troca (apenas comuta no indiferenciado). A tomada de reféns, os<br />

atos de terrorismo, os graffiti nova-iorquinos. Porém, dizer da tomada<br />

dos reféns, d’algumas formas de terrorismo, da recusa radical<br />

sobrelevada na condição da morte violenta, é já buscar instantes em<br />

que o próprio Foucault se lhe voltará os olhos. o Foucault que se<br />

encaminha ao irã, quando da revolução islâmica de 1979. o que o<br />

arrebatara senão a condição do inaudito a se inscrever como recusa<br />

irredutível? Aqui, é Foucault a se perguntar: ‘No mundo atual, o que<br />

pode suscitar em um indivíduo o desejo, o gosto, a capacidade e a<br />

possibilidade de um sacrifício absoluto, sem que se possa supor-se<br />

nele a menor ambição ou o menor desejo de poder e de ganância?<br />

é o que vi em tunis, a evidência da necessidade do mito, de uma es-<br />

30 idem, p.60.<br />

31 Claro está que o pensamento foucaulteano não poderia ficar circunscrito a este/ou<br />

a qualquer mapeio dos dentros, e de uma micropolítica das resistências. outros eixos<br />

lhe são pertinentes: o epistemológico, o das subjetivações. Ainda assim, d’algum<br />

modo, situaríamos uma questão pertinente ao Foucault dos 70’: o Foucault, cartógrafo<br />

das sociedades de disciplina, e pensador das micropolíticas: a questão do ‘como’<br />

das resistências a partir dos jogos do dentro: ‘como, a sua emergência? Como pensar<br />

uma ‘verdade’ emergindo desde os jogos de produção de verdade que não remeta ao<br />

poder (aos múltiplos poderes e estratégias)? Como a estratégia que se lhe volta, desmantelando-o?<br />

ou não seria este ir e vir de estratégias móveis e resistências móveis a<br />

condição do retroalimentar? outra questão que seria pertinente diz respeito já à letra<br />

de baudrillard acerca dos jogos de liberação desde a micropolítica: “Em toda parte, o<br />

que foi liberado o foi para passar à pura circulação, para entrar em órbita. (...) Pode-se<br />

dizer que o fim inelutável de toda a liberação é fomentar e alimentar as redes” (1990,<br />

p.10). ou, no texto de 1976: “tudo o que produz contradição, relação de forças, energia<br />

em geral não faz senão voltar ao sistema e impeli-lo, de acordo com uma distorção<br />

circular semelhante ao anel de möbius” (1976, p.50). E então, questões recorrentes:<br />

onde, o combate? o que pode o combate? o quanto o que pode o combate?<br />

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piritualidade e do caráter intolerável de certas situações produzidas<br />

pelo capitalismo, pelo colonialismo e pelo neocolonialismo’ 32 . Não<br />

nos espanta que a direita, a esquerda se lhe voltassem repreensões<br />

graves, esconjuros definitivos, as palavras ácidas de seus interiores<br />

de vísceras (no fundo somos todo vísceras). Foucault estaria optando<br />

pelo esquecimento do tabuleiro, as regras, as ex-regras, as des-regras,<br />

tabuleiro em que se se joga é sempre no dentro dos possíveis,<br />

os possíveis na circunscrição do quanto o que se pode, o quanto<br />

que dura isto. Questão a saber é sempre: a quem isto? A quem este<br />

limite delimitado auto-esgarçante? o que é que se ganha com este<br />

limite, com este transcendental? E ‘quem’ o aquele a ganhar? o jogo<br />

jugo das cartas nas mãos habilíssimas duma simulação? 33 . Foucault<br />

está a pensar a sublevação como o aquilo que rompe as amarras do<br />

possível, que desinscreve os limites do presente, do real no que se<br />

gora, no que se experimenta o intolerável. Aqui, Foucault: “As insurreições<br />

pertencem à história. mas, de certa forma, lhe escapam.<br />

o movimento com que um só homem, um grupo, uma minoria ou<br />

32 Foucault, m. (1994), “Entretien avec michel Foucault” (fins de 1978). in: Dits et écrits,<br />

Vol. iV, núm. 281, p.79.<br />

33 baudrillard a falar da esquerda divina, dos partidos políticos como paraísos artificiais<br />

da política: “a esquerda jamais chega ao ‘poder’ a não ser para gerir o trabalho<br />

de luto do social, a lenta desagregação, reabsorção, involução e implosão do social.<br />

Assim, os sindicatos só conquistam a gestão triunfal, incontestada, da esfera do trabalho<br />

quando o processo de trabalho, generalizando-se, perde sua virulência histórica e<br />

soçobra no contexto de sua própria representação” (1978, p.32). E também aqui, neste<br />

parágrafo pontualíssimo: “o social, a idéia de social, o político, a idéia de política,<br />

sempre foram, sem dúvida, sustentados por uma fração minoritária. Em vez de conceber<br />

o social como uma espécie de condição original, de estado de fato que engloba<br />

todo o resto, de dado transcendente a priori, como se concebe o tempo e o espaço<br />

– em vez de tudo isso, cumpre indagar: quem produziu o social, quem governa este<br />

discurso, quem desenvolveu este código, promoveu essa simulação universal? Não<br />

será uma certa intelligentsia cultural, tecnicista, racionalizante, humanista, que encontrou<br />

aí o meio de pensar todo o resto e de o enquadrar num conceito universal (e<br />

talvez o único) que, pouco a pouco, encontrou um referencial grandioso: as massas<br />

silenciosas, donde parece emergir o essencial, irradiar a energia inesgotável do social?<br />

mas ter-se-á refletido, porventura, em que a maior parte do tempo nem essas<br />

famosas massas, nem os indivíduos, não se vivenciam como sociais, isto é, nesse espaço<br />

perspectivo, racional, panóptico, que é onde se reflete o social e seu discurso?”<br />

(pp.45-46).<br />

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todo um povo diz: ‘não obedeço mais’, e joga na cara de um poder<br />

que ele considera injusto o risco de sua vida – esse movimento me<br />

parece irredutível. Porque nenhum poder é capaz de torná-lo absolutamente<br />

impossível: Varsóvia terá sempre seu gueto sublevado e<br />

seus esgotos povoados de insurrectos. E porque um homem que se<br />

rebela é em definitivo sem explicação, é preciso um dilaceramento<br />

que interrompa o fio da história e suas longas cadeias de razão, para<br />

que um homem possa, ‘realmente’, preferir o risco da morte à certeza<br />

de ter de obedecer” 34 . inscrever-se desinscrever-se situar-se no<br />

sem explicação romper as cadeias (as grades, o cárcere) lógicas: não<br />

trocar com aquele aquilo que não troca. Foucault a pensar no irã de<br />

1979, baudrillard a pensar nos acontecimentos do 11 de setembro de<br />

2001 35 – na atribuição da potência destes acontecimentos à sua condição<br />

de irredutível. Aí, a sua força. Eis o máximo de sua força. E mesmo,<br />

e sobretudo, nisto, o capital a precipitar-se. tão logo, serão as unhas<br />

histéricas dos aflitos na tentativa/tentação de cooptar: agarrar e ligar.<br />

Contratática: recusar radicalmente os remendos do depois – a vontade<br />

de tabular, a de re-inserir no tabuleiro, as artimanhas da crítica,<br />

os tentáculos de aracnídeo: começa-se por buscar os instantes em<br />

que, quem sabe, um Foucault, um baudrillard teriam recuado, uma<br />

sua reconversão à lucidez à sobriedade às causas do social. outro<br />

modo, mesmo modo: se lhes destinar o silêncio copioso desde a camarilha<br />

intelectuália, as gentes do pensamento fraco. é de se rir um<br />

riso largo, um riso de dar voltas. outro passo tentacular: a recuperação<br />

(remake) do instante abrupto, do irredutível do acontecimento<br />

pelo que (será) lhe sobreveio: o governo dos mulás, o massacre ao<br />

Afeganistão. Nada que isto fala do acontecer do acontecimento, da<br />

recusa radical que se (nele) inscreveu. baudrillard diria disto a tentativa<br />

de ‘instaurar uma ordem securitária, uma neutralização geral das<br />

populações com base na afirmação de um não-acontecimento defi-<br />

34 Foucault, m. 1979, p.77.<br />

35 baudrillard (2002): “Aquilo que distingue o pensamento radical da análise crítica é<br />

isto: a análise crítica trabalha para negociar o seu objeto em troca do sentido e da interpretação,<br />

enquanto o pensamento radical tenta arrancá-lo dessa transação e tornar<br />

impossível a sua conversão. o interesse não está mais na explicação, mas num duelo,<br />

num desafio respectivo do pensamento e do acontecimento. é o preço para conservar<br />

a literalidade do acontecimento.” (p.21).<br />

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41


nitivo’ 36 . Foucault a desdenhar daqueles que insistirão no veredicto:<br />

inútil se insurgir, sempre será a mesma coisa! A isto, ele contrapõe:<br />

“Não se impõe a lei a quem arrisca sua vida diante de um poder. Há<br />

ou não motivo para se revoltar? Deixemos aberta a questão. insurgese,<br />

é um fato” 37 . tática explosiva, recusa radical: desgarra, desliga.<br />

36 idem, p.71.<br />

37 Foucault, 1979, p.80.<br />

42<br />

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REFERêNCiAS<br />

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4v.<br />

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43


muDANÇAS SoCiEtÁRiAS<br />

E CRiSE Do EmPREGo<br />

miStiFiCAÇõES, LimitES E PoSSibiLiDADES<br />

DA FoRmAÇÃo PRoFiSSioNAL 1<br />

Gaudêncio Frigotto 2<br />

1 Este artigo resulta de trabalho de pesquisa das últimas duas décadas. trata-se aqui<br />

de trazer uma síntese de trabalhos do autor ou em colaboração com outros pesquisadores<br />

sobre o tema em discussão.<br />

2 Doutor em Educação. Professor do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas<br />

e Formação Humana da universidade do Estado do Rio de Janeiro (uerj) e professor<br />

titular associado no Programa de Pós-Graduação em Educação da universidade<br />

Federal Fluminense. membro do Comitê Diretivo de Conselho Latino-Americano de<br />

Ciências <strong>Sociais</strong> (Clacso),com sede em buenos Aires, e do Comitê Acadêmico do instituto<br />

Pensamento e Cultura Latino-Americano (ipecal), com sede no méxico.<br />

44<br />

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o presente artigo trata das mudanças no campo científico e técnico, sua<br />

relação com as mudanças nas relações de produção, com o desemprego<br />

estrutural e o alcance e limites da formação profissional nas políticas de integração<br />

ou de inserção social, especialmente dos jovens. trata-se de uma<br />

problemática que se faz presente em todas as partes do mundo, mas que<br />

tem efeitos mais desagregadores em países de capitalismo dependente. Neste<br />

sentido, o artigo tem como foco a realidade brasileira. Por fim, seguindo<br />

o que a revista <strong>Sinais</strong> sugere em seu nome, buscaremos apontar os desafios<br />

para uma agenda que articule mudanças estruturais, políticas públicas de<br />

emprego e renda e a relação entre educação básica e educação profissional.<br />

A idéia básica da análise é de que a educação e a formação profissional são<br />

constituídas e constituintes da sociedade que temos. Por isso, não podem<br />

ser tomadas como a chave para resolver todos os nossos problemas sociais e<br />

nem o desemprego. Elas assumem um papel fundamental quando vinculadas<br />

às mudanças acima referidas.<br />

this paper deals with the changes in the scientific and technical field of work,<br />

its connection with the changes in the production relationships, with the<br />

structural unemployment and the range and limits of professional formation<br />

in the policies of integration or of social insertion, especially of the youth. it’s<br />

a debate that makes itself present in all parts of the world, but which has more<br />

disaggregating effects in countries of dependent capitalism. in this sense, the<br />

paper focuses on the brazilian reality. At last, following what <strong>Sinais</strong> (magazine)<br />

suggests in its name, we shall seek the appointment of the challenges for<br />

an agenda that articulates structural changes, public politics of employment<br />

and revenue and the connection between basic education and professional<br />

education. the basic idea of such analysis is that professional education and<br />

professional formation are constituted out of and constituting of the society<br />

that we have. therefore, they may not be taken as the key to the solvency of<br />

all of our social problems and of unemployment. they assume a fundamental<br />

role when attached to the above mentioned changes.<br />

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45


46<br />

1. iNtRoDuÇÃo<br />

o cenário que assumem as mudanças societárias neste<br />

início de século xxi é pouco auspicioso para o futuro do<br />

emprego ou, mais amplamente, para o mundo do trabalho.<br />

o desemprego estrutural e a precarização do trabalho<br />

desenham um horizonte de vida provisória em suspenso 3 .<br />

trata-se de uma problemática que se faz presente em todas as partes<br />

do mundo, mas que tem efeitos mais desagregadores em países<br />

caracterizados por Arrighi (1998) de capitalismo periférico ou semiperiférico<br />

e por Fernandes (1972) de capitalismo dependente com<br />

desenvolvimento desigual e combinado 4 . um cenário e contexto<br />

histórico que atinge principalmente os jovens, mas de modo diverso<br />

nos distintos grupos sociais. A revolta dos jovens da França em 2005<br />

e 2006, uma das sociedades de maiores garantias sociais e da mais<br />

ampla tradição institucional republicana, explicita, nos dois pólos da<br />

pirâmide social, a gravidade do problema.<br />

Por um lado, os distúrbios e a revolta da juventude das periferias<br />

francesas, a grande maioria de estrangeiros das mais diversas partes<br />

do mundo lutando por direito mínimo à vida e por trabalho e, por<br />

outro, os jovens que freqüentaram as mais conceituadas universidades,<br />

como a Sorbone, que se rebelaram em face da flexibilização do<br />

3 A expressão vida provisória em suspenso a apropriamos de Victor Frankel (1945,<br />

in bejzman, 1997). Com ela este autor quer mostrar a situação e o sentimento de insegurança<br />

e de imprevisibilidade daqueles que viveram a experiência de presos de<br />

campo de concentração, como é o seu caso , os tuberculosos que eram isolados em<br />

sanatórios e os desempregados. Num outro contexto, Richard Sennett (1999) fala-nos<br />

da “corrosão do caráter” para mostrar como as relações sociais atuais, ao radicalizarem<br />

o desemprego estrutural e a ampliação do trabalho precário, atingem o âmago da<br />

estrutura da personalidade dos indivíduos.<br />

4 As categorias de capitalismo dependente e desenvolvimento desigual e combinado<br />

são centrais para entender a especificidade e particularidade de como se construiu<br />

a sociedade brasileira e a sua atual configuração nas relações sociais e sua relação<br />

com os centros hegemônicos do capitalismo. Como assinala michel Löwy, as análises<br />

do desenvolvimento desigual e combinado introduzem uma diferença crucial com<br />

os teóricos da dependência pois, diferente destes últimos, afirmam o caráter exclusivamente<br />

capitalista das economias latino-americanas, desde a época da colonização<br />

- na medida em que (...) trata-se mais de um amálgama entre relações de produção<br />

desiguais sob a dominação do capital. (Löwy, 1995:8)<br />

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já precarizado primeiro emprego. Quando nos debruçamos sobre a<br />

realidade brasileira, encontramos mais de 20 milhões de jovens entre<br />

15 e 24 anos. A desigualdade entre grupos é de tal ordem que é mais<br />

adequado falar, como vários autores indicam, em juventudes. tratase<br />

de uma unidade do diverso, demarcada pela origem de classe,<br />

fração de classe ou grupo social e pelas particularidades regionais,<br />

culturais, de etnia, religião, etc.<br />

os jovens a que nos referimos nesta análise têm “rosto definido”.<br />

Pertencem à classe ou fração de classe de filhos de trabalhadores<br />

assalariados ou que produzem a vida de forma precária por conta<br />

própria, no campo e na cidade, em regiões diversas e com particularidades<br />

socioculturais e étnicas. Esta é a população das políticas<br />

públicas focais e distributivas.<br />

mesmo na delimitação deste universo podemos encontrar diferentes<br />

particularidades. Assim, uma massa enorme de jovens trabalha<br />

com a família em minifúndios ou como arrendatários ou assalariados<br />

do campo ou em assentamentos da reforma agrária ou acampados.<br />

mas, certamente, o número maior de jovens filhos de trabalhadores<br />

reside em bairros populares ou favelas das médias e grandes cidades<br />

do brasil. Aproximadamente seis milhões de crianças e jovens trabalham<br />

precocemente no brasil.<br />

todos esses grupos de jovens têm suas especificidades, mas, do<br />

ponto de vista psicossocial e cultural, tendem a sofrer um processo<br />

de adultização precoce. A inserção no mercado formal ou “informal”<br />

de trabalho 5 é precária em termos de condições de trabalho,<br />

de direitos e níveis de remuneração. uma situação, portanto, muito<br />

diversa da dos jovens de “classe média” ou do topo da pirâmide<br />

social, que estendem a infância e juventude. Nesses casos, a gran-<br />

5 Como ao longo deste texto se utilizarão os termos mercado, mercado de trabalho,<br />

mercado formal e informal, cabe, de imediato, uma advertência ao leitor. o conceito<br />

ou noção de mercado ou mercado de trabalho é altamente banalizado no jargão<br />

econômico. é freqüente ouvirmos ou lermos na imprensa que o “mercado está nervoso,<br />

tenso ou deprimido”. o mercado é personificado. Esconde-se que o mercado<br />

de trabalho resulta de relações sociais, relações de força e de poder vinculadas a interesses.<br />

A dicotomia mercado formal e informal, por outro lado, não permite captar<br />

uma enorme diversidade de estratégias de sobrevivência dos contingentes excluídos<br />

do trabalho formal. Economia popular, economia de sobrevivência, economia solidária<br />

são novos conceitos que buscam expressar essa complexidade (tiriba, 2000).<br />

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47


de maioria inicia sua inserção no mundo do trabalho após os 25<br />

anos. 6<br />

Há, também, um número significativo de jovens das grandes capitais,<br />

violentados em seu meio e em suas condições de vida, que se<br />

enquadram numa situação que, no mundo da física, se denomina<br />

de ponto de não-reversibilidade. trata-se de grupos de jovens que<br />

foram tão desumanizados e socialmente violentados que se tornaram<br />

presas fáceis do mercado da prostituição infanto-juvenil ou de<br />

gangues que nada têm a perder ou constituem um exército de trabalhadores<br />

do tráfico.<br />

Com efeito, em pesquisa feita pela unesco sobre o mapa da violência,<br />

o brasil ocupa o terceiro lugar na América Latina. A situação<br />

das grandes capitais é dramática. Em 1980, no Rio de Janeiro, os<br />

homicídios de jovens entre 15 e 24 anos representavam 33,2% do<br />

número total de mortes da capital. 7 No ano 2000, passaram a representar<br />

53,2% (Pereira, m. 2004). os dados do Núcleo de Estudos da<br />

Cidadania, Conflito e Violência urbana da universidade Federal do<br />

Rio de Janeiro indicam que as mortes em confronto com a polícia,<br />

no Rio de Janeiro, passaram de 900 casos, em 2002, para 1.195 em<br />

2003. Essa tendência, em relação aos jovens nesta faixa etária, se<br />

reproduz em outras capitais, como São Paulo, belo Horizonte, Salvador<br />

etc. 8<br />

6 Ao definirmos como foco deste texto os jovens trabalhadores de classe popular e<br />

os grupos precarizados de classe média, não ignoramos que os jovens da classe média<br />

alta ou do topo da pirâmide social não tenham problemas. um estudo indicativo a<br />

esse respeito é de Célia Ferreira Novaes sobre “As determinações sociais no problema<br />

da escolha profissional: contradições e angústias nas opções dos jovens das classes<br />

sociais de alta renda” (Novaes, 2003).<br />

7 Dificilmente passa um dia sem que os jornais de grande circulação não noticiem<br />

mortes de jovens em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. trata-se de mortes causadas<br />

por confrontos ou não com a polícia ou entre grupos rivais. manchetes como estas se<br />

repetem “Pm sobe a Rocinha e três adolescentes são mortos”. Jornal o Globo, 2.02.2004,<br />

p. 13). Hoje mesmo aparece como manchete de primeira página “Pena de morte sem lei”.<br />

A notícia dá conta de que o assassinato de jovens nas favelas do Rio é sete vezes maior<br />

que em outras partes da cidade (Jornal o Globo, 23 de agosto de 2007: 1).<br />

8 uma análise mais ampla sobre a questão do mundo do trabalho, educação e cultura<br />

e juventude o leitor a encontra em Novaes, R. e Vanuchi, P. (2004). As idéias básicas<br />

desta introdução as extraímos do capítulo que escrevemos nesta coletânea - Juventude,<br />

trabalho e educação no brasil: perplexidades, desafios e perspectivas.<br />

48<br />

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A configuração acima esboçada nos indica que não é por acaso que<br />

o tema da relação juventude, trabalho e educação assume, especialmente<br />

nas últimas décadas, uma preocupação específica no âmbito<br />

das políticas públicas do Estado brasileiro. Atualmente ocupa centralidade<br />

no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), estatuindo-se<br />

um PAC específico da Educação, com ênfase para os jovens e<br />

com programas diferenciados para diferentes grupos sociais.<br />

A breve introdução acima nos coloca diante de uma problemática<br />

que se configura como o dilema da esfinge: ou a deciframos ou o cenário<br />

tenderá a se agravar ampliando o espectro de um mundo que é<br />

governado, cada vez mais, pelo medo e pela violência. 9 Seguindo o que<br />

a revista <strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong> sugere em seu nome, este artigo tem o intuito de<br />

problematizar, por um lado, as mistificações e simplificações das análises<br />

sobre as atuais mudanças societárias sob a noção de globalização<br />

e sua relação com as mudanças tecnológicas, econômicas, políticas e<br />

culturais, e, por outro, analisar os limites e as possibilidades da educação<br />

profissional em face do desemprego estrutural e da precarização<br />

do trabalho. Por fim, buscaremos sinalizar os desafios para uma agenda<br />

que articule mudanças estruturais, políticas públicas de emprego e<br />

renda e a articulação entre educação básica e educação profissional.<br />

2. muDANÇAS SoCiEtÁRiAS: GLobALizAÇÃo E/ou<br />

FRAGmENtAÇÃo E iNSEGuRANÇA?<br />

os sinais das mudanças societárias das últimas décadas do século xx<br />

e a primeira década do século xxi nos alertam que, ao contrário da ênfase<br />

ufanista do ideário da globalização que cria o imaginário de que todos<br />

estão integrados evidencia, cada vez mais, um mundo fragmentado e de<br />

contrastes e de crise 10 . Crise econômica, explicitada pela desordem dos<br />

mercados mundiais e hegemonia do capital especulativo; 11 monopólio<br />

9 o leitor que queira aprofundar a compreensão desta questão, veja Chomsky (2004).<br />

10 Sobre o tema da globalização, ver ianni (2001), Cardoso (1999) e Chossudvosky<br />

(1999).<br />

11 A elaboração deste texto está se dando concomitante a uma enorme instabilidade<br />

mundial, com quedas abruptas nas bolsas de valores e a convicção de que a magnitude<br />

do capital especulativo e volátil é de tal ordem que se instauram o pânico e a<br />

insegurança. Nem todos perdem, ao contrário, uns poucos ganham muito.<br />

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da ciência e da técnica e o desemprego estrutural; crise teórica que se<br />

revela na incapacidade de os referenciais de análise darem conta dos<br />

desafios do presente; e, por fim, crise ético-política, que se manifesta<br />

por nenhum ou frágil estranhamento em face da miséria humana e da<br />

naturalização de uma exclusão sem culpa e da violência.<br />

Em realidade, como sinaliza Chasnais (1996), o que vivemos, e sem<br />

precedentes, é um processo de mundialização dos mercados, do<br />

fluxo de mercadorias, sob o domínio do capital financeiro e numa<br />

relação assimétrica entre países. o poder dos países periféricos ou<br />

semiperiféricos (Arrighi, 1998) de produzir de forma competitiva e<br />

de exportar seus produtos é ínfimo.<br />

o fantástico desenvolvimento científico e tecnológico, de natureza<br />

qualitativa diversa e de virtualidade para ampliar qualidade de<br />

vida, sob a lógica unilateral do mercado, torna-se a face mais bruta<br />

da esfinge de nosso tempo. Com efeito, o acesso e a definição política<br />

destas tecnologias estão dentro de uma lógica unilateral da competitividade<br />

definida pelo mercado e na lógica do lucro. Ciência e<br />

tecnologia são cada vez mais concentradas na mão de poucos grupos<br />

e uma força produtiva produzida pelo trabalhador e que se volta<br />

contra ele. os efeitos deste monopólio manifestam-se hoje em todos<br />

os campos. Em face deste direcionamento, dois aspectos interligados,<br />

porém, igualmente equivocados, têm sido dominantes na<br />

visão da ciência e técnica na sociedade atual.<br />

um primeiro, ligado à noção de globalização, é do fetiche e do determinismo<br />

da ciência, da técnica e da tecnologia tomadas como forças<br />

autônomas das relações sociais de produção e de poder. A forma mais<br />

apologética deste fetiche aparece, atualmente, sob as noções de sociedade<br />

pós-industrial e sociedade do conhecimento, que expressam a<br />

tese de que a ciência, a técnica e as novas tecnologias nos conduziram<br />

ao fim do proletariado e dos conflitos entre o capital e o trabalho 12 .<br />

Como sinaliza Carlos Paris:<br />

50<br />

A manipulação ideológica do avanço tecnológico pretende<br />

apresentar-nos a imagem de um mundo em que os grandes<br />

problemas estão resolvidos, e, para gozar a vida, o cidadão só<br />

12 Neste plano de mistificação encontramos autores como: bell (1973), toffler (1950)<br />

e Freadman (1977).<br />

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precisa apertar diversos botões ou manejar objetos de apoio<br />

(Paris, 2002:175).<br />

mas, como prossegue este autor, na verdade se trata de uma epiderme<br />

embelezada que encobre uma imensa maioria de seres humanos<br />

que sequer conseguem satisfazer suas necessidades primárias.<br />

Para sociedades, como a brasileira, esta é uma realidade candente<br />

e muito concreta. trata-se de uma sociedade, como veremos adiante,<br />

que alcançou um significativo desenvolvimento industrial que<br />

permite aos setores de ponta industriais produzir superávit primário<br />

sem precedentes, liderado pelas exportações do agronegócio e que,<br />

ao mesmo tempo e paradoxalmente, o programa social básico do<br />

atual governo é o da fome zero, cujo escopo é dar três refeições para<br />

aproximadamente 50 milhões de brasileiros. mas essas contradições<br />

atingem também o núcleo do capitalismo central.<br />

o outro viés situa-se na visão de pura negatividade da ciência, da<br />

técnica e da tecnologia em face da sua subordinação aos processos<br />

de concentração do lucro e ampliação da precarização e inseguranças<br />

de milhões de trabalhadores e de suas famílias<br />

os dois vieses decorrem de uma análise que oculta o fato de que a<br />

atividade humana que produz o conhecimento e o desenvolvimento<br />

da técnica e tecnologia e seus vínculos imediatos ou mediatos com<br />

os processos produtivos se define e assume o sentido de alienação<br />

e exploração ou de emancipação no âmbito das relações sociais determinadas<br />

historicamente. ou seja, a forma histórica dominante da<br />

ciência, da técnica e da tecnologia de se constituírem como forças<br />

produtivas destrutivas e expropriadoras e alienadoras do trabalho e<br />

do trabalhador não é determinação a elas intrínsecas, mas as mesmas<br />

são dominantemente decididas, produzidas e apropriadas social<br />

e historicamente nas relações sociais vigentes.<br />

Esta compreensão nos conduz, então, ao fato de que a ciência, a<br />

técnica e a tecnologia são alvo de uma disputa de projetos societários.<br />

o que lhes dá caráter destrutivo, expropriador e alienador ou<br />

de emancipação humana é o projeto societário ao qual se vinculam e<br />

dentro do qual se desenvolvem. Não é, por isso, também, da natureza<br />

em si do avanço científico-técnico e tecnológico desempregar. o<br />

que desemprega é a forma social de produção e o uso das tecnologias.<br />

Elas poderiam reduzir substantivamente a jornada de trabalho<br />

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51


e ampliar o tempo livre. tempo este que não se reduza ao descanso<br />

semanal ou às férias, mas que significa o alcance das condições de<br />

resposta às necessidades básicas num determinado tempo histórico<br />

e a possibilidade efetiva de fruição, escolha e criação.<br />

Como mostram diferentes análises, a forma dominante, ditada não<br />

pela vontade de cada empresa, mas pela competição sistêmica, é de<br />

incorporação crescente de tecnologia na produção de mercadorias e<br />

serviços e a diminuição e o barateamento da força de trabalho. isto<br />

não só pelas tecnologias de última geração – digital-molecular – empregadas<br />

no processo produtivo, mas, também, pelas tecnologias gerenciais<br />

e organizacionais. Como mostra Dejours (1999), as expressões<br />

“enxugar os quadros, tirar o pó, diminuir as gorduras” passam a idéia<br />

de que o trabalhador é problema.<br />

mas, talvez, um dos campos mais aterradores do monopólio da ciência<br />

e da tecnologia sem controle da sociedade dá-se no campo da<br />

pesquisa genética e comercialização de órgãos. A propriedade das<br />

células-tronco e as pesquisas de clonagem humana por laboratórios<br />

privados apontam pelo mercado da vida. E qual a ética deste mercado?<br />

é a ética do negócio e da utilidade para o lucro.<br />

Eduardo Galeano 13 mostra-nos a direção perversa que este negócio<br />

assume:<br />

52<br />

Gregory Pence – professor de ética da universidade de Alabama<br />

(EuA) – reivindica o direito de os pais fazerem cruzamentos da<br />

mesma forma que os criadores fazem cruzamento buscando o<br />

cão mais adequado a uma família.<br />

o economista Leste thurow, do massachusetts institute of tecnology,<br />

pergunta: quem poderia negar-se a programar um filho com maior<br />

coeficiente intelectual? – “Se o senhor não fizer isso – adverte – seus<br />

vizinhos o farão, e, então, seu filho será o mais bobo do bairro.”<br />

James Watson – Prêmio Nobel por ter descoberto a estrutura do DNA –<br />

se nega a aceitar limites à pesquisa e ao negócio no campo genético.<br />

“Devemos nos manter à margem dos regulamentos e das leis.”<br />

No campo econômico, isto se materializa pelo domínio das megacorporações<br />

supranacionais, ligadas aos centros hegemônicos do<br />

13 Jornal Em tempo. Nº 321 – jun.jul. 2001.<br />

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poder mundial. De acordo com Ribeiro (2005), megaempresas de<br />

petróleo como Exxon mobil, Shell, General motors – cada uma, individualmente<br />

– são economias maiores que de Portugal, israel, irlanda<br />

ou Nova zelândia. Por outro lado, em 2004, as duzentas maiores<br />

multinacionais detinham 29% de toda a atividade econômica. Ribeiro<br />

assinala:<br />

Na sombra, mas com enorme poder, cresce a dominação do<br />

mercado através de oligopólios de propriedade intelectual ,<br />

cuja extinção de prazo manipula mínimas modificações para<br />

estender a vida das patentes; associado a isto, o fortalecimento<br />

de cartéis de tecnologias. (Ribeiro, 2005:19) 14<br />

Esta realidade, cada vez mais intensa por fusões de empresas, leva<br />

o historiador Eric Hobsbawm (1990) a concluir que do ponto de vista<br />

econômico, já na década de 1960, fazia pouco sentido falar-se em<br />

nação. isto mostra tanto a natureza do que se denomina de globalização<br />

quanto seus efeitos na desigualdade entre regiões e países.<br />

Parte do mundo está jogada ao seu destino, à sua dor, fome e morte.<br />

Grande parte da África não interessa ao mercado.<br />

Para elucidar a polarização de riqueza e miséria, nada melhor do<br />

que ir em textos daqueles que disseminam a apologia da globalização.<br />

trata-se, como situam bourdieu, P & Wacquant, L. (2000), de<br />

propagadores da nova vulgata. thomas L. Friedman é um destes divulgadores.<br />

trata-se de um jornalista com vários prêmios por livros<br />

que tratam do mundo globalizado. o trecho do seu último livro – o<br />

mundo é plano – uma breve história do século xxi, baseado no Vale<br />

do Silício indiano, busca mostrar que chegamos no ano 2000 a um<br />

novo patamar da globalização. o pequeno trecho destacado abaixo<br />

nos delineia o que os apologetas descrevem, mas não analisam.<br />

Fui com a equipe do Discovery time até o campus da infosys,<br />

acerca de quarenta minutos do centro de bangalore,<br />

a fim de conhecer suas instalações e entrevistar Nilekani.<br />

Na estrada esburacada havíamos disputado espaço com vacas<br />

sagradas, carroças puxadas por cavalos e riquixás mo-<br />

14 A tradução do espanhol é de minha responsabilidade.<br />

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torizados; depois de cruzarmos os portões da infosys, porém,<br />

parecia que havíamos entrado num outro mundo. Em<br />

meio à grama bem aparada, pontilhada de grandes pedras<br />

redondas, havia uma piscina cinematográfica ao lado de um<br />

putting green, além de vários restaurantes e um fantástico<br />

health club. (...) Aqui podemos nos encontrar com gente de<br />

Nova York, Londres, boston, São Francisco, tudo ao vivo. E,<br />

como a implementação pode ser em Cingapura, o cara de<br />

lá também pode estar ao vivo aqui. é a globalização. (Friedman,<br />

t. L. 2005:13-14)<br />

o poder que concentram as grandes corporações acaba interferindo<br />

decisivamente na esfera política. Elas se tornam o poder de fato<br />

no mundo e subordinam as nações, mormente aquelas do capitalismo<br />

periférico e semiperiférico.<br />

Com tal poderio e cada vez mais legislações nacionais e internacionais<br />

em seu favor, as multinacionais condicionam diariamente<br />

a vida de todos, criando guerras reais e de mercado<br />

entrelaçadas e em governos e meios de comunicação, movimentando<br />

um enorme poder de propaganda e apropriandose<br />

dos mercados desde a produção até a compra direta do<br />

consumidor. (Ribeiro, 2005:19) 15<br />

é neste contexto que, desde a década de 1970, os órgãos internacionais<br />

ligados ao mercado, mormente a organização mundial do<br />

Comércio, passam ter um poder supranacional quando o tema é ligado<br />

ao mundo dos negócios. E é a partir deste momento que os<br />

governos nacionais, pressionados pelos centros hegemônicos do<br />

mercado mundial, começam a defender a tese da “independência”<br />

dos bancos centrais da política. A tese da soberania nacional dá lugar<br />

à da independência do banco Central. o significado real desta tese<br />

é que, na verdade, quem faz a política é o grupo “blindado” que maneja<br />

os bancos centrais, e os cidadãos viram um conglomerado de<br />

consumidores.<br />

15 A tradução do espanhol é de minha responsabilidade.<br />

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No plano cultural também se instaura uma profunda dominação.<br />

As grandes redes de televisão e de informação, monopólio de poucos,<br />

imputam os valores de consumo das economias centrais e do<br />

seu estilo de vida. o programa big brother é um exemplo emblemático<br />

do lixo a que somos submetidos e à profunda alienação que nos<br />

é imposta. mas esta dominação se dá no campo da arte, da música,<br />

do cinema e, sem dúvida, no campo educativo.<br />

o resultado desta lógica dá-se no plano social. o que se observa<br />

no mundo, e de forma mais aguda em países como o brasil, é que há,<br />

por um lado, uma minoria, particularmente ligada ao capital financeiro,<br />

que fica cada vez mais rica, e, por outro, um empobrecimento<br />

das camadas médias indo em direção à massa que está abaixo do<br />

nível de pobreza 16 . As grandes fortunas aumentaram, nos últimos<br />

anos, na América Latina, em 12%.<br />

o fato de as novas tecnologias não estarem direcionadas para a dilatação<br />

da vida, como assinalamos acima, se transforma numa monstruosa<br />

Esfinge.<br />

Essa nova Esfinge não é já a natureza indômita, hostil, revestida<br />

de símbolos matriarcais, que assaltava o cidadão édipo<br />

fora dos muros da cidade, mas a própria técnica que se ergue<br />

ameaçadora no recinto do mundo que acreditávamos haver<br />

forjado para nosso bem-estar. (Paris, op. cit,162)<br />

Como a tecnologia permite aumentar produtividade sem aumentar<br />

empregados, a face mais destrutiva da Esfinge que atinge, ainda<br />

que de modo diverso em quantidade e nos efeitos, tanto os países<br />

do capitalismo central quanto os países de capitalismo dependente<br />

e periférico é o desemprego estrutural, a criação de um contingente<br />

cada vez maior de trabalhadores supérfluos. o desemprego é o problema<br />

social e político fundamental neste fim de século. o quadro<br />

16 os dados recentes divulgados sobre uma maior distribuição de renda no brasil resultam<br />

das políticas de transferência de renda, especialmente da classe média, para o contingente<br />

de milhões de pessoas abaixo do nível de pobreza. isso resulta, como veremos adiante,<br />

das políticas focais de inserção social – dentre elas a mais significativa, a bolsa-família, que<br />

atende 45 milhões de pessoas. uma em quatro famílias brasileiras recebe a bolsa-família. A<br />

positividade distributiva, todavia, esconde dificuldades estruturais históricas cuja superação<br />

demandaria políticas sociais emancipatórias e que efetivamente garantissem direitos.<br />

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que Robert Castel (1997 e 1998) nos apresenta é pouco auspicioso.<br />

Afirma-se, para este autor, cada vez mais a tendência de:<br />

56<br />

• Desestabilização dos trabalhadores estáveis. Essa precarização<br />

dá-se pela perda de direitos, intensidade de trabalho, ameaças<br />

crescentes de perda do emprego.<br />

• instalação da precariedade do emprego mediante a flexibilização<br />

do trabalho, trabalho temporário, terceirização, etc.<br />

• Aumento crescente dos sobrantes. trata-se de contingentes<br />

não integrados e não integráveis.<br />

o desmanche da sociedade do emprego ou salarial pode ser emblematicamente<br />

apreendido pelo diálogo dos magnatas da área de<br />

computadores John Gage, da Sun microsistems, David Packard, da<br />

Hewlett-Packard, e o mediador dos debates Rustum Roy, num seminário<br />

que reuniu os governos e empresários mais poderosos do<br />

mundo e alguns intelectuais, no luxuoso hotel Fairmont, em São<br />

Francisco, para marcar a instalação da Fundação Gorbachev.<br />

John Gage, referindo-se aos seus empregados:<br />

“Cada qual pode trabalhar conosco quanto tempo quiser, também<br />

não precisamos de visto para nosso pessoal do exterior (...) Empregamos<br />

nosso pessoal por computador, eles trabalham no computador<br />

e também são demitidos por computador.<br />

Dirigindo-se a David Packard, diz: ‘isso você não consegue tão rapidamente,<br />

David?’<br />

David Packard retruca: ‘De quantos empregados você realmente<br />

necessita, John?’<br />

‘Seis, talvez oito. Sem eles estaríamos falidos. Quanto ao local do planeta<br />

onde eles vivem, isso não importa em absoluto’, responde John.<br />

o mediador, prof. Rustum Roy, intervém e pergunta: ‘E quantas<br />

pessoas trabalham atualmente para a Sun Systems?’<br />

‘São dezesseis mil, mas exceto por uma pequena minoria todos<br />

demissíveis em caso de racionalização’, responde George.” (maritin,<br />

H.P. & Schumann, H. 1996:10-11)<br />

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Esta realidade se apresenta com estatísticas alarmantes: um bilhão e<br />

200 mil desempregados no mundo; taxas de desemprego que variam<br />

de 10% a 22% na Europa. Este cenário é emblematicamente analisado<br />

em sua dimensão econômica e sociocultural num livro da socióloga<br />

Viviane Forrester (1997) cujo título é: o horror econômico.<br />

Qual o futuro da sociedade salarial ou do trabalho assalariado?<br />

Esta também não é uma pergunta de resposta fácil. os indicadores<br />

do presente, todavia, são inequívocos. o desemprego é o problema<br />

social e político fundamental neste fim de século. Para Robert Castell,<br />

o cenário visível é bastante preocupante. As políticas neoliberais de<br />

um lado e, de outro, o desenvolvimento centrado sobre a hipertrofia<br />

do capital morto – isto é, ciência e tecnologia, informação como<br />

forças de produção –, acabam desenhando uma realidade onde encontramos,<br />

para Castel, quatro cenários.<br />

o pior prognóstico é o de uma radicalização das políticas neoliberais<br />

numa crescente mercantilização dos direitos sociais, ruptura crescente<br />

da proteção ao trabalho e a instalação de um mercado auto-regulado.<br />

Neste cenário, o desemprego estrutural e a precarização do trabalho<br />

tendem a se ampliar e, conseqüentemente, ao aumento dos sobrantes.<br />

o segundo cenário, que não elide o primeiro, adotado pela maioria<br />

dos países, é de atacar o problema do desemprego pelos efeitos.<br />

instauram-se políticas focalizadas de inserção social 17 . um lenitivo<br />

necessário, mas insuficiente. Essas têm sido as políticas dominantes<br />

na América Latina, especialmente a partir da década de 1990, período<br />

em que o desemprego estrutural se agravou.<br />

o terceiro cenário é a auto-organização dos excluídos mediante<br />

uma organização alternativa do trabalho – uma nova cultura do trabalho.<br />

Esta realidade vem sendo cunhada com nomes diferentes e com<br />

17 As categorias de integração social e de inserção social analisadas por Castel (1998)<br />

expressam dois tempos históricos em termos de políticas sociais e políticas públicas. A<br />

categoria de integração social está vinculada a um contexto histórico de uma sociedade<br />

contratual onde não só se postula o direito ao emprego, mas ligado a ele um conjunto de<br />

direitos sociais. A categoria de inserção social diz respeito a um contexto de crise deste contrato<br />

social. boaventura de Souza Santos (1999) caracteriza este tempo de pós-contratual e<br />

de fascismo societal para designar uma realidade de profunda insegurança e de políticas<br />

que não asseguram direitos e previsibilidade de longo prazo. Autores, com os quais nos<br />

filhamos, não ignoram estes contextos diversos, porém não assumem a perspectiva de que<br />

haja uma nova questão social. Ver a esse respeito Netto (2001) e iamamoto (2004).<br />

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sentidos diversos. Economia solidária é o mais geral. No brasil, a economia<br />

solidária assumiu espaço institucional com uma Secretaria Especial<br />

ligada à Presidência da República. mas também encontramos<br />

os conceitos de economia popular e economia de sobrevivência 18 .<br />

Há, aqui, questões de várias ordens. A primeira é de diferenciação<br />

de perspectivas que engendram estes conceitos. A segunda é de se<br />

averiguar qual o alcance global destas alternativas.<br />

Por fim, encontramos as teses daqueles que já decretam que chegamos<br />

à sociedade do conhecimento, sociedade do entretenimento<br />

(tittytaiment), do lúdico ou do fim do trabalho e a sociedade do tempo<br />

livre. De imediato esta tese se choca com a multidão de sobrantes,<br />

cujo tempo livre não significa nem entretenimento nem lúdico, mas<br />

tempo torturado de precariedade – existência provisória sem prazo.<br />

Se tomarmos a questão do desemprego dos jovens no brasil e a<br />

perspectiva de sua inserção no mercado de trabalho, os cenários acima<br />

traçados por Castel ganham um realismo preocupante. Existem no<br />

brasil aproximadamente 34 milhões de jovens entre 15 e 24 anos, como<br />

mostram os dados de 2005. Segundo dados do ibGE/Pnad de 2005, na<br />

faixa de 16 a 17 anos o desemprego era de 26,39%, e na faixa de 18 a 24<br />

anos, de 17,39%. o problema se agrava quando as análises se atêm aos<br />

grandes centros urbanos. De acordo com dados do Dieese de 2005, nas<br />

regiões metropolitanas os jovens representam 25% da população economicamente<br />

ativa (PEA), sendo que 45,5% estão desempregados 19 .<br />

tem sido uma constante nas análises de economistas, empresários<br />

em diferentes espaços governamentais, baseados na teoria do<br />

capital humano e suas atualizações, que o quadro de desemprego<br />

está relacionado à educação e à formação profissional. Seriam mesmo<br />

a educação e a formação profissional as galinhas dos ovos de<br />

ouro capazes de alterar a tendência acima assinalada? No próximo<br />

item, buscaremos problematizar esta crença, mas ao mesmo tempo<br />

mostrar que a educação básica e profissional, sem dúvida, tem uma<br />

função social e econômica inequívoca.<br />

18 Numa outra perspectiva e sob uma denominação genérica existe uma ampla literatura<br />

de trabalho à categoria de terceiro setor. Para uma análise crítica desta problemática,<br />

ver montaño (2002).<br />

19 Para uma visão detalhada da questão do emprego e desemprego, ver Pochmann<br />

e borges, 1999, Pochmann (2000, 2000,2002 e 2004), e matoso e Pochmann, 1997, e<br />

Linhart, 2007.<br />

58<br />

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3. miStiFiCAÇõES, LimitES E PoSSibiLiDADES DA EDuCAÇÃo<br />

PRoFiSSioNAL E PoLítiCAS DE EmPREGo E RENDA<br />

A relação que se estabelece entre educação e educação profissional<br />

e desenvolvimento, desde os anos 50, se fundamenta numa<br />

compreensão de desenvolvimento tomado como sinônimo de crescimento<br />

econômico e dentro de uma perspectiva linear onde não<br />

são consideradas as relações de poder e nem os limites do meio<br />

ambiente 20 . mesmo os debates mais atuais sobre desenvolvimento<br />

sustentável, em sua grande maioria, não escapam desta perspectiva.<br />

A idéia de um desenvolvimento linear e sem limites é cada vez mais<br />

contestada por evidências históricas contrárias 21 .<br />

A noção de capital humano, formulada a partir das pesquisas de theodor<br />

Schultz (1962 e 1973) sobre a desigualdade de desenvolvimento<br />

econômico entre países na década de 1950 e noções de sociedade do<br />

conhecimento e de pedagogia das competências para a empregabilidade,<br />

formuladas a partir do fim da década de 1980, instaura um senso comum<br />

sobre a visão linear acima assinalada de forma cada vez mais dissimulada<br />

22 . Este senso comum, amplamente difundido pelos organismos<br />

internacionais, mormente pelo banco mundial (bird), pela organização<br />

mundial do Comércio (omC), pelo banco interamericano de Desenvolvimento<br />

(biD), fortemente apoiados pela grande imprensa, acaba incorporando<br />

nos governos e nas populações pobres dos países periféricos e<br />

semiperiféricos a ilusão do desenvolvimento de que trata Arrighi (1996),<br />

salvo que não se alterem as relações de poder até hoje vigentes.<br />

Análises do processo histórico, mormente do século xx,<br />

como as que nos oferecem Hobsbawm (1990 e 1995), nos permitem<br />

afirmar que a noção do capital humano e de sociedade<br />

do conhecimento explica, de forma invertida, dois contextos<br />

históricos de redefinição das relações intercapitalistas e suas<br />

20 Sobre esta questão, ver Emir Altvater, 1999.<br />

21 As idéias básicas desenvolvidas na primeira parte deste item estão baseadas numa<br />

análise mais ampla de Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005).<br />

22 uma análise mais aprofundada da teoria do capital humano e da noção de sociedade<br />

do conhecimento, os seus sentidos e significados na educação e na sociedade<br />

encontra-se em Frigotto (1985 e 1993). Num mesmo sentido, para uma compreensão<br />

ampla da pedagogia das competências, ver Ramos (2002).<br />

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60<br />

conseqüências, especialmente sobre a classe trabalhadora.<br />

(Frigotto, 1998)<br />

Com efeito, a noção de capital humano busca responder à incômoda<br />

questão do porquê da permanência ou do agravamento das<br />

desigualdades econômico-sociais entre nações e entre grupos e indivíduos<br />

dentro de uma mesma nação, no contexto do Pós-Segunda<br />

Guerra mundial. A suposição, transformada em afirmação, que se<br />

encontrou a partir de correlações estatísticas, era que isso se devia,<br />

sobretudo, ao diferencial do investimento em capital humano. Este<br />

se compunha do investimento em escolaridade, treinamento e saúde<br />

do trabalhador. Devido à dificuldade metodológica, dentro da<br />

ótica quantitivista, de se quantificar os indicadores de saúde, este<br />

aspecto ficou secundado ou abandonado na análise.<br />

Do ponto de vista do processo formativo, a questão que se coloca<br />

é: quais são os conhecimentos, atitudes e valores a serem desenvolvidos<br />

na escola e na educação profissional que são funcionais ao<br />

mundo do trabalho e da produção. os economistas, os gestores,<br />

tecnocratas, planejadores vão dar mais ênfase aos aspectos de habilidades<br />

e dimensões cognitivas, e os sociólogos e psicólogos, às<br />

atitudes, valores, símbolos e dimensões ideológicas (Finkel, 1977).<br />

A apreensão invertida do processo histórico situa-se no fato de<br />

que, como nos mostra Hobsbawm (1990), já na década de 1950 os<br />

processos da globalização ou mundialização dos mercados e do capital<br />

anulavam o poder dos Estados nacionais, mormente dos países<br />

periféricos e semiperiféricos, sobre o planejamento da economia<br />

e de suas moedas. uma dupla tendência se desenhava: crescente<br />

polarização entre países ricos e pobres e, conseqüentemente, o aumento<br />

da desigualdade entre as nações e o aumento dos grupos de<br />

pobres e miseráveis, especialmente no Hemisfério Sul 23 . Na América<br />

Latina, os movimentos por mudanças estruturais que assegurassem<br />

inclusão a grandes maiorias pauperizadas foram contidos pelo ciclo<br />

de ditaduras. é dominantemente dentro dos marcos das ditaduras<br />

que se efetivam, na América Latina, as reformas educativas sob o ideário<br />

do capital humano.<br />

23 Sobre aumento da desigualdade em países da América Latina, ver Fitousi, J.P. &<br />

Rosavallon, P. (1997) e Pochaman e Amorim, 2003.<br />

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Reafirma-se, nos países periféricos e semiperiféricos, o ciclo vicioso<br />

do aumento da dívida externa e interna, mais dependência e diminuição<br />

da capacidade de investimentos, mormente na área social.<br />

Não obstante o discurso em contrário, saúde e educação e formação<br />

profissional, componentes da fórmula do capital humano, tinham<br />

cada vez menos recursos disponíveis.<br />

Deve-se ressaltar que, de todo modo, as políticas no campo da educação<br />

básica, da formação profissional e da saúde desenvolviam-se<br />

na perspectiva de uma sociedade desigual, mas integradora. tratase<br />

de produzir e reproduzir uma força de trabalho adequada às demandas<br />

dos processos de desenvolvimento e afirmar a educação e<br />

formação profissional como uma espécie de tábua de salvação ou o<br />

que cunhamos acima como galinha dos ovos de ouro para tirar os<br />

países periféricos e semiperiféricos de sua situação e alçá-los ao nível<br />

dos países centrais. Do mesmo modo, acalenta a promessa da mobilidade<br />

social mediante a busca de empregos de maiores salários.<br />

No plano das relações trabalhistas ainda vigora, mesmo que cada vez<br />

mais enfraquecido, o ideário de uma regulação social que assegure<br />

um contrato coletivo mediado por instituições públicas e sindicatos<br />

patronais e sindicatos dos trabalhadores.trata-se de políticas de integração<br />

social no horizonte do que assinalamos na nota 15.<br />

A partir de meados da década de 80, vários processos, de forma<br />

veloz, aceleram o processo de globalização dos mercados e de mundialização<br />

do capital. Destacam-se, como demonstra Chesnais (1996),<br />

a hipertrofia do capital financeiro, a consolidação de uma nova base<br />

científico-técnica, qualitativamente diversa, de base digital-molecular,<br />

e novas formas de organização e gestão empresarial que redefinem<br />

o processo produtivo. A economia pode e aumenta a produtividade,<br />

diminuindo o número de trabalhadores. A crise estrutural do<br />

desemprego, que se alastra por quase duas décadas, sem sinais de<br />

reversão, e o colapso do socialismo real, que permite o surgimento<br />

do discurso único, operam na ampliação do espectro do desenvolvimento<br />

desigual e combinado.A tendência é do aumento do cenário<br />

do desemprego estrutural e da pobreza. 24<br />

24 Sobre a relação entre processos de globalização dos mercados e pobreza, ver<br />

Chossudvsky (1999).<br />

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62<br />

o crescente desemprego destas décadas não foi simplesmente<br />

cíclico, mas estrutural. os empregos perdidos nos maus<br />

tempos não retornariam quando os tempos melhoravam: não<br />

voltariam jamais (...). A tragédia histórica das décadas de crise<br />

foi a de que a produção agora dispensava visivelmente seres<br />

humanos mais rapidamente do que a economia de mercado<br />

gerava novos empregos para eles. Além disso, esse processo<br />

foi acelerado pela competição global, pelo aperto financeiro<br />

dos governos, que – direta ou indiretamente – eram os maiores<br />

empregadores individuais, e não menos, após 80, pela então<br />

predominante teologia do livre mercado que pressionava<br />

em favor da transferência de emprego para formas empresariais<br />

de maximização de lucros, sobretudo para empresas privadas<br />

que, por definição, não pensavam em outros interesses<br />

além do seu próprio, pecuniário. isso significou, entre outras<br />

coisas, que governos e outras entidades públicas deixaram<br />

de ser o que se chamou de empregadores de último recurso.<br />

(Hobsbawm, 1995, p.403- 4)<br />

é neste contexto que se elabora a cartilha do Consenso de Washington,<br />

cuja receita, para os países de capitalismo dependente, é<br />

do ajuste fiscal, da desregulamentação dos mercados, flexibilização<br />

das leis trabalhistas e privatização do patrimônio público. trata-se de<br />

apagar a herança das políticas sociais distributivistas e dos mecanismos<br />

de regulação do mercado e do capital. As bases institucionais<br />

que regulamentam o direito internacional e na esfera nacional deslocam-se<br />

para as organizações genuínas do mercado. A organização<br />

mundial do Comércio passa a se constituir no fórum que decide, por<br />

cima das nações, as regras do livre mercado. o neoconservadorismo<br />

monetarista e de ajuste fiscal reassume o protagonismo.<br />

o Fundo monetário internacional e o banco mundial elaboram o<br />

receituário do ajuste da política econômica e social e em cada país<br />

periférico ou semiperiférico negociam com as elites que, de forma<br />

associada e subordinada, efetivam as reformas recomendadas. Não<br />

por acaso ganha força, especialmente nos países de capitalismo dependente,<br />

a tese da independência dos bancos Centrais da política.<br />

isto é a efetiva demonstração do papel protagonista da organização<br />

mundial do Comércio e, por outro lado, a evidência de que é nestes<br />

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espaços que se define a política. trata-se de um mercado sem controle<br />

da sociedade.<br />

Esta mudança se expressa no campo da educação básica e profissional<br />

pelo deslocamento do papel de protagonismo da unesco,<br />

mormente nas décadas de 1970 e 1980, para os organismos internacionais<br />

acima apontados.<br />

Nesta nova materialidade de relações sociais, sob o discurso único<br />

da soberania do mercado e do domínio dos grandes grupos econômicos<br />

da ciência, da tecnologia e das redes de informação, a teoria do<br />

capital humano, nos termos postos nas décadas de 1950 a 1980, não<br />

dá conta para o ideário educacional. Esta noção mantém os traços<br />

de uma sociedade integradora e contratual. os tempos agora, como<br />

analisa boaventura Santos (1999), são de uma sociedade pós-contratual.<br />

Não há sociedade, há indivíduos, como proclama margaret<br />

tatcher.<br />

A noção central para este novo contexto de regressão das relações<br />

sociais, no âmbito social mais amplo, é a de sociedade do conhecimento.<br />

Noção que deriva do determinismo tecnológico; ou seja,<br />

de tomar-se a ciência e a tecnologia como entidades autônomas, independentes<br />

das relações sociais. Ao mesmo tempo, insiste-se na<br />

ênfase de que nos encontramos numa sociedade da mudança veloz,<br />

de descontinuidade e, sobretudo, da incerteza, ocultando-se que se<br />

trata, na verdade, de uma sociedade insegura e que não permite programar<br />

o futuro. os jovens, sobretudo, em escala diversa de acordo<br />

com a sua situação social, são vítimas desta situação e se expressam<br />

na dificuldade de criar condições de se independentizar da família e<br />

mesmo de se programar para ter filhos.<br />

No plano da educação básica e profissional, neste contexto, afirmam-se<br />

as reformas educativas da década de 1990 centradas no ideário<br />

na pedagogia das competências, cujo foco é a preparação do<br />

indivíduo não mais para o emprego, mas para a empregabilidade 25 .<br />

Estas noções do campo pedagógico são a materialização, por um<br />

lado, do deslocamento dos direitos sociais para o plano individual<br />

e, como conseqüência, por outro lado, o deslocamento das políticas<br />

sociais de integração para as de inserção precária.<br />

25 Para se ter uma compreensão de como a noção de empregabilidade assume uma<br />

perspectiva apologética, ver moraes (1998).<br />

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Por isso que a questão aqui não é a discussão do sentido em si<br />

dicionarizado de competência 26 . obviamente que, em todos os<br />

campos, se quer ter profissionais competentes com o domínio<br />

científico e técnico de seu campo de atuação na sociedade. o aspecto<br />

central aqui é de que se trata das competências cujo sujeito<br />

definidor é o mercado. mercado que, como vimos, necessita cada<br />

vez menos de trabalho vivo, isto é, trabalhadores, e instaura a sua<br />

competitividade aumentando o trabalho morto mediante o uso da<br />

ciência e da técnica.<br />

Há, pois, uma ressignificação do termo competência. Não é por acaso<br />

que a noção de competência surge conectada aos desafios da instabilidade<br />

do mercado de trabalho. Ela se vincula, diretamente, à noção de<br />

empregabilidade. termo esse que sequer está dicionarizado em língua<br />

portuguesa e que, portanto, nasce fortemente ideologizado. Ele diz respeito<br />

a um mercado flexível, instável, dinâmico, que requer um trabalhador<br />

flexível, com contrato e direitos flexíveis, adaptado psico e socialmente<br />

à provisoriedade. o texto abaixo é, neste sentido, emblemático.<br />

64<br />

A empregabilidade é um conceito mais rico do que a simples<br />

busca ou mesmo a certeza de emprego. Ela é o conjunto de<br />

competências que você comprovadamente possui ou pode<br />

desenvolver – dentro ou fora da empresa. é a condição de<br />

se sentir vivo, capaz, produtivo. Ela diz respeito a você como<br />

indivíduo e não mais à situação, boa ou ruim, da empresa<br />

– ou do país. é o oposto ao antigo sonho da relação vitalícia<br />

com a empresa. Hoje a única relação vitalícia deve ser com o<br />

conteúdo do que você sabe e pode fazer. o melhor que uma<br />

empresa pode propor é o seguinte: vamos fazer este trabalho<br />

juntos e que ele seja bom para os dois enquanto dure; o rompimento<br />

pode se dar por motivos alheios à nossa vontade.<br />

(...) (empregabilidade) é como a segurança agora se chama.<br />

(moraes, 1998)<br />

26 Para o Novo Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa, competente se refere à qualidade<br />

de quem é capaz de apreciar e resolver certo assunto, fazer determinada coisa,<br />

habilidade, aptidão, idoneidade (de Holanda Ferreira, 1975, p. 353).<br />

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A promessa da empregabilidade, todavia, quando confrontada com<br />

a realidade do desemprego acima assinalada, não apenas evidencia<br />

seu caráter mistificador mas, sobretudo, revela também um elevado<br />

grau de cinismo.<br />

(...) uma bela palavra soa nova e parece prometida a um belo<br />

futuro: “empregabilidade”, que se revela como um parente<br />

muito próximo da flexibilidade, e até como uma de suas<br />

formas. trata-se, para o assalariado, de estar disponível para<br />

todas as mudanças, todos os caprichos do destino, no caso<br />

dos empregadores. Ele deverá estar pronto para trocar constantemente<br />

de trabalho (como se troca de camisa, diria a ama<br />

beppa). (Forrester, 1997, p. 118)<br />

Percebe-se, então, que a noção de capital humano não desaparece<br />

do ideário econômico, político e pedagógico, mas é redefinida<br />

e ressignificada pelas noções de sociedade do conhecimento e da<br />

pedagogia das competências para a empregabilidade. Como nos indica<br />

beluzzo, a noção de empregabilidade já nos foi apresentada<br />

nos anos 60 e 70 sob a forma de teoria do Capital Humano. Recauchutada,<br />

ela volta para explicar, ou tentar explicar, o agravamento<br />

das desigualdades no capitalismo contemporâneo. Assim, fica mais<br />

fácil atribuir ao indivíduo a responsabilidade por suas desgraças e<br />

por sua derrota. “Sou pobre porque sou incompetente e sem qualificação”<br />

(beluzzo, 2001, p.1.).<br />

De fato, a lógica das competências incorpora traços relevantes da<br />

teoria do Capital Humano, redimensionados com base na “nova”<br />

sociabilidade capitalista. Apóia-se no capitalismo concorrencial de<br />

mercado; o aumento da produtividade marginal é considerado em<br />

função do adequado desenvolvimento e da utilização das competências<br />

dos trabalhadores; o investimento individual no desenvolvimento<br />

de competências é tanto resultado quanto pressuposto da<br />

adaptação à instabilidade da vida. Aos moldes neoliberais, acredita-se<br />

que isso redundaria em bem-estar de todos os indivíduos, à<br />

medida que cada um teria autonomia e liberdade para realizar suas<br />

escolhas de acordo com suas competências 27 .<br />

27 Ver a esse respeito Ramos, 2002.<br />

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Por certo, se estaria incorrendo no mesmo equívoco que analisamos<br />

acima em relação à tecnologia, se ignorássemos o papel da educação<br />

básica e da formação técnica e profissional na sociedade em<br />

todos os seus âmbitos. o horizonte aqui é de compreendê-las como<br />

constituídas e constituintes da sociedade. ou seja, sua natureza e<br />

função se definem socialmente no âmbito das relações de força e de<br />

poder das diferentes classes, frações de classes ou grupos sociais.<br />

Cabe perguntar, então: quais os limites e possibilidades da formação<br />

profissional em nossa sociedade assumida nesta análise como<br />

sendo de capitalismo dependente de desenvolvimento desigual e<br />

combinado?<br />

66<br />

4. A títuLo DE CoNCLuSÃo: LimitES E PoSSibiLiDADES<br />

E DESAFioS DA FoRmAÇÃo PRoFiSSioNAL<br />

os aspectos acima analisados nos conduzem a sublinhar a necessidade<br />

de não ser simplista e condescendente ao abordar a relação<br />

desenvolvimento, emprego e renda e educação, mormente a formação<br />

profissional. Com base em inúmeras análises, pode-se concluir e<br />

sustentar que tanto a situação da desigualdade entre regiões (Norte/<br />

Sul) ou entre países centrais e periféricos e semiperiféricos ou entre<br />

grupos sociais no interior de cada país não se explica, primeira e fundamentalmente,<br />

pela educação ou formação profissional, mas pelas<br />

relações sociais e de poder historicamente construídas.<br />

Ao contrário do que pretendem os mandamentos e as lengalengas<br />

do pensamento único, a maioria não é pobre porque<br />

não conseguiu boa educação, mas, na realidade, não conseguiu<br />

boa educação porque é pobre. (beluzzo, p. 2)<br />

é, pois, fundamental que se tenha claro que o caminho percorrido<br />

na relação entre educação e formação profissional, desenvolvimento<br />

e mobilidade social, nos marcos da teoria do capital humano, da<br />

sociedade do conhecimento e da pedagogia das competências e da<br />

empregabilidade não nos ajuda a entender o processo histórico da<br />

produção da desigualdade entre nações e no interior delas. igualmente,<br />

não nos permite entender como os países de capitalismo de-<br />

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pendente associam desenvolvimento desigual e combinado que se<br />

expressa pelo paradoxo de concentração de riqueza, por um lado, e<br />

aumento da pobreza, por outro. Paradoxo aparente, pois como nos<br />

mostra Francisco de oliveira (2003) trata-se de uma construção social<br />

de nossa tradição histórica cuja especificidade é de uma sociedade<br />

que produz a pobreza e se alimenta dela.<br />

As noções acima nos afastam deste entendimento e do papel da<br />

educação básica e profissional enquanto práticas sociais mediadoras<br />

das relações sociais, econômicas, políticas e culturais. o estabelecimento<br />

de uma relação entre educação profissional e desenvolvimento,<br />

sob outras bases, demanda dos países de capitalismo dependente<br />

um conjunto de decisões e de políticas que se desenvolvam de forma<br />

concomitante e articulada, buscando atender, ao mesmo tempo, aos<br />

critérios de justiça social e de resposta aos imperativos das necessidades<br />

da produção. Não se trata de ignorar, como pontuamos acima,<br />

o papel da educação básica e profissional neste duplo aspecto.<br />

uma agenda que busque romper com nossa dependência histórica<br />

inclui como primeira condição, que orienta e determina as demais,<br />

a construção de um consenso mínimo na sociedade brasileira,<br />

mormente dos que têm a convicção de que somos uma nação e não<br />

um conglomerado de simples consumidores. Este consenso, na sua<br />

base, demanda a determinação daquilo que Caio Prado Junior (1976)<br />

caracterizou como as três mazelas básicas em nossa sociedade: o mimetismo,<br />

que consiste numa cultura da cópia, e a crença de que a<br />

teoria que vem de fora é melhor; a dívida externa, calcada na mentalidade<br />

do atalho e de viver com o dinheiro dos outros; e a assimetria<br />

das mais acentuadas entre os ganhos do capital e do trabalho.<br />

trata-se de uma mudança que implica uma ruptura com todas as formas<br />

de colonização e subalternidade na relação com os organismos<br />

internacionais e com os países centrais. isto não significa isolamento<br />

internacional mas, ao contrário, uma relação autônoma e soberana.<br />

Sem uma mudança profunda com o pagamento da dívida externa e,<br />

sobretudo, com a lógica dos juros da dívida externa e interna, e superávit<br />

primário para garantir capital especulativo, o brasil não sairá do<br />

ciclo vicioso da dependência, e a busca de maior igualdade social e de<br />

desenvolvimento sustentado continuará sendo uma ilusão. Sob este<br />

aspecto, a questão central não é de apenas ver as imposições exter-<br />

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nas, que são profundamente predatórias e injustas, mas, sobretudo,<br />

de combater a postura de subalternidade, consentida e associada, das<br />

elites econômicas e políticas da sociedade brasileira.<br />

Que mudanças estruturais são estas? No caso brasileiro, destaca-se<br />

como necessidade inadiável a reforma agrária, com o intuito de acabar<br />

com a altíssima concentração da propriedade da terra e permitir acesso<br />

ao trabalho a milhares de trabalhadores. todavia, isso não se reduz<br />

a simplesmente ter acesso à terra. implica, também, uma política que<br />

assegure infra-estrutura, assistência e apoio técnico e de crédito compatível<br />

com a realidade dos pequenos agricultores. As sociedades do<br />

capitalismo central, em especial da Europa, fizeram a reforma agrária<br />

há mais de um século. Nós somos considerados um continente, pelo<br />

tamanho do país, e temos aproximadamente 20 milhões de acampados<br />

que constituem o movimento dos Sem-terra.<br />

outra mudança estrutural é a reforma tributária, para inverter a lógica<br />

regressiva dos impostos e com o objetivo de corrigir, assim, a enorme<br />

e injustificável desigualdade de renda. Junto com estas reformas<br />

relacionadas à vida econômica estão implicadas, também, a reforma<br />

política e do Judiciário. Seria por acaso se mantém a estrutura agrária<br />

que temos e que toda ocupação de terras, grande parte delas comprovadamente<br />

públicas, é considerada invasão e, portanto, criminalizada?<br />

o que explicaria que as cadeias brasileiras sejam povoadas<br />

de jovens pobres e, em sua maioria, descendentes de negros?<br />

Estas condições, aliadas ao fortalecimento de uma democracia ativa e<br />

a uma nova concepção de desenvolvimento socialmente justo, econômica<br />

e ambientalmente viável, solidário e participativo, podem fornecer<br />

as condições políticas e culturais para romper com o ciclo vicioso<br />

de pobreza. isto permitirá alterar o baixo investimento em educação,<br />

saúde, ciência e tecnologia, condições indispensáveis para superar a<br />

condenação ao exercício das atividades ligadas ao trabalho simples, de<br />

baixo valor agregado, na divisão internacional do trabalho.<br />

No plano conjuntural de curto prazo, há problemas cruciais a serem<br />

resolvidos cuja dramaticidade implica políticas distributivas imediatas.<br />

Estas situam-se dentro do horizonte da inserção social precária. Podemos<br />

mencionar, entre outras, as políticas de renda mínima e a bolsa-família,<br />

primeiro emprego, Proeja, etc. Estas políticas necessitam de um<br />

amplo controle social público para não se transformarem em clien-<br />

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telismo e paternalismo (traços fortes de nossa cultura política), e não<br />

podem ser permanentes. Por isso, o esforço é no sentido de instaurar<br />

políticas emancipatórias que garantam emprego ou trabalho e renda.<br />

o que buscamos afirmar é que a formação profissional que se demanda<br />

para este horizonte em nada se reduz a adestramento e a cursinhos<br />

tópicos cujo escopo se reduza à formação do cidadão produtivo<br />

ou cidadão mínimo que internaliza a culpa por sua pouca escolaridade<br />

e sua situação de desempregado ou subempregado. Ao contrário,<br />

demanda um duplo e concomitante vínculo: de integração orgânica<br />

com a educação básica e com políticas de geração de emprego e<br />

renda. A expectativa social mais ampla é de que se possa avançar na<br />

afirmação da educação básica unitária e, portanto, não dualista, que<br />

articule cultura, conhecimento, tecnologia e trabalho como direito<br />

de todos e condição da cidadania e democracia efetivas.<br />

uma política que queira assegurar uma elevação de escolaridade<br />

com qualidade aos filhos da classe trabalhadora tem que encarar de<br />

frente o ensino noturno. Duas estratégias complementares se colocam<br />

como desafio. um esforço prioritário para que cresçam as matrículas<br />

no diurno, incluindo-se a política de bolsas de estudo ou de<br />

renda mínima daqueles jovens que necessitam comprovadamente<br />

do trabalho para se manterem. trata-se, ao mesmo tempo, de um<br />

direito destes jovens e um inequívoco investimento do mesmo se<br />

quisermos atingir um efetivo avanço das forças produtivas e a diminuição<br />

gradativa da dependência e vulnerabilidade científica tecnológica.<br />

A universalização do nível médio, neste sentido, é política de<br />

Estado estratégica. Considerando que o ensino noturno, no curto e<br />

médio prazo, permanecerá elevado, cabe uma política específica em<br />

termos de tempos, espaço, organização do processo pedagógico,<br />

condições de trabalho do professor e dos materiais pedagógicos.<br />

tendo pressuposto a educação básica, a expectativa social é de que<br />

se possa criar um Sistema ou Subsistema Nacional de Formação/Qualificação<br />

Profissional, articulando as múltiplas redes existentes 28 e vincu-<br />

28 Em recente estudo, manfredi (2003:143-44) cita sete redes que se ocupam da formação<br />

técnica e profissional: rede de ensino médio técnico (federal, estadual, municipal<br />

e privado); Sistema S; universidades públicas e privadas; escolas e centros<br />

mantidos por sindicatos de trabalhadores; centros e escolas mantidos por diferentes<br />

oNGs de cunho comunitário e religioso; por escolas e cursos mantidos por grupos<br />

empresariais; e, finalmente, cursos livres profissionalizantes.<br />

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lado às diferentes demandas do processo produtivo, à política de criação<br />

de emprego e renda e, no contexto que ainda nos encontramos,<br />

à política pública de educação de jovens e adultos. Para os mais de 60<br />

milhões de jovens e adultos que atingem no máximo dois anos de escolaridade,<br />

é crucial que se ampliem as possibilidades da continuidade<br />

da escolaridade básica atendendo à especificidade de sua realidade.<br />

uma política pública redistributiva e emancipatória de caráter<br />

mais universal, que teria extraordinário efeito social, econômico e<br />

ético, seria a retirada do mercado de trabalho, formal ou não-formal,<br />

de todas as crianças e jovens até a idade legal de conclusão do nível<br />

médio. Para que isso seja viável, há a necessidade de estipular-se<br />

uma renda mínima para estas crianças e jovens, sem o que elas não<br />

podem abandonar sua luta pela sobrevivência. Para jovens de 18 a<br />

24 anos, é fundamental que se garanta a possibilidade de continuidade<br />

de escolaridade até a conclusão do ensino médio. Para os que<br />

estão empregados, a exemplo de outros países, é fundamental que<br />

se criem condições de tempo, legalmente garantido, para o estudo<br />

e um apoio, em termos de bolsa de estudo, sem o que também não<br />

há condições de retorno à escola. Para os desempregados, seria necessária<br />

uma renda mínima e, concomitantemente, o implemento de<br />

uma política de primeiro emprego. Pelo tamanho do Pib do brasil,<br />

está claramente provado que há viabilidade econômica para estas<br />

políticas e que, portanto, a decisão de implementá-las é política.<br />

Por fim, as expectativas centram-se sobre a concepção de conhecimento,<br />

do projeto e relações pedagógicas tanto na educação básica<br />

dos trabalhadores quanto nos cursos de formação profissional. Aqui,<br />

o ponto crucial é ter-se clara a centralidade dos sujeitos na política<br />

pública de educação básica e de formação profissional. trata-se de superar<br />

uma visão abstrata, iluminista e racionalista, para uma compreensão<br />

histórica dos processos formativos e de construção de conhecimento,<br />

onde se articulam vida, cultura, ciência e conhecimento.<br />

A natureza da organização do processo pedagógico quanto aos<br />

procedimentos e estratégias (métodos, técnicas) de ensino e os materiais<br />

pedagógicos depende da concepção de conhecimento que<br />

se desenvolve nos processos formativos. Neste sentido, é crucial<br />

tanto na formação dos professores quanto dos sujeitos educandos<br />

afirmar o conhecimento científico, nas diferentes áreas, como um<br />

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processo de construção histórica que se diferencia do conhecimento<br />

espontâneo e do senso comum e se explicita mediante categorias<br />

e conceitos. Enquanto conhecimento histórico, sempre será relativo<br />

e aberto e, portanto, passível de ser reconstruído e ampliado. Para<br />

ser histórico, o conhecimento se constrói ou é apropriado dentro<br />

da relação entre a particularidade (espaço e tempo das mediações)<br />

e um grau crescente de universalidade (historicamente construída).<br />

Esta relação historicamente construída nos permite superar tanto a<br />

homogeneização abstrata que violenta as particularidades e, portanto,<br />

a complexidade e diversidade da realidade dos sujeitos, quanto a<br />

atomização do real em infinitas e desconexas particularidades.<br />

Aqui é fundamental ter-se um professor/educador capaz de “ler<br />

o mundo”, como tanto insistia Paulo Freire. o ponto crucial, neste<br />

particular, é ter-se como ponto de partida o conhecimento, as experiências<br />

e vivências dos sujeitos alunos. Este reconhecimento é que<br />

permite construir, no sentido mais profundo, um método ativo de<br />

conhecimento.<br />

trata-se, em suma, de construir uma expectativa de educação básica<br />

e de formação profissional que avance no sentido da construção<br />

de um projeto societário efetivamente democrático, onde os trabalhadores<br />

de forma autônoma produzam seus meios de vida no mais<br />

elevado nível possível e dilatem o tempo de trabalho livre. trata-se<br />

de não perder de vista o pensamento e a luta utópica.<br />

utopia que não significa não estar em nenhum lugar, mas estar em<br />

outro lugar. Lugar este de igualdade de condições de produção da<br />

vida em todas as suas dimensões, a começar pelas necessidades imperativas<br />

de reprodução da vida material. Sem a satisfação destas, as<br />

demais necessidades, sociais, culturais, estéticas, afetivas e estéticas,<br />

ficam comprometidas. No brasil temos uma profunda dívida social<br />

que necessita ser saldada no menor tempo possível. E esta tarefa,<br />

neste momento histórico, nos cabe.<br />

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toFFLER, A. A empresa flexível. Rio de Janeiro: Record, 1985.<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 44-75 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007<br />

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CoNFuSõES Em toRNo<br />

DA NoÇÃo DE PúbLiCo<br />

o CASo DA EDuCAÇÃo SuPERioR 1<br />

(PRoViDA PoR QuEm, PARA QuEm?)<br />

Ricardo barros<br />

mirela de Carvalho<br />

Samuel Franco<br />

Rosane mendonça<br />

Paulo tafner<br />

1 Embora o foco deste trabalho seja a educação superior, é importante observar que<br />

a discussão aqui apresentada se aplica, em alguma medida, também aos demais níveis<br />

de ensino.<br />

76<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 76-99 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007


A educação superior não pode ser considerada um bem público, embora<br />

muito se argumente nessa direção, uma vez que não satisfaz duas condições<br />

básicas: (a) o custo adicional por um indivíduo a mais se beneficiar deste<br />

bem é zero, e (b) é muito difícil, senão impossível, excluir uma pessoa que<br />

esteja interessada em se beneficiar deste bem. mas, se a educação superior<br />

não é um bem público, por que então subsidiá-la? Existem várias razões para<br />

justificar esse subsídio, sendo a mais comum as externalidades geradas por<br />

ela. Esse estudo tem como objetivo organizar a discussão em torno da provisão<br />

de educação superior, buscando contribuir para esclarecer algumas<br />

confusões freqüentes como, por exemplo, a necessidade de o setor público<br />

prover esse serviço.<br />

Superior education can not be considered a public good, although one can<br />

disagree with that once can not satisfied two basic conditions: (a) the additional<br />

cost of one more person to benefit from this good is zero, and (b) it<br />

is very difficult, if not impossible, to exclude a person who is interested in<br />

benefit himself from this good. but if superior education is not a public good<br />

why subsidize it? there are many reasons to justify this subsidy, with the externalities<br />

generated being the most common. However, even accepting the<br />

arguments for the State to subsidize it, that doesn’t mean that the Government<br />

has to produce it. it can use the private sector to provide the service.<br />

this study has the goal to organize the discussion around the provision of<br />

superior education, trying to contribute to clarify some frequency problems,<br />

such as the need of the public sector to provide this service.<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 76-99 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007<br />

77


78<br />

1. iNtRoDuÇÃo<br />

A educação superior não pode ser considerada um bem público,<br />

embora muito se argumente nessa direção, uma vez que não satisfaz<br />

duas condições básicas: (a) o custo adicional por um indivíduo a<br />

mais se beneficiar deste bem é zero, e (b) é muito difícil, senão impossível,<br />

excluir uma pessoa que esteja interessada em se beneficiar<br />

deste bem 2 . mas, se a educação superior não é um bem público, por<br />

que então subsidiá-la? Existem várias razões para justificar esse subsídio,<br />

sendo a mais comum as externalidades geradas por ela 3 . Entretanto,<br />

mesmo aceitando os argumentos para que o Estado a subsidie,<br />

isso não significa que ele tenha que produzi-la, podendo envolver o<br />

setor privado na provisão deste serviço.<br />

Apesar dos argumentos que defendem a produção da educação superior<br />

pelo Estado serem muito frágeis, esta é a situação que de fato<br />

prevalece hoje no país. o problema decorrente é que o Estado subsidia<br />

quase que exclusivamente as instituições públicas, gerando grande ineficiência<br />

no sistema. Além disso, porque o subsídio vai prioritariamente<br />

para as instituições públicas, acaba ocorrendo uma grande confusão<br />

entre os critérios para o acesso à universidade e os critérios para a gratuidade.<br />

Esse estudo tem como objetivo organizar a discussão em torno da<br />

provisão de educação superior, buscando contribuir para esclarecer<br />

algumas confusões freqüentes como, por exemplo, a necessidade<br />

de o setor público prover esse serviço. Para tanto, o trabalho encontra-se<br />

organizado em cinco seções, além desta introdução. A segunda<br />

seção faz uma breve descrição do desempenho educacional<br />

ao longo das últimas duas décadas mostrando que não houve aceleração<br />

na expansão do ensino superior como ocorreu no ensino<br />

fundamental e no médio. A Seção 3 apresenta algumas evidências<br />

dos benefícios privados da educação superior e discute qual a racionalidade<br />

para o estado subsidiar um bem com tamanho retorno<br />

2 Dias (2003) discute a idéia preconizada pela Conferência mundial sobre o Ensino<br />

Superior, ocorrida em Paris, em 1998, de que é possível manter a idéia de que o ensino<br />

superior é um bem público.<br />

3 Para uma discussão sobre a racionalidade para a intervenção governamental na provisão<br />

de educação, ver belfield (2000).<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 76-99 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007


privado. A Seção 4 entra, então, no cerne do trabalho, discutindo a<br />

questão da provisão destes serviços – qual a racionalidade para a<br />

provisão pública ou privada? A Seção 5 trata da separação entre o<br />

acesso à educação superior e o acesso à gratuidade na universidade,<br />

e, por fim, a Seção 6 tece as considerações finais, discutindo quem se<br />

beneficia e quem deveria se beneficiar da educação superior.<br />

2. o DESEmPENHo EDuCACioNAL Do bRASiL<br />

NAS úLtimAS DuAS DéCADAS<br />

Ao longo da última década 4 , os indicadores educacionais melhoraram<br />

de forma significativa. Conforme mostra a tabela 1, a melhoria<br />

ocorrida na maioria dos indicadores foi ao menos duas vezes mais<br />

intensa neste período do que na década anterior 5 .<br />

tabela 1: indicadores de freqüência e conclusão por série e faixa etária<br />

indicadores 1984 1995 2006 “Variação “Variação<br />

Velocidade relativa<br />

da década recente<br />

Porcentagem de crianças de<br />

84-95” 95-06” sobre a anterior<br />

12 anos que freqüentam<br />

Porcentagem de crianças de<br />

0,82 0,91 0,98 0,83 1,62 1,94<br />

12 anos que completaram a 4ª série<br />

Porcentagem de crianças de<br />

0,34 0,50 0,78 0,67 1,26 1,88<br />

15 anos que freqüentam<br />

Porcentagem de crianças de<br />

0,59 0,75 0,90 0,74 1,11 1,50<br />

15 anos que completaram a 4ª série<br />

Porcentagem de crianças de<br />

0,64 0,74 0,92 0,48 1,44 2,98<br />

15 anos que completaram a 8ª série<br />

Porcentagem de adolescentes de<br />

0,09 0,17 0,39 0,71 1,14 1,60<br />

18 anos que completaram a 8ª série<br />

Porcentagem de adolescentes de<br />

0,31 0,38 0,72 0,32 1,43 4,51<br />

18 anos que completaram o médio<br />

Porcentagem de jovens de<br />

0,07 0,09 0,28 0,33 1,34 4,05<br />

21 anos que completaram a 8ª série<br />

Porcentagem de jovens de<br />

0,38 0,44 0,75 0,26 1,35 5,24<br />

21 anos que completaram o médio 0,19 0,22 0,51 0,21 1,31 6,37<br />

Fonte: Estimativas produzidas com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 1984, 1995 e 2006.<br />

Nota: 1. Variação relativa = ln(i/(1-i)), onde i é o indicador<br />

4 Estamos nos referindo à “última década” como o período 1995-2006; 2006 é o último<br />

ano disponível da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad).<br />

5 Estamos considerando o período de 1984 a 1995.<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 76-99 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007<br />

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os avanços obtidos, entretanto, conforme já se sabe, foram muito<br />

mais quantitativos do que qualitativos. As taxas de repetência e retenção<br />

6 em todas as séries do ensino fundamental declinaram substancialmente,<br />

embora o rendimento escolar medido pelo Saeb 7 tenha<br />

permanecido inalterado. A expansão ocorrida no ensino médio<br />

foi ainda mais acelerada do que no fundamental, garantindo uma<br />

considerável redução na evasão ao final deste último nível. Conforme<br />

mostra o Gráfico 1, a taxa de retenção ao fim do ensino fundamental<br />

caiu cerca de 11 pontos percentuais nos últimos dez anos.<br />

Não somente a cobertura aumentou muito, mas também se reduziu<br />

a defasagem série-idade.<br />

A expansão da educação superior, no entanto, não tem sido capaz<br />

de acompanhar o progresso na educação média ao longo das<br />

últimas décadas 8 . Apesar de a matrícula nas universidades ter aumentado<br />

significativamente, a proporção de jovens que terminam<br />

o ensino médio e não têm acesso à universidade não diminuiu<br />

(veja Gráfico 1). Em 2006, cerca de 75% dos jovens entre 18 e 24<br />

anos que terminaram o ensino médio não ingressaram na universidade.<br />

Em 1982, essa porcentagem era quase 6 pontos menor, indicando<br />

que o gargalo educacional ao fim desse ciclo vem aumentando<br />

no país.<br />

6 Estimamos a taxa de retenção como a proporção dos indivíduos com pelo menos x<br />

anos de estudo sobre aqueles que têm no máximo x anos de estudo.<br />

7 Sistema Nacional de Avaliação da Educação básica do mEC.<br />

8 Para uma interessante análise recente da expansão do ensino superior, seus determinantes<br />

e implicações, ver Schwartzman (2000).<br />

80<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 76-99 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007


Gráfico 1: Evolução da taxa de retenção ao fim do fundamental<br />

e do médio para jovens de 18 a 24 anos<br />

Fonte: Estimativas produzidas com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 1982 a 2006.<br />

Recentemente, entretanto, observa-se um crescimento acentuado<br />

da matrícula inicial na educação superior. o número de vagas para a<br />

universidade tem crescido mais de 15% ao ano, e a matrícula inicial,<br />

que era ligeiramente inferior a 1/3 da matrícula total em 1999, passou<br />

para quase cerca da metade em 2005 (ver Gráfico 2).<br />

A matrícula inicial era de 1,7 milhão em 2005 e, portanto, muito<br />

similar ao número de jovens que terminam o ensino médio a cada<br />

ano, 1,8 milhão 9 . Apesar disso, apenas cerca de 37% dos jovens que<br />

completaram o ensino médio freqüentam ou já freqüentaram a universidade<br />

10 . Como explicar este aparente paradoxo?<br />

A explicação encontra-se no desbalanceamento entre fluxo e estoque.<br />

Se, por um lado, é verdade que o ensino médio gradua a cada<br />

ano apenas 1,8 milhão de jovens que, dada a oferta atual, poderiam<br />

quase todos encontrar uma vaga na universidade, por outro lado,<br />

tem-se que considerar que a demanda por educação superior não se<br />

limita aos que se graduaram no ensino médio no ano anterior. uma<br />

9 Valor médio obtido com base nas informações das Sinopses Estatísticas da Educação<br />

básica do mEC de 1995 a 2005.<br />

10 Estimativa obtida com base nas informações da Pesquisa Nacional por Amostra de<br />

Domicílios de 2006.<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 76-99 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007<br />

81


vez que historicamente a oferta de vagas na universidade foi sempre<br />

muito limitada, o país conta hoje com mais de 27 milhões de pessoas<br />

(47% com até 30 anos de idade) com educação média completa que<br />

não freqüentam nem nunca freqüentaram a educação superior 11 .<br />

82<br />

Gráfico 2: Evolução temporal do número de concluintes do ensino médio,<br />

número de vagas e de matrículas para o primeiro ano do ensino superior<br />

Fonte: Sinopses Estatísticas da Educação Superior de 1995 a 2005 e Sinopses Estatísticas da Educação básica<br />

de 1995 a 2005.<br />

Assim, embora o número de vagas hoje oferecidas seja suficiente<br />

para atender ao fluxo corrente de graduados do ensino médio 12 ,<br />

a insuficiência de oferta ao longo das últimas décadas levou a um<br />

substancial estoque de demanda não atendida. Em conjunto, a demanda<br />

total é cerca de 14 vezes o número de graduados a cada ano<br />

no ensino médio. Aí está, portanto, o porquê de apenas 37% deles<br />

terem acesso efetivo à educação superior, mesmo quando a disponibilidade<br />

de vagas já é muito próxima.<br />

11 Estimativa obtida com base nas informações da Pesquisa Nacional por Amostra de<br />

Domicílios de 2006.<br />

12 importante lembrar que, apesar de a oferta hoje ser suficiente para atender todos<br />

que terminam o ensino médio, apenas uma parcela consegue concluir esse nível.<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 76-99 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007


Além disso, vale ressaltar que uma coorte de jovens no brasil conta<br />

com cerca de 3,5 milhões de jovens. Se o objetivo é garantir o acesso<br />

à universidade a ¾ destes jovens 13 , então, uma vez acomodado o estoque<br />

de demanda não atendida nas últimas décadas, as vagas oferecidas<br />

na universidade deveriam estabilizar em torno de 2,7 milhões e,<br />

portanto, cerca de 60% maior que o atualmente disponível 14 .<br />

Em suma, a despeito da acelerada expansão na educação superior<br />

ao longo dos últimos anos, seria necessário que este passo acelerado<br />

continuasse ao longo de toda a próxima década para que, ao menos<br />

do ponto de vista quantitativo, a oferta de educação superior fosse<br />

equacionada. Na medida em que (a) o elevado estoque de demanda<br />

não atendida no passado concorre com o fluxo atual de egressos do<br />

ensino médio e (b) apenas uma parcela dos que freqüentam o ensino<br />

médio o conclui, para que todos fossem atendidos seria necessário<br />

que a oferta de vagas superasse por vários anos o seu valor histórico.<br />

Dado que a expansão da educação superior envolve muitas vezes<br />

investimentos irreversíveis, seja em infra-estrutura, seja na qualificação<br />

dos recursos humanos, não é evidente como o sistema atenderia<br />

esse elevado componente transitório da demanda atual. Seria viável<br />

expandir a oferta apenas temporariamente? o setor privado teria os<br />

incentivos e a capacidade para atender a esta demanda transitória?<br />

3. bENEFíCio PRiVADo, bEm PúbLiCo E ExtERNALiDADES<br />

Parece existirem poucas dúvidas de que a educação e, em particular,<br />

a educação superior tem impacto sobre produtividade, empregabilidade,<br />

remuneração, condições de saúde, entre outros benefícios.<br />

De maior importância para o argumento deste estudo, não parece<br />

haver dúvidas de que os benefícios privadamente apropriados da<br />

educação superior são substanciais.<br />

13 Essa é apenas uma meta tomando como base a proporção de jovens que pertencem<br />

à elite na região do Sul do brasil que tem acesso à universidade.<br />

14 Pacheco e Ristoff (2004) discutem em que medida o brasil conseguiria atingir a<br />

meta de matricular 30% da população entre 18 e 24 anos no ensino superior e de<br />

expandir a matrícula no setor público para 40% até 2010. os autores concluem que<br />

as matrículas nas instituições federais e estaduais devem se expandir, em especial no<br />

turno da noite, uma vez que “o setor privado tem pouca chance de êxito devido às<br />

dificuldades financeiras da população potencial de estudantes”.<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 76-99 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007<br />

83


De fato, como mostra a tabela 2, a remuneração dos trabalhadores<br />

com educação superior é cerca de 250% maior do que a remuneração<br />

média da força de trabalho brasileira, e cerca de 64% dos indivíduos<br />

com educação superior vivem entre os 10% mais ricos do país.<br />

Enquanto 71% dos indivíduos com educação superior vivem em domicílios<br />

que possuem computador, apenas 23% da população brasileira<br />

se encontram nesta situação. Quase 78% dos domicílios onde<br />

vivem aqueles com educação superior têm dois ou mais banheiros,<br />

mas apenas 22% da população brasileira vivem em domicílios com<br />

essas condições.<br />

tabela 2: benefícios privados da educação superior<br />

indicadores selecionados brasil Pessoas com<br />

educação superior<br />

Remuneração dos trabalhadores (em reais por mês) 784 2777<br />

Porcentagem que vive entre os 10% mais ricos 10,0 63,6<br />

Porcentagem que vive em domicílios com computador 23,0 70,9<br />

Porcentagem que vive em domicílios com 2 ou mais banheiros 21,8 77,4<br />

Fonte: Estimativas produzidas com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2006.<br />

Estes indicadores revelam inequivocamente que pessoas com<br />

educação superior têm condições de vida muito acima da média nacional.<br />

Evidentemente que não se pode afirmar que estas melhores<br />

condições de vida decorram diretamente da educação superior. é<br />

possível que aqueles com educação superior tenham herdado parte<br />

de sua riqueza, ou que sejam mais talentosos. Nestes casos, suas<br />

condições de vida seriam bem acima da média mesmo se não tivessem<br />

tido acesso à educação superior. Contudo, a elevada demanda<br />

por educação superior existente indica que boa parte destas vantagens<br />

resulta, de fato, do acesso à educação superior.<br />

Algumas vezes se argumenta que a educação, em particular a<br />

educação superior, é um bem público 15 . Evidentemente que esta argumentação<br />

é incorreta. Para que se possa caracterizar a educação<br />

superior como um bem público, esta deveria satisfazer duas condições:<br />

(a) o custo adicional por um indivíduo a mais se beneficiar<br />

15 Para a definição clássica de bem público, ver Stiglitz (1998).<br />

84<br />

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deste bem é zero, e (b) é muito difícil, senão impossível, excluir uma<br />

pessoa que esteja interessada em se beneficiar deste bem. Entretanto,<br />

como o vestibular deixa muito claro, o atendimento a uns impede<br />

o atendimento a outros, e as vagas para ingressar na universidade<br />

são limitadas de tal forma que alguns podem ser excluídos. De fato,<br />

um serviço para o qual existe um mercado onde as pessoas pagam<br />

para serem atendidas não poderia ser caracterizado como um bem<br />

público, por mais que o setor público participe da provisão destes<br />

serviços e atue na sua regulação. No caso de um bem público, como<br />

ninguém pode ser excluído, não há incentivos para que as pessoas<br />

paguem por esse bem.<br />

A importância das externalidades geradas pela educação superior,<br />

isto é, a diferença entre os ganhos sociais e privados, é uma questão<br />

fundamental para a gestão da política pública, uma vez que é a sua<br />

existência, em grande medida, que forneceria a justificativa para que<br />

a sociedade subsidiasse a sua provisão. muito se argumenta e poderia<br />

se argumentar corretamente sobre as externalidades geradas<br />

pela educação superior, mas, em realidade, pouco se sabe sobre a<br />

sua magnitude e importância, embora todas as estimativas disponíveis<br />

indiquem a sua existência. Em particular, não existe evidência de<br />

que os ganhos da educação superior não sejam, em grande medida,<br />

privadamente apropriados.<br />

No entanto, mesmo a educação superior não sendo um bem público<br />

e nem responsável por gerar consideráveis externalidades,<br />

podem existir razões para subsidiá-la. Como ela é um investimento,<br />

imperfeições existentes no mercado de crédito podem recomendar<br />

que, para garantir a igualdade de oportunidades, a educação superior<br />

seja subsidiada para os pobres ou mesmo para todos que a desejem.<br />

Existem, entretanto, algumas dificuldades com a idéia de subsídios<br />

à educação superior. uma delas é o fato de que, como os retornos<br />

privados são elevados, mais recomendável que um subsídio seria a<br />

garantia de crédito. Neste caso, todos poderiam ter acesso sem a<br />

necessidade de elevar o gasto público ou realizar transferências para<br />

as famílias que, invariavelmente, se tornam as mais ricas.<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 76-99 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007<br />

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86<br />

4. PRoViSÃo PúbLiCA VERSuS PRiVADA<br />

Para aqueles que se beneficiam da educação superior, o que importa<br />

é a qualidade da educação recebida e o seu custo privado. Do<br />

ponto de vista do beneficiário, dada uma qualidade e um custo, pouco<br />

importa se a provisão do serviço é pública ou privada. Portanto,<br />

qual a racionalidade para a provisão pública? Se o setor público quer<br />

subsidiar a educação superior de alguns, então, por que ele não se<br />

limita a pagar parcialmente ou integralmente pelos serviços oferecidos<br />

privadamente àqueles que deseja beneficiar? A seguir, buscamos<br />

discorrer sobre a racionalidade para a provisão pública e privada da<br />

educação superior.<br />

4.1 PRoViSÃo PúbLiCA<br />

Existem algumas justificativas para a participação do setor público<br />

na produção da educação superior, e o que todas têm em comum é<br />

a necessidade de corrigir falhas de mercado. Nenhuma, entretanto,<br />

parece muito convincente. A primeira seria a necessidade de controlar<br />

o custo e a qualidade dos serviços oferecidos. Se o governo<br />

necessita controlar o custo e a qualidade, pode ser muito útil que ele<br />

próprio participe da produção, pois desta forma ele terá melhores<br />

informações sobre todo o processo produtivo. No caso da educação<br />

superior, esta justificativa é discutível, em primeiro lugar, porque o<br />

mercado é bastante competitivo e, portanto, existe pouca racionalidade<br />

para regular o custo e a qualidade. Em segundo lugar, mesmo<br />

que se deseje regular essas dimensões do processo produtivo,<br />

ambas podem ser facilmente mensuráveis, em particular, porque no<br />

caso da educação superior esse processo é bastante transparente e<br />

a qualidade é relativamente de fácil mensuração. Existe no país uma<br />

tradição ampla para a ordenação de instituições de ensino superior<br />

segundo a qualidade e a excelência dos serviços que oferece.<br />

uma segunda justificativa seria a ausência de interesse do setor<br />

privado pelo setor. Esta justificativa no brasil encontra pouca fundamentação,<br />

uma vez que a participação do setor privado é muito<br />

maior que a do setor público e crescente. No brasil, o investimento<br />

privado no setor parece sempre ter sido limitado por regulamentações<br />

e impedimentos legais, mas jamais por falta de interesse.<br />

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Por fim, uma justificativa comumente apontada para a participação do<br />

setor público é a qualidade e a excelência. Apenas o setor público teria<br />

condições de prover serviços realmente de qualidade e em áreas como<br />

medicina e engenharia, onde o custo pode ser muito elevado. A experiência<br />

internacional e crescentemente também a nacional indicam que<br />

o setor privado é capaz de oferecer um amplo leque de serviços, indo<br />

desde cursos noturnos de baixo custo e qualidade limitada até cursos de<br />

medicina e engenharia em tempo integral e de altíssima qualidade.<br />

Quando cursos em determinadas áreas, como medicina, são muito<br />

custosos e geram grandes externalidades, é necessário subsidiá-los<br />

para que a demanda seja socialmente satisfatória. A necessidade de<br />

subsidiar, entretanto, não implica que a produção tenha que ser estatal.<br />

o subsídio deveria ir para a produção do serviço independentemente<br />

de a produção ser pública ou privada.<br />

Ainda mais difícil de justificar é a opção por subsidiar apenas os<br />

serviços oferecidos pelo setor público. Em princípio, o que justifica<br />

o subsídio à educação é a externalidade ou a situação de pobreza do<br />

beneficiário, não importando se a educação está sendo adquirida<br />

numa universidade pública ou privada.<br />

4.2 o SEtoR PRiVADo HoJE<br />

Se, por um lado, a racionalidade para a provisão pública de educação<br />

superior é limitada, por outro lado o monopólio público na<br />

provisão de educação superior não parece ter qualquer justificativa.<br />

No brasil, a participação privada é elevada e crescente, tendo passado<br />

de 56% em 1994 para 72% das matrículas totais em 2004, e de 63%<br />

para 78% no caso das matrículas iniciais 16 .<br />

Dada a qualidade dos serviços públicos e a capacidade de expansão<br />

do setor privado, o sucesso da educação superior vai depender<br />

do estímulo a uma concorrência produtiva entre os dois setores 17 . é<br />

fundamental que o setor privado seja capaz de elevar continuamente<br />

a qualidade dos serviços oferecidos e que o setor público recupere<br />

sua capacidade de investimento e expansão.<br />

16 Ver mEC (2005). Sinopse Estatística da Educação básica.<br />

17 Para uma discussão a respeito de como os recursos públicos podem ser utilizados<br />

para promover a educação no setor privado, ver Levin (2000).<br />

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o sistema atual, onde acesso implica necessariamente gratuidade,<br />

limita a capacidade de concorrência do setor privado com o setor<br />

público. Neste caso, mesmo que a qualidade nestes dois setores<br />

seja igual, todos que tiverem acesso à universidade pública, em<br />

particular os melhores alunos, vão preferi-la, dado que é gratuita.<br />

igual qualidade a um menor custo, quem preferiria o setor privado?<br />

No sistema atual, a única forma de o setor privado competir<br />

com o público e atrair os melhores alunos é oferecer uma educação<br />

de maior qualidade ou maiores conveniências em termos de<br />

horário, local e especialidades. o setor privado necessita oferecer<br />

serviços de qualidade muito mais elevada para poder atrair alunos<br />

com acesso ao setor público, ou seja, o diferencial de qualidade<br />

tem que compensar o diferencial de custo. Evidentemente que a<br />

maior eficiência do setor público torna a missão do setor privado<br />

quase impossível. Como competir com um concorrente que tem<br />

seu produto subsidiado? todos que têm a oportunidade, e aí estão<br />

praticamente todos os melhores estudantes, acabam por escolher<br />

o setor que é subsidiado.<br />

outra limitação importante causada pela restrição dos subsídios<br />

aos serviços publicamente oferecidos é o uso da infra-estrutura privada<br />

para o atendimento aos mais pobres. No sistema atual, como<br />

os recursos públicos beneficiam apenas as universidades públicas,<br />

aqueles que buscam atendimento gratuito só podem ser atendidos<br />

por estas instituições. uma pessoa pobre que só tenha condições de<br />

freqüentar a universidade quando subsidiada teria como sua única<br />

opção ser admitida numa universidade pública.<br />

Note que esta não é a forma como funciona o sistema de saúde no<br />

brasil, onde o SuS garante ao beneficiário a opção de escolher entre<br />

instituições públicas ou privadas devidamente cadastradas e os<br />

recursos públicos fluem para as instituições de acordo com a população<br />

atendida e o tipo de serviço prestado, independentemente de<br />

serem públicas ou privadas. o Pro-uni é, em certa medida, um passo<br />

nesta direção, onde o setor privado se compromete a dar bolsas de<br />

estudo para estudantes de famílias relativamente pobres selecionadas<br />

pelo setor público. Na medida em que estas bolsas representam<br />

renúncia fiscal, recursos públicos estão sendo direcionados para o<br />

setor privado. Como o número de bolsas é predeterminado por ins-<br />

88<br />

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tituição, os recursos ainda continuam atrelados às instituições e não<br />

aos beneficiários.<br />

Na medida em que os subsídios públicos sejam outorgados aos<br />

alunos independentemente da escolha de uma instituição pública<br />

ou privada, e na medida em que a disponibilidade de crédito educativo<br />

se expande, não apenas os recursos públicos vão fluir em maior<br />

quantidade para a universidade privada como, também, ela poderá<br />

competir em igualdade de condições com a pública. Neste caso, o<br />

custo percebido por qualquer aluno com opção de acesso aos dois<br />

setores será o mesmo. Se o grau de subsídio estiver atrelado ao aluno<br />

e não à instituição, este vai sempre optar pelo serviço de melhor<br />

qualidade ou o mais adequado aos seus interesses e necessidades.<br />

Por outro lado, o fim da gratuidade da universidade pública e a expansão<br />

do crédito educativo podem expandir a disponibilidade de<br />

recursos para a universidade pública e lhe dar capacidade de investimento<br />

e expansão da oferta de serviços.<br />

5. o PRoCESSo DE SELEÇÃo: ACESSo E GRAtuiDADE<br />

Na medida em que não é possível garantir acesso universal gratuito,<br />

isto é, na medida em que a disponibilidade de vagas e os recursos<br />

públicos são limitados, a seleção daqueles que terão acesso à educação<br />

superior e, dentre estes, aqueles que terão acesso gratuito, é<br />

fundamental para garantir a efetividade e a eqüidade no sistema. é<br />

fundamental separar estes dois processos seletivos. Em princípio, os<br />

critérios para garantir prioridade no acesso deveriam ser distintos<br />

daqueles para a gratuidade.<br />

No caso da universidade pública brasileira, estes dois processos<br />

foram desnecessariamente unificados. Aqueles que têm acesso têm<br />

automaticamente a gratuidade. Curiosamente, é no caso da educação<br />

superior privada, onde esses dois processos são tratados separadamente.<br />

Dentre os estudantes selecionados, alguns recebem uma<br />

bolsa de estudo da própria instituição, outros recebem crédito público<br />

subsidiado, e outros pagam integralmente pelos serviços.<br />

uma vez reconhecida a necessidade de distinção entre estes dois<br />

processos de seleção, resta discutir os critérios que deveriam ser utilizados<br />

em cada caso. Este é o objetivo das próximas subseções.<br />

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89


90<br />

5.1 CRitéRioS DE ACESSo<br />

Na medida em que não existem vagas no ensino superior para<br />

atender todos os que desejam freqüentá-lo, como decidir quem<br />

deve ter prioridade? Como o custo do atendimento é essencialmente<br />

independente do beneficiário, aqueles cujo atendimento<br />

leva ao maior benefício social deveriam ter prioridade. Portanto,<br />

o importante não é o quanto um indivíduo se beneficia privadamente<br />

da educação superior, mas o benefício social gerado. Assim,<br />

na medida em que as externalidades da educação são maiores nas<br />

áreas pobres e no interior do país, deveria-se dar prioridade a candidatos<br />

originários destas áreas, caso estes tenham maior probabilidade<br />

de retornar a elas.<br />

é também importante ressaltar que o benefício da educação superior<br />

não é igual ao seu valor adicionado. Este benefício deve ser<br />

medido pela diferença entre o valor adicionado da educação superior<br />

e o benefício líquido da melhor alternativa disponível. Assim,<br />

mesmo quando o valor adicionado é elevado, o benefício da<br />

educação superior pode ser limitado, caso na impossibilidade de<br />

freqüentá-la o candidato tivesse uma alternativa que lhe garantisse<br />

benefícios similares. Por exemplo, para um jovem que pudesse<br />

obter crédito subsidiado para ir à universidade ou para abrir um<br />

pequeno negócio, o benefício líquido da universidade seria o valor<br />

adicionado descontado o benefício que o pequeno negócio lhe<br />

traria. Evidentemente que nesse exemplo estamos considerando as<br />

duas alternativas como excludentes. Caso fosse possível ir à universidade<br />

e depois abrir o pequeno negócio, então, abrir o negócio<br />

não seria uma alternativa à universidade. Nesse caso, a alternativa<br />

seria apenas abrir um negócio mais cedo, e, portanto, o benefício<br />

dependeria de que diferença faria o momento em que o negócio é<br />

aberto. A seguir, trazemos algumas reflexões sobre os critérios de<br />

acesso à educação superior.<br />

5.1.1 ótimo SoCiAL E mERitoCRACiA<br />

Seria meritocrático um sistema de prioridade baseado no benefício<br />

social? Na medida em que o benefício está relacionado ao que vai<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 76-99 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007


acontecer no futuro e o mérito está relacionado com o que foi feito no<br />

passado, a prioridade baseada no benefício líquido não seria uma regra<br />

intrinsecamente meritocrática. é evidente que, na medida em que o benefício<br />

do acesso à universidade esteja altamente correlacionado com<br />

o desempenho educacional passado, pode ser que operacionalmente<br />

a melhor forma de priorizar o benefício social líquido seja priorizar<br />

o desempenho escolar passado. é importante reconhecer que, neste<br />

caso, a natureza meritocrática do processo é apenas instrumental.<br />

A impossibilidade de se medir o impacto futuro do acesso nos<br />

obriga necessariamente, do ponto de vista operacional, a conceber<br />

sistemas de seleção baseados no passado. A questão é, portanto, que<br />

aspectos do passado são mais indicativos do impacto que o acesso à<br />

educação superior terá no futuro. Em que medida o desempenho no<br />

Enem (Exame Nacional do Ensino médio) ou no vestibular, em geral,<br />

é um bom indicador dos benefícios futuros? Na medida em que o<br />

benefício social da educação superior é determinado pelo nível de<br />

conhecimento na entrada, e na medida em que o Enem ou os vestibulares<br />

medem adequadamente este nível de conhecimento, esses<br />

instrumentos servirão como excelentes critérios de seleção.<br />

Entretanto, pode ser que o benefício da educação superior dependa<br />

muito mais da velocidade com que uma pessoa consegue<br />

acumular conhecimentos do que propriamente do seu nível atual. é<br />

evidente que se todos partiram do mesmo ponto e dedicaram igual<br />

esforço, então, diferenças atuais de conhecimento identificam diferenças<br />

de velocidade na sua acumulação. Neste caso, o Enem continuaria<br />

a ser um excelente critério para seleção.<br />

5.1.2 AmbiENtE FAmiLiAR, SituAÇÃo iNiCiAL E tAxA DE ACumuLAÇÃo<br />

o que dizer do Enem, entretanto, se os pontos de partida forem distintos,<br />

ou se a hipótese da continuidade do esforço não for verdadeira.<br />

Quando o que importa é a taxa de acumulação de conhecimento, o<br />

ambiente familiar pode ser importante e deveria ser levado em consideração<br />

explicitamente no processo de seleção. Dois casos polares merecem<br />

particular atenção. Por um lado, podemos ter uma situação onde<br />

diferenças de ambiente familiar têm um impacto substancial sobre as<br />

condições iniciais, mas não sobre a taxa de acumulação. Neste caso, se<br />

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91


dois candidatos provenientes de ambientes familiares muito distintos<br />

têm níveis de conhecimento similares, aquele com pior ambiente familiar<br />

terá certamente uma taxa de acumulação muito maior, mesmo que<br />

atualmente ainda apresente um nível de conhecimento inferior. Neste<br />

caso, se o objetivo é priorizar os candidatos com maior taxa de acumulação<br />

de conhecimento, o processo de seleção deve ajustar o nível de<br />

conhecimento atual por diferenças no ambiente familiar.<br />

Por outro lado, podemos ter uma situação (talvez a mais provável)<br />

em que o ambiente familiar, em vez de diferenciar as condições<br />

iniciais, tem impacto sobre a taxa de acumulação de conhecimento.<br />

Assim, crianças pobres cujos pais têm baixa escolaridade acumulam<br />

conhecimento mais lentamente. Neste caso, se todos partiram das<br />

mesmas condições iniciais, diferenças no nível atual refletem diferenças<br />

na taxa de acumulação e, portanto, o Enem e processos seletivos<br />

similares podem ser ideais. Neste caso, o sistema educacional<br />

certamente perpetua as desigualdades existentes. Entretanto, a solução<br />

não estaria em mudar o sistema de seleção, e sim o processo<br />

educacional anterior (educação básica), de tal forma que crianças e<br />

adolescentes de diferentes ambientes familiares tivessem as mesmas<br />

chances de acumular conhecimento. Sem mudanças no sistema,<br />

o impacto social da educação superior sobre candidatos oriundos<br />

de ambientes familiares mais pobres será inferior ao impacto sobre<br />

candidatos cujos ambientes familiares são mais ricos, levando a que<br />

o uso da educação superior para reduzir desigualdade, neste caso,<br />

tenha importantes custos para a eficiência.<br />

92<br />

5.1.3 SubStitutibiLiDADE Do ESFoRÇo<br />

mesmo entre candidatos oriundos de ambientes familiares similares,<br />

o uso de critérios como o Enem pode não ser adequado quando<br />

existem importantes diferenças de esforço, e o critério ideal é a taxa<br />

de acumulação, e não o nível de conhecimento. Por exemplo, se por<br />

motivos médicos ou por falta de serviços educacionais um adolescente<br />

não acumulou conhecimento durante parte de sua vida, seu<br />

nível atual de conhecimento não é um bom indicador de sua capacidade<br />

de acumular conhecimento. Na medida em que estes eventos<br />

forem superados, um candidato com pior desempenho no Enem<br />

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pode ter maior taxa de acumulação, e daí um maior benefício social<br />

de freqüentar a educação superior. Da mesma forma, alguém que<br />

estudou três anos consecutivos para o vestibular pode ter um maior<br />

conhecimento no momento do vestibular do que um outro candidato<br />

bem mais jovem e com maior potencial para a educação superior.<br />

Deve-se levar em consideração o número de tentativas? Em alguns<br />

países como a França, por exemplo, existe um número máximo de<br />

tentativas permitidas.<br />

Em geral, o princípio que guia o processo seletivo para a educação<br />

superior é o da complementariedade entre os níveis. Acredita-se que<br />

um bom desempenho nos níveis inferiores seja um bom indicador do<br />

desempenho nos níveis superiores. Assim, quanto melhor for o aluno<br />

no nível anterior, maior o impacto no nível subseqüente. Entretanto,<br />

pode existir alguma dose de substituição entre os níveis. o impacto sobre<br />

os alunos não tão bons nos níveis inferiores pode ser maior do que<br />

sobre os melhores alunos se existe a possibilidade de recuperação.<br />

5.1.4 CRitéRio DE ACESSo E iNCENtiVoS<br />

Na medida em que existem externalidades associadas à educação<br />

em todos os níveis, é necessário subsidiá-la, aumentando os incentivos<br />

das famílias para investirem em educação. Na medida em que<br />

estes subsídios são insuficientes para estimular a demanda por educação,<br />

é necessário apelar para outros incentivos. Como tipicamente<br />

os retornos privados da educação são maiores nos níveis mais elevados,<br />

se o acesso aos níveis subseqüentes depender do desempenho<br />

nos níveis anteriores, o próprio processo de seleção pode incentivar<br />

o esforço das crianças e dos jovens.<br />

Como o nível superior é aquele com maiores retornos privados<br />

e menor disponibilidade de vagas, o processo de seleção adotado<br />

pode ter grandes conseqüências sobre o esforço educacional dos<br />

candidatos nas etapas educacionais anteriores. De fato, existem poucas<br />

dúvidas de que o vestibular estimula o desempenho no médio,<br />

embora este estímulo não deva ser universal. Aqueles com poucas<br />

chances devem se sentir desestimulados e reduzir seu esforço.<br />

De qualquer forma, não se pode esquecer que o processo de seleção<br />

para o ensino superior tem conseqüências sobre o desempenho<br />

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93


dos candidatos nos níveis anteriores que devem ser levados em consideração<br />

no seu desenho. muito da discussão sobre o sistema de<br />

cotas é exatamente sobre os incentivos e impactos que poderia ter<br />

sobre o desempenho educacional dos grupos que busca favorecer.<br />

mesmo que todos os candidatos fossem gerar o mesmo benefício<br />

social tendo acesso à educação superior, poderíamos querer um<br />

sistema meritocrático de seleção que estimule os candidatos a elevarem<br />

seu esforço educacional na educação fundamental e principalmente<br />

na média.<br />

Se o conhecimento fosse observável e dispensasse credenciais, se<br />

todos os benefícios da educação fossem privados, e se as famílias,<br />

crianças e adolescentes fossem racionais e não míopes, não haveria<br />

necessidade de se estimular o esforço educacional. os estudantes se<br />

esforçariam porque perceberiam que vale a pena ou porque perceberiam<br />

que precisam se esforçar para terem o reconhecimento que<br />

desejam. Entretanto, se alguma destas três condições não for verificada,<br />

é necessário incentivar o esforço. Quando o conhecimento não é<br />

perfeitamente observável, cada instituição educacional necessita estimular<br />

seus alunos para que as credenciais outorgadas pela instituição<br />

tenham valor e sejam reconhecidas publicamente, em particular, no<br />

mercado de trabalho e pelas instituições de nível superior. Na medida<br />

em que as famílias são míopes, estímulos adicionais vão elevar o esforço<br />

e o bem-estar de seus membros. De maior importância para este estudo,<br />

a presença de externalidades leva a que nem todos os benefícios<br />

da educação sejam privados e, portanto, torne-se necessário estimular<br />

o esforço privado para que se atinja o valor socialmente desejado.<br />

Em suma, via de regra, o processo de seleção tem um duplo papel.<br />

Por um lado, deve buscar priorizar aqueles que maior benefício<br />

social vão gerar, e, por outro, serve para incentivar os candidatos a<br />

elevarem seu esforço educacional. é evidente que um único instrumento<br />

é incapaz mesmo se toda a informação necessária estivesse<br />

disponível de cumprir as duas tarefas com perfeição. o ideal seria<br />

subsidiar a educação o suficiente para garantir o esforço adequado,<br />

e utilizar o processo de seleção para a universidade apenas para maximizar<br />

o seu benefício social.<br />

94<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 76-99 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007


5.2 CRitéRioS DE GRAtuiDADE<br />

Na medida em que o benefício da educação não é integralmente<br />

apropriado privadamente, existem externalidades e, por conseguinte,<br />

é necessário subsidiar a educação superior. Vale ressaltar que,<br />

neste caso, o subsídio deve ser universal e não restrito a universidades<br />

públicas. Em princípio, as universidades privadas geram tantas<br />

externalidades quanto as públicas.<br />

Na medida em que a magnitude das externalidades varia com o<br />

tipo de curso, profissão ou tipo de aluno, o grau de subsídio deve<br />

seguir o mesmo padrão. Dadas duas profissões com o mesmo valor<br />

social, aquela em que uma menor proporção deste valor é privadamente<br />

apropriada deveria ser a mais subsidiada.<br />

À parte das externalidades, imperfeições no mercado de crédito<br />

podem requerer também a participação governamental no financiamento<br />

da educação superior. Educação superior é um investimento<br />

elevado para qualquer família. Por isso requer a disponibilidade de<br />

poupança ou de crédito. A falta de capacidade de poupança própria<br />

e a existência de um mercado de crédito imperfeito podem levar as<br />

famílias a subinvestirem em educação superior.<br />

Vale ressaltar que o elevado custo da educação superior não é uma<br />

justificativa para gratuidade universal, da mesma forma que o alto<br />

custo de um automóvel ou de uma casa não é justificativa para a<br />

gratuidade na sua aquisição. o fato de as famílias mais ricas terem<br />

dificuldade de financiar a educação superior de seus filhos a partir<br />

de sua renda corrente apenas indica que elas devem poupar recursos<br />

para este fim, da mesma forma como o fazem quando desejam<br />

comprar uma casa ou um automóvel. Nos países onde a educação<br />

superior não é gratuita, verifica-se que as famílias mais ricas começam<br />

a poupar desde cedo com este fim específico.<br />

boa parte da população, entretanto, não teria condições de poupar<br />

o suficiente para financiar a educação superior de seus filhos. Neste<br />

caso, a primeira opção é o crédito. Entretanto, como o mercado de<br />

crédito para investimentos em capital humano tende a ser imperfeito<br />

ou inexistente, é fundamental contar com recursos ou garantias públicas<br />

para o crédito educacional. Fora o subsídio motivado pela presença<br />

de externalidades, nenhum subsídio adicional seria necessário.<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 76-99 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007<br />

95


Em princípio, mesmo as famílias mais pobres não necessitam de nada<br />

mais do que a garantia de acesso a crédito. Qualquer subsídio adicional<br />

serviria apenas como uma bem-vinda redistribuição de renda. uma<br />

transferência para os mais pobres seria útil para reduzir a desigualdade,<br />

mas irrelevante para o bom funcionamento do sistema educacional.<br />

96<br />

6. CoNSiDERAÇõES FiNAiS: AFiNAL, QuEm SE bENEFiCiA E<br />

QuEm DEVERiA SE bENEFiCiAR DA EDuCAÇÃo SuPERioR?<br />

ter acesso à educação superior já é um grande privilégio, na medida<br />

em que eleva a renda, melhora as condições de vida e reduz a taxa<br />

de mortalidade, entre outros benefícios. ter acesso subsidiado e a<br />

uma universidade de melhor qualidade é, portanto, um triplo privilégio,<br />

uma vez que o indivíduo se apropria privadamente dos benefícios<br />

de um serviço de alta qualidade sem a necessidade de incorrer<br />

em todos os custos. Como o custo de uma universidade privada, em<br />

geral, é superior a R$ 20 mil por aluno, o valor do acesso às universidades<br />

públicas deve superar este valor, visto que os serviços são<br />

supostamente de melhor qualidade. trata-se, portanto, de um benefício<br />

substancial. Em valores mensais, equivale a uma transferência<br />

superior à renda per capita do país. um jovem que vivesse apenas<br />

com esta renda estaria entre os 25% mais ricos da população.<br />

Dada a magnitude do benefício e uma racionalidade discutível para<br />

sua existência, é importante identificar quais os grupos sociais que<br />

dele se beneficiam. Se forem os mais pobres, este subsídio está sendo<br />

útil pelo menos para reduzir a desigualdade existente. Entretanto,<br />

apesar da disponibilidade destes subsídios, os grupos mais pobres<br />

continuam encontrando grande dificuldade para ter acesso à educação<br />

superior. os mais ricos utilizam este acesso subsidiado para reproduzir<br />

a elevada desigualdade existente. De fato, 95% dos universitários<br />

brasileiros vivem em famílias pertencentes aos 10% mais ricos<br />

do país, famílias estas que, apesar de representarem apenas 1/10 da<br />

população do país, se apropriam de metade da renda nacional. Qual<br />

a necessidade deste grupo de ter educação subsidiada quando sua<br />

renda é 20 vezes maior do que a dos 20% mais pobres no país? é difícil<br />

identificar qual a racionalidade deste triplo privilégio que beneficia<br />

os jovens mais ricos no país, freqüentadores, em sua maioria, de um<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 76-99 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007


ensino fundamental e médio em escolas privadas. Seja lá qual for a<br />

racionalidade, este privilégio seguramente pouco poderia fazer para<br />

reduzir a elevada desigualdade existente no país.<br />

Se, por um lado, os subsídios à educação não devem se concentrar<br />

nas mãos deste grupo, por outro lado, se o objetivo é subsidiar a<br />

educação da população mais pobre, e sendo esta mais numerosa, é<br />

imprescindível que o seu atendimento não fique limitado aos serviços<br />

providos pelo setor público. toda oferta pública e privada deve<br />

estar igualmente acessível a essa população. Assim, é recomendável<br />

que o crédito e o subsídio estejam atrelados ao beneficiário, independentemente<br />

da instituição de destino ser pública ou privada,<br />

embora o subsídio possa depender da qualidade da instituição e do<br />

curso ou profissão selecionada. Nesse caso, cada beneficiário teria<br />

um subsídio de, por exemplo, R$ 400 ao mês, que poderia ser utilizado<br />

para pagar tanto uma universidade pública como privada. o<br />

contraponto deste argumento é que, nesse caso, os não-pobres admitidos<br />

na universidade pública teriam que pagar por sua educação.<br />

o mesmo argumento também seria válido se o subsídio fosse distribuído<br />

segundo o mérito. os melhores alunos seriam aqueles que<br />

teriam acesso ao subsídio, não importando se eles vão optar por uma<br />

universidade pública ou privada. mantido o critério de excelência, o<br />

subsídio deveria ir para o estudante.<br />

Em suma, é importante reconhecer que os subsidiados devem ser<br />

determinados grupos sociais e não instituições públicas que produzem<br />

o serviço. o grau de subsídio aos setores públicos e privados<br />

vai, então, depender da capacidade destes dois setores de atrair ou<br />

dar acesso aos grupos sociais que se deseja subsidiar. Portanto, não<br />

se deve discriminar o setor privado na concessão dos subsídios, o<br />

qual deve apenas depender da população atendida e da qualidade e<br />

composição dos cursos oferecidos. é importante também reenfatizar<br />

a separação entre acesso à educação superior e acesso à gratuidade<br />

quando se discute a prioridade que se deve dar aos mais pobres. Não<br />

parece haver dúvida de que, entre aqueles com acesso à universidade,<br />

os mais pobres devem ter prioridade à gratuidade ou ao crédito<br />

subsidiado. Esta prioridade evidentemente não implica que os pobres<br />

devam também ter acesso prioritário à educação superior. é perfeitamente<br />

possível que num sistema onde pobres e não-pobres compe-<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 76-99 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007<br />

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tem em igualdade pelo acesso às vagas disponíveis, uma vez definido<br />

os que vão ingressar na universidade, os mais pobres tenham então<br />

acesso prioritário à gratuidade ou aos subsídios existentes.<br />

Se existe pouca controvérsia sobre a prioridade dos mais pobres<br />

à gratuidade e ao crédito subsidiado, o mesmo não é verdade sobre<br />

a adequação de regras de prioridade para eles no acesso à educação<br />

superior. Acima vimos que o processo ideal de seleção é o que<br />

prioriza os indivíduos associados a um maior benefício social. Vimos<br />

que quando o benefício social está associado à taxa de acumulação<br />

de conhecimento e o ambiente familiar tem impacto preponderantemente<br />

sobre as condições iniciais, pode ser recomendável utilizar<br />

como critério de seleção uma medida do nível atual de conhecimento<br />

ajustada pelo ambiente familiar. Existem, entretanto, argumentos<br />

em prol de se priorizar o acesso aos mais pobres, mesmo entre candidatos<br />

com igual benefício social.<br />

QuANto CuStARiA A uNiVERSALizAÇÃo?<br />

Educação superior gratuita é um grande investimento nos jovens. A um<br />

custo de R$ 5 mil por ano, educação superior completamente gratuita seria<br />

equivalente a uma transferência de R$ 20 mil por jovem, considerando cursos<br />

de 4 anos. Se a educação superior não é um bem público e a maioria de<br />

seus benefícios é privadamente apropriada, todos os jovens universitários<br />

deveriam receber este benefício ou apenas os mais pobres? Por que apenas<br />

os em universidade pública deveriam ser subsidiados? Por que aqueles em<br />

universidades privadas não deveriam ser igualmente tratados? Por que os<br />

que seguem outras trajetórias não merecem receber um benefício similar?<br />

é inquestionável a importância para se reduzir as desigualdades no país<br />

de se garantir a cada jovem uma transferência de R$ 20 mil para que possa<br />

iniciar sua vida. A questão é o custo de garantir esta transferência a todos os<br />

jovens e não apenas àqueles que freqüentam educação superior pública.<br />

Atualmente apenas estes recebem este benefício. Se garantido a todos os<br />

jovens universitários brasileiros, este programa custaria R$ 25 bilhões ao ano.<br />

Se garantido a todos os jovens, independentemente se freqüentam ou não<br />

universidade, o custo anual seria de R$ 70 bilhões. Se o benefício se limitasse<br />

aos jovens pobres, o custo passaria a ser de R$ 28 bilhões ao ano.<br />

98<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 76-99 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007


REFERêNCiAS<br />

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StiGLitz, Joseph E. Economics of the public sector. 2nd ed. New York:<br />

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SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 76-99 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007<br />

99


ENtRE A ESPERANÇA<br />

E A REALiDADE<br />

SobRE A ARtE<br />

E o SEu ENSiNo<br />

Ronaldo Rosas Reis<br />

100<br />

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 100-127 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007


o artigo aborda o tema da relação entre a produção artística e a produção<br />

do conhecimento estético. Em linhas gerais, seu objetivo é ampliar o debate<br />

sobre a necessidade e a urgência da presença da arte no currículo escolar no<br />

brasil. Para isso, o texto analisa criticamente a formação do telos estético e<br />

pedagógico da moderna burguesia industrial, a partir do exame das idéias<br />

estéticas de Hegel. No seu desenvolvimento, o texto problematiza as relações<br />

sociais de produção artística no brasil, apontando, na conclusão, para a<br />

problemática posição pós-moderna das concepções presentes nos Parâmetros<br />

Curriculares Nacionais da área de Arte (PCN-Arte).<br />

this article approaches the subject of the relation between the artistic production<br />

and the production of the aesthetic knowledge. in general lines its<br />

objective is to extend the debate on the necessity and the urgency of the<br />

presence of the art in the pertaining to school resume in brazil. For this, the<br />

text critically analyzes the formation of the telos aesthetic and pedagogical<br />

of the modern industrial bourgeoisie, from the examination of the aesthetic<br />

ideas of Hegel. in its development, the text its criticizes the social relations of<br />

artistic production in brazil, pointing, in the conclusion, with respect to the<br />

problematic postmodern position of the conceptions gifts in the National<br />

Curricular Parameters of the area of Art (PCN-Art).<br />

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1. iNtRoDuÇÃo<br />

No momento em nos aproximamos de uma década da publicação<br />

dos Parâmetros Curriculares Nacionais da área de Arte (PCN-Arte) 1 ,<br />

pensei no interesse que poderia despertar junto a um público leitor<br />

mais amplo do que somente os professores de arte uma abordagem<br />

crítica sobre o tema da relação entre a produção artística e a produção<br />

do conhecimento estético na contemporaneidade.<br />

é bem verdade que a lembrança da data não oferece muitos motivos<br />

para comemorações. Conforme veremos mais adiante, o quadro de<br />

indigência em que se encontra a arte no currículo escolar da maioria<br />

das escolas brasileiras exige muita atenção e cuidado, o que nos tem<br />

mantido permanentemente em suspensão, entre a esperança e a realidade.<br />

Portanto, é preciso salientar que tal pensamento acerca do<br />

possível interesse do leitor pelo tema foi motivado principalmente<br />

pela necessidade e pela urgência. Necessidade de debater questões<br />

que possam contribuir para que o leitor pouco familiarizado com o<br />

tema sinta-se convidado a conhecê-lo e à vontade para refletir sobre<br />

o papel da arte na formação humana. E, quem sabe, animado para<br />

juntar-se aos professores de arte na luta que há décadas travam com<br />

as autoridades educacionais brasileiras e um número extraordinariamente<br />

significativo de dirigentes de escolas públicas e privadas.<br />

urgência porque me parece óbvio que, a se levar em consideração o<br />

estágio em que se encontra o processo de integração efetiva da arte<br />

ao currículo escolar, em breve o dispositivo da LDbEN que trata do<br />

assunto será mais uma matéria ociosa “para inglês ver”, dentre tantas<br />

outras neste país 2 .<br />

De outra forma, a despeito da necessidade e da urgência mencionadas,<br />

a natureza deste tema e sua história no brasil obrigam-me<br />

a prestar ao leitor um esclarecimento – que soa quase como uma<br />

advertência – quanto às posições estéticas e pedagógicas em disputa.<br />

Portanto, se é certo que a integração efetiva da arte no currículo<br />

1 Cf. bRASiL/mEC. Parâmetros Curriculares Nacionais – Arte. brasília: mEC, 1998.<br />

2 o §2º do artigo de número 26 da lei 9394/96 (Lei de Diretrizes e bases da Educação<br />

Nacional) dispõe que “o ensino da arte constituirá componente curricular obrigatório,<br />

nos diversos níveis da educação básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural<br />

dos alunos”.<br />

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escolar é uma luta de todos os artistas e educadores brasileiros e<br />

dos professores de arte em especial, não menos certo é que, conquistado<br />

esse objetivo comum, devemos todos aprofundar o debate<br />

em torno das diferentes concepções de arte e de educação. Neste<br />

sentido, o texto que apresento a seguir retoma, por um lado, antigas<br />

polêmicas que aparentemente foram superadas pela “vitória de<br />

Pirro” representada pela inclusão da arte na atual LDbEN, em 1996, e<br />

pela edição do PCN-Arte, em 1998. Por outro lado, o texto pretende<br />

antecipar questões que me parecem fundamentais numa discussão<br />

sobre a arte e o seu ensino no sistema pós-moderno.<br />

2. RotEiRo<br />

o roteiro de abordagem do tema começa com uma breve busca<br />

de elementos para uma reflexão sobre a arte e o seu papel histórico<br />

na formação cultural da moderna burguesia industrial na passagem<br />

do século xViii para o xix. Chamei-o de “Arte e sistema de arte”,<br />

pois nele pretendo revisar criticamente alguns pontos centrais das<br />

idéias estéticas de Hegel, especialmente aquelas que ofereceram<br />

as contribuições mais decisivas para o dimensionamento ético e<br />

estético do lócus histórico da identidade cultural burguesa. isto é,<br />

o elemento que faltava a esta classe para o seu rompimento definitivo<br />

com os laços que mantinha com a cultura do ancien régime<br />

aristocrático.<br />

Na seqüência deste estudo inicial, mas ainda na mesma seção, analisarei<br />

criticamente a repercussão das idéias daquele pensador no<br />

curso da trajetória da construção daquele lócus já no século xx. De<br />

um modo especial, a análise crítica buscará, de um lado, problematizar<br />

a função do telos organizador do trabalho e da produção de<br />

arte num sistema e, de outro lado, problematizar o papel central da<br />

ideologia estética no processo de formação das idéias educacionais<br />

em arte ao longo do século xx.<br />

o terceiro momento da abordagem do tema abre a segunda<br />

grande seção deste trabalho. Chamada de “Arte e ensino de arte<br />

no brasil”, nela o leitor encontrará os elementos das questões mais<br />

gerais examinadas na seção anterior deslocadas para o exame das<br />

questões particulares da arte e do ensino de arte no brasil que me<br />

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parecem mais relevantes. ora, como a partir da década de 1970 as<br />

relações sociais de produção passaram a assumir aceleradamente<br />

a atual forma globalizada, não foi por outro motivo senão metodológico<br />

que optei por tratar da problemática pós-modernista nesta<br />

seção. Dessa forma, além de analisar resumidamente a formação<br />

do meio de arte burguês em nosso país sob as condições modernas<br />

e pós-modernas, o texto busca, enfim, problematizar o método<br />

de análise da realidade que orienta o PCN-Arte. A despeito da posição<br />

multiculturalista e inclusiva explicitada no texto do PCN-Arte,<br />

o principal objetivo aqui é situar o leitor em face da problemática<br />

contradição dos seus autores ao desconsiderarem na análise<br />

da trajetória histórica da arte e do seu ensino no brasil questões<br />

relativas à propriedade dos meios de produção e à classe, dentre<br />

outras mais.<br />

Como último passo deste roteiro, procuro concluir reforçando<br />

junto ao leitor algumas idéias que me parecem importantes de serem<br />

debatidas nos diversos fóruns onde se faz presente a luta pela<br />

inclusão efetiva da arte na escola.<br />

Antes de finalizar esta introdução, não poderia deixar de salientar<br />

que parte das idéias que procuro apresentar aqui vem sendo debatida<br />

já há algum tempo em fóruns de educadores e pesquisadores no<br />

brasil e no exterior 3 . Neste sentido, eu destacaria os textos trabalho<br />

de arte e a arte do trabalho (2003), trabalho improdutivo e ideologia<br />

estética (2005) e A abelha, o arquiteto e a escola (2006) como aqueles<br />

que compõem o núcleo principal das idéias que aqui apresento 4 . Já outras<br />

idéias mais recentes, algumas em teste de amadurecimento, fazem<br />

parte do atual estágio de desenvolvimento das pesquisas científicas e<br />

estudos acadêmicos que venho realizando como professor associado<br />

da Faculdade de Educação da uFF e também como pesquisador do<br />

CNPq 5 . A importância deste esclarecimento se faz na medida mesma<br />

3 Dentre outros, as reuniões anuais da ANPEd (Associação Nacional de Pesquisa em<br />

Educação) e encontros (congressos, seminários, colóquios etc.) de estudiosos do<br />

pensamento de marx e Engels.<br />

4 Cf. referências bibliográficas ao final do artigo.<br />

5 tal pesquisa e estudos sobre a relação trabalho, arte e educação são realizados no<br />

âmbito do Núcleo de Estudos, Documentação e Dados sobre trabalho e Educação da<br />

uFF (Neddate-uFF). Cf. REiS, R. R. www.uff.br/neddate/ronaldo_rosas_reis.<br />

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em que a condição pós-moderna, expressão lógica da cultura sob o<br />

capitalismo tardio, impõe de forma avassaladora sobre os indivíduos e<br />

suas idéias os paradigmas da produtividade a qualquer preço e da obsolescência<br />

programada. Desnecessário seria detalhar a corrida insana<br />

de parte da intelectualidade para cumprir prazos e metas produtivistas<br />

com prejuízos evidentes para a ciência e a cultura do país.<br />

mais importante de tudo é reafirmar que toda idéia nova e mesmo<br />

algumas mais antigas precisam, sobretudo, de tempo para circular<br />

livremente.<br />

3. ARtE E SiStEmA DE ARtE<br />

3.1 HEGEL: A ARtE Como SiStEmA DE iDéiAS<br />

Pensar a arte para além dos limites impostos pela subjetividade<br />

religiosa medieval. Extrair dela um sentido histórico, uma razão de<br />

ser-no-mundo. Elevá-la ao patamar das ciências elevando o seu estatuto<br />

teleológico. Se fosse possível estabelecer uma ementa resumida<br />

da Estética, a grandiosa obra escrita por Hegel (1770-1831)<br />

no início do século xix, estes seriam os pontos centrais a serem<br />

abordados. Em verdade, a grande inovação que Hegel trazia era o<br />

desenho do corpus teórico de uma história social da arte, cujos<br />

fundamentos se assentavam na originalidade do método dialético<br />

de abordagem da realidade, rompendo com a tradição kantiana racionalista<br />

e empiricista da sua época. Pode-se dizer, neste sentido,<br />

que a tarefa de Hegel teve um caráter estratégico para a emergente<br />

cultura do homem burguês, na medida em que oferecia à arte, à<br />

música e à literatura e poesia um sentido histórico ou telos estético<br />

6 . isto é, um sentido vital que expressasse de forma coerente a<br />

vida social sob o capitalismo. Ao fundo, o que a teleologia de Hegel<br />

buscava era educar a coletividade humana para as belas-Artes,<br />

a bela-música, as belas-Letras etc., constituindo isso num fim que<br />

6 A propósito disso, vale dizer que, não obstante a originalidade filosófica de Hegel, é<br />

evidente na sua obra a influência dos poetas e pensadores românticos, como Goethe,<br />

e, principalmente, as famosas cartas da Educação Estética do Homem, de Friedrich<br />

Schiller (1759-1805).<br />

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seria traduzido na formação de público para o calendário oficial da<br />

cultura artística promovido pelo Estado, composto de salões, óperas,<br />

saraus e respectivas premiações anuais 7 .<br />

Para tanto, Hegel diria que, sob o domínio da razão, a vontade coletiva,<br />

a moral, o direito, a política do homem burguês vitorioso no<br />

seu projeto republicano são artefatos culturais que se expressam<br />

mediante um discurso estético. A ideologia, no sentido indicado<br />

por Hegel, nada mais seria do uma representação do modo como<br />

o homem concebe o mundo. Em última análise, para ele, toda ideologia<br />

é estética. um pouco mais adiante será necessário retomar<br />

este ponto.<br />

Por ora, é importante salientar que os efeitos das idéias inovadoras<br />

de Hegel junto a um número significativo de artistas e arquitetos<br />

autônomos, artesãos e oficiais desenhistas empregados nas indústrias<br />

européias são avassaladores. Primeiro porque eles já intuíam<br />

corretamente que a consolidação do capitalismo e a ascensão da<br />

burguesia ao poder político provocariam no médio e longo prazo<br />

uma profunda mudança no gosto até então dominado pela estética<br />

clerical e aristocrática. Depois porque percebiam que o processo de<br />

desenvolvimento das forças produtivas 8 que se impunha em face da<br />

arte, da arquitetura e do design era um verdadeiro divisor de águas,<br />

separando, de um lado, as pesquisas subordinadas ao processo<br />

industrial, e, de outro, a experimentação estética formal em busca<br />

de autonomia da linguagem visual. Por último, e mais importante,<br />

porque o próprio modo de produção da vida burguesa deixava<br />

claro que a arte, a arquitetura, os artefatos urbanos e domésticos<br />

e tudo mais que o midas-capitalista tocasse seria transformado em<br />

mercadoria. Em suma, assim como a estética de Hegel provocava<br />

um abalo profundo no senso comum que orientava o gosto bur-<br />

7 é necessário esclarecer que neste período os setores mais intelectualizados da<br />

burguesia encontravam-se preocupados com as crises sistemáticas na sociedade. A<br />

guilhotina, o terror, sintetizava tais preocupações. o telos representaria um salto para<br />

adiante. Ver HEGEL, G. W. F. Lecciones de estética. buenos Aires: La Pléyade, 1977.<br />

8 Dentre outras, os novos materiais que surgiam, o acelerado progresso técnico, o<br />

acentuado experimentalismo e, fundamentalmente, as novas formas de organização<br />

do método e do ambiente de trabalho.<br />

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guês, o artífice moderno queria abolir o ornamento inútil herdado<br />

do passado.<br />

De fato, em linhas gerais, o que se observou foi um conjunto de<br />

mudanças tão surpreendentes e extraordinárias que em pouco tempo<br />

a cultura burguesa assumiria uma identidade própria, autônoma e<br />

distante do tanto que ainda restava das ruínas do passado aristocrático<br />

e feudal. As cidades sofreriam mudanças no planejamento urbano<br />

e na arquitetura, adaptando-se ao acelerado processo de desenvolvimento<br />

das forças produtivas (a técnica e o trabalho, principalmente);<br />

o vestuário e o mobiliário urbano-público e doméstico-privado<br />

adaptar-se-iam igualmente às novas funções sociais designadas pelos<br />

novos determinantes ideológicos, incluindo o gosto estético 9 .<br />

Neste ponto, se faz necessário retomar a questão da ideologia estética<br />

deixada em aberto mais acima, ressaltando que, a despeito do<br />

método dialético de Hegel oferecer a possibilidade de apreensão<br />

objetiva do mundo sensível, o seu sistema estético enfrentaria, sem<br />

sucesso, um impasse frente à categoria totalidade. Com efeito, pois,<br />

se por um lado Hegel afirma que a totalidade é a culminância de<br />

todo o processo dialético mediante o qual descrevemos o mundo<br />

sensível, por outro lado essa totalidade somente alcança o estatuto<br />

de uma Verdade Histórica ou idéia Absoluta se e quando submetida<br />

a um conjunto de pré-conceitos ou idéias apriorísticas. Por conseguinte,<br />

percebe-se que sob tal condição a totalidade nada mais é do<br />

que um mero artefato intelectual ou representação ideal da realidade:<br />

uma ideologia estética, conforme salientei anteriormente. ora,<br />

não sendo a totalidade a expressão concreta da realidade, mas, sim,<br />

uma idealização determinada pelo aparato ideológico, logo, tanto a<br />

concepção de Verdade Histórica quanto a concepção de ideologia<br />

em Hegel são formas de consciência parciais da realidade. Formas de<br />

consciência que falseiam tanto a realidade concreta como o próprio<br />

aparato ideológico utilizado para descrevê-la.<br />

Se ao fim e ao cabo a estética de Hegel não conseguiu superar no<br />

campo das idéias as contradições internas ao sistema criado, certamente<br />

isso não se deve especificamente ao método de análise adotado,<br />

a dialética. mas, sim, como examinaremos a seguir, a um vício de<br />

9 Sobre este assunto, ver SENNEt, R. (1989).<br />

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origem, qual seja: a sua imersão na tradição idealista a partir da qual<br />

o método havia sido desenhado. De resto, um obstáculo para que o<br />

exercício do détour para se chegar ao concreto-pensado considerasse<br />

centralmente a práxis humana, isto é, o modo como os homens<br />

produzem a vida em sociedade, como possibilidade de análise 10 .<br />

108<br />

3.2 SiStEmA DE ARtE E iDENtiDADE CuLtuRAL<br />

é inegável que as idéias de Hegel deram à incipiente cultura burguesa<br />

autônoma do século xix os fundamentos essenciais para a<br />

organização de um sistema educativo do gosto estético amplo e<br />

abrangente. Contudo, a expectativa da totalidade alcançada pelo<br />

encontro de identidade cultural própria esbarrava em alguns conflitos<br />

insuperáveis, tal como a contradição de reunir lado a lado<br />

traços conservadores e outros tantos modernizadores no mesmo<br />

ambiente cultural. Em conjunto, a classe burguesa encontrava-se<br />

diante do seguinte dilema: assumir a rica tradição cultural da aristocracia<br />

que derrotara ou construir uma cultura própria, porém<br />

empobrecida pela ausência de tradição. Foi assim que, no período<br />

de profunda instabilidade republicana que se estende aproximadamente<br />

da queda de Napoleão bonaparte, em 1814, às duas primeiras<br />

décadas do século xx, a fração burguesa mais conservadora<br />

da sociedade e um número significativo de intelectuais pequenos<br />

burgueses consolidaram a força da Academia e dos seus esquemas<br />

de legitimação do valor estético da produção artística. Neste sentido,<br />

os anos que se seguiram à derrocada do império napoleônico<br />

foram justamente aqueles em que os traços conservadores prevaleceriam<br />

na organização das instituições oficiais de arte do Estado<br />

burguês e de seus esquemas de avaliação e exposição da produção:<br />

os Salões Nacionais. é neste período que se observa no meio<br />

artístico uma rápida involução dos padrões estéticos da produção<br />

associada ao rápido crescimento de uma burocracia acadêmica poderosa,<br />

na qual os mestres artistas e artesãos, além de críticos e<br />

marchands mais medíocres, pontificariam na definição e direção<br />

10 A idéia de détour compreende o esforço do pensamento dialético de se desviar<br />

da pseudoconcreticidade das coisas, como o senso comum, buscando, enfim, o concreto-pensado.<br />

Sobre este tema, ver KoSiK, K. (1995).<br />

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hegemônica de um sistema de arte reestruturado e organizado a<br />

partir da autoridade estética da Academia 11 .<br />

De fato, se até o período napoleônico a Academia conseguira<br />

equilibrar o ímpeto romântico com os rigores morais da norma, a<br />

partir de então, com o extraordinário êxodo de alguns dos seus principais<br />

mestres, a arte acadêmica oficial limitou-se a repetir gêneros<br />

temáticos tão pouco originais quanto eram rigorosas e medíocres<br />

as regras impostas para a composição das obras 12 . baseado numa<br />

forma de narrativa que doutrinava a subjetividade do observador, o<br />

“gênero histórico” foi um dos mais apreciados pela fração burguesa<br />

conservadora – mas não apenas –, tornando-se uma espécie de balizador<br />

dos demais gêneros. E, certamente, tal apreciação deveu-se<br />

em grande parte às suas características formais chegadas ao moralismo<br />

apologético da ética individual. Se a temática recorrente dos<br />

artistas que adotaram o “gênero histórico” variava do sermão pictórico<br />

ao relato de façanhas e eventos monumentais como sagrações<br />

de generais, grandes batalhas, execuções, bodas, missas, etc., cabe<br />

salientar ainda que o estilo marcadamente eclético também deva<br />

ser considerado um atrativo a mais deste gênero de pintura para os<br />

olhos burgueses. Conforme observei em outro trabalho, a nostalgia<br />

dos estilos do passado era organizada pela Academia sob o para-<br />

digma do “neo” – neoclassicismo, neogótico, neobarroco etc., além do<br />

paladianismo muito adotado pelos arquitetos e paisagistas ingleses<br />

para reviver estilisticamente a idade média e a Antiguidade pré-clássica<br />

13 . Sob o peso de uma “autoridade histórica” artificial que aliviava<br />

11 As raízes do sistema de arte remontam ao comércio de objetos artísticos no<br />

século xVii, quando então surgiu entre os rentistas e os mecenas da época a necessidade<br />

de se estabelecerem parâmetros e critérios para o valor de troca (valor<br />

de mercado) de tais objetos. o pressuposto do sistema de arte refere-se a uma<br />

única condição: manter e controlar o capital cultural da classe dominante. Sua tarefa<br />

principal é qualificar um objeto quanto ao seu valor artístico de acordo com<br />

o telos estético daquele capital. As idéias de belo, gosto, técnica, criatividade etc.,<br />

ajustadas, evidentemente, ao prestígio do realizador, do marchand, do estabelecimento<br />

expositor, da pessoa física e jurídica do expositor, do curador da exposição<br />

etc., são alguns dos elementos que compõem o telos. Cf. REiS, R. R. (2006b).<br />

12 A propósito do êxodo dos artistas francesas, vale lembrar que o brasil foi um<br />

dos países beneficiados por ele quando, em 1816, D. João Vi contrata mais de uma<br />

centena de mestres artistas e artesãos napoleônicos ligados à Academia de belas-<br />

Artes francesa.<br />

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as dores da ausência de uma tradição artística legítima, o poder do<br />

sistema de arte seria, enfim, consolidado.<br />

Assim, a despeito do assombro inicial causado pela “rebeldia”<br />

dos artistas impressionistas numa exposição em 1872, aos olhos dos<br />

conservadores não parecia, de resto, que a linguagem artística experimentava<br />

qualquer tipo de tensão adicional, ao ponto de exigir<br />

maiores atenções. Cabe notar aqui o paradoxo que colocava a classe<br />

burguesa de um modo mais geral numa situação de ignorar aquilo<br />

que forças produtivas em desenvolvimento lhes mostravam: a pressão<br />

sobre o passado. Sequer lhe ocorria, por exemplo, que a fotografia,<br />

o cinema, o jornal e a moda, para citarmos apenas alguns itens de<br />

uma extensa lista de forças emergentes, imporiam às técnicas artísticas<br />

e linguagens convencionais (pintura, desenho, gravura, escultura)<br />

pressões adicionais àquelas internas à própria arte. Se de certo<br />

modo isso pode ser explicado pela suposta ausência de alternativas<br />

razoáveis à lógica do pensamento conservador que desprezava o<br />

gosto e as manifestações culturais da fração “plebéia” da burguesia,<br />

de outro modo a explicação para esse fato pode ser verificada na<br />

origem contraditória do próprio sistema.<br />

todavia, nos anos inaugurais do século xx, já é possível observar<br />

na esfera cultural em geral e no meio de arte em particular os primeiros<br />

reflexos das mudanças ocorridas na sociedade em razão dos<br />

sucessivos avanços da técnica, da substituição progressiva do carvão<br />

pelo petróleo como matriz energética principal e, fundamentalmente,<br />

do surgimento de um novo regime de acumulação – o fordismo –,<br />

baseado na otimização/intensificação da exploração do trabalho humano.<br />

Da combinação de tantas novidades nas relações sociais de<br />

produção da vida sob a hegemonia burguesa, emergiriam formas<br />

novas de linguagem artística exigindo ajustes no telos estético.<br />

110<br />

3.3 moDERNiSmo E SiStEmA DE ARtE: ENtRE o<br />

DESEJo Do NoVo E A REALiDADE Do mESmo<br />

Não deixa de ser sempre curioso o fato de um conjunto de idéias<br />

notáveis ser utilizado de forma e com objetivos supostamente diferentes.<br />

Com efeito, vimos até aqui que as idéias de Hegel serviram<br />

13 Cf. REiS, R. R. (2006a).<br />

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de base para a organização de um esquema de legitimação lógico e<br />

eficiente na definição do valor estético de uma determinada fração<br />

da classe dominante. tal esquema baseava-se na articulação sistemática<br />

entre o ensino acadêmico de arte, no processo de avaliação<br />

e premiação das obras, promoção dos seus autores e legitimação do<br />

conjunto da produção junto aos colecionadores de objetos artísticos<br />

e demais agentes do mercado. tudo isso era utilizado pela fração<br />

burguesa dominante, conservadora nas suas práticas econômicas,<br />

nos seus hábitos e costumes cotidianos e, sobretudo, no seu padrão<br />

de gosto, algo próximo ao gosto aristocrático, porém clivado por sua<br />

trajetória ética e moral 14 .<br />

Entretanto, num sentido diverso, o historiador Eric Hobsbawm<br />

(1995) nota que, na altura de 1914, alguns setores da burguesia que<br />

buscavam aliar a modernidade dos empreendimentos industriais às<br />

suas expectativas de renovação cultural já haviam experimentado<br />

praticamente todos os ismos daquilo que se pode chamar pelo amplo<br />

e indefinido termo “modernismo” (p. 178) 15 . é bem verdade que<br />

o fato de esses setores alimentarem admiração e até terem apoiado<br />

o tímido dissenso impressionista e das rupturas vanguardistas<br />

na arte não lhes dava condições totais para afirmarem que haviam<br />

rompido com a autoridade estética da Academia e os esquemas burocráticos<br />

do seu sistema a fim da legitimação do valor artístico da<br />

obra de arte. No máximo, teriam construído para si uma representação<br />

das feições que a moderna e “legítima” cultura burguesa poderia<br />

ter num futuro breve (idem, p.183). isto porque se a pressão exercida<br />

pela ruptura vanguardista demonstrara força para concorrer<br />

com a autoridade estética da Academia, de outra forma tal força não<br />

se aplicava à dimensão extraordinária que o sistema de arte havia<br />

14 Sobre este assunto, ver HAuSER, A. (1972)<br />

15 Para Hobsbawm, o “modernismo” representa a unificação num conceito híbrido<br />

das mais variadas práticas artísticas e ideologias estéticas vanguardistas que se estenderam<br />

por cerca de 30 anos consecutivos (1995, p. 183).<br />

16 ora, se a arte tinha uma finalidade histórica para o artista de vanguarda, logo, o<br />

objetivo programático e a estratégia política da “revolução da arte moderna” não<br />

eram estruturalmente diferentes da arte (acadêmica) recém-superada. Se ela necessitava<br />

de parâmetros e critérios para lhes definir o valor, por conseguinte, este valor não<br />

era pensado como valor artístico, mas sim como valor de troca (mercadoria), sendo,<br />

portanto, necessária a existência de um sistema controlador.<br />

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111


alcançado 16 . Dessa forma, o que se observou foi, de um lado, uma<br />

progressiva apropriação das idéias estéticas das vanguardas pelas<br />

indústrias de bens de consumo, da moda e acessórias etc.; de outro<br />

lado, uma abertura igualmente progressiva do mercado de arte para<br />

as obras de Pablo Picasso, Salvador Dalí, Wassily Kandinsky e marcel<br />

Duchamp, dentre outros tantos.<br />

A partir deste ponto, podemos então apresentar algumas conclusões<br />

preliminares. Primeiramente, quanto ao próprio conceito<br />

de “revolução”, habitualmente aplicado ao modernismo. ora, se<br />

entendermos que uma verdadeira revolução é aquela que rompe<br />

com as estruturas produtivas do passado e sobre as suas ruínas<br />

constrói um novo modo de produção da vida, independentemente<br />

de, por algum tempo, conviver com elementos superficiais do<br />

passado, então não houve uma revolução modernista, mas, sim,<br />

a reificação do conceito de arte 17 . Em segundo lugar, ainda que<br />

admitíssemos que a radicalidade das vanguardas modernistas tivesse<br />

obrigado a cultura a rever o próprio conceito de arte programando,<br />

no limite, a sua própria “morte” como valor criativo, não<br />

me parece que tudo que nos tenha sido apresentado como arte<br />

desde então esteja fora do esquema de legitimação controlado<br />

pelo sistema de arte.<br />

Assim, independentemente das correntes a que têm se filiado os<br />

artistas de qualquer tendência, das mais ou das menos conformadas<br />

– e até mesmo das revoltadas – com o pensamento único dominante,<br />

o fato de a produção artística manter-se controlada por um sistema<br />

de valores subordinados ao capital tanto indica a força de permanência<br />

do legado idealista da dialética de Hegel como indica igualmente<br />

a fragilidade do seu modelo.<br />

17 Em linhas gerais, reificação é um caso especial de alienação. Neste sentido, é o<br />

efeito produzido pela ação capitalista intensa ao transformar a relação entre coisas<br />

vivas em relação entre coisas simplesmente. isto é, entre mercadorias. No caso<br />

analisado, dada a impossibilidade de haver uma “revolução da arte” sem que tivesse<br />

ocorrido uma revolução real, a arte, ou melhor, o seu conceito, foi alienado do mundo<br />

das coisas vivas, ajustando-se ao mundo das mercadorias. Sobre o assunto, ver<br />

bottomoRE, t. (2001).<br />

112<br />

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4. ARtE E ENSiNo DE ARtE No bRASiL<br />

4.1 A buRGuESiA bRASiLEiRA E A ARtE ACADêmiCA<br />

o interesse pessoal do rei de Portugal em trazer para o brasil, em<br />

1816, uma missão de artistas franceses é revelador do curioso conflito<br />

de interesses a que o país fora submetido desde o início da sua<br />

colonização e que seria acentuado por D. João Vi, por seu filho e<br />

depois pelo neto à frente do governo brasileiro até a Proclamação<br />

da República. tal curiosidade deve-se ao fato de um monarca que<br />

se vê obrigado a fugir de seu país, em 1808, expulso por Napoleão<br />

bonaparte, apoiado pela burguesia revolucionária da França, sendo<br />

que oito anos depois convida os principais artistas burgueses e admiradores<br />

do império napoleônico a organizar uma Academia nas<br />

terras do reino unido brasil-Portugal 18 .<br />

Criada no Reinado e mantida e aperfeiçoada no império, é neste<br />

último período que suas funções formadoras são ampliadas e organizadas<br />

pela burguesia brasileira então ascendente. Sob a proteção<br />

de D. Pedro ii, a Academia haveria de levar adiante o plano estratégico<br />

que dera origem à contratação dos mestres franceses algumas<br />

décadas antes: produzir conhecimento, estabelecer um método<br />

científico de trabalho e uma hierarquia disciplinar capaz de reproduzir<br />

os ensinamentos ministrados, e, no limite, instaurar um aparato<br />

legislador das coisas da arte com vistas à formação de um sistema<br />

de arte que correspondesse aos objetivos hegemônicos da classe<br />

18 A espécie curiosa de conflito avançaria com a declaração da independência do<br />

país realizada pelo próprio filho do rei, Pedro i, e, mais adiante, por seu neto, Pedro ii,<br />

grande incentivador da burguesia contra a economia primária praticada pelos oligarcas<br />

herdeiros de extensos latifúndios (as sesmarias).<br />

19 Para barbosa (1978), no seu conhecido Arte-educação no brasil, a República teria<br />

agido preconceituosamente contra “[...] o dirigismo característico do espírito neoclássico<br />

de que estava impregnada (a Academia)”, posto que esta estivera a serviço<br />

da conservação do poder do império (1978, p.16). Ao nosso ver, a posição da autora,<br />

apoiada tão-somente em fatos, carece de consistência teórico-metodológica quando<br />

não examina a totalidade das relações socioculturais no contexto da revolução burguesa<br />

no brasil. talvez, por esse mesmo motivo, no seu texto, ela insista na idéia simplista<br />

de “preconceito” ao dizer que, ao substituir “o calor do emocionalismo barroco<br />

da arte colonial pela frieza do intelectualismo da estética neoclássica, [esta última]<br />

teria encontrado eco apenas na pequena burguesia”(idem, pp.18-19).<br />

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113


dominante 19 . Já durante a primeira República (1889-1930), dada a sua<br />

identificação com o velho regime, a Academia passa para um plano<br />

secundário no interesse dos governantes. Contudo, conforme indicam<br />

inúmeros registros documentais, os artistas acadêmicos, seus<br />

prepostos na imprensa e no incipiente mercado de arte brasileiro<br />

(com seus esquemas de salões e exposições oficiais) mantinham<br />

junto aos setores conservadores da elite burguesa um prestígio quase<br />

inabalável. De fato, estes prestigiavam não apenas os eventos artísticos<br />

da Academia, como investiam e mantinham em seus acervos<br />

particulares obras por ela recomendadas.<br />

o processo de implantação da Academia no brasil seguiu de um<br />

modo geral os passos estratégicos dados anteriormente pelas academias<br />

européias, em particular a francesa. A organização do ensino<br />

em cátedras correspondentes às diferentes disciplinas curriculares<br />

configuraria o primeiro passo concreto no sentido de tornar visível<br />

para a sociedade a autoridade produtora de conhecimento no campo<br />

artístico e capacitada oficialmente a reproduzi-lo 20 . Como na Europa,<br />

com base no corpo da doutrina acadêmica, a autoridade do catedrático<br />

seria balizadora da posição estética do Estado, tendo utilidade<br />

na definição dos parâmetros e critérios estilísticos e de linguagem a<br />

serem adotados na construção de prédios da administração pública,<br />

parques, jardins, monumentos etc. 21 . Sobre este aspecto, é necessário<br />

observar que, embora na sua forma geral, a Academia obedecesse<br />

à lógica organizativa preconizada pelo sistema de idéias de Hegel,<br />

já o seu conteúdo indicava um tipo de racionalidade positivista com<br />

aspirações universalistas. Em razão disso, a mudança ocorrida no interior<br />

do regime, de império para República, não alterava a essência<br />

burguesa da Academia 22 .<br />

20 inicialmente ocupada pelos mestres franceses, a cátedra passaria a ser o principal<br />

objetivo a ser alcançado pela maioria dos jovens que buscavam na Academia algo<br />

mais do que apenas a formação artística.<br />

21 Não raras vezes também para justificar a descaracterização do patrimônio arquitetônico<br />

colonial mediante a sua simples destruição ou reforma de alguns de seus mais notáveis<br />

exemplares, como, por exemplo, no caso da igreja colonial de São Francisco de Assis, em<br />

Niterói. Destruída pela Academia, ela teve a sua feição original devolvida pelo arquiteto<br />

Lúcio Costa quando este esteve à frente do iphan, no Estado. Cf. REiS, R. R. (2005).<br />

22 o aparato acadêmico dos salões e exposições oficiais e de escolhas de artistas e<br />

arquitetos oficiais no interior do sistema de arte prevaleceu fortemente até meados<br />

dos anos da década de 1970, não tendo sido, desde então, de todo abandonado.<br />

114<br />

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4.2 iNDuStRiALizAÇÃo E o DESEJo DE muDANÇA<br />

Quando, em 1914, a guerra na Europa encontra um desfecho, havia<br />

um mapa econômico, político e cultural que apresentava o brasil<br />

com duas faces conflitantes.<br />

uma nova e exuberante com a riqueza acumulada com as exportações<br />

agrícolas para os países em guerra. uma face que procurava mostrar<br />

orgulhosamente a sua capital, o Rio de Janeiro, reformada no melhor<br />

estilo parisiense. Que vibrava com a industrialização de São Paulo,<br />

com o excedente de crédito na praça, com o crescimento do mercado<br />

interno. um país que, a despeito de não ter ainda uma universidade,<br />

podia apresentar suas Academias de belas-Artes, Letras e música.<br />

A outra face devia ser escondida, pois era pobre e atrasada. um<br />

inferno tropical de barracos miseráveis balançando em morros íngremes<br />

onde uma gente pobre e desempregada cantava e dançava<br />

coisas desconhecidas das elites. Na periferia, trabalhadores das indústrias<br />

e empregados do comércio empoleiravam-se em cortiços<br />

empoeirados à margem das estradas ou em palafitas enterradas em<br />

mangues apodrecidos. Faltava educação, emprego, saneamento e<br />

habitação. Sobravam favelados, ignorância e doenças endêmicas. Era<br />

um país entregue ao “primitivismo” da arte colonial, da “fala errada<br />

do povo” e do exotismo dos terreiros de samba.<br />

é neste contexto conflitante que surgiria em São Paulo e no Rio<br />

de Janeiro uma geração de artistas que ficaria conhecida por suas<br />

idéias modernistas na arte, na música, na literatura e na poesia. Para<br />

muitos deles, sobretudo os filhos ou netos de imigrantes originários<br />

da classe trabalhadora, que haviam crescido em meio ao lento<br />

processo de desenvolvimento das relações capitalistas no brasil, as<br />

mudanças econômicas no quadro interno do país desenhadas pela i<br />

Guerra mundial se apresentavam histórica e dialeticamente relacionadas.<br />

isto é, seja como um fator de mobilidade social, seja como<br />

uma oportunidade de operarem transformações no quadro das relações<br />

de produção de arte no país 23 .<br />

23 Quanto ao aspecto da mobilidade social, vale notar que, seguindo uma tradição<br />

familiar dos trabalhadores à época, uma parte significativa dos artistas ingressara no<br />

mundo do trabalho desde cedo, tendo adquirido e desenvolvido suas habilidades<br />

artesanais especializadas no próprio seio familiar, nas escolas profissionalizantes<br />

existentes ou nos liceus de artes e ofícios. Ver CuNHA, L. A. (2000, vol. 2).<br />

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115


Entretanto, repetindo o que ocorrera na Europa, a reação dos<br />

setores conservadores da burguesia aos modernistas foi avassaladora.<br />

Para a maioria dos jornalistas e intelectuais ligados a esses<br />

setores, romper com a Academia seria o mesmo que retomar o<br />

caminho da arte colonial primitiva. Nem mesmo monteiro Lobato,<br />

por muitos considerado um liberal em termos artísticos, deixaria<br />

de criticar a arte modernista de Anita malfati escrevendo no jornal<br />

Estado de S. Paulo, em 1917, que “[...] embora se dêem como<br />

novos, como precursores de uma arte a vir, nada é mais velho do<br />

que a arte anormal ou teratológica: nasceu como paranóia e mistificação<br />

[...]” 24 .<br />

Como se sabe, o fato de terem sido rejeitados de ponta a ponta<br />

pela elite conservadora não desanimaria os modernistas. E eles<br />

aproveitariam o acirramento das tensões sociais que pressionava internamente<br />

a burguesia como um todo, no sentido de buscar uma<br />

definição da sua posição no quadro das relações capitalistas no país,<br />

para situarem-se ao lado da fração burguesa ligada à produção industrial<br />

contra os setores arcaicos da economia. Com essa expectativa<br />

em mente, imaginavam que, num certo prazo, ocorreria aqui<br />

algo semelhante à experiência modernista na Europa, ou seja: uma<br />

ruptura formal com o padrão estético acadêmico. Acreditavam, sinceramente,<br />

que o devir dessa ruptura representaria a “adequação”<br />

da cultura brasileira ao seu lugar próprio 25 . todavia, como sublinha<br />

Sodré (1986), tratava-se antes do consentimento de uma fração da<br />

burguesia com vistas ao controle da produção artística do que propriamente<br />

uma rendição (Sodré, 1986).<br />

116<br />

4.3 PóS-moDERNiSmo E o DESEJo Do mESmo<br />

Em 1973, a crise do petróleo põe um ponto final no ciclo virtuoso<br />

da economia capitalista ocidental, levando os dirigentes das grandes<br />

potências ocidentais a operarem um extraordinário conjunto de mudanças<br />

no regime de acumulação.<br />

24 Cf. . Vale dizer que, anos mais tarde, Lobato<br />

revisaria a sua posição contrária à arte moderna.<br />

25 Cf. Roberto Schwarz apud CoutiNHo (2000, p.47).<br />

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tendo à frente a inglaterra, de margareth tatcher, e os EuA, de Ronald<br />

Reagan, diversos países empreenderiam profundas mudanças<br />

na economia mundial, tais como o abandono da universalidade dos<br />

sistemas de saúde e educacional, tornando-os públicos não-estatais,<br />

isto é, pagos. Subsídios para o transporte foram retirados, e a legislação<br />

foi profundamente reformada, flexibilizando-se conquistas históricas<br />

nas áreas previdenciária, trabalhista e sindical. os sindicatos<br />

dos trabalhadores que ensejaram reações ou foram dobrados pelo<br />

poder policial ou aderiram à nova ordem. Ao conjunto do processo<br />

de reestruturação produtiva no modo de produção capitalista deuse<br />

o nome de neoliberalismo.<br />

Associando investimentos de grande porte na criação de novas<br />

tecnologias de informação e no desenvolvimento dos meios de comunicação,<br />

as mudanças empreendidas tinham em vista oferecer<br />

ao mercado de ações condições plenas para a sua expansão global.<br />

Nesse sentido, em que pese o sucesso do neoliberalismo na década<br />

de 1980 ter imposto pesadas perdas à classe trabalhadora, de outra<br />

forma ele proporcionou globalmente a segmentos das classes médias<br />

urbanas, notadamente àqueles que tinham acesso a níveis superiores<br />

de ensino – como os yuppies (“jovens profissionais urbanos”)<br />

–, ganhos extraordinários de renda no mercado de ações. A cultura<br />

do dinheiro, como sublinha Fredric Jameson (2000), tornar-se-ia o<br />

telos estético do atual estágio capitalista, ocorrendo, por conseguinte,<br />

a contaminação de grande parte da sua estrutura econômica e<br />

política pela subjetividade estética.<br />

Na esfera cultural, tais transformações de base passariam a ser conhecidas<br />

como pós-modernismo. Com o objetivo de delimitar o seu<br />

espectro teórico para fins da nossa análise, devo começar por uma<br />

evidência: o pós-modernismo contém aquilo que aparentemente ele<br />

parece recusar: o próprio modernismo. Portanto, antes de considerá-lo<br />

a expressão de uma contradição, penso que o pós-modernismo<br />

é a expressão de um paroxismo.<br />

Para alguns dos seus defensores, o pós-modernismo representa o<br />

estertor mórbido de todas as narrativas mestras ou matrizes epistemológicas<br />

do arcabouço ético, moral, estético, político etc., dominante<br />

desde fins do século xViii. Já para alguns de seus detratores, o pós-modernismo<br />

representa o apogeu vitorioso da barbárie capitalista. Em vista<br />

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117


disso, em que pesem motivações e referências bastante diferentes, a<br />

perspectiva que os defensores e também os detratores do pós-modernismo<br />

projetam considera como certo que a humanidade (no sentido<br />

clássico atribuído pela razão científica) encontra-se diante do seu próprio<br />

fim sem retorno à vista. Em última análise, o fim da história, ou o<br />

desejo do mesmo.<br />

Esta curiosa convergência dos pensamentos de “direita” e de “esquerda”<br />

é própria do pós-modernismo, coloca para o pensamento<br />

materialista histórico o desafio de superar dialeticamente as antinomias<br />

que estão colocadas, a começar pelo problema da reificação<br />

cultural nas sociedades da abundância de ofertas e do hiperconsumo<br />

de bens culturais.<br />

Para Jameson (1985; 1993; 1996; 2000), a idéia de um pós-modernismo<br />

descolado do permanente conflito entre as forças produtivas e<br />

as relações sociais de produção é impensável. Não obstante, ele nota<br />

que uma aceleração jamais vista do consumo de mercadorias dilatara<br />

imensamente a esfera cultural. Dessa forma, dirá que o pós-modernismo<br />

é tanto a lógica cultural da estrutura produtiva como a sua<br />

expressão ideológica dominante. todavia, Jameson não considera<br />

esta dupla inserção do pós-modernismo como uma ruptura em relação<br />

ao seu referencial cultural precedente, o modernismo. Para ele,<br />

o pós-modernismo tornou-se a lógica cultural do capitalismo tardio<br />

como conseqüência mediata do acúmulo da “urgência desvairada da<br />

economia” pelo “novo” (idem, 1996, p.30) no curso dos ciclos de expansão<br />

(e crise) capitalista por cerca de 40 anos. Ao longo desse período,<br />

a competição travada em torno da produção do “novo”, na qual<br />

o trabalho artístico teve um protagonismo central, levaria o conjunto<br />

da sociedade, sobretudo a pequena burguesia, a reificar-se contínua<br />

e extraordinariamente, impondo microscopicamente sobre o tecido<br />

social suas subjetividades estéticas. Em breves palavras, o consumo<br />

conspícuo de mercadorias embaladas pela “novidade” acabaria estetizando<br />

as relações sociais.<br />

Como expressão ideológica da estrutura produtiva, ou “dominante<br />

cultural” desta última (Jameson, 1996, p.30), ele indicará que o caminho<br />

percorrido para tal inserção deve-se fundamentalmente a algumas ausências,<br />

ou “mortes” ocorridas no âmbito dos embates ideológicos modernistas,<br />

sendo a “morte da arte”, anteriormente mencionada, uma das<br />

118<br />

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examinadas por ele. todavia, para Jameson, a “morte da arte” representa<br />

metaforicamente outra mais importante: a “morte do sujeito” moderno,<br />

autor de um mundo pautado pela razão objetiva, hoje reificado pela<br />

cultura. A isto ele dará o nome de “alívio do pós-moderno” (1996, p.317),<br />

considerando que tal situação confere ao mundo no pós-modernismo<br />

um rosto mais completamente humano do que jamais visto. Como ele<br />

salienta, “resta muito pouco do que possa ser considerado irracional,<br />

no sentido mais antigo de incompreensível” (1996, p. 275).<br />

Podemos agora expor alguns aspectos centrais da presença do<br />

pós-modernismo no meio de arte no brasil.<br />

Entre nós, superadas as desconfianças iniciais, o pós-modernismo<br />

encontrou nos anos inaugurais da década de 1980 um vasto campo<br />

para autopromoções e interesses mercadológicos entre os jornalistas<br />

que mantinham colunas de arte e os agentes do mercado 26 .<br />

Com efeito, o início da década apresentava um promissor crescimento<br />

da produção/acumulação/exposição de obras refletindo o<br />

processo de profissionalização artística que superava o que ocorrera<br />

nas três décadas (1950-1970) anteriores. A despeito disso, a afluência<br />

do grande público por exposições e a demanda pela mercadoria arte<br />

ainda era incipiente. Como diria na ocasião uma conceituada jornalista,<br />

era necessário provocar “um renascimento dentro do caos”<br />

para apagar no interior do sistema de arte algumas ideologias estéticas<br />

modernistas que ofereciam resistência ao surgimento de uma<br />

arte sem preconceito com o mercado. Por outro lado, fazia-se necessário<br />

fecundar o que restara do ambiente devastado para, enfim,<br />

parir aquela que viria a ser a sua mais nova virgem: a “Geração 80”.<br />

outros jornalistas e animadores culturais se associariam ao empreendimento<br />

e, nesse sentido, disseminariam à exaustão a idéia de que<br />

havia uma “geração” que “retornava ao prazer da pintura”, que se<br />

opunha “ao isolacionismo e ao autoritarismo conceitual da geração<br />

precedente”, que, enfim, “reencontravam o prazer e a emoção” 27 . A<br />

partir daí, um numeroso grupo de artistas, muitos dos quais, diga-se<br />

de passagem, cuja produção apresentava e ainda apresenta qualidades<br />

excepcionalmente críticas em relação a todo o esquema articulado,<br />

daria forma a uma tendência grotesca, porém coerente com<br />

26 Cf. REiS, R. R. (2004).<br />

27 idem.<br />

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119


o processo de fetichização da arte-mercadoria, que é a de rotular a<br />

produção como “geração” disso ou daquilo.<br />

Conforme afirmamos no início desta seção, o sistema de arte é o<br />

mantenedor e controlador do capital cultural da classe dominante,<br />

tendo como tarefa primordial identificar, classificar e qualificar um<br />

objeto quanto ao seu valor artístico segundo parâmetros e critérios<br />

teleológicos previamente definidos. o fato de que sob o capitalismo<br />

a mercadoria tenha se expandido ao ponto de colocar em xeque o<br />

sentido e o destino da arte no pós-modernismo, em nada elide o<br />

esforço da classe dominante de manter o controle sobre o meio de<br />

sua produção, muito pelo contrário, até o reforça.<br />

o que ocorre no pós-modernismo no processo de valoração da<br />

arte é de certa maneira semelhante ao que ocorria anteriormente,<br />

apenas de uma forma menos vertical ou hierárquica, justificada<br />

neste texto por aquilo que Jameson denominou de “alívio do<br />

pós-moderno”. Dessa forma, a questão de saber por que algumas e<br />

não outras obras atendem aos parâmetros e critérios adotados pelo<br />

sistema de arte no processo de valoração artística se mantém inalterada,<br />

posto que, como dissemos antes, os elementos adotados na<br />

tarefa prescrita são subjetivos, muito embora alguns deles sugiram<br />

o contrário. isto porque a resposta-padrão à pergunta “por que algumas<br />

e não outras obras” será sempre apresentada envolta num<br />

clima de mistério, exigindo de quem pergunta, não raras vezes, um<br />

“ritual iniciático”.<br />

Por certo que, conclusivamente, no sistema de arte pós-moderno<br />

brasileiro, a tendência de conferir rótulos às gerações faz parte de tal<br />

“ritual”. Algo semelhante à denominação “tribo”, também exaustivamente<br />

utilizada pelos formadores de opinião, para designar tendências<br />

de consumo cultural de jovens.<br />

120<br />

4.4 o SiStEmA DE ARtE E A ARtE-EDuCAÇÃo No bRASiL<br />

o fato de a nossa abordagem até aqui ter priorizado as continuidades<br />

e descontinuidades históricas do meio de arte se deveu, sobretudo,<br />

à necessidade de estabelecer uma relação de materialidade<br />

ou existência concreta entre a arte e a educação, o outro objeto<br />

do nosso presente estudo. é, portanto, com base nas considerações<br />

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que apresentamos que a partir daqui abordaremos o problema do<br />

ensino de arte na escola.<br />

Para a geração de educadores que hoje ultrapassou a casa dos 50<br />

anos, o tema que associa a arte à educação tem sido recorrentemente<br />

objeto de luta política pela afirmação da arte como área de conhecimento<br />

humano no currículo escolar, e, também, concomitantemente,<br />

de disputas hegemônicas entre tendências educacionais<br />

divergentes na condução dessa luta. é verdade que desde meados<br />

do século xix tanto a luta política dos professores de arte como as<br />

disputas hegemônicas em torno de concepções pedagógicas jamais<br />

deixaram de estar na ordem do dia. Contudo, é a partir do fim da<br />

década de 1960 que se registra o início de uma tomada de posição<br />

estrategicamente mais organizada, definida e consistente na busca<br />

de um espaço para a arte dentre as áreas de conhecimento humano<br />

no currículo escolar. A propósito disso, vale notar que é na década<br />

de 1960 que se completa um ciclo de 30 anos, desde a criação das<br />

primeiras universidades no brasil, notadamente a universidade do<br />

brasil (hoje uFRJ) e a universidade de São Paulo (uSP). isso significa<br />

a formação, o amadurecimento e a evolução intelectual de uma<br />

geração de artistas e educadores cujas práticas artísticas e pedagógicas<br />

haviam se modernizado respectivamente, ora em conformidade<br />

com os limites e as contradições do telos estético e pedagógico da<br />

fração burguesa industrial, ora numa posição crítica e progressista<br />

frente a este telos.<br />

Por conseguinte, não me surpreende a posição conformista<br />

assumida pelo PCN-Arte, na exata medida da sua disfarçada pretensão<br />

de legislar sobre o estatuto epistemológico da educação<br />

estética entre nós, com o objetivo de reforçar e legitimar o controle<br />

econômico e ideológico dos meios de produção e circulação<br />

da arte a partir do sistema de arte.<br />

A proposta “novas tendências curriculares em Arte” contida<br />

na edição das diretrizes do mEC refere-se ao terceiro milênio<br />

28 Como todos os documentos oficiais produzidos sob a gestão do então ministro<br />

Paulo Renato de Souza à frente do mEC (1995-2002) e dirigidos diretamente à<br />

escola, a forma da linguagem adotada equilibra-se intencionalmente entre a ingenuidade<br />

e a arrogância, e o conteúdo das propostas é sempre demasiadamente<br />

tendencioso.<br />

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121


como o cenário das grandes transformações culturais (brasil:<br />

mEC/SEF, 1996; 1997; 1998) 28 . Seu corpus teórico busca justificar<br />

a atualidade dos pressupostos conceituais do modelo curricular<br />

baseado fundamentalmente nos conceitos da arte-educação.<br />

Para isso, seus autores fazem uma resumida abordagem<br />

crítica das teorias e das práticas que fundamentaram e embasaram,<br />

no século xx, os movimentos que, de um modo genérico,<br />

lutaram pelo ensino de arte na escola regular. A ausência de<br />

uma explicitação do cenário histórico que, ao fundo, prepara<br />

as condições do processo de “amadurecimento” dos conceitos<br />

da arte-educação, omite os embates entre as posições políticoideológicas<br />

em disputa no campo da arte e o mesmo tipo de<br />

embates no campo do ensino de arte, e induz ao reforço da<br />

idéia de um sistema de arte onipresente.<br />

o problema da ausência de contextualização não seria tão<br />

grave caso os autores pudessem sustentar, do ponto de vista<br />

da história, a afirmação de que a “descaracterização da área por<br />

longo tempo” se deveu ao “consenso pedagógico” formado em<br />

torno do conceito de criatividade jamais definido e a imprecisão<br />

e a aplicação de idéias vagas sobre a função da educação<br />

artística. Embora concordemos pontualmente com a crítica ao<br />

“consenso” e à “imprecisão”, na verdade não consta que na<br />

prática as mudanças sugeridas tenham sido de fato adotadas.<br />

Pois, na medida em que a discussão corrente no contexto da<br />

época não estava dissociada da própria crise experimentada<br />

pelo projeto modernista, dificilmente o caminho teórico proposto<br />

pelos modernistas seria de todo abandonado 29 .<br />

Na visão dos autores dos PCN-Arte, os períodos de emergência<br />

e vigência das lutas dos movimentos de arte-educadores<br />

no brasil é demarcado pelos programas curriculares, seus padrões<br />

e modelos, métodos de ensino, suas técnicas e objetivos,<br />

finalidades e aplicação, excluindo-se de todo modo a análise<br />

da questão do espaço social de legitimação histórica da arte<br />

29 Para reforçar esse argumento, chamamos a atenção para a análise de Jameson<br />

(1996) sobre a ação do capitalismo na esfera cultural, a qual teria engendrado no curso<br />

de meio século o esmaecimento da figura do sujeito-criador.<br />

122<br />

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a partir da transformação das linguagens. A ausência de uma<br />

exposição sobre as condições concretas do aparecimento e desenvolvimento<br />

dos fatos, que articulam e relacionam a trajetória<br />

do ensino de arte com as relações de produção artística nos<br />

termos expostos anteriormente, não apenas subtrai do senso<br />

comum a possibilidade de se esclarecer sobre o que seja o trabalho<br />

de arte e o que ele produz, como obscurece a leitura que<br />

pretendem oferecer sobre o estatuto social da educação e da<br />

arte. Por conseguinte, evidencia-se no documento a visão de<br />

que a práxis artística é um dado natural, reforçando a mistificação<br />

em torno do processo da criação artística, do ato criador,<br />

da figura do gênio 30 .<br />

5. CoNCLuSÃo<br />

A urgente necessidade de a arte existir concretamente no currículo<br />

escolar da educação básica, isto é, na educação infantil,<br />

no ensino fundamental e no ensino médio, se impõe como um<br />

tema central no debate sobre os rumos da educação brasileira na<br />

contemporaneidade. De fato, a despeito de a atual legislação tê-la<br />

incluído dentre as áreas de conhecimento humano a serem trabalhadas<br />

no currículo escolar (lei nº. 9394/96, LDbEN), e do significativo<br />

esforço dos autores dos Parâmetros Curriculares Nacionais<br />

– Arte (PCN-Arte) para caracterizá-la pedagogicamente, a arte no<br />

currículo escolar continua sendo, na maior parte dos casos, uma<br />

peça de ficção.<br />

Por certo que o tema não pode prescindir da luta política permanente<br />

dos educadores pela efetiva implantação do ensino de arte nas<br />

escolas. Luta, vale dizer, talvez até mais acirrada do que a que se travou<br />

por décadas até o reconhecimento da área Arte pela LDbEN, em 1996.<br />

30 Exemplo disso pode ser encontrado na análise que os autores fazem da lei nº<br />

5692/71, que introduziu a arte no currículo escolar como uma “atividade educativa<br />

e não disciplina” (brasil/mEC, 1998, p.26-27). ora, ainda que concordemos que isso<br />

tenha representado um paradoxo pelos vários argumentos apresentados, é notável<br />

que todos eles limitam-se a analisar a situação do ensino de arte. Como se esta não<br />

tivesse relação com o contexto histórico em que se encontrava o meio de arte, o sistema<br />

que o controlava, os interesses da burguesia etc.<br />

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123


Entretanto, da mesma forma, acredito que a luta comum não deve<br />

elidir o confronto interno, interpares. ou seja, os educadores não<br />

podem furtar-se de debater publicamente suas concepções de arte e<br />

de educação, desvelando suas diferenças e divergências a partir dos<br />

respectivos referenciais teóricos e métodos de análise da realidade.<br />

Se a grande virtude do PCN-Arte é reconhecer a arte como<br />

um campo específico de produção e organização do conhecimento,<br />

não menos certo é que o seu eixo ordenador apresenta<br />

a arte como parte de um capital cultural acumulado cujo valor<br />

está previamente dado. Dessa forma, de acordo com a visão oficial,<br />

o papel histórico da arte na vida social do país pressupõe<br />

e legitima, como nota Giroux, “formas particulares de história,<br />

comunidade e autoridade” (1999, p. 268). tal percepção leva-nos<br />

a crer que o horizonte ideológico do PCN-Arte, na medida dos<br />

vínculos que mantém com a forma de controle exercida pelo sistema<br />

de arte, expressa uma orientação conservadora sobre os<br />

propósitos da educação estética no processo de formação do<br />

imaginário social e uma orientação reacionária quanto à idéia de<br />

cidadania como uma totalidade.<br />

o conjunto de sintomas apresentados no PCN-Arte gera expectativa<br />

de mudança, de cujo tipo guarda inúmeras semelhanças<br />

com a mudança que tanto pode servir para “despertar falsas<br />

esperanças e crença na transformação automática da sociedade”<br />

como para “vitalizar o conservantismo” (Fernandes, 1986, pp.12 e<br />

49). Neste caso, o PCN-Arte tem como objetivo estratégico fazer<br />

triunfar o homo aestheticus que nasce com a ideologia da pósmodernidade<br />

(maffesoli, 1996). mas há ainda uma outra motivação,<br />

que é alimentar a imagem que a intelligentzia faz do país e<br />

de si mesma, e origina-se no sentimento de “decadência” que ela<br />

nutre, quer em relação ao povo, quer em relação à velha oligarquia<br />

política. Dessa forma, muito embora o “mudancismo” (Fernandes,<br />

1986) sugerido seja apresentado como uma estratégia<br />

para dirimir o “atraso” de décadas, em verdade revelam-se objetivos<br />

inconfessáveis da intelligentzia, seja para sublimar a pressão<br />

que esta sente do sofrimento com a “decadência” (Freud,<br />

1997), seja para conquistar posições de poder (Fernandes, 1986).<br />

Como se observa, ainda aqui prevalece o lampedusismo, só que<br />

124<br />

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nesse caso sob a gestão de uma elite intelectual. E é essa visão<br />

empobrecedora do que seria a “cultura cívica” em nosso país<br />

que percebo dominante nas concepções pedagógicas de arte,<br />

de conhecimento artístico, de criação, de cultura e de educação<br />

estética nas diretrizes curriculares em questão.<br />

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127


SobRE o RELAtiViSmo<br />

EStétiCo<br />

PóS-moDERNo E SEu<br />

imPACto ExtRA-EStétiCo<br />

Walzi C. S. da Silva<br />

128<br />

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o presente artigo discute o relativismo estético sob as perspectivas do<br />

pós-modernismo, em especial em suas vertentes desconstrutivistas e relacionadas<br />

aos chamados programas fortes em filosofia da mente e ciência<br />

da cognição. São primeiramente apresentados preliminares de ordem histórico-filosófica<br />

– os antecedentes do relativismo estético. Em seguida, são<br />

discutidos os pressupostos dos programas desconstrutivistas, mostrando-se<br />

possibilidades e limitações. Finalmente, são apresentados os pilares dos programas<br />

fortes, em sua perspectiva causalista, externalista, na construção da<br />

experiência estética. A discussão encaminha-se finalmente a uma consideração<br />

do impacto das correntes relativistas sobre a perspectiva do pós-modernismo,<br />

suas aplicações em teoria do belo e a interdisciplinaridade em um<br />

influxo estético factual.<br />

this paper preliminarily addresses relativism through aesthetics. it aims at<br />

evaluating the bearings of a desconstructivist perspective on a Postmodernist<br />

appraisal of the so called strong programmes in philosophy of mind, the<br />

philosophical accessment of aesthesis and the social construction of art.<br />

Starting from relativism historical tenets, the exposition proceeds to a<br />

general presentation of desconstructivism, anti-foundationism in aesthetics<br />

and the merging of these two perspectives into the strong programmes.<br />

Developments try to cast some lights in the limits and forefront promises<br />

of these perspectives. in the article tail, the impact of relativism on<br />

postmodernism is considered; a sketch of relativistic approaches and<br />

applications on aesthetical values is cast. Constructivist negotiation is<br />

evaluated as a pathway to a new aesthetics as an interdisciplinary field.<br />

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Existe o belo absoluto? Existe o mundo real onde habita o belo<br />

absoluto? Existimos nós como consciências independentes aptas a<br />

experienciar o belo absoluto? o que nos traz o belo absoluto — o<br />

mundo real — é o que a nós parece? Será a linguagem natural um<br />

bom guia na trafegação entre nossa percepção, o belo e o mundo?<br />

temos nós a competência de operar mecanismos de simbolização<br />

mais poderosos que os da linguagem? Podemos criar pontes de<br />

significado entre mundos simbólicos que à primeira vista seriam<br />

tomados como distantes — ao exemplo: pode um fato político ser<br />

considerado um dado estético? Pode um evento histórico ser interpretado<br />

como uma obra de arte? Pode um símbolo tomar o lugar<br />

ontológico do que simboliza? Há limites para um relativismo estético/ontológico<br />

radical?<br />

o presente artigo aborda estas questões, em torno das quais discute<br />

a seguinte tese: nas sociedades onde a mídia exerce presença,<br />

penetração e impacto acentuados, realidades podem ser construídas<br />

e desconstruídas, fora do eixo de uma determinação causal histórico-política,<br />

um processo de construção e desconstrução bastante<br />

similar ao da gênese ontológica de uma obra de arte. trata-se de<br />

um artigo de intenção informativa — é uma atualização, um repositório<br />

de referência para o entendimento do relativismo estético,<br />

contendo, no entanto, uma discussão preliminar de teses polêmicas<br />

de fronteira — como a tese de Jean baudrillard de estetização do<br />

fato histórico-político com amplas implicações na ontologia de objetos<br />

sociais e no papel da midia como desconstrutora/construtora de<br />

uma pretensa realidade histórico-política.<br />

130<br />

1. ANtECEDENtES Do RELAtiViSmo EStétiCo<br />

Consideram-se relativistas todas as teses que postulam a dependência<br />

de um campo conceitual a algo — este algo constituindo-se<br />

no parâmetro em face do qual o campo conceitual é relativo. Em<br />

suas formas históricas inaugurais, o relativismo assumiu uma declinação<br />

cognitiva — aplicando-se ao conhecimento e aos processos<br />

individuais de crença — a partir da ação pragmática dos sofistas, sumarizada<br />

em duas exortações de Protágoras, aqui mencionadas sob<br />

licença literária mais livre: “Nada existe, se existisse não poderia ser<br />

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conhecido, se fosse conhecido não poderia ser comunicado” e “o<br />

homem é a medida de todas as coisas, das que são enquanto são e<br />

das que não são enquanto não são”. o relativismo cognitivo radical<br />

protagoreano, em que pese a acidentalidade e falta de contexto dos<br />

fragmentos dos pré-socráticos, coloca o homem, o indivíduo como<br />

parâmetro de variação — à época confluindo-se no homem dois<br />

componentes que mais tarde seriam destacados para originar dois<br />

diferentes tipos de relativismo: o componente subjetivo de ordem<br />

psicológica e o componente inter-subjetivo de ordem cultural. Já em<br />

sua forma protagoreana, o relativismo foi — se não em teoria mas em<br />

prática — estendido ao domínio da moral (foi conhecida a amoralidade<br />

dos Sofistas) e teve mencionada sua aplicação ao campo da arte<br />

“Dê-me as palavras de uma comédia e com elas escreverei uma tragédia”,<br />

mais uma exortação sofística com impacto em teoria da arte.<br />

Em suas vertentes amadurecidas a partir do século xx, o relativismo<br />

se triplica em cognitivo, moral e estético, e suas modalidades se<br />

bifurcam entre o tipo subjetivista (em que elementos da psicologia<br />

individual são considerados parâmetros de relatividade) e culturalista<br />

(em que elementos inter-subjetivos da cultura são considerados<br />

parâmetros de relatividade). os defensores mais robustos do relativismo<br />

cognitivo do século xx são, entre outros, Paul Feyerabend<br />

(Feyerabend 1988) e thomas Kuhn (Kuhn 1970). A ênfase do relativismo<br />

de Feyerabend é individual: anything goes (vale tudo) é uma<br />

exortação metodológica pela liberdade individual de construir visões<br />

de mundo, engajar-se em visões de mundo e pelo mais polêmico<br />

movimento: ter a liberdade, inerente à condição humana, de variar<br />

visões de mundo; pelo exercício da especulação cognitiva, o agente<br />

seria livre para a qualquer momento mudar as suas configurações de<br />

adoção de crença. Não no sentido de alterar uma crença em particular<br />

dentro de um sistema global deixado mais ou menos intocado,<br />

mas sim no sentido de descartar um inteiro sistema global e adotar<br />

outro, sem nenhuma limitação sobre a freqüência e abrangência<br />

destas alterações de estado cognitivo. thomas Kuhn, em seu turno,<br />

é um relativista histórico — a noção de um paradigma segundo Kuhn<br />

equivale-se à de uma visão-de-mundo cristalizada pela prática; um<br />

exemplo ou instância (exemplar) do que seja cognição, do que seja<br />

ciência, conhecer, do que seja método e de quais os problemas que<br />

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131


devem ser objeto de investigação, bem como o modo pelo qual devam<br />

ser investigados (Kuhn 1970).<br />

As teses do relativismo, contudo, rapidamente se expandiram sob<br />

novas formas a partir das décadas de 60 a 80 nos cenários filosóficos<br />

americano e europeu. As formas que aqui nos interessam mais proximamente<br />

envolvem uma aplicação do relativismo ao domínio da<br />

estética: existe o belo absoluto? A resposta é negativa. A noção de<br />

belo é construída e pode ser desconstruída e construída por meio<br />

de atos psicológicos ou tenazes culturais. trata-se de uma sutilíssima<br />

variação na concepção do belo: não é que gostemos da obra de arte<br />

porque seja ela belíssima, mas antes ela é belíssima porque gostamos<br />

dela. Quem toma contato com a obra de arte é um agente—constrói<br />

ativamente o evento artístico da contemplação ou contato com o<br />

belo; não é um paciente sobre o qual um repositório de “beleza”<br />

objetiva agiria produzindo o gozo do belo. o importante pronunciamento<br />

metodológico subjacente à idéia de que se inverte o eixo<br />

causal — não é o belo que emula a consciência, mas a consciência é<br />

que constrói o belo, que em feedback retorna a eulalia (estado geral<br />

de prazer e realização) da contemplação — envolve a possibilidade<br />

de desconstrução da beleza. o que o homem ou a cultura constrói<br />

pode certamente ser pelo homem e pela cultura desconstruído.<br />

o descontrutivismo talvez seja a forma mais ousada de relativismo,<br />

surgida e cultuada na academia filosófica sobretudo a partir<br />

da década de 80. Com um forte componente em teoria da arte,<br />

o desconstrutivismo propõe a competência do agente cognitivo<br />

para proceder a engenharia reversa do processo de constituição<br />

de uma realidade, seja via uma compulsão psicológica, seja via um<br />

pacto cultural. Que possamos abrir os fundamentos da psicologia<br />

e cultura para transitar livremente no encarte e no descarte de diferentes<br />

realidades estéticas, é uma tese polêmica. o argumento<br />

da mosca na garrafa é uma construção pictórica que negaria esta<br />

possibilidade: assim como uma mosca não tem aptidão cognitiva<br />

para descobrir o gargalo que a conduziria para fora de uma garrafa<br />

aberta, nós, agentes cognitivos em imersão em um esquema<br />

conceitual cultural, não somos aptos a descobrir o caminho que<br />

nos leve para fora da cultura. Não é possivel a ninguém sair dos tamancos<br />

de sua própria cultura. Há também o equivalente cognitivo<br />

132<br />

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desta tese: não temos uma neurofisiologia que nos permita transitar<br />

entre diferentes formas de vida — lembrando o conhecido aforismo<br />

de Wittgenstein: “What has to be accepted — the given is,<br />

so one could say, forms of life” — livremente traduzido como: “o<br />

que tem que ser aceito, o dado, poderíamos dizer que são formas<br />

de vida” (Wittgenstein 1958). Neste sentido, não há trânsito cognitivo<br />

entre diversos sistemas simbólicos, restrição que também se<br />

aplica a sistemas estéticos: embora o belo não seja absoluto, cada<br />

um de nós se encontra de certo modo capturado, em virtude de<br />

imperativos psicológicos ou culturais, por um sistema codificador<br />

do belo. Quando estranhamos escalas musicais distintas da nossa<br />

diatônica, quando não conseguimos realizar a beleza de uma<br />

obra de arte de vanguarda, estamos limitados por esta restrição.<br />

é também conhecida como tese da incomensurabilidade ou como<br />

a posição denominada incomensurabilismo: não há diálogo, não<br />

há trocas possíveis entre distintos esquemas conceituais. Quando<br />

agentes ou pacientes cognitivos/estéticos estão imersos em diferentes<br />

culturas ou em diferentes rationales ou em diferentes visões<br />

de mundo, não podem comunicar-se porque suas perspectivas<br />

são intradutíveis. Consoantemente à tese incomensurabilista, um<br />

agente cognitivo individual não pode submeter-se a uma gênese<br />

de sucessão de diferentes esquemas conceituais, quando estes esquemas<br />

são incomensuráveis entre si. Só há mudança dentro de<br />

uma família de esquemas conceituais não-incomensuráveis, família<br />

que constrói o horizonte cognitivo — identificado mesmo com o<br />

horizonte ontológico — de cada agente nela imerso.<br />

No fim da década de 60, em um movimento que se prolongou até a<br />

década de 80 do século passado, contudo, vieram à tona certos movimentos<br />

intelectuais, da tradição pós-moderna, que vigorosamente<br />

negam a restrição da incomensurabilidade. Estes movimentos são<br />

o interacionismo Simbólico (originado como um epifenômeno da<br />

psicologia social de George Herbert mead — (mead s/d) e sistematizado<br />

por Herbert blummer (blummer 1969)) e os Programas Fortes<br />

em antropologia do conhecimento (principalmente como em barry<br />

barnes (barnes 1967) e David bloor (bloor 1976). A tese do interacionismo<br />

simbólico sumariza-se como:<br />

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133


134<br />

os agentes sociais não agem em função de realidades objetivas,<br />

mas sim em função de atribuições simbólicas que de<br />

modo tácito eles mesmos produzem face a “tokens” capazes<br />

de exercer o papel de símbolos.<br />

um token é definido como portador de significado — meaning bearer.<br />

o manifesto metodológico global do interacionismo simbólico<br />

envolve afirmar que, para um agente social, tudo é um token. Assim<br />

como Kant nos nega o acesso aos noumena — a realidade em si, a<br />

coisa-em-si e apenas nos concede o acesso aos fenômenos — a realidade<br />

como embalada por nossa estrutura de categorias apriori fundadas<br />

nas condições de possibilidade do nosso conhecimento — o<br />

interacionismo simbólico nos nega igualmente o acesso a qualquer<br />

coisa que não seja um objeto construído numa relação de simbolização<br />

entre o agente perceptual e o que se percebe.<br />

A tese do interacionismo simbólico pode ser inteiramente transcrita<br />

em termos cognitivos, e, destes termos cognitivos, pode ser inteiramente<br />

parafraseada em termos estéticos. De um ponto de vista cognitivo, o<br />

agente interacionista só perceberia o que constrói como seu eixo de<br />

significados. Realities are meanings — afirmam: realidades (sim, no plural)<br />

são os significados. Do mesmo modo, quando a atividade cognitiva<br />

é uma atividade estética, o belo passa a ser considerado não como um<br />

valor fundado em uma ordem absoluta, mas sim um valor construído a<br />

partir de uma ação simbolizadora tácita do agente. interessante aspecto<br />

é — para esta modalidade de construtivismo estético, o momento de<br />

construção do belo por parte da interação cognitiva de ordem simbólica<br />

requer uma desconstrução prévia da noção de belo absoluto. ou<br />

requer ao menos a admissão de um pressuposto desconstrutivista — o<br />

que nos leva ao segundo grupo de teorias relativistas cognitivas e estéticas,<br />

que é o derivado dos programas fortes — sobretudo em psicologia<br />

e antropologia do conhecimento.<br />

o desconstrutivismo é o manifesto hermenêutico do pós-modernismo.<br />

o que chamamos de “realidade” está aí para ser desmantelado<br />

por processos analíticos masterizados pelo homem. Pelo<br />

homem entendido como agente cognitivo. o termo agente aqui<br />

não é uma escolha puramente convencional de palavras (o pósmodernismo<br />

em certo sentido atende à exortação de Karl Popper:<br />

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“Never quarrel about words”— jamais duelar somente sobre palavras.<br />

Agente opõe-se a paciente. uma teoria estética que supõe o<br />

agente estético pode ser denominada ativista, em oposição à estética<br />

derivada, por exemplo, do neoplatonismo, em que o esteta é<br />

um paciente sobre o qual se imprime em tábula rasa, um belo absoluto:<br />

o belo do noumenom. Quando, por exemplo, um esteta como<br />

Guy Debord afirma que a nossa sociedade se constitui de modo<br />

negociado como uma matriz de espetáculo (Debord 1967) — uma<br />

tese próxima à inspiração do filme americano matrix, no qual a realidade<br />

como nos aparenta pode ser essencialmente diferente do<br />

construto que ela é —, temos a trabalho a tese relativista estética<br />

pós-moderna. matrix: diante dos nossos olhos mas não o vemos,<br />

diante de nossos sentidos mas não a sentimos senão mediante um<br />

processo: o processo de desconstrução. No caso de Debord, a mídia<br />

é o agente cognitivo, a enzima ativista de um processo de simbolização<br />

que produz uma realidade subjacente à aparência, à qual nós<br />

podemos em noesis ascender se tivermos mestria de desconstrução/reconstrução.<br />

Note-se o extremo realismo que na maior parte<br />

das vezes reveste os atuais jogos de internet, programas televisivos<br />

e jogos computacionais de indução/sobreposição de realidades na<br />

linha dos reality-shows, exemplos como os do sistema Second Life<br />

na midia televisiva e na internet mundial. São exemplos ativos da<br />

capacidade desconstrucionista/reconstrucionista da qual a mídia e<br />

demais agentes cognitivos estéticos são artífices.<br />

Neste segmento da tradição pós-moderna, a noesis não é contudo<br />

a platônica: em Platão, ao sábio que contemplou a luz não resta<br />

mais a alternativa das trevas. o sábio não pode proceder a dialética<br />

descendente ao mundo da aparência, uma vez tenha procedido a<br />

dialética ascedente ao mundo da essência. Já no desconstrutivismo<br />

pós-moderno, temos antes um gestalt-switch do tipo duckrabbit:<br />

Podemos converter/desconverter; acionar/desacionar a percepção<br />

sobre o objeto do gestalt-switch ou reversão gestáltica. o eixo da<br />

construção simbólica estética se alterna então com o da desconstru-<br />

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ção em um looping, um contínuo que cabe ao hermeneuta pós-moderno<br />

surpreender, decifrar e em certo sentido, desmascarar. o que<br />

seja a realidade dependerá essencialmente do momento em que<br />

congelarmos o pêndulo da reconstrução/desconstrução. Este seria<br />

um impacto extra-estético de uma teoria ativista estética de ordem<br />

relativista. Exatamente o instrumento metodológico de intervenção<br />

que pensadores como Debord utilizam para introduzirem até contrafactuais<br />

histórico-políticos e a imputação de uma realidade que<br />

difiram tanto da percepção do bom senso quanto a matrix diferia<br />

da realidade — o software do filme de mesmo nome, que simula a<br />

nossa inteira realidade sobrepondo-a a uma outra atroz que difere<br />

da percepção do senso comum. Assim, estão lançadas as bases do<br />

relativismo estético, com amplas conseqüências no âmbito das ciências<br />

do homem—o que veremos a seguir.<br />

136<br />

2. RELAtiViSmo EStétiCo E PRoGRAmAS FoRtES<br />

os Programas Fortes em sociologia, história, antropologia e psicologia<br />

do conhecimento têm sua origem remota na sociologia do<br />

conhecimento de Karl mannheim (mannheim 1952). Sua gênese recente<br />

procede a partir de um grupo de filósofos de inclinação naturalista<br />

conhecido como A Escola de Edinburgo (bloor 1976, barnes<br />

1967). A principal tese dos adeptos dos programas fortes é uma negativa<br />

de que se possam construir modelos de racionalidade puramente<br />

internalistas—ou seja, modelos que expliquem a gênese e a<br />

fundamentação do conhecimento e da cultura somente através de<br />

valores absolutos, justificados, internos ao modelo. Em oposição a<br />

estes, os adeptos dos programas fortes propõem a adoção de políticas<br />

externalistas—ou seja, justificação e reconstrução da gênese<br />

e fundamentação do conhecimento e da cultura levando em conta<br />

nexos causais, empíricos, externos ao modelo de racionalidade. Nexos<br />

do domínio de fato e medida, em oposição a nexos baseados<br />

em valores absolutos. Para os adeptos dos programas fortes, não<br />

há nenhuma indignidade em se propor que os valores e processos<br />

cognitivos que a tradição filosófica clássica considera intocados pelo<br />

tempo, pela cultura, pela adversidade factual, sejam antes sujeitos a<br />

estas ordens, contingentes portanto e não absolutos.<br />

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As implicações desta posição sobre uma teoria estética de ordem<br />

relativista são imediatas. Não há o belo como essência invariante,<br />

imune ao tempo, à variação sincrônica e diacrônica dos fatos. mesmo<br />

aqueles valores aparentemente mais fixados pelas tradições por<br />

exemplo artísticas — como, digamos, as escalas harmônicas/diatônicas<br />

da música ocidental — podem ser objeto de variação de origem<br />

cultural e/ou psicológica. Nos programas fortes, admite-se a<br />

existência de um vetor causal que leva da cultura e da psicologia<br />

para a determinação de um eixo do que seja belo. o próximo passo<br />

é determinar qual é a extensão ontológica da construção estética.<br />

Para os relativistas estéticos radicais, uma inteira realidade pode ser<br />

construída como um processo de picturação (trata-se aqui de um<br />

neologismo para picturing/imagery) de ordem artística. Esta tese tem<br />

uma contraparte de ordem culturalista, que resulta em correntes de<br />

antropologia e sociologia da cultura.<br />

Estrito senso, o que chamamos de realidade? Para os relativistas estéticos<br />

radicais, a realidade é aquela imagem, dentre as picturações<br />

possíveis, que achamos bela. Aquela que apreciamos, que gostamos.<br />

observar aqui uma sutil inversão gestáltica: não se trata de afirmar<br />

que gostamos do belo porque é belo, mas sim afirmar que o que é<br />

belo, é belo porque dele gostamos. Por que a escala diatônica nos<br />

toca ao coração ocidental? Porque gostamos dela — e não o contrário.<br />

Por que a escala da cítara indiana nos causa a nós, ocidentais,<br />

espécie? Porque não estamos afinados para ela. Nossa rede neural<br />

não está wired (cabeada) para este modelo de beleza — mas ele é um<br />

modelo possivel, dentre tantos de inúmeros mundos possíveis. temos<br />

uma competência inata para apreender rapidamente o mundo<br />

em que nos encontramos e excluir os demais mundos possíveis. A<br />

partir deste processo de seleção, o mundo possível que escolhemos<br />

se confunde com nossa realidade. Eis a quintessência do pós-modernismo<br />

sob inspiração dos programas fortes: o eixo estético sobrepõese<br />

ao eixo ontológico. A construção da realidade é um epifenômeno<br />

da construção da beleza. A cognição é a forja da substância. ora se o<br />

relativismo estético radical assim compreende o eixo ontológico, digamos<br />

dos objetos físicos, no espirito de uma ontologia relativista, é<br />

imediata e muito mais fácil, ipso facto, a passagem para o relativismo<br />

ontológico sobre o objeto das ciências do homem.<br />

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é possível que esta passagem tenha sua origem na inversão relativista<br />

do dictum: “Há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe<br />

nossa vã inteligência.” Para uma ontologia relativista baseada no<br />

primado da cognição estética sobre a constituição da ordem existente,<br />

valeria antes: “Há menos coisas entre o céu e a terra do que<br />

supõe nossa vã inteligência.” Esta tirada foi comum entre os lógicos<br />

do início do século xx, quando descobriram a fecundidade das lógicas<br />

não-clássicas gerando ontologias não-clássicas, inconsistentes,<br />

anti-simétricas, paraconsistentes. Coincidiu com o boom da física<br />

quântica, do principio da incerteza; no âmbito das ciências formais,<br />

coincidiu com os teoremas limitadores do formalismo e da profusão<br />

de geometrias não-clássicas e diferenciais. Dada a licença estética<br />

desconstrutivista, o eixo dos fenômenos sociais, psicológicos, culturais,<br />

passa a ser constituído mediante esta licença.<br />

Neste sentido é que se pode dizer que os gestores das trocas simbólicas<br />

nas sociedades industriais contemporâneas são em última<br />

instância os artífices de nossas realidades (aqui cabe sim o plural).<br />

Neste sentido, as diversas formas de mídia imperam neste ofício de<br />

nos servir de bandeja—mas sub-repticiamente—nosso senso de real.<br />

Que parte de nós sobrevive incólume e consegue se realizar ausente<br />

das construções culturais de uma sociedade onde a mídia prepondera?<br />

Há o zumbi cognitivo que consegue experimentar somente a<br />

si mesmo e reconstruir uma ordem solipsista existente, à ausência<br />

do contexto cultural? Para a maior parte das sociedades industriais<br />

contemporâneas, a resposta a esta pergunta é contundentemente<br />

negativa. A antropologia filosófica clássica nos definiu os homens e<br />

mulheres como racionais e gregários. o relativismo estético radical<br />

desconstrutivista nos define como o resultado do belo do momento.<br />

Como o resultado da interação simbólica vertiginosa e constante da<br />

mídia.<br />

Atribui-se a Sócrates o dito: “A educação é o apurar de uma chama,<br />

não o preenchimento de um vaso.” muito do processo de constituição<br />

ontológica de nossas realidades é realizado mediante a paidéia—<br />

educação no sentido grego de ascensão à humanidade. o relativismo<br />

estético radical estende a noção de educação, conferindo-lhe contingência<br />

máxima: não é um processo limitado à escola formal, mas sim<br />

um processo em constante fluxo pela imersão cultural em uma so-<br />

138<br />

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ciedade midializada. A mídia apura a chama, não preenche nenhum<br />

vaso com uma ordem ontológica absoluta. Esta é uma das aplicações<br />

mais profícuas do relativismo estético sob a perspectiva dos programas<br />

fortes de ordem cognitivista e culturalista.<br />

3. AtiViSmo E iNtERVENCioNiSmo CoGNitiVo: QuEStõES GERADoRAS<br />

temos agora a base necessária para abordarmos, na perspectiva<br />

sob estudo no presente artigo, as questões básicas que lhe foram<br />

geradoras. Existe o belo absoluto?<br />

— Não.<br />

Existe o mundo real onde habita o belo absoluto?<br />

— Não.<br />

Existimos nós como consciências independentes aptas a experienciar<br />

o belo absoluto?<br />

— Sob os pressupostos do relativismo estético radical, nós somos<br />

consciências ativas a construir o que se toma por absoluto.<br />

o que nos traz o belo absoluto — o mundo real — é o que a nós<br />

parece?<br />

— Nunca saberemos e não precisamos saber. Não sabê-lo e saber<br />

que não o sabemos concede-nos enorme liberdade e poder.<br />

Será a linguagem natural um bom guia na trafegação entre nossa<br />

percepção, o belo e o mundo? temos nós a competência de operar<br />

mecanismos de simbolização mais poderosos que os da linguagem?<br />

— As linguagens naturais são um dos mais fortes instrumentos de<br />

intervenção. Fazemos coisas com palavras. mas não é o único; toda<br />

outra forma de linguagem serviria de instrumento de intervenção<br />

— algumas formas de linguagem com capacidade simbólica mais extensa<br />

que a de uma linguagem natural. A obra de arte — terá maior<br />

poder expressivo para a constituição de uma ontologia relativizada;<br />

temos sim o poder de operar instrumentos simbolizadores mais fortes<br />

do que os da linguagem natural.<br />

Podemos criar pontes de significado entre mundos simbólicos que<br />

à primeira vista seriam tomados como distantes — ao exemplo: pode<br />

um fato político ser considerado um dado estético? Pode um evento<br />

histórico ser interpretado como uma obra de arte? Pode um símbolo<br />

tomar o lugar ontológico do que simboliza?<br />

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— Sim três vezes, aqui. Chegamos então à mais ousada provocação<br />

metodológica do relativismo estético radical pós-moderno. é<br />

possivel, sim, considerar mesmo fatos históricos ou políticos considerados<br />

duros, objetivos e objetais (hard facts) como na realidade<br />

negociados e construídos (artifacts). Arte-fatos, se o trocadilho cabe.<br />

A licença libertária do relativismo estético pós-moderno é: podemos<br />

questionar toda ordem factual histórica e política que nos seja apresentada<br />

e imputá-la o caráter de uma particular interpretação/representação,<br />

de ordem não absoluta. Podemos também nos considerar<br />

especulativamente libertos para oferecer construções alternativas.<br />

Neste sentido, não é absurda a presença de uma corrente interpretativa<br />

de dados da mídia como a que afirma não ter exatamente havido,<br />

como descrito, a conquista da Lua em 1969 (internet 1). ou a interessante<br />

recaracterização do streamming da mídia sobre a Guerra do<br />

iraque, que leva baudrillard a propor que, sob a ótica correta, para o<br />

homem médio não houve uma Guerra do iraque exatamente como<br />

noticiada por força do próprio modo em que foi noticiada pela mídia.<br />

ou a conhecida tese do relativismo legal: não há fatos jurídicos, tudo<br />

pode ser sujeito a interpretação. A realidade é negociada. o belo é<br />

negociado. o belo é a realidade, e a realidade é o belo. Nesta perspectiva,<br />

o agente cognitivo — que neste caso é o agente estético<br />

— adquire atividade máxima, real capacidade de intervir na ordem<br />

ontológica e costurar o ser, como o apurar socrático de uma chama.<br />

um dos eixos mais ousados e profícuos do relativismo estético<br />

pós-moderno é exatamente esta liberdade especulativa concedida<br />

ao agente cognitivo, uma liberdade semelhante à licença artística.<br />

Este impulso pode ter sido determinante das principais revoluções<br />

do século xx: do modernismo brasileiro aos beatniks; da liberdade<br />

quântica de Viena da virada do século ao orientalismo hippie — e<br />

explicam-se as confluências de águas de extrema diversidade que de<br />

certo modo populam a imagery das sociedades industriais do ocidente.<br />

Não só Nova York merece a alcunha de melting pot — amálgama<br />

de variedades — mas a vida diária do homem comum, por mais<br />

plana que pareça, também é assim. Nós somos bombardeados diariamente<br />

por uma extrema combinação de diferenças. A mídia das<br />

mídias — a internet — nos mantém em contato com extrema variância,<br />

e mesmo o mais estático dos pacientes cognitivos acaba premido<br />

140<br />

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a tomar suas próprias decisões e construir ativamente seu universo<br />

simbólico de referência. Que ele considerará, antes de tudo, belo. E<br />

que a partir desta beleza atribuída, constrói-se e negocia-se o eixo<br />

de uma realidade.<br />

o relativismo estético não requer que o construtor da realidade<br />

seja um indivíduo solipsista. A construção mais ousada será aquela<br />

compartilhada socialmente, culturalmente, historicamente. o agente<br />

interventivo poderá ser um agente grupal, um agente comunitário,<br />

um millieux simbólico. o resultado será a diversidade — fauna e<br />

flora simbólicas distribuídas no tecido urbano com a mesma diversidade<br />

da selva amazônica. o convívio de distintas realidades é talvez<br />

um dos significados da democracia simbólica: os diversos tecelões<br />

de diversas ordens ontológicas podem conviver. A abordagem é<br />

compatibilista. o que nos leva a uma questão final: há limites para<br />

um relativismo estético/ontológico radical?<br />

4. LimitES: PARACoNSiStêNCiA Do RELAtiViSmo EStétiCo<br />

PóS-moDERNo<br />

o que em geral amedronta nas propostas relativistas mais radicais<br />

é a perspectiva de uma permissividade sem limites. uma licença libertária<br />

para a interpretação sem constrangimentos. Contudo, não<br />

se pode afirmar que a existência de uma licença libertária, de cunho<br />

artístico, na constituição do belo e com ele na determinação de um<br />

eixo ontológico, resulte em trivialidade cognitiva, lógica ou moral.<br />

Fixar limites neste caso é importante para resgatar a fecundidade da<br />

perspectiva. Para tanto, precisamos mencionar a noção de paraconsistência,<br />

que tem sua origem na lógica proposicional. tem aplicações<br />

em quaisquer outros sistemas de normas e valores.<br />

o imaginário clássico sobre o lógico caracteriza-o como um agente<br />

que tenha horror à contradição. No entanto, os teoremas limitadores<br />

do formalismo demonstraram no meio do século passado que não<br />

se demonstram a um mesmo tempo a completude e a consistência<br />

de um sistema lógico: entendendo-se por completude a propriedade<br />

metalógica de um sistema ser capaz de derivar, a partir de seus<br />

axiomas e pela aplicação de suas regras de inferência, todos os seus<br />

teoremas, e como consistência a propriedade de não ser derivável no<br />

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sistema nenhuma contradição. os teoremas limitadores em última<br />

instância afirmam que ou bem demonstramos a consistência (e empobrecemos<br />

o sistema de tal modo que tenhamos que abrir mão da<br />

completude) ou bem demonstramos a completude (e enriquecemos<br />

o sistema a ponto de ele necessariamente nos permitir a derivação<br />

de contradições). o que há de errado com uma contradição? é o fato<br />

de, se admitirmos uma contradição em um sistema lógico clássico,<br />

podermos dela derivar qualquer coisa. o sistema se tornaria supercompleto<br />

ou trivial: ou seja, toda sentença bem-formada do sistema<br />

seria um teorema; poderíamos nele derivar qualquer proposição. os<br />

sistemas triviais costumam ser destituídos de interesse epistêmico.<br />

A trivialidade em lógica pode ser transcrita para outros sistemas de<br />

normas: em teoria da moral, um sistema moralmente trivial é um sistema<br />

dentro do qual tudo é permitido, nada é proibido; em heurística,<br />

tudo é problema e tudo é solução; em hermenêutica, todo ato<br />

interpretativo é correto; em estética, finalmente: tudo é belo e tudo<br />

é feio; em metodologia, anything goes (tudo funciona). A trivialidade<br />

realmente seria uma ameaça e costuma ser considerada o esqueleto<br />

no armário de toda proposta relativista. Contudo, o antídoto para<br />

esta crítica que aparentemente exporia o flanco do relativismo estético<br />

pós-moderno tem sua origem também na lógica formal.<br />

Chamamos um sistema lógico de paraconsistente quando satisfaz<br />

duas propriedades: (a) podemos derivar nele uma contradição, mas<br />

(b) podemos provar dentro do sistema que há proposições que não<br />

podem ser demonstradas como teoremas. ou seja, um sistema é paraconsistente<br />

quando ele é inconsistente mas não-trivial. ora — o que<br />

horrorizava os lógicos clássicos não era somente a contradição, mas sobretudo<br />

a trivialidade dela decorrente. Se conseguimos trabalhar com<br />

sistemas contraditórios provando de saída que, a despeito de contraditórios,<br />

não são triviais, temos um campo não-destrutivo de relativismo.<br />

ou melhor, não autodestrutivo. o trabalho em lógicas paraconsistentes<br />

é marca de um grupo de lógicos e filósofos brasileiros, liderados<br />

por N. C. A. Da Costa (Da Costa 1963). mas a noção de paraconsistência<br />

pode ser aplicada muito além do domínio da lógica pura.<br />

o relativismo estético pós-moderno pode ser considerado paraconsistente<br />

no sentido de que, embora haja o convívio de perspectivas<br />

ontológicas radicalmente distintas (no exemplo conhecido de<br />

142<br />

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audrillard: houve Guerra do iraque versus não houve Guerra do<br />

iraque), no interior de um sistema construído existem restrições à<br />

trivialidade. ou seja, mesmo a mais ousada especulação exclui alguma<br />

possibilidade, e, com isso, preserva-se contra ser trivial. Em<br />

epistemologia, denomina-se de conteúdo lógico de uma teoria tudo<br />

o que ela implica mediante alguma lógica; e denomina-se de conteúdo<br />

empírico de uma teoria tudo o que ela exclui, ou seja, tudo o<br />

que dela se implique a negação, de um ponto de vista lógico. mesmo<br />

se na perspectiva relativista estética pós-moderna houver o convívio<br />

de perspectivas ontológicas rivais, ainda assim, dentro de uma dada<br />

perspectiva podemos provar que há conteúdo empírico — ou seja,<br />

as perspectivas internamente são incompatíveis com pelo menos<br />

um mundo possível. isso garante-lhes a não-trivialidade.<br />

De um ponto de vista pragmático, como esta visão pode ser útil,<br />

por exemplo, aos leitores mais prováveis do presente periódico: os<br />

especialistas em educação social. ora, a perspectiva discutida favorece<br />

certo elenco de estratégias de intervenção e ação que têm<br />

impacto propedêutico, ou seja, impacto pedagógico-educacional.<br />

Em todos os níveis da performance pragmática de profissionais de<br />

todas as áreas constituintes do mercado — dos ídolos do mercado<br />

— lembramos a teoria dos idola de Francis bacon — ganha aquele<br />

profissional que souber melhor adaptar-se, exatamente, à variedade<br />

da mídia. À diversidade dos sistemas de belo, de crença, de valores,<br />

de visões de mundo. Vale lembrar uma interessante passagem de<br />

Karen blixten, lembrada por Paul Feyerabend:<br />

A ausência de preconceitos no Nativo [africano de Kenia] é<br />

algo de intrigante se você espera encontrar obscuros tabus<br />

em tribos primitivas. Ela é devido, creio eu, à sua familiaridade<br />

com uma variedade de raças e tribos, e ao vívido intercurso<br />

humano que foi trazido à África oriental, primeiro<br />

pelos antigos negociantes de ébano e escravos e em nossos<br />

dias [década de 30] pelos posseiros [europeus] e pelo jogo<br />

pesado da caça. Quase todo nativo, desde o pastor menino<br />

das planícies, teve seu dia de se encontrar face a face com<br />

um inteiro espectro de nações tão diferentes entre si, e dele,<br />

quanto um siciliano de um esquimó: britânicos, judeus, di-<br />

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namarqueses, árabes, somalianos, indianos, swhaeli, maçai e<br />

kawirondos. No que tange à receptividade de idéias, o Nativo<br />

é mais um homem do mundo do que o posseiro suburbano<br />

provincial, ou do que o missionário—que cresceram em uma<br />

comunidade uniforme com um conjunto de idéias estáveis.<br />

muito dos desentendimentos entre brancos [europeus] e<br />

Nativos [africanos] surge deste fato. (Karen blyxten apud Feyerabend<br />

1988, 20).<br />

A liberdade ontológica que o relativismo estético pós-moderno<br />

possibilita, sugestão também presente na obra de outros autores<br />

da tradição, desde a opus magna de Deleuze e Guattari de 1972,<br />

Capitalismo e esquizofrenia: o anti-édipo (Deleuze 1972). o conceito<br />

aqui é o da licença para reconstruir, reinterpretar, impetrar<br />

novos valores estéticos com liberdade, que tenham primado sobre<br />

a constituição do elemento ontológico. trata-se quase de uma teoria<br />

da viabilização de utopias. o que se enseja que exista, assim<br />

será. o que se constitui como uma matriz de valores, se instancia.<br />

o interjogo entre realidade/irrealidade; sonho, ilusão/realismo;<br />

verdadeiro/falso não pode ser compreendido ou encetado apenas<br />

de um ponto de vista fundacionista ou objetivista. Há que haver<br />

a licença artística. ora a licença artística é exatamente o que faz a<br />

obra de arte pairar sobre e independente da determinação terrena,<br />

da causação física ou social, do determinismo cultural. A obra de<br />

arte, o belo, não se deixa tanger pelos determinantes dos trilhos<br />

absolutos. A ilusão pode se tornar realidade, o sonho pode ser a<br />

melhor via para o realismo, o verdadeiro e o falso assumem papéis<br />

cruzados—verdade depende de uma relação pictórica com uma<br />

construção social, com primado do elemento estético e da ação<br />

dos construtores do Espetáculo. trata-se sem dúvida de uma posição<br />

bastante estimulante, que convida a reflexões mais aprofundadas<br />

e, no que tem de iconoclasta de tradições clássicas e positivistas,<br />

abre uma perspectiva de pesquisa profícua.<br />

Este é o impacto extra-estético do relativismo estético pós-moderno.<br />

Nós vivemos em um millieux de diversidade. Não podemos mais<br />

referenciar-nos a uma razão monológica. Não podemos mais viver a<br />

bipolaridade que foi tão típica, por exemplo, do período da Guerra<br />

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Fria: esquerda/direita; certo/errado; negro/branco; belo/feio; proibido/permitido;<br />

existente/inexistente.<br />

os limites de aplicação desta perspectiva pós-moderna ainda se<br />

encontram expandindo. Há aplicações em computação não-clássica,<br />

teoria dos autômatos; em matemática e lógica: imagine-se a relativização<br />

da matemática e da lógica formal, no espirito por exemplo do<br />

volume de bloor (bloor 1983); ou uma antropologia da matemática,<br />

no espírito de Livingston (ver Livingston 1986 e DaSilva 1996). A extensão<br />

de uma navalha de corte estético-culturalista mesmo dentro<br />

de disciplinas que classicamente seriam tomadas como repousando<br />

em fundamentos objetivos, atemporais, intocados pelo tempo e<br />

pelo espaço, é uma marca do pós-modernismo e das correntes hermenêuticas<br />

que em torno dele se erigiram, propondo grande liberdade<br />

e atividade ao agente da cognição: uma liberdade comparável<br />

à da criação artística instruída.<br />

o jogo de cintura cognitivo, a habilidade de traduzir a diferença<br />

em termos de positividade heurística e ganho estratégico, é algo que<br />

se espera por exemplo de quem tange um mercado, forma profissionais,<br />

ocupa posições de gerência estratégica e tomada de decisão<br />

sobre educação e cultura. Por isso um tema aparentemente tão<br />

distante quanto o relativismo estético pós-moderno pode vir a ter<br />

aplicação no varejo da trajetória pessoal dos que constroem os idola<br />

do mercado cultural.<br />

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Esta revista foi composta nas tipologias optima, em corpo 10/9/8,5, e itC officina Sans,<br />

em corpo 26/16/9/8, e impressa em papel off-set 90g/m 2 , na Set Print Gráfica e Editora.

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