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v.2 nº5<br />
setembro > dezembro | 2007<br />
SESC | Serviço Social do Comércio<br />
Administração Nacional<br />
iSSN 1809-9815<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 1-148 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007
SESC | Serviço Social do Comércio | Administração Nacional<br />
PRESiDENtE Do CoNSELHo NACioNAL Do SESC<br />
Antonio oliveira Santos<br />
DiREtoR GERAL Do DEPARtAmENto NACioNAL Do SESC<br />
maron Emile Abi-Abib<br />
CooRDENAÇÃo<br />
Gerência de Estudos e Pesquisas / Divisão de Planejamento e Desenvolvimento<br />
CoNSELHo EDitoRiAL<br />
Álvaro de melo Salmito<br />
Luis Fernando de mello Costa<br />
mauricio blanco<br />
Raimundo Vóssio brígido Filho<br />
secretário executivo<br />
Sebastião Henriques Chaves<br />
assessoria editorial<br />
Andréa Reza<br />
EDiÇÃo<br />
Assessoria de Divulgação e Promoção / Direção Geral<br />
Christiane Caetano<br />
projeto gráfico<br />
Vinicius borges<br />
revisão<br />
márcio mará<br />
<strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong> / Serviço Social do Comércio.<br />
Departamento Nacional - vol.2, n.5 (setembro/<br />
dezembro) - Rio de Janeiro, 2007<br />
v. ; 29,5x20,7 cm.<br />
Quadrimestral<br />
iSSN 1809-9815<br />
1. Pensamento social. 2. Contemporaneidade. 3. brasil.<br />
i. Serviço Social do Comércio. Departamento Nacional<br />
As opiniões expressas nesta revista são de inteira responsabilidade dos autores.<br />
As edições podem ser acessadas eletronicamente em www.sesc.com.br.
SumÁRio<br />
EDitoRiAL4<br />
bioGRAFiAS5<br />
A iNSuPoRtÁVEL LEVEzA Do CAPitAL8<br />
ExCERtoS A PARtiR DE bAuDRiLLARD<br />
André Queiroz<br />
muDANÇAS SoCiEtÁRiAS E<br />
CRiSE Do EmPREGo44<br />
miStiFiCAÇõES, LimitES E PoSSibiLiDADES DA FoRmAÇÃo PRoFiSSioNAL<br />
Gaudêncio Frigotto<br />
CoNFuSõES Em toRNo DA<br />
NoÇÃo DE PúbLiCo76<br />
o CASo DA EDuCAÇÃo SuPERioR<br />
(PRoViDA PoR QuEm, PARA QuEm?)<br />
Ricardo barros, mirela de Carvalho, Samuel Franco, Rosane mendonça e Paulo tafner<br />
ENtRE A ESPERANÇA E A REALiDADE<br />
SobRE A ARtE E o SEu ENSiNo100<br />
Ronaldo Rosas Reis<br />
SobRE o RELAtiViSmo EStétiCo<br />
PóS-moDERNo E SEu<br />
imPACto ExtRA-EStétiCo128<br />
Walzi C. S. da Silva
EDitoRiAL<br />
Vive-se uma época de muitas perguntas à procura de respostas.<br />
Pode-se afirmar que as mudanças ocorridas nas últimas décadas<br />
obrigaram os produtores de conhecimento a rever paradigmas e<br />
chaves de pensamento. As formas de pensar demonstraram-se condutos<br />
inadequados à sua finalidade.<br />
A leitura da produção científica contemporânea indica a pesquisa<br />
de respostas em sintonia com indagações antecedentes. Sabem os<br />
pensadores da contemporaneidade que suas reflexões são obras em<br />
aberto, suscetíveis de serem apenas aproximações pálidas do que<br />
intentam compreender. Entretanto, possuem a consciência da construção<br />
passo a passo, com avanços e recuos. mais importante do que<br />
a verdade procurada é a busca sem esmorecimento. Se não existe o<br />
caminho, cabe ao caminhante fazê-lo.<br />
o quinto número da revista <strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong> é uma manifestação clara<br />
destas assertivas, e bom indicador do quadro de revisão e novas<br />
compreensões de distintas questões apresentadas na ordem econômica<br />
e social dos dias de hoje.<br />
os temas abordados pelos articulistas não são inéditos. inéditas<br />
são suas leituras dos fenômenos escolhidos. São artigos polêmicos<br />
e questionadores, que trazem novos olhares sobre os objetos analisados,<br />
contribuindo significativamente para os propósitos da revista<br />
<strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong>, de incentivar a pluralidade de pensamento.<br />
Esperamos que tais exames sejam incorporados como referência<br />
ao processo de reflexão da academia e da sociedade, tão necessário<br />
em um país que se transforma numa velocidade maior do que a nossa<br />
capacidade de entendimento.<br />
Antonio oliveira Santos<br />
Presidente do Conselho Nacional do SESC
ioGRAFiAS<br />
André Queiroz<br />
é filósofo. Cursou Artes Cênicas na uni-Rio. mestre em Filosofia (PuC-Rio),<br />
doutor em Psicologia Clínica (PuC-SP). Professor no Programa de Pós-Graduação<br />
em Comunicação e no Departamento de Estudos Culturais e mídia<br />
da uFF. Escritor e ensaísta, autor de A morte falada (7Letras, 1998); Foucault<br />
– o paradoxo das passagens (Pazulin, 1999); tela atravessada – ensaios<br />
sobre cinema e filosofia (Cejup, 2001); o sonho de nunca (7Letras, 2004);<br />
outros nomes, sopro (7Letras, 2004); o presente, o intolerável... Foucault e<br />
a história do presente (7Letras/Faperj, 2004); Em direção a ingmar bergman<br />
(7Letras, 2007); Antonin Artaud, meu próximo... (Pazulin, 2007) e de inflexões<br />
baudrillard (a sair). Coorganizador dos seguintes livros: Foucault hoje? (7Letras/PPCom-uFF,<br />
2007); barthes e blanchot: um encontro possível? (7Letras/<br />
PPCom-uFF, 2007) e de Pensar de outra maneira a partir de Cláudio ulpiano<br />
(Pazulin, 2007).<br />
Gaudêncio Frigotto<br />
Doutor em Educação pela PuC-SP. Professor do Programa de Pós-Graduação<br />
em Políticas Públicas e Formação Humana da universidade do Estado do Rio de<br />
Janeiro e professor titular associado da Faculdade de Educação da universidade<br />
Federal Fluminense. integrante do Conselho Diretivo do Conselho Latino-<br />
Americano de Ciências <strong>Sociais</strong> (Clacso) e membro do Comitê Acadêmico do<br />
instituto de Pensamento e Cultura (ipecal), com sede no méxico.<br />
Principais livros e artigos nos últimos anos: Fundamentos científicos e técnicos<br />
da relação trabalho e educação no brasil hoje.2006; Frigotto, G. e Civatta,<br />
m. A formação do cidadão produtivo; A cultura do mercado no ensino<br />
médio técnico.2006; Educação crise do capitalismo real.2005; A produtividade<br />
da escola improdutiva.2006; (org.) Educação e crise do trabalho: perspectiva<br />
de final de século.2006; Frigotto, G. Escola Pública da atualidade: Lições<br />
da história.2005; ética, trabalho e educação.2005; Frigotto, G, Ciavata, m. e Ramos,<br />
m.(org) Ensino médio integrado – Concepção e contradições.2005; Frigotto,<br />
G. & Gentili, P. A cidadania negada – Políticas de exclusão na educação<br />
e no trabalho.2002; Frigotto, G. e Ciavatta, m. (orgs) Ensino médio – ciência,<br />
cultura e trabalho.2004; Sujeitos e conhecimento: os sentidos do Ensino médio.<br />
in. Frigotto, G e Ciavatta, m (orgs.). Ensino médio, ciência, cultura e trabalho.2004;<br />
A dupla face do trabalho: criação e/ou destruição da vida. in Fri-
gotto, G. e Ciavatta, m. A experiência do trabalho e a educação básica. 2002;<br />
Fundamentos de um projeto político-pedagógico. in Vários, Dermeval Saviani<br />
e a Educação brasileira. 1994.<br />
Ricardo Paes de barros<br />
é graduado em Engenharia Eletrônica no instituto tecnológico da Aeronáutica<br />
(itA), mestre em Estatística pelo instituto de matemática Pura e Aplicada<br />
(impa) e doutor em Economia pela universidade de Chicago. Desde 1979,<br />
tem trabalhado como pesquisador do instituto de Pesquisa Econômica Aplicada<br />
(ipea), onde conduz pesquisas no campo de desigualdade social, educação,<br />
pobreza e mercado de trabalho no brasil e na América Latina.<br />
mirela de Carvalho<br />
é graduada em Economia pelo instituto de Economia da universidade Federal<br />
do Rio de Janeiro (iE-uFRJ), mestre e doutora em Sociologia pelo instituto universitário<br />
de Pesquisa do Rio de Janeiro (iuperj). Desde 2000 é pesquisadora no<br />
ipea, onde participou de diversas pesquisas sobre desigualdade social, educação,<br />
pobreza e mercado de trabalho no brasil e na América Latina.<br />
Paulo tafner<br />
é economista, pesquisador do ipea (instituto de Pesquisa Econômica Aplicada),<br />
foi coordenador do Grupo de Estudos da Previdência, da Diretoria de<br />
Estudos macroeconômicos do ipea/RJ e editor da publicação “brasil: o estado<br />
de uma nação”, edições de 2005 e 2006. é também professor do Departamento<br />
de Economia da universidade Candido mendes.<br />
Ronaldo Rosas Reis<br />
Doutor em Comunicação e Cultura pela universidade Federal do Rio de Janeiro<br />
(1994) com Pós-Doutorado em Educação pela universidade Federal de<br />
minas Gerais (2001). Professor associado da Faculdade de Educação e do Programa<br />
de Pós-Graduação em Educação da universidade Federal Fluminense.<br />
Coordenador do Neddate-uFF (Núcleo de Estudos, Documentação e Dados<br />
sobre trabalho e Educação) e pesquisador do CNPq. Publicou pela editora<br />
Cortez o livro Educação e estética. Ensaios sobre arte e formação humana no<br />
pós-modernismo (2006) e os ensaios sobre cinema “os dois mundos de Ale-
xander K. Classe, cultura e consumo em Adeus, Lênin!”, no livro A diversidade<br />
cultural vai ao cinema, da editora Autêntica (2006), e “Cinema, multiculturalismo<br />
e dominação econômica”, na revista Crítica marxista, da editora Revan/Cemarx<br />
(2005) – Contato: ronaldo.rosas@globo.com e ronaldo3@vm.uff.br.<br />
Rosane Silva Pinto de mendonça<br />
é graduada em Economia pela universidade do Estado do Rio de Janeiro<br />
(uerj), mestre em Economia pela Pontifícia universidade Católica do Rio de<br />
Janeiro (PuC/RJ) e doutora em Economia pela universidade Federal do Rio de<br />
Janeiro (uFRJ). Atualmente, é professora adjunta do Departamento de Economia<br />
da universidade Federal Fluminense (uFF) e pesquisadora colaboradora<br />
no ipea, onde desenvolve desde 1987 diversas pesquisas na área de educação,<br />
pobreza e desigualdade de renda no brasil e na América Latina.<br />
Samuel Franco<br />
é graduado em Ciências Estatísticas pela Escola Nacional de Ciências Estatísticas<br />
(Ence/ibGE), mestrando em Estudos Populacionais e Pesquisas <strong>Sociais</strong><br />
pela mesma escola. Desde 2002 é assistente de pesquisa no ipea, onde participou<br />
de diversas pesquisas sobre desigualdade social, educação, pobreza<br />
e mercado de trabalho no brasil e na América Latina.<br />
Walzi C. Sampaio da Silva<br />
é sociólogo, doutor em Filosofia pela universidade de São Paulo e mestre em<br />
Sociologia pelo iuperj, com pesquisa co-desenvolvida na universidade do<br />
texas (Austin/tx-EuA). Ex-pesquisador do CNPQ, Fapesp; ex-bolsista Fullbright<br />
e originariamente professor da universidade Federal do Rio de Janeiro e<br />
da universidade Católica de Petrópolis, encontra-se atualmente na direção<br />
do Departamento de Filosofia da universidade Federal Fluminense (Niterói/<br />
RJ). Desenvolvendo trabalho sobre filosofia da mente, ciência da cognição e<br />
o impacto da tecnologia e ciência contemporâneas sobre as disciplinas clássicas<br />
da filosofia: daí o interesse na subsistência da estética como disciplina<br />
filosófica, sob uma perspectiva pós-moderna. Foi precursor no brasil do estudo<br />
dos Programas Fortes, trazendo-os a debate acadêmico em 1983. trabalhou<br />
em campos correlatos como racionalidade não-clássica, antifundacionismo<br />
em lógica, ceticismo e epistemologia naturalizada. Publicou diversos<br />
artigos nestas áreas, bem como estudos sobre relativismo em epistemologia,<br />
ética, estética e filosofia da ciência. Contato: wdasilva@vm.uff.br
A iNSuPoRtÁVEL<br />
LEVEzA Do CAPitAL<br />
ExCERtoS A PARtiR DE bAuDRiLLARD<br />
André Queiroz<br />
8<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 8-43 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007
Falência geral de tudo por causa de todos!<br />
Falência geral de todos por causa de tudo!<br />
Desfile das nações para o meu Desprezo!<br />
(...) E tu, brasil, ‘república irmã’, blague de<br />
Pedro Álvares Cabral, que nem te queria<br />
Descobrir!<br />
Ponham-me um pano por cima de tudo isso!<br />
Álvaro de Campos<br />
Resumo: o ensaio que ora apresentamos discute os modos de funcionamento<br />
do capital na sociedade contemporânea: seus limites, seus deslimites.<br />
E também, a questão que se dá é a das resistências: como resistir a um poder<br />
absoluto? Do texto, propriamente dito, ele se apresenta em duas camadas:<br />
uma primeira, na que o conceito fica como que subsumido à narrativa alegórica:<br />
trata-se de compor um cenário de claustro, como modo de recolhimento<br />
típico às sociedades de capitalismo industrial. Ainda nesta camada, fazse<br />
discreta a passagem às formas de clausura no “aberto” das modulações<br />
financeiras, e não mais nos interiores das instituições fechadas. Na segunda<br />
camada, a narrativa cede espaço às apresentações das teses filosóficas acerca<br />
dos modos de expressão do capital. E então, a letra de Jean baudrillard,<br />
entre as de Foucault, as de Lyotard, as de Deleuze, emergirá com nitidez na<br />
apresentação de sua visada.<br />
Resume: in this essay we discuss the ways Capital functions in contemporary<br />
society: its limits, its dislimits. And also, a question of resistances posits itself:<br />
how to resist an absolute power? in our text as such that power shows itself<br />
in two layers. on the first one, the concept stays subsumed under the allegorical<br />
narrative. it concerns the composing of a cloister setting (scene) as<br />
a way of withdrawal typical of industrialized capitalist societies. Still on this<br />
first layer, the passage to the cloister forms in the “open” of financial modulations<br />
is discreet and does not occur anymore in the interiors of closed institutions.<br />
on the second layer, the narrative cedes space to the presentation<br />
of philosophical theses about the Capital’s modes of expression. And then,<br />
the handwriting of Jean baudrillard, among those of Foucault, Lyotard, and<br />
Deleuze, shall clearly emerge from the presentation of his gaze.<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 8-43 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007<br />
9
10<br />
1<br />
Começamos como quem fabula cenários inóspitos. Distintos e em<br />
desequilíbrio, os cenários. No entanto, algo os enovela, a sua condição,<br />
qual seja, a de ser um claustro. Ainda assim, por ora, é pouco o<br />
que acenamos àqueles que se reconhecem na distinção do bom entendimento.<br />
Necessário será o esmero em nuanças. E então, vejamos:<br />
um claustro, um encerro. Nele se está em depósito. talvez, quem o<br />
saberia, como o personagem-narrador de Nítido nulo, de Vergílio<br />
Ferreira: à frente, o barulhar das águas-marinhas que estouram nas<br />
pedras do cais. E então, tão logo, o silêncio. De seu recolhimento em<br />
línguas de espuma, o silêncio. outra vez, o esparramo, o das águas<br />
na vontade renovada das marés. Vez outra, o recuo. isto o que se<br />
tem à frente. um cenário em aberto. Quem sabe se à travessia? Não<br />
há travessia. o que há é o claustro. A despeito do que se tem à frente<br />
- o cenário, é o claustro o horizonte. Às costas, no entorno, abaixo,<br />
onipresente, a cela larga e limpa. E está-se dentro. Nada sendo<br />
o que restasse ao corpo para além do esforço inútil de pernas, de<br />
braços, do tronco num esticar-se dele a fim de retardar a hora na que<br />
a vontade verga a um adentro ainda mais adentro 1 (os desvãos do<br />
nós, o labirinto da pessoa), a vontade encarquilhada, em paralisia, a<br />
ponto do seu impossível se for o caso a retomada, o ensejo d’algum<br />
esforço, o pôr-se a prumo em retirada, a vida sob os pés. Nada. Aqui,<br />
nenhum. A condição na que se está é irrevogável, a condenação à<br />
morte a emparedar o homem e seu limite, como se todo o tempo<br />
de que dispõe acabasse por ser o que o comprime: corpo, vontade<br />
– inscritos estes no passamento, e então o susto de tão logo a morte.<br />
Apenas um fato: nada, ninguém será aquele que virá bater à porta a<br />
anunciar o desfecho: local e hora. E mesmo o modo a que se atrelará<br />
no corpo o seu ocaso. Não há palavra nem gente que deixe ver o<br />
traçado da senha. Nada, nenhum. Faltam as pistas, a indicação precisa<br />
para que se forjassem os acenos desde o limite ao que o antecipasse<br />
no preparo daquele que vai morrer - isto será o que falta, isto já é o<br />
1 Da física do cárcere, é Graciliano Ramos quem o diz: “medonho confessar isto: chegamos<br />
a temer a responsabilidade e o movimento, enervamo-nos a arrastar no espaço<br />
exíguo os membros pesados. bambos, fracos, não nos agüentaríamos lá fora; a menor<br />
desgraça é continuarmos presos.” (1956, vol.2, pp.89-90)<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 8-43 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007
que falta. No corpo, as justas. o aceite barbárico. o corpo à prova. os<br />
sacrifícios como que numa testagem a ver se se está acondicionado,<br />
a ver se se evitará os gritos quaisquer da delação na hora mesma em<br />
que a agonia se encerrará. Nada, nenhum. tudo, o que falta. E mesmo<br />
o número dos que estarão em vigília à cena, ninguém o diz, ninguém<br />
o dirá, e talvez que se creia que a solidão será o aporte, que se terá<br />
a si mesmo e tão-somente no quando da desdita, a morte de dentes<br />
alvos, de uma brancura que dói às vistas, e no contorno da cena o que<br />
será seria a solidão daquele que morre? nenhum os olhos a averiguar<br />
o que se dará no encontro, o corpo exposto ao abutre de Prometeu,<br />
as vísceras renovadas a cada fisgada numa morte que se adia e<br />
que se renova no morrer diário a que se estaria entregue. Nada, nenhum.<br />
Apenas que se saberá do desfecho quando do próprio, a sua<br />
circularidade inultrapassada numa tautologia de rituais e sentenças<br />
a evocar o indistindo entre o agora e o não-mais. Apenas quando.<br />
Nada, ninguém dará as pistas de forma prévia como que a amenizá-lo<br />
no costume que se traz desde o pensamento, a pele curtida ao sol<br />
desta verdade ainda que ingrata – o morrer já e já na consumição do<br />
corpo à míngua, e então eis que se fizesse inteiro o ato que a tudo<br />
encerrasse, nada ninguém a enunciá-lo quanto a este então – quando<br />
o então?: semana que vem, ou o mês das festas de fim de ano, ou<br />
o quando do retorno d’alguma nau e apenas quando, porque dizse<br />
(diria-se, fosse o caso o dizer) que seu percurso é o tempo do interstício<br />
a um estrangeiro em agonia... Quando o então? isto fica em<br />
aberto. Nada, ninguém seria quem o encerrasse numa confissão. mas<br />
nada, também, o que se faça aqui em semelhança à situação outra,<br />
inóspita também, outra cena, a de um Joseph K., o personagem de<br />
Kafka. Lá, o aberto – aquilo de que não se dispunha dizendo respeito<br />
aos autos do processo: o que se fizera? Qual o dano? Qual a alínea<br />
de um suposto contrato a que se manchara quem sabe se num descuido,<br />
quem sabe se em reclame da condição desalmada, na grita de<br />
injúrias, no declame de impropérios, num sortilégio de imprecações?!<br />
Joseph K nada sabe de um seu delito. Sabe-se enredado. tomado em<br />
assalto na manhã em que estava em casa. três as pancadas na porta<br />
de madeira barata. E entra alguém, entrará alguém. Alguém foi quem<br />
o disse, alguém foi quem lhe trouxe a petição: vem, siga-me! E se for<br />
o caso da inquirição repetindo-se a despeito da boca em repuxo que<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 8-43 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007<br />
11
fiz? qual erro? Será o silêncio a casa da palavra sem rebate. Está entre<br />
uma quitação aparente e uma moratória ilimitada aquele que atende<br />
pelo nome do condenado de Kafka. o tempo, d’algum modo, não se<br />
lhe furta ao jogo. Está em condição fluida a escorrer entre os dedos<br />
de quem manipula as cartas no resgate da regra. tudo o que se troca<br />
e aqui nada, ou pouco, pouquíssimo é o que se manipula uma vez<br />
que se está refém. Faltaria pouco, talvez, para que se dispusesse das<br />
regras. bastava um dizer delas àquele a que se toma em juízo. Nada,<br />
nenhum. bastaria que se se desse ao aprendizado das portas – porque<br />
algumas destas levam à casa de correção, algumas outras conduzem<br />
ao cenário de espelhos, outras ao entre-pernas da secretária de<br />
decote vasto a fazer de si o princípio de um mundo, e outras ainda<br />
serão as portas que remetem aos jurados em permanente recesso.<br />
Em qual entrar? Em qual buscar o ingresso, a chave-mestra que em<br />
abrindo todas pudesse deixar que se escolhesse o caminho por onde<br />
seguir, quem o saberia dizer? Seria o caso, o fosse, saber por onde<br />
andar. Não se sabe. Se se soubesse seria já uma forma de saber, e se<br />
se está refém se o está de todo o saber de que não se dispõe. Está-se<br />
refém deste ou daquele saber que se lhe volta a mira ostensiva no<br />
corpo de seus enunciados, de sua pragmática, o percurso retilíneo<br />
dos homens da lei a chegar desde a porta da casa em que se mora<br />
e a dizer a este: vem, siga-me! tudo ‘o aquilo’ que se troca, mas aqui<br />
pouco, pouquíssimo. E sequer o segredo, dito às escondidas, a indicação<br />
no jogo de crianças: está frio, muito frio, está esquentando, está<br />
quente, está pelando. Cerrou-se a hora às brincadeiras da inocência.<br />
Alguém que chega tem a dizer apenas a frase mesma que nada constrange<br />
e que a tudo convoca: vem, siga-me! 2 E como o escape? onde<br />
2 Do segredo do seqüestro, a forma do tomar a si sem explicações, dirá Graciliano<br />
Ramos: “mal fechara os olhos numa leve sonolência, alguém me sacudira e soprara<br />
ao ouvido: ‘-Viajar’. Para onde? Essa idéia de nos poderem levar para um lado ou<br />
para outro, sem explicações, é extremamente dolorosa, não conseguimos familiarizar-nos<br />
com ela. Deve haver uma razão para que assim procedam, mas, ignorando-a,<br />
achamo-nos cercados de incongruências. temos a impressão de que apenas desejam<br />
esmagar-nos, pulverizar-nos, suprimir o direito de nos sentarmos ou dormir se estamos<br />
cansados. Será necessária esta despersonalização? Depois de submeter-se a<br />
semelhante regime, um indivíduo é absolvido e mandam-no embora. Pouco lhe serve<br />
a absolvição: habituado a mover-se como se o puxassem por cordéis, dificilmente se<br />
libertará. Condenaram-no antes do julgamento, e nada compensa o horrível dano.”<br />
(Ramos, G., op.cit., vol., pp.45-46).<br />
12<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 8-43 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007
a presença dos outros, de todos, das massas no firme propósito de<br />
sublevar? Como o escape? bastaria que se se desse à prestidigitação<br />
do sufrágio – estamos a pensar no Estado de direito. Convocar a todos<br />
a que se marcasse um x numa cédula qualquer: se se quer vê-lo<br />
preso, algemado, depositado no fundo de uma cela limpa e larga, ou<br />
se se quer que o esqueçam tal como ele o estava ainda há pouco, no<br />
dentro de uma casa com apenas uma porta, e um nada de janelas.<br />
No entanto, nada, nenhum. E assim serão as horas as vielas curvas<br />
que levam a um outro modo de se o estar: se se está condenado<br />
todo tempo qual não será a parte do arremedo, qual seja, a de uma<br />
quitação embora aparente quando faz-se que se liberta da dívida a<br />
corromper, ou mesmo quando de um seu sursis recorrente no que a<br />
suspensão de todo gesto definitivo reincide no peito o vigor do agora...<br />
m’a quanto é que dura este ‘agora’ senão a totalidade do tempo,<br />
ele mesmo esta superfície na que se perfaz o malabaris?!<br />
Voltemos ao romance de Vergílio Ferreira. E lá, aqui, é o tempo<br />
na sua totalidade o tempo que resta. Nada sendo o que se lhe encurvasse<br />
num afora. o que fazer então? Conspirar contra o tempo?<br />
Forjar-lhe uma letargia: arrancar os ponteiros do relógio na parede<br />
da sentença? mas veja lá: não se pára o tempo! outro relógio, em digitais,<br />
ousaria o espocar das horas, o tilintar dos segundos a derrapar<br />
na pele em foice. ou quem sabe se menos, se se de forma arcaica,<br />
fosse da sucessão dos dias que se inauguram aos que se encerram<br />
de que fossem se desprendendo os restos da duração, esta a forma<br />
da contagem, e sabe-se lá qual dia depois de qual noite, se fizesse<br />
inteira a vontade da consumação naqueles que julgam e executam, e<br />
então, mas só então, a sessão fosse anunciada. talvez. ocupamos os<br />
espaços do talvez. outro talvez seria se exausto do sublevar no tempo,<br />
uma vez, outra vez exaurida a fatia do anseio decalcada à precipitação,<br />
qual seja, a de dispor o corpo no confronto diário com qualquer<br />
que seja a regra, a disciplina, aquilo a que se atende por bons<br />
modos, e tudo isto somado outra coisa não fosse do que a tentativa<br />
de tomar a si o tempo em precipício, fazendo vir consigo as horas no<br />
desaprumo delas, os humores em alto forno, a resolução arrancada à<br />
junta dos que dirigem como quem grita ‘que seja agora, que seja breve!’.<br />
Sublevar no tempo. Arrancar-se do lugar de refém, a condição<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 8-43 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007<br />
13
de estar prostrado. Quem o saberia? Haveria de estar algum olhar de<br />
repreensão à espreita a ver o que cabe àquele corpo em depósito na<br />
cela larga e limpa, haveria de estar a sentinela em lugar e função precisos<br />
e irretocáveis, a vigilância, a delação como que na captura de<br />
todo detalhe, haveria de se colocar sob risco o resoluto das decisões<br />
sobre ‘o quando’ e ‘o como’ da execução ao ponto da intervenção<br />
daquele, o interessado, vir a afetar a regulação nos humores dos outros,<br />
os supostos desinteressados, os assim chamados homens de lei<br />
(e então, seria o caso: interessá-los?). mas não! Nada o que se conseguira,<br />
nada o que se conseguiria. Digamos que para lá da cela, para<br />
lá dos sons que a preenchem, para lá da brisa que descortina um<br />
horizonte imaginado, não haja ninguém. Ninguém esteja por agir.<br />
Apenas e tão somente que o que se dê se realize no sem-conluio<br />
de um desígnio. o tempo restrito a ser o tempo que resta. Ninguém<br />
estando algures a dizer o seu tamanho. Está-se num aberto. Nele encerrado.<br />
Na forma de um claustro. Sob o olhar da sentinela que nada<br />
vê tamanha a indiferença face ao rumor das horas inapreensíveis.<br />
Entretanto, está ali a sentinela a olhar. Como está ali o condenado a<br />
contar o tempo. Aqui é Jorge, o condenado, a dizer: marrei contra o<br />
tabuleiro. Se marrei. Há-de haver uma saída, há-de haver uma saída,<br />
mas não a vejo. talvez o meu filho – boa piada, o meu filho. o guarda,<br />
vejo-o, estará a pensá-lo também? Não é provável, um guarda não<br />
pensa, guarda o que pensam os outros 3 .<br />
14<br />
2<br />
Como se defender diante de um poder absoluto? Como vislumbrar<br />
uma saída? Como embaralhar as horas e as regras no intento<br />
d’alguma permuta? Lá fora, o barulhar das ondas, lá fora a sonoridade<br />
da infância que se gasta em torneios de bola e mergulho. No<br />
entorno, atrás, a parede lisa da cela larga e limpa. Está-se dentro – já<br />
dissemos. Sublevar no tempo – o que resta? Fazê-lo funcionar em<br />
benefício próprio – suas rodas a constranger, suas roldanas a emperrar?<br />
Cerrar os olhos. Desde o lóbulo das orelhas a lâmina, cerrar<br />
os olhos? Estou (estamos) na praia. Desde lá ousamos a enxerga em<br />
3 Ferreira, V.; Nítido Nulo. Lisboa: Portugália Editora, 1971, p.15.<br />
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ecuo até onde estávamos. Ainda há pouco, a cela. Agora, a praia.<br />
Como foi que suportamos? Como duramos, insistidos, para além<br />
das horas que eram o tempo todo do que dispúnhamos? Como o<br />
desespero e o desamparo não nos desautorizou da persistência? 4<br />
Aqui estamos. Vilipendiados, mofinos, é certo. mas aqui estamos.<br />
todas as personagens da história a nos visitar. E mesmo o Graciliano<br />
que fora personagem de si-próprio num romance em memórias.<br />
E mesmo o Jorge de ainda pouco agora o de Vergílio Ferreira. E<br />
mesmo o Kafka em Joseph k., ou outro dele, o Gregor Samsa situado<br />
entre as paredes do quarto dos fundos onde os olhos do mundo<br />
faltam ao testemunho. todos trazemos o horizonte arranjado ao<br />
jeito de basculantes gradeados que os pés não alcançam. todos<br />
avançamos na direção da inquietude. o desespero já ali a nos acenar:<br />
vem, siga-me! Está-se aí. Em recuo. Como que à espreita. tudo<br />
o que se tem são os sinais do mundo em desabamento. E como<br />
que em crescendo este desmonte que sequer se sabe os caminhos.<br />
Nada o que se sabe. tudo o que se suporta. o peso nos ombros a<br />
ponto da enverga. o corpo exaurido. tudo o que se tem é a cantilena,<br />
o cantochão, a ladainha, o ritornello, e tudo sendo apenas<br />
um no corpo, na vontade, no verso em sussurro: sublevar, sublevar,<br />
sublevar...<br />
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3<br />
Agora, aqui é outro o local. Estamos dentro de uma empresa que<br />
está dentro de um filme. marcelo Piñeyro é quem o dirige, o filme<br />
5 . Estamos em meio a um processo de seleção para uma vaga<br />
apenas. Sete, os candidatos. trata-se de persistir aos desníveis do<br />
percurso. trata-se de sobreviver ao que se lhes vier no quando da<br />
travessia que é todo tempo. mas qual a travessia? onde será que<br />
ela se inaugura? Como a sua inscrição precisa nos motes do que<br />
fazer, o seu rumo? Quais as regras? o que se tem de fazer? Nin-<br />
4 Da psicologia do cárcere, outra vez, é Graciliano Ramos a dizer: “Não lhes feriam<br />
somente o corpo: tentavam, encharcando-os na lama, no opróbrio, embotar-lhes o<br />
espírito, paralisar-lhes a vontade.” (Ramos, G., op.cit., vol.1, p.151).<br />
5 trata-se de “o que você faria?”, baseado na peça teatral “El método Grönholm”, de<br />
Jordi Galcerán. o filme tem produção espanhola e argentina.<br />
15
guém o dirá. Ninguém será aquele que da empresa fará os esclarecimentos.<br />
um cenário inóspito, com certeza. Da empresa apenas<br />
uma funcionária, a bela secretária de nenhum decote, mas com as<br />
mãos lisas que bem podem deslizar seguras nas pernas d’algum<br />
candidato inseguro. traz no rosto um sorriso estampado que antes<br />
indica os pisares em falso do que a retidão de que se lhes espera –<br />
não se espantem da condição de estarem todos reféns! De fato,<br />
este é o caso. Sete os candidatos. Está-se dentro de uma sala larga<br />
e limpa. tudo o que há nela se dá ao formato high-tech. Portas que<br />
abrem ou fecham sozinhas. Vez por outra, para o estranhamento<br />
de todos, eis que se encontra trancada uma porta. Ninguém foi<br />
quem veio trancá-la. Assim como ninguém será aquele que sairá.<br />
Está-se ilhado. Apenas se escuta o som automático das travas eletrônicas.<br />
Shut out the door! Ninguém foi quem gritou a injunção.<br />
Nenhuma foi a injunção gritada. Ninguém foi quem trancou a porta.<br />
A porta trancou-se. E está-se dentro. Num claustro. No entanto,<br />
vejamos, se se trata de um claustro, trata-se de um claustro hipermoderno.<br />
bastaria que se gritasse ‘estou preso’, que se bradasse o<br />
texto dos nossos direitos de cidadão/consumidor - o ir e vir à solta<br />
e às claras, sob a matriz do consumo, e a porta se abriria. ou que se<br />
alegasse o anseio do estar-se incluso, os riscos à pressão arterial, a<br />
ligeira dor no lado esquerdo do peito elevada desde o braço, e,<br />
outra vez e sempre, a porta se abriria. Ninguém está preso. mas<br />
parece-nos que a ninguém cabe a recusa quando se está no interior<br />
da empresa. Ainda que se gore da condição do lá estar sob tutela<br />
de sabe-se lá o quê, as regras, o código, o contrato. Ninguém será<br />
capaz do grito de recusa: basta! basta! Ninguém será aquele que<br />
mesmo sabendo do deslimite que sugere o processo seletivo, furtar-se-á<br />
a sua condição. Está-se dentro. Num claustro. Palmo e meio<br />
do mundo de lá fora, a rua, mas ninguém será aquele que ousará<br />
esta travessia. Como no filme de buñuel, o anjo exterminador. o<br />
banquete à casa de grã-finos. moet Chandon. Caviar às pencas.<br />
Chistes sob ternos de casimira. Conversas regadas aos aditivos ilícitos.<br />
Negócios resolvidos e tramados no tempo do jantar. E então,<br />
depois, no elevado da hora, quando se encerraria o banquete, ninguém<br />
será aquele que conseguirá atravessar a porta, tomar a rua,<br />
conduzir-se à casa onde se mora. Estão presos na sala de estar sob<br />
16<br />
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o desmantelo dos hábitos de boa vizinhança. Sem quaisquer motivos<br />
aparentes. mas ninguém será o aquele da travessia. isto lá, em<br />
buñuel. Aqui, no filme de Piñeyro, é a empresa, e dentro da empresa,<br />
a sala de reunião. A sala larga e limpa. Como limpa/alva/asséptica<br />
parece ser a face de todos. Num claustro, mas com distinção.<br />
todos são (somos/fomos) diretores de empresas multinacionais;<br />
editores de revistas de alta-costura; manager de livros que vendem<br />
a rodo e que trazem na capa estampado o sorriso largo daquele que<br />
o escreveu; executivos que envergam a instrumentação de dois,<br />
três, quatro, cinco idiomas falados/lidos/escritos na ponta da língua<br />
distintiva e classista; funcionários de alta estirpe, daqueles que se<br />
dão inteiros à rítmica da empresa seja ela o que for, proceda ela<br />
como tiver de proceder. mesmo que ela, a empresa, seja destas que<br />
faturam milhões de dólares ao ano e isto a despeito dos seus gases<br />
tóxicos, de negócios emaranhados em falcatruas, do superáficit<br />
primário garantido na compra de suas moedas pobres pelo arremedo<br />
de Estado que se lha associa, os empréstimos a perder de vista<br />
os juros, as facilitações nas carteiras de crédito federal, a máxima<br />
operante sendo aquela que diz um mínimo de Estado, um máximo<br />
de liberdade – sendo aqui a tal liberdade o que se entende por liberdade<br />
fiscal, o livre tráfego (tráfico) dos capitais estratosféricos e<br />
especulativos, sendo ali, o Estado minimal que lhes convier (Estado<br />
penal e fiscal voltado aos contribuintes, aqueles que rosnam a sua<br />
existência minguada lá fora); lá dentro, são (somos/fomos) todos<br />
homens de negócio, e isto a tal ponto que se for o caso o do vasculho<br />
de uma biografia, o traço que constrange será aquele que sugira<br />
o ‘comum’ do coletivo como mote desde o qual se se dá à narrativa<br />
um qualquer em exposição pública, ainda que lá atrás no tempo<br />
o sindicalismo: será que foi sindicalista? mas como pôde a recusa<br />
da empresa? Atentemos aqui o desnível: como a recusa da empresa?<br />
Este o pecado capital. o capital pecado. o pôr-se d’outro lado.<br />
Do lado de fora da sala limpa e larga. Do lado de lá, embaixo, a rua,<br />
e da rua o que nos chega é a sonoridade amarga dos que recusam.<br />
o que será que se recusa? Recusa-se a anorexia do capital face ao<br />
trabalho produtivo. Recusa-se os seus desmanches, a sua desterritorialização<br />
a sugerir que o mapa do mundo é todo o espaço que se<br />
esquadrinha em face dos humores do agora: o desvão para onde se<br />
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desloca a produção for ainda o caso a produção; o exílio ao que se<br />
condenam hordas e hordas de gentes for o caso ainda o de se pensar<br />
nos imigrantes, nos deserdados, nos deixados à solta às segundas-feiras<br />
ao sol de todo dia quando, diz-se, a fome aperta a fazer<br />
esquecer os órgãos desinvestidos de suas funções de outrora o arranjo.<br />
Recusa-se a cooptação em regimes de otimização absoluta<br />
nos que flutuam levas e levas de capital autônomo à toda e qualquer<br />
inscrição que mesmo um marx talvez se perguntasse pelo<br />
quando de sua falência, de sua autofagia, uma vez abandonada a<br />
parte viva do trabalho que lhe nutria a um avante no tempo e no<br />
espaço, ou que o retivesse na contramão d’alguma conquista, os<br />
trabalhadores na moldagem de um tempo outro, quem sabe uma<br />
nova teoria da colonização, quem o saberia dizer os pontos que do<br />
mundo todo se lhes forneceria um oeste a desbravar, e agora não<br />
mais, apenas à solta o capital a promover a Revolução como superação<br />
às avessas do estado de coisas, ele o capital, a unir-se num<br />
enleio em patchwork, sob os altos brados da convocatória: capitalistas<br />
de todo o mundo, uni-vos! mas quando que não? Leve solto<br />
magérrimo anoréxico como que a se desmanchar no ar fosse o caso<br />
pensá-lo pesadiço, as regras da produção a constrangê-lo, quem o<br />
saberia dizer se não e como, ou outro o constrangimento, os registros<br />
de inscrição no corpo da cidade-cidadã, a sua legislação que,<br />
aqui e ali, acabasse por onerá-lo, são as despesas demais que se<br />
gasta (gastava) com o corpo funcional e então a produção pouca, as<br />
demissões; são (seriam, foram) o que se disse serem as conquistas<br />
históricas dos trabalhadores a fazer valer quem sabe se um recuo às<br />
condições (metafísicas?) de um valor de uso, moldadas às coisas,<br />
buscar sabe-se se lá onde o resgate da finalidade que se impunha<br />
ao trabalhar do trabalho o trabalhador, e agora não mais, daí a recusa,<br />
lá da rua ouve-se o estribilho, são já as sirenas dos carros de<br />
polícia a dizer que o Estado ainda existe para além do seu borrão<br />
em tinta num papel gasto e que se faz que esquece for o caso o<br />
capital, mas não, aqui são as levas de gentes a dizer que basta!, a<br />
tentar uma sabotagem um sabot em meio às roldanas da maquinaria<br />
industrial, ‘um tamanco senão eu sufoco’ entre as peças de moldagem<br />
em linha daquele que somos, mas qual? Qual se não mais,<br />
seria o caso o grito a dizer que a greve é esta paragem no tempo,<br />
18<br />
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uma sublevação no tempo, um fazer retroagir em horas e dias e meses<br />
e anos a condição de um expurgo, a sanguinária legislação do<br />
Estado a conferir os lugares àqueles de direitos e os deslugares<br />
àqueles de fato, seria o caso a grita, ‘tem um megafone às mãos e às<br />
palavras soltas em corredeira’, ‘tem uns braços cruzados a sugerir<br />
que pára o tempo que não pára’, ‘tem um poste, um caixote ao qual<br />
se destila a função reescrita do palanque, as massas a postos, tem<br />
ouvidos moucos a massa que se vos destina, encargos de abano, as<br />
orelhas de burro e estás cansado de ser o zaratustra que a tudo<br />
convoca convocaria a greve entre homens e não mais a greve, não<br />
mais há greve, qualquer que fosse a paragem seria já o paradeiro<br />
no qual fostes lançado, tu mesmo e a todos, e entre todos as massas<br />
6 , e mesmo aquela de que se diria o lúmpen proletariado de outrora<br />
e agora todos (as massas zeradas, os supranumerários, os<br />
inimpregáveis), os trabalhadores que se viam à espera de um tão<br />
logo o dia de ingresso em levas de produção, e então isto, traz uma<br />
greve às mãos, traz um cravo no coldre de tua capitania, os capitães<br />
de um abril português, e não mais, aqui e agora, a sirena que toca<br />
empanturra a audição nos golpes de cassetete, é o Estado a tocarte,<br />
é o Estado a dizer-te: ‘o que será que queres ainda agora deste<br />
mim enfastiado, ou será que não ouvistes dizer do mundo que foi o<br />
mundo mesmo o que inexoravelmente ruiu, e que as alíneas de ainda,<br />
um dia outro dia, o contrato que vos corrompia, é justo o de que<br />
não-mais, a condição renovada do que agora sufocas; o que será<br />
que queres de mim, eu o Estado, o Estado que sou - outrora a crítica<br />
exacerbada de ser eu aquele que vos esmagara nos meus enlaces<br />
escusos com as gentes do capital, nos sombrios acordes em que<br />
vingava a cantilena dos vossos açoites, população de um lado, o<br />
6 baudrillard diz: “A greve se justificava, historicamente, num sistema de produção<br />
como violência organizada, visando arrancar à violência inversa do capital uma fração<br />
da mais-valia, senão do poder. Hoje, essa greve está morta: 1) Porque o capital tem<br />
condições de deixar que todas as greves levem ao desgaste – e isso porque já não se<br />
está num sistema de produção (maximização da mais-valia). Pereça o lucro, desde que<br />
a reprodução da forma da relação social seja salva! 2) Porque essas greves, no fundo,<br />
nada mudam: hoje, o capital redistribui a si mesmo, por constituir isso para ele uma<br />
questão de vida ou morte. Na melhor das hipóteses, a greve arranca ao capital o que<br />
este teria concedido de qualquer maneira com o tempo, de acordo com sua própria<br />
lógica.” (1976, p.35).<br />
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navio negreiro, o vosso bairro operário, eventualmente, o cárcere<br />
das memórias de um Graciliano, ou ainda a morte em batalha sangrenta,<br />
isto por um lado, e d’outro lado, irredutíveis os lados, aqui e<br />
agora o lado outro, a corja de que se me denunciavam o apreço a<br />
aquiescência a luxúria, Felinto muller no apronto das ordenanças<br />
de sua polícia mineira a guardar as costas de Vargas no sono do<br />
Catete, ou ainda outro, um Franco às touradas com os chifres afiados<br />
vazando o estômago dos catalães, um Salazar mais aquém a<br />
propor quem sabe se um novo tratado à melancolia lusitana no resgate<br />
das tordesilhas doutrora, um mussolini de rédeas curtas em<br />
que tudo se lhe dá à tutela, um Estado Novo, concentracionário,<br />
cerceado aos vasos comunicantes, envolto todo ele no abusivo das<br />
legislações excessivas, mas sempre e sempre um Estado, estava lá,<br />
eu, o Estado a cumprir as funções de um meu juízo coletivo, eu<br />
juro, juro de pés juntos, estava eu, o Estado a fazer inserir a todos 7 ,<br />
a depositar cada qual no lugar de sua destinação, e então isto, ainda<br />
agora o vosso praguejo, os trabalhadores, os obreiros do mundo<br />
todo à vossa casa, estavam todos a conspirar de entre as entranhas<br />
do meu corpo de mil portas, e aqui, e agora, ainda agora no agora<br />
de meu desmonte o vosso praguejo, outra vez e sempre o vosso<br />
praguejo, o que será esperas de mim”’, e então as sirenas, a polícia<br />
que chega, ‘é preciso dispersar, voltar às suas casas, é mister sufocar,<br />
sufocar aqueles que insistem na recusa a todo o contrato, e mesmo<br />
este um contrato renovado, precário que o seja, temporário que lhe<br />
caiba o jeito o modo; trago a ti um trabalho outro o seu regime,<br />
quem sabe se a zero hora diária e semanal, um celular no bolso e<br />
isto, apenas isto, a participação nos lucros da empresa, agora isto, o<br />
Estado-empresa, isto que vai seguindo assim, e que assim vai rumando<br />
a história, porque tu deves formular outras teses que te garantam<br />
alguma redenção, no final das provas, no dia final do juízo a<br />
tua forma outrada de produção, imaterial o nome, não é isto o que<br />
7 Deleuze & Guattari dizem da Forma-Estado: “São os elementos principais de um<br />
aparelho de Estado que procede por um-Dois, distribui as distinções binárias e forma<br />
um meio de interioridade. é uma dupla articulação que faz do aparelho de Estado um<br />
estrato”. E mais adiante: “(...) o Estado não se define pela existência de chefes, e sim<br />
pela perpetuação ou conservação de órgãos de poder. A preocupação do Estado é<br />
conservar.” (1980, p.12 e p.19).<br />
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se diz agora, o trabalho que renova, o trabalho que desaliena, imaterial<br />
o nome, ouvi dizer que desde a itália nova recente recentíssima<br />
diz-se deste trabalho a sua imaterialidade, os rumores do tempo<br />
escasso, o trabalho que é todo tempo o tempo todo o do trabalho<br />
mas que agora é válido, a construção de si, a saída pela micropolítica<br />
num arremedo às teias constituintes na que parece que capital e<br />
trabalho não mais se reclamam, não mais se engalfinham, não mais<br />
se pretendem a uma superação qualquer da condição histórica e<br />
pontual, a produção na que se produz aquele que produz, sem<br />
qualquer demanda transcendente, sem qualquer constrangimento<br />
de resguardo num dentro qualquer, nenhuma fábrica, nenhum intramuros,<br />
nenhum acerto de corpo no corpo de uma fila, nenhuma<br />
ortopedia que acople as juntas dos ossos e musculatura aos contornos<br />
de tornos ou outra maquinaria 8 , tens contra mim o trabalho de<br />
tua tese, imaterial o nome, não seria isto o que proclamas, agora<br />
que podes o poder do construir-te, e tanto isto, que ainda dirás a<br />
mim o teu regozijo, creio nisto, palavra do Estado, amém’, e então,<br />
as sirenas, lá embaixo, na rua, a polícia a dispersar a multidão, e lá<br />
em cima, no lado de dentro do cortinado, da sala ambientada a tal<br />
grau que se for de ser o verão o mais tórrido ainda assim será a sala<br />
refrigerada, e se for de ser o frio aquilo que amofinasse a alma seria<br />
a sala larga e limpa a estufa a aquecer, a sala asséptica, a sala da<br />
concorrência privada na que os homens do filme farão as vezes dos<br />
gladiadores pós-modernos, nada de sangue, nada da crueldade artaudiana<br />
– a do corpo exposto ao lacero, a peste desde os baixos –<br />
estômago, intestino, fígado, no fraquejo da vontade, o corpo à fúria<br />
o revolto nada, nada da morte violenta, a morte será lenta e dosa-<br />
8 Do trabalho co-extensivo aos diversos campos da vida, diz baudrillard: “o trabalho<br />
(também sob a forma de lazer) invade toda a vida como repressão fundamental,<br />
como controle, como ocupação permanente em lugares e tempos regulados,<br />
de acordo com um código onipresente. é preciso fixar as pessoas em todo<br />
lugar, na escola, na fábrica, na praia, ou diante da tevê, ou então na reciclagem<br />
– mobilização geral permanente. (...) Ninguém mais os arranca selvagemente da<br />
vida para entregá-los à máquina – vocês são integrados aí com sua infância, seus<br />
tiques, suas relações humanas, suas pulsões inconscientes e sua recusa do trabalho<br />
-, consegue-se para cada um de vocês um lugar em tudo isso, um emprego<br />
personalizado ou, à falta de outra coisa, um desemprego calculado de acordo com<br />
sua equação pessoal.” (1976, p.24).<br />
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da 9 , a morte que se destila no jogo, no carteado da sorte, basta que<br />
se resolva a gincana, que se atravessem os percalços, que se saltem<br />
os obstáculos, a questão é qual a regra? Quem diz a regra que não<br />
se diz? Qual o caminho a que se tem de seguir e que se leva a algures<br />
– algures será sempre mais adentro, mais a fundo, mais geminado<br />
aos contornos de uma empresa que flutua acima. Para além do<br />
mundo da rua. No esquecimento de tudo o que for a recusa.<br />
22<br />
4<br />
Como reconhecer um poder absoluto? Como atestar a condição<br />
inultrapassável a que ele nos destinaria? Como admitir que se esgotaram<br />
as saídas, que as zonas sem o pontilhado de seu traço se nos<br />
falta de todo? onde será que começaria o seu desmantelo, houvesse<br />
este possível de entre as cartas que embaralhamos? Não bastaria que<br />
as portas se abrissem num escancaro delas? mas será que se tratam<br />
de portas que se abrem e fecham à nossa revelia? Será que a condição<br />
de recuo, inclusa no claustro, demanda esta suspensão do livre<br />
circular? Já vimos d’algum modo que bem pode haver uma porta<br />
fechada, um corpo no interior do que ela encerra e a experiência<br />
do claustro se fazer no que se nos dá em aberto: o tempo que resta.<br />
Sublevar no tempo? Precipitá-lo sem precipitarmo-nos no que se<br />
precipita? onde será estaríamos? Sobrepostos a descrever a condição<br />
do mundo em narrativa? Está-se dentro. incluso. Enleado. talvez<br />
não necessariamente subsumido. A condição de Jorge. A de Joseph<br />
K. Continuar a mover-se ainda que entre os limites da cela pouca. Perambular<br />
as pernas entre as salas subseqüentes do tribunal. moverse.<br />
Sublevar. Arriscar a recusa. ter os pés sujos junto à terra que nos<br />
9 baudrillard é quem diz esta troca: o capital trocando com os trabalhadores: dá-se<br />
lhes o trabalho que é forma de trocar a morte violenta do sacrifício primitivo pela<br />
morte lenta do trabalho contumaz. Questão será: o que dá em troca o trabalhador? A<br />
matéria mesma do que se produz? Não, nada. Fosse o caso, a troca estaria completa.<br />
Aquele dá, este recebe, este repõe, aquele aquiesce. No entanto, o Capital continua<br />
dando a fim de tornar irregular a troca, afim de paralisá-la: dá o salário, e isto dando,<br />
impede a reposição. Aquele que dá ao não parar de dar gera o acúmulo da dívida<br />
naquele que recebe, e do crédito naquele que oferta. Nascimento da dívida infinita.<br />
Ampliação em larga escala do acúmulo primitivo do capital. (Cf. baudrillard, op.cit.,<br />
pp.55-60).<br />
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estou ao arremate. Pouca coisa, bem pouca, mas lá ter os pés. Neles<br />
sentir a sua (nossa) calosidade. As texturas várias em que se assentam<br />
os desníveis junto ao piso. marrar contra o tabuleiro. talvez um filho<br />
se nos chegue em salva. Pouco provável, mas talvez. ocupamos os<br />
espaços do talvez. talvez a sentinela seja dada à corrupção. Cerrar as<br />
grades antes que os olhos. Desde o lóbulo da orelha, retirar o estilete<br />
camuflado, cerrar as grades. Voltar a ver o mundo para além do basculante<br />
a que não alçamos. Lá fora, o barulhar das ondas ou os rumores<br />
das ruas, tudo agora mesmo disposto àquele que se é, àquele a que<br />
atende pelo nome da pessoa que somos, ou ainda mais, quem sabe<br />
estivéssemos em meio à turba, perdidos no seu anônimo, o das massas<br />
em movimento, quem sabe lá começássemos a grande política:<br />
convocar, urdir, incendiar, remover, dispersar, recompor, recomeçar a<br />
ação. Haveria a ação. Haveria a turba. Aprontaria-se um rol de coisas<br />
desde o comum-de-dois-e-doutros – muitos enquanto muitos, cada<br />
qual um bárbaro. talvez o fosse. um claustro? Reverter a condição<br />
do claustro. Lá fora. Lá fora. Lá fora. Repetir em ladainha na certeza<br />
abusiva de que haja um lá fora. Crianças que brincam em jogos de<br />
amarelinha. A inocência dispondo de nós, reconstruindo-nos desde<br />
os vales escarpados nos que pensávamos que nunca mais o pôr-se a<br />
prumo em retirada – uma vida sob os pés. E estamos na reversão do<br />
claustro. Estamos. um poder absoluto? Quem sabe d’outro modo,<br />
àquela outra narrativa. A porta que apenas se fecha for o caso o seu<br />
fechar em anuência ao que ousamos. Arriscarmos a discrição. instituirmos<br />
a fachada. A carta que nos apresenta. traz um continente<br />
às costas, a cartografia das filiações pululando de sobre a pele, os<br />
agenciamentos de um passado recente, a luta que se envergara, os<br />
compromissos assumidos quando de um comum-de-dois-e-doutros.<br />
Agora tudo é o que se esquece. Faz-se que se esquece. Denega-se.<br />
Subtrai-se se for o caso o simular a condição de. Alçar a um cargo na<br />
empresa-mundo. Emoldurar-se num perfil prévio a nós – código da<br />
perfídia. Enregelar-se. A sala larga e limpa. Lá fora, a rua. Há a rua? A<br />
arruaça? A arenga? Polis subsumida. mas qual onde como quando<br />
houve? um claustro! um claustro! Será possível um outro de nossa<br />
condição quando não atentamos sequer que haja um outro – uma<br />
outra condição à mercê das mãos? Lá fora, lá fora – ironia a cantilena<br />
a repetir-se se não congrega, se sequer diz ao que vem, ao que aten-<br />
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de, ao que se presta. Lá fora, lá fora, a rua, a praia, os barulhos, tudo<br />
se ajeitando em ser o ruído a que se elimina, for o caso a reforma da<br />
sala. Começa-se pela acústica. Chegar-se-á à genética. Ao código. À<br />
eugenia. Ao controle. tudo o que atende em ser o nome dos muitos,<br />
aqui e agora, sendo o que é o demoníaco. Denega-se. Diz-se: nunca<br />
vi, não sei do que se trata, não conheço! A ‘cara’ lavada nos jogos do<br />
falso. Quem sabe o que me espera? Que será eu ganho com isto? Não<br />
há ninguém a dizer. Nunca haverá, de fato, ninguém do outro lado da<br />
porta. ou da lei. ou do mérito. ou da tela catódica na qual aprendese<br />
(apreende-se) o mundo. o mundo? No mais, a empresa, o capital,<br />
os seus desníveis flutuantes. Está-se aí. E neste aí não se fica parado. o<br />
contrário a regra: está-se superexcitado, convulso, compulsivo, cocainado.<br />
o imperativo é o mover-se: mover-se desbragadamente. Como<br />
que numa aflição de urtigas. os pés não tocam o chão. o chão está lá<br />
fora. E não há, não houve, não se ouve as pistas de que haja um lá fora.<br />
No entanto, insiste-se, a porta está aberta, basta que se queira dobrála.<br />
basta que se tenha vontade de sair. Não há a vontade. A vontade é<br />
o que não existe.<br />
24<br />
5<br />
Será que mesmo à imanência um absoluto ousaria o perfazer-se?<br />
tornar-se ele o imperativo, a condição de possibilidade da qual<br />
não se deriva, nada o que se lhe desagregasse – um novo transcendental?<br />
o capital, este absoluto? mister pensar o capital. Qual o<br />
seu limite? o que será não se lhe ajusta ao axioma: conectar, produzir,<br />
circular, reproduzir? onde o seu desmantelo, condição inequívoca<br />
do que não se lhe conjuga? Ao quê, apenas se lhe resta o<br />
conjurar? Desde a sua condenação, o desterro, a quem, a quê? o<br />
quê, o aterrador? o quê que se lhe fosse um incongruente no desarme<br />
da cadeia de possíveis? uma intempestividade abrupta,<br />
abusiva, o acidente que lhe precipitasse ao fim irrevogável? o quê<br />
o aquilo que se lhe mostrando irredutível o fizesse recuar, os pés<br />
nos freios, o freio-motor, o estancar, e não-mais? Desde então, o<br />
não-mais. o quê? ou o quanto este não-mais que acabasse por ser<br />
uma outra via, um atalho abeirado à rodovia, e tão logo seriam as<br />
casas, e tão logo o povoado, as gentes na ordenança das coisas, o<br />
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pequenino mercado das trocas – fazer girar, circular, evitar o acúmulo:<br />
o toma-lá-dá-cá da troca bem-sucedida de que nos fala marcel<br />
mauss na dádiva a conjurar o excesso, fazer a festa do desperdício,<br />
a produção improdutiva, um potlach, a despesa, novíssima<br />
teoria da colonização 10 , a América-refugo do lúmpen-proletariado<br />
inglês, e logo e logo, século e meio de história, o processo contumaz<br />
do novo acúmulo, as condições renovadas da fartança nas<br />
quais se verá subsumidas cotas imensas de trabalho vivo, e então,<br />
a América-império. onde a China de borges no diagrama do impossível,<br />
o assombro da incongruência? A enciclopédia dos animais<br />
incompatíveis: os alados; os do imperador; os avessos ao toque;<br />
os que vistos de perto parecem pantufas; os imaginários<br />
– boitatá, mula-sem-cabeça, saci pererê, mão branca; o caçador de<br />
cangaceiros, Antônio das mortes? 11 tudo aqui, lá, enumerado no<br />
rigor da classificação alfabética a dispô-los em um só quadrante?<br />
Qual o quadrante? Como o quadrante? Ainda, o quadrante? Qual<br />
o que se mostrasse razoável a aquietar as espécies zombeteiras? o<br />
capital, este mapa móvel? tudo se lhe escoando de entre os dedos,<br />
tudo o escorregadio a que não se agarra, e como a permanência da<br />
regra, ela mesma a regra, na observância do que dela se exila? Não<br />
ficaria a regra segredada a si própria – a regra em degredo, a regra<br />
segregada, a regra desregrada, ela própria, toda ela a errança que a<br />
nada ninguém governa, que a nada ninguém ela agarra e liga – os<br />
10 Cf. mauss, m., “Ensaio sobre a dádiva – forma e razão da troca nas sociedades primitivas”.<br />
Da obrigação do dar, da obrigação de receber a fim de evitar o acúmulo, e,<br />
conseqüentemente, o poder daquele que acumula. Forma de conjurar a dívida, de<br />
facilitação de resgate. Se há dívida, há o resgate. Para além do acúmulo primitivo, a<br />
dívida tornar-se-á irresgatável. Cf. também, marx, K.; “A nova teoria da colonização”.<br />
in: o Capital – Crítica da economia política, vol.i, cap.xxV (pp.883-893). marx acena<br />
com a deriva em face da condição de espoliação do trabalhador inglês quando de<br />
sua migração aos Estados unidos da América. Lá, ele se torna produtor, o que é dizer,<br />
reinscreve-se na condição viva do trabalhar do trabalho.<br />
11 Cf. Foucault, m. (1966). Sobre a alusão à China de borges, e à Enciclopédia Chinesa,<br />
ver a introdução. A questão aludida é: como dispor sobre o mesmo solo de pensamento,<br />
sobre a mesma tábua de valoração a incongruência? Não lhe encerraria a esta tábua<br />
que, supostamente, agregasse a todos? A questão aqui é: o capital, este ‘lugar’ que a<br />
tudo limita ‘nos’ seus interiores. o que se lhe foge? o que se lhe é irredutível? o que<br />
se lhe precipita ao fim?<br />
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operários à solta, tomar a si o ‘que fazer’ das horas, prensá-las no<br />
sentido que faltara, estabelecer as cotas da transferência social,<br />
promover cesuras: o capital em Colono num pesadelo de édipo o<br />
destituído, os trabalhadores em Pasárgada, na cama do rei nu a fazer<br />
rolar cabeça cabaça cabaço, será (seria) a epopéia dum novo<br />
tempo, ou menos bem menos aqui outra vez, estaríamos todos, um<br />
todo e qualquer, a rever as cenas da história no recontar em paródia<br />
a condição outra do desterro, aqui, sendo ela própria o cenário<br />
propício à fênix capitália, ela, a evanescida, a fazer que cai, e sacoleja,<br />
a fazer que é crise a artimanha o artifício, a fingir que é dor a<br />
dor que deveras simula, condição paroxística do desplante. Jean-<br />
François Lyotard a dizer: “Retrato de um capital quase esquizofrênico.<br />
Por vezes chamado perverso, mas é então uma perversão<br />
normal, a perversão de uma libido maquinando os seus fluxos sobre<br />
um corpo sem órgãos em que se pode agarrar a tudo e a nada,<br />
tal como os fluxos de energia material e econômica podem, sob<br />
forma de produção, isto é, de conversão, investir-se sobre qualquer<br />
das regiões da superfície do corpo social, do socius plano e<br />
indiferente. investimentos viajantes, que fazem desaparecer nos<br />
seus périplos todos os territórios limitados.” 12 Agarrar a tudo e a<br />
nada. Agarrar. Largar. Deixar fazer. Laissez-faire. Princípio da nãointervenção.<br />
isto se for o caso. Ainda assim, o caso (este, aquele,<br />
aquel’outro) não lhe esgotaria as formas do fazer. Agarrar. Largar.<br />
Vez ou outra, a cela larga e limpa donde se vislumbra o cais. Jorge<br />
a marrar contra tabuleiros. Vez ou outra, a sala limpa e larga d’onde<br />
se esquece a rua. Afinal, homens de negócios em que o tabuleiro<br />
é a casa dos que não têm. o capital a atender por nomes diversos,<br />
ele mesmo legião. Capital agregador; capital de exportação; capital<br />
concentracionário; capital de produção; capital de sobreprodução;<br />
capital signo; capital doador de trabalho: trabalhadores de todo o<br />
mundo, vinde a mim, e quem sabe o tudo que lhes darei, se prostrados,<br />
me adorares. o capital a converter. Subsunção do trabalho<br />
ao capital: organizar a esfera da produção de mercadorias, organizar<br />
a esfera da reprodução da força de trabalho, ainda além um<br />
tanto, subsumir a integralidade do tempo sob a lei da troca desi-<br />
12 Lyotard, J.-F., 1976, p.100.<br />
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gual que é a sua própria lei. tornar lei a expansão do que for a lei.<br />
Autolegislar(-se). Espraiar em todas as direções o seu jogo (jugo)<br />
de espelhos. Estamos todos reféns, somos todos Alice. Está-se dentro.<br />
Refletido, consumido, consubstanciado. é-se o duplo no que<br />
ele constrange: a morte diferida, a morte lenta. Forma de dizer o<br />
trabalho. o riso, o escárnio, vontade de participar, de estar dentro<br />
da sala. Lá embaixo, a rua. mas há a rua? Resta a rua? Vinga a rua?<br />
A porta aberta, escancarada. Quase que se convida ao ir-se: ‘Segue,<br />
vai’. Passagem grátis, pão com mortadela, a obra acabou, a<br />
farra acabou, queres ir para minas, queres ir para Sampa, Sampa,<br />
minas não há mais. Emancipação social: ‘segue, vai!’ Não te iludas,<br />
somos todos reféns na caça de um sorriso de gato, a violência urbana<br />
na equivalência do que for díspar, improvável, impossível. o<br />
capital a exilar - a regra é vária: a) quem não for geômetra; b) quem<br />
tiver a palma da mão amarela; c) quem for ser ‘gauche’ na vida; d)<br />
quem não acreditar no seqüestro do Abílio Diniz; e) quem não<br />
souber inglês, francês, javanês; f ) quem não for amigo da vizinha<br />
do andar de cima, que diz-se, ela dá e desce; g) quem não gostar do<br />
branco azul amarelo; h) quem não souber dizer em quinze segundos<br />
quem foi Plínio Salgado; i) quem não tiver as barbas de molho;<br />
j) quem achar a nudez do rei fastidiosa; l) quem não souber combinar<br />
o tom da bolsa com o estofado do sofá; m) todas as alternativas<br />
ao inverso; n) nenhuma das anteriores. A falsa questão é buscar o<br />
razoável da regra, aquilo que em se dando fosse a regra mesma, e<br />
que, a despeito do movimento das coisas, lá permanecesse em ser<br />
a regra a que se contraria, regra localizada, regra sitiada, regra ensimesmada<br />
(alguém algum a dizer: tem um édipo ali!), regra depositada<br />
em invólucro, a tese com relação à qual se lhe dessem inumeráveis<br />
antíteses no avanço, na marcha de brancaleone, e em<br />
cada uma destas, a recusa, e por cada uma delas o enunciar do<br />
novo novíssimo, a desprega, qual? qual? – trocar a regra pela desregra,<br />
fazer da regra a ex-regra, trocar as premissas, afirmar de peito<br />
nu a suposta opção revolucionária, dentre as opções acima: ‘letra<br />
n: nenhuma das respostas anteriores’, olhar ao lado em busca, à<br />
caça das gentes, quede o megafone, quede a sirena agora eu (o<br />
policial, agora, come lá em casa, eu a lhe preparar quitutes), agora<br />
eu quem a disparo, ‘companheiros, companheiros, é preciso lutar,<br />
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se compor à porta da fábrica, é preciso parar, é preciso não esmorecer,<br />
é preciso mostrar a eles a nossa força, é preciso cruzar os<br />
braços, é preciso se organizar, companheiros, companheiros’. mostrar<br />
a eles, organizar, de forma ordenada, um de cada vez, por turnos,<br />
a produção. Está-se (estava) a falar da produção? Livre circular:<br />
condição do trabalho livre, condição do capital desterritorializado.<br />
Esta uma equivalência, um claustro – não se lhe poder a recusa. A<br />
porta aberta, escancarada, o convite ao ir-se: ‘vai, segue’. Fluxo de<br />
riqueza não qualificada no encontro de um fluxo de trabalho não<br />
qualificado, esta uma conjugação. Aqui, Eric Alliez, os Estilhaços<br />
do capital: ‘A relação salarial que estabelece, ao acaso, os fluxos de<br />
capital e de trabalho não qualificado não distingue o empresário e<br />
o trabalhador não qualificado como as encarnações individuais de<br />
cada um desses dois fluxos, sem reuni-los, ao mesmo tempo, na<br />
categoria de sujeito livre e na noção de produção, na atividade produtiva<br />
em geral como essência subjetiva e abstrata da riqueza –<br />
mesmo que esta diga respeito objetivamente à propriedade privada<br />
da classe capitalista. Portanto, existe um igualitarismo formal e<br />
um humanismo essencial do capitalismo, que não nega nem a diferença<br />
substancial entre aquilo que o capitalista possui e o que o<br />
trabalhador possui, nem a desigualdade da troca entre uma porção<br />
de vida e uma soma de dinheiro, nem, por conseguinte, o conteúdo<br />
de suas respectivas liberdades: por um lado, a liberdade de empreender,<br />
por outro lado, a liberdade de submeter seu tempo e<br />
seus gestos 13 . Duas metades, a liberdade: liberdade de empreender<br />
no multiplicar-se, um lado; outro lado, liberdade de submeterse,<br />
o tempo, os gestos. ‘Companheiros, companheiros...’, o grito vai<br />
ganhando a si a condição descolorada da afonia – tão logo, tornarse-á<br />
presidente de República o dono de um grito assim afônico,<br />
minguado, ramerrão, copioso, carpideiro, cantochão, grito paródico<br />
na exigência de trabalho, um pouco de trabalho senão eu sufoco,<br />
as mãos estendidas de pedinte, tão logo será o capital a rir de<br />
tudo, riso de gazela estridente no espatifo de cristais, economia<br />
política como modelo de simulação, aqui, agora, o que se reproduz<br />
é o próprio trabalho, trabalho como forma e não como força,<br />
13 Alliez, E. & Feher, m., 1988, p.193.<br />
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trabalho como benfeitoria, central única de estágios, queiram se<br />
cadastrar, as filas dão voltas em quarteirões, trabalho voluntário: a<br />
cura à sensação do estar-se inútil, à sensação de que se é inútil –<br />
sarcasmo ao paroxismo, arranjar um trabalho, trabalho como bem<br />
de redistribuição social, baudrillard a rir de tudo, ironia mordaz 14 ,<br />
‘companheiros, companheiros, vamos cruzar os braços, mostrar a<br />
eles’ – a eles o espetáculo, para eles a performance, a quem isto?<br />
Quem o ‘eles’? Atacar a regra, fazer que se vira à curva duma boa<br />
esperança renovada. Virar à curva? Quem sabe será o vazio à espreita?!<br />
Quem o saberia dizer, andou-se dizendo, andou-se sugerindo<br />
do dehors, do fora - não há o fora. Não mais o fora. o capital<br />
circunscrevendo os espaços móveis do ecúmeno. A regra, a ex-regra,<br />
a des-regra, tudo o que se comuta. o capital a fazer bonito no<br />
gingado de pernas: começaria tudo outra vez se preciso fosse - esta<br />
longa avenida de gás neon 15 . Aqui é Lyotard, uma vez mais: ‘Qualquer<br />
objeto pode entrar no Kapital desde que se possa trocar; o<br />
que se pode trocar, metamorfosear-se de dinheiro em máquina, de<br />
mercadoria em mercadoria, de força de trabalho em trabalho, de<br />
trabalho em salário, tudo isto a partir do momento em que é permutável<br />
(segundo a lei do valor) é objeto para o Kapital: e assim<br />
não há mais do que uma enorme desordem em que os objetos<br />
aparecem e desaparecem sem cessar, dorsos de golfinhos à superfície<br />
do mar, em que a sua objetividade cede à sua obsolescência,<br />
em que o importante tende a já não ser o objeto, concreção herdada<br />
dos códigos, mas o movimento metamórfico, a fluidez. Não o<br />
golfinho, mas o rasto que se inscreve à superfície, a marca energética”<br />
16 . o claustro, o aberto. Já não há portas. Ninguém a precisar<br />
delas. Está-se subsumido, consubstanciado. A praia à frente, a rua<br />
embaixo, e o que importam praia, rua, a inocência, a baía, o brincar<br />
das crianças, se o que se vê é o beco? E nele, nada ninguém<br />
encerrado. Nada ninguém está retido. Sequer há traços de engol-<br />
14 Vejamos este curto parágrafo de baudrillard: “o trabalho tornou-se, como a Seguridade<br />
Social, como os bens de consumo, um bem de redistribuição social. Enorme<br />
paradoxo: o trabalho é cada vez menos uma força produtiva e cada vez mais um produto”.<br />
(1976, p.39).<br />
15 Referência às músicas de Luís Gonzaga Júnior (música incidental).<br />
16 Lyotard, J-F., op.cit., pp.95-96.<br />
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famento no sinuoso dos rostos. Estão a aprontar relatórios, a contar<br />
o que produziram, a duplicar a produção na contagem mesma<br />
dela, e a tal ponto isto, que quem sabe, sequer importe a produção,<br />
mas apenas a contagem – subsunção da produção na reprodução,<br />
do fazer do que se fez à narrativa envelopada. uma narrativa,<br />
ao menos. uma tragédia, ao menos. Forma de dizer que não se<br />
está calado. mas se está estamos.<br />
30<br />
6<br />
Combater na imanência. Sequer o vislumbre do que viria desde<br />
o fora do capital. trata-se antes, ele mesmo, o capital, do aquilo a<br />
que se encaminha a um de fora. o desmanche não lhe sendo avesso<br />
não lhe revelaria o anverso. Sublevar no tempo? Fazer que se<br />
pára quando da circulação ininterrupta das coisas, dos modos, das<br />
mercadorias, das formas na que se é (na que se está) – quem o saberia<br />
o que é que se deflagra? também o vimos: são os sortilégios<br />
do aberto no que o tempo não se comprime entre dois pontos em<br />
cesura – origem e fim. A origem sendo toda a hora na que se principia<br />
os jogos da significação, a produção dos efeitos de verdade.<br />
o fim estando suspenso. Consigo, o telos que o situasse no longe.<br />
Finalidades múltiplas sem fim. irromper a dicotomia capital, trabalho?<br />
Arrancar a este aos ditames da produção que o debilitara no<br />
jogo da exploração capitalista, que o inscrevera (absorto) em cotas<br />
de trabalho morto, reavivá-lo no processo da gestão do sentido,<br />
ainda isto? Abandonar o capital, subscrevê-lo ao solipsismo, deixálo<br />
entregue ao sepulcro, será isto? também aqui o efeito contrário<br />
o que se dera. o capital fora aquele a tomar a dianteira, a emancipar-se.<br />
Vimos isto. Questão então é: submeter-se aos jogos do<br />
dentro? Esfumar-se na mágica dos enunciados a sugerir agora, desde<br />
agora, que a processualidade, a movença no seu abstrato seria<br />
a salva-guarda em face do intolerável? Pouco, ainda pouco. Sequer<br />
se trata de recusar a recusa pela improbabilidade desta, por vezes<br />
antes, outro modo, o do aquietar-se àquele intolerável. Quem<br />
sabe se numa sua aquiescência, o corpo exaurido, a impressão de<br />
que se dorme o sono dos justos no barbarismo do presente. Nada<br />
mais uma barricada. Faríamos (fizemos) o de que pudemos! – esta,<br />
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a lápide da lisonja a si, a autocamaradagem da camarilha, parvoíce<br />
fin-de-siècle, um milênio novo novíssimo a novidade às costas a<br />
carregar na corcunda de asno, expressão da vontade dos que não<br />
a tem nos graus elevados o seu modo, e então o que resta senão o<br />
participar? o yá-yá do asno de zaratustra sobrelevado à condição<br />
de pensamento único, o pensamento fraco fraquíssimo minguado.<br />
Que importa isto: é prosa que dá prêmio, a práxis que consagra.<br />
E então, jogar. Vai-se ao jogo. ‘Vai, segue!’ Dispor as peças sobre<br />
o tabuleiro. Aprontar o relógio na marcação das jogadas. Avançar<br />
os peões. Participar à exaustão, mãos hábeis de prestidigitador no<br />
embaralhar das cartas, distribuir as prendas, ordenar as apostas.<br />
Formas diversas a do participar. Está-se dentro. No jogo, no jugo.<br />
A face limpa/alva/asséptica – a face distinta. Envergam-se títulos,<br />
alguma pompa, gestos de novo rico. talvez se esteja o tempo todo<br />
num regozijo, no júbilo da hora na que convém a crítica. Lava-se<br />
a alma, branqueiam-se os ossos, está-se refeito, volta-se ao jogo.<br />
Faz parecer que se é sério, que se é firme, que se é nobre. Quem<br />
o saberia dizer o mérito, quem o recusaria aqueles, os cavaleiros<br />
d’outrora a destemperança, e que aqui e agora isto pouco, a crítica<br />
participativa, o sentar-se à mesa das negociações no apreço do que<br />
se tem a angariar num jogo de partes (pergunta contumaz: o que<br />
eu ganho com isto?), as prestações de conta do que se tem feito às<br />
agências do fomento, capital outro modo o nome, o pensamento<br />
crítico num aprumo de jeito e formatação, ele todo ele numa escrituração<br />
de si em prosa de pouca monta, o texto linear mesquinho<br />
objetivo programático, o rumor das ruas restrito ao que se averigua<br />
nos relatórios de pesquisa – pesquisa paga se for o caso o estar inscrito<br />
nas redes de contato (é a casta a abrir as portas ao pensar de<br />
um pensamento castrado), afinal se estaria a criticar aquilo de que<br />
se promove no dia-a-dia, mas vimos, já vimos, for o caso a comuta,<br />
o capital troca com isto, não temer, ó andarilho contabilista, não<br />
corres risco, o capital troca consigo.<br />
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32<br />
7<br />
Desde as ruas a insurreição. baudrillard a dizer dos graffiti de Nova<br />
iorque de 1972 17 . Nada é que durará o movimento, mas houve o movimento.<br />
baudrillard afirma: ‘uns e outros nasceram depois da repressão<br />
às grandes manifestações urbanas de 1966/1970. ofensiva<br />
selvagem como as manifestações, mas de um outro tipo e que mudou<br />
de conteúdo e de terreno. tipo novo de intervenção na cidade,<br />
não mais como lugar de poder econômico e político, mas como espaço/tempo<br />
do poder terrorista da mídia, dos signos e da cultura dominante’<br />
18 . outra cidade, outra forma de insurreição. outro o diagrama<br />
no que ela, a cidade, se arregimenta. outro o modo, a recusa.<br />
Não mais a cidade de que nos falara Foucault, o projeto político de<br />
sua máxima funcionalidade em saturação. Cidade dos dentros: de<br />
um a outro é que se caminha caminhava. Da família à escola, da escola<br />
à caserna, da caserna à fábrica, e, eventualmente, ao hospital, ou<br />
à prisão. Sempre é que se está dentro. De um dentro a outro, e em<br />
cada um destes dentros sempre num mais adentro, o ir-se de que se<br />
dispõe. Pois se se está à família, nela não se está à solta, está-se arranjado<br />
nas distribuições de papéis e funções: está-se pai, está-se filho,<br />
está-se à mesa, está-se ao quarto. Pois se se está à fábrica, nela não se<br />
anda aos esbarrões, está-se amoldado às linhas de produção d’algo,<br />
está-se à mira daquele que se lhe volta o olhar que fiscaliza, está-se<br />
em fila for o caso o encaminhar-se ao refeitório, está-se dentro do<br />
avental que autoriza que se se dê ao trabalhar das horas que se te<br />
escaparão no que for de ser o que se realiza, está-se no lugar próprio<br />
que se ocupa for de ser a chamada a convocar o teu nome, está-se<br />
dentro do nome que se te afixa às fichas e aos prontuários desde os<br />
quais a tua história infame se constrói, segundo a segundo, hora a<br />
hora, vis-à-vis, sobretudo do quando de um esbarrão às lâminas afia-<br />
17 Diz baudrillard: “os jovens entram à noite nas garagens de ônibus e de metrô,<br />
vão ao interior dos veículos e se soltam graficamente. No dia seguinte, todas as linhas<br />
cruzam manhattan nos dois sentidos. Apagam-se os desenhos (o que é difícil),<br />
detêm-se grafiteiros, prendem-se grafiteiros, proíbe-se a venda de sprays e outros<br />
artefatos – isso em nada os afeta: eles os fabricam artesanalmente e recomeçam todas<br />
as noites.” (1976, p.99)<br />
18 baudrillard, op.cit, p.100.<br />
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das do poder 19 . De um dentro a outro, e mesmo que se se creia à<br />
evasão quando de uma vertigem na que papéis e funções se nos escapam,<br />
se emaranham, se desordenam, e eis que se queira tomar<br />
sob rédeas curtas o fazer das horas nas que suamos, e então o ordenar<br />
aos outros aqueles que não ouviram o levante da Coluna a que<br />
se cheguem até bem junto aonde terminam os muros da fábrica, a muralha<br />
da cidade, ordenar como quem convoca em fúria à marcha dos<br />
que não podem a marcha: “Companheiros, companheiros”, sempre<br />
e sempre é que se estará dentro, e tão logo será a sirena a entoar o<br />
seu silvo, e tão logo será o corpus clínico que virá tomar-te aos braços<br />
de um Simão bacamarte no delírio de machado de Assis, o seu<br />
alienista. Na cidade de Foucault, em que se está dentro, tudo o que<br />
for resistência resiste desde aí, e firma-se na recusa do que se forja<br />
como o pensar do pensamento do dentro. Aqui, agora, na cidade de<br />
baudrillard, ‘já não estamos na cidade das paredes e muros vermelhos<br />
das fábricas e das periferias operárias. Nessa cidade, já se inscrevia,<br />
no próprio espaço, a dimensão histórica da luta de classes, a negatividade<br />
da força de trabalho, uma especificidade social irredutível.<br />
Hoje, a fábrica, como modelo de socialização pelo capital, não desapareceu,<br />
mas cede lugar, na estratégia geral, à cidade inteira como<br />
espaço do código. A matriz do urbano já não é a da realização de uma<br />
força (a força de trabalho), mas a da realização de uma diferença (a<br />
operação do signo). A metalurgia transformou-se em semiurgia’ 20 .<br />
baudrillard está a falar que os dentros se esgarçaram, que os invólucros<br />
desde os quais/nos quais se emolduravam os jogos de disciplina<br />
se romperam quais cristais finos no elevar das vozes de soprano, a<br />
resistência quem o saberia dizer, talvez menos, talvez que fosse no<br />
19 michel Foucault a falar da existência do infame desde os efeitos do poder, os esbarrões<br />
às suas pragmáticas: ‘Para que alguma coisa delas (as vidas dos infames) chegue<br />
até nós, foi preciso, no entanto, que um feixe de luz, ao menos por um instante,<br />
viesse iluminá-las. Luz que vem de outro lugar. o que as arranca da noite em que elas<br />
teriam podido, e talvez sempre devido, permanecer é o encontro com o poder: sem<br />
esse choque, nenhuma palavra, sem dúvida, estaria mais ali para lembrar seu fugidio<br />
trajeto. o poder que espreitava essas vidas, que as perseguiu, que prestou atenção,<br />
ainda que por um instante, em suas queixas e em seu pequeno tumulto, e que as<br />
marcou com suas garras, foi ele que suscitou as poucas palavras que disso nos restam.’<br />
(1977, p.207).<br />
20 baudrillard, 1976, p.100.<br />
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cansaço da opereta, a promoção do patronato, o formato do espetáculo,<br />
e então, o trocar das peças, o arranjar d’outro arranjo, o capital<br />
mesmo a dizer que um certo Estado cansa, que um certo Estado custa<br />
caro a si, que a cidade dos dentros intercambiáveis bem que melhor se<br />
forja na coextensão dos seus espaços como numa suposta homogeneidade<br />
deles, e veja que não apenas quanto a uma sua função, dizemos<br />
da família escola caserna fábrica hospital prisão, não apenas no<br />
emaranhado das funções que quem sabe persistisse aqui e ali irredutíveis<br />
cada qual à outra; outra a questão a que baudrillard está apontando,<br />
esta coextensão na que a cidade se estira a todos os lados, na<br />
que a cidade é toda hora e todo tempo a esteira na que deslizam os<br />
pés de passantes, pés quantos pés quiserem puderem a corredeira<br />
dos transeuntes, irão ao comércio talvez, irão às compras, irão aos fast<br />
foods, irão às festas que ‘bombam’ por aí, irão ao museu no consumo<br />
das artes, irão às academias, irão ao sexo que se lhes dá num convulso<br />
de braços pernas quadril tórax tonificados, irão às salas de projeção<br />
aquinhoar os seus dotes - os filmes aos borbotões no festival de uns<br />
quatrocentos deles e nada que se é, nada o que se será se não se conseguir<br />
assistir a uns 30 ou 40 ou 50 (superar-se em números, ‘recordarse’<br />
aqui a sinonímia do bater o seu próprio recorde), irão ao limpo/asséptico/alvo<br />
dos espaços da empresa-mundo, tornar-se apto, up to<br />
date, a cápsula de ecstasy no bolso, a garrafinha de água mineral, o<br />
olhar vidrado, a boca trincada, os lábios revirados secos sequíssimos,<br />
livre circular dos autômatos, a cidade de baudrillard na qual ‘tudo é<br />
concebido, projetado e realizado na base de uma definição analítica:<br />
moradia, transporte, trabalho, lazer, jogo e cultura – termos comutáveis<br />
no tabuleiro da cidade, num espaço homogêneo definido como ambiente<br />
total’ 21 , nunca é que se está no entre um e outro, entre a casa e<br />
a escola, o caminho; entre a família e o quartel, uns quarteirões; en-<br />
21 idem, idem. Diz baudrillard: “A cidade já não é o polígono político-industrial que<br />
foi na altura do século xix.; é o polígono dos signos, da mídia, do código. Sua verdade<br />
deixou de repente de estar num lugar geográfico, ao contrário da fábrica ou mesmo do<br />
gueto tradicional. Sua verdade, o encarceramento na forma/signo, está em toda parte.<br />
é o gueto da televisão, da publicidade, o gueto dos consumidores/consumidos, dos<br />
leitores lidos de antemão, dos decodificadores codificados de todas as mensagens, usuários/usados<br />
do metrô, dos animadores/animados das horas de lazer etc. cada espaço/<br />
tempo da vida urbana é um gueto, e todos estão conectados entre si.” (p.101)<br />
34<br />
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tre a caserna e a fábrica, o descansar da marcha, aqui, lá, na cidade de<br />
baudrillard nada nenhum o de que se contrapõe os tempos os modos,<br />
tudo o que se comuta, tudo o que se dá na coextensão das formas,<br />
e mesmo que se esteja no sexo se estará na ginástica, e mesmo<br />
que se esteja no museu se estará na praça das trocas, e mesmo que<br />
se esteja entre os livros se estará no trabalho do aperfeiçoar-se, e<br />
mesmo que se esteja frente à tv se estará no trânsito dos signos, na/<br />
sob maquinação deles, no consumo de estéticas do existir quando à<br />
performance – que é todo tempo toda prova todo espaço, aqui e agora<br />
é dizer do presente total, cápsula de compressão saturada, gueto<br />
móvel movente no que o circular é imperativo e o estar parado<br />
digno de susto e insulto. E então, os grafiteiros da Nova iorque de<br />
1972, a resistência outra. tomar as paredes de assalto. Lá, nelas, deixar<br />
uma inscrição. Sequer o nome que alguém algum identificasse se<br />
se for um incauto, se se for um agente da polícia, se se for um escrivão<br />
na função do registro, nomes que dizem apenas àqueles que se<br />
tocam ‘na exclusividade radical do clã, da turma, da gangue, da faixa<br />
etária, do grupo ou da etnia – vocativo totêmico, devolução do nome’<br />
como numa troca simbólica a se ofertar como uma dádiva 22 . Aqui, lá,<br />
tudo o que se toma for o caso o pensar nos jogos e nas pragmáticas<br />
da oficialidade constituída, constituinte, não mais a permuta (que<br />
não é sinonímia à troca simbólica), não mais a comuta que seria a<br />
inscrição no código (seus jogos) desde o qual opera a cidade e o<br />
pensamento da cidade do capital. Exclusividade radical do clã, da<br />
turma, da gangue: de si a si, desde o si ao si que atende em ser recusa<br />
ao que se lhes subsumisse num determinante geral – quem sabe<br />
fosse o Estado, quem sabe fosse o capital, quem sabe o seu código;<br />
desde o si ao si, a recusa a fazer o capital precipitar-se na lacuna que<br />
se inaugura ‘naquilo’ que não se lhe volta, ‘naquilo’ que não se lhe<br />
destina - senão e apenas como catástrofe 23 . Dos grafiteiros de Nova<br />
iorque, a escrituração de que eles promovem, nenhum o conteúdo –<br />
22 Cf. baudrillard, op.cit., p.102.<br />
23 Pierre Clastres a dizer a recusa dos primitivos face a qualquer modulação geral que<br />
se lhes arrancasse da sua existência singular. Clastres identificará no Estado esta forma<br />
concêntrica, agregadora na justa medida em que subsume e aniquila aos outros. No<br />
caso do Estado moderno, dirá Clastres, Estado etnocida – a sua peculiaridade.<br />
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uma significação profunda a se fazer vasculhada nos escrutínios do<br />
poder: quem foi o que quer o que significa? Nenhuma vontade de<br />
dizer a um outro o aquilo mesmo que nunca fora dito, o aquilo em<br />
reserva a que se traz no dizer, desde o dizer, quem sabe, a condição<br />
do emancipar-se. Nada o que se representa. Nada o que se apresenta<br />
sob. Nenhuma mensagem subliminar que falasse aos cristãos, ou<br />
aos de esquerda, ou àqueles que têm a palma da mão amarela, ou<br />
àquele’outros que estando em aparelhos secretos, sob os disfarces<br />
de alcunhas comuns, esperassem o signo sinal da convocatória ao<br />
avante! Nada disto. Sob o tempo espaço da cidade de comutação<br />
hiper-rápida, cidade do capital sem anverso, os grafiteiros estão a<br />
ofertar o vazio daqu(eles) que não trocam àqueles que não trocam<br />
também, o capital estando aí, no forjar de que se troca quando o que<br />
se faz é permutar sob o signo da indiferença, o comutar indiferentemente<br />
que já seria o condenar de todo e qualquer outro à obsolescência,<br />
‘segue, vai’, o capital a emitir os seus sinais, ‘segue, vai’ sempre<br />
afora o fora como aquilo a que se conquista num esticar de<br />
braços de tarântula, este deus renovado na forma do capital, deusaranha-de-tentáculos-vascularizados,<br />
um novo jogo de fronteiras<br />
fronteiriças ao deserto que se anexa, à floresta que se desmata numa<br />
ação de grileiros, o conjurar do outro enquanto outro o que for de<br />
ser aquele a que se recusa, e então, os grafiteiros: spray à mão, um<br />
nada a dizer no que se diz, um nome que nada significa por trás do<br />
significante solto Snake i Snake ii Snake iii twiggy superkool kool killer,<br />
a invenção de uma nova língua outra língua perto bem perto das<br />
glossolalias de Antonin Artaud na recusa da linguagem oficial hegemônica<br />
imperativa opressora 24 , aqui, os grafiteiros, deles dirá baudrillard,<br />
uma insurreição pelos signos.<br />
outra forma o mesmo dizer de baudrillard aos jogos entre capital,<br />
trabalho? baudrillard está a dizer a recusa, outra vez: recusa a tudo o<br />
que se lhe oferta desde o capital, qual seja, senão o trabalho mesmo<br />
24 Artaud: “Esta forma de cristalização surda e multiforme do pensamento, que escolhe<br />
num momento dado sua forma. Há uma cristalização imediata e direta do eu no centro<br />
de todas as formas possíveis, de todos os modos do pensamento”, e então, a resistência<br />
artaudiana: “um grande fervor pensante e superpovoado levava a meu eu como um<br />
abismo pleno. um vento carnal e ressoante soprava...” (1975, p.14 e p.11).<br />
36<br />
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que é morte lenta 25 ? baudrillard a dizer: “Entendemo-lo geralmente<br />
no sentido de extenuação física. mas é preciso entendê-lo de outra<br />
maneira: o trabalho não se opõe, como uma espécie de morte, à ‘realização<br />
da vida’ – esta é a visão idealista; o trabalho se opõe como<br />
uma morte lenta à morte violenta. Esta é a realidade simbólica. o<br />
trabalho se opõe como morte diferida à morte imediata do sacrifício.<br />
Contra toda visão piedosa e ‘revolucionária’ do tipo ‘o trabalho<br />
(ou a cultura) é o inverso da vida’, é preciso sustentar que a única<br />
alternativa ao trabalho não é o tempo livre nem o não-trabalho, é<br />
o sacrifício.” 26 baudrillard dirá a genealogia do trabalhador: do prisioneiro<br />
de guerra como o condenado à morte, ao servus= o que se<br />
conserva na promoção do butim, do bem de prestígio; tornar-se-á<br />
o escravo, irá-se à domesticidade suntuária, e então, ao labor servil.<br />
Nada ainda aqui, o trabalhador. Falta-lhe a dimensão do ‘livre circular’,<br />
a condição sine quae non do trabalhador livre, pudemos ver aqui<br />
– dois fluxos num encontro, a categoria de sujeito livre e a noção de<br />
produção, condição básica à emancipação, a quê? A quê? liberto ao<br />
trabalho. Este, o trabalhador. trabalho como morte diferida. outra<br />
vez, aqui, Jean baudrillard: “Lenta ou violenta, imediata ou diferida, a<br />
escansão da morte é decisiva; é ela que distingue radicalmente dois<br />
tipos de organização: a da economia e a do sacrifício. Vivemos, irreversivelmente<br />
na primeira, que não cessa de se arraigar na ‘diferança<br />
(différance)’ da morte” 27 . E então, será dizer do capital aquele que<br />
ao subsumir o trabalho a si, ao inscrevê-lo na longa duração diferida<br />
de sua movença, inscreve ao trabalhador na vida, ao arrancar-lhe a<br />
dimensão do sacrifício. Como se lhes dissesse, operando para além<br />
do dito, as suas pragmáticas: Estás condenado à vida, não a uma qualquer<br />
senão a esta na que sou-te o tempo inteiro, na que estás ocluso,<br />
consubstanciado, na que podes o todo de teu regozijo, o deitar-se<br />
à rede do mundo sendo eu mesmo – o capital: a rede, o mundo, a<br />
mão no empurro, e o espaço livre no que se embalança o embalar<br />
25 trabalhar do latino tripaliãre, ‘torturar com o tripãliu’, este de tripãlis, derivado<br />
de três + palus, pois este instrumento de tortura era formado por três paus. Cf. José<br />
Pedro machado, Dicionário etimológico da língua portuguesa. Lisboa: Editorial Confluência,<br />
1967 (p.2232).<br />
26 baudrillard, op.cit., p.56.<br />
27 idem, idem.<br />
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da rede. Aqui, agora, o poder, o capital não como o que condena à<br />
morte, mas o que deixa à vida – ‘uma vida que o escravo não tem o<br />
direito de devolver 28 . onde, a troca? onde, o desde si ao si? onde,<br />
um outro senão o jogo, o jugo, o estar proscrito no quando e no<br />
como da subsunção? onde, o de fora (dehors)? Recusar o jogo, o<br />
jugo. tomar a si o que se lhe tomara. inscrever-se de sob no que se<br />
lhe subscrevera. baudrillard a dizer: “Recusa de não ser condenado<br />
à morte, de viver na mortal liberdade condicional do poder, recusa<br />
de dever a vida e de nunca resgatar essa vida, bem como de estar,<br />
na verdade, obrigado a saldar essa dívida de longo prazo na morte<br />
lenta do trabalho, sem que essa morte lenta mude alguma coisa a<br />
partir de então na dimensão abjeta, na fatalidade do poder. A morte<br />
violenta muda tudo, a morte lenta nada muda” 29 . Jorge, o personagem<br />
de Vergílio Ferreira, a tomar a si as rédeas de sua condenação:<br />
condenar-se. Joseph K, personagem de Kafka, a recusar a andança no<br />
entre entre-se dos jogos: precipitar-se quando dispunha (dispôs-se<br />
a ele) do estar-se entre a quitação aparente e a moratória ilimitada.<br />
tomar a si o quanto é que dura deste agora, depô-lo de sua condição<br />
aberta, o claustro, subvertê-lo a ponto da rendição: não mais o agora.<br />
Precipitar-se. (Des)inscrever-se à dívida infinita: as artimanhas do<br />
contrato. (Des)tratar, (des)onerar-se, (des)iludir-se. Nunca é que será<br />
(seria) a terra prometida: fabulação do jogo de quem joga o jogar-se<br />
nele, o jogar com o ele que dá o jogo. Nunca é que será (seria) o<br />
resgate à condição (metafísica, metafórica?) do valor ao uso, o valor<br />
de uso – senão e apenas como fetiche o que seria dizer o seu impossível,<br />
esta impostura. outra vez, baudrillard: “(...) o poder dá sempre<br />
mais, para melhor submeter, e a sociedade ou os indivíduos podem<br />
chegar até a destruição de si mesmos para dar-lhe fim. trata-se da<br />
única arma absoluta, e sua simples ameaça coletiva pode abalar o<br />
poder. Diante dessa mera ‘chantagem’ simbólica (barricadas de 1968,<br />
tomada de reféns), o poder se desune: como ele vive de minha mor-<br />
28 idem, idem.<br />
29 idem, p. 57. baudrillard: “A morte nunca deve ser entendida como experiência real<br />
de um sujeito ou de um corpo, mas como uma forma – eventualmente a de uma relação<br />
social – na qual se perde a determinação do sujeito e do valor. é a obrigação da<br />
reversibilidade que leva à extinção tanto a determinação quanto a indeterminação.”<br />
(op.cit., nota 2, p.11)<br />
38<br />
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te lenta, oponho a ele minha morte violenta. E é porque vivemos de<br />
morte lenta que sonhamos com a morte violenta. Esse mesmo sonho<br />
é insuportável para o poder 30 .<br />
Cidade de Foucault, cidade de baudrillard. Resistir desde de dentro,<br />
um cenário. Recusa radical de todo e qualquer jogo (jugo), outro<br />
cenário 31 . Cidades distintas, cartografias de processos de dominação<br />
diferidos. outras as formas do resistir, do recusar. Aqui, baudrillard<br />
a sugerir a radical recusa: não trocar com ‘aquele aquilo’ que não<br />
troca (apenas comuta no indiferenciado). A tomada de reféns, os<br />
atos de terrorismo, os graffiti nova-iorquinos. Porém, dizer da tomada<br />
dos reféns, d’algumas formas de terrorismo, da recusa radical<br />
sobrelevada na condição da morte violenta, é já buscar instantes em<br />
que o próprio Foucault se lhe voltará os olhos. o Foucault que se<br />
encaminha ao irã, quando da revolução islâmica de 1979. o que o<br />
arrebatara senão a condição do inaudito a se inscrever como recusa<br />
irredutível? Aqui, é Foucault a se perguntar: ‘No mundo atual, o que<br />
pode suscitar em um indivíduo o desejo, o gosto, a capacidade e a<br />
possibilidade de um sacrifício absoluto, sem que se possa supor-se<br />
nele a menor ambição ou o menor desejo de poder e de ganância?<br />
é o que vi em tunis, a evidência da necessidade do mito, de uma es-<br />
30 idem, p.60.<br />
31 Claro está que o pensamento foucaulteano não poderia ficar circunscrito a este/ou<br />
a qualquer mapeio dos dentros, e de uma micropolítica das resistências. outros eixos<br />
lhe são pertinentes: o epistemológico, o das subjetivações. Ainda assim, d’algum<br />
modo, situaríamos uma questão pertinente ao Foucault dos 70’: o Foucault, cartógrafo<br />
das sociedades de disciplina, e pensador das micropolíticas: a questão do ‘como’<br />
das resistências a partir dos jogos do dentro: ‘como, a sua emergência? Como pensar<br />
uma ‘verdade’ emergindo desde os jogos de produção de verdade que não remeta ao<br />
poder (aos múltiplos poderes e estratégias)? Como a estratégia que se lhe volta, desmantelando-o?<br />
ou não seria este ir e vir de estratégias móveis e resistências móveis a<br />
condição do retroalimentar? outra questão que seria pertinente diz respeito já à letra<br />
de baudrillard acerca dos jogos de liberação desde a micropolítica: “Em toda parte, o<br />
que foi liberado o foi para passar à pura circulação, para entrar em órbita. (...) Pode-se<br />
dizer que o fim inelutável de toda a liberação é fomentar e alimentar as redes” (1990,<br />
p.10). ou, no texto de 1976: “tudo o que produz contradição, relação de forças, energia<br />
em geral não faz senão voltar ao sistema e impeli-lo, de acordo com uma distorção<br />
circular semelhante ao anel de möbius” (1976, p.50). E então, questões recorrentes:<br />
onde, o combate? o que pode o combate? o quanto o que pode o combate?<br />
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piritualidade e do caráter intolerável de certas situações produzidas<br />
pelo capitalismo, pelo colonialismo e pelo neocolonialismo’ 32 . Não<br />
nos espanta que a direita, a esquerda se lhe voltassem repreensões<br />
graves, esconjuros definitivos, as palavras ácidas de seus interiores<br />
de vísceras (no fundo somos todo vísceras). Foucault estaria optando<br />
pelo esquecimento do tabuleiro, as regras, as ex-regras, as des-regras,<br />
tabuleiro em que se se joga é sempre no dentro dos possíveis,<br />
os possíveis na circunscrição do quanto o que se pode, o quanto<br />
que dura isto. Questão a saber é sempre: a quem isto? A quem este<br />
limite delimitado auto-esgarçante? o que é que se ganha com este<br />
limite, com este transcendental? E ‘quem’ o aquele a ganhar? o jogo<br />
jugo das cartas nas mãos habilíssimas duma simulação? 33 . Foucault<br />
está a pensar a sublevação como o aquilo que rompe as amarras do<br />
possível, que desinscreve os limites do presente, do real no que se<br />
gora, no que se experimenta o intolerável. Aqui, Foucault: “As insurreições<br />
pertencem à história. mas, de certa forma, lhe escapam.<br />
o movimento com que um só homem, um grupo, uma minoria ou<br />
32 Foucault, m. (1994), “Entretien avec michel Foucault” (fins de 1978). in: Dits et écrits,<br />
Vol. iV, núm. 281, p.79.<br />
33 baudrillard a falar da esquerda divina, dos partidos políticos como paraísos artificiais<br />
da política: “a esquerda jamais chega ao ‘poder’ a não ser para gerir o trabalho<br />
de luto do social, a lenta desagregação, reabsorção, involução e implosão do social.<br />
Assim, os sindicatos só conquistam a gestão triunfal, incontestada, da esfera do trabalho<br />
quando o processo de trabalho, generalizando-se, perde sua virulência histórica e<br />
soçobra no contexto de sua própria representação” (1978, p.32). E também aqui, neste<br />
parágrafo pontualíssimo: “o social, a idéia de social, o político, a idéia de política,<br />
sempre foram, sem dúvida, sustentados por uma fração minoritária. Em vez de conceber<br />
o social como uma espécie de condição original, de estado de fato que engloba<br />
todo o resto, de dado transcendente a priori, como se concebe o tempo e o espaço<br />
– em vez de tudo isso, cumpre indagar: quem produziu o social, quem governa este<br />
discurso, quem desenvolveu este código, promoveu essa simulação universal? Não<br />
será uma certa intelligentsia cultural, tecnicista, racionalizante, humanista, que encontrou<br />
aí o meio de pensar todo o resto e de o enquadrar num conceito universal (e<br />
talvez o único) que, pouco a pouco, encontrou um referencial grandioso: as massas<br />
silenciosas, donde parece emergir o essencial, irradiar a energia inesgotável do social?<br />
mas ter-se-á refletido, porventura, em que a maior parte do tempo nem essas<br />
famosas massas, nem os indivíduos, não se vivenciam como sociais, isto é, nesse espaço<br />
perspectivo, racional, panóptico, que é onde se reflete o social e seu discurso?”<br />
(pp.45-46).<br />
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todo um povo diz: ‘não obedeço mais’, e joga na cara de um poder<br />
que ele considera injusto o risco de sua vida – esse movimento me<br />
parece irredutível. Porque nenhum poder é capaz de torná-lo absolutamente<br />
impossível: Varsóvia terá sempre seu gueto sublevado e<br />
seus esgotos povoados de insurrectos. E porque um homem que se<br />
rebela é em definitivo sem explicação, é preciso um dilaceramento<br />
que interrompa o fio da história e suas longas cadeias de razão, para<br />
que um homem possa, ‘realmente’, preferir o risco da morte à certeza<br />
de ter de obedecer” 34 . inscrever-se desinscrever-se situar-se no<br />
sem explicação romper as cadeias (as grades, o cárcere) lógicas: não<br />
trocar com aquele aquilo que não troca. Foucault a pensar no irã de<br />
1979, baudrillard a pensar nos acontecimentos do 11 de setembro de<br />
2001 35 – na atribuição da potência destes acontecimentos à sua condição<br />
de irredutível. Aí, a sua força. Eis o máximo de sua força. E mesmo,<br />
e sobretudo, nisto, o capital a precipitar-se. tão logo, serão as unhas<br />
histéricas dos aflitos na tentativa/tentação de cooptar: agarrar e ligar.<br />
Contratática: recusar radicalmente os remendos do depois – a vontade<br />
de tabular, a de re-inserir no tabuleiro, as artimanhas da crítica,<br />
os tentáculos de aracnídeo: começa-se por buscar os instantes em<br />
que, quem sabe, um Foucault, um baudrillard teriam recuado, uma<br />
sua reconversão à lucidez à sobriedade às causas do social. outro<br />
modo, mesmo modo: se lhes destinar o silêncio copioso desde a camarilha<br />
intelectuália, as gentes do pensamento fraco. é de se rir um<br />
riso largo, um riso de dar voltas. outro passo tentacular: a recuperação<br />
(remake) do instante abrupto, do irredutível do acontecimento<br />
pelo que (será) lhe sobreveio: o governo dos mulás, o massacre ao<br />
Afeganistão. Nada que isto fala do acontecer do acontecimento, da<br />
recusa radical que se (nele) inscreveu. baudrillard diria disto a tentativa<br />
de ‘instaurar uma ordem securitária, uma neutralização geral das<br />
populações com base na afirmação de um não-acontecimento defi-<br />
34 Foucault, m. 1979, p.77.<br />
35 baudrillard (2002): “Aquilo que distingue o pensamento radical da análise crítica é<br />
isto: a análise crítica trabalha para negociar o seu objeto em troca do sentido e da interpretação,<br />
enquanto o pensamento radical tenta arrancá-lo dessa transação e tornar<br />
impossível a sua conversão. o interesse não está mais na explicação, mas num duelo,<br />
num desafio respectivo do pensamento e do acontecimento. é o preço para conservar<br />
a literalidade do acontecimento.” (p.21).<br />
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41
nitivo’ 36 . Foucault a desdenhar daqueles que insistirão no veredicto:<br />
inútil se insurgir, sempre será a mesma coisa! A isto, ele contrapõe:<br />
“Não se impõe a lei a quem arrisca sua vida diante de um poder. Há<br />
ou não motivo para se revoltar? Deixemos aberta a questão. insurgese,<br />
é um fato” 37 . tática explosiva, recusa radical: desgarra, desliga.<br />
36 idem, p.71.<br />
37 Foucault, 1979, p.80.<br />
42<br />
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4v.<br />
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43
muDANÇAS SoCiEtÁRiAS<br />
E CRiSE Do EmPREGo<br />
miStiFiCAÇõES, LimitES E PoSSibiLiDADES<br />
DA FoRmAÇÃo PRoFiSSioNAL 1<br />
Gaudêncio Frigotto 2<br />
1 Este artigo resulta de trabalho de pesquisa das últimas duas décadas. trata-se aqui<br />
de trazer uma síntese de trabalhos do autor ou em colaboração com outros pesquisadores<br />
sobre o tema em discussão.<br />
2 Doutor em Educação. Professor do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas<br />
e Formação Humana da universidade do Estado do Rio de Janeiro (uerj) e professor<br />
titular associado no Programa de Pós-Graduação em Educação da universidade<br />
Federal Fluminense. membro do Comitê Diretivo de Conselho Latino-Americano de<br />
Ciências <strong>Sociais</strong> (Clacso),com sede em buenos Aires, e do Comitê Acadêmico do instituto<br />
Pensamento e Cultura Latino-Americano (ipecal), com sede no méxico.<br />
44<br />
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o presente artigo trata das mudanças no campo científico e técnico, sua<br />
relação com as mudanças nas relações de produção, com o desemprego<br />
estrutural e o alcance e limites da formação profissional nas políticas de integração<br />
ou de inserção social, especialmente dos jovens. trata-se de uma<br />
problemática que se faz presente em todas as partes do mundo, mas que<br />
tem efeitos mais desagregadores em países de capitalismo dependente. Neste<br />
sentido, o artigo tem como foco a realidade brasileira. Por fim, seguindo<br />
o que a revista <strong>Sinais</strong> sugere em seu nome, buscaremos apontar os desafios<br />
para uma agenda que articule mudanças estruturais, políticas públicas de<br />
emprego e renda e a relação entre educação básica e educação profissional.<br />
A idéia básica da análise é de que a educação e a formação profissional são<br />
constituídas e constituintes da sociedade que temos. Por isso, não podem<br />
ser tomadas como a chave para resolver todos os nossos problemas sociais e<br />
nem o desemprego. Elas assumem um papel fundamental quando vinculadas<br />
às mudanças acima referidas.<br />
this paper deals with the changes in the scientific and technical field of work,<br />
its connection with the changes in the production relationships, with the<br />
structural unemployment and the range and limits of professional formation<br />
in the policies of integration or of social insertion, especially of the youth. it’s<br />
a debate that makes itself present in all parts of the world, but which has more<br />
disaggregating effects in countries of dependent capitalism. in this sense, the<br />
paper focuses on the brazilian reality. At last, following what <strong>Sinais</strong> (magazine)<br />
suggests in its name, we shall seek the appointment of the challenges for<br />
an agenda that articulates structural changes, public politics of employment<br />
and revenue and the connection between basic education and professional<br />
education. the basic idea of such analysis is that professional education and<br />
professional formation are constituted out of and constituting of the society<br />
that we have. therefore, they may not be taken as the key to the solvency of<br />
all of our social problems and of unemployment. they assume a fundamental<br />
role when attached to the above mentioned changes.<br />
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45
46<br />
1. iNtRoDuÇÃo<br />
o cenário que assumem as mudanças societárias neste<br />
início de século xxi é pouco auspicioso para o futuro do<br />
emprego ou, mais amplamente, para o mundo do trabalho.<br />
o desemprego estrutural e a precarização do trabalho<br />
desenham um horizonte de vida provisória em suspenso 3 .<br />
trata-se de uma problemática que se faz presente em todas as partes<br />
do mundo, mas que tem efeitos mais desagregadores em países<br />
caracterizados por Arrighi (1998) de capitalismo periférico ou semiperiférico<br />
e por Fernandes (1972) de capitalismo dependente com<br />
desenvolvimento desigual e combinado 4 . um cenário e contexto<br />
histórico que atinge principalmente os jovens, mas de modo diverso<br />
nos distintos grupos sociais. A revolta dos jovens da França em 2005<br />
e 2006, uma das sociedades de maiores garantias sociais e da mais<br />
ampla tradição institucional republicana, explicita, nos dois pólos da<br />
pirâmide social, a gravidade do problema.<br />
Por um lado, os distúrbios e a revolta da juventude das periferias<br />
francesas, a grande maioria de estrangeiros das mais diversas partes<br />
do mundo lutando por direito mínimo à vida e por trabalho e, por<br />
outro, os jovens que freqüentaram as mais conceituadas universidades,<br />
como a Sorbone, que se rebelaram em face da flexibilização do<br />
3 A expressão vida provisória em suspenso a apropriamos de Victor Frankel (1945,<br />
in bejzman, 1997). Com ela este autor quer mostrar a situação e o sentimento de insegurança<br />
e de imprevisibilidade daqueles que viveram a experiência de presos de<br />
campo de concentração, como é o seu caso , os tuberculosos que eram isolados em<br />
sanatórios e os desempregados. Num outro contexto, Richard Sennett (1999) fala-nos<br />
da “corrosão do caráter” para mostrar como as relações sociais atuais, ao radicalizarem<br />
o desemprego estrutural e a ampliação do trabalho precário, atingem o âmago da<br />
estrutura da personalidade dos indivíduos.<br />
4 As categorias de capitalismo dependente e desenvolvimento desigual e combinado<br />
são centrais para entender a especificidade e particularidade de como se construiu<br />
a sociedade brasileira e a sua atual configuração nas relações sociais e sua relação<br />
com os centros hegemônicos do capitalismo. Como assinala michel Löwy, as análises<br />
do desenvolvimento desigual e combinado introduzem uma diferença crucial com<br />
os teóricos da dependência pois, diferente destes últimos, afirmam o caráter exclusivamente<br />
capitalista das economias latino-americanas, desde a época da colonização<br />
- na medida em que (...) trata-se mais de um amálgama entre relações de produção<br />
desiguais sob a dominação do capital. (Löwy, 1995:8)<br />
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já precarizado primeiro emprego. Quando nos debruçamos sobre a<br />
realidade brasileira, encontramos mais de 20 milhões de jovens entre<br />
15 e 24 anos. A desigualdade entre grupos é de tal ordem que é mais<br />
adequado falar, como vários autores indicam, em juventudes. tratase<br />
de uma unidade do diverso, demarcada pela origem de classe,<br />
fração de classe ou grupo social e pelas particularidades regionais,<br />
culturais, de etnia, religião, etc.<br />
os jovens a que nos referimos nesta análise têm “rosto definido”.<br />
Pertencem à classe ou fração de classe de filhos de trabalhadores<br />
assalariados ou que produzem a vida de forma precária por conta<br />
própria, no campo e na cidade, em regiões diversas e com particularidades<br />
socioculturais e étnicas. Esta é a população das políticas<br />
públicas focais e distributivas.<br />
mesmo na delimitação deste universo podemos encontrar diferentes<br />
particularidades. Assim, uma massa enorme de jovens trabalha<br />
com a família em minifúndios ou como arrendatários ou assalariados<br />
do campo ou em assentamentos da reforma agrária ou acampados.<br />
mas, certamente, o número maior de jovens filhos de trabalhadores<br />
reside em bairros populares ou favelas das médias e grandes cidades<br />
do brasil. Aproximadamente seis milhões de crianças e jovens trabalham<br />
precocemente no brasil.<br />
todos esses grupos de jovens têm suas especificidades, mas, do<br />
ponto de vista psicossocial e cultural, tendem a sofrer um processo<br />
de adultização precoce. A inserção no mercado formal ou “informal”<br />
de trabalho 5 é precária em termos de condições de trabalho,<br />
de direitos e níveis de remuneração. uma situação, portanto, muito<br />
diversa da dos jovens de “classe média” ou do topo da pirâmide<br />
social, que estendem a infância e juventude. Nesses casos, a gran-<br />
5 Como ao longo deste texto se utilizarão os termos mercado, mercado de trabalho,<br />
mercado formal e informal, cabe, de imediato, uma advertência ao leitor. o conceito<br />
ou noção de mercado ou mercado de trabalho é altamente banalizado no jargão<br />
econômico. é freqüente ouvirmos ou lermos na imprensa que o “mercado está nervoso,<br />
tenso ou deprimido”. o mercado é personificado. Esconde-se que o mercado<br />
de trabalho resulta de relações sociais, relações de força e de poder vinculadas a interesses.<br />
A dicotomia mercado formal e informal, por outro lado, não permite captar<br />
uma enorme diversidade de estratégias de sobrevivência dos contingentes excluídos<br />
do trabalho formal. Economia popular, economia de sobrevivência, economia solidária<br />
são novos conceitos que buscam expressar essa complexidade (tiriba, 2000).<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 44-75 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007<br />
47
de maioria inicia sua inserção no mundo do trabalho após os 25<br />
anos. 6<br />
Há, também, um número significativo de jovens das grandes capitais,<br />
violentados em seu meio e em suas condições de vida, que se<br />
enquadram numa situação que, no mundo da física, se denomina<br />
de ponto de não-reversibilidade. trata-se de grupos de jovens que<br />
foram tão desumanizados e socialmente violentados que se tornaram<br />
presas fáceis do mercado da prostituição infanto-juvenil ou de<br />
gangues que nada têm a perder ou constituem um exército de trabalhadores<br />
do tráfico.<br />
Com efeito, em pesquisa feita pela unesco sobre o mapa da violência,<br />
o brasil ocupa o terceiro lugar na América Latina. A situação<br />
das grandes capitais é dramática. Em 1980, no Rio de Janeiro, os<br />
homicídios de jovens entre 15 e 24 anos representavam 33,2% do<br />
número total de mortes da capital. 7 No ano 2000, passaram a representar<br />
53,2% (Pereira, m. 2004). os dados do Núcleo de Estudos da<br />
Cidadania, Conflito e Violência urbana da universidade Federal do<br />
Rio de Janeiro indicam que as mortes em confronto com a polícia,<br />
no Rio de Janeiro, passaram de 900 casos, em 2002, para 1.195 em<br />
2003. Essa tendência, em relação aos jovens nesta faixa etária, se<br />
reproduz em outras capitais, como São Paulo, belo Horizonte, Salvador<br />
etc. 8<br />
6 Ao definirmos como foco deste texto os jovens trabalhadores de classe popular e<br />
os grupos precarizados de classe média, não ignoramos que os jovens da classe média<br />
alta ou do topo da pirâmide social não tenham problemas. um estudo indicativo a<br />
esse respeito é de Célia Ferreira Novaes sobre “As determinações sociais no problema<br />
da escolha profissional: contradições e angústias nas opções dos jovens das classes<br />
sociais de alta renda” (Novaes, 2003).<br />
7 Dificilmente passa um dia sem que os jornais de grande circulação não noticiem<br />
mortes de jovens em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. trata-se de mortes causadas<br />
por confrontos ou não com a polícia ou entre grupos rivais. manchetes como estas se<br />
repetem “Pm sobe a Rocinha e três adolescentes são mortos”. Jornal o Globo, 2.02.2004,<br />
p. 13). Hoje mesmo aparece como manchete de primeira página “Pena de morte sem lei”.<br />
A notícia dá conta de que o assassinato de jovens nas favelas do Rio é sete vezes maior<br />
que em outras partes da cidade (Jornal o Globo, 23 de agosto de 2007: 1).<br />
8 uma análise mais ampla sobre a questão do mundo do trabalho, educação e cultura<br />
e juventude o leitor a encontra em Novaes, R. e Vanuchi, P. (2004). As idéias básicas<br />
desta introdução as extraímos do capítulo que escrevemos nesta coletânea - Juventude,<br />
trabalho e educação no brasil: perplexidades, desafios e perspectivas.<br />
48<br />
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A configuração acima esboçada nos indica que não é por acaso que<br />
o tema da relação juventude, trabalho e educação assume, especialmente<br />
nas últimas décadas, uma preocupação específica no âmbito<br />
das políticas públicas do Estado brasileiro. Atualmente ocupa centralidade<br />
no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), estatuindo-se<br />
um PAC específico da Educação, com ênfase para os jovens e<br />
com programas diferenciados para diferentes grupos sociais.<br />
A breve introdução acima nos coloca diante de uma problemática<br />
que se configura como o dilema da esfinge: ou a deciframos ou o cenário<br />
tenderá a se agravar ampliando o espectro de um mundo que é<br />
governado, cada vez mais, pelo medo e pela violência. 9 Seguindo o que<br />
a revista <strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong> sugere em seu nome, este artigo tem o intuito de<br />
problematizar, por um lado, as mistificações e simplificações das análises<br />
sobre as atuais mudanças societárias sob a noção de globalização<br />
e sua relação com as mudanças tecnológicas, econômicas, políticas e<br />
culturais, e, por outro, analisar os limites e as possibilidades da educação<br />
profissional em face do desemprego estrutural e da precarização<br />
do trabalho. Por fim, buscaremos sinalizar os desafios para uma agenda<br />
que articule mudanças estruturais, políticas públicas de emprego e<br />
renda e a articulação entre educação básica e educação profissional.<br />
2. muDANÇAS SoCiEtÁRiAS: GLobALizAÇÃo E/ou<br />
FRAGmENtAÇÃo E iNSEGuRANÇA?<br />
os sinais das mudanças societárias das últimas décadas do século xx<br />
e a primeira década do século xxi nos alertam que, ao contrário da ênfase<br />
ufanista do ideário da globalização que cria o imaginário de que todos<br />
estão integrados evidencia, cada vez mais, um mundo fragmentado e de<br />
contrastes e de crise 10 . Crise econômica, explicitada pela desordem dos<br />
mercados mundiais e hegemonia do capital especulativo; 11 monopólio<br />
9 o leitor que queira aprofundar a compreensão desta questão, veja Chomsky (2004).<br />
10 Sobre o tema da globalização, ver ianni (2001), Cardoso (1999) e Chossudvosky<br />
(1999).<br />
11 A elaboração deste texto está se dando concomitante a uma enorme instabilidade<br />
mundial, com quedas abruptas nas bolsas de valores e a convicção de que a magnitude<br />
do capital especulativo e volátil é de tal ordem que se instauram o pânico e a<br />
insegurança. Nem todos perdem, ao contrário, uns poucos ganham muito.<br />
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da ciência e da técnica e o desemprego estrutural; crise teórica que se<br />
revela na incapacidade de os referenciais de análise darem conta dos<br />
desafios do presente; e, por fim, crise ético-política, que se manifesta<br />
por nenhum ou frágil estranhamento em face da miséria humana e da<br />
naturalização de uma exclusão sem culpa e da violência.<br />
Em realidade, como sinaliza Chasnais (1996), o que vivemos, e sem<br />
precedentes, é um processo de mundialização dos mercados, do<br />
fluxo de mercadorias, sob o domínio do capital financeiro e numa<br />
relação assimétrica entre países. o poder dos países periféricos ou<br />
semiperiféricos (Arrighi, 1998) de produzir de forma competitiva e<br />
de exportar seus produtos é ínfimo.<br />
o fantástico desenvolvimento científico e tecnológico, de natureza<br />
qualitativa diversa e de virtualidade para ampliar qualidade de<br />
vida, sob a lógica unilateral do mercado, torna-se a face mais bruta<br />
da esfinge de nosso tempo. Com efeito, o acesso e a definição política<br />
destas tecnologias estão dentro de uma lógica unilateral da competitividade<br />
definida pelo mercado e na lógica do lucro. Ciência e<br />
tecnologia são cada vez mais concentradas na mão de poucos grupos<br />
e uma força produtiva produzida pelo trabalhador e que se volta<br />
contra ele. os efeitos deste monopólio manifestam-se hoje em todos<br />
os campos. Em face deste direcionamento, dois aspectos interligados,<br />
porém, igualmente equivocados, têm sido dominantes na<br />
visão da ciência e técnica na sociedade atual.<br />
um primeiro, ligado à noção de globalização, é do fetiche e do determinismo<br />
da ciência, da técnica e da tecnologia tomadas como forças<br />
autônomas das relações sociais de produção e de poder. A forma mais<br />
apologética deste fetiche aparece, atualmente, sob as noções de sociedade<br />
pós-industrial e sociedade do conhecimento, que expressam a<br />
tese de que a ciência, a técnica e as novas tecnologias nos conduziram<br />
ao fim do proletariado e dos conflitos entre o capital e o trabalho 12 .<br />
Como sinaliza Carlos Paris:<br />
50<br />
A manipulação ideológica do avanço tecnológico pretende<br />
apresentar-nos a imagem de um mundo em que os grandes<br />
problemas estão resolvidos, e, para gozar a vida, o cidadão só<br />
12 Neste plano de mistificação encontramos autores como: bell (1973), toffler (1950)<br />
e Freadman (1977).<br />
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precisa apertar diversos botões ou manejar objetos de apoio<br />
(Paris, 2002:175).<br />
mas, como prossegue este autor, na verdade se trata de uma epiderme<br />
embelezada que encobre uma imensa maioria de seres humanos<br />
que sequer conseguem satisfazer suas necessidades primárias.<br />
Para sociedades, como a brasileira, esta é uma realidade candente<br />
e muito concreta. trata-se de uma sociedade, como veremos adiante,<br />
que alcançou um significativo desenvolvimento industrial que<br />
permite aos setores de ponta industriais produzir superávit primário<br />
sem precedentes, liderado pelas exportações do agronegócio e que,<br />
ao mesmo tempo e paradoxalmente, o programa social básico do<br />
atual governo é o da fome zero, cujo escopo é dar três refeições para<br />
aproximadamente 50 milhões de brasileiros. mas essas contradições<br />
atingem também o núcleo do capitalismo central.<br />
o outro viés situa-se na visão de pura negatividade da ciência, da<br />
técnica e da tecnologia em face da sua subordinação aos processos<br />
de concentração do lucro e ampliação da precarização e inseguranças<br />
de milhões de trabalhadores e de suas famílias<br />
os dois vieses decorrem de uma análise que oculta o fato de que a<br />
atividade humana que produz o conhecimento e o desenvolvimento<br />
da técnica e tecnologia e seus vínculos imediatos ou mediatos com<br />
os processos produtivos se define e assume o sentido de alienação<br />
e exploração ou de emancipação no âmbito das relações sociais determinadas<br />
historicamente. ou seja, a forma histórica dominante da<br />
ciência, da técnica e da tecnologia de se constituírem como forças<br />
produtivas destrutivas e expropriadoras e alienadoras do trabalho e<br />
do trabalhador não é determinação a elas intrínsecas, mas as mesmas<br />
são dominantemente decididas, produzidas e apropriadas social<br />
e historicamente nas relações sociais vigentes.<br />
Esta compreensão nos conduz, então, ao fato de que a ciência, a<br />
técnica e a tecnologia são alvo de uma disputa de projetos societários.<br />
o que lhes dá caráter destrutivo, expropriador e alienador ou<br />
de emancipação humana é o projeto societário ao qual se vinculam e<br />
dentro do qual se desenvolvem. Não é, por isso, também, da natureza<br />
em si do avanço científico-técnico e tecnológico desempregar. o<br />
que desemprega é a forma social de produção e o uso das tecnologias.<br />
Elas poderiam reduzir substantivamente a jornada de trabalho<br />
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51
e ampliar o tempo livre. tempo este que não se reduza ao descanso<br />
semanal ou às férias, mas que significa o alcance das condições de<br />
resposta às necessidades básicas num determinado tempo histórico<br />
e a possibilidade efetiva de fruição, escolha e criação.<br />
Como mostram diferentes análises, a forma dominante, ditada não<br />
pela vontade de cada empresa, mas pela competição sistêmica, é de<br />
incorporação crescente de tecnologia na produção de mercadorias e<br />
serviços e a diminuição e o barateamento da força de trabalho. isto<br />
não só pelas tecnologias de última geração – digital-molecular – empregadas<br />
no processo produtivo, mas, também, pelas tecnologias gerenciais<br />
e organizacionais. Como mostra Dejours (1999), as expressões<br />
“enxugar os quadros, tirar o pó, diminuir as gorduras” passam a idéia<br />
de que o trabalhador é problema.<br />
mas, talvez, um dos campos mais aterradores do monopólio da ciência<br />
e da tecnologia sem controle da sociedade dá-se no campo da<br />
pesquisa genética e comercialização de órgãos. A propriedade das<br />
células-tronco e as pesquisas de clonagem humana por laboratórios<br />
privados apontam pelo mercado da vida. E qual a ética deste mercado?<br />
é a ética do negócio e da utilidade para o lucro.<br />
Eduardo Galeano 13 mostra-nos a direção perversa que este negócio<br />
assume:<br />
52<br />
Gregory Pence – professor de ética da universidade de Alabama<br />
(EuA) – reivindica o direito de os pais fazerem cruzamentos da<br />
mesma forma que os criadores fazem cruzamento buscando o<br />
cão mais adequado a uma família.<br />
o economista Leste thurow, do massachusetts institute of tecnology,<br />
pergunta: quem poderia negar-se a programar um filho com maior<br />
coeficiente intelectual? – “Se o senhor não fizer isso – adverte – seus<br />
vizinhos o farão, e, então, seu filho será o mais bobo do bairro.”<br />
James Watson – Prêmio Nobel por ter descoberto a estrutura do DNA –<br />
se nega a aceitar limites à pesquisa e ao negócio no campo genético.<br />
“Devemos nos manter à margem dos regulamentos e das leis.”<br />
No campo econômico, isto se materializa pelo domínio das megacorporações<br />
supranacionais, ligadas aos centros hegemônicos do<br />
13 Jornal Em tempo. Nº 321 – jun.jul. 2001.<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 44-75 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007
poder mundial. De acordo com Ribeiro (2005), megaempresas de<br />
petróleo como Exxon mobil, Shell, General motors – cada uma, individualmente<br />
– são economias maiores que de Portugal, israel, irlanda<br />
ou Nova zelândia. Por outro lado, em 2004, as duzentas maiores<br />
multinacionais detinham 29% de toda a atividade econômica. Ribeiro<br />
assinala:<br />
Na sombra, mas com enorme poder, cresce a dominação do<br />
mercado através de oligopólios de propriedade intelectual ,<br />
cuja extinção de prazo manipula mínimas modificações para<br />
estender a vida das patentes; associado a isto, o fortalecimento<br />
de cartéis de tecnologias. (Ribeiro, 2005:19) 14<br />
Esta realidade, cada vez mais intensa por fusões de empresas, leva<br />
o historiador Eric Hobsbawm (1990) a concluir que do ponto de vista<br />
econômico, já na década de 1960, fazia pouco sentido falar-se em<br />
nação. isto mostra tanto a natureza do que se denomina de globalização<br />
quanto seus efeitos na desigualdade entre regiões e países.<br />
Parte do mundo está jogada ao seu destino, à sua dor, fome e morte.<br />
Grande parte da África não interessa ao mercado.<br />
Para elucidar a polarização de riqueza e miséria, nada melhor do<br />
que ir em textos daqueles que disseminam a apologia da globalização.<br />
trata-se, como situam bourdieu, P & Wacquant, L. (2000), de<br />
propagadores da nova vulgata. thomas L. Friedman é um destes divulgadores.<br />
trata-se de um jornalista com vários prêmios por livros<br />
que tratam do mundo globalizado. o trecho do seu último livro – o<br />
mundo é plano – uma breve história do século xxi, baseado no Vale<br />
do Silício indiano, busca mostrar que chegamos no ano 2000 a um<br />
novo patamar da globalização. o pequeno trecho destacado abaixo<br />
nos delineia o que os apologetas descrevem, mas não analisam.<br />
Fui com a equipe do Discovery time até o campus da infosys,<br />
acerca de quarenta minutos do centro de bangalore,<br />
a fim de conhecer suas instalações e entrevistar Nilekani.<br />
Na estrada esburacada havíamos disputado espaço com vacas<br />
sagradas, carroças puxadas por cavalos e riquixás mo-<br />
14 A tradução do espanhol é de minha responsabilidade.<br />
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54<br />
torizados; depois de cruzarmos os portões da infosys, porém,<br />
parecia que havíamos entrado num outro mundo. Em<br />
meio à grama bem aparada, pontilhada de grandes pedras<br />
redondas, havia uma piscina cinematográfica ao lado de um<br />
putting green, além de vários restaurantes e um fantástico<br />
health club. (...) Aqui podemos nos encontrar com gente de<br />
Nova York, Londres, boston, São Francisco, tudo ao vivo. E,<br />
como a implementação pode ser em Cingapura, o cara de<br />
lá também pode estar ao vivo aqui. é a globalização. (Friedman,<br />
t. L. 2005:13-14)<br />
o poder que concentram as grandes corporações acaba interferindo<br />
decisivamente na esfera política. Elas se tornam o poder de fato<br />
no mundo e subordinam as nações, mormente aquelas do capitalismo<br />
periférico e semiperiférico.<br />
Com tal poderio e cada vez mais legislações nacionais e internacionais<br />
em seu favor, as multinacionais condicionam diariamente<br />
a vida de todos, criando guerras reais e de mercado<br />
entrelaçadas e em governos e meios de comunicação, movimentando<br />
um enorme poder de propaganda e apropriandose<br />
dos mercados desde a produção até a compra direta do<br />
consumidor. (Ribeiro, 2005:19) 15<br />
é neste contexto que, desde a década de 1970, os órgãos internacionais<br />
ligados ao mercado, mormente a organização mundial do<br />
Comércio, passam ter um poder supranacional quando o tema é ligado<br />
ao mundo dos negócios. E é a partir deste momento que os<br />
governos nacionais, pressionados pelos centros hegemônicos do<br />
mercado mundial, começam a defender a tese da “independência”<br />
dos bancos centrais da política. A tese da soberania nacional dá lugar<br />
à da independência do banco Central. o significado real desta tese<br />
é que, na verdade, quem faz a política é o grupo “blindado” que maneja<br />
os bancos centrais, e os cidadãos viram um conglomerado de<br />
consumidores.<br />
15 A tradução do espanhol é de minha responsabilidade.<br />
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No plano cultural também se instaura uma profunda dominação.<br />
As grandes redes de televisão e de informação, monopólio de poucos,<br />
imputam os valores de consumo das economias centrais e do<br />
seu estilo de vida. o programa big brother é um exemplo emblemático<br />
do lixo a que somos submetidos e à profunda alienação que nos<br />
é imposta. mas esta dominação se dá no campo da arte, da música,<br />
do cinema e, sem dúvida, no campo educativo.<br />
o resultado desta lógica dá-se no plano social. o que se observa<br />
no mundo, e de forma mais aguda em países como o brasil, é que há,<br />
por um lado, uma minoria, particularmente ligada ao capital financeiro,<br />
que fica cada vez mais rica, e, por outro, um empobrecimento<br />
das camadas médias indo em direção à massa que está abaixo do<br />
nível de pobreza 16 . As grandes fortunas aumentaram, nos últimos<br />
anos, na América Latina, em 12%.<br />
o fato de as novas tecnologias não estarem direcionadas para a dilatação<br />
da vida, como assinalamos acima, se transforma numa monstruosa<br />
Esfinge.<br />
Essa nova Esfinge não é já a natureza indômita, hostil, revestida<br />
de símbolos matriarcais, que assaltava o cidadão édipo<br />
fora dos muros da cidade, mas a própria técnica que se ergue<br />
ameaçadora no recinto do mundo que acreditávamos haver<br />
forjado para nosso bem-estar. (Paris, op. cit,162)<br />
Como a tecnologia permite aumentar produtividade sem aumentar<br />
empregados, a face mais destrutiva da Esfinge que atinge, ainda<br />
que de modo diverso em quantidade e nos efeitos, tanto os países<br />
do capitalismo central quanto os países de capitalismo dependente<br />
e periférico é o desemprego estrutural, a criação de um contingente<br />
cada vez maior de trabalhadores supérfluos. o desemprego é o problema<br />
social e político fundamental neste fim de século. o quadro<br />
16 os dados recentes divulgados sobre uma maior distribuição de renda no brasil resultam<br />
das políticas de transferência de renda, especialmente da classe média, para o contingente<br />
de milhões de pessoas abaixo do nível de pobreza. isso resulta, como veremos adiante,<br />
das políticas focais de inserção social – dentre elas a mais significativa, a bolsa-família, que<br />
atende 45 milhões de pessoas. uma em quatro famílias brasileiras recebe a bolsa-família. A<br />
positividade distributiva, todavia, esconde dificuldades estruturais históricas cuja superação<br />
demandaria políticas sociais emancipatórias e que efetivamente garantissem direitos.<br />
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que Robert Castel (1997 e 1998) nos apresenta é pouco auspicioso.<br />
Afirma-se, para este autor, cada vez mais a tendência de:<br />
56<br />
• Desestabilização dos trabalhadores estáveis. Essa precarização<br />
dá-se pela perda de direitos, intensidade de trabalho, ameaças<br />
crescentes de perda do emprego.<br />
• instalação da precariedade do emprego mediante a flexibilização<br />
do trabalho, trabalho temporário, terceirização, etc.<br />
• Aumento crescente dos sobrantes. trata-se de contingentes<br />
não integrados e não integráveis.<br />
o desmanche da sociedade do emprego ou salarial pode ser emblematicamente<br />
apreendido pelo diálogo dos magnatas da área de<br />
computadores John Gage, da Sun microsistems, David Packard, da<br />
Hewlett-Packard, e o mediador dos debates Rustum Roy, num seminário<br />
que reuniu os governos e empresários mais poderosos do<br />
mundo e alguns intelectuais, no luxuoso hotel Fairmont, em São<br />
Francisco, para marcar a instalação da Fundação Gorbachev.<br />
John Gage, referindo-se aos seus empregados:<br />
“Cada qual pode trabalhar conosco quanto tempo quiser, também<br />
não precisamos de visto para nosso pessoal do exterior (...) Empregamos<br />
nosso pessoal por computador, eles trabalham no computador<br />
e também são demitidos por computador.<br />
Dirigindo-se a David Packard, diz: ‘isso você não consegue tão rapidamente,<br />
David?’<br />
David Packard retruca: ‘De quantos empregados você realmente<br />
necessita, John?’<br />
‘Seis, talvez oito. Sem eles estaríamos falidos. Quanto ao local do planeta<br />
onde eles vivem, isso não importa em absoluto’, responde John.<br />
o mediador, prof. Rustum Roy, intervém e pergunta: ‘E quantas<br />
pessoas trabalham atualmente para a Sun Systems?’<br />
‘São dezesseis mil, mas exceto por uma pequena minoria todos<br />
demissíveis em caso de racionalização’, responde George.” (maritin,<br />
H.P. & Schumann, H. 1996:10-11)<br />
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Esta realidade se apresenta com estatísticas alarmantes: um bilhão e<br />
200 mil desempregados no mundo; taxas de desemprego que variam<br />
de 10% a 22% na Europa. Este cenário é emblematicamente analisado<br />
em sua dimensão econômica e sociocultural num livro da socióloga<br />
Viviane Forrester (1997) cujo título é: o horror econômico.<br />
Qual o futuro da sociedade salarial ou do trabalho assalariado?<br />
Esta também não é uma pergunta de resposta fácil. os indicadores<br />
do presente, todavia, são inequívocos. o desemprego é o problema<br />
social e político fundamental neste fim de século. Para Robert Castell,<br />
o cenário visível é bastante preocupante. As políticas neoliberais de<br />
um lado e, de outro, o desenvolvimento centrado sobre a hipertrofia<br />
do capital morto – isto é, ciência e tecnologia, informação como<br />
forças de produção –, acabam desenhando uma realidade onde encontramos,<br />
para Castel, quatro cenários.<br />
o pior prognóstico é o de uma radicalização das políticas neoliberais<br />
numa crescente mercantilização dos direitos sociais, ruptura crescente<br />
da proteção ao trabalho e a instalação de um mercado auto-regulado.<br />
Neste cenário, o desemprego estrutural e a precarização do trabalho<br />
tendem a se ampliar e, conseqüentemente, ao aumento dos sobrantes.<br />
o segundo cenário, que não elide o primeiro, adotado pela maioria<br />
dos países, é de atacar o problema do desemprego pelos efeitos.<br />
instauram-se políticas focalizadas de inserção social 17 . um lenitivo<br />
necessário, mas insuficiente. Essas têm sido as políticas dominantes<br />
na América Latina, especialmente a partir da década de 1990, período<br />
em que o desemprego estrutural se agravou.<br />
o terceiro cenário é a auto-organização dos excluídos mediante<br />
uma organização alternativa do trabalho – uma nova cultura do trabalho.<br />
Esta realidade vem sendo cunhada com nomes diferentes e com<br />
17 As categorias de integração social e de inserção social analisadas por Castel (1998)<br />
expressam dois tempos históricos em termos de políticas sociais e políticas públicas. A<br />
categoria de integração social está vinculada a um contexto histórico de uma sociedade<br />
contratual onde não só se postula o direito ao emprego, mas ligado a ele um conjunto de<br />
direitos sociais. A categoria de inserção social diz respeito a um contexto de crise deste contrato<br />
social. boaventura de Souza Santos (1999) caracteriza este tempo de pós-contratual e<br />
de fascismo societal para designar uma realidade de profunda insegurança e de políticas<br />
que não asseguram direitos e previsibilidade de longo prazo. Autores, com os quais nos<br />
filhamos, não ignoram estes contextos diversos, porém não assumem a perspectiva de que<br />
haja uma nova questão social. Ver a esse respeito Netto (2001) e iamamoto (2004).<br />
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sentidos diversos. Economia solidária é o mais geral. No brasil, a economia<br />
solidária assumiu espaço institucional com uma Secretaria Especial<br />
ligada à Presidência da República. mas também encontramos<br />
os conceitos de economia popular e economia de sobrevivência 18 .<br />
Há, aqui, questões de várias ordens. A primeira é de diferenciação<br />
de perspectivas que engendram estes conceitos. A segunda é de se<br />
averiguar qual o alcance global destas alternativas.<br />
Por fim, encontramos as teses daqueles que já decretam que chegamos<br />
à sociedade do conhecimento, sociedade do entretenimento<br />
(tittytaiment), do lúdico ou do fim do trabalho e a sociedade do tempo<br />
livre. De imediato esta tese se choca com a multidão de sobrantes,<br />
cujo tempo livre não significa nem entretenimento nem lúdico, mas<br />
tempo torturado de precariedade – existência provisória sem prazo.<br />
Se tomarmos a questão do desemprego dos jovens no brasil e a<br />
perspectiva de sua inserção no mercado de trabalho, os cenários acima<br />
traçados por Castel ganham um realismo preocupante. Existem no<br />
brasil aproximadamente 34 milhões de jovens entre 15 e 24 anos, como<br />
mostram os dados de 2005. Segundo dados do ibGE/Pnad de 2005, na<br />
faixa de 16 a 17 anos o desemprego era de 26,39%, e na faixa de 18 a 24<br />
anos, de 17,39%. o problema se agrava quando as análises se atêm aos<br />
grandes centros urbanos. De acordo com dados do Dieese de 2005, nas<br />
regiões metropolitanas os jovens representam 25% da população economicamente<br />
ativa (PEA), sendo que 45,5% estão desempregados 19 .<br />
tem sido uma constante nas análises de economistas, empresários<br />
em diferentes espaços governamentais, baseados na teoria do<br />
capital humano e suas atualizações, que o quadro de desemprego<br />
está relacionado à educação e à formação profissional. Seriam mesmo<br />
a educação e a formação profissional as galinhas dos ovos de<br />
ouro capazes de alterar a tendência acima assinalada? No próximo<br />
item, buscaremos problematizar esta crença, mas ao mesmo tempo<br />
mostrar que a educação básica e profissional, sem dúvida, tem uma<br />
função social e econômica inequívoca.<br />
18 Numa outra perspectiva e sob uma denominação genérica existe uma ampla literatura<br />
de trabalho à categoria de terceiro setor. Para uma análise crítica desta problemática,<br />
ver montaño (2002).<br />
19 Para uma visão detalhada da questão do emprego e desemprego, ver Pochmann<br />
e borges, 1999, Pochmann (2000, 2000,2002 e 2004), e matoso e Pochmann, 1997, e<br />
Linhart, 2007.<br />
58<br />
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3. miStiFiCAÇõES, LimitES E PoSSibiLiDADES DA EDuCAÇÃo<br />
PRoFiSSioNAL E PoLítiCAS DE EmPREGo E RENDA<br />
A relação que se estabelece entre educação e educação profissional<br />
e desenvolvimento, desde os anos 50, se fundamenta numa<br />
compreensão de desenvolvimento tomado como sinônimo de crescimento<br />
econômico e dentro de uma perspectiva linear onde não<br />
são consideradas as relações de poder e nem os limites do meio<br />
ambiente 20 . mesmo os debates mais atuais sobre desenvolvimento<br />
sustentável, em sua grande maioria, não escapam desta perspectiva.<br />
A idéia de um desenvolvimento linear e sem limites é cada vez mais<br />
contestada por evidências históricas contrárias 21 .<br />
A noção de capital humano, formulada a partir das pesquisas de theodor<br />
Schultz (1962 e 1973) sobre a desigualdade de desenvolvimento<br />
econômico entre países na década de 1950 e noções de sociedade do<br />
conhecimento e de pedagogia das competências para a empregabilidade,<br />
formuladas a partir do fim da década de 1980, instaura um senso comum<br />
sobre a visão linear acima assinalada de forma cada vez mais dissimulada<br />
22 . Este senso comum, amplamente difundido pelos organismos<br />
internacionais, mormente pelo banco mundial (bird), pela organização<br />
mundial do Comércio (omC), pelo banco interamericano de Desenvolvimento<br />
(biD), fortemente apoiados pela grande imprensa, acaba incorporando<br />
nos governos e nas populações pobres dos países periféricos e<br />
semiperiféricos a ilusão do desenvolvimento de que trata Arrighi (1996),<br />
salvo que não se alterem as relações de poder até hoje vigentes.<br />
Análises do processo histórico, mormente do século xx,<br />
como as que nos oferecem Hobsbawm (1990 e 1995), nos permitem<br />
afirmar que a noção do capital humano e de sociedade<br />
do conhecimento explica, de forma invertida, dois contextos<br />
históricos de redefinição das relações intercapitalistas e suas<br />
20 Sobre esta questão, ver Emir Altvater, 1999.<br />
21 As idéias básicas desenvolvidas na primeira parte deste item estão baseadas numa<br />
análise mais ampla de Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005).<br />
22 uma análise mais aprofundada da teoria do capital humano e da noção de sociedade<br />
do conhecimento, os seus sentidos e significados na educação e na sociedade<br />
encontra-se em Frigotto (1985 e 1993). Num mesmo sentido, para uma compreensão<br />
ampla da pedagogia das competências, ver Ramos (2002).<br />
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60<br />
conseqüências, especialmente sobre a classe trabalhadora.<br />
(Frigotto, 1998)<br />
Com efeito, a noção de capital humano busca responder à incômoda<br />
questão do porquê da permanência ou do agravamento das<br />
desigualdades econômico-sociais entre nações e entre grupos e indivíduos<br />
dentro de uma mesma nação, no contexto do Pós-Segunda<br />
Guerra mundial. A suposição, transformada em afirmação, que se<br />
encontrou a partir de correlações estatísticas, era que isso se devia,<br />
sobretudo, ao diferencial do investimento em capital humano. Este<br />
se compunha do investimento em escolaridade, treinamento e saúde<br />
do trabalhador. Devido à dificuldade metodológica, dentro da<br />
ótica quantitivista, de se quantificar os indicadores de saúde, este<br />
aspecto ficou secundado ou abandonado na análise.<br />
Do ponto de vista do processo formativo, a questão que se coloca<br />
é: quais são os conhecimentos, atitudes e valores a serem desenvolvidos<br />
na escola e na educação profissional que são funcionais ao<br />
mundo do trabalho e da produção. os economistas, os gestores,<br />
tecnocratas, planejadores vão dar mais ênfase aos aspectos de habilidades<br />
e dimensões cognitivas, e os sociólogos e psicólogos, às<br />
atitudes, valores, símbolos e dimensões ideológicas (Finkel, 1977).<br />
A apreensão invertida do processo histórico situa-se no fato de<br />
que, como nos mostra Hobsbawm (1990), já na década de 1950 os<br />
processos da globalização ou mundialização dos mercados e do capital<br />
anulavam o poder dos Estados nacionais, mormente dos países<br />
periféricos e semiperiféricos, sobre o planejamento da economia<br />
e de suas moedas. uma dupla tendência se desenhava: crescente<br />
polarização entre países ricos e pobres e, conseqüentemente, o aumento<br />
da desigualdade entre as nações e o aumento dos grupos de<br />
pobres e miseráveis, especialmente no Hemisfério Sul 23 . Na América<br />
Latina, os movimentos por mudanças estruturais que assegurassem<br />
inclusão a grandes maiorias pauperizadas foram contidos pelo ciclo<br />
de ditaduras. é dominantemente dentro dos marcos das ditaduras<br />
que se efetivam, na América Latina, as reformas educativas sob o ideário<br />
do capital humano.<br />
23 Sobre aumento da desigualdade em países da América Latina, ver Fitousi, J.P. &<br />
Rosavallon, P. (1997) e Pochaman e Amorim, 2003.<br />
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Reafirma-se, nos países periféricos e semiperiféricos, o ciclo vicioso<br />
do aumento da dívida externa e interna, mais dependência e diminuição<br />
da capacidade de investimentos, mormente na área social.<br />
Não obstante o discurso em contrário, saúde e educação e formação<br />
profissional, componentes da fórmula do capital humano, tinham<br />
cada vez menos recursos disponíveis.<br />
Deve-se ressaltar que, de todo modo, as políticas no campo da educação<br />
básica, da formação profissional e da saúde desenvolviam-se<br />
na perspectiva de uma sociedade desigual, mas integradora. tratase<br />
de produzir e reproduzir uma força de trabalho adequada às demandas<br />
dos processos de desenvolvimento e afirmar a educação e<br />
formação profissional como uma espécie de tábua de salvação ou o<br />
que cunhamos acima como galinha dos ovos de ouro para tirar os<br />
países periféricos e semiperiféricos de sua situação e alçá-los ao nível<br />
dos países centrais. Do mesmo modo, acalenta a promessa da mobilidade<br />
social mediante a busca de empregos de maiores salários.<br />
No plano das relações trabalhistas ainda vigora, mesmo que cada vez<br />
mais enfraquecido, o ideário de uma regulação social que assegure<br />
um contrato coletivo mediado por instituições públicas e sindicatos<br />
patronais e sindicatos dos trabalhadores.trata-se de políticas de integração<br />
social no horizonte do que assinalamos na nota 15.<br />
A partir de meados da década de 80, vários processos, de forma<br />
veloz, aceleram o processo de globalização dos mercados e de mundialização<br />
do capital. Destacam-se, como demonstra Chesnais (1996),<br />
a hipertrofia do capital financeiro, a consolidação de uma nova base<br />
científico-técnica, qualitativamente diversa, de base digital-molecular,<br />
e novas formas de organização e gestão empresarial que redefinem<br />
o processo produtivo. A economia pode e aumenta a produtividade,<br />
diminuindo o número de trabalhadores. A crise estrutural do<br />
desemprego, que se alastra por quase duas décadas, sem sinais de<br />
reversão, e o colapso do socialismo real, que permite o surgimento<br />
do discurso único, operam na ampliação do espectro do desenvolvimento<br />
desigual e combinado.A tendência é do aumento do cenário<br />
do desemprego estrutural e da pobreza. 24<br />
24 Sobre a relação entre processos de globalização dos mercados e pobreza, ver<br />
Chossudvsky (1999).<br />
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62<br />
o crescente desemprego destas décadas não foi simplesmente<br />
cíclico, mas estrutural. os empregos perdidos nos maus<br />
tempos não retornariam quando os tempos melhoravam: não<br />
voltariam jamais (...). A tragédia histórica das décadas de crise<br />
foi a de que a produção agora dispensava visivelmente seres<br />
humanos mais rapidamente do que a economia de mercado<br />
gerava novos empregos para eles. Além disso, esse processo<br />
foi acelerado pela competição global, pelo aperto financeiro<br />
dos governos, que – direta ou indiretamente – eram os maiores<br />
empregadores individuais, e não menos, após 80, pela então<br />
predominante teologia do livre mercado que pressionava<br />
em favor da transferência de emprego para formas empresariais<br />
de maximização de lucros, sobretudo para empresas privadas<br />
que, por definição, não pensavam em outros interesses<br />
além do seu próprio, pecuniário. isso significou, entre outras<br />
coisas, que governos e outras entidades públicas deixaram<br />
de ser o que se chamou de empregadores de último recurso.<br />
(Hobsbawm, 1995, p.403- 4)<br />
é neste contexto que se elabora a cartilha do Consenso de Washington,<br />
cuja receita, para os países de capitalismo dependente, é<br />
do ajuste fiscal, da desregulamentação dos mercados, flexibilização<br />
das leis trabalhistas e privatização do patrimônio público. trata-se de<br />
apagar a herança das políticas sociais distributivistas e dos mecanismos<br />
de regulação do mercado e do capital. As bases institucionais<br />
que regulamentam o direito internacional e na esfera nacional deslocam-se<br />
para as organizações genuínas do mercado. A organização<br />
mundial do Comércio passa a se constituir no fórum que decide, por<br />
cima das nações, as regras do livre mercado. o neoconservadorismo<br />
monetarista e de ajuste fiscal reassume o protagonismo.<br />
o Fundo monetário internacional e o banco mundial elaboram o<br />
receituário do ajuste da política econômica e social e em cada país<br />
periférico ou semiperiférico negociam com as elites que, de forma<br />
associada e subordinada, efetivam as reformas recomendadas. Não<br />
por acaso ganha força, especialmente nos países de capitalismo dependente,<br />
a tese da independência dos bancos Centrais da política.<br />
isto é a efetiva demonstração do papel protagonista da organização<br />
mundial do Comércio e, por outro lado, a evidência de que é nestes<br />
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espaços que se define a política. trata-se de um mercado sem controle<br />
da sociedade.<br />
Esta mudança se expressa no campo da educação básica e profissional<br />
pelo deslocamento do papel de protagonismo da unesco,<br />
mormente nas décadas de 1970 e 1980, para os organismos internacionais<br />
acima apontados.<br />
Nesta nova materialidade de relações sociais, sob o discurso único<br />
da soberania do mercado e do domínio dos grandes grupos econômicos<br />
da ciência, da tecnologia e das redes de informação, a teoria do<br />
capital humano, nos termos postos nas décadas de 1950 a 1980, não<br />
dá conta para o ideário educacional. Esta noção mantém os traços<br />
de uma sociedade integradora e contratual. os tempos agora, como<br />
analisa boaventura Santos (1999), são de uma sociedade pós-contratual.<br />
Não há sociedade, há indivíduos, como proclama margaret<br />
tatcher.<br />
A noção central para este novo contexto de regressão das relações<br />
sociais, no âmbito social mais amplo, é a de sociedade do conhecimento.<br />
Noção que deriva do determinismo tecnológico; ou seja,<br />
de tomar-se a ciência e a tecnologia como entidades autônomas, independentes<br />
das relações sociais. Ao mesmo tempo, insiste-se na<br />
ênfase de que nos encontramos numa sociedade da mudança veloz,<br />
de descontinuidade e, sobretudo, da incerteza, ocultando-se que se<br />
trata, na verdade, de uma sociedade insegura e que não permite programar<br />
o futuro. os jovens, sobretudo, em escala diversa de acordo<br />
com a sua situação social, são vítimas desta situação e se expressam<br />
na dificuldade de criar condições de se independentizar da família e<br />
mesmo de se programar para ter filhos.<br />
No plano da educação básica e profissional, neste contexto, afirmam-se<br />
as reformas educativas da década de 1990 centradas no ideário<br />
na pedagogia das competências, cujo foco é a preparação do<br />
indivíduo não mais para o emprego, mas para a empregabilidade 25 .<br />
Estas noções do campo pedagógico são a materialização, por um<br />
lado, do deslocamento dos direitos sociais para o plano individual<br />
e, como conseqüência, por outro lado, o deslocamento das políticas<br />
sociais de integração para as de inserção precária.<br />
25 Para se ter uma compreensão de como a noção de empregabilidade assume uma<br />
perspectiva apologética, ver moraes (1998).<br />
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Por isso que a questão aqui não é a discussão do sentido em si<br />
dicionarizado de competência 26 . obviamente que, em todos os<br />
campos, se quer ter profissionais competentes com o domínio<br />
científico e técnico de seu campo de atuação na sociedade. o aspecto<br />
central aqui é de que se trata das competências cujo sujeito<br />
definidor é o mercado. mercado que, como vimos, necessita cada<br />
vez menos de trabalho vivo, isto é, trabalhadores, e instaura a sua<br />
competitividade aumentando o trabalho morto mediante o uso da<br />
ciência e da técnica.<br />
Há, pois, uma ressignificação do termo competência. Não é por acaso<br />
que a noção de competência surge conectada aos desafios da instabilidade<br />
do mercado de trabalho. Ela se vincula, diretamente, à noção de<br />
empregabilidade. termo esse que sequer está dicionarizado em língua<br />
portuguesa e que, portanto, nasce fortemente ideologizado. Ele diz respeito<br />
a um mercado flexível, instável, dinâmico, que requer um trabalhador<br />
flexível, com contrato e direitos flexíveis, adaptado psico e socialmente<br />
à provisoriedade. o texto abaixo é, neste sentido, emblemático.<br />
64<br />
A empregabilidade é um conceito mais rico do que a simples<br />
busca ou mesmo a certeza de emprego. Ela é o conjunto de<br />
competências que você comprovadamente possui ou pode<br />
desenvolver – dentro ou fora da empresa. é a condição de<br />
se sentir vivo, capaz, produtivo. Ela diz respeito a você como<br />
indivíduo e não mais à situação, boa ou ruim, da empresa<br />
– ou do país. é o oposto ao antigo sonho da relação vitalícia<br />
com a empresa. Hoje a única relação vitalícia deve ser com o<br />
conteúdo do que você sabe e pode fazer. o melhor que uma<br />
empresa pode propor é o seguinte: vamos fazer este trabalho<br />
juntos e que ele seja bom para os dois enquanto dure; o rompimento<br />
pode se dar por motivos alheios à nossa vontade.<br />
(...) (empregabilidade) é como a segurança agora se chama.<br />
(moraes, 1998)<br />
26 Para o Novo Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa, competente se refere à qualidade<br />
de quem é capaz de apreciar e resolver certo assunto, fazer determinada coisa,<br />
habilidade, aptidão, idoneidade (de Holanda Ferreira, 1975, p. 353).<br />
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A promessa da empregabilidade, todavia, quando confrontada com<br />
a realidade do desemprego acima assinalada, não apenas evidencia<br />
seu caráter mistificador mas, sobretudo, revela também um elevado<br />
grau de cinismo.<br />
(...) uma bela palavra soa nova e parece prometida a um belo<br />
futuro: “empregabilidade”, que se revela como um parente<br />
muito próximo da flexibilidade, e até como uma de suas<br />
formas. trata-se, para o assalariado, de estar disponível para<br />
todas as mudanças, todos os caprichos do destino, no caso<br />
dos empregadores. Ele deverá estar pronto para trocar constantemente<br />
de trabalho (como se troca de camisa, diria a ama<br />
beppa). (Forrester, 1997, p. 118)<br />
Percebe-se, então, que a noção de capital humano não desaparece<br />
do ideário econômico, político e pedagógico, mas é redefinida<br />
e ressignificada pelas noções de sociedade do conhecimento e da<br />
pedagogia das competências para a empregabilidade. Como nos indica<br />
beluzzo, a noção de empregabilidade já nos foi apresentada<br />
nos anos 60 e 70 sob a forma de teoria do Capital Humano. Recauchutada,<br />
ela volta para explicar, ou tentar explicar, o agravamento<br />
das desigualdades no capitalismo contemporâneo. Assim, fica mais<br />
fácil atribuir ao indivíduo a responsabilidade por suas desgraças e<br />
por sua derrota. “Sou pobre porque sou incompetente e sem qualificação”<br />
(beluzzo, 2001, p.1.).<br />
De fato, a lógica das competências incorpora traços relevantes da<br />
teoria do Capital Humano, redimensionados com base na “nova”<br />
sociabilidade capitalista. Apóia-se no capitalismo concorrencial de<br />
mercado; o aumento da produtividade marginal é considerado em<br />
função do adequado desenvolvimento e da utilização das competências<br />
dos trabalhadores; o investimento individual no desenvolvimento<br />
de competências é tanto resultado quanto pressuposto da<br />
adaptação à instabilidade da vida. Aos moldes neoliberais, acredita-se<br />
que isso redundaria em bem-estar de todos os indivíduos, à<br />
medida que cada um teria autonomia e liberdade para realizar suas<br />
escolhas de acordo com suas competências 27 .<br />
27 Ver a esse respeito Ramos, 2002.<br />
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Por certo, se estaria incorrendo no mesmo equívoco que analisamos<br />
acima em relação à tecnologia, se ignorássemos o papel da educação<br />
básica e da formação técnica e profissional na sociedade em<br />
todos os seus âmbitos. o horizonte aqui é de compreendê-las como<br />
constituídas e constituintes da sociedade. ou seja, sua natureza e<br />
função se definem socialmente no âmbito das relações de força e de<br />
poder das diferentes classes, frações de classes ou grupos sociais.<br />
Cabe perguntar, então: quais os limites e possibilidades da formação<br />
profissional em nossa sociedade assumida nesta análise como<br />
sendo de capitalismo dependente de desenvolvimento desigual e<br />
combinado?<br />
66<br />
4. A títuLo DE CoNCLuSÃo: LimitES E PoSSibiLiDADES<br />
E DESAFioS DA FoRmAÇÃo PRoFiSSioNAL<br />
os aspectos acima analisados nos conduzem a sublinhar a necessidade<br />
de não ser simplista e condescendente ao abordar a relação<br />
desenvolvimento, emprego e renda e educação, mormente a formação<br />
profissional. Com base em inúmeras análises, pode-se concluir e<br />
sustentar que tanto a situação da desigualdade entre regiões (Norte/<br />
Sul) ou entre países centrais e periféricos e semiperiféricos ou entre<br />
grupos sociais no interior de cada país não se explica, primeira e fundamentalmente,<br />
pela educação ou formação profissional, mas pelas<br />
relações sociais e de poder historicamente construídas.<br />
Ao contrário do que pretendem os mandamentos e as lengalengas<br />
do pensamento único, a maioria não é pobre porque<br />
não conseguiu boa educação, mas, na realidade, não conseguiu<br />
boa educação porque é pobre. (beluzzo, p. 2)<br />
é, pois, fundamental que se tenha claro que o caminho percorrido<br />
na relação entre educação e formação profissional, desenvolvimento<br />
e mobilidade social, nos marcos da teoria do capital humano, da<br />
sociedade do conhecimento e da pedagogia das competências e da<br />
empregabilidade não nos ajuda a entender o processo histórico da<br />
produção da desigualdade entre nações e no interior delas. igualmente,<br />
não nos permite entender como os países de capitalismo de-<br />
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pendente associam desenvolvimento desigual e combinado que se<br />
expressa pelo paradoxo de concentração de riqueza, por um lado, e<br />
aumento da pobreza, por outro. Paradoxo aparente, pois como nos<br />
mostra Francisco de oliveira (2003) trata-se de uma construção social<br />
de nossa tradição histórica cuja especificidade é de uma sociedade<br />
que produz a pobreza e se alimenta dela.<br />
As noções acima nos afastam deste entendimento e do papel da<br />
educação básica e profissional enquanto práticas sociais mediadoras<br />
das relações sociais, econômicas, políticas e culturais. o estabelecimento<br />
de uma relação entre educação profissional e desenvolvimento,<br />
sob outras bases, demanda dos países de capitalismo dependente<br />
um conjunto de decisões e de políticas que se desenvolvam de forma<br />
concomitante e articulada, buscando atender, ao mesmo tempo, aos<br />
critérios de justiça social e de resposta aos imperativos das necessidades<br />
da produção. Não se trata de ignorar, como pontuamos acima,<br />
o papel da educação básica e profissional neste duplo aspecto.<br />
uma agenda que busque romper com nossa dependência histórica<br />
inclui como primeira condição, que orienta e determina as demais,<br />
a construção de um consenso mínimo na sociedade brasileira,<br />
mormente dos que têm a convicção de que somos uma nação e não<br />
um conglomerado de simples consumidores. Este consenso, na sua<br />
base, demanda a determinação daquilo que Caio Prado Junior (1976)<br />
caracterizou como as três mazelas básicas em nossa sociedade: o mimetismo,<br />
que consiste numa cultura da cópia, e a crença de que a<br />
teoria que vem de fora é melhor; a dívida externa, calcada na mentalidade<br />
do atalho e de viver com o dinheiro dos outros; e a assimetria<br />
das mais acentuadas entre os ganhos do capital e do trabalho.<br />
trata-se de uma mudança que implica uma ruptura com todas as formas<br />
de colonização e subalternidade na relação com os organismos<br />
internacionais e com os países centrais. isto não significa isolamento<br />
internacional mas, ao contrário, uma relação autônoma e soberana.<br />
Sem uma mudança profunda com o pagamento da dívida externa e,<br />
sobretudo, com a lógica dos juros da dívida externa e interna, e superávit<br />
primário para garantir capital especulativo, o brasil não sairá do<br />
ciclo vicioso da dependência, e a busca de maior igualdade social e de<br />
desenvolvimento sustentado continuará sendo uma ilusão. Sob este<br />
aspecto, a questão central não é de apenas ver as imposições exter-<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 44-75 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007<br />
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nas, que são profundamente predatórias e injustas, mas, sobretudo,<br />
de combater a postura de subalternidade, consentida e associada, das<br />
elites econômicas e políticas da sociedade brasileira.<br />
Que mudanças estruturais são estas? No caso brasileiro, destaca-se<br />
como necessidade inadiável a reforma agrária, com o intuito de acabar<br />
com a altíssima concentração da propriedade da terra e permitir acesso<br />
ao trabalho a milhares de trabalhadores. todavia, isso não se reduz<br />
a simplesmente ter acesso à terra. implica, também, uma política que<br />
assegure infra-estrutura, assistência e apoio técnico e de crédito compatível<br />
com a realidade dos pequenos agricultores. As sociedades do<br />
capitalismo central, em especial da Europa, fizeram a reforma agrária<br />
há mais de um século. Nós somos considerados um continente, pelo<br />
tamanho do país, e temos aproximadamente 20 milhões de acampados<br />
que constituem o movimento dos Sem-terra.<br />
outra mudança estrutural é a reforma tributária, para inverter a lógica<br />
regressiva dos impostos e com o objetivo de corrigir, assim, a enorme<br />
e injustificável desigualdade de renda. Junto com estas reformas<br />
relacionadas à vida econômica estão implicadas, também, a reforma<br />
política e do Judiciário. Seria por acaso se mantém a estrutura agrária<br />
que temos e que toda ocupação de terras, grande parte delas comprovadamente<br />
públicas, é considerada invasão e, portanto, criminalizada?<br />
o que explicaria que as cadeias brasileiras sejam povoadas<br />
de jovens pobres e, em sua maioria, descendentes de negros?<br />
Estas condições, aliadas ao fortalecimento de uma democracia ativa e<br />
a uma nova concepção de desenvolvimento socialmente justo, econômica<br />
e ambientalmente viável, solidário e participativo, podem fornecer<br />
as condições políticas e culturais para romper com o ciclo vicioso<br />
de pobreza. isto permitirá alterar o baixo investimento em educação,<br />
saúde, ciência e tecnologia, condições indispensáveis para superar a<br />
condenação ao exercício das atividades ligadas ao trabalho simples, de<br />
baixo valor agregado, na divisão internacional do trabalho.<br />
No plano conjuntural de curto prazo, há problemas cruciais a serem<br />
resolvidos cuja dramaticidade implica políticas distributivas imediatas.<br />
Estas situam-se dentro do horizonte da inserção social precária. Podemos<br />
mencionar, entre outras, as políticas de renda mínima e a bolsa-família,<br />
primeiro emprego, Proeja, etc. Estas políticas necessitam de um<br />
amplo controle social público para não se transformarem em clien-<br />
68<br />
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telismo e paternalismo (traços fortes de nossa cultura política), e não<br />
podem ser permanentes. Por isso, o esforço é no sentido de instaurar<br />
políticas emancipatórias que garantam emprego ou trabalho e renda.<br />
o que buscamos afirmar é que a formação profissional que se demanda<br />
para este horizonte em nada se reduz a adestramento e a cursinhos<br />
tópicos cujo escopo se reduza à formação do cidadão produtivo<br />
ou cidadão mínimo que internaliza a culpa por sua pouca escolaridade<br />
e sua situação de desempregado ou subempregado. Ao contrário,<br />
demanda um duplo e concomitante vínculo: de integração orgânica<br />
com a educação básica e com políticas de geração de emprego e<br />
renda. A expectativa social mais ampla é de que se possa avançar na<br />
afirmação da educação básica unitária e, portanto, não dualista, que<br />
articule cultura, conhecimento, tecnologia e trabalho como direito<br />
de todos e condição da cidadania e democracia efetivas.<br />
uma política que queira assegurar uma elevação de escolaridade<br />
com qualidade aos filhos da classe trabalhadora tem que encarar de<br />
frente o ensino noturno. Duas estratégias complementares se colocam<br />
como desafio. um esforço prioritário para que cresçam as matrículas<br />
no diurno, incluindo-se a política de bolsas de estudo ou de<br />
renda mínima daqueles jovens que necessitam comprovadamente<br />
do trabalho para se manterem. trata-se, ao mesmo tempo, de um<br />
direito destes jovens e um inequívoco investimento do mesmo se<br />
quisermos atingir um efetivo avanço das forças produtivas e a diminuição<br />
gradativa da dependência e vulnerabilidade científica tecnológica.<br />
A universalização do nível médio, neste sentido, é política de<br />
Estado estratégica. Considerando que o ensino noturno, no curto e<br />
médio prazo, permanecerá elevado, cabe uma política específica em<br />
termos de tempos, espaço, organização do processo pedagógico,<br />
condições de trabalho do professor e dos materiais pedagógicos.<br />
tendo pressuposto a educação básica, a expectativa social é de que<br />
se possa criar um Sistema ou Subsistema Nacional de Formação/Qualificação<br />
Profissional, articulando as múltiplas redes existentes 28 e vincu-<br />
28 Em recente estudo, manfredi (2003:143-44) cita sete redes que se ocupam da formação<br />
técnica e profissional: rede de ensino médio técnico (federal, estadual, municipal<br />
e privado); Sistema S; universidades públicas e privadas; escolas e centros<br />
mantidos por sindicatos de trabalhadores; centros e escolas mantidos por diferentes<br />
oNGs de cunho comunitário e religioso; por escolas e cursos mantidos por grupos<br />
empresariais; e, finalmente, cursos livres profissionalizantes.<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 44-75 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007<br />
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lado às diferentes demandas do processo produtivo, à política de criação<br />
de emprego e renda e, no contexto que ainda nos encontramos,<br />
à política pública de educação de jovens e adultos. Para os mais de 60<br />
milhões de jovens e adultos que atingem no máximo dois anos de escolaridade,<br />
é crucial que se ampliem as possibilidades da continuidade<br />
da escolaridade básica atendendo à especificidade de sua realidade.<br />
uma política pública redistributiva e emancipatória de caráter<br />
mais universal, que teria extraordinário efeito social, econômico e<br />
ético, seria a retirada do mercado de trabalho, formal ou não-formal,<br />
de todas as crianças e jovens até a idade legal de conclusão do nível<br />
médio. Para que isso seja viável, há a necessidade de estipular-se<br />
uma renda mínima para estas crianças e jovens, sem o que elas não<br />
podem abandonar sua luta pela sobrevivência. Para jovens de 18 a<br />
24 anos, é fundamental que se garanta a possibilidade de continuidade<br />
de escolaridade até a conclusão do ensino médio. Para os que<br />
estão empregados, a exemplo de outros países, é fundamental que<br />
se criem condições de tempo, legalmente garantido, para o estudo<br />
e um apoio, em termos de bolsa de estudo, sem o que também não<br />
há condições de retorno à escola. Para os desempregados, seria necessária<br />
uma renda mínima e, concomitantemente, o implemento de<br />
uma política de primeiro emprego. Pelo tamanho do Pib do brasil,<br />
está claramente provado que há viabilidade econômica para estas<br />
políticas e que, portanto, a decisão de implementá-las é política.<br />
Por fim, as expectativas centram-se sobre a concepção de conhecimento,<br />
do projeto e relações pedagógicas tanto na educação básica<br />
dos trabalhadores quanto nos cursos de formação profissional. Aqui,<br />
o ponto crucial é ter-se clara a centralidade dos sujeitos na política<br />
pública de educação básica e de formação profissional. trata-se de superar<br />
uma visão abstrata, iluminista e racionalista, para uma compreensão<br />
histórica dos processos formativos e de construção de conhecimento,<br />
onde se articulam vida, cultura, ciência e conhecimento.<br />
A natureza da organização do processo pedagógico quanto aos<br />
procedimentos e estratégias (métodos, técnicas) de ensino e os materiais<br />
pedagógicos depende da concepção de conhecimento que<br />
se desenvolve nos processos formativos. Neste sentido, é crucial<br />
tanto na formação dos professores quanto dos sujeitos educandos<br />
afirmar o conhecimento científico, nas diferentes áreas, como um<br />
70<br />
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processo de construção histórica que se diferencia do conhecimento<br />
espontâneo e do senso comum e se explicita mediante categorias<br />
e conceitos. Enquanto conhecimento histórico, sempre será relativo<br />
e aberto e, portanto, passível de ser reconstruído e ampliado. Para<br />
ser histórico, o conhecimento se constrói ou é apropriado dentro<br />
da relação entre a particularidade (espaço e tempo das mediações)<br />
e um grau crescente de universalidade (historicamente construída).<br />
Esta relação historicamente construída nos permite superar tanto a<br />
homogeneização abstrata que violenta as particularidades e, portanto,<br />
a complexidade e diversidade da realidade dos sujeitos, quanto a<br />
atomização do real em infinitas e desconexas particularidades.<br />
Aqui é fundamental ter-se um professor/educador capaz de “ler<br />
o mundo”, como tanto insistia Paulo Freire. o ponto crucial, neste<br />
particular, é ter-se como ponto de partida o conhecimento, as experiências<br />
e vivências dos sujeitos alunos. Este reconhecimento é que<br />
permite construir, no sentido mais profundo, um método ativo de<br />
conhecimento.<br />
trata-se, em suma, de construir uma expectativa de educação básica<br />
e de formação profissional que avance no sentido da construção<br />
de um projeto societário efetivamente democrático, onde os trabalhadores<br />
de forma autônoma produzam seus meios de vida no mais<br />
elevado nível possível e dilatem o tempo de trabalho livre. trata-se<br />
de não perder de vista o pensamento e a luta utópica.<br />
utopia que não significa não estar em nenhum lugar, mas estar em<br />
outro lugar. Lugar este de igualdade de condições de produção da<br />
vida em todas as suas dimensões, a começar pelas necessidades imperativas<br />
de reprodução da vida material. Sem a satisfação destas, as<br />
demais necessidades, sociais, culturais, estéticas, afetivas e estéticas,<br />
ficam comprometidas. No brasil temos uma profunda dívida social<br />
que necessita ser saldada no menor tempo possível. E esta tarefa,<br />
neste momento histórico, nos cabe.<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 44-75 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007<br />
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CoNFuSõES Em toRNo<br />
DA NoÇÃo DE PúbLiCo<br />
o CASo DA EDuCAÇÃo SuPERioR 1<br />
(PRoViDA PoR QuEm, PARA QuEm?)<br />
Ricardo barros<br />
mirela de Carvalho<br />
Samuel Franco<br />
Rosane mendonça<br />
Paulo tafner<br />
1 Embora o foco deste trabalho seja a educação superior, é importante observar que<br />
a discussão aqui apresentada se aplica, em alguma medida, também aos demais níveis<br />
de ensino.<br />
76<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 76-99 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007
A educação superior não pode ser considerada um bem público, embora<br />
muito se argumente nessa direção, uma vez que não satisfaz duas condições<br />
básicas: (a) o custo adicional por um indivíduo a mais se beneficiar deste<br />
bem é zero, e (b) é muito difícil, senão impossível, excluir uma pessoa que<br />
esteja interessada em se beneficiar deste bem. mas, se a educação superior<br />
não é um bem público, por que então subsidiá-la? Existem várias razões para<br />
justificar esse subsídio, sendo a mais comum as externalidades geradas por<br />
ela. Esse estudo tem como objetivo organizar a discussão em torno da provisão<br />
de educação superior, buscando contribuir para esclarecer algumas<br />
confusões freqüentes como, por exemplo, a necessidade de o setor público<br />
prover esse serviço.<br />
Superior education can not be considered a public good, although one can<br />
disagree with that once can not satisfied two basic conditions: (a) the additional<br />
cost of one more person to benefit from this good is zero, and (b) it<br />
is very difficult, if not impossible, to exclude a person who is interested in<br />
benefit himself from this good. but if superior education is not a public good<br />
why subsidize it? there are many reasons to justify this subsidy, with the externalities<br />
generated being the most common. However, even accepting the<br />
arguments for the State to subsidize it, that doesn’t mean that the Government<br />
has to produce it. it can use the private sector to provide the service.<br />
this study has the goal to organize the discussion around the provision of<br />
superior education, trying to contribute to clarify some frequency problems,<br />
such as the need of the public sector to provide this service.<br />
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77
78<br />
1. iNtRoDuÇÃo<br />
A educação superior não pode ser considerada um bem público,<br />
embora muito se argumente nessa direção, uma vez que não satisfaz<br />
duas condições básicas: (a) o custo adicional por um indivíduo a<br />
mais se beneficiar deste bem é zero, e (b) é muito difícil, senão impossível,<br />
excluir uma pessoa que esteja interessada em se beneficiar<br />
deste bem 2 . mas, se a educação superior não é um bem público, por<br />
que então subsidiá-la? Existem várias razões para justificar esse subsídio,<br />
sendo a mais comum as externalidades geradas por ela 3 . Entretanto,<br />
mesmo aceitando os argumentos para que o Estado a subsidie,<br />
isso não significa que ele tenha que produzi-la, podendo envolver o<br />
setor privado na provisão deste serviço.<br />
Apesar dos argumentos que defendem a produção da educação superior<br />
pelo Estado serem muito frágeis, esta é a situação que de fato<br />
prevalece hoje no país. o problema decorrente é que o Estado subsidia<br />
quase que exclusivamente as instituições públicas, gerando grande ineficiência<br />
no sistema. Além disso, porque o subsídio vai prioritariamente<br />
para as instituições públicas, acaba ocorrendo uma grande confusão<br />
entre os critérios para o acesso à universidade e os critérios para a gratuidade.<br />
Esse estudo tem como objetivo organizar a discussão em torno da<br />
provisão de educação superior, buscando contribuir para esclarecer<br />
algumas confusões freqüentes como, por exemplo, a necessidade<br />
de o setor público prover esse serviço. Para tanto, o trabalho encontra-se<br />
organizado em cinco seções, além desta introdução. A segunda<br />
seção faz uma breve descrição do desempenho educacional<br />
ao longo das últimas duas décadas mostrando que não houve aceleração<br />
na expansão do ensino superior como ocorreu no ensino<br />
fundamental e no médio. A Seção 3 apresenta algumas evidências<br />
dos benefícios privados da educação superior e discute qual a racionalidade<br />
para o estado subsidiar um bem com tamanho retorno<br />
2 Dias (2003) discute a idéia preconizada pela Conferência mundial sobre o Ensino<br />
Superior, ocorrida em Paris, em 1998, de que é possível manter a idéia de que o ensino<br />
superior é um bem público.<br />
3 Para uma discussão sobre a racionalidade para a intervenção governamental na provisão<br />
de educação, ver belfield (2000).<br />
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privado. A Seção 4 entra, então, no cerne do trabalho, discutindo a<br />
questão da provisão destes serviços – qual a racionalidade para a<br />
provisão pública ou privada? A Seção 5 trata da separação entre o<br />
acesso à educação superior e o acesso à gratuidade na universidade,<br />
e, por fim, a Seção 6 tece as considerações finais, discutindo quem se<br />
beneficia e quem deveria se beneficiar da educação superior.<br />
2. o DESEmPENHo EDuCACioNAL Do bRASiL<br />
NAS úLtimAS DuAS DéCADAS<br />
Ao longo da última década 4 , os indicadores educacionais melhoraram<br />
de forma significativa. Conforme mostra a tabela 1, a melhoria<br />
ocorrida na maioria dos indicadores foi ao menos duas vezes mais<br />
intensa neste período do que na década anterior 5 .<br />
tabela 1: indicadores de freqüência e conclusão por série e faixa etária<br />
indicadores 1984 1995 2006 “Variação “Variação<br />
Velocidade relativa<br />
da década recente<br />
Porcentagem de crianças de<br />
84-95” 95-06” sobre a anterior<br />
12 anos que freqüentam<br />
Porcentagem de crianças de<br />
0,82 0,91 0,98 0,83 1,62 1,94<br />
12 anos que completaram a 4ª série<br />
Porcentagem de crianças de<br />
0,34 0,50 0,78 0,67 1,26 1,88<br />
15 anos que freqüentam<br />
Porcentagem de crianças de<br />
0,59 0,75 0,90 0,74 1,11 1,50<br />
15 anos que completaram a 4ª série<br />
Porcentagem de crianças de<br />
0,64 0,74 0,92 0,48 1,44 2,98<br />
15 anos que completaram a 8ª série<br />
Porcentagem de adolescentes de<br />
0,09 0,17 0,39 0,71 1,14 1,60<br />
18 anos que completaram a 8ª série<br />
Porcentagem de adolescentes de<br />
0,31 0,38 0,72 0,32 1,43 4,51<br />
18 anos que completaram o médio<br />
Porcentagem de jovens de<br />
0,07 0,09 0,28 0,33 1,34 4,05<br />
21 anos que completaram a 8ª série<br />
Porcentagem de jovens de<br />
0,38 0,44 0,75 0,26 1,35 5,24<br />
21 anos que completaram o médio 0,19 0,22 0,51 0,21 1,31 6,37<br />
Fonte: Estimativas produzidas com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 1984, 1995 e 2006.<br />
Nota: 1. Variação relativa = ln(i/(1-i)), onde i é o indicador<br />
4 Estamos nos referindo à “última década” como o período 1995-2006; 2006 é o último<br />
ano disponível da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad).<br />
5 Estamos considerando o período de 1984 a 1995.<br />
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os avanços obtidos, entretanto, conforme já se sabe, foram muito<br />
mais quantitativos do que qualitativos. As taxas de repetência e retenção<br />
6 em todas as séries do ensino fundamental declinaram substancialmente,<br />
embora o rendimento escolar medido pelo Saeb 7 tenha<br />
permanecido inalterado. A expansão ocorrida no ensino médio<br />
foi ainda mais acelerada do que no fundamental, garantindo uma<br />
considerável redução na evasão ao final deste último nível. Conforme<br />
mostra o Gráfico 1, a taxa de retenção ao fim do ensino fundamental<br />
caiu cerca de 11 pontos percentuais nos últimos dez anos.<br />
Não somente a cobertura aumentou muito, mas também se reduziu<br />
a defasagem série-idade.<br />
A expansão da educação superior, no entanto, não tem sido capaz<br />
de acompanhar o progresso na educação média ao longo das<br />
últimas décadas 8 . Apesar de a matrícula nas universidades ter aumentado<br />
significativamente, a proporção de jovens que terminam<br />
o ensino médio e não têm acesso à universidade não diminuiu<br />
(veja Gráfico 1). Em 2006, cerca de 75% dos jovens entre 18 e 24<br />
anos que terminaram o ensino médio não ingressaram na universidade.<br />
Em 1982, essa porcentagem era quase 6 pontos menor, indicando<br />
que o gargalo educacional ao fim desse ciclo vem aumentando<br />
no país.<br />
6 Estimamos a taxa de retenção como a proporção dos indivíduos com pelo menos x<br />
anos de estudo sobre aqueles que têm no máximo x anos de estudo.<br />
7 Sistema Nacional de Avaliação da Educação básica do mEC.<br />
8 Para uma interessante análise recente da expansão do ensino superior, seus determinantes<br />
e implicações, ver Schwartzman (2000).<br />
80<br />
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Gráfico 1: Evolução da taxa de retenção ao fim do fundamental<br />
e do médio para jovens de 18 a 24 anos<br />
Fonte: Estimativas produzidas com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 1982 a 2006.<br />
Recentemente, entretanto, observa-se um crescimento acentuado<br />
da matrícula inicial na educação superior. o número de vagas para a<br />
universidade tem crescido mais de 15% ao ano, e a matrícula inicial,<br />
que era ligeiramente inferior a 1/3 da matrícula total em 1999, passou<br />
para quase cerca da metade em 2005 (ver Gráfico 2).<br />
A matrícula inicial era de 1,7 milhão em 2005 e, portanto, muito<br />
similar ao número de jovens que terminam o ensino médio a cada<br />
ano, 1,8 milhão 9 . Apesar disso, apenas cerca de 37% dos jovens que<br />
completaram o ensino médio freqüentam ou já freqüentaram a universidade<br />
10 . Como explicar este aparente paradoxo?<br />
A explicação encontra-se no desbalanceamento entre fluxo e estoque.<br />
Se, por um lado, é verdade que o ensino médio gradua a cada<br />
ano apenas 1,8 milhão de jovens que, dada a oferta atual, poderiam<br />
quase todos encontrar uma vaga na universidade, por outro lado,<br />
tem-se que considerar que a demanda por educação superior não se<br />
limita aos que se graduaram no ensino médio no ano anterior. uma<br />
9 Valor médio obtido com base nas informações das Sinopses Estatísticas da Educação<br />
básica do mEC de 1995 a 2005.<br />
10 Estimativa obtida com base nas informações da Pesquisa Nacional por Amostra de<br />
Domicílios de 2006.<br />
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81
vez que historicamente a oferta de vagas na universidade foi sempre<br />
muito limitada, o país conta hoje com mais de 27 milhões de pessoas<br />
(47% com até 30 anos de idade) com educação média completa que<br />
não freqüentam nem nunca freqüentaram a educação superior 11 .<br />
82<br />
Gráfico 2: Evolução temporal do número de concluintes do ensino médio,<br />
número de vagas e de matrículas para o primeiro ano do ensino superior<br />
Fonte: Sinopses Estatísticas da Educação Superior de 1995 a 2005 e Sinopses Estatísticas da Educação básica<br />
de 1995 a 2005.<br />
Assim, embora o número de vagas hoje oferecidas seja suficiente<br />
para atender ao fluxo corrente de graduados do ensino médio 12 ,<br />
a insuficiência de oferta ao longo das últimas décadas levou a um<br />
substancial estoque de demanda não atendida. Em conjunto, a demanda<br />
total é cerca de 14 vezes o número de graduados a cada ano<br />
no ensino médio. Aí está, portanto, o porquê de apenas 37% deles<br />
terem acesso efetivo à educação superior, mesmo quando a disponibilidade<br />
de vagas já é muito próxima.<br />
11 Estimativa obtida com base nas informações da Pesquisa Nacional por Amostra de<br />
Domicílios de 2006.<br />
12 importante lembrar que, apesar de a oferta hoje ser suficiente para atender todos<br />
que terminam o ensino médio, apenas uma parcela consegue concluir esse nível.<br />
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Além disso, vale ressaltar que uma coorte de jovens no brasil conta<br />
com cerca de 3,5 milhões de jovens. Se o objetivo é garantir o acesso<br />
à universidade a ¾ destes jovens 13 , então, uma vez acomodado o estoque<br />
de demanda não atendida nas últimas décadas, as vagas oferecidas<br />
na universidade deveriam estabilizar em torno de 2,7 milhões e,<br />
portanto, cerca de 60% maior que o atualmente disponível 14 .<br />
Em suma, a despeito da acelerada expansão na educação superior<br />
ao longo dos últimos anos, seria necessário que este passo acelerado<br />
continuasse ao longo de toda a próxima década para que, ao menos<br />
do ponto de vista quantitativo, a oferta de educação superior fosse<br />
equacionada. Na medida em que (a) o elevado estoque de demanda<br />
não atendida no passado concorre com o fluxo atual de egressos do<br />
ensino médio e (b) apenas uma parcela dos que freqüentam o ensino<br />
médio o conclui, para que todos fossem atendidos seria necessário<br />
que a oferta de vagas superasse por vários anos o seu valor histórico.<br />
Dado que a expansão da educação superior envolve muitas vezes<br />
investimentos irreversíveis, seja em infra-estrutura, seja na qualificação<br />
dos recursos humanos, não é evidente como o sistema atenderia<br />
esse elevado componente transitório da demanda atual. Seria viável<br />
expandir a oferta apenas temporariamente? o setor privado teria os<br />
incentivos e a capacidade para atender a esta demanda transitória?<br />
3. bENEFíCio PRiVADo, bEm PúbLiCo E ExtERNALiDADES<br />
Parece existirem poucas dúvidas de que a educação e, em particular,<br />
a educação superior tem impacto sobre produtividade, empregabilidade,<br />
remuneração, condições de saúde, entre outros benefícios.<br />
De maior importância para o argumento deste estudo, não parece<br />
haver dúvidas de que os benefícios privadamente apropriados da<br />
educação superior são substanciais.<br />
13 Essa é apenas uma meta tomando como base a proporção de jovens que pertencem<br />
à elite na região do Sul do brasil que tem acesso à universidade.<br />
14 Pacheco e Ristoff (2004) discutem em que medida o brasil conseguiria atingir a<br />
meta de matricular 30% da população entre 18 e 24 anos no ensino superior e de<br />
expandir a matrícula no setor público para 40% até 2010. os autores concluem que<br />
as matrículas nas instituições federais e estaduais devem se expandir, em especial no<br />
turno da noite, uma vez que “o setor privado tem pouca chance de êxito devido às<br />
dificuldades financeiras da população potencial de estudantes”.<br />
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De fato, como mostra a tabela 2, a remuneração dos trabalhadores<br />
com educação superior é cerca de 250% maior do que a remuneração<br />
média da força de trabalho brasileira, e cerca de 64% dos indivíduos<br />
com educação superior vivem entre os 10% mais ricos do país.<br />
Enquanto 71% dos indivíduos com educação superior vivem em domicílios<br />
que possuem computador, apenas 23% da população brasileira<br />
se encontram nesta situação. Quase 78% dos domicílios onde<br />
vivem aqueles com educação superior têm dois ou mais banheiros,<br />
mas apenas 22% da população brasileira vivem em domicílios com<br />
essas condições.<br />
tabela 2: benefícios privados da educação superior<br />
indicadores selecionados brasil Pessoas com<br />
educação superior<br />
Remuneração dos trabalhadores (em reais por mês) 784 2777<br />
Porcentagem que vive entre os 10% mais ricos 10,0 63,6<br />
Porcentagem que vive em domicílios com computador 23,0 70,9<br />
Porcentagem que vive em domicílios com 2 ou mais banheiros 21,8 77,4<br />
Fonte: Estimativas produzidas com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2006.<br />
Estes indicadores revelam inequivocamente que pessoas com<br />
educação superior têm condições de vida muito acima da média nacional.<br />
Evidentemente que não se pode afirmar que estas melhores<br />
condições de vida decorram diretamente da educação superior. é<br />
possível que aqueles com educação superior tenham herdado parte<br />
de sua riqueza, ou que sejam mais talentosos. Nestes casos, suas<br />
condições de vida seriam bem acima da média mesmo se não tivessem<br />
tido acesso à educação superior. Contudo, a elevada demanda<br />
por educação superior existente indica que boa parte destas vantagens<br />
resulta, de fato, do acesso à educação superior.<br />
Algumas vezes se argumenta que a educação, em particular a<br />
educação superior, é um bem público 15 . Evidentemente que esta argumentação<br />
é incorreta. Para que se possa caracterizar a educação<br />
superior como um bem público, esta deveria satisfazer duas condições:<br />
(a) o custo adicional por um indivíduo a mais se beneficiar<br />
15 Para a definição clássica de bem público, ver Stiglitz (1998).<br />
84<br />
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deste bem é zero, e (b) é muito difícil, senão impossível, excluir uma<br />
pessoa que esteja interessada em se beneficiar deste bem. Entretanto,<br />
como o vestibular deixa muito claro, o atendimento a uns impede<br />
o atendimento a outros, e as vagas para ingressar na universidade<br />
são limitadas de tal forma que alguns podem ser excluídos. De fato,<br />
um serviço para o qual existe um mercado onde as pessoas pagam<br />
para serem atendidas não poderia ser caracterizado como um bem<br />
público, por mais que o setor público participe da provisão destes<br />
serviços e atue na sua regulação. No caso de um bem público, como<br />
ninguém pode ser excluído, não há incentivos para que as pessoas<br />
paguem por esse bem.<br />
A importância das externalidades geradas pela educação superior,<br />
isto é, a diferença entre os ganhos sociais e privados, é uma questão<br />
fundamental para a gestão da política pública, uma vez que é a sua<br />
existência, em grande medida, que forneceria a justificativa para que<br />
a sociedade subsidiasse a sua provisão. muito se argumenta e poderia<br />
se argumentar corretamente sobre as externalidades geradas<br />
pela educação superior, mas, em realidade, pouco se sabe sobre a<br />
sua magnitude e importância, embora todas as estimativas disponíveis<br />
indiquem a sua existência. Em particular, não existe evidência de<br />
que os ganhos da educação superior não sejam, em grande medida,<br />
privadamente apropriados.<br />
No entanto, mesmo a educação superior não sendo um bem público<br />
e nem responsável por gerar consideráveis externalidades,<br />
podem existir razões para subsidiá-la. Como ela é um investimento,<br />
imperfeições existentes no mercado de crédito podem recomendar<br />
que, para garantir a igualdade de oportunidades, a educação superior<br />
seja subsidiada para os pobres ou mesmo para todos que a desejem.<br />
Existem, entretanto, algumas dificuldades com a idéia de subsídios<br />
à educação superior. uma delas é o fato de que, como os retornos<br />
privados são elevados, mais recomendável que um subsídio seria a<br />
garantia de crédito. Neste caso, todos poderiam ter acesso sem a<br />
necessidade de elevar o gasto público ou realizar transferências para<br />
as famílias que, invariavelmente, se tornam as mais ricas.<br />
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86<br />
4. PRoViSÃo PúbLiCA VERSuS PRiVADA<br />
Para aqueles que se beneficiam da educação superior, o que importa<br />
é a qualidade da educação recebida e o seu custo privado. Do<br />
ponto de vista do beneficiário, dada uma qualidade e um custo, pouco<br />
importa se a provisão do serviço é pública ou privada. Portanto,<br />
qual a racionalidade para a provisão pública? Se o setor público quer<br />
subsidiar a educação superior de alguns, então, por que ele não se<br />
limita a pagar parcialmente ou integralmente pelos serviços oferecidos<br />
privadamente àqueles que deseja beneficiar? A seguir, buscamos<br />
discorrer sobre a racionalidade para a provisão pública e privada da<br />
educação superior.<br />
4.1 PRoViSÃo PúbLiCA<br />
Existem algumas justificativas para a participação do setor público<br />
na produção da educação superior, e o que todas têm em comum é<br />
a necessidade de corrigir falhas de mercado. Nenhuma, entretanto,<br />
parece muito convincente. A primeira seria a necessidade de controlar<br />
o custo e a qualidade dos serviços oferecidos. Se o governo<br />
necessita controlar o custo e a qualidade, pode ser muito útil que ele<br />
próprio participe da produção, pois desta forma ele terá melhores<br />
informações sobre todo o processo produtivo. No caso da educação<br />
superior, esta justificativa é discutível, em primeiro lugar, porque o<br />
mercado é bastante competitivo e, portanto, existe pouca racionalidade<br />
para regular o custo e a qualidade. Em segundo lugar, mesmo<br />
que se deseje regular essas dimensões do processo produtivo,<br />
ambas podem ser facilmente mensuráveis, em particular, porque no<br />
caso da educação superior esse processo é bastante transparente e<br />
a qualidade é relativamente de fácil mensuração. Existe no país uma<br />
tradição ampla para a ordenação de instituições de ensino superior<br />
segundo a qualidade e a excelência dos serviços que oferece.<br />
uma segunda justificativa seria a ausência de interesse do setor<br />
privado pelo setor. Esta justificativa no brasil encontra pouca fundamentação,<br />
uma vez que a participação do setor privado é muito<br />
maior que a do setor público e crescente. No brasil, o investimento<br />
privado no setor parece sempre ter sido limitado por regulamentações<br />
e impedimentos legais, mas jamais por falta de interesse.<br />
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Por fim, uma justificativa comumente apontada para a participação do<br />
setor público é a qualidade e a excelência. Apenas o setor público teria<br />
condições de prover serviços realmente de qualidade e em áreas como<br />
medicina e engenharia, onde o custo pode ser muito elevado. A experiência<br />
internacional e crescentemente também a nacional indicam que<br />
o setor privado é capaz de oferecer um amplo leque de serviços, indo<br />
desde cursos noturnos de baixo custo e qualidade limitada até cursos de<br />
medicina e engenharia em tempo integral e de altíssima qualidade.<br />
Quando cursos em determinadas áreas, como medicina, são muito<br />
custosos e geram grandes externalidades, é necessário subsidiá-los<br />
para que a demanda seja socialmente satisfatória. A necessidade de<br />
subsidiar, entretanto, não implica que a produção tenha que ser estatal.<br />
o subsídio deveria ir para a produção do serviço independentemente<br />
de a produção ser pública ou privada.<br />
Ainda mais difícil de justificar é a opção por subsidiar apenas os<br />
serviços oferecidos pelo setor público. Em princípio, o que justifica<br />
o subsídio à educação é a externalidade ou a situação de pobreza do<br />
beneficiário, não importando se a educação está sendo adquirida<br />
numa universidade pública ou privada.<br />
4.2 o SEtoR PRiVADo HoJE<br />
Se, por um lado, a racionalidade para a provisão pública de educação<br />
superior é limitada, por outro lado o monopólio público na<br />
provisão de educação superior não parece ter qualquer justificativa.<br />
No brasil, a participação privada é elevada e crescente, tendo passado<br />
de 56% em 1994 para 72% das matrículas totais em 2004, e de 63%<br />
para 78% no caso das matrículas iniciais 16 .<br />
Dada a qualidade dos serviços públicos e a capacidade de expansão<br />
do setor privado, o sucesso da educação superior vai depender<br />
do estímulo a uma concorrência produtiva entre os dois setores 17 . é<br />
fundamental que o setor privado seja capaz de elevar continuamente<br />
a qualidade dos serviços oferecidos e que o setor público recupere<br />
sua capacidade de investimento e expansão.<br />
16 Ver mEC (2005). Sinopse Estatística da Educação básica.<br />
17 Para uma discussão a respeito de como os recursos públicos podem ser utilizados<br />
para promover a educação no setor privado, ver Levin (2000).<br />
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87
o sistema atual, onde acesso implica necessariamente gratuidade,<br />
limita a capacidade de concorrência do setor privado com o setor<br />
público. Neste caso, mesmo que a qualidade nestes dois setores<br />
seja igual, todos que tiverem acesso à universidade pública, em<br />
particular os melhores alunos, vão preferi-la, dado que é gratuita.<br />
igual qualidade a um menor custo, quem preferiria o setor privado?<br />
No sistema atual, a única forma de o setor privado competir<br />
com o público e atrair os melhores alunos é oferecer uma educação<br />
de maior qualidade ou maiores conveniências em termos de<br />
horário, local e especialidades. o setor privado necessita oferecer<br />
serviços de qualidade muito mais elevada para poder atrair alunos<br />
com acesso ao setor público, ou seja, o diferencial de qualidade<br />
tem que compensar o diferencial de custo. Evidentemente que a<br />
maior eficiência do setor público torna a missão do setor privado<br />
quase impossível. Como competir com um concorrente que tem<br />
seu produto subsidiado? todos que têm a oportunidade, e aí estão<br />
praticamente todos os melhores estudantes, acabam por escolher<br />
o setor que é subsidiado.<br />
outra limitação importante causada pela restrição dos subsídios<br />
aos serviços publicamente oferecidos é o uso da infra-estrutura privada<br />
para o atendimento aos mais pobres. No sistema atual, como<br />
os recursos públicos beneficiam apenas as universidades públicas,<br />
aqueles que buscam atendimento gratuito só podem ser atendidos<br />
por estas instituições. uma pessoa pobre que só tenha condições de<br />
freqüentar a universidade quando subsidiada teria como sua única<br />
opção ser admitida numa universidade pública.<br />
Note que esta não é a forma como funciona o sistema de saúde no<br />
brasil, onde o SuS garante ao beneficiário a opção de escolher entre<br />
instituições públicas ou privadas devidamente cadastradas e os<br />
recursos públicos fluem para as instituições de acordo com a população<br />
atendida e o tipo de serviço prestado, independentemente de<br />
serem públicas ou privadas. o Pro-uni é, em certa medida, um passo<br />
nesta direção, onde o setor privado se compromete a dar bolsas de<br />
estudo para estudantes de famílias relativamente pobres selecionadas<br />
pelo setor público. Na medida em que estas bolsas representam<br />
renúncia fiscal, recursos públicos estão sendo direcionados para o<br />
setor privado. Como o número de bolsas é predeterminado por ins-<br />
88<br />
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tituição, os recursos ainda continuam atrelados às instituições e não<br />
aos beneficiários.<br />
Na medida em que os subsídios públicos sejam outorgados aos<br />
alunos independentemente da escolha de uma instituição pública<br />
ou privada, e na medida em que a disponibilidade de crédito educativo<br />
se expande, não apenas os recursos públicos vão fluir em maior<br />
quantidade para a universidade privada como, também, ela poderá<br />
competir em igualdade de condições com a pública. Neste caso, o<br />
custo percebido por qualquer aluno com opção de acesso aos dois<br />
setores será o mesmo. Se o grau de subsídio estiver atrelado ao aluno<br />
e não à instituição, este vai sempre optar pelo serviço de melhor<br />
qualidade ou o mais adequado aos seus interesses e necessidades.<br />
Por outro lado, o fim da gratuidade da universidade pública e a expansão<br />
do crédito educativo podem expandir a disponibilidade de<br />
recursos para a universidade pública e lhe dar capacidade de investimento<br />
e expansão da oferta de serviços.<br />
5. o PRoCESSo DE SELEÇÃo: ACESSo E GRAtuiDADE<br />
Na medida em que não é possível garantir acesso universal gratuito,<br />
isto é, na medida em que a disponibilidade de vagas e os recursos<br />
públicos são limitados, a seleção daqueles que terão acesso à educação<br />
superior e, dentre estes, aqueles que terão acesso gratuito, é<br />
fundamental para garantir a efetividade e a eqüidade no sistema. é<br />
fundamental separar estes dois processos seletivos. Em princípio, os<br />
critérios para garantir prioridade no acesso deveriam ser distintos<br />
daqueles para a gratuidade.<br />
No caso da universidade pública brasileira, estes dois processos<br />
foram desnecessariamente unificados. Aqueles que têm acesso têm<br />
automaticamente a gratuidade. Curiosamente, é no caso da educação<br />
superior privada, onde esses dois processos são tratados separadamente.<br />
Dentre os estudantes selecionados, alguns recebem uma<br />
bolsa de estudo da própria instituição, outros recebem crédito público<br />
subsidiado, e outros pagam integralmente pelos serviços.<br />
uma vez reconhecida a necessidade de distinção entre estes dois<br />
processos de seleção, resta discutir os critérios que deveriam ser utilizados<br />
em cada caso. Este é o objetivo das próximas subseções.<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 76-99 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007<br />
89
90<br />
5.1 CRitéRioS DE ACESSo<br />
Na medida em que não existem vagas no ensino superior para<br />
atender todos os que desejam freqüentá-lo, como decidir quem<br />
deve ter prioridade? Como o custo do atendimento é essencialmente<br />
independente do beneficiário, aqueles cujo atendimento<br />
leva ao maior benefício social deveriam ter prioridade. Portanto,<br />
o importante não é o quanto um indivíduo se beneficia privadamente<br />
da educação superior, mas o benefício social gerado. Assim,<br />
na medida em que as externalidades da educação são maiores nas<br />
áreas pobres e no interior do país, deveria-se dar prioridade a candidatos<br />
originários destas áreas, caso estes tenham maior probabilidade<br />
de retornar a elas.<br />
é também importante ressaltar que o benefício da educação superior<br />
não é igual ao seu valor adicionado. Este benefício deve ser<br />
medido pela diferença entre o valor adicionado da educação superior<br />
e o benefício líquido da melhor alternativa disponível. Assim,<br />
mesmo quando o valor adicionado é elevado, o benefício da<br />
educação superior pode ser limitado, caso na impossibilidade de<br />
freqüentá-la o candidato tivesse uma alternativa que lhe garantisse<br />
benefícios similares. Por exemplo, para um jovem que pudesse<br />
obter crédito subsidiado para ir à universidade ou para abrir um<br />
pequeno negócio, o benefício líquido da universidade seria o valor<br />
adicionado descontado o benefício que o pequeno negócio lhe<br />
traria. Evidentemente que nesse exemplo estamos considerando as<br />
duas alternativas como excludentes. Caso fosse possível ir à universidade<br />
e depois abrir o pequeno negócio, então, abrir o negócio<br />
não seria uma alternativa à universidade. Nesse caso, a alternativa<br />
seria apenas abrir um negócio mais cedo, e, portanto, o benefício<br />
dependeria de que diferença faria o momento em que o negócio é<br />
aberto. A seguir, trazemos algumas reflexões sobre os critérios de<br />
acesso à educação superior.<br />
5.1.1 ótimo SoCiAL E mERitoCRACiA<br />
Seria meritocrático um sistema de prioridade baseado no benefício<br />
social? Na medida em que o benefício está relacionado ao que vai<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 76-99 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007
acontecer no futuro e o mérito está relacionado com o que foi feito no<br />
passado, a prioridade baseada no benefício líquido não seria uma regra<br />
intrinsecamente meritocrática. é evidente que, na medida em que o benefício<br />
do acesso à universidade esteja altamente correlacionado com<br />
o desempenho educacional passado, pode ser que operacionalmente<br />
a melhor forma de priorizar o benefício social líquido seja priorizar<br />
o desempenho escolar passado. é importante reconhecer que, neste<br />
caso, a natureza meritocrática do processo é apenas instrumental.<br />
A impossibilidade de se medir o impacto futuro do acesso nos<br />
obriga necessariamente, do ponto de vista operacional, a conceber<br />
sistemas de seleção baseados no passado. A questão é, portanto, que<br />
aspectos do passado são mais indicativos do impacto que o acesso à<br />
educação superior terá no futuro. Em que medida o desempenho no<br />
Enem (Exame Nacional do Ensino médio) ou no vestibular, em geral,<br />
é um bom indicador dos benefícios futuros? Na medida em que o<br />
benefício social da educação superior é determinado pelo nível de<br />
conhecimento na entrada, e na medida em que o Enem ou os vestibulares<br />
medem adequadamente este nível de conhecimento, esses<br />
instrumentos servirão como excelentes critérios de seleção.<br />
Entretanto, pode ser que o benefício da educação superior dependa<br />
muito mais da velocidade com que uma pessoa consegue<br />
acumular conhecimentos do que propriamente do seu nível atual. é<br />
evidente que se todos partiram do mesmo ponto e dedicaram igual<br />
esforço, então, diferenças atuais de conhecimento identificam diferenças<br />
de velocidade na sua acumulação. Neste caso, o Enem continuaria<br />
a ser um excelente critério para seleção.<br />
5.1.2 AmbiENtE FAmiLiAR, SituAÇÃo iNiCiAL E tAxA DE ACumuLAÇÃo<br />
o que dizer do Enem, entretanto, se os pontos de partida forem distintos,<br />
ou se a hipótese da continuidade do esforço não for verdadeira.<br />
Quando o que importa é a taxa de acumulação de conhecimento, o<br />
ambiente familiar pode ser importante e deveria ser levado em consideração<br />
explicitamente no processo de seleção. Dois casos polares merecem<br />
particular atenção. Por um lado, podemos ter uma situação onde<br />
diferenças de ambiente familiar têm um impacto substancial sobre as<br />
condições iniciais, mas não sobre a taxa de acumulação. Neste caso, se<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 76-99 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007<br />
91
dois candidatos provenientes de ambientes familiares muito distintos<br />
têm níveis de conhecimento similares, aquele com pior ambiente familiar<br />
terá certamente uma taxa de acumulação muito maior, mesmo que<br />
atualmente ainda apresente um nível de conhecimento inferior. Neste<br />
caso, se o objetivo é priorizar os candidatos com maior taxa de acumulação<br />
de conhecimento, o processo de seleção deve ajustar o nível de<br />
conhecimento atual por diferenças no ambiente familiar.<br />
Por outro lado, podemos ter uma situação (talvez a mais provável)<br />
em que o ambiente familiar, em vez de diferenciar as condições<br />
iniciais, tem impacto sobre a taxa de acumulação de conhecimento.<br />
Assim, crianças pobres cujos pais têm baixa escolaridade acumulam<br />
conhecimento mais lentamente. Neste caso, se todos partiram das<br />
mesmas condições iniciais, diferenças no nível atual refletem diferenças<br />
na taxa de acumulação e, portanto, o Enem e processos seletivos<br />
similares podem ser ideais. Neste caso, o sistema educacional<br />
certamente perpetua as desigualdades existentes. Entretanto, a solução<br />
não estaria em mudar o sistema de seleção, e sim o processo<br />
educacional anterior (educação básica), de tal forma que crianças e<br />
adolescentes de diferentes ambientes familiares tivessem as mesmas<br />
chances de acumular conhecimento. Sem mudanças no sistema,<br />
o impacto social da educação superior sobre candidatos oriundos<br />
de ambientes familiares mais pobres será inferior ao impacto sobre<br />
candidatos cujos ambientes familiares são mais ricos, levando a que<br />
o uso da educação superior para reduzir desigualdade, neste caso,<br />
tenha importantes custos para a eficiência.<br />
92<br />
5.1.3 SubStitutibiLiDADE Do ESFoRÇo<br />
mesmo entre candidatos oriundos de ambientes familiares similares,<br />
o uso de critérios como o Enem pode não ser adequado quando<br />
existem importantes diferenças de esforço, e o critério ideal é a taxa<br />
de acumulação, e não o nível de conhecimento. Por exemplo, se por<br />
motivos médicos ou por falta de serviços educacionais um adolescente<br />
não acumulou conhecimento durante parte de sua vida, seu<br />
nível atual de conhecimento não é um bom indicador de sua capacidade<br />
de acumular conhecimento. Na medida em que estes eventos<br />
forem superados, um candidato com pior desempenho no Enem<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 76-99 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007
pode ter maior taxa de acumulação, e daí um maior benefício social<br />
de freqüentar a educação superior. Da mesma forma, alguém que<br />
estudou três anos consecutivos para o vestibular pode ter um maior<br />
conhecimento no momento do vestibular do que um outro candidato<br />
bem mais jovem e com maior potencial para a educação superior.<br />
Deve-se levar em consideração o número de tentativas? Em alguns<br />
países como a França, por exemplo, existe um número máximo de<br />
tentativas permitidas.<br />
Em geral, o princípio que guia o processo seletivo para a educação<br />
superior é o da complementariedade entre os níveis. Acredita-se que<br />
um bom desempenho nos níveis inferiores seja um bom indicador do<br />
desempenho nos níveis superiores. Assim, quanto melhor for o aluno<br />
no nível anterior, maior o impacto no nível subseqüente. Entretanto,<br />
pode existir alguma dose de substituição entre os níveis. o impacto sobre<br />
os alunos não tão bons nos níveis inferiores pode ser maior do que<br />
sobre os melhores alunos se existe a possibilidade de recuperação.<br />
5.1.4 CRitéRio DE ACESSo E iNCENtiVoS<br />
Na medida em que existem externalidades associadas à educação<br />
em todos os níveis, é necessário subsidiá-la, aumentando os incentivos<br />
das famílias para investirem em educação. Na medida em que<br />
estes subsídios são insuficientes para estimular a demanda por educação,<br />
é necessário apelar para outros incentivos. Como tipicamente<br />
os retornos privados da educação são maiores nos níveis mais elevados,<br />
se o acesso aos níveis subseqüentes depender do desempenho<br />
nos níveis anteriores, o próprio processo de seleção pode incentivar<br />
o esforço das crianças e dos jovens.<br />
Como o nível superior é aquele com maiores retornos privados<br />
e menor disponibilidade de vagas, o processo de seleção adotado<br />
pode ter grandes conseqüências sobre o esforço educacional dos<br />
candidatos nas etapas educacionais anteriores. De fato, existem poucas<br />
dúvidas de que o vestibular estimula o desempenho no médio,<br />
embora este estímulo não deva ser universal. Aqueles com poucas<br />
chances devem se sentir desestimulados e reduzir seu esforço.<br />
De qualquer forma, não se pode esquecer que o processo de seleção<br />
para o ensino superior tem conseqüências sobre o desempenho<br />
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93
dos candidatos nos níveis anteriores que devem ser levados em consideração<br />
no seu desenho. muito da discussão sobre o sistema de<br />
cotas é exatamente sobre os incentivos e impactos que poderia ter<br />
sobre o desempenho educacional dos grupos que busca favorecer.<br />
mesmo que todos os candidatos fossem gerar o mesmo benefício<br />
social tendo acesso à educação superior, poderíamos querer um<br />
sistema meritocrático de seleção que estimule os candidatos a elevarem<br />
seu esforço educacional na educação fundamental e principalmente<br />
na média.<br />
Se o conhecimento fosse observável e dispensasse credenciais, se<br />
todos os benefícios da educação fossem privados, e se as famílias,<br />
crianças e adolescentes fossem racionais e não míopes, não haveria<br />
necessidade de se estimular o esforço educacional. os estudantes se<br />
esforçariam porque perceberiam que vale a pena ou porque perceberiam<br />
que precisam se esforçar para terem o reconhecimento que<br />
desejam. Entretanto, se alguma destas três condições não for verificada,<br />
é necessário incentivar o esforço. Quando o conhecimento não é<br />
perfeitamente observável, cada instituição educacional necessita estimular<br />
seus alunos para que as credenciais outorgadas pela instituição<br />
tenham valor e sejam reconhecidas publicamente, em particular, no<br />
mercado de trabalho e pelas instituições de nível superior. Na medida<br />
em que as famílias são míopes, estímulos adicionais vão elevar o esforço<br />
e o bem-estar de seus membros. De maior importância para este estudo,<br />
a presença de externalidades leva a que nem todos os benefícios<br />
da educação sejam privados e, portanto, torne-se necessário estimular<br />
o esforço privado para que se atinja o valor socialmente desejado.<br />
Em suma, via de regra, o processo de seleção tem um duplo papel.<br />
Por um lado, deve buscar priorizar aqueles que maior benefício<br />
social vão gerar, e, por outro, serve para incentivar os candidatos a<br />
elevarem seu esforço educacional. é evidente que um único instrumento<br />
é incapaz mesmo se toda a informação necessária estivesse<br />
disponível de cumprir as duas tarefas com perfeição. o ideal seria<br />
subsidiar a educação o suficiente para garantir o esforço adequado,<br />
e utilizar o processo de seleção para a universidade apenas para maximizar<br />
o seu benefício social.<br />
94<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 76-99 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007
5.2 CRitéRioS DE GRAtuiDADE<br />
Na medida em que o benefício da educação não é integralmente<br />
apropriado privadamente, existem externalidades e, por conseguinte,<br />
é necessário subsidiar a educação superior. Vale ressaltar que,<br />
neste caso, o subsídio deve ser universal e não restrito a universidades<br />
públicas. Em princípio, as universidades privadas geram tantas<br />
externalidades quanto as públicas.<br />
Na medida em que a magnitude das externalidades varia com o<br />
tipo de curso, profissão ou tipo de aluno, o grau de subsídio deve<br />
seguir o mesmo padrão. Dadas duas profissões com o mesmo valor<br />
social, aquela em que uma menor proporção deste valor é privadamente<br />
apropriada deveria ser a mais subsidiada.<br />
À parte das externalidades, imperfeições no mercado de crédito<br />
podem requerer também a participação governamental no financiamento<br />
da educação superior. Educação superior é um investimento<br />
elevado para qualquer família. Por isso requer a disponibilidade de<br />
poupança ou de crédito. A falta de capacidade de poupança própria<br />
e a existência de um mercado de crédito imperfeito podem levar as<br />
famílias a subinvestirem em educação superior.<br />
Vale ressaltar que o elevado custo da educação superior não é uma<br />
justificativa para gratuidade universal, da mesma forma que o alto<br />
custo de um automóvel ou de uma casa não é justificativa para a<br />
gratuidade na sua aquisição. o fato de as famílias mais ricas terem<br />
dificuldade de financiar a educação superior de seus filhos a partir<br />
de sua renda corrente apenas indica que elas devem poupar recursos<br />
para este fim, da mesma forma como o fazem quando desejam<br />
comprar uma casa ou um automóvel. Nos países onde a educação<br />
superior não é gratuita, verifica-se que as famílias mais ricas começam<br />
a poupar desde cedo com este fim específico.<br />
boa parte da população, entretanto, não teria condições de poupar<br />
o suficiente para financiar a educação superior de seus filhos. Neste<br />
caso, a primeira opção é o crédito. Entretanto, como o mercado de<br />
crédito para investimentos em capital humano tende a ser imperfeito<br />
ou inexistente, é fundamental contar com recursos ou garantias públicas<br />
para o crédito educacional. Fora o subsídio motivado pela presença<br />
de externalidades, nenhum subsídio adicional seria necessário.<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 76-99 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007<br />
95
Em princípio, mesmo as famílias mais pobres não necessitam de nada<br />
mais do que a garantia de acesso a crédito. Qualquer subsídio adicional<br />
serviria apenas como uma bem-vinda redistribuição de renda. uma<br />
transferência para os mais pobres seria útil para reduzir a desigualdade,<br />
mas irrelevante para o bom funcionamento do sistema educacional.<br />
96<br />
6. CoNSiDERAÇõES FiNAiS: AFiNAL, QuEm SE bENEFiCiA E<br />
QuEm DEVERiA SE bENEFiCiAR DA EDuCAÇÃo SuPERioR?<br />
ter acesso à educação superior já é um grande privilégio, na medida<br />
em que eleva a renda, melhora as condições de vida e reduz a taxa<br />
de mortalidade, entre outros benefícios. ter acesso subsidiado e a<br />
uma universidade de melhor qualidade é, portanto, um triplo privilégio,<br />
uma vez que o indivíduo se apropria privadamente dos benefícios<br />
de um serviço de alta qualidade sem a necessidade de incorrer<br />
em todos os custos. Como o custo de uma universidade privada, em<br />
geral, é superior a R$ 20 mil por aluno, o valor do acesso às universidades<br />
públicas deve superar este valor, visto que os serviços são<br />
supostamente de melhor qualidade. trata-se, portanto, de um benefício<br />
substancial. Em valores mensais, equivale a uma transferência<br />
superior à renda per capita do país. um jovem que vivesse apenas<br />
com esta renda estaria entre os 25% mais ricos da população.<br />
Dada a magnitude do benefício e uma racionalidade discutível para<br />
sua existência, é importante identificar quais os grupos sociais que<br />
dele se beneficiam. Se forem os mais pobres, este subsídio está sendo<br />
útil pelo menos para reduzir a desigualdade existente. Entretanto,<br />
apesar da disponibilidade destes subsídios, os grupos mais pobres<br />
continuam encontrando grande dificuldade para ter acesso à educação<br />
superior. os mais ricos utilizam este acesso subsidiado para reproduzir<br />
a elevada desigualdade existente. De fato, 95% dos universitários<br />
brasileiros vivem em famílias pertencentes aos 10% mais ricos<br />
do país, famílias estas que, apesar de representarem apenas 1/10 da<br />
população do país, se apropriam de metade da renda nacional. Qual<br />
a necessidade deste grupo de ter educação subsidiada quando sua<br />
renda é 20 vezes maior do que a dos 20% mais pobres no país? é difícil<br />
identificar qual a racionalidade deste triplo privilégio que beneficia<br />
os jovens mais ricos no país, freqüentadores, em sua maioria, de um<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 76-99 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007
ensino fundamental e médio em escolas privadas. Seja lá qual for a<br />
racionalidade, este privilégio seguramente pouco poderia fazer para<br />
reduzir a elevada desigualdade existente no país.<br />
Se, por um lado, os subsídios à educação não devem se concentrar<br />
nas mãos deste grupo, por outro lado, se o objetivo é subsidiar a<br />
educação da população mais pobre, e sendo esta mais numerosa, é<br />
imprescindível que o seu atendimento não fique limitado aos serviços<br />
providos pelo setor público. toda oferta pública e privada deve<br />
estar igualmente acessível a essa população. Assim, é recomendável<br />
que o crédito e o subsídio estejam atrelados ao beneficiário, independentemente<br />
da instituição de destino ser pública ou privada,<br />
embora o subsídio possa depender da qualidade da instituição e do<br />
curso ou profissão selecionada. Nesse caso, cada beneficiário teria<br />
um subsídio de, por exemplo, R$ 400 ao mês, que poderia ser utilizado<br />
para pagar tanto uma universidade pública como privada. o<br />
contraponto deste argumento é que, nesse caso, os não-pobres admitidos<br />
na universidade pública teriam que pagar por sua educação.<br />
o mesmo argumento também seria válido se o subsídio fosse distribuído<br />
segundo o mérito. os melhores alunos seriam aqueles que<br />
teriam acesso ao subsídio, não importando se eles vão optar por uma<br />
universidade pública ou privada. mantido o critério de excelência, o<br />
subsídio deveria ir para o estudante.<br />
Em suma, é importante reconhecer que os subsidiados devem ser<br />
determinados grupos sociais e não instituições públicas que produzem<br />
o serviço. o grau de subsídio aos setores públicos e privados<br />
vai, então, depender da capacidade destes dois setores de atrair ou<br />
dar acesso aos grupos sociais que se deseja subsidiar. Portanto, não<br />
se deve discriminar o setor privado na concessão dos subsídios, o<br />
qual deve apenas depender da população atendida e da qualidade e<br />
composição dos cursos oferecidos. é importante também reenfatizar<br />
a separação entre acesso à educação superior e acesso à gratuidade<br />
quando se discute a prioridade que se deve dar aos mais pobres. Não<br />
parece haver dúvida de que, entre aqueles com acesso à universidade,<br />
os mais pobres devem ter prioridade à gratuidade ou ao crédito<br />
subsidiado. Esta prioridade evidentemente não implica que os pobres<br />
devam também ter acesso prioritário à educação superior. é perfeitamente<br />
possível que num sistema onde pobres e não-pobres compe-<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 76-99 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007<br />
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tem em igualdade pelo acesso às vagas disponíveis, uma vez definido<br />
os que vão ingressar na universidade, os mais pobres tenham então<br />
acesso prioritário à gratuidade ou aos subsídios existentes.<br />
Se existe pouca controvérsia sobre a prioridade dos mais pobres<br />
à gratuidade e ao crédito subsidiado, o mesmo não é verdade sobre<br />
a adequação de regras de prioridade para eles no acesso à educação<br />
superior. Acima vimos que o processo ideal de seleção é o que<br />
prioriza os indivíduos associados a um maior benefício social. Vimos<br />
que quando o benefício social está associado à taxa de acumulação<br />
de conhecimento e o ambiente familiar tem impacto preponderantemente<br />
sobre as condições iniciais, pode ser recomendável utilizar<br />
como critério de seleção uma medida do nível atual de conhecimento<br />
ajustada pelo ambiente familiar. Existem, entretanto, argumentos<br />
em prol de se priorizar o acesso aos mais pobres, mesmo entre candidatos<br />
com igual benefício social.<br />
QuANto CuStARiA A uNiVERSALizAÇÃo?<br />
Educação superior gratuita é um grande investimento nos jovens. A um<br />
custo de R$ 5 mil por ano, educação superior completamente gratuita seria<br />
equivalente a uma transferência de R$ 20 mil por jovem, considerando cursos<br />
de 4 anos. Se a educação superior não é um bem público e a maioria de<br />
seus benefícios é privadamente apropriada, todos os jovens universitários<br />
deveriam receber este benefício ou apenas os mais pobres? Por que apenas<br />
os em universidade pública deveriam ser subsidiados? Por que aqueles em<br />
universidades privadas não deveriam ser igualmente tratados? Por que os<br />
que seguem outras trajetórias não merecem receber um benefício similar?<br />
é inquestionável a importância para se reduzir as desigualdades no país<br />
de se garantir a cada jovem uma transferência de R$ 20 mil para que possa<br />
iniciar sua vida. A questão é o custo de garantir esta transferência a todos os<br />
jovens e não apenas àqueles que freqüentam educação superior pública.<br />
Atualmente apenas estes recebem este benefício. Se garantido a todos os<br />
jovens universitários brasileiros, este programa custaria R$ 25 bilhões ao ano.<br />
Se garantido a todos os jovens, independentemente se freqüentam ou não<br />
universidade, o custo anual seria de R$ 70 bilhões. Se o benefício se limitasse<br />
aos jovens pobres, o custo passaria a ser de R$ 28 bilhões ao ano.<br />
98<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 76-99 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007
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SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 76-99 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007<br />
99
ENtRE A ESPERANÇA<br />
E A REALiDADE<br />
SobRE A ARtE<br />
E o SEu ENSiNo<br />
Ronaldo Rosas Reis<br />
100<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 100-127 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007
o artigo aborda o tema da relação entre a produção artística e a produção<br />
do conhecimento estético. Em linhas gerais, seu objetivo é ampliar o debate<br />
sobre a necessidade e a urgência da presença da arte no currículo escolar no<br />
brasil. Para isso, o texto analisa criticamente a formação do telos estético e<br />
pedagógico da moderna burguesia industrial, a partir do exame das idéias<br />
estéticas de Hegel. No seu desenvolvimento, o texto problematiza as relações<br />
sociais de produção artística no brasil, apontando, na conclusão, para a<br />
problemática posição pós-moderna das concepções presentes nos Parâmetros<br />
Curriculares Nacionais da área de Arte (PCN-Arte).<br />
this article approaches the subject of the relation between the artistic production<br />
and the production of the aesthetic knowledge. in general lines its<br />
objective is to extend the debate on the necessity and the urgency of the<br />
presence of the art in the pertaining to school resume in brazil. For this, the<br />
text critically analyzes the formation of the telos aesthetic and pedagogical<br />
of the modern industrial bourgeoisie, from the examination of the aesthetic<br />
ideas of Hegel. in its development, the text its criticizes the social relations of<br />
artistic production in brazil, pointing, in the conclusion, with respect to the<br />
problematic postmodern position of the conceptions gifts in the National<br />
Curricular Parameters of the area of Art (PCN-Art).<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 100-127 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007<br />
101
102<br />
1. iNtRoDuÇÃo<br />
No momento em nos aproximamos de uma década da publicação<br />
dos Parâmetros Curriculares Nacionais da área de Arte (PCN-Arte) 1 ,<br />
pensei no interesse que poderia despertar junto a um público leitor<br />
mais amplo do que somente os professores de arte uma abordagem<br />
crítica sobre o tema da relação entre a produção artística e a produção<br />
do conhecimento estético na contemporaneidade.<br />
é bem verdade que a lembrança da data não oferece muitos motivos<br />
para comemorações. Conforme veremos mais adiante, o quadro de<br />
indigência em que se encontra a arte no currículo escolar da maioria<br />
das escolas brasileiras exige muita atenção e cuidado, o que nos tem<br />
mantido permanentemente em suspensão, entre a esperança e a realidade.<br />
Portanto, é preciso salientar que tal pensamento acerca do<br />
possível interesse do leitor pelo tema foi motivado principalmente<br />
pela necessidade e pela urgência. Necessidade de debater questões<br />
que possam contribuir para que o leitor pouco familiarizado com o<br />
tema sinta-se convidado a conhecê-lo e à vontade para refletir sobre<br />
o papel da arte na formação humana. E, quem sabe, animado para<br />
juntar-se aos professores de arte na luta que há décadas travam com<br />
as autoridades educacionais brasileiras e um número extraordinariamente<br />
significativo de dirigentes de escolas públicas e privadas.<br />
urgência porque me parece óbvio que, a se levar em consideração o<br />
estágio em que se encontra o processo de integração efetiva da arte<br />
ao currículo escolar, em breve o dispositivo da LDbEN que trata do<br />
assunto será mais uma matéria ociosa “para inglês ver”, dentre tantas<br />
outras neste país 2 .<br />
De outra forma, a despeito da necessidade e da urgência mencionadas,<br />
a natureza deste tema e sua história no brasil obrigam-me<br />
a prestar ao leitor um esclarecimento – que soa quase como uma<br />
advertência – quanto às posições estéticas e pedagógicas em disputa.<br />
Portanto, se é certo que a integração efetiva da arte no currículo<br />
1 Cf. bRASiL/mEC. Parâmetros Curriculares Nacionais – Arte. brasília: mEC, 1998.<br />
2 o §2º do artigo de número 26 da lei 9394/96 (Lei de Diretrizes e bases da Educação<br />
Nacional) dispõe que “o ensino da arte constituirá componente curricular obrigatório,<br />
nos diversos níveis da educação básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural<br />
dos alunos”.<br />
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escolar é uma luta de todos os artistas e educadores brasileiros e<br />
dos professores de arte em especial, não menos certo é que, conquistado<br />
esse objetivo comum, devemos todos aprofundar o debate<br />
em torno das diferentes concepções de arte e de educação. Neste<br />
sentido, o texto que apresento a seguir retoma, por um lado, antigas<br />
polêmicas que aparentemente foram superadas pela “vitória de<br />
Pirro” representada pela inclusão da arte na atual LDbEN, em 1996, e<br />
pela edição do PCN-Arte, em 1998. Por outro lado, o texto pretende<br />
antecipar questões que me parecem fundamentais numa discussão<br />
sobre a arte e o seu ensino no sistema pós-moderno.<br />
2. RotEiRo<br />
o roteiro de abordagem do tema começa com uma breve busca<br />
de elementos para uma reflexão sobre a arte e o seu papel histórico<br />
na formação cultural da moderna burguesia industrial na passagem<br />
do século xViii para o xix. Chamei-o de “Arte e sistema de arte”,<br />
pois nele pretendo revisar criticamente alguns pontos centrais das<br />
idéias estéticas de Hegel, especialmente aquelas que ofereceram<br />
as contribuições mais decisivas para o dimensionamento ético e<br />
estético do lócus histórico da identidade cultural burguesa. isto é,<br />
o elemento que faltava a esta classe para o seu rompimento definitivo<br />
com os laços que mantinha com a cultura do ancien régime<br />
aristocrático.<br />
Na seqüência deste estudo inicial, mas ainda na mesma seção, analisarei<br />
criticamente a repercussão das idéias daquele pensador no<br />
curso da trajetória da construção daquele lócus já no século xx. De<br />
um modo especial, a análise crítica buscará, de um lado, problematizar<br />
a função do telos organizador do trabalho e da produção de<br />
arte num sistema e, de outro lado, problematizar o papel central da<br />
ideologia estética no processo de formação das idéias educacionais<br />
em arte ao longo do século xx.<br />
o terceiro momento da abordagem do tema abre a segunda<br />
grande seção deste trabalho. Chamada de “Arte e ensino de arte<br />
no brasil”, nela o leitor encontrará os elementos das questões mais<br />
gerais examinadas na seção anterior deslocadas para o exame das<br />
questões particulares da arte e do ensino de arte no brasil que me<br />
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103
parecem mais relevantes. ora, como a partir da década de 1970 as<br />
relações sociais de produção passaram a assumir aceleradamente<br />
a atual forma globalizada, não foi por outro motivo senão metodológico<br />
que optei por tratar da problemática pós-modernista nesta<br />
seção. Dessa forma, além de analisar resumidamente a formação<br />
do meio de arte burguês em nosso país sob as condições modernas<br />
e pós-modernas, o texto busca, enfim, problematizar o método<br />
de análise da realidade que orienta o PCN-Arte. A despeito da posição<br />
multiculturalista e inclusiva explicitada no texto do PCN-Arte,<br />
o principal objetivo aqui é situar o leitor em face da problemática<br />
contradição dos seus autores ao desconsiderarem na análise<br />
da trajetória histórica da arte e do seu ensino no brasil questões<br />
relativas à propriedade dos meios de produção e à classe, dentre<br />
outras mais.<br />
Como último passo deste roteiro, procuro concluir reforçando<br />
junto ao leitor algumas idéias que me parecem importantes de serem<br />
debatidas nos diversos fóruns onde se faz presente a luta pela<br />
inclusão efetiva da arte na escola.<br />
Antes de finalizar esta introdução, não poderia deixar de salientar<br />
que parte das idéias que procuro apresentar aqui vem sendo debatida<br />
já há algum tempo em fóruns de educadores e pesquisadores no<br />
brasil e no exterior 3 . Neste sentido, eu destacaria os textos trabalho<br />
de arte e a arte do trabalho (2003), trabalho improdutivo e ideologia<br />
estética (2005) e A abelha, o arquiteto e a escola (2006) como aqueles<br />
que compõem o núcleo principal das idéias que aqui apresento 4 . Já outras<br />
idéias mais recentes, algumas em teste de amadurecimento, fazem<br />
parte do atual estágio de desenvolvimento das pesquisas científicas e<br />
estudos acadêmicos que venho realizando como professor associado<br />
da Faculdade de Educação da uFF e também como pesquisador do<br />
CNPq 5 . A importância deste esclarecimento se faz na medida mesma<br />
3 Dentre outros, as reuniões anuais da ANPEd (Associação Nacional de Pesquisa em<br />
Educação) e encontros (congressos, seminários, colóquios etc.) de estudiosos do<br />
pensamento de marx e Engels.<br />
4 Cf. referências bibliográficas ao final do artigo.<br />
5 tal pesquisa e estudos sobre a relação trabalho, arte e educação são realizados no<br />
âmbito do Núcleo de Estudos, Documentação e Dados sobre trabalho e Educação da<br />
uFF (Neddate-uFF). Cf. REiS, R. R. www.uff.br/neddate/ronaldo_rosas_reis.<br />
104<br />
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em que a condição pós-moderna, expressão lógica da cultura sob o<br />
capitalismo tardio, impõe de forma avassaladora sobre os indivíduos e<br />
suas idéias os paradigmas da produtividade a qualquer preço e da obsolescência<br />
programada. Desnecessário seria detalhar a corrida insana<br />
de parte da intelectualidade para cumprir prazos e metas produtivistas<br />
com prejuízos evidentes para a ciência e a cultura do país.<br />
mais importante de tudo é reafirmar que toda idéia nova e mesmo<br />
algumas mais antigas precisam, sobretudo, de tempo para circular<br />
livremente.<br />
3. ARtE E SiStEmA DE ARtE<br />
3.1 HEGEL: A ARtE Como SiStEmA DE iDéiAS<br />
Pensar a arte para além dos limites impostos pela subjetividade<br />
religiosa medieval. Extrair dela um sentido histórico, uma razão de<br />
ser-no-mundo. Elevá-la ao patamar das ciências elevando o seu estatuto<br />
teleológico. Se fosse possível estabelecer uma ementa resumida<br />
da Estética, a grandiosa obra escrita por Hegel (1770-1831)<br />
no início do século xix, estes seriam os pontos centrais a serem<br />
abordados. Em verdade, a grande inovação que Hegel trazia era o<br />
desenho do corpus teórico de uma história social da arte, cujos<br />
fundamentos se assentavam na originalidade do método dialético<br />
de abordagem da realidade, rompendo com a tradição kantiana racionalista<br />
e empiricista da sua época. Pode-se dizer, neste sentido,<br />
que a tarefa de Hegel teve um caráter estratégico para a emergente<br />
cultura do homem burguês, na medida em que oferecia à arte, à<br />
música e à literatura e poesia um sentido histórico ou telos estético<br />
6 . isto é, um sentido vital que expressasse de forma coerente a<br />
vida social sob o capitalismo. Ao fundo, o que a teleologia de Hegel<br />
buscava era educar a coletividade humana para as belas-Artes,<br />
a bela-música, as belas-Letras etc., constituindo isso num fim que<br />
6 A propósito disso, vale dizer que, não obstante a originalidade filosófica de Hegel, é<br />
evidente na sua obra a influência dos poetas e pensadores românticos, como Goethe,<br />
e, principalmente, as famosas cartas da Educação Estética do Homem, de Friedrich<br />
Schiller (1759-1805).<br />
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seria traduzido na formação de público para o calendário oficial da<br />
cultura artística promovido pelo Estado, composto de salões, óperas,<br />
saraus e respectivas premiações anuais 7 .<br />
Para tanto, Hegel diria que, sob o domínio da razão, a vontade coletiva,<br />
a moral, o direito, a política do homem burguês vitorioso no<br />
seu projeto republicano são artefatos culturais que se expressam<br />
mediante um discurso estético. A ideologia, no sentido indicado<br />
por Hegel, nada mais seria do uma representação do modo como<br />
o homem concebe o mundo. Em última análise, para ele, toda ideologia<br />
é estética. um pouco mais adiante será necessário retomar<br />
este ponto.<br />
Por ora, é importante salientar que os efeitos das idéias inovadoras<br />
de Hegel junto a um número significativo de artistas e arquitetos<br />
autônomos, artesãos e oficiais desenhistas empregados nas indústrias<br />
européias são avassaladores. Primeiro porque eles já intuíam<br />
corretamente que a consolidação do capitalismo e a ascensão da<br />
burguesia ao poder político provocariam no médio e longo prazo<br />
uma profunda mudança no gosto até então dominado pela estética<br />
clerical e aristocrática. Depois porque percebiam que o processo de<br />
desenvolvimento das forças produtivas 8 que se impunha em face da<br />
arte, da arquitetura e do design era um verdadeiro divisor de águas,<br />
separando, de um lado, as pesquisas subordinadas ao processo<br />
industrial, e, de outro, a experimentação estética formal em busca<br />
de autonomia da linguagem visual. Por último, e mais importante,<br />
porque o próprio modo de produção da vida burguesa deixava<br />
claro que a arte, a arquitetura, os artefatos urbanos e domésticos<br />
e tudo mais que o midas-capitalista tocasse seria transformado em<br />
mercadoria. Em suma, assim como a estética de Hegel provocava<br />
um abalo profundo no senso comum que orientava o gosto bur-<br />
7 é necessário esclarecer que neste período os setores mais intelectualizados da<br />
burguesia encontravam-se preocupados com as crises sistemáticas na sociedade. A<br />
guilhotina, o terror, sintetizava tais preocupações. o telos representaria um salto para<br />
adiante. Ver HEGEL, G. W. F. Lecciones de estética. buenos Aires: La Pléyade, 1977.<br />
8 Dentre outras, os novos materiais que surgiam, o acelerado progresso técnico, o<br />
acentuado experimentalismo e, fundamentalmente, as novas formas de organização<br />
do método e do ambiente de trabalho.<br />
106<br />
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guês, o artífice moderno queria abolir o ornamento inútil herdado<br />
do passado.<br />
De fato, em linhas gerais, o que se observou foi um conjunto de<br />
mudanças tão surpreendentes e extraordinárias que em pouco tempo<br />
a cultura burguesa assumiria uma identidade própria, autônoma e<br />
distante do tanto que ainda restava das ruínas do passado aristocrático<br />
e feudal. As cidades sofreriam mudanças no planejamento urbano<br />
e na arquitetura, adaptando-se ao acelerado processo de desenvolvimento<br />
das forças produtivas (a técnica e o trabalho, principalmente);<br />
o vestuário e o mobiliário urbano-público e doméstico-privado<br />
adaptar-se-iam igualmente às novas funções sociais designadas pelos<br />
novos determinantes ideológicos, incluindo o gosto estético 9 .<br />
Neste ponto, se faz necessário retomar a questão da ideologia estética<br />
deixada em aberto mais acima, ressaltando que, a despeito do<br />
método dialético de Hegel oferecer a possibilidade de apreensão<br />
objetiva do mundo sensível, o seu sistema estético enfrentaria, sem<br />
sucesso, um impasse frente à categoria totalidade. Com efeito, pois,<br />
se por um lado Hegel afirma que a totalidade é a culminância de<br />
todo o processo dialético mediante o qual descrevemos o mundo<br />
sensível, por outro lado essa totalidade somente alcança o estatuto<br />
de uma Verdade Histórica ou idéia Absoluta se e quando submetida<br />
a um conjunto de pré-conceitos ou idéias apriorísticas. Por conseguinte,<br />
percebe-se que sob tal condição a totalidade nada mais é do<br />
que um mero artefato intelectual ou representação ideal da realidade:<br />
uma ideologia estética, conforme salientei anteriormente. ora,<br />
não sendo a totalidade a expressão concreta da realidade, mas, sim,<br />
uma idealização determinada pelo aparato ideológico, logo, tanto a<br />
concepção de Verdade Histórica quanto a concepção de ideologia<br />
em Hegel são formas de consciência parciais da realidade. Formas de<br />
consciência que falseiam tanto a realidade concreta como o próprio<br />
aparato ideológico utilizado para descrevê-la.<br />
Se ao fim e ao cabo a estética de Hegel não conseguiu superar no<br />
campo das idéias as contradições internas ao sistema criado, certamente<br />
isso não se deve especificamente ao método de análise adotado,<br />
a dialética. mas, sim, como examinaremos a seguir, a um vício de<br />
9 Sobre este assunto, ver SENNEt, R. (1989).<br />
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origem, qual seja: a sua imersão na tradição idealista a partir da qual<br />
o método havia sido desenhado. De resto, um obstáculo para que o<br />
exercício do détour para se chegar ao concreto-pensado considerasse<br />
centralmente a práxis humana, isto é, o modo como os homens<br />
produzem a vida em sociedade, como possibilidade de análise 10 .<br />
108<br />
3.2 SiStEmA DE ARtE E iDENtiDADE CuLtuRAL<br />
é inegável que as idéias de Hegel deram à incipiente cultura burguesa<br />
autônoma do século xix os fundamentos essenciais para a<br />
organização de um sistema educativo do gosto estético amplo e<br />
abrangente. Contudo, a expectativa da totalidade alcançada pelo<br />
encontro de identidade cultural própria esbarrava em alguns conflitos<br />
insuperáveis, tal como a contradição de reunir lado a lado<br />
traços conservadores e outros tantos modernizadores no mesmo<br />
ambiente cultural. Em conjunto, a classe burguesa encontrava-se<br />
diante do seguinte dilema: assumir a rica tradição cultural da aristocracia<br />
que derrotara ou construir uma cultura própria, porém<br />
empobrecida pela ausência de tradição. Foi assim que, no período<br />
de profunda instabilidade republicana que se estende aproximadamente<br />
da queda de Napoleão bonaparte, em 1814, às duas primeiras<br />
décadas do século xx, a fração burguesa mais conservadora<br />
da sociedade e um número significativo de intelectuais pequenos<br />
burgueses consolidaram a força da Academia e dos seus esquemas<br />
de legitimação do valor estético da produção artística. Neste sentido,<br />
os anos que se seguiram à derrocada do império napoleônico<br />
foram justamente aqueles em que os traços conservadores prevaleceriam<br />
na organização das instituições oficiais de arte do Estado<br />
burguês e de seus esquemas de avaliação e exposição da produção:<br />
os Salões Nacionais. é neste período que se observa no meio<br />
artístico uma rápida involução dos padrões estéticos da produção<br />
associada ao rápido crescimento de uma burocracia acadêmica poderosa,<br />
na qual os mestres artistas e artesãos, além de críticos e<br />
marchands mais medíocres, pontificariam na definição e direção<br />
10 A idéia de détour compreende o esforço do pensamento dialético de se desviar<br />
da pseudoconcreticidade das coisas, como o senso comum, buscando, enfim, o concreto-pensado.<br />
Sobre este tema, ver KoSiK, K. (1995).<br />
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hegemônica de um sistema de arte reestruturado e organizado a<br />
partir da autoridade estética da Academia 11 .<br />
De fato, se até o período napoleônico a Academia conseguira<br />
equilibrar o ímpeto romântico com os rigores morais da norma, a<br />
partir de então, com o extraordinário êxodo de alguns dos seus principais<br />
mestres, a arte acadêmica oficial limitou-se a repetir gêneros<br />
temáticos tão pouco originais quanto eram rigorosas e medíocres<br />
as regras impostas para a composição das obras 12 . baseado numa<br />
forma de narrativa que doutrinava a subjetividade do observador, o<br />
“gênero histórico” foi um dos mais apreciados pela fração burguesa<br />
conservadora – mas não apenas –, tornando-se uma espécie de balizador<br />
dos demais gêneros. E, certamente, tal apreciação deveu-se<br />
em grande parte às suas características formais chegadas ao moralismo<br />
apologético da ética individual. Se a temática recorrente dos<br />
artistas que adotaram o “gênero histórico” variava do sermão pictórico<br />
ao relato de façanhas e eventos monumentais como sagrações<br />
de generais, grandes batalhas, execuções, bodas, missas, etc., cabe<br />
salientar ainda que o estilo marcadamente eclético também deva<br />
ser considerado um atrativo a mais deste gênero de pintura para os<br />
olhos burgueses. Conforme observei em outro trabalho, a nostalgia<br />
dos estilos do passado era organizada pela Academia sob o para-<br />
digma do “neo” – neoclassicismo, neogótico, neobarroco etc., além do<br />
paladianismo muito adotado pelos arquitetos e paisagistas ingleses<br />
para reviver estilisticamente a idade média e a Antiguidade pré-clássica<br />
13 . Sob o peso de uma “autoridade histórica” artificial que aliviava<br />
11 As raízes do sistema de arte remontam ao comércio de objetos artísticos no<br />
século xVii, quando então surgiu entre os rentistas e os mecenas da época a necessidade<br />
de se estabelecerem parâmetros e critérios para o valor de troca (valor<br />
de mercado) de tais objetos. o pressuposto do sistema de arte refere-se a uma<br />
única condição: manter e controlar o capital cultural da classe dominante. Sua tarefa<br />
principal é qualificar um objeto quanto ao seu valor artístico de acordo com<br />
o telos estético daquele capital. As idéias de belo, gosto, técnica, criatividade etc.,<br />
ajustadas, evidentemente, ao prestígio do realizador, do marchand, do estabelecimento<br />
expositor, da pessoa física e jurídica do expositor, do curador da exposição<br />
etc., são alguns dos elementos que compõem o telos. Cf. REiS, R. R. (2006b).<br />
12 A propósito do êxodo dos artistas francesas, vale lembrar que o brasil foi um<br />
dos países beneficiados por ele quando, em 1816, D. João Vi contrata mais de uma<br />
centena de mestres artistas e artesãos napoleônicos ligados à Academia de belas-<br />
Artes francesa.<br />
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as dores da ausência de uma tradição artística legítima, o poder do<br />
sistema de arte seria, enfim, consolidado.<br />
Assim, a despeito do assombro inicial causado pela “rebeldia”<br />
dos artistas impressionistas numa exposição em 1872, aos olhos dos<br />
conservadores não parecia, de resto, que a linguagem artística experimentava<br />
qualquer tipo de tensão adicional, ao ponto de exigir<br />
maiores atenções. Cabe notar aqui o paradoxo que colocava a classe<br />
burguesa de um modo mais geral numa situação de ignorar aquilo<br />
que forças produtivas em desenvolvimento lhes mostravam: a pressão<br />
sobre o passado. Sequer lhe ocorria, por exemplo, que a fotografia,<br />
o cinema, o jornal e a moda, para citarmos apenas alguns itens de<br />
uma extensa lista de forças emergentes, imporiam às técnicas artísticas<br />
e linguagens convencionais (pintura, desenho, gravura, escultura)<br />
pressões adicionais àquelas internas à própria arte. Se de certo<br />
modo isso pode ser explicado pela suposta ausência de alternativas<br />
razoáveis à lógica do pensamento conservador que desprezava o<br />
gosto e as manifestações culturais da fração “plebéia” da burguesia,<br />
de outro modo a explicação para esse fato pode ser verificada na<br />
origem contraditória do próprio sistema.<br />
todavia, nos anos inaugurais do século xx, já é possível observar<br />
na esfera cultural em geral e no meio de arte em particular os primeiros<br />
reflexos das mudanças ocorridas na sociedade em razão dos<br />
sucessivos avanços da técnica, da substituição progressiva do carvão<br />
pelo petróleo como matriz energética principal e, fundamentalmente,<br />
do surgimento de um novo regime de acumulação – o fordismo –,<br />
baseado na otimização/intensificação da exploração do trabalho humano.<br />
Da combinação de tantas novidades nas relações sociais de<br />
produção da vida sob a hegemonia burguesa, emergiriam formas<br />
novas de linguagem artística exigindo ajustes no telos estético.<br />
110<br />
3.3 moDERNiSmo E SiStEmA DE ARtE: ENtRE o<br />
DESEJo Do NoVo E A REALiDADE Do mESmo<br />
Não deixa de ser sempre curioso o fato de um conjunto de idéias<br />
notáveis ser utilizado de forma e com objetivos supostamente diferentes.<br />
Com efeito, vimos até aqui que as idéias de Hegel serviram<br />
13 Cf. REiS, R. R. (2006a).<br />
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de base para a organização de um esquema de legitimação lógico e<br />
eficiente na definição do valor estético de uma determinada fração<br />
da classe dominante. tal esquema baseava-se na articulação sistemática<br />
entre o ensino acadêmico de arte, no processo de avaliação<br />
e premiação das obras, promoção dos seus autores e legitimação do<br />
conjunto da produção junto aos colecionadores de objetos artísticos<br />
e demais agentes do mercado. tudo isso era utilizado pela fração<br />
burguesa dominante, conservadora nas suas práticas econômicas,<br />
nos seus hábitos e costumes cotidianos e, sobretudo, no seu padrão<br />
de gosto, algo próximo ao gosto aristocrático, porém clivado por sua<br />
trajetória ética e moral 14 .<br />
Entretanto, num sentido diverso, o historiador Eric Hobsbawm<br />
(1995) nota que, na altura de 1914, alguns setores da burguesia que<br />
buscavam aliar a modernidade dos empreendimentos industriais às<br />
suas expectativas de renovação cultural já haviam experimentado<br />
praticamente todos os ismos daquilo que se pode chamar pelo amplo<br />
e indefinido termo “modernismo” (p. 178) 15 . é bem verdade que<br />
o fato de esses setores alimentarem admiração e até terem apoiado<br />
o tímido dissenso impressionista e das rupturas vanguardistas<br />
na arte não lhes dava condições totais para afirmarem que haviam<br />
rompido com a autoridade estética da Academia e os esquemas burocráticos<br />
do seu sistema a fim da legitimação do valor artístico da<br />
obra de arte. No máximo, teriam construído para si uma representação<br />
das feições que a moderna e “legítima” cultura burguesa poderia<br />
ter num futuro breve (idem, p.183). isto porque se a pressão exercida<br />
pela ruptura vanguardista demonstrara força para concorrer<br />
com a autoridade estética da Academia, de outra forma tal força não<br />
se aplicava à dimensão extraordinária que o sistema de arte havia<br />
14 Sobre este assunto, ver HAuSER, A. (1972)<br />
15 Para Hobsbawm, o “modernismo” representa a unificação num conceito híbrido<br />
das mais variadas práticas artísticas e ideologias estéticas vanguardistas que se estenderam<br />
por cerca de 30 anos consecutivos (1995, p. 183).<br />
16 ora, se a arte tinha uma finalidade histórica para o artista de vanguarda, logo, o<br />
objetivo programático e a estratégia política da “revolução da arte moderna” não<br />
eram estruturalmente diferentes da arte (acadêmica) recém-superada. Se ela necessitava<br />
de parâmetros e critérios para lhes definir o valor, por conseguinte, este valor não<br />
era pensado como valor artístico, mas sim como valor de troca (mercadoria), sendo,<br />
portanto, necessária a existência de um sistema controlador.<br />
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111
alcançado 16 . Dessa forma, o que se observou foi, de um lado, uma<br />
progressiva apropriação das idéias estéticas das vanguardas pelas<br />
indústrias de bens de consumo, da moda e acessórias etc.; de outro<br />
lado, uma abertura igualmente progressiva do mercado de arte para<br />
as obras de Pablo Picasso, Salvador Dalí, Wassily Kandinsky e marcel<br />
Duchamp, dentre outros tantos.<br />
A partir deste ponto, podemos então apresentar algumas conclusões<br />
preliminares. Primeiramente, quanto ao próprio conceito<br />
de “revolução”, habitualmente aplicado ao modernismo. ora, se<br />
entendermos que uma verdadeira revolução é aquela que rompe<br />
com as estruturas produtivas do passado e sobre as suas ruínas<br />
constrói um novo modo de produção da vida, independentemente<br />
de, por algum tempo, conviver com elementos superficiais do<br />
passado, então não houve uma revolução modernista, mas, sim,<br />
a reificação do conceito de arte 17 . Em segundo lugar, ainda que<br />
admitíssemos que a radicalidade das vanguardas modernistas tivesse<br />
obrigado a cultura a rever o próprio conceito de arte programando,<br />
no limite, a sua própria “morte” como valor criativo, não<br />
me parece que tudo que nos tenha sido apresentado como arte<br />
desde então esteja fora do esquema de legitimação controlado<br />
pelo sistema de arte.<br />
Assim, independentemente das correntes a que têm se filiado os<br />
artistas de qualquer tendência, das mais ou das menos conformadas<br />
– e até mesmo das revoltadas – com o pensamento único dominante,<br />
o fato de a produção artística manter-se controlada por um sistema<br />
de valores subordinados ao capital tanto indica a força de permanência<br />
do legado idealista da dialética de Hegel como indica igualmente<br />
a fragilidade do seu modelo.<br />
17 Em linhas gerais, reificação é um caso especial de alienação. Neste sentido, é o<br />
efeito produzido pela ação capitalista intensa ao transformar a relação entre coisas<br />
vivas em relação entre coisas simplesmente. isto é, entre mercadorias. No caso<br />
analisado, dada a impossibilidade de haver uma “revolução da arte” sem que tivesse<br />
ocorrido uma revolução real, a arte, ou melhor, o seu conceito, foi alienado do mundo<br />
das coisas vivas, ajustando-se ao mundo das mercadorias. Sobre o assunto, ver<br />
bottomoRE, t. (2001).<br />
112<br />
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4. ARtE E ENSiNo DE ARtE No bRASiL<br />
4.1 A buRGuESiA bRASiLEiRA E A ARtE ACADêmiCA<br />
o interesse pessoal do rei de Portugal em trazer para o brasil, em<br />
1816, uma missão de artistas franceses é revelador do curioso conflito<br />
de interesses a que o país fora submetido desde o início da sua<br />
colonização e que seria acentuado por D. João Vi, por seu filho e<br />
depois pelo neto à frente do governo brasileiro até a Proclamação<br />
da República. tal curiosidade deve-se ao fato de um monarca que<br />
se vê obrigado a fugir de seu país, em 1808, expulso por Napoleão<br />
bonaparte, apoiado pela burguesia revolucionária da França, sendo<br />
que oito anos depois convida os principais artistas burgueses e admiradores<br />
do império napoleônico a organizar uma Academia nas<br />
terras do reino unido brasil-Portugal 18 .<br />
Criada no Reinado e mantida e aperfeiçoada no império, é neste<br />
último período que suas funções formadoras são ampliadas e organizadas<br />
pela burguesia brasileira então ascendente. Sob a proteção<br />
de D. Pedro ii, a Academia haveria de levar adiante o plano estratégico<br />
que dera origem à contratação dos mestres franceses algumas<br />
décadas antes: produzir conhecimento, estabelecer um método<br />
científico de trabalho e uma hierarquia disciplinar capaz de reproduzir<br />
os ensinamentos ministrados, e, no limite, instaurar um aparato<br />
legislador das coisas da arte com vistas à formação de um sistema<br />
de arte que correspondesse aos objetivos hegemônicos da classe<br />
18 A espécie curiosa de conflito avançaria com a declaração da independência do<br />
país realizada pelo próprio filho do rei, Pedro i, e, mais adiante, por seu neto, Pedro ii,<br />
grande incentivador da burguesia contra a economia primária praticada pelos oligarcas<br />
herdeiros de extensos latifúndios (as sesmarias).<br />
19 Para barbosa (1978), no seu conhecido Arte-educação no brasil, a República teria<br />
agido preconceituosamente contra “[...] o dirigismo característico do espírito neoclássico<br />
de que estava impregnada (a Academia)”, posto que esta estivera a serviço<br />
da conservação do poder do império (1978, p.16). Ao nosso ver, a posição da autora,<br />
apoiada tão-somente em fatos, carece de consistência teórico-metodológica quando<br />
não examina a totalidade das relações socioculturais no contexto da revolução burguesa<br />
no brasil. talvez, por esse mesmo motivo, no seu texto, ela insista na idéia simplista<br />
de “preconceito” ao dizer que, ao substituir “o calor do emocionalismo barroco<br />
da arte colonial pela frieza do intelectualismo da estética neoclássica, [esta última]<br />
teria encontrado eco apenas na pequena burguesia”(idem, pp.18-19).<br />
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113
dominante 19 . Já durante a primeira República (1889-1930), dada a sua<br />
identificação com o velho regime, a Academia passa para um plano<br />
secundário no interesse dos governantes. Contudo, conforme indicam<br />
inúmeros registros documentais, os artistas acadêmicos, seus<br />
prepostos na imprensa e no incipiente mercado de arte brasileiro<br />
(com seus esquemas de salões e exposições oficiais) mantinham<br />
junto aos setores conservadores da elite burguesa um prestígio quase<br />
inabalável. De fato, estes prestigiavam não apenas os eventos artísticos<br />
da Academia, como investiam e mantinham em seus acervos<br />
particulares obras por ela recomendadas.<br />
o processo de implantação da Academia no brasil seguiu de um<br />
modo geral os passos estratégicos dados anteriormente pelas academias<br />
européias, em particular a francesa. A organização do ensino<br />
em cátedras correspondentes às diferentes disciplinas curriculares<br />
configuraria o primeiro passo concreto no sentido de tornar visível<br />
para a sociedade a autoridade produtora de conhecimento no campo<br />
artístico e capacitada oficialmente a reproduzi-lo 20 . Como na Europa,<br />
com base no corpo da doutrina acadêmica, a autoridade do catedrático<br />
seria balizadora da posição estética do Estado, tendo utilidade<br />
na definição dos parâmetros e critérios estilísticos e de linguagem a<br />
serem adotados na construção de prédios da administração pública,<br />
parques, jardins, monumentos etc. 21 . Sobre este aspecto, é necessário<br />
observar que, embora na sua forma geral, a Academia obedecesse<br />
à lógica organizativa preconizada pelo sistema de idéias de Hegel,<br />
já o seu conteúdo indicava um tipo de racionalidade positivista com<br />
aspirações universalistas. Em razão disso, a mudança ocorrida no interior<br />
do regime, de império para República, não alterava a essência<br />
burguesa da Academia 22 .<br />
20 inicialmente ocupada pelos mestres franceses, a cátedra passaria a ser o principal<br />
objetivo a ser alcançado pela maioria dos jovens que buscavam na Academia algo<br />
mais do que apenas a formação artística.<br />
21 Não raras vezes também para justificar a descaracterização do patrimônio arquitetônico<br />
colonial mediante a sua simples destruição ou reforma de alguns de seus mais notáveis<br />
exemplares, como, por exemplo, no caso da igreja colonial de São Francisco de Assis, em<br />
Niterói. Destruída pela Academia, ela teve a sua feição original devolvida pelo arquiteto<br />
Lúcio Costa quando este esteve à frente do iphan, no Estado. Cf. REiS, R. R. (2005).<br />
22 o aparato acadêmico dos salões e exposições oficiais e de escolhas de artistas e<br />
arquitetos oficiais no interior do sistema de arte prevaleceu fortemente até meados<br />
dos anos da década de 1970, não tendo sido, desde então, de todo abandonado.<br />
114<br />
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4.2 iNDuStRiALizAÇÃo E o DESEJo DE muDANÇA<br />
Quando, em 1914, a guerra na Europa encontra um desfecho, havia<br />
um mapa econômico, político e cultural que apresentava o brasil<br />
com duas faces conflitantes.<br />
uma nova e exuberante com a riqueza acumulada com as exportações<br />
agrícolas para os países em guerra. uma face que procurava mostrar<br />
orgulhosamente a sua capital, o Rio de Janeiro, reformada no melhor<br />
estilo parisiense. Que vibrava com a industrialização de São Paulo,<br />
com o excedente de crédito na praça, com o crescimento do mercado<br />
interno. um país que, a despeito de não ter ainda uma universidade,<br />
podia apresentar suas Academias de belas-Artes, Letras e música.<br />
A outra face devia ser escondida, pois era pobre e atrasada. um<br />
inferno tropical de barracos miseráveis balançando em morros íngremes<br />
onde uma gente pobre e desempregada cantava e dançava<br />
coisas desconhecidas das elites. Na periferia, trabalhadores das indústrias<br />
e empregados do comércio empoleiravam-se em cortiços<br />
empoeirados à margem das estradas ou em palafitas enterradas em<br />
mangues apodrecidos. Faltava educação, emprego, saneamento e<br />
habitação. Sobravam favelados, ignorância e doenças endêmicas. Era<br />
um país entregue ao “primitivismo” da arte colonial, da “fala errada<br />
do povo” e do exotismo dos terreiros de samba.<br />
é neste contexto conflitante que surgiria em São Paulo e no Rio<br />
de Janeiro uma geração de artistas que ficaria conhecida por suas<br />
idéias modernistas na arte, na música, na literatura e na poesia. Para<br />
muitos deles, sobretudo os filhos ou netos de imigrantes originários<br />
da classe trabalhadora, que haviam crescido em meio ao lento<br />
processo de desenvolvimento das relações capitalistas no brasil, as<br />
mudanças econômicas no quadro interno do país desenhadas pela i<br />
Guerra mundial se apresentavam histórica e dialeticamente relacionadas.<br />
isto é, seja como um fator de mobilidade social, seja como<br />
uma oportunidade de operarem transformações no quadro das relações<br />
de produção de arte no país 23 .<br />
23 Quanto ao aspecto da mobilidade social, vale notar que, seguindo uma tradição<br />
familiar dos trabalhadores à época, uma parte significativa dos artistas ingressara no<br />
mundo do trabalho desde cedo, tendo adquirido e desenvolvido suas habilidades<br />
artesanais especializadas no próprio seio familiar, nas escolas profissionalizantes<br />
existentes ou nos liceus de artes e ofícios. Ver CuNHA, L. A. (2000, vol. 2).<br />
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115
Entretanto, repetindo o que ocorrera na Europa, a reação dos<br />
setores conservadores da burguesia aos modernistas foi avassaladora.<br />
Para a maioria dos jornalistas e intelectuais ligados a esses<br />
setores, romper com a Academia seria o mesmo que retomar o<br />
caminho da arte colonial primitiva. Nem mesmo monteiro Lobato,<br />
por muitos considerado um liberal em termos artísticos, deixaria<br />
de criticar a arte modernista de Anita malfati escrevendo no jornal<br />
Estado de S. Paulo, em 1917, que “[...] embora se dêem como<br />
novos, como precursores de uma arte a vir, nada é mais velho do<br />
que a arte anormal ou teratológica: nasceu como paranóia e mistificação<br />
[...]” 24 .<br />
Como se sabe, o fato de terem sido rejeitados de ponta a ponta<br />
pela elite conservadora não desanimaria os modernistas. E eles<br />
aproveitariam o acirramento das tensões sociais que pressionava internamente<br />
a burguesia como um todo, no sentido de buscar uma<br />
definição da sua posição no quadro das relações capitalistas no país,<br />
para situarem-se ao lado da fração burguesa ligada à produção industrial<br />
contra os setores arcaicos da economia. Com essa expectativa<br />
em mente, imaginavam que, num certo prazo, ocorreria aqui<br />
algo semelhante à experiência modernista na Europa, ou seja: uma<br />
ruptura formal com o padrão estético acadêmico. Acreditavam, sinceramente,<br />
que o devir dessa ruptura representaria a “adequação”<br />
da cultura brasileira ao seu lugar próprio 25 . todavia, como sublinha<br />
Sodré (1986), tratava-se antes do consentimento de uma fração da<br />
burguesia com vistas ao controle da produção artística do que propriamente<br />
uma rendição (Sodré, 1986).<br />
116<br />
4.3 PóS-moDERNiSmo E o DESEJo Do mESmo<br />
Em 1973, a crise do petróleo põe um ponto final no ciclo virtuoso<br />
da economia capitalista ocidental, levando os dirigentes das grandes<br />
potências ocidentais a operarem um extraordinário conjunto de mudanças<br />
no regime de acumulação.<br />
24 Cf. . Vale dizer que, anos mais tarde, Lobato<br />
revisaria a sua posição contrária à arte moderna.<br />
25 Cf. Roberto Schwarz apud CoutiNHo (2000, p.47).<br />
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tendo à frente a inglaterra, de margareth tatcher, e os EuA, de Ronald<br />
Reagan, diversos países empreenderiam profundas mudanças<br />
na economia mundial, tais como o abandono da universalidade dos<br />
sistemas de saúde e educacional, tornando-os públicos não-estatais,<br />
isto é, pagos. Subsídios para o transporte foram retirados, e a legislação<br />
foi profundamente reformada, flexibilizando-se conquistas históricas<br />
nas áreas previdenciária, trabalhista e sindical. os sindicatos<br />
dos trabalhadores que ensejaram reações ou foram dobrados pelo<br />
poder policial ou aderiram à nova ordem. Ao conjunto do processo<br />
de reestruturação produtiva no modo de produção capitalista deuse<br />
o nome de neoliberalismo.<br />
Associando investimentos de grande porte na criação de novas<br />
tecnologias de informação e no desenvolvimento dos meios de comunicação,<br />
as mudanças empreendidas tinham em vista oferecer<br />
ao mercado de ações condições plenas para a sua expansão global.<br />
Nesse sentido, em que pese o sucesso do neoliberalismo na década<br />
de 1980 ter imposto pesadas perdas à classe trabalhadora, de outra<br />
forma ele proporcionou globalmente a segmentos das classes médias<br />
urbanas, notadamente àqueles que tinham acesso a níveis superiores<br />
de ensino – como os yuppies (“jovens profissionais urbanos”)<br />
–, ganhos extraordinários de renda no mercado de ações. A cultura<br />
do dinheiro, como sublinha Fredric Jameson (2000), tornar-se-ia o<br />
telos estético do atual estágio capitalista, ocorrendo, por conseguinte,<br />
a contaminação de grande parte da sua estrutura econômica e<br />
política pela subjetividade estética.<br />
Na esfera cultural, tais transformações de base passariam a ser conhecidas<br />
como pós-modernismo. Com o objetivo de delimitar o seu<br />
espectro teórico para fins da nossa análise, devo começar por uma<br />
evidência: o pós-modernismo contém aquilo que aparentemente ele<br />
parece recusar: o próprio modernismo. Portanto, antes de considerá-lo<br />
a expressão de uma contradição, penso que o pós-modernismo<br />
é a expressão de um paroxismo.<br />
Para alguns dos seus defensores, o pós-modernismo representa o<br />
estertor mórbido de todas as narrativas mestras ou matrizes epistemológicas<br />
do arcabouço ético, moral, estético, político etc., dominante<br />
desde fins do século xViii. Já para alguns de seus detratores, o pós-modernismo<br />
representa o apogeu vitorioso da barbárie capitalista. Em vista<br />
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117
disso, em que pesem motivações e referências bastante diferentes, a<br />
perspectiva que os defensores e também os detratores do pós-modernismo<br />
projetam considera como certo que a humanidade (no sentido<br />
clássico atribuído pela razão científica) encontra-se diante do seu próprio<br />
fim sem retorno à vista. Em última análise, o fim da história, ou o<br />
desejo do mesmo.<br />
Esta curiosa convergência dos pensamentos de “direita” e de “esquerda”<br />
é própria do pós-modernismo, coloca para o pensamento<br />
materialista histórico o desafio de superar dialeticamente as antinomias<br />
que estão colocadas, a começar pelo problema da reificação<br />
cultural nas sociedades da abundância de ofertas e do hiperconsumo<br />
de bens culturais.<br />
Para Jameson (1985; 1993; 1996; 2000), a idéia de um pós-modernismo<br />
descolado do permanente conflito entre as forças produtivas e<br />
as relações sociais de produção é impensável. Não obstante, ele nota<br />
que uma aceleração jamais vista do consumo de mercadorias dilatara<br />
imensamente a esfera cultural. Dessa forma, dirá que o pós-modernismo<br />
é tanto a lógica cultural da estrutura produtiva como a sua<br />
expressão ideológica dominante. todavia, Jameson não considera<br />
esta dupla inserção do pós-modernismo como uma ruptura em relação<br />
ao seu referencial cultural precedente, o modernismo. Para ele,<br />
o pós-modernismo tornou-se a lógica cultural do capitalismo tardio<br />
como conseqüência mediata do acúmulo da “urgência desvairada da<br />
economia” pelo “novo” (idem, 1996, p.30) no curso dos ciclos de expansão<br />
(e crise) capitalista por cerca de 40 anos. Ao longo desse período,<br />
a competição travada em torno da produção do “novo”, na qual<br />
o trabalho artístico teve um protagonismo central, levaria o conjunto<br />
da sociedade, sobretudo a pequena burguesia, a reificar-se contínua<br />
e extraordinariamente, impondo microscopicamente sobre o tecido<br />
social suas subjetividades estéticas. Em breves palavras, o consumo<br />
conspícuo de mercadorias embaladas pela “novidade” acabaria estetizando<br />
as relações sociais.<br />
Como expressão ideológica da estrutura produtiva, ou “dominante<br />
cultural” desta última (Jameson, 1996, p.30), ele indicará que o caminho<br />
percorrido para tal inserção deve-se fundamentalmente a algumas ausências,<br />
ou “mortes” ocorridas no âmbito dos embates ideológicos modernistas,<br />
sendo a “morte da arte”, anteriormente mencionada, uma das<br />
118<br />
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examinadas por ele. todavia, para Jameson, a “morte da arte” representa<br />
metaforicamente outra mais importante: a “morte do sujeito” moderno,<br />
autor de um mundo pautado pela razão objetiva, hoje reificado pela<br />
cultura. A isto ele dará o nome de “alívio do pós-moderno” (1996, p.317),<br />
considerando que tal situação confere ao mundo no pós-modernismo<br />
um rosto mais completamente humano do que jamais visto. Como ele<br />
salienta, “resta muito pouco do que possa ser considerado irracional,<br />
no sentido mais antigo de incompreensível” (1996, p. 275).<br />
Podemos agora expor alguns aspectos centrais da presença do<br />
pós-modernismo no meio de arte no brasil.<br />
Entre nós, superadas as desconfianças iniciais, o pós-modernismo<br />
encontrou nos anos inaugurais da década de 1980 um vasto campo<br />
para autopromoções e interesses mercadológicos entre os jornalistas<br />
que mantinham colunas de arte e os agentes do mercado 26 .<br />
Com efeito, o início da década apresentava um promissor crescimento<br />
da produção/acumulação/exposição de obras refletindo o<br />
processo de profissionalização artística que superava o que ocorrera<br />
nas três décadas (1950-1970) anteriores. A despeito disso, a afluência<br />
do grande público por exposições e a demanda pela mercadoria arte<br />
ainda era incipiente. Como diria na ocasião uma conceituada jornalista,<br />
era necessário provocar “um renascimento dentro do caos”<br />
para apagar no interior do sistema de arte algumas ideologias estéticas<br />
modernistas que ofereciam resistência ao surgimento de uma<br />
arte sem preconceito com o mercado. Por outro lado, fazia-se necessário<br />
fecundar o que restara do ambiente devastado para, enfim,<br />
parir aquela que viria a ser a sua mais nova virgem: a “Geração 80”.<br />
outros jornalistas e animadores culturais se associariam ao empreendimento<br />
e, nesse sentido, disseminariam à exaustão a idéia de que<br />
havia uma “geração” que “retornava ao prazer da pintura”, que se<br />
opunha “ao isolacionismo e ao autoritarismo conceitual da geração<br />
precedente”, que, enfim, “reencontravam o prazer e a emoção” 27 . A<br />
partir daí, um numeroso grupo de artistas, muitos dos quais, diga-se<br />
de passagem, cuja produção apresentava e ainda apresenta qualidades<br />
excepcionalmente críticas em relação a todo o esquema articulado,<br />
daria forma a uma tendência grotesca, porém coerente com<br />
26 Cf. REiS, R. R. (2004).<br />
27 idem.<br />
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119
o processo de fetichização da arte-mercadoria, que é a de rotular a<br />
produção como “geração” disso ou daquilo.<br />
Conforme afirmamos no início desta seção, o sistema de arte é o<br />
mantenedor e controlador do capital cultural da classe dominante,<br />
tendo como tarefa primordial identificar, classificar e qualificar um<br />
objeto quanto ao seu valor artístico segundo parâmetros e critérios<br />
teleológicos previamente definidos. o fato de que sob o capitalismo<br />
a mercadoria tenha se expandido ao ponto de colocar em xeque o<br />
sentido e o destino da arte no pós-modernismo, em nada elide o<br />
esforço da classe dominante de manter o controle sobre o meio de<br />
sua produção, muito pelo contrário, até o reforça.<br />
o que ocorre no pós-modernismo no processo de valoração da<br />
arte é de certa maneira semelhante ao que ocorria anteriormente,<br />
apenas de uma forma menos vertical ou hierárquica, justificada<br />
neste texto por aquilo que Jameson denominou de “alívio do<br />
pós-moderno”. Dessa forma, a questão de saber por que algumas e<br />
não outras obras atendem aos parâmetros e critérios adotados pelo<br />
sistema de arte no processo de valoração artística se mantém inalterada,<br />
posto que, como dissemos antes, os elementos adotados na<br />
tarefa prescrita são subjetivos, muito embora alguns deles sugiram<br />
o contrário. isto porque a resposta-padrão à pergunta “por que algumas<br />
e não outras obras” será sempre apresentada envolta num<br />
clima de mistério, exigindo de quem pergunta, não raras vezes, um<br />
“ritual iniciático”.<br />
Por certo que, conclusivamente, no sistema de arte pós-moderno<br />
brasileiro, a tendência de conferir rótulos às gerações faz parte de tal<br />
“ritual”. Algo semelhante à denominação “tribo”, também exaustivamente<br />
utilizada pelos formadores de opinião, para designar tendências<br />
de consumo cultural de jovens.<br />
120<br />
4.4 o SiStEmA DE ARtE E A ARtE-EDuCAÇÃo No bRASiL<br />
o fato de a nossa abordagem até aqui ter priorizado as continuidades<br />
e descontinuidades históricas do meio de arte se deveu, sobretudo,<br />
à necessidade de estabelecer uma relação de materialidade<br />
ou existência concreta entre a arte e a educação, o outro objeto<br />
do nosso presente estudo. é, portanto, com base nas considerações<br />
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que apresentamos que a partir daqui abordaremos o problema do<br />
ensino de arte na escola.<br />
Para a geração de educadores que hoje ultrapassou a casa dos 50<br />
anos, o tema que associa a arte à educação tem sido recorrentemente<br />
objeto de luta política pela afirmação da arte como área de conhecimento<br />
humano no currículo escolar, e, também, concomitantemente,<br />
de disputas hegemônicas entre tendências educacionais<br />
divergentes na condução dessa luta. é verdade que desde meados<br />
do século xix tanto a luta política dos professores de arte como as<br />
disputas hegemônicas em torno de concepções pedagógicas jamais<br />
deixaram de estar na ordem do dia. Contudo, é a partir do fim da<br />
década de 1960 que se registra o início de uma tomada de posição<br />
estrategicamente mais organizada, definida e consistente na busca<br />
de um espaço para a arte dentre as áreas de conhecimento humano<br />
no currículo escolar. A propósito disso, vale notar que é na década<br />
de 1960 que se completa um ciclo de 30 anos, desde a criação das<br />
primeiras universidades no brasil, notadamente a universidade do<br />
brasil (hoje uFRJ) e a universidade de São Paulo (uSP). isso significa<br />
a formação, o amadurecimento e a evolução intelectual de uma<br />
geração de artistas e educadores cujas práticas artísticas e pedagógicas<br />
haviam se modernizado respectivamente, ora em conformidade<br />
com os limites e as contradições do telos estético e pedagógico da<br />
fração burguesa industrial, ora numa posição crítica e progressista<br />
frente a este telos.<br />
Por conseguinte, não me surpreende a posição conformista<br />
assumida pelo PCN-Arte, na exata medida da sua disfarçada pretensão<br />
de legislar sobre o estatuto epistemológico da educação<br />
estética entre nós, com o objetivo de reforçar e legitimar o controle<br />
econômico e ideológico dos meios de produção e circulação<br />
da arte a partir do sistema de arte.<br />
A proposta “novas tendências curriculares em Arte” contida<br />
na edição das diretrizes do mEC refere-se ao terceiro milênio<br />
28 Como todos os documentos oficiais produzidos sob a gestão do então ministro<br />
Paulo Renato de Souza à frente do mEC (1995-2002) e dirigidos diretamente à<br />
escola, a forma da linguagem adotada equilibra-se intencionalmente entre a ingenuidade<br />
e a arrogância, e o conteúdo das propostas é sempre demasiadamente<br />
tendencioso.<br />
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121
como o cenário das grandes transformações culturais (brasil:<br />
mEC/SEF, 1996; 1997; 1998) 28 . Seu corpus teórico busca justificar<br />
a atualidade dos pressupostos conceituais do modelo curricular<br />
baseado fundamentalmente nos conceitos da arte-educação.<br />
Para isso, seus autores fazem uma resumida abordagem<br />
crítica das teorias e das práticas que fundamentaram e embasaram,<br />
no século xx, os movimentos que, de um modo genérico,<br />
lutaram pelo ensino de arte na escola regular. A ausência de<br />
uma explicitação do cenário histórico que, ao fundo, prepara<br />
as condições do processo de “amadurecimento” dos conceitos<br />
da arte-educação, omite os embates entre as posições políticoideológicas<br />
em disputa no campo da arte e o mesmo tipo de<br />
embates no campo do ensino de arte, e induz ao reforço da<br />
idéia de um sistema de arte onipresente.<br />
o problema da ausência de contextualização não seria tão<br />
grave caso os autores pudessem sustentar, do ponto de vista<br />
da história, a afirmação de que a “descaracterização da área por<br />
longo tempo” se deveu ao “consenso pedagógico” formado em<br />
torno do conceito de criatividade jamais definido e a imprecisão<br />
e a aplicação de idéias vagas sobre a função da educação<br />
artística. Embora concordemos pontualmente com a crítica ao<br />
“consenso” e à “imprecisão”, na verdade não consta que na<br />
prática as mudanças sugeridas tenham sido de fato adotadas.<br />
Pois, na medida em que a discussão corrente no contexto da<br />
época não estava dissociada da própria crise experimentada<br />
pelo projeto modernista, dificilmente o caminho teórico proposto<br />
pelos modernistas seria de todo abandonado 29 .<br />
Na visão dos autores dos PCN-Arte, os períodos de emergência<br />
e vigência das lutas dos movimentos de arte-educadores<br />
no brasil é demarcado pelos programas curriculares, seus padrões<br />
e modelos, métodos de ensino, suas técnicas e objetivos,<br />
finalidades e aplicação, excluindo-se de todo modo a análise<br />
da questão do espaço social de legitimação histórica da arte<br />
29 Para reforçar esse argumento, chamamos a atenção para a análise de Jameson<br />
(1996) sobre a ação do capitalismo na esfera cultural, a qual teria engendrado no curso<br />
de meio século o esmaecimento da figura do sujeito-criador.<br />
122<br />
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a partir da transformação das linguagens. A ausência de uma<br />
exposição sobre as condições concretas do aparecimento e desenvolvimento<br />
dos fatos, que articulam e relacionam a trajetória<br />
do ensino de arte com as relações de produção artística nos<br />
termos expostos anteriormente, não apenas subtrai do senso<br />
comum a possibilidade de se esclarecer sobre o que seja o trabalho<br />
de arte e o que ele produz, como obscurece a leitura que<br />
pretendem oferecer sobre o estatuto social da educação e da<br />
arte. Por conseguinte, evidencia-se no documento a visão de<br />
que a práxis artística é um dado natural, reforçando a mistificação<br />
em torno do processo da criação artística, do ato criador,<br />
da figura do gênio 30 .<br />
5. CoNCLuSÃo<br />
A urgente necessidade de a arte existir concretamente no currículo<br />
escolar da educação básica, isto é, na educação infantil,<br />
no ensino fundamental e no ensino médio, se impõe como um<br />
tema central no debate sobre os rumos da educação brasileira na<br />
contemporaneidade. De fato, a despeito de a atual legislação tê-la<br />
incluído dentre as áreas de conhecimento humano a serem trabalhadas<br />
no currículo escolar (lei nº. 9394/96, LDbEN), e do significativo<br />
esforço dos autores dos Parâmetros Curriculares Nacionais<br />
– Arte (PCN-Arte) para caracterizá-la pedagogicamente, a arte no<br />
currículo escolar continua sendo, na maior parte dos casos, uma<br />
peça de ficção.<br />
Por certo que o tema não pode prescindir da luta política permanente<br />
dos educadores pela efetiva implantação do ensino de arte nas<br />
escolas. Luta, vale dizer, talvez até mais acirrada do que a que se travou<br />
por décadas até o reconhecimento da área Arte pela LDbEN, em 1996.<br />
30 Exemplo disso pode ser encontrado na análise que os autores fazem da lei nº<br />
5692/71, que introduziu a arte no currículo escolar como uma “atividade educativa<br />
e não disciplina” (brasil/mEC, 1998, p.26-27). ora, ainda que concordemos que isso<br />
tenha representado um paradoxo pelos vários argumentos apresentados, é notável<br />
que todos eles limitam-se a analisar a situação do ensino de arte. Como se esta não<br />
tivesse relação com o contexto histórico em que se encontrava o meio de arte, o sistema<br />
que o controlava, os interesses da burguesia etc.<br />
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123
Entretanto, da mesma forma, acredito que a luta comum não deve<br />
elidir o confronto interno, interpares. ou seja, os educadores não<br />
podem furtar-se de debater publicamente suas concepções de arte e<br />
de educação, desvelando suas diferenças e divergências a partir dos<br />
respectivos referenciais teóricos e métodos de análise da realidade.<br />
Se a grande virtude do PCN-Arte é reconhecer a arte como<br />
um campo específico de produção e organização do conhecimento,<br />
não menos certo é que o seu eixo ordenador apresenta<br />
a arte como parte de um capital cultural acumulado cujo valor<br />
está previamente dado. Dessa forma, de acordo com a visão oficial,<br />
o papel histórico da arte na vida social do país pressupõe<br />
e legitima, como nota Giroux, “formas particulares de história,<br />
comunidade e autoridade” (1999, p. 268). tal percepção leva-nos<br />
a crer que o horizonte ideológico do PCN-Arte, na medida dos<br />
vínculos que mantém com a forma de controle exercida pelo sistema<br />
de arte, expressa uma orientação conservadora sobre os<br />
propósitos da educação estética no processo de formação do<br />
imaginário social e uma orientação reacionária quanto à idéia de<br />
cidadania como uma totalidade.<br />
o conjunto de sintomas apresentados no PCN-Arte gera expectativa<br />
de mudança, de cujo tipo guarda inúmeras semelhanças<br />
com a mudança que tanto pode servir para “despertar falsas<br />
esperanças e crença na transformação automática da sociedade”<br />
como para “vitalizar o conservantismo” (Fernandes, 1986, pp.12 e<br />
49). Neste caso, o PCN-Arte tem como objetivo estratégico fazer<br />
triunfar o homo aestheticus que nasce com a ideologia da pósmodernidade<br />
(maffesoli, 1996). mas há ainda uma outra motivação,<br />
que é alimentar a imagem que a intelligentzia faz do país e<br />
de si mesma, e origina-se no sentimento de “decadência” que ela<br />
nutre, quer em relação ao povo, quer em relação à velha oligarquia<br />
política. Dessa forma, muito embora o “mudancismo” (Fernandes,<br />
1986) sugerido seja apresentado como uma estratégia<br />
para dirimir o “atraso” de décadas, em verdade revelam-se objetivos<br />
inconfessáveis da intelligentzia, seja para sublimar a pressão<br />
que esta sente do sofrimento com a “decadência” (Freud,<br />
1997), seja para conquistar posições de poder (Fernandes, 1986).<br />
Como se observa, ainda aqui prevalece o lampedusismo, só que<br />
124<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 100-127 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007
nesse caso sob a gestão de uma elite intelectual. E é essa visão<br />
empobrecedora do que seria a “cultura cívica” em nosso país<br />
que percebo dominante nas concepções pedagógicas de arte,<br />
de conhecimento artístico, de criação, de cultura e de educação<br />
estética nas diretrizes curriculares em questão.<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 100-127 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007<br />
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SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 100-127 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007<br />
127
SobRE o RELAtiViSmo<br />
EStétiCo<br />
PóS-moDERNo E SEu<br />
imPACto ExtRA-EStétiCo<br />
Walzi C. S. da Silva<br />
128<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 128-146 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007
o presente artigo discute o relativismo estético sob as perspectivas do<br />
pós-modernismo, em especial em suas vertentes desconstrutivistas e relacionadas<br />
aos chamados programas fortes em filosofia da mente e ciência<br />
da cognição. São primeiramente apresentados preliminares de ordem histórico-filosófica<br />
– os antecedentes do relativismo estético. Em seguida, são<br />
discutidos os pressupostos dos programas desconstrutivistas, mostrando-se<br />
possibilidades e limitações. Finalmente, são apresentados os pilares dos programas<br />
fortes, em sua perspectiva causalista, externalista, na construção da<br />
experiência estética. A discussão encaminha-se finalmente a uma consideração<br />
do impacto das correntes relativistas sobre a perspectiva do pós-modernismo,<br />
suas aplicações em teoria do belo e a interdisciplinaridade em um<br />
influxo estético factual.<br />
this paper preliminarily addresses relativism through aesthetics. it aims at<br />
evaluating the bearings of a desconstructivist perspective on a Postmodernist<br />
appraisal of the so called strong programmes in philosophy of mind, the<br />
philosophical accessment of aesthesis and the social construction of art.<br />
Starting from relativism historical tenets, the exposition proceeds to a<br />
general presentation of desconstructivism, anti-foundationism in aesthetics<br />
and the merging of these two perspectives into the strong programmes.<br />
Developments try to cast some lights in the limits and forefront promises<br />
of these perspectives. in the article tail, the impact of relativism on<br />
postmodernism is considered; a sketch of relativistic approaches and<br />
applications on aesthetical values is cast. Constructivist negotiation is<br />
evaluated as a pathway to a new aesthetics as an interdisciplinary field.<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 128-146 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007<br />
129
Existe o belo absoluto? Existe o mundo real onde habita o belo<br />
absoluto? Existimos nós como consciências independentes aptas a<br />
experienciar o belo absoluto? o que nos traz o belo absoluto — o<br />
mundo real — é o que a nós parece? Será a linguagem natural um<br />
bom guia na trafegação entre nossa percepção, o belo e o mundo?<br />
temos nós a competência de operar mecanismos de simbolização<br />
mais poderosos que os da linguagem? Podemos criar pontes de<br />
significado entre mundos simbólicos que à primeira vista seriam<br />
tomados como distantes — ao exemplo: pode um fato político ser<br />
considerado um dado estético? Pode um evento histórico ser interpretado<br />
como uma obra de arte? Pode um símbolo tomar o lugar<br />
ontológico do que simboliza? Há limites para um relativismo estético/ontológico<br />
radical?<br />
o presente artigo aborda estas questões, em torno das quais discute<br />
a seguinte tese: nas sociedades onde a mídia exerce presença,<br />
penetração e impacto acentuados, realidades podem ser construídas<br />
e desconstruídas, fora do eixo de uma determinação causal histórico-política,<br />
um processo de construção e desconstrução bastante<br />
similar ao da gênese ontológica de uma obra de arte. trata-se de<br />
um artigo de intenção informativa — é uma atualização, um repositório<br />
de referência para o entendimento do relativismo estético,<br />
contendo, no entanto, uma discussão preliminar de teses polêmicas<br />
de fronteira — como a tese de Jean baudrillard de estetização do<br />
fato histórico-político com amplas implicações na ontologia de objetos<br />
sociais e no papel da midia como desconstrutora/construtora de<br />
uma pretensa realidade histórico-política.<br />
130<br />
1. ANtECEDENtES Do RELAtiViSmo EStétiCo<br />
Consideram-se relativistas todas as teses que postulam a dependência<br />
de um campo conceitual a algo — este algo constituindo-se<br />
no parâmetro em face do qual o campo conceitual é relativo. Em<br />
suas formas históricas inaugurais, o relativismo assumiu uma declinação<br />
cognitiva — aplicando-se ao conhecimento e aos processos<br />
individuais de crença — a partir da ação pragmática dos sofistas, sumarizada<br />
em duas exortações de Protágoras, aqui mencionadas sob<br />
licença literária mais livre: “Nada existe, se existisse não poderia ser<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 128-146 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007
conhecido, se fosse conhecido não poderia ser comunicado” e “o<br />
homem é a medida de todas as coisas, das que são enquanto são e<br />
das que não são enquanto não são”. o relativismo cognitivo radical<br />
protagoreano, em que pese a acidentalidade e falta de contexto dos<br />
fragmentos dos pré-socráticos, coloca o homem, o indivíduo como<br />
parâmetro de variação — à época confluindo-se no homem dois<br />
componentes que mais tarde seriam destacados para originar dois<br />
diferentes tipos de relativismo: o componente subjetivo de ordem<br />
psicológica e o componente inter-subjetivo de ordem cultural. Já em<br />
sua forma protagoreana, o relativismo foi — se não em teoria mas em<br />
prática — estendido ao domínio da moral (foi conhecida a amoralidade<br />
dos Sofistas) e teve mencionada sua aplicação ao campo da arte<br />
“Dê-me as palavras de uma comédia e com elas escreverei uma tragédia”,<br />
mais uma exortação sofística com impacto em teoria da arte.<br />
Em suas vertentes amadurecidas a partir do século xx, o relativismo<br />
se triplica em cognitivo, moral e estético, e suas modalidades se<br />
bifurcam entre o tipo subjetivista (em que elementos da psicologia<br />
individual são considerados parâmetros de relatividade) e culturalista<br />
(em que elementos inter-subjetivos da cultura são considerados<br />
parâmetros de relatividade). os defensores mais robustos do relativismo<br />
cognitivo do século xx são, entre outros, Paul Feyerabend<br />
(Feyerabend 1988) e thomas Kuhn (Kuhn 1970). A ênfase do relativismo<br />
de Feyerabend é individual: anything goes (vale tudo) é uma<br />
exortação metodológica pela liberdade individual de construir visões<br />
de mundo, engajar-se em visões de mundo e pelo mais polêmico<br />
movimento: ter a liberdade, inerente à condição humana, de variar<br />
visões de mundo; pelo exercício da especulação cognitiva, o agente<br />
seria livre para a qualquer momento mudar as suas configurações de<br />
adoção de crença. Não no sentido de alterar uma crença em particular<br />
dentro de um sistema global deixado mais ou menos intocado,<br />
mas sim no sentido de descartar um inteiro sistema global e adotar<br />
outro, sem nenhuma limitação sobre a freqüência e abrangência<br />
destas alterações de estado cognitivo. thomas Kuhn, em seu turno,<br />
é um relativista histórico — a noção de um paradigma segundo Kuhn<br />
equivale-se à de uma visão-de-mundo cristalizada pela prática; um<br />
exemplo ou instância (exemplar) do que seja cognição, do que seja<br />
ciência, conhecer, do que seja método e de quais os problemas que<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 128-146 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007<br />
131
devem ser objeto de investigação, bem como o modo pelo qual devam<br />
ser investigados (Kuhn 1970).<br />
As teses do relativismo, contudo, rapidamente se expandiram sob<br />
novas formas a partir das décadas de 60 a 80 nos cenários filosóficos<br />
americano e europeu. As formas que aqui nos interessam mais proximamente<br />
envolvem uma aplicação do relativismo ao domínio da<br />
estética: existe o belo absoluto? A resposta é negativa. A noção de<br />
belo é construída e pode ser desconstruída e construída por meio<br />
de atos psicológicos ou tenazes culturais. trata-se de uma sutilíssima<br />
variação na concepção do belo: não é que gostemos da obra de arte<br />
porque seja ela belíssima, mas antes ela é belíssima porque gostamos<br />
dela. Quem toma contato com a obra de arte é um agente—constrói<br />
ativamente o evento artístico da contemplação ou contato com o<br />
belo; não é um paciente sobre o qual um repositório de “beleza”<br />
objetiva agiria produzindo o gozo do belo. o importante pronunciamento<br />
metodológico subjacente à idéia de que se inverte o eixo<br />
causal — não é o belo que emula a consciência, mas a consciência é<br />
que constrói o belo, que em feedback retorna a eulalia (estado geral<br />
de prazer e realização) da contemplação — envolve a possibilidade<br />
de desconstrução da beleza. o que o homem ou a cultura constrói<br />
pode certamente ser pelo homem e pela cultura desconstruído.<br />
o descontrutivismo talvez seja a forma mais ousada de relativismo,<br />
surgida e cultuada na academia filosófica sobretudo a partir<br />
da década de 80. Com um forte componente em teoria da arte,<br />
o desconstrutivismo propõe a competência do agente cognitivo<br />
para proceder a engenharia reversa do processo de constituição<br />
de uma realidade, seja via uma compulsão psicológica, seja via um<br />
pacto cultural. Que possamos abrir os fundamentos da psicologia<br />
e cultura para transitar livremente no encarte e no descarte de diferentes<br />
realidades estéticas, é uma tese polêmica. o argumento<br />
da mosca na garrafa é uma construção pictórica que negaria esta<br />
possibilidade: assim como uma mosca não tem aptidão cognitiva<br />
para descobrir o gargalo que a conduziria para fora de uma garrafa<br />
aberta, nós, agentes cognitivos em imersão em um esquema<br />
conceitual cultural, não somos aptos a descobrir o caminho que<br />
nos leve para fora da cultura. Não é possivel a ninguém sair dos tamancos<br />
de sua própria cultura. Há também o equivalente cognitivo<br />
132<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 128-146 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007
desta tese: não temos uma neurofisiologia que nos permita transitar<br />
entre diferentes formas de vida — lembrando o conhecido aforismo<br />
de Wittgenstein: “What has to be accepted — the given is,<br />
so one could say, forms of life” — livremente traduzido como: “o<br />
que tem que ser aceito, o dado, poderíamos dizer que são formas<br />
de vida” (Wittgenstein 1958). Neste sentido, não há trânsito cognitivo<br />
entre diversos sistemas simbólicos, restrição que também se<br />
aplica a sistemas estéticos: embora o belo não seja absoluto, cada<br />
um de nós se encontra de certo modo capturado, em virtude de<br />
imperativos psicológicos ou culturais, por um sistema codificador<br />
do belo. Quando estranhamos escalas musicais distintas da nossa<br />
diatônica, quando não conseguimos realizar a beleza de uma<br />
obra de arte de vanguarda, estamos limitados por esta restrição.<br />
é também conhecida como tese da incomensurabilidade ou como<br />
a posição denominada incomensurabilismo: não há diálogo, não<br />
há trocas possíveis entre distintos esquemas conceituais. Quando<br />
agentes ou pacientes cognitivos/estéticos estão imersos em diferentes<br />
culturas ou em diferentes rationales ou em diferentes visões<br />
de mundo, não podem comunicar-se porque suas perspectivas<br />
são intradutíveis. Consoantemente à tese incomensurabilista, um<br />
agente cognitivo individual não pode submeter-se a uma gênese<br />
de sucessão de diferentes esquemas conceituais, quando estes esquemas<br />
são incomensuráveis entre si. Só há mudança dentro de<br />
uma família de esquemas conceituais não-incomensuráveis, família<br />
que constrói o horizonte cognitivo — identificado mesmo com o<br />
horizonte ontológico — de cada agente nela imerso.<br />
No fim da década de 60, em um movimento que se prolongou até a<br />
década de 80 do século passado, contudo, vieram à tona certos movimentos<br />
intelectuais, da tradição pós-moderna, que vigorosamente<br />
negam a restrição da incomensurabilidade. Estes movimentos são<br />
o interacionismo Simbólico (originado como um epifenômeno da<br />
psicologia social de George Herbert mead — (mead s/d) e sistematizado<br />
por Herbert blummer (blummer 1969)) e os Programas Fortes<br />
em antropologia do conhecimento (principalmente como em barry<br />
barnes (barnes 1967) e David bloor (bloor 1976). A tese do interacionismo<br />
simbólico sumariza-se como:<br />
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133
134<br />
os agentes sociais não agem em função de realidades objetivas,<br />
mas sim em função de atribuições simbólicas que de<br />
modo tácito eles mesmos produzem face a “tokens” capazes<br />
de exercer o papel de símbolos.<br />
um token é definido como portador de significado — meaning bearer.<br />
o manifesto metodológico global do interacionismo simbólico<br />
envolve afirmar que, para um agente social, tudo é um token. Assim<br />
como Kant nos nega o acesso aos noumena — a realidade em si, a<br />
coisa-em-si e apenas nos concede o acesso aos fenômenos — a realidade<br />
como embalada por nossa estrutura de categorias apriori fundadas<br />
nas condições de possibilidade do nosso conhecimento — o<br />
interacionismo simbólico nos nega igualmente o acesso a qualquer<br />
coisa que não seja um objeto construído numa relação de simbolização<br />
entre o agente perceptual e o que se percebe.<br />
A tese do interacionismo simbólico pode ser inteiramente transcrita<br />
em termos cognitivos, e, destes termos cognitivos, pode ser inteiramente<br />
parafraseada em termos estéticos. De um ponto de vista cognitivo, o<br />
agente interacionista só perceberia o que constrói como seu eixo de<br />
significados. Realities are meanings — afirmam: realidades (sim, no plural)<br />
são os significados. Do mesmo modo, quando a atividade cognitiva<br />
é uma atividade estética, o belo passa a ser considerado não como um<br />
valor fundado em uma ordem absoluta, mas sim um valor construído a<br />
partir de uma ação simbolizadora tácita do agente. interessante aspecto<br />
é — para esta modalidade de construtivismo estético, o momento de<br />
construção do belo por parte da interação cognitiva de ordem simbólica<br />
requer uma desconstrução prévia da noção de belo absoluto. ou<br />
requer ao menos a admissão de um pressuposto desconstrutivista — o<br />
que nos leva ao segundo grupo de teorias relativistas cognitivas e estéticas,<br />
que é o derivado dos programas fortes — sobretudo em psicologia<br />
e antropologia do conhecimento.<br />
o desconstrutivismo é o manifesto hermenêutico do pós-modernismo.<br />
o que chamamos de “realidade” está aí para ser desmantelado<br />
por processos analíticos masterizados pelo homem. Pelo<br />
homem entendido como agente cognitivo. o termo agente aqui<br />
não é uma escolha puramente convencional de palavras (o pósmodernismo<br />
em certo sentido atende à exortação de Karl Popper:<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 128-146 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007
“Never quarrel about words”— jamais duelar somente sobre palavras.<br />
Agente opõe-se a paciente. uma teoria estética que supõe o<br />
agente estético pode ser denominada ativista, em oposição à estética<br />
derivada, por exemplo, do neoplatonismo, em que o esteta é<br />
um paciente sobre o qual se imprime em tábula rasa, um belo absoluto:<br />
o belo do noumenom. Quando, por exemplo, um esteta como<br />
Guy Debord afirma que a nossa sociedade se constitui de modo<br />
negociado como uma matriz de espetáculo (Debord 1967) — uma<br />
tese próxima à inspiração do filme americano matrix, no qual a realidade<br />
como nos aparenta pode ser essencialmente diferente do<br />
construto que ela é —, temos a trabalho a tese relativista estética<br />
pós-moderna. matrix: diante dos nossos olhos mas não o vemos,<br />
diante de nossos sentidos mas não a sentimos senão mediante um<br />
processo: o processo de desconstrução. No caso de Debord, a mídia<br />
é o agente cognitivo, a enzima ativista de um processo de simbolização<br />
que produz uma realidade subjacente à aparência, à qual nós<br />
podemos em noesis ascender se tivermos mestria de desconstrução/reconstrução.<br />
Note-se o extremo realismo que na maior parte<br />
das vezes reveste os atuais jogos de internet, programas televisivos<br />
e jogos computacionais de indução/sobreposição de realidades na<br />
linha dos reality-shows, exemplos como os do sistema Second Life<br />
na midia televisiva e na internet mundial. São exemplos ativos da<br />
capacidade desconstrucionista/reconstrucionista da qual a mídia e<br />
demais agentes cognitivos estéticos são artífices.<br />
Neste segmento da tradição pós-moderna, a noesis não é contudo<br />
a platônica: em Platão, ao sábio que contemplou a luz não resta<br />
mais a alternativa das trevas. o sábio não pode proceder a dialética<br />
descendente ao mundo da aparência, uma vez tenha procedido a<br />
dialética ascedente ao mundo da essência. Já no desconstrutivismo<br />
pós-moderno, temos antes um gestalt-switch do tipo duckrabbit:<br />
Podemos converter/desconverter; acionar/desacionar a percepção<br />
sobre o objeto do gestalt-switch ou reversão gestáltica. o eixo da<br />
construção simbólica estética se alterna então com o da desconstru-<br />
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135
ção em um looping, um contínuo que cabe ao hermeneuta pós-moderno<br />
surpreender, decifrar e em certo sentido, desmascarar. o que<br />
seja a realidade dependerá essencialmente do momento em que<br />
congelarmos o pêndulo da reconstrução/desconstrução. Este seria<br />
um impacto extra-estético de uma teoria ativista estética de ordem<br />
relativista. Exatamente o instrumento metodológico de intervenção<br />
que pensadores como Debord utilizam para introduzirem até contrafactuais<br />
histórico-políticos e a imputação de uma realidade que<br />
difiram tanto da percepção do bom senso quanto a matrix diferia<br />
da realidade — o software do filme de mesmo nome, que simula a<br />
nossa inteira realidade sobrepondo-a a uma outra atroz que difere<br />
da percepção do senso comum. Assim, estão lançadas as bases do<br />
relativismo estético, com amplas conseqüências no âmbito das ciências<br />
do homem—o que veremos a seguir.<br />
136<br />
2. RELAtiViSmo EStétiCo E PRoGRAmAS FoRtES<br />
os Programas Fortes em sociologia, história, antropologia e psicologia<br />
do conhecimento têm sua origem remota na sociologia do<br />
conhecimento de Karl mannheim (mannheim 1952). Sua gênese recente<br />
procede a partir de um grupo de filósofos de inclinação naturalista<br />
conhecido como A Escola de Edinburgo (bloor 1976, barnes<br />
1967). A principal tese dos adeptos dos programas fortes é uma negativa<br />
de que se possam construir modelos de racionalidade puramente<br />
internalistas—ou seja, modelos que expliquem a gênese e a<br />
fundamentação do conhecimento e da cultura somente através de<br />
valores absolutos, justificados, internos ao modelo. Em oposição a<br />
estes, os adeptos dos programas fortes propõem a adoção de políticas<br />
externalistas—ou seja, justificação e reconstrução da gênese<br />
e fundamentação do conhecimento e da cultura levando em conta<br />
nexos causais, empíricos, externos ao modelo de racionalidade. Nexos<br />
do domínio de fato e medida, em oposição a nexos baseados<br />
em valores absolutos. Para os adeptos dos programas fortes, não<br />
há nenhuma indignidade em se propor que os valores e processos<br />
cognitivos que a tradição filosófica clássica considera intocados pelo<br />
tempo, pela cultura, pela adversidade factual, sejam antes sujeitos a<br />
estas ordens, contingentes portanto e não absolutos.<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 128-146 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007
As implicações desta posição sobre uma teoria estética de ordem<br />
relativista são imediatas. Não há o belo como essência invariante,<br />
imune ao tempo, à variação sincrônica e diacrônica dos fatos. mesmo<br />
aqueles valores aparentemente mais fixados pelas tradições por<br />
exemplo artísticas — como, digamos, as escalas harmônicas/diatônicas<br />
da música ocidental — podem ser objeto de variação de origem<br />
cultural e/ou psicológica. Nos programas fortes, admite-se a<br />
existência de um vetor causal que leva da cultura e da psicologia<br />
para a determinação de um eixo do que seja belo. o próximo passo<br />
é determinar qual é a extensão ontológica da construção estética.<br />
Para os relativistas estéticos radicais, uma inteira realidade pode ser<br />
construída como um processo de picturação (trata-se aqui de um<br />
neologismo para picturing/imagery) de ordem artística. Esta tese tem<br />
uma contraparte de ordem culturalista, que resulta em correntes de<br />
antropologia e sociologia da cultura.<br />
Estrito senso, o que chamamos de realidade? Para os relativistas estéticos<br />
radicais, a realidade é aquela imagem, dentre as picturações<br />
possíveis, que achamos bela. Aquela que apreciamos, que gostamos.<br />
observar aqui uma sutil inversão gestáltica: não se trata de afirmar<br />
que gostamos do belo porque é belo, mas sim afirmar que o que é<br />
belo, é belo porque dele gostamos. Por que a escala diatônica nos<br />
toca ao coração ocidental? Porque gostamos dela — e não o contrário.<br />
Por que a escala da cítara indiana nos causa a nós, ocidentais,<br />
espécie? Porque não estamos afinados para ela. Nossa rede neural<br />
não está wired (cabeada) para este modelo de beleza — mas ele é um<br />
modelo possivel, dentre tantos de inúmeros mundos possíveis. temos<br />
uma competência inata para apreender rapidamente o mundo<br />
em que nos encontramos e excluir os demais mundos possíveis. A<br />
partir deste processo de seleção, o mundo possível que escolhemos<br />
se confunde com nossa realidade. Eis a quintessência do pós-modernismo<br />
sob inspiração dos programas fortes: o eixo estético sobrepõese<br />
ao eixo ontológico. A construção da realidade é um epifenômeno<br />
da construção da beleza. A cognição é a forja da substância. ora se o<br />
relativismo estético radical assim compreende o eixo ontológico, digamos<br />
dos objetos físicos, no espirito de uma ontologia relativista, é<br />
imediata e muito mais fácil, ipso facto, a passagem para o relativismo<br />
ontológico sobre o objeto das ciências do homem.<br />
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137
é possível que esta passagem tenha sua origem na inversão relativista<br />
do dictum: “Há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe<br />
nossa vã inteligência.” Para uma ontologia relativista baseada no<br />
primado da cognição estética sobre a constituição da ordem existente,<br />
valeria antes: “Há menos coisas entre o céu e a terra do que<br />
supõe nossa vã inteligência.” Esta tirada foi comum entre os lógicos<br />
do início do século xx, quando descobriram a fecundidade das lógicas<br />
não-clássicas gerando ontologias não-clássicas, inconsistentes,<br />
anti-simétricas, paraconsistentes. Coincidiu com o boom da física<br />
quântica, do principio da incerteza; no âmbito das ciências formais,<br />
coincidiu com os teoremas limitadores do formalismo e da profusão<br />
de geometrias não-clássicas e diferenciais. Dada a licença estética<br />
desconstrutivista, o eixo dos fenômenos sociais, psicológicos, culturais,<br />
passa a ser constituído mediante esta licença.<br />
Neste sentido é que se pode dizer que os gestores das trocas simbólicas<br />
nas sociedades industriais contemporâneas são em última<br />
instância os artífices de nossas realidades (aqui cabe sim o plural).<br />
Neste sentido, as diversas formas de mídia imperam neste ofício de<br />
nos servir de bandeja—mas sub-repticiamente—nosso senso de real.<br />
Que parte de nós sobrevive incólume e consegue se realizar ausente<br />
das construções culturais de uma sociedade onde a mídia prepondera?<br />
Há o zumbi cognitivo que consegue experimentar somente a<br />
si mesmo e reconstruir uma ordem solipsista existente, à ausência<br />
do contexto cultural? Para a maior parte das sociedades industriais<br />
contemporâneas, a resposta a esta pergunta é contundentemente<br />
negativa. A antropologia filosófica clássica nos definiu os homens e<br />
mulheres como racionais e gregários. o relativismo estético radical<br />
desconstrutivista nos define como o resultado do belo do momento.<br />
Como o resultado da interação simbólica vertiginosa e constante da<br />
mídia.<br />
Atribui-se a Sócrates o dito: “A educação é o apurar de uma chama,<br />
não o preenchimento de um vaso.” muito do processo de constituição<br />
ontológica de nossas realidades é realizado mediante a paidéia—<br />
educação no sentido grego de ascensão à humanidade. o relativismo<br />
estético radical estende a noção de educação, conferindo-lhe contingência<br />
máxima: não é um processo limitado à escola formal, mas sim<br />
um processo em constante fluxo pela imersão cultural em uma so-<br />
138<br />
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ciedade midializada. A mídia apura a chama, não preenche nenhum<br />
vaso com uma ordem ontológica absoluta. Esta é uma das aplicações<br />
mais profícuas do relativismo estético sob a perspectiva dos programas<br />
fortes de ordem cognitivista e culturalista.<br />
3. AtiViSmo E iNtERVENCioNiSmo CoGNitiVo: QuEStõES GERADoRAS<br />
temos agora a base necessária para abordarmos, na perspectiva<br />
sob estudo no presente artigo, as questões básicas que lhe foram<br />
geradoras. Existe o belo absoluto?<br />
— Não.<br />
Existe o mundo real onde habita o belo absoluto?<br />
— Não.<br />
Existimos nós como consciências independentes aptas a experienciar<br />
o belo absoluto?<br />
— Sob os pressupostos do relativismo estético radical, nós somos<br />
consciências ativas a construir o que se toma por absoluto.<br />
o que nos traz o belo absoluto — o mundo real — é o que a nós<br />
parece?<br />
— Nunca saberemos e não precisamos saber. Não sabê-lo e saber<br />
que não o sabemos concede-nos enorme liberdade e poder.<br />
Será a linguagem natural um bom guia na trafegação entre nossa<br />
percepção, o belo e o mundo? temos nós a competência de operar<br />
mecanismos de simbolização mais poderosos que os da linguagem?<br />
— As linguagens naturais são um dos mais fortes instrumentos de<br />
intervenção. Fazemos coisas com palavras. mas não é o único; toda<br />
outra forma de linguagem serviria de instrumento de intervenção<br />
— algumas formas de linguagem com capacidade simbólica mais extensa<br />
que a de uma linguagem natural. A obra de arte — terá maior<br />
poder expressivo para a constituição de uma ontologia relativizada;<br />
temos sim o poder de operar instrumentos simbolizadores mais fortes<br />
do que os da linguagem natural.<br />
Podemos criar pontes de significado entre mundos simbólicos que<br />
à primeira vista seriam tomados como distantes — ao exemplo: pode<br />
um fato político ser considerado um dado estético? Pode um evento<br />
histórico ser interpretado como uma obra de arte? Pode um símbolo<br />
tomar o lugar ontológico do que simboliza?<br />
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— Sim três vezes, aqui. Chegamos então à mais ousada provocação<br />
metodológica do relativismo estético radical pós-moderno. é<br />
possivel, sim, considerar mesmo fatos históricos ou políticos considerados<br />
duros, objetivos e objetais (hard facts) como na realidade<br />
negociados e construídos (artifacts). Arte-fatos, se o trocadilho cabe.<br />
A licença libertária do relativismo estético pós-moderno é: podemos<br />
questionar toda ordem factual histórica e política que nos seja apresentada<br />
e imputá-la o caráter de uma particular interpretação/representação,<br />
de ordem não absoluta. Podemos também nos considerar<br />
especulativamente libertos para oferecer construções alternativas.<br />
Neste sentido, não é absurda a presença de uma corrente interpretativa<br />
de dados da mídia como a que afirma não ter exatamente havido,<br />
como descrito, a conquista da Lua em 1969 (internet 1). ou a interessante<br />
recaracterização do streamming da mídia sobre a Guerra do<br />
iraque, que leva baudrillard a propor que, sob a ótica correta, para o<br />
homem médio não houve uma Guerra do iraque exatamente como<br />
noticiada por força do próprio modo em que foi noticiada pela mídia.<br />
ou a conhecida tese do relativismo legal: não há fatos jurídicos, tudo<br />
pode ser sujeito a interpretação. A realidade é negociada. o belo é<br />
negociado. o belo é a realidade, e a realidade é o belo. Nesta perspectiva,<br />
o agente cognitivo — que neste caso é o agente estético<br />
— adquire atividade máxima, real capacidade de intervir na ordem<br />
ontológica e costurar o ser, como o apurar socrático de uma chama.<br />
um dos eixos mais ousados e profícuos do relativismo estético<br />
pós-moderno é exatamente esta liberdade especulativa concedida<br />
ao agente cognitivo, uma liberdade semelhante à licença artística.<br />
Este impulso pode ter sido determinante das principais revoluções<br />
do século xx: do modernismo brasileiro aos beatniks; da liberdade<br />
quântica de Viena da virada do século ao orientalismo hippie — e<br />
explicam-se as confluências de águas de extrema diversidade que de<br />
certo modo populam a imagery das sociedades industriais do ocidente.<br />
Não só Nova York merece a alcunha de melting pot — amálgama<br />
de variedades — mas a vida diária do homem comum, por mais<br />
plana que pareça, também é assim. Nós somos bombardeados diariamente<br />
por uma extrema combinação de diferenças. A mídia das<br />
mídias — a internet — nos mantém em contato com extrema variância,<br />
e mesmo o mais estático dos pacientes cognitivos acaba premido<br />
140<br />
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a tomar suas próprias decisões e construir ativamente seu universo<br />
simbólico de referência. Que ele considerará, antes de tudo, belo. E<br />
que a partir desta beleza atribuída, constrói-se e negocia-se o eixo<br />
de uma realidade.<br />
o relativismo estético não requer que o construtor da realidade<br />
seja um indivíduo solipsista. A construção mais ousada será aquela<br />
compartilhada socialmente, culturalmente, historicamente. o agente<br />
interventivo poderá ser um agente grupal, um agente comunitário,<br />
um millieux simbólico. o resultado será a diversidade — fauna e<br />
flora simbólicas distribuídas no tecido urbano com a mesma diversidade<br />
da selva amazônica. o convívio de distintas realidades é talvez<br />
um dos significados da democracia simbólica: os diversos tecelões<br />
de diversas ordens ontológicas podem conviver. A abordagem é<br />
compatibilista. o que nos leva a uma questão final: há limites para<br />
um relativismo estético/ontológico radical?<br />
4. LimitES: PARACoNSiStêNCiA Do RELAtiViSmo EStétiCo<br />
PóS-moDERNo<br />
o que em geral amedronta nas propostas relativistas mais radicais<br />
é a perspectiva de uma permissividade sem limites. uma licença libertária<br />
para a interpretação sem constrangimentos. Contudo, não<br />
se pode afirmar que a existência de uma licença libertária, de cunho<br />
artístico, na constituição do belo e com ele na determinação de um<br />
eixo ontológico, resulte em trivialidade cognitiva, lógica ou moral.<br />
Fixar limites neste caso é importante para resgatar a fecundidade da<br />
perspectiva. Para tanto, precisamos mencionar a noção de paraconsistência,<br />
que tem sua origem na lógica proposicional. tem aplicações<br />
em quaisquer outros sistemas de normas e valores.<br />
o imaginário clássico sobre o lógico caracteriza-o como um agente<br />
que tenha horror à contradição. No entanto, os teoremas limitadores<br />
do formalismo demonstraram no meio do século passado que não<br />
se demonstram a um mesmo tempo a completude e a consistência<br />
de um sistema lógico: entendendo-se por completude a propriedade<br />
metalógica de um sistema ser capaz de derivar, a partir de seus<br />
axiomas e pela aplicação de suas regras de inferência, todos os seus<br />
teoremas, e como consistência a propriedade de não ser derivável no<br />
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sistema nenhuma contradição. os teoremas limitadores em última<br />
instância afirmam que ou bem demonstramos a consistência (e empobrecemos<br />
o sistema de tal modo que tenhamos que abrir mão da<br />
completude) ou bem demonstramos a completude (e enriquecemos<br />
o sistema a ponto de ele necessariamente nos permitir a derivação<br />
de contradições). o que há de errado com uma contradição? é o fato<br />
de, se admitirmos uma contradição em um sistema lógico clássico,<br />
podermos dela derivar qualquer coisa. o sistema se tornaria supercompleto<br />
ou trivial: ou seja, toda sentença bem-formada do sistema<br />
seria um teorema; poderíamos nele derivar qualquer proposição. os<br />
sistemas triviais costumam ser destituídos de interesse epistêmico.<br />
A trivialidade em lógica pode ser transcrita para outros sistemas de<br />
normas: em teoria da moral, um sistema moralmente trivial é um sistema<br />
dentro do qual tudo é permitido, nada é proibido; em heurística,<br />
tudo é problema e tudo é solução; em hermenêutica, todo ato<br />
interpretativo é correto; em estética, finalmente: tudo é belo e tudo<br />
é feio; em metodologia, anything goes (tudo funciona). A trivialidade<br />
realmente seria uma ameaça e costuma ser considerada o esqueleto<br />
no armário de toda proposta relativista. Contudo, o antídoto para<br />
esta crítica que aparentemente exporia o flanco do relativismo estético<br />
pós-moderno tem sua origem também na lógica formal.<br />
Chamamos um sistema lógico de paraconsistente quando satisfaz<br />
duas propriedades: (a) podemos derivar nele uma contradição, mas<br />
(b) podemos provar dentro do sistema que há proposições que não<br />
podem ser demonstradas como teoremas. ou seja, um sistema é paraconsistente<br />
quando ele é inconsistente mas não-trivial. ora — o que<br />
horrorizava os lógicos clássicos não era somente a contradição, mas sobretudo<br />
a trivialidade dela decorrente. Se conseguimos trabalhar com<br />
sistemas contraditórios provando de saída que, a despeito de contraditórios,<br />
não são triviais, temos um campo não-destrutivo de relativismo.<br />
ou melhor, não autodestrutivo. o trabalho em lógicas paraconsistentes<br />
é marca de um grupo de lógicos e filósofos brasileiros, liderados<br />
por N. C. A. Da Costa (Da Costa 1963). mas a noção de paraconsistência<br />
pode ser aplicada muito além do domínio da lógica pura.<br />
o relativismo estético pós-moderno pode ser considerado paraconsistente<br />
no sentido de que, embora haja o convívio de perspectivas<br />
ontológicas radicalmente distintas (no exemplo conhecido de<br />
142<br />
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audrillard: houve Guerra do iraque versus não houve Guerra do<br />
iraque), no interior de um sistema construído existem restrições à<br />
trivialidade. ou seja, mesmo a mais ousada especulação exclui alguma<br />
possibilidade, e, com isso, preserva-se contra ser trivial. Em<br />
epistemologia, denomina-se de conteúdo lógico de uma teoria tudo<br />
o que ela implica mediante alguma lógica; e denomina-se de conteúdo<br />
empírico de uma teoria tudo o que ela exclui, ou seja, tudo o<br />
que dela se implique a negação, de um ponto de vista lógico. mesmo<br />
se na perspectiva relativista estética pós-moderna houver o convívio<br />
de perspectivas ontológicas rivais, ainda assim, dentro de uma dada<br />
perspectiva podemos provar que há conteúdo empírico — ou seja,<br />
as perspectivas internamente são incompatíveis com pelo menos<br />
um mundo possível. isso garante-lhes a não-trivialidade.<br />
De um ponto de vista pragmático, como esta visão pode ser útil,<br />
por exemplo, aos leitores mais prováveis do presente periódico: os<br />
especialistas em educação social. ora, a perspectiva discutida favorece<br />
certo elenco de estratégias de intervenção e ação que têm<br />
impacto propedêutico, ou seja, impacto pedagógico-educacional.<br />
Em todos os níveis da performance pragmática de profissionais de<br />
todas as áreas constituintes do mercado — dos ídolos do mercado<br />
— lembramos a teoria dos idola de Francis bacon — ganha aquele<br />
profissional que souber melhor adaptar-se, exatamente, à variedade<br />
da mídia. À diversidade dos sistemas de belo, de crença, de valores,<br />
de visões de mundo. Vale lembrar uma interessante passagem de<br />
Karen blixten, lembrada por Paul Feyerabend:<br />
A ausência de preconceitos no Nativo [africano de Kenia] é<br />
algo de intrigante se você espera encontrar obscuros tabus<br />
em tribos primitivas. Ela é devido, creio eu, à sua familiaridade<br />
com uma variedade de raças e tribos, e ao vívido intercurso<br />
humano que foi trazido à África oriental, primeiro<br />
pelos antigos negociantes de ébano e escravos e em nossos<br />
dias [década de 30] pelos posseiros [europeus] e pelo jogo<br />
pesado da caça. Quase todo nativo, desde o pastor menino<br />
das planícies, teve seu dia de se encontrar face a face com<br />
um inteiro espectro de nações tão diferentes entre si, e dele,<br />
quanto um siciliano de um esquimó: britânicos, judeus, di-<br />
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144<br />
namarqueses, árabes, somalianos, indianos, swhaeli, maçai e<br />
kawirondos. No que tange à receptividade de idéias, o Nativo<br />
é mais um homem do mundo do que o posseiro suburbano<br />
provincial, ou do que o missionário—que cresceram em uma<br />
comunidade uniforme com um conjunto de idéias estáveis.<br />
muito dos desentendimentos entre brancos [europeus] e<br />
Nativos [africanos] surge deste fato. (Karen blyxten apud Feyerabend<br />
1988, 20).<br />
A liberdade ontológica que o relativismo estético pós-moderno<br />
possibilita, sugestão também presente na obra de outros autores<br />
da tradição, desde a opus magna de Deleuze e Guattari de 1972,<br />
Capitalismo e esquizofrenia: o anti-édipo (Deleuze 1972). o conceito<br />
aqui é o da licença para reconstruir, reinterpretar, impetrar<br />
novos valores estéticos com liberdade, que tenham primado sobre<br />
a constituição do elemento ontológico. trata-se quase de uma teoria<br />
da viabilização de utopias. o que se enseja que exista, assim<br />
será. o que se constitui como uma matriz de valores, se instancia.<br />
o interjogo entre realidade/irrealidade; sonho, ilusão/realismo;<br />
verdadeiro/falso não pode ser compreendido ou encetado apenas<br />
de um ponto de vista fundacionista ou objetivista. Há que haver<br />
a licença artística. ora a licença artística é exatamente o que faz a<br />
obra de arte pairar sobre e independente da determinação terrena,<br />
da causação física ou social, do determinismo cultural. A obra de<br />
arte, o belo, não se deixa tanger pelos determinantes dos trilhos<br />
absolutos. A ilusão pode se tornar realidade, o sonho pode ser a<br />
melhor via para o realismo, o verdadeiro e o falso assumem papéis<br />
cruzados—verdade depende de uma relação pictórica com uma<br />
construção social, com primado do elemento estético e da ação<br />
dos construtores do Espetáculo. trata-se sem dúvida de uma posição<br />
bastante estimulante, que convida a reflexões mais aprofundadas<br />
e, no que tem de iconoclasta de tradições clássicas e positivistas,<br />
abre uma perspectiva de pesquisa profícua.<br />
Este é o impacto extra-estético do relativismo estético pós-moderno.<br />
Nós vivemos em um millieux de diversidade. Não podemos mais<br />
referenciar-nos a uma razão monológica. Não podemos mais viver a<br />
bipolaridade que foi tão típica, por exemplo, do período da Guerra<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.2 nº5 | p. 128-146 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2007
Fria: esquerda/direita; certo/errado; negro/branco; belo/feio; proibido/permitido;<br />
existente/inexistente.<br />
os limites de aplicação desta perspectiva pós-moderna ainda se<br />
encontram expandindo. Há aplicações em computação não-clássica,<br />
teoria dos autômatos; em matemática e lógica: imagine-se a relativização<br />
da matemática e da lógica formal, no espirito por exemplo do<br />
volume de bloor (bloor 1983); ou uma antropologia da matemática,<br />
no espírito de Livingston (ver Livingston 1986 e DaSilva 1996). A extensão<br />
de uma navalha de corte estético-culturalista mesmo dentro<br />
de disciplinas que classicamente seriam tomadas como repousando<br />
em fundamentos objetivos, atemporais, intocados pelo tempo e<br />
pelo espaço, é uma marca do pós-modernismo e das correntes hermenêuticas<br />
que em torno dele se erigiram, propondo grande liberdade<br />
e atividade ao agente da cognição: uma liberdade comparável<br />
à da criação artística instruída.<br />
o jogo de cintura cognitivo, a habilidade de traduzir a diferença<br />
em termos de positividade heurística e ganho estratégico, é algo que<br />
se espera por exemplo de quem tange um mercado, forma profissionais,<br />
ocupa posições de gerência estratégica e tomada de decisão<br />
sobre educação e cultura. Por isso um tema aparentemente tão<br />
distante quanto o relativismo estético pós-moderno pode vir a ter<br />
aplicação no varejo da trajetória pessoal dos que constroem os idola<br />
do mercado cultural.<br />
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