Revista Sinais Sociais N20 pdf - Sesc
Revista Sinais Sociais N20 pdf - Sesc
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v.7 nº20 ISSN 1809-9815<br />
setembro > dezembro | 2012<br />
<strong>Sesc</strong> | Serviço Social do Comércio<br />
Administração Nacional<br />
Questionário de avaliação<br />
da distribuição<br />
AC BARRASHOPPING<br />
22640-970 Rio de Janeiro - RJ<br />
CARTÃO-RESPOSTA<br />
NÃO É NECESSÁRIO SELAR<br />
O SELO SERÁ PAGO PELO SESC-DN<br />
xxxxxxxxxx/XXXX-XX/XX
Avaliação da distribuição<br />
Prezado leitor ou bibliotecário:<br />
Estamos avaliando a distribuição da revista <strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong>.<br />
Solicitamos a gentileza em responder as questões abaixo, para remessa sem custos<br />
pelo correio, ou pelo endereço www.sesc.com.br/sinaissociais.<br />
Sua opinião é importante para nós.<br />
Você recebe a revista <strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong> regularmente?<br />
( ) Sim<br />
( ) Não<br />
Seu acesso à revista <strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong> se dá por qual forma?<br />
( ) Biblioteca institucional<br />
( ) Assinatura pessoal<br />
( ) Outra forma. Qual: ____________________________________________<br />
Em sua opinião seria adequado alterar o endereço de remessa?<br />
( ) Não<br />
( ) Sim. Qual? _______________________________________________<br />
_____________________________________________<br />
O que é necessário modificar na distribuição da revista?<br />
____________________________________________________________<br />
Tem alguma sugestão de Biblioteca ou Instituição para receber regularmente a<br />
<strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong>?<br />
Nome ___________________________________________________<br />
Instituição ___________________________________________________<br />
Identificação (opcional)<br />
Nome _________________________________________________________________________________________<br />
Endereço ______________________________________________________________________________________<br />
Cidade ____________________________________________ Estado ___________CEP ______________________<br />
Instituição _____________________________________________________________________________________<br />
Telefone __________________________________ E-mail _____________________________________________
v.7 nº 20<br />
setembro > dezembro | 2012<br />
<strong>Sesc</strong> | Serviço Social do Comércio<br />
Administração Nacional<br />
iSSN 1809-9815<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 1-180 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
<strong>Sesc</strong> | Serviço Social do Comércio | Administração Nacional<br />
PRESiDENtE Do CoNSELHo NACioNAL<br />
Antonio oliveira Santos<br />
DiREtoR-GERAL Do DEPARtAmENto NACioNAL<br />
maron Emile Abi-Abib<br />
CooRDENAÇÃo EDitoRiAL<br />
Gerência de Estudos e Pesquisas / Divisão de Planejamento e Desenvolvimento<br />
mauro Lopez Rego<br />
CoNSELHo EDitoRiAL<br />
Álvaro de melo Salmito<br />
mauricio blanco<br />
Nivaldo da Costa Pereira<br />
SECREtÁRio ExECutivo<br />
mauro Lopez Rego<br />
ASSESSoRiA EDitoRiAL<br />
Andréa Reza<br />
EDiÇÃo<br />
Assessoria de Divulgação e Promoção / Direção-Geral<br />
Christiane Caetano<br />
PRoJEto GRÁfiCo<br />
vinicius borges<br />
SuPERviSÃo EDitoRiAL<br />
Jane muniz<br />
PREPARAÇÃo E PRoDuÇÃo EDitoRiAL<br />
Duas Águas| ieda magri<br />
REviSÃo<br />
Elaine bayma<br />
REviSÃo Do iNGLêS<br />
idiomas & cia<br />
DiAGRAmAÇÃo<br />
Livros & Livros | Susan Johnson<br />
PRoDuÇÃo GRÁfiCA<br />
Celso Clapp<br />
<strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong> / <strong>Sesc</strong>, Departamento Nacional - vol. 1, n. 1 (maio/<br />
ago. 2006)- . – Rio de Janeiro : <strong>Sesc</strong>,<br />
Departamento Nacional, 2006 - .<br />
v.; 30 cm.<br />
Quadrimestral.<br />
iSSN 1809-9815<br />
1. Pensamento social. 2. Contemporaneidade. 3. brasil. i.<br />
Serviço Social do Comércio. Departamento Nacional, 2006 - .<br />
As opiniões expressas nesta revista são de inteira responsabilidade dos autores.<br />
As edições podem ser acessadas eletronicamente em www.sesc.com.br.
SumÁRio<br />
APRESENtAÇÃo5<br />
EDitoRiAL7<br />
SobRE oS AutoRES8<br />
iNtERPREtAÇÕES Do bRASiL E CiêNCiAS<br />
SoCiAiS, um fio DE ARiADNE10<br />
André botelho<br />
CotAS AumENtAm A DivERSiDADE DoS<br />
EStuDANtES SEm ComPRomEtER o<br />
DESEmPENHo?36<br />
fábio D. Waltenberg<br />
márcia de Carvalho<br />
tRêS CRÍtiCoS: ANtoNio CANDiDo, PAuLo<br />
EmÍLio E mÁRio PEDRoSA78<br />
francisco Alambert<br />
GoNÇALo m. tAvARES: o ENSAio, A DANÇA, o<br />
ESPÍRito LivRE114<br />
Júlia Studart<br />
CAio PRADo JR. E o iNtELECtuAL mARxiStA<br />
HoJE148<br />
marco Aurélio Nogueira<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 1-180 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
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APRESENtAÇÃo<br />
A revista <strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong> tem como finalidade precípua tornar-se um<br />
espaço de debate sobre questões da contemporaneidade brasileira.<br />
Pluralidade e liberdade de expressão são os pilares desta publicação.<br />
Pluralidade no sentido de que a revista <strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong> é aberta para a<br />
publicação de todas as tendências marcantes do pensamento social no<br />
Brasil hoje. A diversidade dos campos do conhecimento tem, em suas<br />
páginas, um locus no qual aqueles que têm a reflexão como seu ofício<br />
poder-se-ão manifestar.<br />
Como espaço de debate, a liberdade de expressão dos articulistas da<br />
<strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong> é garantida. O fundamento desse pressuposto está nas<br />
Diretrizes Gerais de Ação do <strong>Sesc</strong>, como princípio essencial da entidade:<br />
“Valores maiores que orientam sua ação, tais como o estímulo<br />
ao exercício da cidadania, o amor à liberdade e à democracia como<br />
principais caminhos da busca do bem-estar social e coletivo.”<br />
Igualmente, é respeitada a forma como os artigos são expostos – de<br />
acordo com os cânones das academias ou seguindo expressão mais<br />
heterodoxa, sem ajustes aos padrões estabelecidos.<br />
Importa para a revista <strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong> artigos cujas fundamentação<br />
teórica, consistência, lógica da argumentação e organização das ideias<br />
tragam contribuições além das formulações do senso comum. Análises<br />
que forneçam elementos para fortalecer as convicções dos leitores ou<br />
lhes apresentem um novo olhar sobre os objetos em estudo.<br />
O que move o <strong>Sesc</strong> é a consciência da raridade de revistas semelhantes,<br />
de amplo alcance, tanto para os que procuram contribuir com<br />
suas reflexões como para segmentos do grande público interessados<br />
em se informar e se qualificar para uma melhor compreensão do país.<br />
Disseminar ideias que vicejam no Brasil, restritas normalmente ao<br />
mundo acadêmico, e, com isso, ampliar as bases sociais desse debate<br />
é a intenção do <strong>Sesc</strong> com a revista <strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong>.<br />
Antonio Oliveira Santos<br />
Presidente do Conselho Nacional do <strong>Sesc</strong><br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 1-180 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
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EDitoRiAL<br />
O entusiasmo não pode ser induzido de forma determinista; será<br />
transmitido por meio de suas manifestações? A hipótese afirmativa nutre<br />
as expectativas acerca do presente número da revista <strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong>, que<br />
traz fios vívidos de entusiasmo, na primeira, segunda e terceira pessoas.<br />
Os personagens presentes nos trabalhos desta publicação − essas<br />
“pessoas”− diferem em origens, temas e percursos, mas têm aqui ressaltadas<br />
suas conexões às realidades em que se inseriram, para com<br />
elas interagir, de forma a contribuir para sua compreensão e alteração,<br />
segundo suas particulares perspectivas.<br />
Nestes textos está presente também o elogio ao ensaio, como forma,<br />
como recurso, como reiterada possibilidade de acesso subjetivo e direto<br />
aos contextos físicos e práticos, abstratos e teóricos.<br />
São muitos os sujeitos referidos direta ou indiretamente pelos autores.<br />
Antonio Candido, Paulo Emilio e Mário Pedrosa são os críticos<br />
cujas visões da arte e cultura do Brasil são cotejadas por Francisco<br />
Alambert. Gonçalo M. Tavares é o autor do Livro da dança, obra da<br />
qual Júlia Studart faz detida análise. Caio Prado Jr. é tomado como<br />
exemplo por Marco Aurélio Nogueira para a discussão do papel do<br />
intelectual marxista no mundo contemporâneo. Oliveira Vianna é o<br />
historiador que tem obra evocada por André Botelho, que reafirma a<br />
validade das interpretações autorais para o entendimento do passado<br />
e a percepção do presente.<br />
Compõe ainda esta <strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong> o artigo de Fabio D. Waltenberg<br />
e Márcia de Carvalho. Da análise sobre os resultados das ações afirmativas<br />
no Brasil, um pormenor não deve escapar à atenção: foi o<br />
protagonismo das universidades que trouxe o tema para a esfera pública,<br />
lidando frontalmente com uma questão até então relegada ao<br />
escaninho das imutáveis perversidades nacionais.<br />
De diversos sujeitos, portanto, e de seus entusiasmos ao lidar com<br />
linhas iluminadoras de nossos labirintos sociais, tratam os artigos aqui<br />
apresentados.<br />
Maron Emile Abi-Abib<br />
Diretor-Geral do Departamento Nacional do <strong>Sesc</strong><br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 1-180 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
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SobRE oS AutoRES<br />
André Botelho<br />
Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da<br />
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisador do CNPq e da Faperj e<br />
coordenador do Grupo de Trabalho Pensamento Social no Brasil, da Sociedade Brasileira<br />
de Sociologia (SBS). Autor de diversas publicações, livros e artigos na área de pensamento<br />
social brasileiro, destacando-se entre os mais recentes: Um enigma chamado<br />
Brasil, organizado com Lília M. Schwarcz (Companhia das Letras, 2009), Revisão do<br />
pensamento conservador, organizado com Gabriela Nunes Ferreira (Hucitec, 2010) e<br />
Agenda brasileira: temas de uma sociedade em mudança, também organizado com Lília<br />
M. Schwarcz (Companhia das Letras, 2011).<br />
Fábio D. Waltenberg<br />
Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e<br />
membro do Núcleo de Estudos em Educação (NEE) do Centro de Estudo sobre Desigualdade<br />
e Desenvolvimento (CEDE) da mesma universidade.<br />
Francisco Alambert<br />
Professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), onde<br />
leciona História Social da Arte e História Contemporânea na graduação e na pós-graduação.<br />
Também é crítico de arte, colabora em diversos jornais e revistas, no Brasil e<br />
no exterior. Publicou, entre outros livros, Bienais de São Paulo: da era do museu à era dos<br />
curadores (Boitempo, 2004), escrito em parceria com Polyana Canhête, que recebeu<br />
o prêmio Jabuti na categoria Artes. Na USP, participa da coordenação do grupo de<br />
pesquisa Desformas – Formação e Desmanche de Sistemas Simbólicos.<br />
8<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 1-180 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
Júlia Studart<br />
Poeta e doutora em Teoria Literária, Textualidades Contemporâneas, pela Universidade<br />
Federal de Santa Catarina (UFSC) – bolsista integral CNPq, Brasil / Universidade Nova<br />
de Lisboa (UNL) – bolsista CAPES, 2011. Trabalha com literatura contemporânea<br />
brasileira e portuguesa; artes visuais e teoria da dança. Publicou Wittgenstein & Will<br />
Eisner – se numa cidade suas formas de vida (Lumme Editor, 2006), Marcoaurélio!, com a<br />
artista visual Milena Travassos (Dragão do Mar, 2006) e Livro segredo e infâmia (Editora<br />
da Casa, 2007). É autora de “O impacto da impressão”, caderno de apresentação do<br />
livro Breves notas, de Gonçalo M. Tavares (Editora da Casa/Edufsc, 2010). Organizou<br />
o livro Conversas, diferença n.1 – ensaios de literatura etc. (Editora da Casa, 2009). É<br />
colaboradora do jornal O Globo com resenhas sobre literatura contemporânea.<br />
Márcia de Carvalho<br />
Professora do Departamento de Estatística e doutoranda do Programa de Pós-Graduação<br />
em Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Membro do Núcleo de<br />
Estudos em Educação (NEE) do Centro de Estudo sobre Desigualdade e Desenvolvimento<br />
(CEDE) da mesma universidade.<br />
Marco Aurélio Nogueira<br />
Professor titular de Teoria Política e coordenador do Instituto de Políticas Públicas e<br />
Relações Internacionais da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Doutor em Ciência<br />
Política pela Universidade de São Paulo (USP), com pós-doutorado na Universidade de<br />
Roma (1984-1985), foi diretor da Editora Unesp (1987-1991) e da Escola de Governo<br />
e Administração Pública da Fundação do Desenvolvimento Administrativo (Fundap)<br />
(1991-1995). É colunista do jornal O Estado de S. Paulo e autor, entre outros, dos livros<br />
Em defesa da política (Senac, 2001), Um Estado para a sociedade civil. Temas éticos e<br />
políticos da gestão democrática (Cortez, 2004), Potência, limites e seduções do poder<br />
(Editora Unesp, 2008) e O encontro de Joaquim Nabuco com a política. As desventuras<br />
do liberalismo (Paz e Terra, 2010).<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 1-180 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
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iNtERPREtAÇÕES Do<br />
bRASiL E CiêNCiAS<br />
SoCiAiS, um fio<br />
DE ARiADNE<br />
André Botelho<br />
10 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 10-35 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
O artigo procura problematizar a visão cristalizada pelas Ciências <strong>Sociais</strong> sobre<br />
o ensaísmo brasileiro dos anos de 1920-1940. Com base em um estudo de<br />
caso, a partir de resultados de pesquisa sobre Francisco José de Oliveira Vianna<br />
e sua sociologia política, discute a atualidade das chamadas interpretações do<br />
Brasil. Tal procedimento analítico é entendido como condição para repensar<br />
o estatuto dos ensaios e sua capacidade de interpelação contemporânea às<br />
Ciências <strong>Sociais</strong> e à sociedade brasileira.<br />
Palavras-chave: interpretações do Brasil; Ciências <strong>Sociais</strong>; sociologia do conhecimento;<br />
Oliveira Vianna<br />
This article aims to problematize the views of Brazilian essayism crystallized by<br />
the Social Sciences from the 1920s to the 1940s. Based on a case study from<br />
research findings on Francisco José de Oliveira Vianna and his political sociology,<br />
it discusses the relevance of the so-called interpretations of Brazil. This<br />
analytical procedure is understood as a prerequisite for rethinking the status<br />
of the essay and its contemporary interpellation capacity towards the Brazilian<br />
Social Sciences and society.<br />
Keywords: interpretations of Brazil; the Social Sciences; sociology of knowledge;<br />
Oliveira Vianna<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 10-35 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
11
iNtRoDuÇÃo<br />
Entre as décadas de 1920 e 1940 foram publicados alguns dos mais<br />
instigantes estudos sobre a formação da sociedade brasileira, comumente<br />
chamados ensaios de interpretação do Brasil. Publicado em<br />
1920, Populações meridionais do Brasil, de Francisco José Oliveira<br />
Vianna, abre a produção do período, seguido, na mesma década, por<br />
Retrato do Brasil, de Paulo Prado, em 1928. Em 1933 foram publicados<br />
Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre, e Evolução política do<br />
Brasil, de Caio Prado Júnior, três anos depois apareceram Sobrados e<br />
mucambos, também de Freyre, e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque<br />
de Holanda. Na década seguinte, voltaram aos prelos Caio Prado e<br />
Oliveira Vianna, o primeiro com Formação do Brasil contemporâneo,<br />
em 1942, o segundo com Instituições políticas brasileiras, em 1949,<br />
para citar apenas alguns dos mais emblemáticos ensaios do período.<br />
Essas interpretações do Brasil continuam nos interpelando contemporaneamente,<br />
a despeito da relação ambígua que as Ciências <strong>Sociais</strong><br />
têm mantido com eles desde o início da sua institucionalização como<br />
carreira universitária e profissional na década de 1930. Como se tra-<br />
tava então de demarcar um “campo científico”, compreende-se que<br />
o desenvolvimento das Ciências <strong>Sociais</strong> tenha sido pensado a partir de<br />
uma polarização mais disjuntiva entre o seu caráter “científico” e o<br />
“pré-científico” dos ensaios de interpretação do Brasil. Em que “científico”,<br />
naturalmente, foi quase sempre tomado estritamente como<br />
sinônimo de conhecimento válido.<br />
Diferente da monografia científica que veio a se impor como forma<br />
narrativa própria à moderna ciência ocidental, também nas ciências<br />
sociais brasileiras, o ensaio não expõe na sua narrativa fragmentada<br />
um conteúdo pronto de antemão. Mas, em uma constante tensão entre<br />
a exposição e o exposto, repõe uma ideia fundamental, como um<br />
fragmento que busca vislumbrar o todo de que é parte. Nesse movimento,<br />
esboça-se o traço distintivo do ensaio como forma: a tentativa<br />
de recomposição da relação sujeito/objeto do conhecimento fraturada<br />
pela tradição cartesiana. Por isso sua inteligibilidade parece, em parte,<br />
condicionada à própria relação de contraposição que mantém perenemente<br />
com o padrão científico positivista.<br />
Daí Theodor Adorno ter discutido o ensaio como forma de “protesto<br />
contra as quatro regras que o Discours de la méthode de<br />
12 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 10-35 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
Descartes erige no início da moderna ciência ocidental” (ADORNO,<br />
1986, p. 177); ainda que, se considerada da perspectiva do ensaio,<br />
por sua vez, a objetividade pretendida na monografia decorra necessariamente<br />
de um arranjo subjetivo:<br />
o que em Descartes era consciência intelectual quanto à necessidade de<br />
conhecimento, se transforma na arbitrariedade de um ‘frame of reference’,<br />
de uma axiomática que precisa ser colocada no início para satisfazer<br />
a necessidade metodológica e a plausibilidade do todo [...] [que] apenas<br />
escamoteia as suas condições subjetivas (ADORNO, 1986, p. 179).<br />
Enfim, estamos diante de regimes distintos de “subjetividade” e “objetividade”<br />
do conhecimento social que validam seus próprios instrumentos<br />
linguísticos, narrativos e outros e que por isso não podem ser<br />
subsumidos uns nos outros. Ao mesmo tempo, porém, são também<br />
autorreferidos, no sentido que mobilizam frequentemente categorias<br />
de contrastes, cujos significados são extraídos tanto do que se nega,<br />
quanto do que se afirma.<br />
No caso brasileiro, aquele tipo de recomposição entre sujeito/objeto<br />
divisado no ensaio em geral parece ter sido, em grande medida, interpretado<br />
mais como um “desvio” em relação ao rigor científico do<br />
que propriamente como um “contraponto” possível a ele. O que sugere,<br />
entre outras coisas, o sentido hegemônico e duradouro assumido<br />
pelo positivismo entre nós. É razoável, de todo modo, considerar que<br />
o ensaio parecia ameaçar alguns dos seus princípios. Afinal, a adoção<br />
do padrão cognitivo-narrativo científico positivista que regeu a institucionalização<br />
das ciências sociais, e seus correspondentes princípios de<br />
isenção e neutralidade, parecia assegurar uma representação da relação<br />
externa do cientista com os fenômenos que investigava. Também nos<br />
ensaios de interpretação do Brasil, “o decifrar da realidade não está na<br />
somatória de dados objetivos, mas muito mais na sua multiplicação com<br />
elementos da subjetividade“ dos seus autores (WEGNER, 2006, p. 339).<br />
Mais do que entre os pioneiros sociólogos profissionais, porém, foi<br />
em um momento posterior, já nas décadas de 1970 e 1980, que os<br />
ensaios e suas interpretações do Brasil acabaram por ser desqualificados<br />
como meras “ideologias”. Procedimento especialmente marcante<br />
na análise de determinadas tradições intelectuais, como o chamado<br />
“pensamento conservador” dos anos 1920-30 e o “nacional-desen-<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 10-35 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
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volvimentismo” dos anos 1950-60, para lembrar dois casos emblemáticos.<br />
Em vários momentos da nossa história intelectual o pensamento<br />
conservador, por exemplo, foi menosprezado levando, contudo, a que<br />
se negligenciasse a vigência dessas formas de pensar no âmbito da<br />
cultura política. Essa dimensão deveria interessar àqueles que estão<br />
voltados para o estudo dos efeitos sociais das ideias, porque ela é<br />
decisiva para se compreender, entre outras coisas, como se constitui<br />
no Brasil uma cultura política que menospreza a monumental desigualdade<br />
que marca a nossa sociedade. E, também, porque avessa à<br />
democracia, não acredita na ação coletiva e favorece a que o homem<br />
comum não leve a sério os seus iguais (FERREIRA; BOTELHO, 2010).<br />
Malgrado seu expressivo crescimento nas últimas décadas ou, talvez<br />
por isso mesmo, persistem algumas visões simplificadoras, e mesmo ingênuas<br />
sobre o pensamento social (BASTOS; BOTELHO, 2010). Como<br />
aquelas que supõem ser suficiente identificar a sua pesquisa como um<br />
tipo de conhecimento antiquário sem maior significação para a sociedade<br />
e para as ciências sociais contemporâneas. E não são incomuns<br />
ainda hoje visões segundo as quais as ciências sociais, quando concebidas<br />
em acepção positivista e orientadas para o mundo empírico e<br />
para o acúmulo de conhecimento objetivo sobre ele, já deveriam ter<br />
solucionado as questões colocadas pelas interpretações mais antigas.<br />
Por outro lado, e isso é fundamental para manter a controvérsia viva,<br />
não faltam pesquisas, realizadas inclusive entre os próprios cientistas<br />
sociais contemporâneos, indicando a persistência da importância das<br />
interpretações do Brasil no conjunto da produção das Ciências <strong>Sociais</strong><br />
brasileiras (BRANDÃO, 2007, p. 24) 1 .<br />
Mas longe de constituir um traço idiossincrático da sua prática no Brasil,<br />
a controvérsia sobre a importância do pensamento social, como aquela<br />
sobre a importância dos clássicos, expressa uma característica crucial das<br />
1 É significativo, assim, que já no próprio âmbito de sua institucionalização no<br />
Brasil tenham surgido tantos trabalhos sobre a história das Ciências <strong>Sociais</strong>, como<br />
indica o fato de que 46 de 121 obras de sociologia publicadas, no Brasil, entre<br />
1945 e 1966 tratem da própria disciplina (VILLAS BÔAS, 1992, p. 135). Isso<br />
para não falar dos balanços sobre a tradição intelectual brasileira anterior à institucionalização,<br />
realizados, por exemplo, por Florestan Fernandes em “Desenvolvimento<br />
histórico-social da sociologia no Brasil”, originalmente publicado na<br />
revista Anhembi em 1957 (FERNANDES, 1980) ou por Alberto Guerreiro Ramos<br />
em Cartilha brasileira do aprendiz de sociólogo, de 1954 (RAMOS, 1995).<br />
14 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 10-35 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
Ciências <strong>Sociais</strong> em geral que, como toda disciplina de natureza intelectual,<br />
traz em si uma “história construída” (LEVINE, 1995; GIDDENS,<br />
1998; ALEXANDER, 1999). Assim, a reflexão contínua sobre as Ciências<br />
<strong>Sociais</strong> remete a um aspecto crucial da própria identidade cognitiva das<br />
disciplinas que a compõem. Afinal, em contraste com o que ocorre nas<br />
ciências naturais, a lógica das Ciências <strong>Sociais</strong> exige que, para que ela<br />
atinja seus fins, refaça o seu próprio caminho, se assemelhando, neste<br />
aspecto, ao trabalho de Penélope (BRANDÃO, 2007, p. 24).<br />
Todavia, como no caso mais amplo das Ciências <strong>Sociais</strong> em relação<br />
aos seus clássicos, o significado das interpretações do Brasil, objeto por<br />
excelência da área de pesquisa do pensamento social, para a busca<br />
contemporânea de conhecimento continua em aberto. Isso expressa,<br />
igualmente, a ausência de consensos cognitivos estáveis no interior das<br />
Ciências <strong>Sociais</strong> praticadas no Brasil e, no limite, um campo de possibilidades<br />
e conflitos a respeito da sua própria identidade. Minha hipótese<br />
quanto ao seu significado heurístico para as Ciências <strong>Sociais</strong>, é que o<br />
pensamento social pode representar uma espécie de repertório interpretativo<br />
a que os pesquisadores podemos recorrer para buscar motivação<br />
e perspectiva nas diferentes áreas que as compõem. Isso porque,<br />
em meio ao labirinto da especialização acadêmica contemporânea, e<br />
do decorrente fracionamento do conhecimento, as interpretações do<br />
Brasil não representam apenas uma modalidade de imaginação sociológica<br />
encerrada no passado. Elas também constituem um espaço cognitivo<br />
de comunicação entre presente, passado e futuro que pode nos dar<br />
uma visão mais integrada e consistente da dimensão de processo que o<br />
nosso presente ainda oculta – um fio de Ariadne, por assim dizer.<br />
É esta hipótese que apresento para discussão, embora não me pareçam<br />
simples os desafios nela envolvidos. Para torná-la menos abstrata<br />
recorrerei a um dos exemplos mais emblemáticos do pensamento social<br />
brasileiro, Oliveira Vianna e os possíveis significados heurísticos da sua<br />
sociologia política, mobilizando, para isso, alguns resultados recentes<br />
de pesquisa (BOTELHO, 2007; 2008; 2010; BOTELHO; LAHUERTA,<br />
2010). Antes, contudo, alguns problemas mais gerais de ordem teórico-<br />
metodológica da sociologia do conhecimento devem ser enfrentados.<br />
Deter-me-ei em dois deles ligados especificamente à pesquisa do pensamento<br />
social. Em primeiro lugar, em um plano mais amplo, a questão<br />
da relação entre “textos” e “contextos” na pesquisa sociológica contemporânea;<br />
em segundo, as diferentes possibilidades de recuperação dos<br />
textos clássicos para as atividades cotidianas da disciplina atualmente.<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 10-35 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
15
1 tExtoS ou CoNtExtoS: A CRiSE DA SoCioLoGiA Do CoNHECimENto<br />
Começo por observar que para que o significado heurístico das<br />
interpretações do Brasil para as Ciências <strong>Sociais</strong> em suas diferentes<br />
especialidades contemporâneas possa ser avaliado é preciso encontrar,<br />
antes de tudo, formas consistentes de aproximação entre questões do<br />
presente e interpretações do passado. O que, por sua vez, exige pesquisas<br />
que possam qualificar justamente o perfil propriamente cognitivo<br />
das interpretações de que a sociedade brasileira vem sendo objeto ao<br />
longo do tempo. Assim, não será toda perspectiva metodológica empregada<br />
na reconstituição da história das Ciências <strong>Sociais</strong> no Brasil que,<br />
por seus próprios objetivos, estará apta a levar a tarefa a cabo, embora<br />
suas contribuições para o esclarecimento daquela história sejam inegáveis<br />
e não possam ser minimizados. Sem pretender ser exaustivo,<br />
observo que um passo crucial na direção da pesquisa do perfil propriamente<br />
cognitivo da tradição intelectual brasileira foi dado pelo recente<br />
trabalho de Gildo Marçal Brandão, Linhagens do pensamento político<br />
brasileiro (2007). Nele, Brandão persegue o fio que nos tem ligado, na<br />
prática das Ciências <strong>Sociais</strong> – e nas suas formas correspondentes de<br />
pensar o Brasil e nele atuar –, ao nosso passado intelectual, para além<br />
dos marcos institucionais. Trata-se de um programa de pesquisa consistente<br />
que, explorando a fundo as consequências do fato de que<br />
nenhuma inovação intelectual se realiza em um vazio cognitivo, propõe<br />
nova inteligibilidade para o pensamento político-social brasileiro. Mais<br />
do que mera testemunha do passado, este constituiria o índice da existência<br />
de um corpo de problemas e soluções intelectuais – “um estoque<br />
teórico e metodológico”. Autores de diferentes épocas são levados<br />
a se referir a esse “estoque”, ainda que indiretamente e, guardadas as<br />
especificidades cognitivas e políticas de cada um, no enfrentamento<br />
de velhas questões postas pelo desenvolvimento social. Não se trata de<br />
minimizar o influxo cognitivo externo a que também as Ciências <strong>Sociais</strong><br />
brasileiras estão sujeitas em sua prática cotidiana; e sim de reconhecer<br />
que, ainda assim, o pensamento político-social brasileiro tem representado<br />
“um afiado instrumento de regulação de nosso ‘mercado interno<br />
das ideias’ em suas trocas com o mercado mundial” (BRANDÃO, 2007,<br />
p. 23-24).<br />
Todavia, uma questão metodológica importante suscitada pelo livro<br />
de Brandão é saber se o pertencimento a uma “família” intelectual<br />
16 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 10-35 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
constitui um ponto de partida estrutural da análise, ou antes, um problema<br />
mais contingente. Problema cujo sentido, sendo variável em<br />
relação à combinação com outros fatores internos e externos de composição<br />
das obras, somente a pesquisa comparativa poderia então<br />
apontar caso a caso. Afinal, apesar de algumas linhagens terem se tornado<br />
mais cristalizadas, como em qualquer família, também no caso<br />
da tradição intelectual brasileira, como bem lembra o autor, por vezes<br />
“os mais próximos são os mais distantes, e ninguém pode impedir que<br />
um Montecchio se apaixone por uma Capuleto” (p. 39). Nesse sentido,<br />
penso que um dos aspectos mais produtivos derivados da proposta<br />
seria justamente o de, cruzando diferentes linhagens, surpreender afinidades<br />
eletivas e escolhas pragmáticas onde elas não são evidentes,<br />
esperadas, intencionais – seja em termos cognitivos ou normativos 2 .<br />
Pensando em termos teóricos mais gerais, diria, com algum exagero,<br />
que a constituição do pensamento social como um repertório ou espaço<br />
de comunicação cognitivo implica, em certo sentido, completar o movimento<br />
analítico característico da sociologia do conhecimento. Esta,<br />
como se sabe, tem estado voltada, desde a síntese teórica formulada por<br />
2 Foi justamente nessa direção que procurei reconstituir analiticamente a formação<br />
de uma agenda de pesquisas, de Populações meridionais do Brasil até<br />
Homens livres na ordem escravocrata (1964), de Maria Sylvia de Carvalho Franco,<br />
passando por Coronelismo, enxada e voto (1949), de Victor Nunes Leal, e<br />
diferentes pesquisas de Maria Isaura Pereira de Queiroz desenvolvidas desde a<br />
década de 1950, procurando destacar suas continuidades e descontinuidades<br />
(BOTELHO, 2007). No plano das continuidades, argumentei que estas pesquisas<br />
mantêm, em primeiro lugar, a tese central do ensaio de Vianna sobre a<br />
configuração histórica particular das relações de dominação política no Brasil<br />
fundada no conflito entre as ordens privada e pública e não diretamente assimilável<br />
ao conflito de classes enraizado no mundo da produção; bem como,<br />
em segundo lugar, sua tendência teórico-metodológica a relacionar a aquisição,<br />
distribuição, organização e exercício de poder político à estrutura social<br />
com o objetivo de identificar as bases e a dinâmica da política na própria vida<br />
social. Com relação, por sua vez, às descontinuidades cognitivas internas entre<br />
os diferentes trabalhos que compõem a vertente da sociologia política brasileira<br />
destacada, argumentei que são distintas, sobretudo, as concepções de sociedade<br />
e, nelas, o relacionamento entre ação e estrutura social, que assume e que<br />
procura conferir verossimilhança com os próprios resultados obtidos no estudo<br />
da constituição, organização e reprodução das relações de dominação política.<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 10-35 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
17
Mannheim (1976), para o esclarecimento da constituição social das<br />
ideias e das relações mais ou menos condicionadas que mantêm com<br />
os grupos sociais e as sociedades que as engendram (apesar de Mannheim<br />
também levar em conta as gerações). Sua premissa paradigmática<br />
é a de que<br />
existem modos de pensamento que não podem ser compreendidos<br />
adequadamente enquanto se mantiverem obscuras suas origens sociais.<br />
[...] A abordagem da Sociologia do Conhecimento não parte do<br />
indivíduo isolado e de seu pensar a fim de, à maneira do filósofo, prosseguir<br />
então diretamente até às alturas abstratas do “pensamento em<br />
si”. Ao contrário, a Sociologia do Conhecimento busca compreender<br />
o pensamento no contexto concreto de uma situação histórico-social,<br />
de onde só muito gradativamente emerge o pensamento individualmente<br />
diferenciado (MANNHEIM, 1976, p. 30-1).<br />
Certamente esse postulado da sociologia do conhecimento não permaneceu<br />
incólume desde o seu surgimento como empreendimento<br />
organizado no início do século XX; além de ter sofrido progressivamente<br />
a concorrência, de um lado, de perspectivas estruturalistas (Saussure)<br />
e pós-estruturalistas (Foucault) e, de outro, do chamado marxismo<br />
ocidental (Adorno, Benjamin, Gramsci e outros), que convergia com a<br />
ênfase de Mannheim na questão dos condicionantes sociais da cultura,<br />
ainda que operasse uma realocação desta para a esfera da dominação<br />
ideológica. Um dos principais estímulos para sua revitalização veio de<br />
Pierre Bourdieu que “trouxe o conhecimento de volta para o mapa da<br />
sociologia em uma série de estudos sobre ‘prática teórica’, ‘capital cultural’<br />
e o poder de instituições como as universidades para definir o que conta e<br />
o que não conta como conhecimento legítimo” (BURKE, 2003, p. 16).<br />
O caso da teoria sociológica de Pierre Bourdieu (1974), que tem sido<br />
muito empregada, embora com sentidos distintos e resultados muito<br />
diferentes, parece, com efeito, exemplar para discutir os limites da sociologia<br />
do conhecimento para a pesquisa da dimensão cognitiva das<br />
interpretações do Brasil. Pois, por se concentrar no “contexto” em detrimento<br />
do “texto”, essa perspectiva pouco favorece, em função dos seus<br />
próprios objetivos, uma abordagem mais consistente da dimensão cognitiva<br />
das interpretações do Brasil, não obstante possa trazer subsídios<br />
18 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 10-35 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
decisivos para a discussão sobre a mediação social do conhecimento.<br />
Para Bourdieu, “textos” representam no máximo pretextos para a análise<br />
sociológica da cultura, uma vez que a questão analítica valorizada<br />
passa a ser a das posições ocupadas e das estruturas de legitimação mobilizadas<br />
pelos produtores na configuração de um dado campo. Nesse<br />
sentido, questões como origens sociais e posições nas estruturas de poder,<br />
sociabilidade e dinâmica interna de classes ou grupos sociais, estratégias<br />
cotidianas de inserção e de viabilização das carreiras nos marcos<br />
institucionais dominantes ou, ao contrário, por meio dos circuitos mais<br />
ou menos informais e alternativos a eles, entre outras, ganham preponderância<br />
nas análises (BASTOS BOTELHO, 2010a).<br />
A importância dos “textos” para a sociologia também tem sido, por<br />
outro lado, afirmada. É o caso da recente defesa de Jeffrey Alexander<br />
de um “programa forte” para a sociologia, claramente influenciado<br />
pela sociologia da religião de Émile Durkheim. Em As formas elementares<br />
da vida religiosa (1912), Durkheim procurou relacionar crenças<br />
religiosas e cognitivas no interior de uma teoria geral das representações<br />
coletivas, valorizando o simbolismo coletivo como princípio<br />
constituinte da realidade social. Tirando consequências desse postulado<br />
em seu programa, Alexander argumenta que a sociologia não deveria<br />
se ater apenas ao estudo de “contextos”, devendo compreender<br />
também o estudo de “textos” – entendidos não apenas como textos<br />
formais ou escritos, mas também “manuscritos não escritos”, “códigos”<br />
e “narrativas” (ALEXANDER, 2000, p. 32, tradução minha). Essa<br />
reorientação constituiria a principal condição para que se pudesse<br />
identificar a dimensão semântica das instituições e das ações sociais,<br />
ou a “textualidade das instituições e a natureza discursiva da ação social”<br />
(p. 34). A premissa fundamental dessa “sociologia cultural” está<br />
na afirmação de que tanto a ação, independente do seu caráter instrumental,<br />
reflexivo ou coercitivo com relação ao seu contexto externo,<br />
“se materializa em um horizonte emotivo e significativo” quanto as<br />
instituições, independentemente do seu caráter impessoal e tecnocrático,<br />
possuem fundamentos ideais que “conformam sua organização,<br />
objetivos e legitimação” (p. 38-39).<br />
Da perspectiva de Alexander, o programa “forte” para a sociologia<br />
consiste precisamente em afirmar que a “cultura opera como uma<br />
‘variável independente’ na conformação de ações e instituições” (p. 39).<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 10-35 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
19
Assim, ao contrário do que deve ocorrer na “sociologia cultural”,<br />
na “sociologia da cultura” a cultura é uma variável apenas “branda”<br />
submetida a diferentes variáveis “fortes” e mais tangíveis da estrutura<br />
social. Nessa acepção, argumenta Alexander, o poder explicativo da<br />
cultura consiste apenas “no melhor dos casos, em participar na reprodução<br />
das relações sociais” (p. 39). Nessa sugestão radical de desacoplamento<br />
entre cultura e estrutura social, ou por outra, de afirmação<br />
da ideia de autonomia cultural, Alexander vê a única possibilidade de<br />
definir-se um “programa forte” para a sociologia da cultura capaz de<br />
identificar e qualificar sociologicamente o poder da cultura na conformação<br />
da vida social 3 . A esse respeito, penso que continua válida<br />
3 Exemplo crucial da sua proposição analítica encontra-se em “A preparação<br />
cultural para a guerra: código, narrativa e ação social” que fecha o volume<br />
Sociologia cultural. Formas de classificação nas sociedades complexas. Nele,<br />
Alexander aborda da perspectiva da sociologia cultural, isto é, considerando<br />
a cultura como variável independente, problemas de “simbolismo político” (e<br />
não de motivos racionais) em nações democráticas, uma vez que as guerras<br />
não se fariam sem a mobilização dos sentimentos e crenças dos cidadãos.<br />
Substantivamente, analisa as “dinâmicas culturais internas” presentes nos preparativos<br />
dos Estados Unidos para a Guerra do Golfo Pérsico em 1991, descartando<br />
as ideias de “manipulação exercidas pelos governos” e de “contestação<br />
dos movimentos contrários à guerra” como suficientes para compreender os<br />
processos de legitimação da guerra (p. 256). Daí que destaque literatura de<br />
ficção, filmes e informações objetivas sobre a guerra como elementos mobilizados<br />
por diferentes grupos sociais de interesse na definição da estrutura<br />
semântica do conflito. O “sentido” cultural da guerra pode ser apreendido a<br />
partir da articulação de três elementos fundamentais: código, que separa dicotomicamente<br />
– mas não de modo contingente, e sim estrutural – certas qualidades<br />
simplificadas como “bem e mal”, “puro e impuro”, “amigos e inimigos”<br />
e “sagrado e profano” (p. 256); narrativa, que permite que aqueles códigos<br />
dicotômicos adquiram sentido em relação a uma experiência histórico-universal,<br />
fazendo a guerra corresponder a um processo de “imaginação coletiva” (p.<br />
258); e gênero, que confere a capacidade dessa narrativa histórico-universal<br />
sublimar os processos sociais aumentando a importância simbólica da guerra<br />
entre os cidadãos. Em suma, a complexidade da guerra só ganharia inteligibilidade<br />
sociológica, recuando-se até a sua preparação cultural, a partir da<br />
qual tornar-se-ia possível discriminar o caráter semanticamente orientado das<br />
ações e instituições desde a estrutura interna das formações discursivas que<br />
lhe conferem sentido e legitimidade coletivas.<br />
20 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 10-35 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
a advertência de Max Weber (2004, p. 167), feita ao final de A Ética<br />
protestante e o espírito do capitalismo, sobre a insensatez das tentativas<br />
de substituir uma concepção de primazia causal materialista por<br />
outra idealista – ou vice-versa – na explicação das condutas humanas<br />
mantendo intacto, contudo, o verdadeiro problema de método envolvido<br />
que é justamente o princípio de monocausalidade.<br />
A advertência de Max Weber, aliás, é fundamental para o problema<br />
específico que estamos tratando e se desdobra em duas considerações<br />
principais. Em primeiro lugar, considero que a reorientação analítica<br />
necessária à pesquisa da dimensão cognitiva do pensamento social brasileiro<br />
não possa se limitar ao estudo de contextos, devendo compreender<br />
também o estudo de textos. Não se trata, é preciso deixar claro,<br />
de supor a autonomia dos textos; porém, recusar essa tese não implica<br />
necessariamente aceitar a oposta, do condicionamento da sociedade<br />
sobre as ideias como algo já dado de antemão – não importando aqui<br />
se os condicionantes são entendidos em termos econômicos, políticos,<br />
institucionais ou biográficos. Por isso, também a visão disjuntiva entre as<br />
abordagens chamadas textualistas e contextualistas que se apresentam,<br />
em grande medida, como concorrentes no debate contemporâneo do<br />
pensamento social brasileiro (PONTES, 1997), pode ser, em parte, problematizada.<br />
Tomadas de modo disjuntivo, ambas as posturas podem<br />
acarretar ordenações que, ao lado de inegáveis méritos, não deixam<br />
também de apresentar certos limites simplistas. Assim, mesmo reconhecendo<br />
as diferenças entre aquelas perspectivas, é possível sugerir, no<br />
lugar da escolha exclusiva entre texto ou contexto, que se reconheça e<br />
se qualifique a tensão existente entre estes termos, na medida em que<br />
ela é constitutiva da própria matéria que cumpre à análise ordenar.<br />
Em segundo lugar, se não há consenso sobre a importância dos clássicos<br />
nas Ciências <strong>Sociais</strong> em geral, o mesmo se pode dizer quanto<br />
às vertentes sensíveis à orientação semântica da vida social, isto é,<br />
entre aquelas que reconhecem a importância dos textos clássicos nas<br />
atividades cotidianas da disciplina. No que se refere às vertentes contemporâneas<br />
da sociologia voltadas para a pesquisa dos significados<br />
dos textos clássicos da disciplina, pode-se demarcar o debate em duas<br />
posições contrastantes cujo ponto crucial de discordância diz respeito<br />
à questão da intencionalidade dos autores. Questão cuja polêmica<br />
perene nas Ciências <strong>Sociais</strong> foi recolocada contemporaneamente, de<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 10-35 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
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um lado, pelas provocações críticas da chamada “teoria da recepção”<br />
(JAUSS, 1978) e, de outro, pelo chamado “contextualismo linguístico”<br />
de Quentin Skinner (TULLY, 1988; SKINNER, 1999). Assim, uma<br />
vertente que se poderia denominar “contextualista” afirma, via contextualismo<br />
linguístico, ser necessário recuperar a intencionalidade<br />
dos autores clássicos a partir da reconstituição minuciosa do contexto<br />
original em que eles e seus textos estavam inscritos (GIDDENS, 1998).<br />
Outra que se poderia denominar “analítica” afirma, por sua vez, a<br />
validade em retomar aqueles textos a partir das questões próprias do<br />
nosso presente (ALEXANDER, 1999).<br />
Uma visão disjuntiva entre essas perspectivas “analítica” e “contextualista”,<br />
no entanto, não é nem inevitável, nem desejável. Pois se supor<br />
que a intenção de um autor possa ser plenamente recuperável implica<br />
mesmo um tipo de “confiança empírica de transparência do mundo<br />
social” difícil de sustentar no contexto da sociologia pós-positivista<br />
(ALEXANDER, 1999, p. 77); de outro lado, não deixa de ser pertinente<br />
lembrar que a importância de procurar entender as intenções de<br />
um autor em um contexto específico está justamente no fato de isso<br />
fornecer uma “sólida proteção contra as excentricidades do relativismo”<br />
(GIDDENS, 1998, p. 18). Assim, penso ser justamente na tensão<br />
entre a intencionalidade do autor, isto é, levando em conta o que tencionava<br />
fazer ao escrever no contexto das questões da sua época, e os<br />
significados heurísticos daquilo que realizou para a sociologia contemporânea<br />
que se deve buscar um entendimento contemporâneo dos<br />
clássicos. É dessa perspectiva que retomo resultados de pesquisa mais<br />
ampla sobre a recepção e o significado teórico heurístico da sociologia<br />
política de Oliveira Vianna (BOTELHO, 2007).<br />
2 A AtuALiDADE DE umA iNtERPREtAÇÃo Do bRASiL<br />
Na década de 1920, em contraste com o que viria a predominar na<br />
seguinte, a preocupação com a questão da formação da sociedade<br />
brasileira partia da constatação da diversidade e das especificidades de<br />
cada uma das suas regiões e da impossibilidade de pensar a sociedade<br />
em termos homogêneos. Não é por outro motivo que o ensaio de<br />
estreia de Oliveira Vianna já traz em seu título, como um dado, a heterogeneidade<br />
brasileira. Populações meridionais do Brasil era parte de<br />
22 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 10-35 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
um projeto maior, e apenas parcialmente realizado, voltado justa mente<br />
para o esclarecimento das diferenças entre as “instituições” e a “cultura<br />
política” das populações rurais do país. O primeiro volume, de 1920,<br />
é dedicado às populações rurais do centro-sul – paulistas, fluminenses e<br />
mineiros – que para o autor teriam sido as mais influentes na evolução<br />
política nacional. A ele se seguiu o volume publicado apenas em 1952,<br />
um ano após a morte do autor, dedicado ao extremo-sul do Brasil. O<br />
terceiro volume, que não chegou a ser escrito, teria como objeto as<br />
populações setentrionais do Brasil, o sertanejo e sua expansão pela hileia<br />
amazônica. Assim, Oliveira Vianna identifica ao menos três histórias<br />
distintas na formação brasileira, fazendo corresponder a cada uma delas<br />
diferentes tipos de organização social e política e de cultura política: a do<br />
norte, do centro-sul e do extremo-sul, que geram, respectivamente, três<br />
tipos sociais específicos, o sertanejo, o matuto e o gaúcho. Três grupos que<br />
demonstram, segundo o autor, “diversidades consideráveis” na “estrutura<br />
íntima” dos brasileiros, por assim dizer (VIANNA, F. J. O., 1973, p. 15).<br />
Mais importante ainda, a diferenciação da sociedade em diversas<br />
regiões inscreve-se no próprio plano metodológico forjado nos seus<br />
ensaios. Inspirado ao que tudo indica (CARVALHO, 1993, p. 160) pela<br />
leitura de Les Français D’Aujourd’Hui (1898), de Edmond Demolins,<br />
Oliveira Vianna defende a ausência de uma unidade fundamental à<br />
sociedade brasileira, diretamente relacionada, em termos cognitivos,<br />
à sua recusa de uma explicação unilateral da vida social. Assim, são os<br />
diversos fatores de ordem racial, climática, geográfica e também social<br />
por ele mobilizados que concorreriam para a sua visão do Brasil como<br />
uma sociedade profundamente diferenciada entre regiões e tipos sociopolíticos.<br />
Em Evolução do povo brasileiro, publicado originalmente<br />
em 1923, por exemplo, explicita sua convicção e afirma:<br />
qualquer grupo humano é sempre consequência da colaboração de<br />
todos eles [aqueles diferentes fatores]; nenhum há que não seja a<br />
resultante da ação de infinitos fatores, vindos, a um tempo, da Terra,<br />
do Homem, da Sociedade e da História. Todas as teorias, que<br />
faziam depender a evolução das sociedades da ação de uma causa<br />
única, são hoje teorias abandonadas e peremptas: não há atualmente<br />
monocausalistas em Ciências <strong>Sociais</strong> (VIANNA, F. J. O., 1956, p. 30,<br />
grifos do autor).<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 10-35 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
23
Em Populações meridionais do Brasil, Oliveira Vianna evidenciou problemas<br />
cruciais da vida política brasileira, decorrentes, segundo sua tese,<br />
do papel da estrutura fundiária na configuração da vida social formada<br />
desde a colonização. Propriedades imensas, autossuficientes e ainda<br />
por cima centros de gravitação das decisões políticas locais, ligando uma<br />
massa de homens livres pobres aos latifundiários, teriam dificultado o<br />
desenvolvimento do comércio, da indústria, das cidades e de seus atores<br />
sociais característicos. Isso é válido, especialmente, para uma classe média<br />
independente, base social crucial para o vigor associativo das sociedades<br />
anglo-saxônicas tomadas como contraponto à formação brasileira.<br />
No entanto, essa volta ao passado, no momento em que a modernização/urbanização<br />
começava a se impor significava, sobretudo, buscar<br />
perspectiva para pensar os dilemas do presente e as possibilidades<br />
de futuro da sociedade. Que Brasil moderno seria possível construir?<br />
A sociedade forjada no molde rural desapareceria?<br />
Para Oliveira Vianna, apesar das mudanças em curso em sua época,<br />
algumas estruturas e atitudes sociais do nosso passado rural continuavam<br />
desempenhando papéis cruciais, em especial na vida política.<br />
Um exemplo seria a problemática relação entre as esferas pública e<br />
privada na sociedade brasileira. Não apenas a fragilidade do público<br />
contrastava com a pujança do privado, mas tais esferas também se<br />
baralhavam, criando toda sorte de dilemas. Esse baralhamento trazia<br />
enormes dificuldades para a identificação e a associação, visando<br />
interesses comuns, para além dos círculos domésticos originalmente<br />
ligados aos latifúndios. Também tornava as instituições públicas extremamente<br />
suscetíveis a programas voltados para a promoção de<br />
interesses particulares. Além disso, distorcia a vida política em uma<br />
trama de relações de fidelidades pessoais e contraprestação de favores<br />
envolvendo toda sorte de bens materiais, prestígio, controle de<br />
cargos públicos, votos etc. Em face dessa situação, para Vianna, seria<br />
urgente reorganizar, fortalecer e centralizar o Estado, único ator que,<br />
dotado dessas características, seria capaz de enfraquecer as oligarquias<br />
agrárias e sua ação corruptora das liberdades públicas e individuais e,<br />
desse modo, corrigir os defeitos da nossa formação nacional.<br />
Justamente essa dimensão normativa da interpretação de Oliveira<br />
Vianna despertou maior interesse em seus analistas. Permanecem<br />
abertas, no entanto, as controvérsias quanto ao “sentido” de sua defesa<br />
24 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 10-35 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
do princípio autoritário de ordenamento político da vida coletiva –<br />
autoritário pelo privilégio que concede à unidade e à ordem em<br />
detrimento do conflito e da transformação da própria estrutura social –,<br />
como a reforma agrária, por exemplo. Assim, discute-se se aquela<br />
defesa é “substantiva” (LAMOUNIER, 1977) ou apenas “instrumental”,<br />
ou seja, se o formato político proposto seria transitório para a realização<br />
de uma sociedade liberal fundada na noção de direitos universais<br />
(SANTOS, 1978). O mesmo debate foi reposto mais recentemente em<br />
relação a sua visão “iberista” da modernidade como uma alternativa<br />
ao liberalismo “anglo-saxão”: novamente a questão é se esta seria<br />
“instrumental” (VIANNA, L. W., 1993) ou não (CARVALHO, 1993).<br />
Contribuiu para essa polêmica, sem dúvida, a identificação pessoal<br />
de Oliveira Vianna ao Estado Novo (a ditadura instaurada por Getúlio<br />
Vargas entre 1937 e 1945), no qual atuou decisivamente, sobretudo<br />
como consultor jurídico do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio,<br />
tendo sido antes um dos responsáveis pela elaboração do anteprojeto<br />
para a Constituição de 1934 (considerada autoritária e centralista).<br />
Embora as relações entre obra e trajetória de um autor não possam<br />
ser menosprezadas, é preciso cuidado para não assimilar uma pela<br />
outra, como se existisse uma predeterminação ou continuidade linear<br />
entre elas. Tal cuidado aplica-se no caso de Oliveira Vianna, a começar<br />
pelo fato de que suas ideias não permaneceram as mesmas, nem<br />
foram sempre vencedoras nos embates intelectuais e institucionais<br />
que travou. Mesmo sua convicção “autoritária” da ação transformadora<br />
do Estado, presente no primeiro volume de Populações meridionais do<br />
Brasil (1920), seu ensaio de estreia, foi contingente, tensa e descontínua<br />
ao longo do desenvolvimento da sua obra e da sua trajetória.<br />
Por exemplo, a afirmação feita em Instituições políticas brasileiras<br />
(1949) de que os “complexos culturais” tenderiam à estabilidade revela<br />
não apenas uma maturação de ideias, mas uma nova percepção<br />
sobre os próprios limites da ação do Estado. Pois, ao mobilizar a cultura<br />
para enfatizar a inutilidade de reformas políticas e jurídicas feitas<br />
em desacordo com os valores assentados na sociedade pela tradição<br />
(o que chama de “direito costumeiro”), Oliveira Vianna problematiza<br />
sua própria posição inicial sobre a capacidade de o Estado recriar a<br />
velha sociedade corrompida por práticas privatistas. Essa questão é<br />
aprofundada no livro póstumo Introdução à história social da econo-<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 10-35 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
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mia capitalista no Brasil (1958), no qual propõe justamente uma volta<br />
aos valores “patriarcais” e “pré-capitalistas” presentes nas origens<br />
da formação social brasileira como possibilidade de reordenação não<br />
conflituosa da vida social.<br />
Quando passamos, porém, dos aspectos mais salientes – e mais datados<br />
– da obra e da trajetória de Oliveira Vianna e da recepção de suas<br />
ideias, entrando nos aspectos teóricos mais gerais, é possível identificar<br />
um conjunto de proposições que confere a sua sociologia política<br />
um interesse mais amplo que o sentido normativo ao qual geralmente<br />
é associada. Tomo para tanto uma questão central da sociologia<br />
política de Oliveira Vianna, questão que expressa de modo emblemático<br />
como uma interpretação fortemente interessada da realidade<br />
social pode produzir conhecimento sociológico relevante. Como se<br />
sabe, era lugar-comum da crítica conservadora da Primeira República<br />
(1889-1930), e não só dela, conferir às instituições republicanas uma<br />
legalidade sem correspondência na sociedade – como se existissem,<br />
desencontrados, um país “legal” (o da Constituição liberal de 1891) e<br />
outro “real” (o do dia a dia da sociedade). Esse lugar comum é confirmado<br />
por evidências cotidianas de que os direitos, como princípios<br />
normativos universais associados à tradição liberal, não se efetivavam<br />
naquele contexto corrompido por toda sorte de práticas oligárquicas.<br />
Como a maioria dos seus contemporâneos, embora com diferenças<br />
entre eles, Oliveira Vianna descartou qualquer encaminhamento tipicamente<br />
liberal para a efetivação dos direitos e da cidadania. Formulou,<br />
antes, outra concepção de cidadania, que suprimia a noção de indivíduo<br />
como portador de direitos e subordinava-o, como membro de<br />
um grupo profissional, de modo vertical e tutelar ao Estado. E se a controvérsia<br />
quanto ao sentido do seu autoritarismo permanece aberta,<br />
como já assinalado, não se pode negligenciar que, naquele momento,<br />
o liberalismo conferia força às pressões pela democratização política<br />
e social. Em todo caso, a diferença de Oliveira Vianna em relação<br />
aos seus contemporâneos que importa assinalar aqui é que ele soube<br />
traduzir a crítica comum à Primeira República liberal-oligárquica em<br />
termos teórico-metodológicos relativamente consistentes; além de tê-<br />
la formalizado na tese segundo a qual os fundamentos e a dinâmica<br />
das instituições políticas se encontrariam nas relações sociais.<br />
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Exemplar é a discussão de Populações meridionais sobre a parcialidade<br />
da Justiça como um efeito contrário ao pretendido pela adoção<br />
de instituições liberais – no caso, as eleições para juízes – em uma<br />
sociedade oligárquica como a brasileira. Tal parcialidade ocorreria, de<br />
um lado, porque os “caudilhos rurais”, que dominavam as câmaras<br />
municipais e o aparelho eleitoral, só escolheriam para os juizados homens<br />
da sua confiança, de outro, porque a necessidade do sufrágio<br />
local forçaria o próprio juiz a se fazer “criatura da facção” que o elege.<br />
Assim, o juiz tornar-se-ia instrumento da “impunidade” ou da “vingança”<br />
conforme tivesse diante de si um “amigo” ou um “adversário” –<br />
estamos aqui diante da familiar máxima “aos amigos tudo, aos inimigos<br />
a lei”. Nesse, como em outros exemplos que poderiam ser tomados<br />
quase ao acaso em sua obra, Oliveira Vianna expressa sua preocupação<br />
quanto aos impasses sociais produzidos pela desarticulação entre<br />
as instituições liberais “transplantadas” e a realidade singular brasileira.<br />
Mas o que o exemplo sugere, em termos teóricos, é também que as<br />
instituições não são virtuosas em si mesmas, não são exatamente locais<br />
de ação autônoma em relação aos valores e às práticas vigentes na<br />
sociedade como um todo. E por isso mesmo, não podem ser tomadas<br />
como variáveis independentes de outras forças sociais. Ao contrário,<br />
as instituições políticas seriam inevitavelmente forçadas a interagir<br />
com estruturas, relações e recursos sócio-históricos – e de poder legal<br />
e extralegal – mais amplos. Dessa interação resultaria a dinâmica possível<br />
que as instituições políticas assumiriam na sociedade.<br />
Essa proposição teórico-metodológica foi crucial na definição de<br />
uma agenda de pesquisas da sociologia política brasileira posterior<br />
(BOTELHO, 2007). Abrangendo continuidades e descontinuidades,<br />
integram essa agenda Coronelismo, enxada e voto (1949), do jurista e<br />
cientista político Victor Nunes Leal (1914-1985), diferentes pesquisas<br />
sobre política, messianismo e cultura rural da socióloga Maria Isaura<br />
Pereira de Queiroz e ainda Homens livres na ordem escravocrata<br />
(1964), da socióloga Maria Sylvia de Carvalho Franco, por exemplo.<br />
Muito resumidamente pode-se dizer que tais trabalhos levaram às<br />
últimas consequências a tese dos fundamentos sociais das instituições<br />
políticas de Oliveira Vianna, tomando para si justamente a tarefa<br />
de investigar, com os recursos próprios da sociologia, os processos de<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 10-35 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
27
aquisição, distribuição, organização e exercício de poder político e<br />
suas complexas relações com a estrutura social brasileira.<br />
Por isso eles voltaram ao passado da sociedade brasileira para tratar de<br />
fenômenos já assinalados por Oliveira Vianna, como “mandonismo”,<br />
“coronelismo”, “relações de favor”, “parentela”, “voto de cabresto” e<br />
“exercício personalizado do poder”. As relações de dominação política<br />
não se sustentam sem uma base social de legitimação, e por essa<br />
razão esses fenômenos foram vistos – tal como por Oliveira Vianna –<br />
integrando um “sistema de reciprocidades” assimétricas que envolveria<br />
relações diretas, pessoalizadas e violentas engendradas entre os<br />
diferentes grupos sociais. Estas seriam as bases sociais da vida política<br />
brasileira. Como as inovações institucionais não se realizariam em um<br />
vazio de relações sociais, essas bases não poderiam ser menosprezadas,<br />
mesmo consumada a passagem da sociedade rural à urbana.<br />
Ao problematizar a interação entre instituições políticas e vida social,<br />
de um lado, e a capacidade de ação de indivíduos e grupos e o<br />
condicionamento dessas ações pelas estruturas sociais, de outro, também<br />
essa vertente da sociologia política apresenta ganhos cognitivos<br />
importantes para a compreensão de certos desafios ainda abertos à<br />
cidadania democrática no Brasil como, por exemplo, o do associativismo,<br />
condição da democracia quando a consideramos também do<br />
ponto de vista societário (e não exclusivamente institucional). Fenômeno<br />
social que, apesar do seu crescimento em nossa história recente, continua<br />
não apenas frágil como ainda muito marcado por princípios de<br />
identidade e de conduta pouco universalistas, o que acaba por fortalecer<br />
uma atitude cética em relação às próprias instituições políticas.<br />
Esse reconhecimento é mais importante quando observamos que a<br />
reflexão feita no Brasil nos últimos vinte anos levou, significativamente,<br />
a que se privilegiasse o funcionamento das instituições e seu papel<br />
na vida social de modo quase independente, como se os processos<br />
políticos existissem exclusivamente no âmbito sistêmico e não mantivessem<br />
nenhuma espécie de vínculo com o “mundo da vida”. Essa<br />
abordagem que, em larga medida, tem um débito com a economia<br />
neoclássica (Habermas chega a falar em “colonização” das ciências<br />
sociais pela economia para explicar essa operação intelectual), tem<br />
por fundamento as escolhas e preferências de eleitores e políticos,<br />
concebidos essencialmente como calculadores, maximizadores, utili-<br />
28 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 10-35 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
taristas, em suma, rational choice. Esse ângulo de análise, ainda que<br />
tenha contribuído para a elaboração de pesquisas preocupadas com a<br />
demonstração empírica e com a descrição dos fenômenos analisados,<br />
teve também o inconveniente de abdicar excessivamente de outras<br />
dimensões do fenômeno político que vão além do homus economicus<br />
e da lógica estritamente institucional (BOTELHO; LAHUERTA, 2005).<br />
Afinal, será mesmo que, apesar das mudanças sociais e institucionais<br />
dos últimos tempos, aquilo que Oliveira Vianna identificou – o<br />
baralhamento entre público e privado e suas consequências no modo<br />
como lidamos cotidianamente com as instituições e a vida política –<br />
simplesmente desapareceu? Creio que não faltarão elementos no horizonte<br />
pessoal do próprio leitor para que possa responder à pergunta.<br />
CoNSiDERAÇÕES fiNAiS: iNtÉRPREtES Do<br />
bRASiL, NoSSoS ANtEPASSADoS?<br />
No prefácio que escreveu para seu livro Os nossos antepassados,<br />
Ítalo Calvino confessa seu desejo pessoal de liberdade ao escrever ao<br />
longo da década de 1950 as três histórias “inverossímeis” reunidas no<br />
livro, com relação à classificação de “neorrealista” a que seus escritos<br />
anteriores o haviam levado. Mas com sua trilogia procurou, sobretudo,<br />
sugerir três níveis diferentes de aproximação da liberdade na experiên-<br />
cia humana que “pudessem ser vistas como uma árvore genealógica<br />
dos antepassados do homem contemporâneo, em que cada rosto oculta<br />
algum traço das pessoas que estão a nossa volta, de vocês, de mim<br />
mesmo” (CALVINO, 1999, p. 20) 4 . Mais do que o caráter imaginário<br />
da “genealogia” (certamente importante, mas não surpreendente, já<br />
que toda pretensão genealógica traz sempre boa dose de bovarismo),<br />
a confissão de Calvino esclarece, quando se leva em conta o contexto<br />
desses seus escritos – “Estávamos no auge da guerra fria, havia uma<br />
tensão no ar, um dilaceramento surdo, que não se manifestavam em<br />
imagens visíveis mas dominavam os nossos ânimos” (CALVINO, 1990,<br />
p. 9) – o quanto, sobretudo em momentos particularmente dramáticos<br />
em termos sociais, a busca de uma perspectiva que permita ligar a ex-<br />
4 A trilogia é composta por O visconde partido ao meio, O barão nas árvores<br />
e O cavaleiro inexistente.<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 10-35 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
29
periência presente ao passado pode representar “um impulso para sair<br />
dele (do presente) e, então, divisar melhor as possibilidades de futuro.<br />
Essa estranha reflexão de Calvino sobre a utopia, na qual a reconstrução<br />
do passado tem papel crucial na construção do futuro, é boa<br />
para pensar o tipo de trabalho intelectual envolvido na área de pesquisa<br />
do pensamento social brasileiro. Isso não apenas porque os ensaios<br />
de interpretação do Brasil que formam a matéria-prima da área<br />
inovaram nessa mesma direção ao ensinarem a pensar a dimensão de<br />
processo social inscrita no presente vivido, como Antonio Candido<br />
(2006, p. 235) se refere ao legado da geração de ensaístas da década<br />
de 1930 para a sua própria geração. Mas, sobretudo, porque, as interpretações<br />
do Brasil são elementos importantes para a compreensão da<br />
articulação das forças sociais que operam no desenho da sociedade<br />
e que contribuem para movê-la em determinadas direções. Ou seja,<br />
não se pode negligenciar a vigência dessas formas de pensar o Brasil<br />
na esfera da “cultura política”, como foi comum ao nosso ambiente<br />
acadêmico entre as décadas de 1970 e 1990, porque muitas delas deram<br />
vida a projetos, foram assumidas por determinados grupos sociais<br />
e se institucionalizaram, informando ainda hoje valores, condutas e<br />
práticas sociais.<br />
Como espero ter sugerido com a discussão sobre Oliveira Vianna, a<br />
aproximação das interpretações do passado às questões e perguntas<br />
do presente é suscitada porque os desafios atuais de qualquer sociedade<br />
também estão associados à sequência do seu desenvolvimento<br />
histórico.<br />
Assim, como ocorre em relação aos antepassados inverossímeis de<br />
Calvino, são as relações sociais e políticas em curso na sociedade brasileira<br />
que nos interpelam constantemente a voltar às interpretações<br />
de que foi objeto no passado, e não o contrário. Porque, afinal, podemos<br />
identificar nas interpretações do Brasil proposições cognitivas<br />
e ideológicas que ainda nos dizem respeito, já que o processo social<br />
por elas narrado – de modo realista ou não, mas em face das questões<br />
e com os recursos intelectuais que o seu tempo tornou disponíveis –<br />
permanece, ele mesmo, em vários sentidos em aberto. Se do ponto de<br />
vista substantivo, esse processo encontra inteligibilidade sociológica na<br />
modernização conservadora em que, feitas as contas dos últimos anos,<br />
prosseguimos, e a partir da qual a mudança social tem se efetivado<br />
30 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 10-35 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
a despeito de deixar praticamente intactos ou redefinidos noutros<br />
patamares problemas seculares; também do ponto de vista teórico-<br />
metodológico, embora sejam inegáveis os ganhos epistemológicos das<br />
Ciências <strong>Sociais</strong> institucionalizadas como disciplina acadêmica, não<br />
existem razões suficientes para superestimá-los como se tivessem permitido<br />
resolver de modo permanente os problemas que os ensaístas<br />
ou os cientistas sociais das gerações anteriores levantaram.<br />
Considero, assim, que a conexão entre pensamento social e teoria<br />
sociológica, aproximando questões do presente a interpretações do passado,<br />
permite fazer uma crítica consistente à abstração da constituição<br />
diacrônica e dinâmica da sociedade e, desse modo, questionar a tendência<br />
de parte importante da sociologia contemporânea a se refugiar<br />
no presente. É essa, aliás, uma das conquistas heurísticas da sociologia<br />
historicamente orientada em geral, ao permitir, na investigação das<br />
interrelações de ações significativas e contextos estruturais, a compreensão<br />
das consequências inesperadas e também das pretendidas nas vidas<br />
individuais e nas transformações sociais (SKOCPOL, 1984).<br />
A abordagem analítica proposta justifica-se, então, fundamentalmente,<br />
tendo em vista o próprio perfil cognitivo das Ciências <strong>Sociais</strong>,<br />
em geral, e da sociologia, em particular. Em primeiro lugar, sendo o<br />
sentido da construção do conhecimento sociológico cumulativo, ainda<br />
que cronicamente não consensual (GIDDENS, 1998; ALEXANDER,<br />
1999), o reexame constante de suas realizações passadas inclusive<br />
pela exegese de textos assume papel muito mais do que tangencial na<br />
prática corrente da disciplina. Em segundo, porque, se “é verdade que<br />
há impasses reais no presente, também é verdade que as controvérsias<br />
sobre o seu objeto e método são mais ou menos permanentes” em<br />
função da própria singularidade da sociologia “que sempre se pensa,<br />
ao mesmo tempo em que se realiza, desenvolve, enfrenta impasses,<br />
reorienta” (IANNI, 1990, p. 92). Assim, confrontada às sínteses sociológicas<br />
do passado, a realização de pesquisas “concretas” sobre as<br />
diferentes dimensões da vida social no presente imediato talvez possa<br />
nos dar uma visão mais integrada e consistente da dimensão de processo<br />
social que o nosso presente ainda oculta – um fio de Ariadne,<br />
por assim dizer.<br />
Essa tarefa se torna mais necessária na medida em que percebemos<br />
que as interpretações do Brasil operam não apenas em termos<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 10-35 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
31
cognitivos, mas também normativos. Elas são forças sociais que direta<br />
ou indiretamente contribuem para delimitar posições, conferindo-lhes<br />
inteligibilidade, em diferentes disputas de poder travadas na sociedade.<br />
Os ensaios, como outras formas de conhecimento social, não são<br />
meras descrições externas da sociedade. Eles também operam reflexivamente,<br />
desde dentro, como um tipo de metalinguagem da própria<br />
sociedade brasileira, como uma semântica histórica que participa da<br />
configuração de processos sociais mais amplos, como o da construção<br />
do Estado-nação (BOTELHO, 2005). Com efeito, resultados recentes<br />
de surveys sobre cultura política, por exemplo, indicam que categorias<br />
centrais daquelas interpretações continuam informando a opinião dos<br />
brasileiros e parecem em parte dar coesão ao próprio senso comum<br />
(ALMEIDA, 2007, por exemplo).<br />
O legado intelectual e político que Oliveira Vianna, Gilberto Freyre,<br />
Sérgio Buarque, Caio Prado e outros intérpretes nos deixaram ainda<br />
nos diz respeito, quer seja para aceitá-lo ou rejeitá-lo, e tenhamos nós<br />
consciência disso ou não. E quando lembramos que um traço marcante<br />
da dinâmica social brasileira tem sido a impressão (quase sempre<br />
interessada) de que a nossa vida intelectual está sempre recomeçando<br />
do zero a cada nova geração (SCHWARZ, 1987, p. 30), maior a importância<br />
desse tipo de pesquisa. Enfim, porque as interpretações do<br />
Brasil não são apenas descrições externas, mas também operam como<br />
um tipo de metalinguagem reflexiva da sociedade, elas representam,<br />
em meio ao labirinto da especialização acadêmica contemporânea,<br />
um espaço social de comunicação entre presente, passado e futuro<br />
que, adaptando Calvino, poderá nos dar uma visão mais integrada e<br />
consistente do processo histórico que o nosso presente ainda oculta –<br />
e que está “a nossa volta, de vocês, de mim mesmo”.<br />
32 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 10-35 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
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35
CotAS AumENtAm A<br />
DivERSiDADE DoS<br />
EStuDANtES SEm<br />
ComPRomEtER o<br />
DESEmPENHo? 1<br />
Fábio D. Waltenberg<br />
Márcia de Carvalho<br />
1 Os autores agradecem a um parecerista anônimo e à editoria da revista<br />
pelas sugestões, comentários e críticas. Também foram importantes os comentários<br />
recebidos na apresentação deste estudo no XVII Encontro da Sociedade<br />
de Economia Política, bem como, previamente, em seminários internos do<br />
Núcleo de Estudos em Educação (NEE) do Centro de Estudo sobre Desigualdade<br />
e Desenvolvimento (Cede).<br />
36 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
Políticas de ação afirmativa (cotas ou bônus; “raciais” ou “sociais”) têm sido<br />
implementadas no Brasil nos últimos dez anos com o objetivo de reduzir a<br />
desigualdade de oportunidades, por meio do aumento da probabilidade de<br />
acesso de grupos desfavorecidos ao ensino superior. Neste estudo, a partir dos<br />
dados mais recentes do Enade disponíveis, traça-se um perfil dos concluintes<br />
dos cursos avaliados em 2008, comparando-se alunos beneficiados por ações<br />
afirmativas com os demais alunos, inclusive no que se refere ao desempenho<br />
na prova de conhecimentos específicos. Nossos resultados sugerem que as diversas<br />
políticas de ações afirmativas foram bem-sucedidas no objetivo de proporcionar<br />
maior diversidade – entendida como maior representação de grupos<br />
desfavorecidos – nas universidades. Nas Instituições de Ensino Superior (IES)<br />
privadas, não se registram fortes hiatos de desempenho entre alunos beneficiários<br />
das ações afirmativas e não beneficiários, a não ser em cursos com alto<br />
prestígio social. Nas IES públicas o desempenho dos beneficiários é inferior ao<br />
dos demais alunos, para todos os tipos de cursos. Interpreta-se esse hiato como<br />
um preço pago pela sociedade em prol da diversidade e da equalização das<br />
oportunidades.<br />
Palavras-chave: ações afirmativas; ensino superior; desempenho; igualdade de<br />
oportunidades<br />
Different kinds of affirmative action policies have been implemented in Brazil<br />
along the last decade, aiming at reducing the inequality of opportunities, through<br />
an increase in the probability of access to higher education of disfavored<br />
groups. In this study, employing the most recent available Enade datasets, we<br />
portray the profile of the higher education graduates evaluated in 2008, comparing<br />
beneficiaries of affirmative action policies and non-beneficiaries in terms<br />
of their performance in a (course-specific) standardized test administered to<br />
all graduates. Our results suggest that the diversified affirmative action policies<br />
have achieved the goal of increasing socioeconomic diversity in Brazil’s campuses.<br />
In private institutions of higher education the performance of beneficiaries<br />
and non-beneficiaries is similar, except for high status courses, where beneficiaries<br />
achieve a lower performance. In the public institutions, however, whatever<br />
the social status of the course, the performance of beneficiaries is systematically<br />
lower than that of non-beneficiaries. We interpret this finding as the price society<br />
pays in order to increase diversity and equalize opportunities.<br />
Keywords: affirmative action policies; higher education; performance; equality<br />
of opportunities<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
37
iNtRoDuÇÃo<br />
A educação afeta diversas dimensões da vida social e econômica<br />
de um país. Quanto mais se investe em educação, além dos efeitos<br />
diretos positivos na economia do país, maior é o retorno à sociedade<br />
em termos de bem-estar, redução das taxas de fecundidade e mortalidade,<br />
e possivelmente redução dos índices de violência. A educação<br />
superior, em particular, tem impacto no mercado de trabalho e na<br />
capacidade de absorção de inovação tecnológica e produtividade.<br />
Em termos de benefícios privadamente apropriados pelos indivíduos,<br />
no Brasil, a conclusão de um curso de graduação é acompanhada por<br />
uma menor taxa de desemprego e por um retorno financeiro 2,6 vezes<br />
maior, em média, comparado com os que pararam os estudos no<br />
ensino médio (CARVALHO, 2011). Apesar deste prêmio à educação<br />
superior, que no Brasil ainda é alto comparado com o observado em<br />
países desenvolvidos, dados da Pnad de 2009 indicam que apenas<br />
11% da população adulta brasileira tinham curso de graduação e que<br />
havia um estoque de 29 milhões de pessoas de 16 a 40 anos com ensino<br />
médio completo que poderiam estar cursando o ensino superior.<br />
Ainda mais preocupante do que a (baixa) proporção de diplomados<br />
na população seria constatar pouca diversidade socioeconômica entre<br />
os estudantes. E de fato, embora entre 2006 e 2008 85% dos concluintes<br />
do ensino médio fossem oriundos do sistema público de ensino,<br />
dos indivíduos que ingressaram nos cursos de graduação no Brasil<br />
nesse período, apenas 57% provinham do ensino médio público. Na<br />
mesma linha, em 2009, enquanto 45% das pessoas com ensino médio<br />
completo provinham de famílias relativamente pobres (com renda<br />
familiar de até 3 salários mínimos), entre os ingressantes do ensino<br />
superior essa proporção caía para 39%. Considerando apenas as pessoas<br />
com ensino médio completo, 50,3% se declararam não brancas<br />
enquanto entre os ingressantes dos cursos de graduação a incidência<br />
desse grupo era de 36,4%.<br />
De acordo com a teoria de igualdade de oportunidades do economista<br />
John Roemer (1998), muito em voga atualmente (FLEURBAEY,<br />
2008; FERREIRA; GIGNOUX, 2011), quando existe sub-representação<br />
por parte de um grupo socioeconômico, definido pela sociedade<br />
como relevante e legítimo, no acesso a um serviço ou vantagem –<br />
38 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
como ocorre com o acesso de certos grupos ao ensino superior no<br />
Brasil – estamos diante de um problema de desigualdade de oportunidades,<br />
uma vez que, em tal caso, a dificuldade de obter acesso ao serviço<br />
ou vantagem deve ter sido causada sobretudo por circunstâncias<br />
desfavoráveis.<br />
No caso do ensino superior, uma tentativa de mitigar o problema<br />
de acesso limitado de certos grupos consiste na aplicação de políticas<br />
de ação afirmativa. As ações afirmativas podem ser compreendidas<br />
como programas que buscam prover oportunidades ou outros benefícios<br />
para pessoas pertencentes a grupos específicos, alvo de discriminação<br />
ou com pouco acesso a recursos (IPEA, 2008) e têm sido<br />
aplicadas em vários países e em diferentes etapas da educação, bem<br />
como no mercado de trabalho. No Brasil, as ações afirmativas têm se<br />
concentrado no acesso aos cursos de graduação, por meio de diferentes<br />
instrumentos: cotas e bônus, ditos “raciais” ou “sociais”. As cotas<br />
“raciais” utilizam como critério a cor da pele do aluno, de acordo com<br />
autodeclaração. Os critérios “sociais” baseiam-se numa baixa renda<br />
familiar ou no fato de o aluno ser oriundo do ensino médio público<br />
(escolas municipais, estaduais ou federais ou de cursos supletivos presenciais<br />
de educação de jovens e adultos). Há casos em que ambos os<br />
critérios são considerados simultaneamente, quando vagas são reservadas,<br />
por exemplo, a alunos negros pobres.<br />
Em sociedades democráticas, políticas de ação afirmativa são (e<br />
sempre serão) controvertidas, principalmente porque: a) envolvem redistribuição<br />
de um bem escasso – como são as vagas nas universidades<br />
de melhor qualidade no Brasil –, gerando “ganhadores e perdedores”;<br />
b) representam uma mudança das regras vigentes e, portanto, um desafio<br />
ao status quo prevalecente anteriormente, suscitando reação dos<br />
grupos que, sem tais políticas, tinham ou teriam acesso à vantagem em<br />
questão e veem-se agora ameaçados; c) proporcionam oportunidades<br />
a grupos desfavorecidos, usualmente com menos voz no debate público<br />
do que grupos favorecidos. Não é por acaso, portanto, que há (e<br />
sempre haverá) disputa política em torno dos critérios definidores dos<br />
potenciais beneficiários das ações afirmativas, bem como em torno de<br />
sua própria legitimidade.<br />
Em razão dessa disputa política, variadas críticas são levantadas contra<br />
as ações afirmativas. Duas das mais comuns são: a) políticas de<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
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ação afirmativa beneficiariam somente os membros mais favorecidos<br />
dos grupos desfavorecidos, sendo, portanto, injustas 2 ; b) por garantirem<br />
vagas a alunos que, em sua ausência, não entrariam na universidade,<br />
tais políticas teriam como consequência uma queda na “qualidade” dos<br />
ingressantes e, provavelmente, dos concluintes.<br />
As políticas de ação afirmativa têm sido implementadas no Brasil<br />
desde 2001 – já há mais de uma década, portanto – iniciando-se com<br />
ações pioneiras nos estados do Rio de Janeiro e Bahia e no Distrito<br />
Federal. O Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade)<br />
avalia o rendimento dos alunos ingressantes e concluintes dos cursos<br />
de graduação, em relação aos conteúdos programáticos dos cursos em<br />
que estão matriculados, desde 2004. Contudo, perguntas sobre ações<br />
afirmativas apareceram no questionário socioeconômico do Enade somente<br />
a partir de 2008 – justamente os dados mais recentes disponibilizados<br />
pelo Inep.<br />
De posse desses dados, é possível traçar um perfil socioeconômico<br />
dos concluintes dos cursos avaliados em 2008, comparando-se alunos<br />
beneficiados por ações afirmativas com demais alunos, inclusive no<br />
que se refere a seu desempenho na prova de conhecimentos específicos.<br />
Assim, buscamos contribuir com o debate sobre as ações afirmativas,<br />
trazendo elementos relacionados às duas críticas já mencionadas.<br />
Somos capazes de investigar, de um lado, o quão desfavorecidos são os<br />
beneficiários das ações afirmativas, e, de outro lado, se o seu desempenho<br />
no Enade é significativamente inferior ao dos demais concluintes.<br />
2 Com relação à questão normativa que permeia a primeira crítica, ressalte-se<br />
que, segundo a definição de igualdade de oportunidades de Roemer, não há<br />
nenhuma injustiça no fato de os beneficiados de uma política serem os mais<br />
favorecidos dentro do seu grupo (ou “tipo” no jargão roemeriano). Contanto<br />
que tenham sido corretamente definidos os tipos (isto é, devidamente consideradas<br />
as circunstâncias limitantes do acesso à vantagem em questão), os<br />
mais favorecidos dentro de cada tipo seriam justamente aqueles que, dadas as<br />
suas circunstâncias, teriam se dedicado mais, feito mais esforços. Uma crítica<br />
mais pertinente consistiria em se afirmar que critérios unidimensionais – com<br />
base exclusivamente na cor da pele, por exemplo – inescapavelmente constituem<br />
definições incompletas de tipos. Para mais detalhes, veja-se Roemer<br />
(1998), ou Waltenberg (2007) para uma interpretação da teoria daquele autor<br />
aplicada ao caso das universidades brasileiras.<br />
40 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
Entendendo-se como “diversidade” uma maior representação de<br />
grupos desfavorecidos, nossa análise dos dados sugere que as diversas<br />
políticas de ações afirmativas foram de fato bem-sucedidas no objetivo<br />
de proporcionar maior diversidade nas universidades. Nas Instituições<br />
de Ensino Superior (IES) privadas, não se registram fortes hiatos<br />
de desempenho entre alunos beneficiários das ações afirmativas e não<br />
beneficiários, a não ser em cursos com alto prestígio social. Nas IES<br />
públicas, contudo, o desempenho dos beneficiários é inferior ao dos<br />
demais alunos, para todos os tipos de cursos. Interpretamos esse hiato<br />
como um preço pago pela sociedade em prol da diversidade e da<br />
equalização das oportunidades.<br />
Este trabalho está dividido em cinco seções, além desta introdução.<br />
A seção 1 contém um breve histórico das ações afirmativas. A seção<br />
2 é metodológica e descreve a base de dados do Enade de 2008 e<br />
as variáveis utilizadas no trabalho. A seção 3 traça o perfil dos alunos<br />
que ingressaram por ações afirmativas nas instituições públicas e que<br />
conseguiram concluir o curso de graduação, bem como o dos demais<br />
concluintes. Na seção 4, apresentam-se resultados de uma tentativa<br />
de se mensurar o efeito da forma de ingresso do aluno (por ação afirmativa<br />
ou não) na nota do aluno no teste de conhecimentos específicos<br />
aplicado no ano da conclusão da graduação. A seção final traz as<br />
conclusões do trabalho.<br />
1 bREvE HiStÓRiCo DAS PoLÍtiCAS<br />
DE AÇÃo AfiRmAtivA No bRASiL<br />
Ações afirmativas são um conjunto de políticas públicas e privadas<br />
cujo objetivo é implantar certa diversidade e maior representatividade<br />
de grupos minoritários nos diversos domínios de atividade pública e<br />
privada, além de combater a discriminação (GOMES, 2001). Ações<br />
afirmativas surgiram em caráter compulsório, facultativo ou voluntário<br />
para combater a discriminação racial, de gênero, de origem nacional e<br />
por deficiência física, visando a atingir o ideal de igualdade de acesso<br />
a bens fundamentais como a educação e o emprego.<br />
Os programas de ações afirmativas surgiram nos EUA após a Segunda<br />
Guerra Mundial na contratação de empregados negros pelas<br />
empreiteiras, mas ganharam força na década de 1960 com o movi-<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
41
mento dos direitos civis. Aos poucos as políticas foram estendidas às<br />
mulheres, aos indígenas e aos deficientes físicos e sua aplicação chegou<br />
também a instituições de ensino. A Universidade da Califórnia<br />
foi pioneira no estabelecimento de programas em prol de minorias.<br />
Segundo Oliven (2007), em julho de 1995 o programa de ação afirmativa<br />
com base na cor da pele foi suspenso, tendo como resultado<br />
uma redução do percentual de alunos negros rumo aos níveis dos anos<br />
1960. Esse percentual voltou a aumentar nos campi e cursos menos<br />
seletivos a partir de 2001 com a admissão automática dos melhores<br />
alunos das escolas públicas. Atualmente, várias universidades públicas<br />
em estados como Califórnia, Washington e Flórida, que proibiram a<br />
ação afirmativa com base na cor da pele, usam a situação econômica<br />
como fator de decisão nas admissões.<br />
A implementação de políticas de ação afirmativa no âmbito da educação<br />
superior no Brasil se iniciou em 2000 no estado do Rio de Janeiro,<br />
com a Lei Estadual n° 3.524 que reservava 50% das vagas da Universidade<br />
Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e da Univeridade Estadual<br />
do Norte Fluminense (UENF) para alunos oriundos da rede pública<br />
estadual de ensino. Em 2001 foi promulgada a Lei Estadual n° 3.708<br />
que reservava 40% das vagas da Uerj e UENF para negros e pardos.<br />
Com essas duas leis, 90% das vagas das universidades estaduais do Rio<br />
de Janeiro estariam reservadas, o que gerou muita polêmica e discussão,<br />
segundo Matta (2010). Em 2003 as duas leis foram revogadas e<br />
determinou-se que 45% das vagas deveriam ser reservadas: 20% para<br />
negros, 20% para concluintes do ensino médio público e 5% para deficientes<br />
físicos e minorias étnicas.<br />
Além das reservas de vagas (cotas), as ações afirmativas no ingresso<br />
ao ensino superior têm utilizado o instrumento de bonificação. Nesse<br />
sistema, os alunos recebem uma quantidade de pontos que são somados<br />
ao resultado de seu exame de seleção. A seguir, comentamos as<br />
experiências pioneiras tanto de cotas como de bonificações.<br />
1.1 A ExPERiêNCiA DAS CotAS NA uERJ,<br />
uENf, uNb, ufPR E ufbA<br />
As universidades pioneiras na adoção de políticas de ação afirmativa<br />
no ingresso de seus cursos foram, então, a Uerj e a UENF por<br />
42 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
meio de cotas em 2001. Estima-se que atualmente a Uerj tenha<br />
nove mil alunos cotistas e até agora não há estudo publicado sobre<br />
seu desempenho; entretanto, Matta (2010) fez um estudo do perfil<br />
socioeconômico dos cotistas da UENF, aplicando um questionário<br />
a uma amostra de 40% dos ingressantes de 2003 distribuídos entre<br />
cotistas negros ou pardos, cotistas de rede pública e não cotistas. Os<br />
resultados indicam perfis socioeconômicos semelhantes de cotistas<br />
e não cotistas.<br />
Em 2004 a Universidade de Brasília (UNB) implementou o sistema<br />
de cotas, reservando 20% das vagas de cada curso para alunos que se<br />
autodeclararam negros e pardos. Com esse sistema, o percentual de<br />
negros e pardos na universidade subiu de 2,0% em 2004 para 12,5%<br />
em 2006. Diferentemente do observado por Matta (2010), o perfil<br />
socioeconômico dos cotistas revelou-se muito diverso do de não cotistas:<br />
enquanto 15% dos cotistas negros tinham pais analfabetos ou com<br />
ensino fundamental incompleto, entre os não cotistas esse percentual<br />
era de apenas 6% (IPEA, 2008). Com relação ao desempenho, não<br />
foram observadas diferenças significativas entre cotistas e não cotistas:<br />
89% dos alunos cotistas negros foram aprovados nas disciplinas<br />
cursadas enquanto 93% dos não cotistas foram aprovados; na média<br />
geral do curso, que varia até 5, os cotistas ficaram com 3,75 e os não<br />
cotistas com 3,79 (IPEA, 2008).<br />
Também em 2004 a Universidade Federal do Paraná (UFPR) adotou<br />
o sistema de cotas com o Programa de Inclusão Social e Racial que<br />
reserva 20% das vagas dos cursos de graduação para alunos egressos<br />
do ensino médio público e 20% para alunos afrodescendentes. Com<br />
essa política, o percentual de afrodescendentes aprovados na universidade<br />
aumentou de 7% em 2003 para 21% em 2005. Segundo Souza<br />
(2007), o problema encontrado pela universidade é o preenchimento<br />
das vagas reservadas aos afrodescendentes: em 2005 foram disponibilizadas<br />
800 vagas nas cotas raciais mas apenas 489 fizeram matrícula<br />
por esse sistema (61%) e em 2006 apenas 278 alunos foram matriculados<br />
(35%).<br />
Em 2005 foi a vez da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que<br />
implementou o sistema de cotas raciais e sociais sobrepostas da seguinte<br />
forma: 45% das vagas do vestibular são reservadas sendo que<br />
38% são para negros egressos do sistema público de ensino, 5% para<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
43
egressos do sistema público e 2% para estudantes indígenas. Com essa<br />
política, a participação dos negros na universidade passou de 43% em<br />
1997 para 75% em 2005. Com relação ao perfil socioeconômico dos<br />
cotistas, Reis (2007) observou que eles são mais velhos (23-33 anos de<br />
idade) do que os não cotistas (17-19 anos). Os alunos cotistas apresentam<br />
desempenho igual ou superior aos não cotistas. O principal<br />
problema seria a permanência dos alunos cotistas na universidade,<br />
mesmo com as bolsas de manutenção oferecidas aos alunos (de<br />
R$ 200,00 a R$ 280,00).<br />
1.2 A ExPERiêNCiA DE boNifiCAÇÃo<br />
NA uNiCAmP E NA uff<br />
Em 2004 a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) instituiu,<br />
no acesso a seus cursos de graduação, um sistema de bonificação que<br />
consiste na adição de 30 pontos à nota da segunda fase do vestibular<br />
para os candidatos que cursaram integralmente o ensino médio na<br />
rede pública de ensino ou que sejam egressos dos cursos supletivos<br />
presenciais de Educação de Jovens e Adultos (EJA). Além dos 30 pontos,<br />
os candidatos que se autodeclaram negros, pardos ou indígenas<br />
recebem mais 10 pontos. Com relação ao desempenho, em 31 cursos<br />
de graduação da Unicamp (do total de 55, ou seja, em 56% deles), os<br />
alunos que receberam bônus obtiveram média de desempenho superior<br />
aos demais estudantes do curso.<br />
Em 2009 a Universidade Federal Fluminense (UFF) começou a<br />
adotar ações afirmativas para os alunos egressos do ensino médio<br />
das redes municipal e estadual. Foi a primeira universidade federal<br />
do Estado do Rio de Janeiro a adotar o sistema de bonificação. Esse<br />
sistema é aplicado somente na segunda fase do concurso – o aluno<br />
precisa fazer a primeira fase, acertar ao menos 50% das questões e<br />
não zerar nenhuma prova – e consiste na adição de 10% à nota total<br />
(que soma o desempenho da primeira e da segunda fases). Segundo<br />
Ventura (2011), dez alunos provenientes de escolas públicas foram<br />
aprovados para Medicina em 2011, algo raro nos anos anteriores. O<br />
mesmo aconteceu com os cursos de Odontologia e Direito. Em 2012<br />
o percentual da bonificação aumentou de 10% para 20%.<br />
44 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
1.3 o ComPoNENtE DE AÇÃo AfiRmAtivA<br />
PRESENtE No PRouNi<br />
Apesar dos exemplos da seção anterior, apenas 9% dos ingressantes<br />
de instituições públicas em 2009, totalizando 36.294 alunos, são<br />
oriundos de reserva de vagas (cotas) segundo o Inep (2010). É bom<br />
lembrar também que 80% das matrículas dos cursos de graduação no<br />
Brasil são oferecidos por Instituições de Ensino Superior (IES) privadas.<br />
Em 2004, o governo federal criou o Programa Universidade para<br />
Todos – ProUni que foi instituído pela Lei n° 11.096 em 13 de janeiro<br />
de 2005. O ProUni é dirigido aos estudantes com melhores desempenhos<br />
no Enem que concluíram o ensino médio na rede pública ou<br />
bolsistas integrais da rede particular que possuem renda familiar per<br />
capita de até 3 salários mínimos. São três tipos de bolsa: integral, parcial<br />
com 50% de desconto e parcial com 25% de desconto. A bolsa<br />
integral é oferecida a ingressantes com renda familiar per capita de<br />
até 1,5 salário mínimo. A bolsa parcial de 50% beneficia estudantes<br />
com uma renda familiar per capita de até 3 salários mínimos. A bolsa<br />
parcial de 25% é aplicada somente em cursos cuja mensalidade seja<br />
de até R$ 200,00. O ProuUni determina também que as IES privadas<br />
reservem parte das bolsas aos alunos com deficiência e aos autodeclarados<br />
indígenas, negros ou pardos segundo o percentual da população<br />
de negros ou pardos na unidade da federação da IES conforme o<br />
censo do IBGE.<br />
Segundo o Resumo Técnico do Censo da Educação Superior de<br />
2009, três em cada dez matriculados nas instituições privadas possuem<br />
bolsa de estudo, sendo que 82,5% (1.019.532 alunos) são do<br />
Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), da própria IES ou do governo<br />
estadual/municipal e apenas 17,5% delas (215.777 alunos) são do<br />
ProUni.<br />
O relatório disponível na página do ProUni com dados gerados<br />
pelo Sisprouni em 17/6/2011 afirma que nesse ano foram oferecidas<br />
254.598 bolsas, sendo que 51% integrais e 49% parciais. Esse relatório<br />
também oferece a informação que 47,6% dos bolsistas se declararam<br />
brancos, 47,9% pardos ou negros e 12,5% se declararam amarelos. O<br />
restante não informou a raça/cor ou se declarou indígena.<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
45
2 A bASE DE DADoS E A mEtoDoLoGiA<br />
2.1 A bASE DE DADoS Do ENADE<br />
O Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade) avalia<br />
o rendimento dos alunos dos cursos de graduação, ingressantes<br />
e concluintes, em relação aos conteúdos programáticos dos cursos<br />
em que estão matriculados. O exame é obrigatório para os alunos<br />
selecionados e é condição indispensável para a emissão do histórico<br />
escolar. Apesar de obrigatório, ter um resultado ruim no exame<br />
não traz nenhuma consequência ao aluno – por exemplo, ele não é<br />
prejudicado no mercado de trabalho – o que levanta dúvidas quanto<br />
à confiabilidade dos resultados como indicativo da “qualidade”<br />
dos concluintes e nos conduz a ter muito cuidado ao tirar nossas<br />
conclusões. Não há razões para crer que o comportamento de beneficiados<br />
por ações afirmativas difira do de não beneficiados neste<br />
aspecto.<br />
A primeira aplicação do Enade ocorreu em 2004 e a periodicidade<br />
máxima com que cada área do conhecimento é avaliada é trienal. A<br />
aplicação é de responsabilidade do Instituto Nacional de Estudos e<br />
Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), autarquia vinculada ao<br />
Ministério da Educação (MEC), que o faz periodicamente, sendo-lhe<br />
permitida a utilização de amostragem, levando em conta para esse fim<br />
estudantes em final do primeiro ano (ingressantes) e do último ano<br />
(concluintes) dos cursos de graduação, selecionados por área, a cada<br />
ano, para participarem do exame.<br />
A participação no Enade é obrigatória, cabendo à instituição de educação<br />
superior a inscrição de todos os estudantes habilitados. Contudo<br />
são admitidos estudantes não selecionados na amostra, desde que por<br />
opção pessoal feita junto à instituição de ensino à qual está vinculado<br />
o aluno. O registro de participação é condição indispensável para a<br />
emissão do histórico escolar, independentemente de o estudante ter<br />
sido selecionado ou não na amostragem. Neste caso, constará do seu<br />
histórico escolar a dispensa do Enade pelo MEC.<br />
O exame abrange a aprendizagem durante o curso (exame de conhecimentos<br />
específicos, CE) além de competências profissionais e<br />
formação geral (exame de formação geral, FG). Os alunos também<br />
respondem questionário socioeconômico-educacional e outro de<br />
46 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
percepção sobre o teste. Coordenadores de curso também respondem<br />
questionário que busca coletar informações sobre o projeto pedagógico<br />
e as condições gerais de ensino oferecidas. Este artigo utiliza como<br />
desempenho do aluno a nota do concluinte no exame de conhecimentos<br />
específicos do curso de graduação. Seria interessante utilizar<br />
como contribuição do curso o conhecimento acumulado e não a nota<br />
do concluinte, porém o Enade não disponibiliza a nota do exame do<br />
concluinte quando este era ingressante.<br />
Como dito na introdução, apesar de o Enade ser realizado desde<br />
2004 e o Brasil incluir ações afirmativas no acesso ao ensino de graduação<br />
desde 2001, perguntas sobre ações afirmativas apareceram no<br />
questionário socioeconômico do Enade somente a partir de 2008 3 .<br />
Como os dados mais recentes disponíveis no site do Inep são os de<br />
2008, são estes os que utilizamos em nosso estudo. Em 2008, a pergunta<br />
feita no questionário era: “Seu ingresso no curso de graduação<br />
se deu por meio de políticas de ação afirmativa da IES?” As respostas<br />
possíveis do questionário eram:<br />
a) “Sim, por meio de reserva de vagas étnico-raciais”, isto é, por<br />
meio das chamadas “cotas raciais”;<br />
b) “Sim, por meio de reserva de vagas com recorte social”, isto é,<br />
por meio de cotas que utilizam a renda familiar ou egressos de<br />
escolas públicas;<br />
c) “Sim, por meio de sistema distinto dos anteriores”, isto é, bonificação<br />
na nota ou, no caso das instituições privadas, pelo ProUni.<br />
d) “Não”.<br />
O Enade de 2008 avaliou uma amostra de 167.704 concluintes<br />
dos seguintes cursos: arquitetura, ciências da computação, biologia,<br />
ciências sociais, engenharia, filosofia, física, geografia, história, letras,<br />
matemática, pedagogia e química. Considerando o peso amostral, os<br />
dados são representativos de 269.046 concluintes, ou seja, 33,6% dos<br />
concluintes do ano.<br />
Por fim, cabe ressaltar que em alguns momentos apresentaremos<br />
resultados separados segundo o prestígio social dos cursos – baixo,<br />
médio ou alto –, categorias definidas de acordo com o cruzamento<br />
3 As respostas foram alteradas em 2009 e 2010, o que dificultará a composição<br />
de uma série histórica sobre esse assunto.<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
47
de informações acerca das proporções de não brancos, egressos de<br />
ensino médio público e baixa escolaridade dos pais nos diferentes<br />
cursos.<br />
2.2 A RELAÇÃo ENtRE DESEmPENHo Do CoNCLuiNtE<br />
E vARiÁvEiS SoCioECoNômiCAS<br />
Para comparar o desempenho dos concluintes que ingressaram por<br />
ação afirmativa com os outros concluintes, cotejamos algumas estatísticas<br />
descritivas (média, mediana e desvio padrão) da nota da prova<br />
de conhecimentos específicos dos dois tipos de concluintes das instituições<br />
federais, estaduais e privadas.<br />
Como as estatísticas descritivas são números que descrevem e resumem<br />
toda uma distribuição, também nos pareceu relevante comparar<br />
visualmente distribuições de notas dos concluintes por meio de gráficos,<br />
alguns dos quais contendo controles para o nível educacional dos<br />
pais dos concluintes.<br />
Para aprofundar essa relação com a inclusão de novas variáveis de<br />
controle, estima-se um modelo econométrico log-linear (ou semilogarítmico),<br />
no qual a variável dependente é o logaritmo da nota bruta do<br />
concluinte na prova de conhecimentos específicos (Yi).<br />
As variáveis independentes utilizadas no modelo final são:<br />
a) Gênero (x1): variável binária assumindo 1 se o concluinte for do<br />
gênero feminino e 0 se masculino;<br />
b) Cor (x2): variável binária assumindo 1 se o concluinte se autodeclarar<br />
não branco (preto, pardo ou mulato) e 0 se branco;<br />
c) Ensino médio (x3): variável binária assumindo 1 se todo (ou a<br />
maior parte) do ensino médio do concluinte tiver sido cursado<br />
em escola pública e 0 se todo (ou a maior parte) tiver sido cursado<br />
em escola privada;<br />
d) Educação dos pais como proxy de perfil socioeconômico do aluno<br />
(x4): variável contínua, que varia de 0 a 30, calculada pela<br />
soma dos anos de estudos de pai e mãe do concluinte;<br />
e) Ação afirmativa (x5): variável binária assumindo 1 se o concluinte<br />
ingressou por intermédio de alguma política de ação afirmativa e<br />
0 se o ingresso foi pelo método tradicional.<br />
48 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
O modelo especificado será então dado pela seguinte equação na<br />
qual ε representa o termo aleatório que, por hipótese, segue a distribuição<br />
normal, com média zero e variância constante:<br />
XX<br />
Y bbb+++++<br />
eb<br />
ln<br />
i<br />
10 22<br />
i ...<br />
55 ii<br />
O modelo acima é estimado pelo método dos Mínimos Quadrados<br />
Ordinários (MQO) pelo software SPSS.<br />
Como as Instituições de Ensino Superior (IES) possuem características<br />
diferentes quanto a infraestrutura, qualificação e regime de trabalho<br />
do docente, que afetam o desempenho do aluno ao longo do curso,<br />
são estimadas regressões para cada categoria administrativa separadamente:<br />
federais, estaduais e privadas. As municipais são excluídas, em<br />
função do pequeno número de concluintes.<br />
3 ComPARAÇÃo ENtRE o PERfiL DE ALuNoS CoNCLuiNtES<br />
Do ENSiNo SuPERioR PÚbLiCo bENEfiCiADoS PELAS<br />
AÇÕES AfiRmAtivAS E o DoS DEmAiS CoNCLuiNtES<br />
3.1 PERfiL DE ALuNoS CoNCLuiNtES bENEfiCiÁRioS<br />
E NÃo bENEfiCiÁRioS DE AÇÕES AfiRmAtivAS<br />
Dentre os cursos avaliados no Enade 2008, os mais populares<br />
eram Pedagogia (corresponde a 26,7% da amostra), letras (14%) e<br />
Engenharia (13%), conforme indicado na Tabela 1. Com relação à<br />
categoria administrativa da Instituição de Ensino Superior (IES), mais<br />
de 80% dos concluintes de Ciências <strong>Sociais</strong> e Física são de IES públicas.<br />
O curso com menor incidência de concluintes em IES pública é<br />
Ciência da Computação – somente cerca de 20% de seus concluintes<br />
cursaram instituições federais, estaduais ou municipais. Entre os<br />
cursos avaliados pelo Enade em 2008, aqueles com maior frequência<br />
relativa de concluintes cujo ingresso se deu por meio de ações afirmativas<br />
são Pedagogia (25,4%) e Letras (21,3%), cursos pouco concorridos,<br />
como indica a baixa relação candidato/vaga na Tabela 1.<br />
No outro extremo, encontram-se Arquitetura (8,0%), Engenharias<br />
(8,2%) e Ciên cias <strong>Sociais</strong> (8,4%).<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
49
Curso de graduação<br />
Tabela 1<br />
Dados gerais dos cursos avaliados pelo Enade 2008, brasil<br />
Concluintes<br />
avaliados<br />
Relação<br />
candidato/<br />
Categoria<br />
administrativa<br />
vaga<br />
N° % Pública Privada<br />
50 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
% de<br />
concluintes que<br />
ingressaram por<br />
ação afirmativa<br />
Pedagogia 69.983 26,7% 1,17 32% 68% 25,4%<br />
Letras 36.973 14,1% 1,58 36% 64% 21,3%<br />
Geografia 13.684 5,2% 3,52 62% 38% 20,5%<br />
História 17.311 6,6% 4,09 45% 55% 20,3%<br />
matemática 16.272 6,2% 2,48 44% 56% 19,6%<br />
biologia 25.428 9,7% 2,05 33% 67% 18,0%<br />
filosofia 4.217 1,6% 2,16 43% 57% 16,3%<br />
Química 6.908 2,6% 2,96 57% 43% 13,3%<br />
Ciência da<br />
Computação<br />
23.235 8,9% 1,78 20% 80% 12,1%<br />
física 2.842 1,1% 3,24 83% 17% 9,2%<br />
Ciências <strong>Sociais</strong> 3.394 1,3% 4,17 83% 17% 8,4%<br />
Engenharias 34.029 13% 2,54 47% 53% 8,2%<br />
Arquitetura 8.110 3,1% 2,18 29% 71% 8,0%<br />
total 262.386 100% - 39% 61% 18,5%<br />
Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008 e Sinopse Estatística dos Cursos de Graduação 2008.<br />
Nota: Tabela ordenada de acordo com a coluna da direita (proporção dos concluintes que ingressaram por<br />
meio de políticas de ação afirmativa).<br />
Com o auxílio da Tabela 2, observa-se que o ingresso de alunos por<br />
meio de políticas de ação afirmativa declinou-se em: reserva de vagas<br />
étnico-raciais, reserva de vagas com recorte social, ou outros sistemas<br />
como ProUni ou bonificação, com variações curso a curso. Pedagogia,<br />
que representa 26,7% dos concluintes avaliados em 2008 pelo Enade,<br />
é também o curso com maior número absoluto (17.776 concluintes)<br />
e relativo (25,4%) de concluintes que ingressaram por meio de ações<br />
afirmativas.
Área avaliada<br />
Tabela 2<br />
Distribuição dos concluintes segundo o ingresso por meio<br />
de políticas de ação afirmativa, brasil, 2008<br />
Total<br />
Seu ingresso se deu por meio de<br />
políticas de ação afirmativa da IES?<br />
Reserva<br />
de vagas<br />
étnico-<br />
raciais<br />
Sim<br />
Reserva de<br />
vagas com<br />
recorte<br />
social<br />
Sistema<br />
distinto dos<br />
anteriores<br />
Total<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
Não<br />
N° de<br />
concluintes que<br />
ingressaram por<br />
ação afirmativa<br />
Pedagogia 25,4% 2,3% 7,4% 15,8% 74,6% 100,0% 17.776<br />
Letras 21,3% 3,0% 5,5% 12,8% 78,7% 100,0% 7.875<br />
Geografia 20,5% 2,1% 6,6% 11,8% 79,5% 100,0% 2.805<br />
História 20,3% 1,9% 6,0% 12,3% 79,7% 100,0% 3.514<br />
matemática 19,6% 1,3% 5,6% 12,7% 80,4% 100,0% 3.189<br />
biologia 18,0% 1,5% 4,7% 11,8% 82,0% 100,0% 4.577<br />
filosofia 16,3% 1,1% 4,0% 11,2% 83,7% 100,0% 687<br />
Química 13,3% 0,9% 3,5% 8,9% 86,7% 100,0% 919<br />
Ciência da<br />
Computação<br />
12,1% 1,6% 3,2% 7,3% 87,9% 100,0% 2.811<br />
física 9,2% 1,1% 2,2% 5,9% 90,8% 100,0% 261<br />
Ciências<br />
<strong>Sociais</strong><br />
8,4% 1,2% 2,9% 4,3% 91,6% 100,0% 285<br />
Engenharias 8,2% 0,7% 1,3% 6,2% 91,8% 100,0% 2.790<br />
Arquitetura 8,0% 0,5% 1,0% 6,5% 92,0% 100,0% 649<br />
total 18,5% 1,8% 5,0% 11,7% 81,5% 100,0% 48.138<br />
Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.<br />
Nota: Tabela ordenada de acordo com a coluna esquerda (proporção dos concluintes que ingressaram por<br />
meio de políticas de ação afirmativa).<br />
Para melhor avaliar o perfil do concluinte, agrupamos os cursos de<br />
graduação avaliados em 2008 segundo seu prestígio social, conforme<br />
explicado anteriormente, resultando na seguinte divisão: Pedagogia<br />
como baixo prestígio social (26,7% concluintes); Arquitetura, Enge-<br />
51
nharias e Ciência da Computação como alto prestígio social (24,6%<br />
dos concluintes) e os cursos restantes como médio prestígio social<br />
(49,1% dos concluintes). Na Tabela 3, podemos observar o perfil dos<br />
concluintes agrupados segundo o prestígio social do curso e sua categoria<br />
administrativa. Note-se que a proporção de alunos cujo ingresso<br />
se deu por ações afirmativas diminui sensivelmente conforme aumenta<br />
o prestígio social dos cursos, até mesmo nas instituições privadas.<br />
Será um problema de oferta, isto é, poucas vagas são reservadas para<br />
os alunos não brancos ou egressos de ensino médio público nestes<br />
cursos de alto prestígio (Arquitetura, Engenharia, Ciências da Computação)<br />
nas instituições públicas? Ou será que a oferta é a mesma e<br />
o nível de evasão ou repetência desses cursos é maior, conduzindo<br />
a uma menor incidência de concluintes que ingressaram neles por<br />
ação afirmativa? Com os dados disponíveis não temos como explicar<br />
o porquê dessa situação.<br />
Tabela 3<br />
Perfil dos concluintes dos cursos avaliados em 2008<br />
segundo o prestígio social do curso<br />
Perfil dos concluintes<br />
Categoria<br />
administrativa<br />
IES<br />
Prestígio<br />
social do<br />
curso<br />
Sexo Cor<br />
Egressos<br />
do ensino<br />
médio<br />
Escolaridade<br />
do pai<br />
Tipo de ingresso<br />
Homem Mulher Branco<br />
Não<br />
branco<br />
Privado Público<br />
Ensino<br />
básico<br />
Ensino<br />
superior<br />
Não ação Ação<br />
afirmativa afirmativa<br />
federal<br />
Estadual<br />
Privado<br />
baixo 12% 88% 46% 54% 25% 75% 91% 9% 80% 20%<br />
médio 45% 55% 54% 46% 38% 62% 81% 19% 91% 9%<br />
Alto 71% 29% 72% 28% 66% 34% 55% 45% 95% 5%<br />
baixo 10% 90% 42% 58% 13% 87% 96% 4% 66% 34%<br />
médio 35% 65% 48% 52% 25% 75% 92% 8% 75% 25%<br />
Alto 73% 27% 75% 25% 57% 43% 62% 38% 92% 8%<br />
baixo 5% 95% 66% 34% 15% 85% 93% 7% 76% 24%<br />
médio 30% 70% 64% 36% 20% 80% 91% 9% 79% 21%<br />
Alto 76% 24% 78% 22% 48% 52% 68% 32% 89% 11%<br />
Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.<br />
52 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
Se entendemos “mais diversidade” por maior representação de grupos<br />
desfavorecidos, as ações afirmativas aumentaram-na. Observe-se<br />
na Tabela 4 o perfil dos concluintes que ingressaram por ação afirmativa<br />
segundo o prestígio social do curso e a categoria administrativa da<br />
IES. O percentual de concluintes negros/pardos/mulatos nas federais<br />
que ingressaram por ação afirmativa era de 41% nos cursos avaliados<br />
em 2008 pelo Enade, comparado aos 28% do total de concluintes<br />
(Tabela 3).<br />
Tabela 4<br />
Perfil dos concluintes dos cursos avaliados em 2008 que ingressaram<br />
por ação afirmativa, segundo o prestígio social do curso<br />
Categoria<br />
administrativa<br />
IES<br />
federal<br />
Estadual<br />
Privada<br />
Prestígio<br />
social do<br />
curso<br />
Perfil dos concluintes que ingressaram por ação afirmativa<br />
Sexo Cor Ensino médio Escolaridade do pai<br />
Homem Mulher Branco<br />
Não<br />
branco<br />
Privado Público<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
Ensino<br />
básico<br />
Ensino<br />
superior<br />
baixo 11% 89% 33% 67% 16% 84% 96% 4%<br />
médio 39% 61% 45% 55% 27% 73% 90% 10%<br />
Alto 69% 31% 59% 41% 61% 39% 66% 34%<br />
baixo 10% 90% 32% 68% 9% 91% 99% 1%<br />
médio 28% 72% 32% 68% 15% 85% 97% 3%<br />
Alto 61% 39% 58% 42% 37% 63% 80% 20%<br />
baixo 5% 95% 62% 38% 10% 90% 95% 5%<br />
médio 28% 72% 56% 44% 11% 89% 95% 5%<br />
Alto 74% 26% 73% 27% 34% 66% 77% 23%<br />
Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.<br />
Entre os concluintes de 2008, a categoria administrativa que mais<br />
concedeu diplomas às pessoas que se autodeclararam negros, pardos<br />
ou mulatos (não brancos) foram as IES estaduais (51%), possivelmente<br />
como reflexo de políticas de ação afirmativa, conforme se vê no Gráfico<br />
1. É grande também a presença de não brancos nas IES federais<br />
(42%), mais do que nas IES privadas (32%). No total, puxado pelas<br />
privadas (predominantes), 1/3 dos concluintes avaliados em 2008 pelo<br />
Enade são negros, pardos ou mulatos.<br />
53
70%<br />
60%<br />
50%<br />
40%<br />
30%<br />
20%<br />
10%<br />
0%<br />
Gráfi co 1<br />
Dist ribuição dos concluintes por cor da pele autodeclarada segundo<br />
dependência administrativa da iES, brasil, cursos avaliados em 2008<br />
58%<br />
42%<br />
49%<br />
Federal Estadual Privada Total<br />
Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.<br />
Branco Não branco<br />
51%<br />
Dentre os concluintes negros/pardos/mulatos das IES federais, apenas<br />
13% ingressaram por meio de ações afi rmativas (Gráfi co 2), de<br />
modo que 87% ingressaram sem o auxílio dessas políticas. Supondo<br />
que, na ausência de políticas de ação afi rmativa, os alunos que ingressaram<br />
benefi ciados por elas não tivessem sido admitidos na universidade,<br />
a proporção de negros/pardos/mulatos nas federais seria cerca<br />
de 5 pontos percentuais mais baixa. Nas IES estaduais, nas quais mais<br />
de metade dos concluintes eram negros/pardos/mulatos, cerca de 1/3<br />
ingressou com o auxílio das ações afi rmativas, núme ro expressivo em<br />
comparação com as federais e privadas. Com as mesmas hipóteses,<br />
a ausência de ações afi rmativas teria signifi cado redução de 17 pontos<br />
percentuais na proporção de não brancos nas IES estaduais. Nas<br />
privadas, a redução seria de 8 pontos percentuais. No total, teríamos<br />
em 2008 uma proporção de negros/pardos/mulatos nas universidades<br />
54 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
68%<br />
32%<br />
64%<br />
36%
asileiras 9 pontos percentuais inferior à efetivamente observada<br />
(27% contra 36%). 4<br />
100%<br />
80%<br />
60%<br />
40%<br />
20%<br />
0%<br />
Gráfi co 2 4<br />
Distribuição dos concluintes negros/pardos/ mulatos por<br />
ingresso por meio de ações afi rmativas segundo a dependência<br />
administrativa da iES, brasil, cursos avaliados em 2008<br />
87%<br />
13%<br />
Demais alunos Ação afirmativa<br />
66%<br />
34%<br />
76%<br />
24%<br />
Federal Estadual Privada Total<br />
Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.<br />
4 A proporção de negros, pardos e mulatos nas IES federais seria de 37%, número<br />
obtido ao se multiplicar 42% (proporção de negros, pardos e mulatos nas<br />
IES federais) por 87% (proporção de negros, pardos e mulatos não benefi ciários<br />
de políticas de ação afi rmativa). A proporção de negros, pardos e mulatos nas<br />
IES estaduais seria de 34%, número obtido ao se multiplicar 51% (proporção de<br />
negros, pardos e mulatos nas IES federais) por 66% (proporção de negros, pardos<br />
e mulatos não benefi ciários de políticas de ação afi rmativa). Nas privadas, a<br />
proporção seria de 24% (32% x 76%), contra os 32% efetivamente observados.<br />
No total, teríamos 27% (36% x 76%), contra os 36% observados. A ressalva feita<br />
a esses cálculos é que se desconsidera a possibilidade de que negros, pardos<br />
e mulatos admitidos por políticas de ação afi rmativa pudessem ter ingressado<br />
em IES da mesma categoria em que ingressaram, mesmo na ausência de tais<br />
políticas. Também são desconsiderados movimentos entre categorias de IES. Em<br />
suma, e usando o jargão microeconômico, poderíamos dizer que nossa análise<br />
é de “equilíbrio parcial” e não de “equilíbrio geral”.<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
76%<br />
24%<br />
55
As IES estaduais também se destacam pela maior incidência de concluintes<br />
do ensino superior com ensino médio público (76%), o mesmo<br />
patamar de incidência relativa das IES privadas (75%) – possivelmente,<br />
naquelas em razão de cotas e bônus, enquanto nestas, em razão do<br />
perfi l socioeconômico mais desfavorecido dos que nelas costumam se<br />
matricular (Gráfi co 3). Entre as IES federais, 55% dos concluintes são<br />
oriundos do ensino médio público, incidência que não refl ete o perfi l<br />
dos concluintes do ensino médio, uma vez que 85% dos concluintes<br />
do ensino médio são de instituições públicas.<br />
100%<br />
80%<br />
60%<br />
40%<br />
20%<br />
Gráfi co 3<br />
Distribuição dos concluintes por tipo de ensino médio cur sado segundo a<br />
dependência administrativa da iES, brasil, cursos avaliados em 2008<br />
0%<br />
45%<br />
55%<br />
Federal Estadual Privada Total<br />
Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.<br />
Ensino médio privado Ensino médio público<br />
76%<br />
75% 71%<br />
24% 25% 29%<br />
Dos concluintes das federais egressos de escolas públicas, apenas<br />
12% ingressaram por meio de políticas de ação afi rmativa nos cursos<br />
avaliados em 2008 (Gráfi co 4). Com relação às estaduais, dos concluintes<br />
egressos do ensino médio público, pouco menos de 1/3 (29%)<br />
ingressou por meio de ações afi rmativas. Nas privadas, o número gira<br />
em torno de 1/5.<br />
56 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
100%<br />
80%<br />
60%<br />
40%<br />
20%<br />
0%<br />
Gráfi co 4<br />
Distribuição dos concluintes com ensino médio público por<br />
ingresso por meio de ações afi rma tivas segundo a dependência<br />
administrativa da iES, brasil, cursos avaliados em 2008<br />
88%<br />
12%<br />
Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.<br />
Demais alunos Ação afirmativa<br />
71%<br />
29%<br />
Federal Estadual Privada Total<br />
A mobilidade social 5 via escolaridade é maior entre os concluintes<br />
das instituições estaduais, uma vez que apenas 10% dos pais e 14%<br />
das mães dos concluintes têm ensino superior. Entre os concluintes<br />
das federais, esses percentuais são, respectivamente, 26% e 28%<br />
(Gráfi co 5).<br />
5 Utilizamos o termo mobilidade social para indicar melhora ou piora da situação<br />
educacional dos alunos com relação à situação educacional de seus pais.<br />
78%<br />
22%<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
78%<br />
22%<br />
57
80%<br />
70%<br />
60%<br />
50%<br />
40%<br />
30%<br />
20%<br />
10%<br />
0%<br />
80%<br />
70%<br />
60%<br />
50%<br />
40%<br />
30%<br />
20%<br />
10%<br />
0%<br />
Gráfi co 5<br />
Distribuição dos concluintes por escolaridade dos pais segundo a<br />
dependência administrativa da iES, brasil, cursos avaliados em 2008<br />
44%<br />
30%<br />
26%<br />
Fundamental Médio Superior<br />
71%<br />
63% 61%<br />
20% 22% 23%<br />
14%<br />
15%<br />
10%<br />
Federal Estadual Privada Total<br />
40%<br />
32%<br />
28%<br />
Escolaridade do pai do concluinte<br />
Escolaridade da mãe do concluinte<br />
Fundamental Médio Superior<br />
63%<br />
60% 57%<br />
24% 25% 26%<br />
14%<br />
Federal Estadual Privada Total<br />
Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008. Nota: Nível fundamental ou menos.<br />
58 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
15%<br />
18%
O fato de as instituições estaduais se destacarem com relação à incidência<br />
relativa de concluintes não brancos e de ensino médio, bem<br />
como no que tange à mobilidade social, parece efetivamente se dever<br />
à reserva de vagas das ações afi rmativas. Entre os concluintes dos<br />
cursos de graduação estaduais avaliados em 2008, 26% ingressaram<br />
por meio de ações afi rmativas, contra apenas 10% dos concluintes<br />
das IES federais (Gráfi co 6). As IES privadas, com 19%, encontram-se<br />
em patamar intermediário. Dentre os concluintes das IES privadas dos<br />
cursos avaliados pelo Inep em 2008 que ingressaram por intermédio<br />
de ações afi rmativas, 34,2% ingressaram por intermédio do ProUni,<br />
31% por bolsa própria da IES, 27,33% por bolsa de entidades externas<br />
e 7,5% ingressaram com o auxílio do Fies.<br />
100%<br />
90%<br />
80%<br />
70%<br />
60%<br />
50%<br />
40%<br />
30%<br />
20%<br />
10%<br />
0%<br />
Gráfi co 6<br />
Distribuição dos concluintes por tipo de ingresso segundo a dependência<br />
administrativa da iES, brasil, cursos avaliados em 2008<br />
90%<br />
10%<br />
Federal Estadual Privada Total<br />
Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.<br />
Demais alunos Ação afirmativa<br />
74%<br />
26%<br />
81% 81%<br />
19% 19%<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
59
Diferentemente do observado para a UENF por Matta (2010), o<br />
perfil socioeconômico dos concluintes que ingressaram por meio de<br />
ações afirmativas é diferente do perfil daqueles que não ingressaram<br />
por meio dessa política. A faixa de renda familiar entre os que ingressaram<br />
por meio de políticas de ação afirmativa se concentra em<br />
até 3 salários mínimos enquanto os ingressantes sem as políticas se<br />
concentram na faixa de mais de 3 até 5 salários mínimos (Tabela 5).<br />
Uma crítica à política de ação afirmativa racial é que muitos beneficiários<br />
dessa política seriam estudantes das minorias de classe<br />
média, que não passaram pelas dificuldades que afligem os jovens<br />
das áreas mais pobres das cidades. Os dados do Inep nos levam<br />
a matizar essa afirmativa, uma vez que, entre os concluintes que<br />
ingressaram por meio de reserva étnico-racial de vagas, a grande<br />
maioria cursou escola pública (88,3%), tem renda familiar de até 3<br />
salários mínimos (65,3%) e pai com ensino fundamental ou menos<br />
(55%). Uma minoria cursou o ensino médio todo ou a maior parte<br />
em escola privada (11,7%) e tinha renda familiar de mais de 10 salários<br />
mínimos (6,2%). Nos cursos avaliados pelo Inep em 2008, 71%<br />
dos concluintes cursaram o ensino médio todo ou a maior parte em<br />
escola pública. Esse percentual aumenta para 85% entre os ingressantes<br />
por meio de ação afirmativa.<br />
Outra questão a destacar é a mobilidade social promovida pelas<br />
políticas de ação afirmativa uma vez que, entre os concluintes que<br />
ingressaram por essa política, apenas 7% tinham pai com ensino superior.<br />
Entre os concluintes que ingressaram pelo método tradicional,<br />
esse percentual é de 18% (Tabela 5).<br />
60 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
Tabela 5<br />
Perfil socioeconômico dos concluintes segundo o ingresso<br />
por meio de políticas de ação afirmativa, brasil, 2008<br />
Variáveis Respostas<br />
Total<br />
Seu ingresso se deu por meio de<br />
políticas de ação afirmativa da IES?<br />
Reserva<br />
de<br />
vagas<br />
étnico-<br />
raciais<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
Sim<br />
Reserva<br />
de vagas<br />
com<br />
recorte<br />
social<br />
Sistema<br />
distinto<br />
dos<br />
anteriores<br />
Não<br />
Total<br />
Raça/cor branco 53,2% 30,2% 51,6% 57,4% 65,9% 63,6%<br />
Ensino<br />
médio<br />
Renda<br />
familiar<br />
Escolaridade<br />
do pai<br />
Negro/pardo/<br />
mulato<br />
46,8% 69,8% 48,4% 42,6% 34,1% 36,4%<br />
total 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%<br />
Escola privada 15,3% 11,7% 6,8% 19,6% 32,0% 29,0%<br />
Escola pública 84,7% 88,3% 93,2% 80,4% 68,0% 71,0%<br />
total 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%<br />
Até 3 salários<br />
mínimos (S.m.)<br />
mais de 3 até<br />
10 S.m.<br />
60,3% 65,3% 70,1% 55,4% 39,2% 43,1%<br />
33,5% 29,1% 27,1% 36,9% 44,1% 42,2%<br />
mais de 10<br />
até 20 S.m.<br />
4,6% 4,5% 2,2% 5,6% 11,7% 10,4%<br />
mais de 20 S.m. 1,6% 1,2% 0,5% 2,1% 5,0% 4,4%<br />
total 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%<br />
Nenhuma 15,3% 21,4% 16,8% 13,7% 7,6% 9,0%<br />
Ensino fundamental 61,5% 55,0% 64,4% 61,3% 49,5% 51,8%<br />
Ensino médio 16,1% 16,6% 14,7% 16,7% 25,3% 23,6%<br />
Ensino superior 7,0% 7,0% 4,0% 8,3% 17,6% 15,6%<br />
total 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%<br />
Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.<br />
61
Precisamos reconhecer que não é possível tirar conclusões definitivas<br />
a respeito do impacto das políticas de ações afirmativas sobre o grau de<br />
diversidade socioeconômica dos concluintes das universidades brasileiras,<br />
sobretudo por duas razões. Primeiro, porque temos informações<br />
apenas a respeito de características dos concluintes, mas não sobre as<br />
de ingressantes que eventualmente tenham abandonado o curso ou<br />
ainda o estejam cursando. Não temos como saber se o atraso ou a evasão<br />
atingem uniformemente beneficiários e não beneficiários das políticas<br />
de ações afirmativas, e, portanto, quais seriam as proporções de<br />
concluintes negros ou oriundos de escola pública na ausência de cotas.<br />
Em segundo lugar, não temos como afirmar qual teria sido o comportamento<br />
de beneficiários se não houvesse tais políticas. Teríamos, por<br />
exemplo, menos negros nas IES públicas, porém, mais negros nas IES<br />
privadas? De que forma isto afetaria a proporção total de negros?<br />
Feitas essas ressalvas, como as proporções de concluintes que efetivamente<br />
se beneficiaram de políticas de ações afirmativas são expressivas,<br />
sobretudo nas IES estaduais, acreditamos haver indícios de que as<br />
ações afirmativas contribuíram para aumentar a diversidade socioeconômica<br />
nos campi brasileiros. Em sendo verdade, um objetivo fundamental<br />
das ações afirmativas teria sido alcançado. A questão seguinte é:<br />
o preço pago para isso foi alto em termos de redução de desempenho?<br />
4 umA ANÁLiSE Do DESEmPENHo DoS CoNCLuiNtES<br />
4.1 EStAtÍStiCAS DESCRitivAS<br />
Conforme indicado na Tabela 6, a nota média dos concluintes das estaduais<br />
e federais que ingressaram por meio de ações afirmativas no teste<br />
de conhecimentos gerais é aproximadamente 4 pontos menor que a de<br />
concluintes que ingressaram pelo método tradicional (a nota da prova<br />
varia de 0 a 100 pontos). Embora de pequena magnitude, essa diferença<br />
é significativa segundo o teste de diferença de médias. Esse resultado é<br />
importante, pois difere daqueles apontados por pesquisadores citados na<br />
seção 2 deste artigo. Entre as instituições privadas a diferença, de 0,28 a<br />
favor dos beneficiários das ações afirmativas, não é significativa. 6<br />
6 As estatísticas Z dos testes citados nesse parágrafo são, respectivamente:<br />
11,13; 14,71 e 1,73.<br />
62 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
Tabela 6<br />
Estatísticas descritivas da nota segundo tipo de ingresso, brasil, 2008<br />
Dependência<br />
administrativa<br />
Tipo de ingresso<br />
Estatísticas da nota Concluintes<br />
Média Mediana<br />
Desvio<br />
padrão<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
N° %<br />
federal método tradicional 47,2 47,2 17,4 30.991 90,5%<br />
Ações afirmativas 42,8 41,7 16,8 3.261 9,5%<br />
total 46,8 46,6 17,4 34.252 100,0%<br />
Estadual método tradicional 42,9 42,0 17,0 23.656 74,1%<br />
Ações afirmativas 38,6 36,7 16,3 8.266 25,9%<br />
total 41,8 40,5 16,9 31.922 100,0%<br />
Privada método tradicional 40,0 38,3 15,9 92.055 80,7%<br />
Ações afirmativas 40,3 38,5 16,2 21.993 19,3%<br />
total 40,0 38,3 15,9 114.048 100,0%<br />
total método tradicional 41,8 40,3 16,6 151.490 81,5%<br />
Ações afirmativas 40,0 38,2 16,3 34.416 18,5%<br />
total 41,4 39,9 16,6 185.906 100,0%<br />
Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.<br />
Com relação ao tipo de escola cursada no ensino médio, não há muita<br />
diferença entre a distribuição das notas dos concluintes das federais<br />
e estaduais que cursaram o ensino médio em escolas privadas daqueles<br />
que cursaram o ensino médio em escolas públicas e que não ingressaram<br />
por meio de ação afirmativa. Observe-se que, embora pequena, a<br />
diferença de 1,1 é significativa entre as notas médias desses dois grupos<br />
nas federais (estatística do teste z=5,61). Nas instituições estaduais não<br />
há diferença significativa entre as notas médias (Tabela 7).<br />
63
Categoria<br />
administrativa<br />
federal<br />
Estadual<br />
Tabela 7<br />
Estatísticas desc ritivas da nota segundo tipo de ingresso, cor da<br />
pele autodeclarada e tipo de ensino médio, brasil, 2008<br />
Cor e ação<br />
afi rmativa<br />
Estatísticas descritivas<br />
Média Mediana<br />
Desvio<br />
padrão<br />
Ensino<br />
médio<br />
e ação<br />
afi rmativa<br />
Estatísticas descritivas<br />
Média Mediana<br />
Desvio<br />
padrão<br />
branco 47,8 47,6 17,1 Privado 47,7 47,5 17,2<br />
Não branco_<br />
não ação<br />
Não branco_<br />
ação<br />
45,9 45,7 17,7 Público_não<br />
ação<br />
42,4 41,0 16,9 Público_<br />
ação<br />
46,6 46,2 17,5<br />
43,4 42,3 16,8<br />
total 46,8 46,5 17,3 total 46,8 46,6 17,3<br />
branco 43,3 42,5 17,0 Privado 42,7 41,8 17,4<br />
Não branco_<br />
não ação<br />
41,3 40,2 16,7 Público_não<br />
ação<br />
42,7 41,8 16,8<br />
Não branco_<br />
ação<br />
38,9 37,0 16,4 Público_<br />
ação<br />
39,4 37,5 16,3<br />
total 41,8 40,5 16,9 total 41,9 40,6 16,9<br />
Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.<br />
As estatísticas descritivas apresentadas na tabela anterior são números<br />
que sintetizam toda a distribuição das notas dos concluintes.<br />
O Gráfi co 7 mostra que a distribuição das notas dos concluintes das<br />
instituições federais e estaduais que ingressaram por ação afi rmativa<br />
se deslocam para a esquerda comparados com os alunos não benefi -<br />
ciados por essa política. Já para os concluintes das instituições privadas,<br />
não há diferença signifi cativa na distribuição das notas entre os<br />
ingressantes por ação afi rmativa e não ingressantes.<br />
64 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
Gráfi co 7<br />
Distribuição das notas dos concluintes segundo o tipo de ingresso, brasil, 2008<br />
% de concluintes<br />
% de concluintes<br />
% de concluintes<br />
12%<br />
10%<br />
8%<br />
6%<br />
4%<br />
2%<br />
0%<br />
12%<br />
10%<br />
8%<br />
6%<br />
4%<br />
2%<br />
0%<br />
12%<br />
10%<br />
8%<br />
6%<br />
4%<br />
2%<br />
0%<br />
IES Federal<br />
0<br />
2<br />
6<br />
10<br />
14<br />
18<br />
22<br />
26<br />
30<br />
34<br />
38<br />
42<br />
46<br />
50<br />
54<br />
58<br />
62<br />
66<br />
70<br />
74<br />
78<br />
82<br />
86<br />
90<br />
94<br />
98<br />
Nota na prova de conhecimentos específicos<br />
Demais alunos Ação afirmativa<br />
IES Estadual<br />
0<br />
2<br />
6<br />
10<br />
14<br />
18<br />
22<br />
26<br />
30<br />
34<br />
38<br />
42<br />
46<br />
50<br />
54<br />
58<br />
62<br />
66<br />
70<br />
74<br />
78<br />
82<br />
86<br />
90<br />
94<br />
98<br />
Nota na prova de conhecimentos específicos<br />
Demais alunos Ação afirmativa<br />
IES Privada<br />
0<br />
2<br />
6<br />
10<br />
14<br />
18<br />
22<br />
26<br />
30<br />
34<br />
38<br />
42<br />
46<br />
50<br />
54<br />
58<br />
62<br />
66<br />
70<br />
74<br />
78<br />
82<br />
86<br />
90<br />
94<br />
98<br />
Nota na prova de conhecimentos específicos<br />
Demais alunos Ação afirmativa<br />
Combinando a distribuição das notas dos concluintes com o tipo de<br />
ingresso e a cor da pele (Gráfi co 8), observa-se que a curva que representa<br />
as notas dos concluintes não brancos e que ingressaram por ação<br />
afi rmativa é a mais deslocada para a esquerda, refl etindo desempenho<br />
pior do que os concluintes não brancos que não ingressaram por ação<br />
afi rmativa nas instituições federais e estaduais. Nas instituições privadas<br />
esse deslocamento também ocorre, porém com intensidade menor.<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
65
Gráfi co 8<br />
Distribuição 12% das notas dos concluintes segundo a cor da pele<br />
10% autodeclarada e o tipo de ingresso, brasil, 2008<br />
% de concluintes % de concluintes<br />
% de concluintes % de concluintes<br />
% de concluintes<br />
8%<br />
6%<br />
12% 4%<br />
10% 2%<br />
0% 8%<br />
6%<br />
4%<br />
2%<br />
0%<br />
12%<br />
10%<br />
8%<br />
6%<br />
12% 4%<br />
10% 2%<br />
0% 8%<br />
6%<br />
4%<br />
2%<br />
0%<br />
12%<br />
10%<br />
8%<br />
6%<br />
4%<br />
2%<br />
0%<br />
IES Federal<br />
IES Federal<br />
0<br />
2<br />
6<br />
10<br />
14<br />
18<br />
22<br />
26<br />
30<br />
34<br />
38<br />
42<br />
46<br />
50<br />
54<br />
58<br />
62<br />
66<br />
70<br />
74<br />
78<br />
82<br />
86<br />
90<br />
94<br />
98<br />
Nota na prova de conhecimentos específicos<br />
Brancos Não brancos - ação afirmativa Não brancos - demais alunos<br />
0<br />
2<br />
6<br />
10<br />
14<br />
18<br />
22<br />
26<br />
30<br />
34<br />
38<br />
42<br />
46<br />
50<br />
54<br />
58<br />
62<br />
66<br />
70<br />
74<br />
78<br />
82<br />
86<br />
90<br />
94<br />
98<br />
Nota na prova de conhecimentos específicos<br />
Brancos Não brancos - ação afirmativa Não brancos - demais alunos<br />
IES Estadual<br />
IES Estadual<br />
0<br />
2<br />
6<br />
10<br />
14<br />
18<br />
22<br />
26<br />
30<br />
34<br />
38<br />
42<br />
46<br />
50<br />
54<br />
58<br />
62<br />
66<br />
70<br />
74<br />
78<br />
82<br />
86<br />
90<br />
94<br />
98<br />
Nota na prova de conhecimentos específicos<br />
Brancos Não brancos - ação afirmativa Não brancos - demais alunos<br />
IES Privada<br />
0<br />
2<br />
6<br />
10<br />
14<br />
18<br />
22<br />
26<br />
30<br />
34<br />
38<br />
42<br />
46<br />
50<br />
54<br />
58<br />
62<br />
66<br />
70<br />
74<br />
78<br />
82<br />
86<br />
90<br />
94<br />
98<br />
Nota na prova de conhecimentos específicos<br />
Brancos Não brancos - ação afirmativa Não brancos - demais alunos<br />
0<br />
2<br />
6<br />
10<br />
14<br />
18<br />
22<br />
26<br />
30<br />
34<br />
38<br />
42<br />
46<br />
50<br />
54<br />
58<br />
62<br />
66<br />
70<br />
74<br />
78<br />
82<br />
86<br />
90<br />
94<br />
98<br />
Nota na prova de conhecimentos específicos<br />
Brancos Não brancos - ação afirmativa Não brancos - demais alunos<br />
Combinando o tipo de ingresso no ensino superior com o tipo de<br />
escola cursada no ensino médio (Gráfi co 9), observamos que as curvas<br />
que representam a distribuição das notas dos concluintes dos egressos<br />
do ensino médio público que não ingressaram no ensino superior por<br />
66 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
meio de ações afi rmativas são muito semelhantes àquelas de egressos<br />
do ensino médio privado.<br />
% de concluintes<br />
% de concluintes<br />
% de concluintes<br />
12%<br />
10%<br />
8%<br />
6%<br />
4%<br />
2%<br />
0%<br />
12%<br />
10%<br />
8%<br />
6%<br />
4%<br />
2%<br />
0%<br />
12%<br />
10%<br />
8%<br />
6%<br />
4%<br />
2%<br />
0%<br />
Gráfi co 9<br />
Distribuição das notas dos concluintes segundo o tipo<br />
de ensino médio e o de ingresso, brasil, 2008<br />
IES Federal<br />
0<br />
2<br />
6<br />
10<br />
14<br />
18<br />
22<br />
26<br />
30<br />
34<br />
38<br />
42<br />
46<br />
50<br />
54<br />
58<br />
62<br />
66<br />
70<br />
74<br />
78<br />
82<br />
86<br />
90<br />
94<br />
98<br />
Nota na prova de conhecimentos específicos<br />
Ensino médio privado<br />
Ensino médio público - demais alunos<br />
Ensino médio público - ação afirmativa<br />
IES Estadual<br />
0<br />
2<br />
6<br />
10<br />
14<br />
18<br />
22<br />
26<br />
30<br />
34<br />
38<br />
42<br />
46<br />
50<br />
54<br />
58<br />
62<br />
66<br />
70<br />
74<br />
78<br />
82<br />
86<br />
90<br />
94<br />
98<br />
Nota na prova de conhecimentos específicos<br />
Ensino médio privado<br />
Ensino médio público - demais alunos<br />
Ensino médio público - ação afirmativa<br />
IES Privada<br />
0<br />
2<br />
6<br />
10<br />
14<br />
18<br />
22<br />
26<br />
30<br />
34<br />
38<br />
42<br />
46<br />
50<br />
54<br />
58<br />
62<br />
66<br />
70<br />
74<br />
78<br />
82<br />
86<br />
90<br />
94<br />
98<br />
Nota na prova de conhecimentos específicos<br />
Ensino médio privado<br />
Ensino médio público - demais alunos<br />
Ensino médio público - ação afirmativa<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
67
4.2 A RELAÇÃo ENtRE DESEmPENHo E PERfiL<br />
SoCioECoNômiCo: umA ANÁLiSE GRÁfiCA PRELimiNAR<br />
Nesta seção compara-se o desempenho dos concluintes que ingressaram<br />
por meio de ações afi rmativas com os demais, controlando-se<br />
pelo perfi l socioeconômico.<br />
Poderíamos utilizar a renda familiar como proxy do perfi l socioeconômico.<br />
Mas a variável renda tem vários problemas de mensuração.<br />
Por exemplo, os fi lhos podem não conhecer ao certo a renda dos pais,<br />
a renda informada pode estar sub ou sobre-estimada, a renda familiar<br />
pode incluir a do concluinte, que muitas vezes já está fazendo estágio<br />
ou trabalhando no fi nal do curso etc. Por esse motivo, a variável escolhida<br />
é a escolaridade dos pais 7 , escolha de resto rotineira na literatura<br />
de economia da educação (FERREIRA; GIGNOUX, 2011).<br />
Para captar a escolaridade dos pais, criamos uma variável que consiste<br />
na soma dos anos de estudos do pai e da mãe. Esse indicador<br />
varia de zero (ambos os pais sem instrução) até 30 (ambos com ensino<br />
superior). Quando pelo menos um dos pais tem o ensino superior,<br />
esse indicador é maior ou igual a 15.<br />
Uma primeira ideia da relação entre o desempenho do concluinte<br />
e o perfi l socioeconômico do aluno é apresentada nos gráfi cos a seguir.<br />
Observe-se que, mesmo controlando pelo background familiar,<br />
o desempenho dos concluintes que ingressaram por meio de ações<br />
afi rmativas é inferior ao desempenho dos concluintes que ingressaram<br />
sem elas nas instituições federais e estaduais (Gráfi co 10). Nas<br />
instituições privadas, não há diferença signifi cativa entre a nota média<br />
dos concluintes que ingressaram ou não por ação afi rmativa, mesmo<br />
controlando pelo background familiar do aluno.<br />
7 Ressalte-se que, por serem fortemente correlacionadas, não podemos incluir<br />
educação dos pais e renda familiar juntas em uma mesma regressão. O<br />
coefi ciente de correlação de Spearman para variáveis ordinais de renda familiar<br />
com instrução dos pais é 0,411, com p-valor de 0,000. O coefi ciente de<br />
renda familiar com instrução da mãe é 0,364 com p-valor de 0,000. O p-valor<br />
próximo de zero indica que o coefi ciente de correlação é signifi cativo até ao<br />
nível de signifi cância 1%, isto é, rejeitamos a hipótese nula de que não existe<br />
relação entre essas variáveis.<br />
68 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
IES Privada<br />
50<br />
48<br />
46<br />
44<br />
42<br />
40<br />
38<br />
36<br />
34<br />
32<br />
30<br />
0 5 10 15 20 25 30<br />
Indicador do perfil socioeconômico<br />
Demais alunos Ação afirmativa<br />
Nota média<br />
Gráfi co 10<br />
Nota média do concluinte segundo o indicador<br />
socioeconômico por tipo de ingresso brasil, 2008<br />
IES Federal<br />
50<br />
48<br />
46<br />
44<br />
42<br />
40<br />
38<br />
36<br />
34<br />
32<br />
30<br />
0 5 10 15 20 25 30<br />
Indicador do perfil socioeconômico<br />
Demais alunos Ação afirmativa<br />
Nota média<br />
IES Estadual<br />
50<br />
48<br />
46<br />
44<br />
42<br />
40<br />
38<br />
36<br />
34<br />
32<br />
30<br />
0 5 10 15 20 25 30<br />
Indicador do perfil socioeconômico<br />
Nota média<br />
Demais alunos Ação afirmativa<br />
O desempenho médio dos concluintes brancos na prova de conhecimentos<br />
específi cos é superior ao dos negros/pardos/mulatos que<br />
ingressaram pelo método tradicional, que por sua vez é superior ao<br />
desempenho dos negros/pardos/mulatos que ingressaram por ação<br />
afi rmativa nas instituições federais e estaduais (Gráfi co 11).<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
69
Gráfi co 11<br />
Nota média do concluinte segundo o indicador socioeconômico por<br />
cor da pele autodeclarada e tipo de ingresso, brasil, 2008<br />
50<br />
48<br />
46<br />
44<br />
42<br />
40<br />
38<br />
36<br />
34<br />
32<br />
30<br />
0 5 10 15 20 25 30<br />
Nota média<br />
50<br />
48<br />
46<br />
44<br />
42<br />
40<br />
38<br />
36<br />
34<br />
32<br />
30<br />
0 5 10 15 20 25 30<br />
Nota média<br />
Branco<br />
IES Federal<br />
Indicador do perfil socioeconômico<br />
Branco Não branco - demais alunos Não branco - ação afirmativa<br />
50<br />
48<br />
46<br />
44<br />
42<br />
40<br />
38<br />
36<br />
34<br />
32<br />
30<br />
0 5 10 15 20 25 30<br />
Nota média<br />
Branco<br />
IES Estadual<br />
Indicador do perfil socioeconômico<br />
Não branco - demais alunos<br />
IES Privada<br />
Indicador do perfil socioeconômico<br />
Negro/pardo/mulato<br />
Não branco - ação afirmativa<br />
Quando combinados ingresso por ação afi rmativa e tipo de ensino<br />
médio, controlando-se por nível socioeconômico, observa-se que a<br />
partir do indicador socioeconômico 15, que indica que pelo menos<br />
um dos pais possui ensino superior completo, o desempenho médio<br />
70 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
dos concluintes egressos do ensino médio privado é superior ao dos<br />
egressos do ensino médio público sem ação afi rmativa (Gráfi co 12).<br />
Gráfi co 12<br />
Nota média do concluinte segundo o indicador socioeconômico<br />
por tipo de ensino médio e tipo de ingresso, brasil, 2008<br />
50<br />
48<br />
46<br />
44<br />
42<br />
40<br />
38<br />
36<br />
34<br />
32<br />
30<br />
0 5 10 15 20 25 30<br />
Indicador do perfil socioeconômico<br />
Ensino médio público - demais alunos Ensino médio privado<br />
Ensino médio público - ação afirmativa<br />
Nota média<br />
Nota média<br />
IES Federal<br />
50<br />
48<br />
46<br />
44<br />
42<br />
40<br />
38<br />
36<br />
34<br />
32<br />
30<br />
0 5 10 15 20 25 30<br />
Indicador do perfil socioeconômico<br />
Ensino médio público Ensino médio privado<br />
Nota média<br />
50<br />
48<br />
46<br />
44<br />
42<br />
40<br />
38<br />
36<br />
34<br />
32<br />
30<br />
0 5 10 15 20 25 30<br />
Indicador do perfil socioeconômico<br />
Ensino médio público - demais alunos Ensino médio privado<br />
Ensino médio público - ação afirmativa<br />
IES Estadual<br />
IES Privada<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
71
4.3 A RELAÇÃo ENtRE DESEmPENHo E PERfiL<br />
SoCioECoNômiCo PELo mÉtoDo DA REGRESSÃo<br />
Até aqui analisamos o desempenho do concluinte controlado apenas<br />
pelo background familiar do aluno, agora, incluem-se novas variáveis explicativas<br />
8 e também análises segundo o prestígio social do curso.<br />
Com relação à significância do modelo estimado para os concluintes<br />
das federais (Tabela 8), o fato de o aluno ter cursado todo ou parte<br />
do ensino médio em escolas públicas não é importante para o desempenho<br />
do aluno ao final do curso. Mulheres têm notas em média<br />
10% superiores às dos homens. Negros têm desempenho 5% inferior<br />
aos concluintes brancos. Ingressantes por ação afirmativa têm nota em<br />
média 8,2% inferior, mantendo todas as outras variáveis constantes.<br />
Com relação aos concluintes das estaduais, ter cursado parte ou<br />
todo o ensino médio em escolas públicas afeta o desempenho, porém<br />
não da forma esperada, uma vez que seu desempenho é em média<br />
2,7% superior ao dos concluintes que cursaram a maior parte ou todo<br />
o ensino médio privado. Assim como nas federais, mulheres têm desempenho<br />
cerca de 10% superior ao dos homens e os negros têm<br />
desempenho, em média, 5% inferior ao dos brancos. Nas instituições<br />
estaduais, os concluintes que ingressaram por meio de políticas afirmativas<br />
têm desempenho, em média, 8,8% inferior aos que ingressaram<br />
pelo método tradicional.<br />
Mais uma vez, as regressões das subamostras de prestígio social do curso<br />
não revelam diferenças qualitativas importantes na principal variável<br />
(ação afirmativa), que é sistematicamente negativa e significativa, com<br />
variação somente de magnitude. Nos cursos de médio prestígio social<br />
nas instituições federais (Letras, Física, Química, Biologia, História, Geografia,<br />
Filosofia e Ciências <strong>Sociais</strong>), o desempenho dos que ingressaram<br />
por ação afirmativa é em média 13,7% inferior ao dos demais concluintes.<br />
Com relação aos concluintes das instituições privadas de ensino superior,<br />
o coeficiente da variável ação afirmativa é muito próximo de<br />
8 Seguindo a sugestão do parecerista, procuramos incorporar dummies regionais<br />
ou estaduais, porém não há informação sobre a região ou a unidade da<br />
federação onde está localizada a IES no banco de dados disponibilizado pelo<br />
Inep, possivelmente para dificultar a identificação da IES.<br />
72 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
zero, e não significativo, indicando não haver diferença de desempenho<br />
entre beneficiários e não beneficiários. Nas subamostras de cursos<br />
de prestígio social médio e alto, porém, há diferenças significativas.<br />
Tipo de<br />
curso<br />
todos<br />
Variáveis<br />
Tabela 8<br />
Coeficientes estimados (b) e significância (p-valor)<br />
Federais Estaduais Privadas<br />
B p-valor Correção¹ B p-valor Correção¹ B p-valor Correção¹<br />
(Constant) 3,696 0,000 -<br />
3,569 0,000 - 3,444 0,000 -<br />
Não branco -0,051 0,000 -5,0% -0,051 0,000 -5,0% -0,03 0,000 -3,0%<br />
mulher 0,098 0,000 10,3% 0,094 0,000 9,9% 0,219 0,000 24,5%<br />
Ensino médio<br />
público<br />
-0,007 0,202 - 0,027 0,000 2,7% -0,007 0,034 -0,7%<br />
Perfil<br />
socioeconômico<br />
0,003 0,000 - 0,004 0,000 - 0,003 0,000 -<br />
Ação afirmativa -0,086 0,000 -8,2% -0,092 0,000 -8,8% -0,006 0,065 -<br />
(Constant) 3,908 ,000 -<br />
Não branco ,009 ,363 -<br />
3,825 ,000 -<br />
baixo mulher ,093 ,000 9,8% ,008 ,507 ,013 ,149 -<br />
prestígio<br />
Ensino médio<br />
social<br />
público<br />
-,025 ,030 -2,5% -,006 ,623 -,028 ,000 -2,7%<br />
Perfil<br />
socioeconômico<br />
,004 ,000 - ,011 ,000 ,004 ,000 -<br />
Ação afirmativa -,116 ,000 -10,9% -,099 ,000 -9,4% -,009 ,047 -0,8%<br />
(Constant) 3,671 ,000 -<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
3,824 ,000<br />
-,025 ,002 -2,4% -,018 ,000 -1,7%<br />
3,545 ,000 -<br />
3,429 ,000 -<br />
Não branco -,070 ,000 -6,8% -,074 ,000 -7,1% -,019 ,000 -1,9%<br />
médio mulher ,030 ,000 3,1% -,015 ,057 ,031 ,000 3,1%<br />
prestígio<br />
Ensino médio<br />
social<br />
público<br />
-,038 ,000 -3,7% ,001 ,896 -,038 ,000 -3,7%<br />
Perfil<br />
socioeconômico<br />
,005 ,000 - ,006 ,000 ,008 ,000 0,8%<br />
Ação afirmativa -,148 ,000 -13,7% -,120 ,000 -11,3% -,020 ,000 -2,0%<br />
(Constant) 3,631 ,000 - 3,568 ,000<br />
-<br />
3,406 ,000<br />
-<br />
Não branco -,089 ,000 -8,5% -,090 ,000 -8,6% -,077 ,000 -7,4%<br />
Alto mulher -,005 ,548 - -,027 ,116 ,058 ,000 6,0%<br />
prestígio<br />
Ensino médio<br />
social<br />
público<br />
,008 ,350 - -,035 ,034 -3,5% -,048 ,000 -4,7%<br />
Perfil<br />
socioeconômico<br />
,006 ,000 - ,005 ,000 ,005 ,000 0,5%<br />
Ação afirmativa -,106 ,000 -10,1% -,099 ,001 -9,4% -,057 ,000 -5,6%<br />
73
Continuação da tabela 8<br />
Tipo de<br />
curso<br />
Variáveis<br />
Federais Estaduais Privadas<br />
B p-valor Correção¹ B p-valor Correção¹ B p-valor Correção¹<br />
informações básicas sobre as regressões completas (“todos”) 2<br />
N° de observações 32.119 29.662 105.862<br />
R² ajustado 0,421 0,423 0,452<br />
Estatística f 142,113 142,664 1.155,786<br />
Nota: ¹A correção é exp (B)-1 para as variáveis binárias significativas, isto é, com p-valor menor que 0,05.<br />
A correção é utilizada na interpretação dos parâmetros estimados B. Os valores em negrito são maiores<br />
que 0,05, logo essas variáveis não são significativas ao nível 5%. Isto quer dizer que essas variáveis não<br />
são importantes para explicar a nota do concluinte.<br />
2 A estatística F dos modelos ajustados é alta, com p-valor próximo de zero em todas as regressões, indicando<br />
que até ao nível 1% rejeitamos a hipótese nula de que não há relação linear entre as variáveis X e Y. Logo o<br />
modelo foi bem especificado. O R² ajustado é médio em todos os modelos. Resultado esperado: a) dado que<br />
se usam dados em corte transversal e b) o modelo estimado é parcimonioso. Informações de qualidade de<br />
ajuste das regressões segundo prestígio social não são relatadas aqui, mas podem ser obtidas dos autores.<br />
CoNSiDERAÇÕES fiNAiS<br />
Políticas de ação afirmativa (cotas ou bônus “raciais” ou “sociais”)<br />
têm sido implementadas no Brasil nos últimos dez anos com o objetivo<br />
de reduzir a desigualdade de oportunidades, por meio do aumento da<br />
probabilidade de acesso de grupos desfavorecidos ao ensino superior.<br />
Neste estudo, a partir dos dados mais recentes do Enade disponíveis,<br />
traça-se um perfil dos concluintes dos cursos avaliados em 2008,<br />
comparando-se alunos beneficiados por ações afirmativas com os demais<br />
alunos, inclusive no que se refere ao desempenho na prova de<br />
conhecimentos específicos. Participam do exame os alunos ingressantes<br />
e concluintes em 2008, portanto uma ressalva aos dados utilizados<br />
no trabalho é a falta de informação sobre os que ingressaram em 2004<br />
e evadiram ao longo do curso ou ainda não se formaram.<br />
Entendendo-se como diversidade uma maior representação de grupos<br />
desfavorecidos, nossa análise dos dados sugere que as diversas<br />
políticas de ações afirmativas foram de fato bem-sucedidas no objetivo<br />
de proporcionar maior diversidade nas universidades, embora tal<br />
tendência seja menos clara em cursos mais prestigiosos.<br />
74 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
Com relação ao desempenho dos alunos, a nota média dos concluintes<br />
das estaduais e federais que ingressaram por meio de ações<br />
afirmativas é aproximadamente 4 pontos menor com relação aos<br />
concluintes que ingressaram pelo método tradicional (a nota da<br />
prova varia de 0 a 100 pontos). Embora de pequena magnitude,<br />
essa diferença é significativa segundo o teste de diferença de médias.<br />
Entre as instituições privadas, a diferença a favor dos beneficiá-<br />
rios das ações afirmativas, não é significativa.<br />
Na tentativa de se mensurar o efeito da forma de ingresso do aluno<br />
(por ação afirmativa ou não) na nota do aluno no teste de conhecimentos<br />
específicos aplicado no ano da conclusão do curso de graduação,<br />
controlando por características do aluno e do ambiente familiar,<br />
foram estimados modelos do tipo log-linear. Os resultados mostraram<br />
que nas IES privadas não se registram fortes hiatos de desempenho<br />
entre alunos beneficiários das ações afirmativas, a não ser em cursos<br />
com alto prestígio social, como engenharia e arquitetura.<br />
Nas IES públicas, contudo, o desempenho dos beneficiários é inferior<br />
ao dos demais alunos, para todos os tipos de cursos. Nas IES<br />
federais, ter ingressado por ação afirmativa reduz, em média em<br />
8,2% a nota na prova de conhecimentos específicos, comparada<br />
à dos concluintes que ingressaram sem intermédio das políticas de<br />
ação afirmativa, mantendo todas as outras variáveis constantes. Nos<br />
cursos de baixo prestígio social, o desempenho é 10,9% menor e<br />
entre os cursos de médio prestígio social, a queda no desempenho<br />
é de 13,7%. Esse resultado pode estar subestimado, uma vez que<br />
estamos considerando somente aqueles que ingressaram por ação<br />
afirmativa e conseguiram concluir o curso, ou seja, não estamos avaliando<br />
o desempenho dos que evadiram ou ainda não se formaram.<br />
Em suma, nossa análise sugere que as diversas políticas de ações<br />
afirmativas têm sido bem-sucedidas no objetivo de proporcionar<br />
maior diversidade nas universidades, isto é, uma maior presença de<br />
grupos desfavorecidos no ensino superior brasileiro. Com base na teo-<br />
ria de igualdade de oportunidade de John Roemer (1988), conforme<br />
delineado em Waltenberg (2007), interpretamos o hiato de desempenho<br />
entre concluintes beneficiados por ação afirmativa e não beneficiados<br />
como um preço relativamente modesto pago pela sociedade<br />
em prol da diversidade e da equalização das oportunidades.<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
75
REfERêNCiAS<br />
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restrições ao ingresso. <strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong>, Rio de Janeiro, v. 5, n. 15, p. 82-109,<br />
jan./abr. 2011.<br />
CÉSAR, C. C.; SOARES, J. F. Desigualdades acadêmicas induzidas pelo<br />
contexto escolar. <strong>Revista</strong> Brasileira de Estudos de População, São Paulo, v.<br />
18, n. 1/2, p. 97-110, 2001.<br />
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projetos nacionais em perspectiva comparada. Brasília: Ed. da Universidade<br />
de Brasília, 2006.<br />
FERREIRA, F. H. G.; GIGNOUX, J. The measurement of inequality of<br />
opportunity: theory and an application to Latin America. Review of Income<br />
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Janeiro, 2011. Disponível em: . Acesso em: setembro de 2012.<br />
WALTENBERG, F. D. Cotas nas universidades brasileiras: a contribuição das<br />
teorias de justiça distributiva ao debate. <strong>Sinais</strong> <strong>Sociais</strong>, Rio de Janeiro, v. 2, n.<br />
4, p. 8-51, 2007.<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
77
tRêS CRÍtiCoS: ANtoNio<br />
CANDiDo, PAuLo EmÍLio<br />
E mÁRio PEDRoSA<br />
Francisco Alambert<br />
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O ensaio a seguir busca estabelecer aproximações para uma história da crítica<br />
de arte e da cultura no Brasil diante dos temas “formação”, “crise”, “cultura nacional<br />
e internacional”, “ruptura” e “vanguarda”. Nessa perspectiva, serão analisadas<br />
as obras do crítico literário Antonio Candido, do crítico de cinema Paulo<br />
Emílio Salles Gomes e do crítico de artes plásticas Mário Pedrosa. Em comum,<br />
a busca de uma especificidade da produção cultural no Brasil do século XX por<br />
meio de conceitos que instrumentalizassem uma visão histórica do legado colonial<br />
e de sua transformação como meio criativo e de conhecimento do país.<br />
Em confronto e, acredito, em tensa complementaridade, veremos a elaboração<br />
de três conceitos de análise crítica construídos diante da condição brasileira<br />
pelo três críticos (cada qual por sua vez também diante de uma tradição crítica<br />
que a bem da verdade eles reinventam): o princípio da formação (em Antonio<br />
Candido), do deslocamento e cópia (em Paulo Emílio) e do exercício experimental<br />
da liberdade (em Mário Pedrosa). O quanto esses conceitos nos ajudam<br />
ainda a entender o mundo contemporâneo e sua cultura, no que ele carrega de<br />
histórico e de contingente, é a questão que este ensaio pretende pôr em jogo.<br />
Palavras-chave: formação; deslocamento e cópia; experimentalismo; crítica<br />
The following essay seeks to establish a history of approaches to art criticism<br />
and culture in Brazil on the themes of “training”, “crisis”, “national and international<br />
culture”, “rupture” and “avant garde”. In this perspective, we will be<br />
analyzing works of literary critic Antonio Candido, the film critic Paulo Emilio<br />
Salles Gomes and art critic Mario Pedrosa. In common, the search for a specific<br />
cultural production in Brazil of the twentieth century through concepts<br />
that enable a historical view of the colonial legacy and its transformation as a<br />
creative tool and knowledge of the country. In confrontation and, I believe, in<br />
tense complementarity, we will see the development of three concepts built<br />
on critical analysis of the condition by three Brazilian critics: the principle of<br />
formation (Antonio Candido), displacement and copy (Paul Emilio) and the experimental<br />
exercise of freedom (in Mario Pedrosa). How much these concepts<br />
help us further understand the contemporary world and its culture, as far as the<br />
historical and contingent components that it carries, is the question this essay<br />
attempts to suggest.<br />
Keywords: formation; displacement and copy; experimentalism; criticism<br />
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O ensaio tem que conseguir que a totalidade brilhe por um momento<br />
em um traço escolhido ou encontrado, sem que se afirme que ela esteja<br />
presente. Ele corrige o que há de casual e isolado de suas intuições à<br />
medida que, no seu próprio percurso ou em seu relacionamento de mosaico<br />
com outros ensaios, elas se multiplicam, conformam, limitam; não<br />
por uma abstração que delas retira os marcos diferenciais (ADORNO,<br />
in COHN, 1986, p. 180).<br />
1 ANtoNio CANDiDo: foRmAÇÃo E HiStÓRiA<br />
Para se compreender o contexto das ideias de nossos três críticos é<br />
necessário visitar vários aspectos ligados à produção intelectual paulistana<br />
por volta da metade do século XX. Entre os anos 1940 e meados<br />
de 1950 formava-se em São Paulo um momento importante da história<br />
das consequências do movimento modernista. Se o ímpeto iconoclástico<br />
de 22 já há muito havia arrefecido, seus desdobramentos<br />
foram tremendamente criativos.<br />
Antes disso, porém, esses desdobramentos foram precedidos por<br />
um sentimento doloroso de derrota e crise: “Fiz muito pouco, porque<br />
todos os meus feitos derivam de uma ilusão vasta [...] faltou humanidade<br />
em mim. Meu aristocratismo me puniu. Minhas intenções me<br />
enganaram.” Ou ainda mais trágico (e não menos lúcido): “Meu passado<br />
não é mais meu companheiro. Eu desconfio do meu passado”<br />
(ANDRADE, 1974, p. 252). Era assim que se sentia Mário de Andrade<br />
perto do final de sua vida, em 1942, em meio ao Estado Novo, às<br />
incertezas da Segunda Guerra Mundial, do futuro do nazifascismo e<br />
diante da desconfortável posição de “líder” do vitorioso movimento<br />
de modernização cultural e política que parecia chafurdar, impotente<br />
diante desse quadro de regressão. Dedo em riste, falando de outros<br />
tanto quanto de si mesmo, Mário de Andrade lamentava que com<br />
poucas exceções (nas quais ele mesmo não se enquadrava) ele e os<br />
modernistas vitoriosos tivessem sido “vítimas do nosso prazer da vida e<br />
da festança em que nos desvirilizamos”. Já pouco viris, os modernistas<br />
teriam virado as costas à revolta “contra a vida como está” em nome<br />
de estéreis discussões sobre “valores eternos”. Incapazes de ler de fato<br />
a história e a política, deixaram de lutar pelo “amilhoramento político-<br />
social do homem”.<br />
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Talvez nunca um intelectual brasileiro tenha lutado tão violentamente<br />
contra si mesmo. Mas a lamentação era uma autocrítica e também<br />
uma ação programática. Pois uma “traição”, já cometida antes, era<br />
agora sorrateiramente indicada como uma estratégia de superação<br />
da derrota: “Abandonei, traição consciente, a ficção, em favor de um<br />
homem-de-estudo que fundamentalmente não sou. Mas é que eu decidira<br />
impregnar tudo quanto fazia de um valor utilitário, um valor<br />
prático de vida, que fosse alguma coisa mais terrestre que ficção, prazer<br />
estético, a beleza divina” (p. 254).<br />
Mas nem tudo estava morto, e os vivos ainda poderiam caminhar<br />
adiante. Como se sabe, nesse mesmo depoimento, Mário de Andrade<br />
sintetizou os três princípios vivos saídos da aventura modernista dos<br />
anos 1920: a) o direito permanente à pesquisa estética; b) a atualização<br />
da inteligência artística brasileira; c) a estabilização de uma consciência<br />
criadora nacional (p. 242). Esse foi o resultado positivo de um<br />
“individualismo que arriscou”, mas cuja continuidade agora, nas novas<br />
condições em que se clama por uma nova politização da inteligência<br />
(“Marchem com as multidões”), deve ser preferencialmente pensado<br />
em sentido “coletivo”. Eis o conselho, verdadeiro programa para os<br />
ventos democráticos que talvez viessem: para se manter o “direito à<br />
pesquisa estética” (que eu entendo como “o direito à cultura moderna”),<br />
para se prosseguir à “atualização da inteligência artística” local<br />
e para se estabilizar uma “consciência criadora nacional”, era preciso<br />
pensar a cultura e a arte para além do ímpeto estético (e “aristocrático”)<br />
do primeiro modernismo. E tudo isso com a política – e com a<br />
política para as “multidões”. Um peculiar chamado à passagem da<br />
ficção à prática, uma prática que seria entendida, por alguns, como<br />
uma nova prática intelectual.<br />
Quando Mário de Andrade proferiu seu célebre discurso de ruptura<br />
com seu passado, indicando um novo período de necessários ajustes<br />
para que o movimento de superação modernista tomasse novo fôlego,<br />
já se encontravam em evolução os estudos da geração de escritores<br />
especuladores do caráter nacional brasileiro (Sérgio Buarque de<br />
Holanda, Gilberto Freyre e o jovem Caio Prado Jr.), que marcaram os<br />
anos 1930 como as primeiras consequências ensaísticas do Movimento<br />
de 22. Uma nova geração de estudiosos e acadêmicos que o gênio desabusado<br />
de Oswald de Andrade não hesitou em apelidar de “chato boys”.<br />
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Para o surgimento desse novo momento nos estudos sobre a cultura<br />
brasileira foi de crucial importância a fundação da Faculdade de<br />
Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), projeto acalentado por<br />
modernistas, modernizadores e descendentes progressistas de oligarcas.<br />
Sua principal consequência foi a formação de um certo radicalismo<br />
intelectual, ou mais especificamente, como disse Antonio<br />
Candido (1980, p. 103), um “modesto radicalismo que ficou sendo<br />
uma tradição e tem produzido efeitos positivos”. Sem entrar nos<br />
detalhes desse processo, lembremos apenas que é desse debate de<br />
superação de determinados pressupostos (ou (pré) conceitos) herdados<br />
dos anos heroicos do modernismo, das inquietações trazidas por<br />
algumas brilhantes generalizações historiográficas (que não deixam de<br />
ser devedoras daquele ímpeto revolucionário do primeiro modernismo)<br />
e das transformações trazidas pela implantação de um modelo<br />
europeu de universidade (com professores devidamente importados<br />
da matriz) que a geração de Antonio Candido e Paulo Emílio Salles<br />
Gomes se formou.<br />
Na história do pensamento brasileiro, esses intelectuais formaram<br />
(podendo-se acrescentar a eles os críticos Lourival Gomes Machado e<br />
Décio de Almeida Prado, o sociólogo Ruy Coelho e um mestre francês<br />
de todos eles, o filósofo Jean Maugüé 1 ) o conjunto que ficou conhecido<br />
como “Grupo Clima”, em referência ao periódico de mesmo<br />
nome por eles editado. Os intelectuais ligados ao Clima, não apenas<br />
faziam parte da primeira geração uspiana (tendo basicamente estudado<br />
com professores europeus), mas, situados à esquerda e (cada<br />
um a seu modo) inspirados pelo marxismo (que entre nós até então<br />
só havia dado frutos promissores na obra isolada de Caio Prado Jr.)<br />
1 Sobre Maugüé e sua influência entre os novos, diz Candido: “Provém dele<br />
muito de nossa atitude intelectual e, portanto, uma parte da tonalidade de<br />
Clima. Para ele a filosofia interessava sobretudo como reflexão sobre o quotidiano,<br />
os sentimentos, a política, a arte, a literatura. O nosso grupo incorporou<br />
profundamente este ponto de vista...” (CANDIDO, 1980, p. 162). Reflexões<br />
importantes sobre o Grupo Clima e a presença formadora e pedagógica de<br />
Maugüé para o pensamento uspiano (especialmente filosófico) e para o modelo<br />
crítico a que nos referimos, podem ser vistas em Arantes (1994), especialmente<br />
no Capítulo 2, e também no ótimo estudo de Heloísa Pontes Destinos<br />
mistos. Os críticos do Grupo Clima em São Paulo (1999).<br />
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e pelas ciências sociais mais progressistas, iam introduzindo a crítica<br />
cultural dialética – aquela crítica que busca explicar o funcionamento<br />
mesmo da sociedade em que as artes são produzidas e não apenas<br />
a esfera específica em que cada forma artística se encontra – entre<br />
nós. Tomado por influxos criativos vindos indistintamente do abalo de<br />
1930, da modernização europeizante da metrópole paulistana, dos<br />
ventos socialistas, do debate crítico com os veteranos do Modernismo<br />
e com o aprendizado criterioso dos professores europeus na nova Universidade,<br />
esse “grupo-geração” acabou por fazer da crítica de cultura<br />
um espaço fundamental para o engajamento intelectual a partir da<br />
Universidade.<br />
Antonio Candido, em um dos seus mais interessantes escritos crítico-biográficos,<br />
definiu o poeta e crítico modernista Sérgio Milliet<br />
como “homem-ponte” entre a geração de 22 e aquela que ele mesmo<br />
representava. Mais do que isso, Milliet seria sua maior afinidade e o<br />
ponto inicial em que se baseou para definir seu próprio ideário crítico.<br />
Candido salientava as qualidades do tipo de ensaísmo que Milliet introduzira<br />
entre nós: sua capacidade de circundar problemas, evitando<br />
dogmatismos, aguçando a reflexão, engajando sua personalidade<br />
em uma forma crítica que tateia “com liberdade os fatos e as ideias<br />
por meio do pensamento ‘que se ensaia’” (CANDIDO, 1987, p. 131).<br />
Uma atitude que ensaiava ela mesma a possibilidade da crítica dialética<br />
que os anos posteriores viabilizariam entre nós 2 . Uma lição que<br />
os participantes de Clima seguirão, especialmente o próprio Antonio<br />
Candido.<br />
Na “Maria Antônia”, dentro do contexto intelectual uspiano, com as<br />
aulas e leituras de Candido, começa a se definir a possibilidade de se<br />
refletir sobre as mediações extraliterárias e sua continuidade artística.<br />
O autor da Formação da literatura brasileira se tornava o interlocutor<br />
nacional privilegiado para debater o problema teórico da relação dialética<br />
entre obra/história no contexto dependente ou “pós-colonial”.<br />
O momento era favorável e em tudo parecia contraposto ao contexto<br />
2 Paulo Arantes, em seu fundamental estudo sobre Antonio Candido e Roberto<br />
Schwarz (no qual me baseio amplamente), reconhece essas afinidades<br />
mas discorda da “honra” que o crítico oferta a seu antecessor, estranhamente<br />
desautorizando a homenagem (ARANTES, 1992, p. 11).<br />
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em que Mário de Andrade clamou pelas mudanças dos que haviam<br />
mudado (quase) tudo. Eram anos de formação e não de desmanche,<br />
tempos de otimismo. O Brasil parecia, mesmo aos olhos dos desconfiados,<br />
ter se tornado mais inteligente por volta desses anos de redemocratização.<br />
A esquerda estava acertando passos e marcava posição<br />
em setores diversos da cultura e da ação política, do Cinema Novo à<br />
Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire. O golpe militar ainda teria de<br />
esperar uns anos para dar o ar de sua terrível graça 3 .<br />
Roberto Schwarz costuma exaltar em Candido sua capacidade de<br />
visão “estereoscópica”, criando uma analogia com o procedimento<br />
semelhante utilizado por Walter Benjamin em seus estudos sobre<br />
Baudelaire. Nestes são privilegiadas as correspondências sociais entre a<br />
lírica e as figuras do submundo urbano ou os dramas do funcionamento<br />
do mercado (em personagens como o colecionador ou o putschista),<br />
percebendo aí não apenas similitude de origem mas sobretudo o<br />
fato de que tais figuras e formas literárias estão marcadas por formas<br />
sociais que se correspondem (não que se “espelhem”). Não se trata,<br />
entretanto, de reduzir uma dimensão a outra mas de entendê-las, em<br />
linguagem benjaminiana, dentro de uma constelação, que exige do<br />
ensaísta a capacidade de “sair” do texto para perceber e recolher as<br />
correspondências soltas e fragmentadas no tecido social (SCHWARZ,<br />
1992, p. 33-34). A comparação não é gratuita nem aleatória, como<br />
veremos, e tem razão de ser. Antes de tudo porque, naqueles autores,<br />
forma social e forma literária se ligam na medida em que a realidade é<br />
ela mesma “forma”. Entender essa “formação” já é então o maior dos<br />
problemas enfrentados por nossa nova tradição crítica.<br />
Na virada da década de 1950 para 1960 o desenvolvimento do conceito<br />
de formação era central para o novo pensamento crítico. Em<br />
setores diversos, nos estudos de intelectuais como Caio Prado Jr. (Formação<br />
do Brasil contemporâneo), Celso Furtado (Formação econômica<br />
do Brasil) e o próprio Candido (Formação da literatura brasileira), o<br />
conceito anunciava uma radical mudança na maneira de conceber o<br />
país e a história. Para nossos fins, anotemos que, na esfera da cultura,<br />
3 O período, com seu otimismo e suas ilusões, foi analisado por Roberto<br />
Schwarz em um de seus mais notáveis ensaios, escrito e publicado originalmente<br />
em Paris durante seu exílio: “Cultura e Política, 1964-69” (1978).<br />
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a ideia de formação baseava-se no princípio de que as formas culturais<br />
nacionais são, por um lado, fundadas sob uma herança colonial que se<br />
repõe a par com o progresso e com a modernização capitalista e, por<br />
outro, sob o desejo histórico dos brasileiros de ter uma cultura – com<br />
todas as contradições que esse princípio desejante possa provocar.<br />
A síntese precisa de Paulo Emílio, cujos trabalhos sobre cinema localizam-se<br />
no núcleo dessa tradição teórica, daria o tom da discussão:<br />
“Não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de<br />
cultura original, nada nos é estrangeiro pois tudo o é. A penosa construção<br />
de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não<br />
ser e o ser outro” (GOMES, 1980, p. 77). Um dilema “hamletiano”<br />
define a origem e os princípios do intelectual (o teórico ou o artista)<br />
do mundo da economia dependente: “Um certo sentimento íntimo<br />
de inadequação, esse o drama do intelectual brasileiro, situado entre<br />
duas realidades, condenado a oscilar entre dois níveis de cultura”<br />
(ARANTES, 1992, p. 16).<br />
A superação do “desconforto intelectual” procede (ou não) no correr<br />
de um trabalho de mão dupla, em que a trama civilizatória concorre<br />
no sentido da incorporação do meio acanhado para a norma culta<br />
metropolitana, do mesmo modo que assegura o arranjo e a adaptação<br />
dessa norma à realidade local. “Dialética do local e do cosmopolita”,<br />
“dupla fidelidade”, “incapacidade criativa em copiar” (como veremos<br />
adiante) são algumas das definições que Candido e Paulo Emílio usariam,<br />
em diferentes momentos, para figurar essa oscilação definidora<br />
da trama das ideias e do drama dos intelectuais no contexto periférico.<br />
Uma proposição dialética é a base do conceito de formação, descrevendo<br />
o processo em que as ideologias se moldam entre nós, como<br />
uma escultura se molda, adaptando-se, chocando-se e (por vezes)<br />
superando-se diante do novo contexto.<br />
As linhas evolutivas dessa formação, tão penosa quanto a melancólica<br />
definição de Paulo Emílio sugere, constituem os diversos processos<br />
formativos de nosso sistema de entendimento cultural, em que a dialética<br />
joga as cartas decisivas, “porque se pode falar em dialética onde<br />
há uma integração progressiva por meio de uma tensão renovada a<br />
cada etapa cumprida” (ARANTES, 1992, p. 17). A noção de formação<br />
dá a medida dessas integrações e ilumina o caminho das etapas cumpridas<br />
(ou não).<br />
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Sob esse ponto de vista, pode-se dizer que, notadamente a partir do<br />
processo da Independência, os intelectuais se dividiram, esquematicamente,<br />
entre os defensores da originalidade e do “gênio” nacional e os<br />
campeões da universalidade cosmopolita, que no caso significava uma<br />
defesa dos valores da civilização liberal. A definição “dialética do local<br />
e do cosmopolita”, que Candido formulou em mais de uma ocasião,<br />
era a chave para compreender esse processo de formação cultural: “A<br />
dialética do local e do universal dá o balanço desta oposição, situando<br />
os termos inimigos no interior de um mesmo movimento de afirmação<br />
da identidade nacional, em que eles se complementam harmoniosamente”<br />
(SCHWARZ, 1987, p. 169). É esse o caráter da descrição de<br />
Antonio Candido em Formação da literatura brasileira.<br />
A compreensão dialética da formação dá um passo à frente no ensaio<br />
talvez decisivo da maturidade de Antonio Candido, “Dialética da<br />
malandragem”, publicado originalmente na <strong>Revista</strong> do Instituto de<br />
Estudos Brasileiros, nº 8, um estudo sobre Memórias de um sargento<br />
de milícias (1852), de Manuel Antonio de Almeida. Por aqui podemos<br />
acompanhar como, em Antonio Candido, romance e sociedade se<br />
encontram por meio da análise criteriosa da forma entendida como<br />
condição prática mediadora.<br />
A forma, entretanto, não se define exclusivamente na esfera literária.<br />
A própria realidade histórica é também formada, na medida em que<br />
é compreendida como formação social objetiva definida no jogo das<br />
forças produtivas e não na esfera ideal das consciências individuais. O<br />
fundamental nas Memórias, segundo a análise de Candido, é que em<br />
seu entrecho formal vibra uma intuição, uma verdadeira figuração, do<br />
movimento da sociedade brasileira (a tensão constante entre ordem<br />
e desordem em uma sociedade de base escravista, mas ao mesmo<br />
tempo desejando se urbanizar e modernizar). Para o crítico, tal intuição<br />
define-se como uma espécie de redução estrutural do movimento<br />
histórico que o romance apanha in locu. Não propriamente na qualidade<br />
de “documento”, mas sim como uma formalização estética do<br />
movimento formativo da sociedade brasileira (ou de suas condições<br />
de existência: no caso, a dialética entre ordem e desordem, que o<br />
crítico percebe na organização formal do romance, tanto quanto na<br />
própria forma social do Brasil do século XIX).<br />
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O princípio é dialético e nele podemos encontrar uma verdadeira<br />
afinidade com os pressupostos da assim chamada escola frankfurtiana<br />
(daí a comparação com os procedimentos de Benjamin não ser fortuita).<br />
A separação das esferas é legada pela história, mas não constitui<br />
meramente “ideologia” (no sentido de má consciência): é também real,<br />
na medida em que representa a própria estrutura do “processo real”.<br />
Também se formalizava uma proposição para a tarefa do novo tipo<br />
de crítico moderno: transcender a análise especializada (sem dela<br />
prescindir) visando a respeitar a relativa independência do objeto, colhendo<br />
os saberes dispersos e fraturados nas esferas das humanidades,<br />
na “cena contemporânea”. Uma análise que, dirá um crítico norte-<br />
-americano, “pressupõe um movimento do intrínseco para o extrínseco<br />
na sua própria estrutura, do fato ou obra individual para alguma<br />
realidade socioeconômica mais ampla por detrás dele” (JAMESON,<br />
1985, p. 12). Nada a ver, portanto, com as regras do universalismo<br />
estruturalista (e suas estruturas sem referência) ou com a ideia de que<br />
forma estética e situação social corram em vias diferentes ou paralelas.<br />
Como veremos adiante, esses princípios não seriam estranhos aos<br />
outros dois críticos que, entretanto, iriam desdobrar e indicar outros<br />
caminhos e possibilidades dentro dessa mesma trilha.<br />
2 PAuLo EmÍLio: DESLoCAmENto E CÓPiA<br />
As ideias de Paulo Emílio foram decisivas na formação intelectual<br />
de sua geração. Marxista militante, exilado político, frequentador dos<br />
círculos intelectuais radicais franceses, fundador dos cursos de cinema<br />
da USP e da Universidade de Brasília (UNB), teórico dialético das vicissitudes<br />
da cinematografia nacional e seus impasses, o antigo redator<br />
de Clima tinha tudo para conquistar a atenção dos jovens intelectuais.<br />
Mais do que isso, ele lhes deu quase um plano de trabalho, bem como<br />
uma orientação política precisa, como se fora ele o responsável por<br />
repensar o modernismo depois da despedida de Mário de Andrade.<br />
Em 1943, o jornalista Mário Neme, provavelmente influenciado<br />
pela conferência de Mário de Andrade sobre a crise do Modernismo e<br />
as tarefas da nova geração, realizou um inquérito publicado nas páginas<br />
do jornal O Estado de S. Paulo, que depois seria reunido em livro<br />
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intitulado Plataforma da nova geração. Nele, jovens críticos e escritores<br />
surgidos nos anos 1940 eram questionados sobre a herança recebida<br />
das gerações anteriores e sobre seus novos valores, modelos, insatisfações,<br />
bem como sobre seus princípios em estética, ciência e ideologia<br />
(além das relações disso tudo com a guerra mundial em pleno<br />
andamento) 4 . Sinal de tempos de mudança, percebida aliás por Sérgio<br />
Milliet, o “homem-ponte” entre a geração do primeiro Modernismo<br />
e aquela que então (ele anota em seu Diário crítico, em 4 de julho de<br />
1943) estaria “às vésperas da eclosão de uma nova estética” e, acrescento,<br />
de um novo pensamento sobre a estética nas novas condições<br />
brasileiras 5 . Uma nova geração pronta para o engajamento e para unir<br />
pesquisa cultural e atuação social: “A geração de 22 falou francês e leu<br />
os poetas. A de 44 lê inglês e faz sociologia” (MILLIET, 1981, p. 109).<br />
Dentre os depoimentos da plataforma dos jovens intelectuais, o de<br />
Paulo Emílio se destacava pela admirável lucidez e pela capacidade<br />
de organizar as questões decisivas do período e do que viria adiante.<br />
Desde o início, ele deixa claro que fala do ponto de vista de um jovem<br />
intelectual paulistano de esquerda (da “elite intelectual” da cidade),<br />
mas que pertence a uma “nova geração” para a qual “não há unidade<br />
ideológica”. Entretanto, lhe parece certo que naquele momento a direita<br />
está derrotada e sobrevivendo em um clima de delírio, refugiando-se<br />
em elogios tresloucados a “militares argentinos” e se vendo “nos romances<br />
de Clarice Lispector”. Tudo sinal de um desvio da geração antecedente<br />
que, como Mário de Andrade disse em sua conferência, e Paulo<br />
Emílio repete em outros termos, perdeu o rumo da história: “A estrada<br />
do oportunismo é uma estrada real, e já foi trilhada por representantes<br />
ilustres da facção” (GOMES in CALIL MACHADO, 1986, p. 82).<br />
Paulo Emílio é cauteloso em relação ao futuro. O fascismo poderia<br />
retornar por conta da “confusão” da época, inclusive entre a esquerda.<br />
Ele vê que os católicos, perdendo suas referências, vão cada vez mais<br />
para a direita, ao passo que o catolicismo da geração de 45 lhe parece<br />
4 A esse inquérito seguiu-se outro, com os representantes da geração mais<br />
velha (fundamentalmente os modernistas e antimodernistas), que foi também<br />
publicado com o título tumular de Testamento de uma geração.<br />
5 Sobre o mesmo assunto, mas sob outro ponto de vista, ver o ensaio de<br />
Silviano Santiago: “Sobre Plataformas e Testamentos” (2006).<br />
88 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 78-113 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
um sucedâneo da desilusão política e atinge desde a direita até os<br />
comunistas. O certo é que o liberalismo é o grande derrotado da época.<br />
Sobre isso, faz um prognóstico surpreendente que os anos recentes<br />
realizaram de maneira efetiva: “Não há na nova geração nenhum setor<br />
intelectual propriamente liberal, no velho sentido da palavra. Ligados<br />
às atividades intelectuais da Fiesp, alguns jovens economistas são<br />
talvez o núcleo para uma futura corrente neoliberalista” (idem, p. 85).<br />
Mas o que de fato lhe interessa é a confusão na esquerda, ou, mais<br />
precisamente, entre “jovens intelectuais de classes médias e da burguesia,<br />
que se exprimem ideologicamente pela esquerda”. Trata-se<br />
daqueles jovens intelectuais que têm “pouco menos ou pouco mais<br />
de 30 anos” e se politizaram por volta de 1935 (época da Intentona<br />
Comunista e antes do Estado Novo), influenciados pelo marxismo, pela<br />
psicanálise, pelo “pós-modernismo artístico” no contexto da extensão<br />
da “superficial” revolução de 1930. Para muitos deles, a “Rússia” se<br />
tornara uma “religião”. Isso era apenas o resultado do nível teórico<br />
“muito baixo” dos comunistas. Apenas “meia dúzia” teria um nível teó -<br />
rico avançado, porém alguns estavam “afastados”, enquanto que os<br />
outros se refugiavam na oposição de esquerda (creio que ele se refere<br />
a Caio Prado e Mário Pedrosa). Porém, essa nova esquerda capengava<br />
em dois aspectos básicos: “Ninguém nunca leu O capital. Do Brasil não<br />
se sabia nada.” Stalinistas e trotskistas, por motivos diversos, “amavam<br />
a Rússia”, mas ninguém “sabia pensar dialeticamente” (p. 85-87).<br />
Esse era o contexto em que a sua geração, a geração de Clima,<br />
surgiu e no qual atuaria. Depois da crise do Estado Novo e dos comunistas,<br />
inclusive de sua “religião”, a nova esquerda poderia surgir, gozando<br />
“a gratuidade e a disponibilidade” que lhe permitia “sua condição de<br />
classe”. Isso tudo propiciou um novo processo de crescimento e formação:<br />
“Adquiriam uma seriedade e eficácia de pensamento que os<br />
diferenciava logo em relação ao tom boêmio de Vinte-e-Dois” (p. 85).<br />
Na medida em que viam a Rússia dos “processos de Moscou” como<br />
um pesadelo, tomaram a França como paradigma. A geração se une na<br />
ideia de acalentar a originalidade e a alternativa do modelo soviético,<br />
mas também se interessa pela crítica desse modelo feita pelo trotskismo.<br />
Nesse processo, o marxismo pode ser revisitado sob um prisma especulativo,<br />
não dogmático (ou seja, sem a “religião” russa), e repensado<br />
diante de uma nova situação (o Brasil e sua história). Além de começar<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 78-113 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
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a ler Marx e os marxistas clássicos, a geração se aproxima da reinterpretação<br />
do marxismo feita via pensadores (sobretudo soció logos)<br />
norte-americanos (por isso, como brincou Milliet, era preciso agora<br />
“ler inglês”). Abre-se uma nova “época de estudos”, para a qual a<br />
América (seja a sociedade norte-americana marcada pelas consequências<br />
da Depressão dos anos 1930, seja a sociedade periférica latino-<br />
americana) e seus problemas específicos serão o foco central 6 .<br />
Nesse verdadeiro programa de revisão do pensamento modernista,<br />
e do próprio pensamento marxista diante de uma história que ele desconheceu<br />
(a história dos países periféricos e dependentes), o conceito<br />
chave para ser posto sob o crivo da dialética seria a velha questão, modernista<br />
aliás, do nacionalismo. E para explicar isso, Paulo Emílio saca<br />
um exemplo inusitado: o da “velha” Rússia. Antes da Revolução, ele diz,<br />
a Rússia semifeudal não conhecia o nacionalismo. O internacionalismo<br />
era importado do Ocidente. Mas no centro da Europa o clima era de revolução,<br />
sobretudo nos países derrotados na I Guerra Mundial. Paradoxalmente,<br />
com o fracasso da revolução na Europa, surge o nacionalismo<br />
russo. E aqui ele apresenta sua peculiar dialética da questão nacional:<br />
Sem saber nada dos países capitalistas mais adiantados, o termo de<br />
comparação para o presente era o passado da própria Rússia. Daí o<br />
moral altíssimo que se notava em certos setores russos, sobretudo na<br />
mocidade. O exemplo russo mostra como as ideias sobre nação e nacionalismo<br />
não foram abordadas com inteira correção pelo marxismo.<br />
Nação e nacionalismo não estão necessariamente ligados à direção<br />
burguesa da sociedade. Foi uma revolução operária de espírito internacionalista<br />
que permitiu o nascimento do nacionalismo russo. Agora<br />
que o nacionalismo existe é que é possível contradizê-lo e superá-lo<br />
pelo internacionalismo (p. 92).<br />
Nesse ponto, ele está pronto para expressar a ideologia de sua geração:<br />
o nacionalismo precisa ser construído para ser superado não pelo<br />
6 Paulo Emílio diz que nasceu aí uma abertura para se pensar a América Latina.<br />
Ele cita as ideias de Raul Victor Haya de la Torre, pensador peruano que<br />
fundou o aprismo, seu interesse pelo México na época de Cárdenas e seu<br />
desejo de recuperar o caráter inicial da revolução zapatista.<br />
90 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 78-113 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
simples internacionalismo, mas por um “pan-nacionalismo” (p. 93).<br />
Depois de especular sobre a possibilidade de surgimento dessa peculiar<br />
dialética entre nacionalismo e internacionalismo em vários países,<br />
sobretudo naqueles que foram derrotados na I Guerra e também na<br />
França, termina seu depoimento-plataforma pedindo abertura para<br />
esse debate. Clama para que os novos intelectuais deixem a “torre de<br />
marfim” e assumam as “questões de cultura” como sua responsabilidade.<br />
Sua tarefa maior deveria ser “participar do desaparecimento de<br />
um Brasil formal e do nascimento de uma nação” (p. 95).<br />
Saltemos algumas décadas e vejamos como Paulo Emílio, já então o<br />
mais importante pensador do cinema no Brasil, aplicou e desenvolveu<br />
muitas dessas ideias em sua prática crítica. Em seu ensaio já clássico<br />
“Cinema: trajetória no subdesenvolvimento”, Paulo Emílio consagrou,<br />
para certa tradição crítica, os princípios de análise que não apenas<br />
estruturavam uma história do cinema brasileiro (e suas “mortes” e “ressurreições”),<br />
a partir de seu contexto periférico, dependente e “subdesenvolvido”,<br />
culminando no auge (e na crise) do Cinema Novo mas,<br />
ao mesmo tempo, compilou as questões decisivas sobre a discussão<br />
promovida desde a teoria da dependência sobre os princípios da crítica<br />
histórica e materialista nas condições brasileiras. O tal princípio era<br />
resumido assim: “Em cinema o subdesenvolvimento não é uma etapa,<br />
um estágio, mas um estado” (GOMES, 1980, p. 85).<br />
Porém, e nisso reside o mais importante, nesse “estado” as coisas<br />
não funcionavam sempre da mesma maneira. Com impressionante<br />
fôlego sintético, o crítico passeia por diversos cinemas, e nações, “subdesenvolvidos”<br />
(em uma palavra: dependentes não apenas economicamente<br />
do centro capitalista hegemônico, mas sobretudo dependentes<br />
de uma dialética constante entre “ocupado”, o local, e “ocupante”,<br />
a força externa ou cosmopolita e também a classe dominante local<br />
que a representa) mostrando sobretudo suas diferenças. No caso do<br />
cinema indiano, ele nota que mesmo tendo sido formada uma indústria<br />
francamente popular, seu resultado foi fazer com que o filme<br />
indiano permanecesse fiel às “ideias, imagens e estilo já fabricados<br />
pelos ocupantes para consumo dos ocupados” (idem). No caso do<br />
Japão ocorreria o contrário: mesmo com a entrada massiva do cinema<br />
estrangeiro, sobretudo norte-americano, desde o início do século XX e<br />
principalmente a partir do pós-guerra, as imagens do ocupante teriam<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 78-113 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
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sido “devoradas” pela cultura local, permitindo inclusive que o cinema<br />
japonês se fizesse com seus próprios capitais.<br />
A questão brasileira era distinta. Aqui, nem a cópia (ou imitação)<br />
prevaleceu sempre, nem a “devoração” (antropofágica?) vingou efetivamente.<br />
Como já citado, estávamos em uma espécie de entre-lugar,<br />
presos àquela “dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro”. Nossa<br />
síntese era precária, mas existia, mesmo que sob o signo do paradoxo.<br />
Por exemplo, as imagens criadas pelo ocupante moderno, os Estados<br />
Unidos e sua indústria das imagens para ocupação, curiosamente viravam<br />
“coisa nossa”:<br />
não é que tenhamos nacionalizado o espetáculo importado como os<br />
japoneses o fizeram, mas acontece que a impregnação do filme americano<br />
foi tão geral, ocupou tanto espaço na imaginação coletiva de<br />
ocupantes e ocupados, excluídos apenas os últimos estratos da pirâmide<br />
social, que adquiriu uma qualidade de coisa nossa na linha de que<br />
nada nos é estrangeiro pois tudo o é (p. 79).<br />
A partir da década de 1940 – justamente a época em que surge a geração<br />
crítica que estamos comentando, representada aqui por Antonio<br />
Candido, Paulo Emílio e Mário Pedrosa – o sucesso das chanchadas (os<br />
filmes de “baixa cultura”, voltados à “plebe”) cativa o “ocupado” antepondo-se<br />
ao gosto do “ocupante” (tanto externo, o “imperialismo”,<br />
quanto interno, a “classe dominante” europeizada ou americanizada).<br />
Uma identificação cultural de outra ordem passa a ser uma realidade<br />
e uma potencialidade criativa:<br />
a identificação provocada pelo cinema americano modelava formas<br />
superficiais de comportamento em moças e rapazes vinculados aos<br />
ocupantes; em contrapartida a adoção, pela plebe, do malandro, do<br />
pilantra, do desocupado da chanchada, sugeria uma polêmica de ocupado<br />
contra ocupante (p. 80).<br />
Como na canção de Noel Rosa de 1933, Não tem tradução<br />
(“O cinema falado/ é o grande culpado/ da transformação”), os modos<br />
da plebe se antepõem aos modos “americanos” impostos mas, sem<br />
negá-los propriamente, os coloca em situação de rearranjo.<br />
92 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 78-113 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
O sucesso comercial da chanchada, ou seja, da “avacalhação” programática<br />
da cultura do ocupante e sua tradução nos termos da cultura<br />
(ou da falta dela) do ocupado foi, e aqui vai mais um paradoxo, o<br />
estímulo para o surgimento de um projeto cinematográfico industrial<br />
de um ponto de vista exclusivo do ocupante: o projeto da Companhia<br />
Vera Cruz que, como Paulo Emílio explica detidamente, faliu rapidamente.<br />
Seu fracasso derivou de dois aspectos. O primeiro seria a incapacidade<br />
da cópia do sistema industrial. A Vera Cruz queria recriar<br />
uma imagem calcada na cultura do ocupante, mas foi tragada pela<br />
estrutura por ele criada (no caso, o domínio do sistema de distribuição<br />
dos filmes). Por outro lado, o fracasso tinha um motivo “estético” e derivaria<br />
também da inutilidade da cópia. Nem os ocupantes locais (os<br />
ricos, devidamente europeizados e americanizados) nem os ocupados<br />
(a plebe) se identificavam com aquelas tentativas, pautadas no bom-<br />
-gosto e na imitação dos filmes internacionais. Preferindo o original à<br />
cópia, nesse sentido percebida como um rebaixamento do original,<br />
eles lhe viravam as costas.<br />
Como se sabe, a resolução criativa desse estado, em um nível experimental<br />
e engajado, veio pela formação de uma autêntica “vanguarda”<br />
cinematográfica brasileira: o Cinema Novo. Sua ética e sua<br />
estética rompiam o tradicional jogo entre ocupado e ocupante pela<br />
elaboração de uma forma nova, capaz de refletir e criar “uma imagem<br />
visual e sonora, contínua e coerente, da maioria absoluta do povo<br />
brasileiro” justamente ao se autonomizar e se “dessolidarizar de sua<br />
origem ocupante” para enfim criar, em forma e conteúdo, uma representação<br />
criativa “dos interesses do ocupado” (p. 83-84).<br />
Como se sabe também, o golpe de 64 colocaria essa imagem em crise,<br />
inviabilizando sua expansão e efetivação. Talvez por isso, e é ainda<br />
Paulo Emílio quem diz, a vanguarda cinemanovista tenha se fechado<br />
em si, experimentando uma forma única que, entretanto, não foi capaz<br />
de se radicar como a imagem do ocupado para si mesmo. Ainda<br />
assim, não deixa de ser significativo o sucesso internacional, com consequências<br />
admiráveis e influentes, do Cinema Novo na história das<br />
vanguardas cinematográficas do resto do mundo. Também é bastante<br />
sintomático que tenha sido Mário Pedrosa, segundo o depoimento de<br />
Glauber Rocha, um dos primeiros a reconhecer a inovação da vanguarda<br />
cinemanovista, e o responsável por lançá-la definitivamente<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 78-113 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
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como um marco da arte contemporânea justamente na única bienal<br />
que o crítico organizou, a VI Bienal de 1961 (ROCHA, 2003, p. 130) 7 .<br />
O fracasso da forma copiada e seu destino medíocre, ideia desenvolvida<br />
no ensaio dos anos 1970, já havia sido enunciada em um ensaio<br />
escrito uma década antes, “Uma situação colonial?”, publicado<br />
originalmente no jornal O Estado de S. Paulo, Suplemento Literário,<br />
em 19 de novembro de 1960 e depois em Gomes (1981). Nesse<br />
primeiro texto, a dialética entre “colonizador e colonizado” (substituída<br />
pelo conceito mais complexo e sutil no ensaio dos anos 1970<br />
por “ocupado e ocupante”) teria como resultado a “mediocridade”:<br />
“O denominador comum de todas as atividades relacionadas com o<br />
cinema é em nosso país a mediocridade” (p. 286). Mas então, o tom<br />
negativo do termo provocaria uma viravolta surpreendente, quase que<br />
um programa estético no qual a adversidade (penso aqui também em<br />
Hélio Oiticica: “Da adversidade vivemos”) abre caminho para a inovação,<br />
tendo por causa “nossa incompetência criativa em copiar”.<br />
Um certo primarismo, calcado na ilusão de que em “situação colonial”<br />
ou periférica se pode copiar, mimetizar completamente a fonte<br />
ideal, é a base da “incompetência”. Esta, entretanto, na medida em<br />
que se realiza (e não poderia ser de outro modo), pode ter seu resultado<br />
invertido. A chave da ideia está na noção de criatividade. Uma<br />
vez que somos incapazes de copiar (ainda que o desejemos), se soubermos<br />
ser criativos diante da impossibilidade de efetivar plenamente<br />
a fantasia, de fato somos capazes de criar algo novo, e, nesse sentido,<br />
“original”. Nossa originalidade, nosso caráter de inovação e vanguardismo,<br />
só pode residir em uma falha sistemática, em uma traição bem<br />
pensada das fontes das quais nos alimentamos. Creio que aqui, a metáfora<br />
oswaldiana da antropofagia, do “primitivo” que faz a revolução<br />
não por expulsar o poderoso colonizador, mas por degluti-lo e regurgitá-lo,<br />
ganha um sentido conceitual efetivo e dialético.<br />
Resumindo: em nossos autores, Antonio Candido e Paulo Emílio,<br />
romance, cinema e sociedade se informam por meio da análise criteriosa<br />
da forma entendida como condição prática mediadora diante<br />
de processos históricos concretos (a dialética entre ordem e desordem<br />
dentro do mundo criado pela escravidão e o favor, no caso da litera-<br />
7 Para uma análise geral da VI Bienal, ver Alambert in Abdala Jr. e Cara (2006).<br />
94 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 78-113 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
tura do século XIX, ou da condição subdesenvolvida do cinema dentro<br />
da dialética entre ocupado e ocupante, entre uma modernização<br />
sempre dependente e abortada, e em suas consequências medíocres<br />
e simultaneamente criativas, segundo Paulo Emílio). A forma artística,<br />
portanto, define-se a partir da realidade histórica (a brasileira, entendida<br />
não como “origem” e sim como condição histórica particular,<br />
mas ainda assim parte de uma condição universal ou internacional),<br />
que é também “forma”, na medida em que é compreendida como<br />
formação social objetiva, definida no jogo das forças produtivas, do<br />
movimento da sociedade global, e não na esfera ideal das consciências<br />
individuais.<br />
Estamos pois, e uma vez mais, diante de uma noção de forma oposta<br />
às regras do formalismo estruturalista, uma noção de forma e de<br />
formação na qual o caráter social, o sinal social, é o elemento estruturante.<br />
Eis a lição que nos resta dessa tradição de críticos-pensadores<br />
mesmo depois que as condições históricas específicas em que foram<br />
elaboradas, o otimismo desenvolvimentista e a consequente formação<br />
de uma cultura nacional em processo de superação de suas contradições<br />
originais, desapareceu do horizonte contemporâneo.<br />
3 mÁRio PEDRoSA: o ExERCÍCio ExPERimENtAL DA LibERDADE<br />
(Do iNÍCio Ao fim)<br />
Até aqui, vimos uma história “paulista” da formação. Mas de onde<br />
vinha Mário Pedrosa? No seu Rio de Janeiro adotivo, essa tradição sequer<br />
estava “formada”. A partir daqui, temos que passar a pensar uma<br />
relação possível entre pressupostos da tradição paulista e uma outra,<br />
que à época nem tradição era: a crítica de arte moderna entre nós,<br />
que se formaria a partir também de Sérgio Milliet e chegaria a um ponto<br />
avançado e surpreendente justamente com Mário Pedrosa. Creio<br />
que tanto a identidade quanto a “passagem” de um crítico ao outro<br />
foram sentidas pelo próprio Milliet. Em 1949, ele anotou em seu Diário<br />
Crítico um encontro com Mário Pedrosa em Paris. Dizia o seguinte:<br />
Mário Pedrosa, que encontro chegando do Brasil e já instalado em St.<br />
Germain, afirma que aquele velhinho à frente de um copo de vinho<br />
no café da esquina, ali se acha há dez anos. Viu-o em 1937, em 1946<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 78-113 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
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igualmente e o torna a ver agora. Pela praça passaram os tanques alemães,<br />
diante da igreja um obus caiu. Houve frio e fome e metralhadoras<br />
varreram as cercanias, mas o homem ali continua naturalmente,<br />
sem nenhuma intenção de heroísmo. Só porque acredita na vida. E<br />
há vida nesse lugar, nessa praça, nessa cidade. Não compreende sequer<br />
que possa existir outra coisa, não pensa em emigrar, em bater à<br />
porta da aventura, em correr atrás da estrela matutina. Por entre suas<br />
pálpebras enrugadas brilha uma nesga azul de admirável serenidade”<br />
(MILLIET, 1881, p. 369).<br />
Como se vê, Milliet tomou o olhar de Pedrosa e, junto, parte de sua<br />
sensibilidade também. Na verdade, faz sua a observação do outro. Em<br />
comum, vemos uma atenção para a história vista nas ruas. Histórias<br />
de pessoas “comuns” diante da História incomum e bárbara do século<br />
que ainda nem entrara em sua metade. Mas seria Mário Pedrosa quem<br />
desdobraria esse olhar arguto e generoso para o futuro. Anos depois, no<br />
“Depoimento sobre o MAM”, originalmente publicado em O Estado de<br />
S. Paulo de 24/3/1963, homenageando Milliet, já falando no passado,<br />
Pedrosa diria sobre seu contemporâneo:<br />
Sérgio Milliet, o verdadeiro fundador da crítica de artes plásticas no Brasil,<br />
o primeiro, entre seus pares, a introduzir uma crítica efetivamente<br />
revolucionária nos processos de análise, na renovação terminológica, no<br />
esforço da apreensão objetiva dos valores [...] (PEDROSA, 1995, p. 300).<br />
Tudo isso é rigorosamente verdadeiro. Mas Mário Pedrosa daria um<br />
sentido ainda mais radical à essa fortuna crítica do projeto moderno,<br />
em arte e em política.<br />
A trajetória das ideias estéticas de Mário Pedrosa – do realismo social<br />
no início dos anos 1930, passando pela defesa do abstracionismo e da<br />
arte contemporânea, até a pioneira detecção do pós-moderno (diante<br />
do qual expressará dúvidas e reparos hoje atualíssimos) – é indissociá vel<br />
de sua trajetória política 8 . Pedrosa inaugura no Brasil, sucessivamente, a<br />
militância política trotskista e a crítica de arte moderna. Entre as idas e<br />
8 Sobre a militância política de Pedrosa ver Marques Neto (1993); Loureiro,<br />
(1984).<br />
96 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 78-113 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
vindas do militante, surgiu o crítico. Entre os exílios surgiu o agitador das<br />
artes. No caso dele, como no de Paulo Emílio, o militante se fez crítico<br />
e o crítico se fez agitador cultural. A radicalidade de uma postura é emprestada<br />
à outra, resultando uma personalidade e uma atuação original<br />
na história da crítica de arte latino-americana (e não apenas nela).<br />
Mário Pedrosa e Paulo Emílio, aliás, têm trajetórias significativamente<br />
parecidas. Ambos nasceram em famílias ricas (Pedrosa no decadente<br />
mundo dos engenhos nordestinos; Paulo Emílio no ascendente<br />
mundo urbano e industrial paulistano), foram comunistas desde jovens<br />
(presos, exilados etc.), mas se politizaram mais modernamente<br />
no exterior, onde começaram a carreira de críticos (Pedrosa nos EUA,<br />
depois de namoros literários na São Paulo do final dos anos 1920;<br />
Paulo Emílio na França) com análises de ícones cosmopolitas: Käthe<br />
Kolwittz e Alexander Calder para Mário Pedrosa, Jean Vigo para Paulo<br />
Emílio. A rigor, o problema brasileiro lhes chega depois dessa experiência<br />
cosmopolita, o que nunca ocorreu com Antonio Candido.<br />
Mário Pedrosa militou diretamente no trotskismo internacional até<br />
os anos 1940 e depois continuou ligado à esquerda independente<br />
por toda a vida. Paulo Emílio namorou o trotskismo, como vimos, mas<br />
foi mais independente. Ambos se encontraram quando da fundação<br />
do Partido Socialista, também nos anos 1940, e em seu projeto de<br />
construir uma versão brasileira do socialismo (igualmente afastada do<br />
stalinismo e da social-democracia europeia). E aqui, se aproximam de<br />
Antonio Candido, um dos mentores intelectuais dessa proposta (que<br />
depois seria reativada quando da fundação do PT, partido que ambos,<br />
Pedrosa e Candido, cofundariam).<br />
Mas as diferenças são tão interessantes quanto as proximidades.<br />
Mário Pedrosa foi um militante da esquerda revolucionária que se fez<br />
crítico de arte por pensar o lugar da revolução nas condições que o<br />
século XX foi criando em suas crises sucessivas. Foi internacionalista,<br />
partindo do trotskismo, pensando o Brasil de dentro para fora (e de<br />
fora para dentro), continuando o movimento do ponto em que estagnava<br />
o nacionalismo do primeiro modernismo brasileiro. O paradoxal<br />
em sua trajetória é que ele também foi “desfazendo” a crítica (de seus<br />
antecessores, de seus contemporâneos e, no final, a dele mesmo) e a<br />
crença no papel revolucionário da arte para retomar, no final da vida, a<br />
militância política revolucionária do princípio (inclusive pelo princípio<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 78-113 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
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da crença no papel transformador da arte “desalienante”, aquela<br />
que se opunha à “consciência dilacerada” de nossa época, ideia central<br />
em sua crítica). Como explicou Otília Arantes, “sem nunca deixar<br />
a militância política, jamais dissociará revolução mundial e arte de<br />
vanguarda” (ARANTES, 1991; 1995).<br />
O exercício crítico de Mário Pedrosa desenhou de maneira transparente<br />
a utopia da arte moderna, seus impasses e suas perspectivas em<br />
seu momento mais sólido. Do mesmo modo, sua atividade crítica é<br />
um exercício constante de redefinições e proposições. De fato, ao longo<br />
de sua vida, Pedrosa propôs várias formas de disciplina crítica, de<br />
compreensão e pedagogia da arte revolucionária (desde a proposição<br />
da arte proletária quando do seu primeiro ensaio dos anos 1930 sobre<br />
Käthe Kolwittz, originalmente uma conferência apresentada no Clube<br />
dos Artistas Modernos, o CAM de Flávio de Carvalho, passando pela<br />
abstração construtiva e pelo racionalismo arquitetônico), até repensá-<br />
-la no sentido de definir uma particular noção de “pós-moderno” –<br />
que o encaminhou para pensar tanto uma arte “ambiental” quanto<br />
uma arte de “retaguarda”, para manter vivo e possível um ideal de arte<br />
de “vanguarda” revolucionária. Ao lado da tarefa crítica e pedagógica,<br />
foi também um articulador de estruturas partidárias revolucionárias<br />
e de estruturas institucionais no campo das artes, no “auge” de sua<br />
militância artística.<br />
Para Mário Pedrosa (e com Mário Pedrosa) não se pensa arte sem<br />
política revolucionária – e vice-versa – ainda que a arte para ele deva<br />
ser, por princípio, um terreno autônomo (e aqui surge uma grande<br />
novidade em relação à elaboração estética do grupo uspiano). Sua<br />
definição de arte mais recorrente ficou célebre (e hoje infinitamente<br />
repetida, ao ponto de descaracterizar-se quase completamente): arte<br />
emancipadora (e não qualquer forma ou exercício artístico) significa<br />
o experimental da liberdade. Justamente por ser assim, a arte moderna<br />
(ou suas vertentes construtivas e críticas) foi até certo momento o<br />
melhor laboratório da experiência possível de uma utópica situação<br />
social emancipada. “Exercício” porque a arte é antes de tudo um fazer<br />
atento sobre as coisas; “experimental” porque o exercício artístico, ao<br />
organizar o mundo que a sociedade de classes faz confundir e alienar<br />
diante do trabalho mecânico e repetitivo, permite aos indivíduos (artistas<br />
ou “fruidores”) uma relação mais aberta e livre com a matéria,<br />
98 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 78-113 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
einventando o mundo para não perdê-lo; “liberdade” pois é justamente<br />
essa a utopia que esse fazer promete e configura.<br />
Desse modo, fica claro que para Pedrosa o potencial emancipatório<br />
da obra de arte não deriva de qualquer “atitude” ou “intenção” declarada,<br />
mas sim por exercitar a possibilidade de um fazer diferente<br />
que se consubstancia na imagem libertária de um fazer livremente.<br />
Um fazer que pode deslocar a reificação dos sujeitos e a subjetividade<br />
alienada, fazendo com que esses sujeitos renovados tomem para si seu<br />
“destino”. Mas fazer “livremente”, para a liberdade, não significa fazer<br />
qualquer coisa, porque fazer qualquer coisa é fazer exatamente aquilo<br />
que o mundo reificado ensina a fazer. Por isso nem toda forma de arte<br />
“vale” como exercício de liberdade. Daí vem a certeza do autor de<br />
que o crítico é aquele que expõe e discute critérios que não possam<br />
ser apropriados pela linearidade alienada da cultura.<br />
Aqui, creio que Pedrosa se aproxima de um princípio de Walter<br />
Benjamin, desenvolvido em “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade<br />
técnica”, segundo o qual a tarefa do teórico da arte é criar<br />
conceitos que não possam ser “de modo algum apropriáveis pelo fascismo”<br />
(1986, p. 166) 9 . O crítico não é, portanto, nem o organizador<br />
do gosto burguês ou agente do “mercado” (o que essa figura de<br />
fato foi em sua origem 10 ) nem uma espécie de pedagogo ou juiz que<br />
decide caminhos. Ele é politicamente criterioso (tendo o “exercício<br />
experimental da liberdade” como horizonte): ao mesmo tempo que<br />
antecipa ações e significados, discute o rumo dos movimentos.<br />
A concepção geral da arte em Mário Pedrosa partia de uma “sábia<br />
dosagem de improvisação e erudição” (ARANTES in PEDROSA, 2000,<br />
p. 12), duas coisas que o diferenciam da geração uspiana (que, dentro<br />
de uma tradição universitária, jamais ligaria uma coisa à outra). De<br />
fato, à formação marxista básica e clássica ele foi adicionando um<br />
contato cotidiano com a produção plástica de sua época, ao mesmo<br />
tempo em que se apropriava e confrontava com desenvoltura autores<br />
vindos da teoria da arte (Riegl, Hildebrand, Worringer, Venturi), da<br />
filosofia (Hegel, Nietzsche, Husserl), da psicanálise (Freud, Charcot) ou<br />
os teóricos da Gestalt, além de alguns críticos profissionais seus con-<br />
9 Pedrosa foi certamente um dos primeiros leitores de Benjamin no Brasil.<br />
10 Sobre o tema, ver Adorno (1986).<br />
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temporâneos (Herbert Read, Romero Brest, Greenberg, entre muitos<br />
outros). Ao lado deles aparecem escritores como Baudelaire (talvez<br />
sua principal “inspiração”), Proust, Apollinaire ou os poetas e ensaístas<br />
do modernismo brasileiro, especialmente Mário de Andrade (e neste<br />
ponto ele se aproxima de seus colegas do Grupo Clima).<br />
Como para Antonio Candido e Paulo Emílio, Mário de Andrade é<br />
o vértice de um processo. Mas Mário Pedrosa acerta as pontas com o<br />
mestre de maneira particular. Em 1952, dez anos depois de Mário de<br />
Andrade fazer o seu necrológio do primeiro Modernismo e de si mesmo,<br />
Mário Pedrosa foi convidado a fazer também uma conferência<br />
para lembrar a Semana de Arte Moderna. O contexto era sumamente<br />
distinto, como se o Brasil fosse outro país (e de certa maneira era). No<br />
início do surto desenvolvimentista, em pleno gozo da redemocratização,<br />
após a fundação dos grandes museus de arte moderna (o MASP,<br />
o MAM de São Paulo e do Rio) e da I Bienal de Arte de São Paulo, o<br />
futuro parecia aberto. O Mário vivo propõe um diálogo com o Mário<br />
morto e docemente reinventa o futuro e o passado modernos. Pessimismo<br />
lá, otimismo aqui.<br />
Concordando com Mário de Andrade quanto ao “espírito” em transe<br />
nos anos 1920, Pedrosa localiza esse “espírito”: fala da experiência psíquica<br />
e “mágica” do contato com a pintura moderna propiciado pelas<br />
experiências de Anita ou Brecheret: para ele, foi a pintura que antecipou<br />
a revolução na literatura (e não o contrário, como nos acostumamos a<br />
pensar). Eis a tese: “A iniciação modernista deles começou a se fazer não<br />
através da literatura e da poesia mas através das artes especificamente<br />
não verbais da pintura e da escultura” (PEDROSA, 1998, p. 127).<br />
A representação plástica tradicional estaria mais arraigada na cultura<br />
conservadora do que a verbal (por isso ele destaca a história de Mário<br />
de Andrade sobre o escândalo causado em sua própria família quando<br />
ele apareceu com a escultura representando a cabeça de Cristo, feita<br />
por Brecheret). Porém, a linguagem plástica seria mais universal, daí ser<br />
mais aberta e própria aos problemas da criação e da expressão. Por isso o<br />
modernismo de 1922 não se restringiu a “uma escola literária confinada<br />
em um pequeno grupo isolado, como os simbolistas e pós-simbolistas<br />
do Rio”. A universalidade da arte propiciou inclusive que o melhor do<br />
nacionalismo modernista não ficasse preso às armadilhas do nacionalismo<br />
de “formas mais superficiais e estreitas”, sobretudo aquele em sua<br />
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forma “mais imbecil – a forma política” (p. 139). Pedrosa cita como o<br />
melhor exemplo do “bom” nacionalismo (quer dizer, de uma preocupação<br />
crítica com o local, com sua capacidade heurística genuína) o<br />
ensaio de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, influência decisiva<br />
no pensamento nacional crítico de Antonio Candido e Paulo Emílio.<br />
Para Mário Pedrosa, os pensadores tocados pelas artes visuais foram os<br />
mais abertos. Os “imbecis” nacionalistas eram justamente aqueles que<br />
não tinham, e refutavam, a sensibilidade plástica.<br />
Os modernistas brasileiros cumpriram rigorosamente o caminho<br />
emancipador da arte moderna, que para Pedrosa foi “uma reação ao<br />
ideal naturalista tradicional na cultura do ocidente e a proclamação da<br />
autonomia do fenômeno artístico”, o caminho do “espírito” contra a<br />
servidão “da religião, do Estado, das Igrejas, do rei, dos príncipes, dos<br />
nobres e finalmente dos ricos”. Ao caminhar para a abstração, a arte se<br />
dirige ao Mediterrâneo e, depois, graças ao imperialismo, às culturas<br />
“primitivas” (p. 139-141). Essa foi a verdadeira função do bom nacionalismo,<br />
cujo grande representante foi Mário de Andrade, que teria<br />
nos apresentado um “Brasil direto – natural, anti-ideológico”. Dessa<br />
lição saem Tarsila, Guignard, Pancetti ou Heitor dos Prazeres. Com<br />
Mário, mas também com o Pau-Brasil de Oswald de Andrade, abriu-se<br />
a porta para o primitivismo, a conquista anticultural do modernismo<br />
europeu, agora devidamente adaptada às condições locais: “O primitivismo<br />
foi a porta pela qual os modernistas penetraram no Brasil e a<br />
sua carta de naturalização brasileira” (p. 144) 11 .<br />
Assim, “pela primeira vez, jovens pintores brasileiros saem do Brasil<br />
por conta própria e vão a Paris tomar contato direto com a pintura<br />
viva, e não com o academismo morto”. Só depois, diz ele pensando<br />
no contexto varguista, é que o modernismo se divide entre esse<br />
primitivismo vitalista e universalista e o nacionalismo “de mera expressividade<br />
anedótica e pitoresca que degenera em modismos pre-<br />
11 Notemos de passagem que na Europa o primitivismo funcionou de maneira<br />
oposta. Em 1911, Franz Marc, profundamente tocado pelos seus estudos de<br />
escultura africana e peruana, escreveu: “Devemos ser corajosos e virar as costas<br />
a quase tudo o que até agora consideramos precioso e indispensável do<br />
nosso pensamento, se quisermos escapar do esgotamento e do nosso mau<br />
gosto europeu” (COLDWATER, 1967, p. 127).<br />
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conceituosos para terminar em estilo de tropos oratórios” (1998, p.<br />
145-148). Então, assumindo de vez o tom engajado da nova época,<br />
sob os ventos favoráveis do desenvolvimentismo e do novo tipo de<br />
engajamento institucional que o próprio Pedrosa advogará para esse<br />
momento, conclui:<br />
Pela primeira vez nesse Brasil pachorrento, inerte que no entanto começava<br />
a esboroar-se sob a desintegração da velha economia feudal e<br />
cafeeira, um punhado de jovens se levanta contra a modorra e clama<br />
que não somente nos domínios interessados da política os homens<br />
têm motivos de lutar, de brigar. A arte é cada vez mais, em nossos dias,<br />
uma atividade digna de por ela os homens, os melhores dentre eles,<br />
lutarem e se sacrificarem (p. 152) 12 .<br />
Em resumo, “por paradoxal que possa parecer, foi pela consciência<br />
do seu ‘internacionalismo modernista’, na expressão de Mário (de Andrade),<br />
que o movimento chegou – outra expressão de Mário – ao seu<br />
‘nacionalismo embrabecido’” (1998, p. 139). Aqui Pedrosa organizava<br />
as coisas ao seu modo (um modo parecido com aquele usado por<br />
Paulo Emílio para interpretar o nacionalismo russo). Nenhum nacionalismo<br />
é combativo (“embrabecido”) se não souber partir antes de um<br />
“internacionalismo” moderno. Ora, foi esse o caminho do nosso crítico,<br />
tanto quanto foi de sua geração, como vimos antes com Antonio<br />
Candido e Paulo Emílio. Seria também a partir de uma interpretação<br />
peculiar, e muito radical, desse “internacionalismo modernista” e de<br />
sua consequência como forma de agir dentro da tradição artística e<br />
política do país que Mário Pedrosa encontraria seu caminho particular.<br />
Sua atividade crítica partiria daí para compreender a História da Arte<br />
em um grande processo no qual, pelo menos desde o século XIX, a<br />
12 Cerca de vinte anos depois, em um de seus mais excepcionais textos, “A<br />
Bienal de cá para lá”, Pedrosa mudará sensivelmente essa abordagem cinquentista<br />
dos feitos da Semana. Ali, em meio aos horrores do Golpe militar e<br />
prestes a enfrentar mais um exílio (e mais uma derrota), ele explicará a semana<br />
a partir da imagem de um grupo aristocratizante, que ignorou a arte e a cultura<br />
populares (ele pensa nos artistas proletários que criaram, nos anos 1930, o<br />
Grupo Santa Helena) (PEDROSA, 1995).<br />
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arte se encaminharia para a abstração (seu caminho para a liberdade),<br />
privilegiando os momentos em que se apresenta o desmantelamento<br />
progressivo do naturalismo, do “acabado dos detalhes”, da “ilusão da<br />
matéria e do absoluto da cor dos objetos”. Uma crítica, enfim, que se<br />
pautava por “uma vocação nitidamente antinaturalista, portanto tectônica<br />
e abstrata” (ARANTES in PEDROSA, 2000, p. 13).<br />
Em um de seus mais ambiciosos ensaios, “Panorama da pintura<br />
moderna”, Pedrosa concluía, em uma criteriosa análise imanente da<br />
história da arte desde o Renascimento, que o projeto moderno se realizaria<br />
com a arte abstrata: “Um programa de preparação indireta e<br />
gigantesca para remodelar, através da visão em movimento, os modos<br />
de percepção e de sentir, e para conduzir a novas maneiras de viver.”<br />
Com sua liberação das estruturas da representação, no modernismo o<br />
tempo deixa de ser a questão decisiva: “O ‘x’ da questão agora é o espaço”<br />
(PEDROSA, 2000, p. 161-164). Para o crítico, Mondrian era “o<br />
jacobino da revolução modernista”, sua “depuração final”. Ou quase.<br />
Isso porque um artista como Max Bill, que apresentou na I Bienal uma<br />
escultura que causou entre os defensores do abstracionismo no Brasil<br />
o mesmo furor que Guernica trouxe aos expressionistas neofigurativos<br />
quando de sua aparição na II Bienal, em sua Unidade tripartida, mostrava<br />
uma nova dimensão da abstração capaz de conciliar “a dinâmica<br />
e a estática, numa noção de espaço já inseparável do tempo” (p. 173).<br />
Nesse ponto, poderíamos aproximar Pedrosa de um outro grande<br />
crítico, seu contemporâneo (e o mais importante da época), Clement<br />
Greenberg, ao qual foi bastante ligado por vínculos diversos, como<br />
a militância trotskista e a formação crítica criada dentro da esquerda<br />
norte-americana. Como se sabe, Greenberg também pautou sua crítica<br />
por um prisma “abstracionista”, centrado no conceito de planaridade<br />
que justamente se realizaria na arte abstrata norte-americana. Em um<br />
de seus ensaios mais discutidos (e discutíveis), “Vanguarda e Kitsch”,<br />
publicado originalmente em 1939, Greenberg defendeu a arte de vanguarda<br />
como uma resistência ao rebaixamento da “cultura” promovida<br />
pela lógica decadente da cultura burguesa. Nesse ensaio, ele segue<br />
uma explicação histórica aparentemente parecida com a de Pedrosa:<br />
“todas as verdades envolvidas pela religião, autoridade, tradição, estilo,<br />
são postas em questão, e o escritor ou artista não pode mais prever<br />
as respostas do seu público aos símbolos e referências com os quais<br />
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ele trabalha”, diz, provavelmente parodiando o Manifesto Comunista.<br />
Logo depois, se torna um pouco mais explícito, referindo-se a um<br />
novo tipo de crítica, a “crítica histórica”, que apresentou a “nossa ordem<br />
social burguesa não como uma condição ‘natural’, nem eterna,<br />
ad vida, mas simplesmente como o último termo em uma sucessão<br />
de ordens sociais”. A vanguarda nasceria daí e coincidiria com o mais<br />
“arrojado” tipo de “pensamento científico revolucionário na Europa”<br />
(GREENBERG, 1996, p. 23-24).<br />
A vanguarda política revolucionária deu a “coragem” para que o<br />
modernismo agredisse a cultura burguesa. Greenberg agradece. Agradece,<br />
mas deixa de lado. Uma vez constituída, a vanguarda abandona<br />
o barco da revolução política tanto quanto o da cultura burguesa. Sua<br />
função passaria a ser “manter a cultura em movimento”. Surge daí a<br />
“arte pela arte”, a “poesia pura”, e o “conteúdo torna-se algo a ser<br />
evitado como uma praga”. Essa é a busca do absoluto que leva à formação<br />
da arte abstrata. Um “cordão umbilical de ouro” liga vanguarda<br />
à classe dominante. Na medida em que esta estaria em via de desaparecer,<br />
ou “encolhendo”, a vanguarda também estaria em perigo. E ela<br />
precisa ser defendida, na medida em que é o último bastião da elite<br />
esclarecida que defende a “Cultura”.<br />
Como se pode notar sem muito esforço, as diferenças com Pedrosa<br />
são enormes e significativas. Em termos histórico-formais, para o crítico<br />
brasileiro a questão da bidimensionalidade modernista nunca chegou<br />
a ser a mais decisiva, ao mesmo tempo em que a presença de uma<br />
concepção de totalidade social na produção (marca marxista da qual<br />
o crítico brasileiro jamais se distanciou) não lhe permitia analisar a história<br />
da arte de um ângulo predominantemente “interno” ou “endógeno”,<br />
como o crítico norte-americano. Essas posições são suficientes<br />
para distanciar significativamente Pedrosa das posições “formalistas”<br />
(de que foi tanto e tão injustamente acusado) ou da euforia diante<br />
dos arroubos subjetivistas das correntes expressionistas abstratas (que,<br />
como se sabe, Greenberg tanto defendeu).<br />
Mas não é só isso. No caso de Greenberg, como no de Pedrosa, a<br />
origem trotskista de ambos (sobretudo no que tange à discussão da<br />
independência da arte diante do contexto específico do engajamento<br />
revolucionário) encaminhou duas leituras próximas, porém com resultados<br />
completamente diferentes.<br />
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Lembrando seus tempos de engajamento na Nova York dos anos<br />
1930, Greenberg escreveu: “Algum dia será preciso contar como o<br />
‘antistalinismo’, que começou mais ou menos como ‘trotskismo’, tornou-se<br />
arte pela arte, e desta forma abriu caminho, heroicamente,<br />
para o que viria depois” (1996, p. 235). Ora, para Mário Pedrosa, a<br />
questão dessa peculiar regressão à “arte pela arte” jamais foi colocada.<br />
Antes o contrário. Para ele o moderno era o resultado da anticultura<br />
(quer dizer, da negação da cultura burguesa acomodada, institucionalizada<br />
e rigorosamente antirrevolucionária), daí seu “primitivismo”,<br />
fundamentalmente antielitista, e da aventura da liberação experimental<br />
das formas (a aventura da abstração), promovendo um reinventar<br />
da experiência e das consciências. Isso ele chamou de autonomia,<br />
nesse sentido desdobrando os princípios fundamentais do famoso<br />
manifesto “Por uma arte revolucionária independente”, assinado por<br />
Trotski e André Breton 13 .<br />
Na crítica de Mário Pedrosa, a história (compreendida dialeticamente)<br />
assumia a dimensão decisiva, na medida em que ele sempre levava<br />
em “conta a mediação das relações de produção, de classe, as injunções<br />
do mercado, tanto quanto a maior ou menor consciência social<br />
de um povo ou de um artista na obra analisada”. Para ele, a arte antes<br />
de ser mero produto ideológico, sobredeterminado por condicionantes<br />
externos, acenava<br />
para um mundo outro, reconciliado, a lembrar uma ‘ordem cósmica’,<br />
porém recriada pelo homem. Por isso mesmo, a grande utopia<br />
de Mário Pedrosa (como ele mesmo repetiu à exaustão) era o advento de<br />
uma grande ‘arte sintética’, cujos delineamentos preliminares buscava<br />
permanente e obsessivamente desentranhar das manifestações mais<br />
autênticas da arte moderna (ARANTES in PEDROSA, 2000, p. 14).<br />
13 Diz o Manifesto: “A arte verdadeira, a que não se contenta com variações<br />
sobre modelos prontos, mas se esforça por dar uma expressão às necessidades<br />
interiores do homem e da humanidade de hoje, tem que ser revolucionária,<br />
tem que aspirar a uma reconstrução completa e radical da sociedade.<br />
(in FACIOLI, 1985, p. 37-38). Não deixa de ser sintomático desses caminhos<br />
diversos que, nos anos 1970, enquanto Pedrosa amargava seu terceiro exílio<br />
político, Greenberg usasse de sua autoridade de ex-marxista para defender a<br />
invasão norte-americana no Vietnã.<br />
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Essa busca da síntese, da utopia da arte “sintética” (que ora lhe apareceu<br />
nos desdobramentos do concretismo, em sua vertente neoconcreta,<br />
ora na síntese da arquitetura funcionalista, escultural e racional brasileira<br />
no auge de nosso sonho desenvolvimentista) fundamenta ainda melhor<br />
a máxima da arte como “exercício experimental da liberdade”. Sua missão<br />
seria “extravasar no mundo vivido aquele conteúdo que precisou<br />
de liberdade para decantar-se segundo leis próprias” (ARANTES, 1991,<br />
p. XII-XVI ). Nada a ver, uma vez mais, com qualquer exercício formalista,<br />
nem greenberguiano, nem pós-moderno. Em 1955, explicando o<br />
significado do Grupo Frente e de seu “horror ao ecletismo”, ele definiu<br />
perfeitamente a diferença entre a “arte pela arte” e a busca da arte autônoma<br />
em seu exercício experimental de liberdade:<br />
A arte para eles não é atividade de parasitas nem está a serviço de ociosos<br />
ricos, ou de causas políticas ou do Estado paternalista. Atividade autônoma<br />
e vital, ela visa a uma altíssima missão social, qual seja a de dar estilo à<br />
época e transformar os homens, educando-os a exercer os sentidos com<br />
plenitude e a modelar as próprias emoções”( PEDROSA, 1998, p. 248).<br />
No plano brasileiro, essa concepção era bastante original, e tinha<br />
consequências. Pois no Brasil, a noção de “vanguarda” foi vulgarmente<br />
assimilada como sinônimo de “experimentação” destinada a ofuscar<br />
“passadistas” e “atualizar” com as vogas e modas internacionais. E aqui<br />
os pontos que ligam o militante marxista que se fez crítico de arte com os<br />
jovens universitários paulistas se tornam mais visíveis. Com Mário<br />
Pedrosa, o sentido da ideia de vanguarda na condição moderna se torna<br />
peculiarmente mais radical: liberar uma sociabilidade reprimida e alienada;<br />
ser negativa e antiburguesa, buscando passar do mundo vivido à<br />
arte e dessa para o mundo, de volta. É nesse ponto que podemos entender<br />
seu interesse pela arte produzida pelos loucos e pelas crianças,<br />
bem como sua valorização constante da arte “primitiva”, sobretudo a<br />
dos povos pré-colombianos. Isso não apenas porque aí poderíamos encontrar<br />
uma arte produzida por consciências ainda não alienadas pela<br />
linearidade da concepção burguesa de mundo (e de arte), mas porque<br />
militar por essas causas permitia resguardar a arte como necessidade e<br />
direito de expressão “que está em todo ser vivo, em todo ser humano,<br />
psicótico ou inocente” (PEDROSA, 1995, p. 256).<br />
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Esse direito de expressão “que está em todo ser vivo”, ou seja, é<br />
rigorosamente universal, ganha, no contexto de luta do terceiro mundo,<br />
da periferia dependente, um sentido nada “abstrato”, mas sim<br />
politicamente concreto, localizado e operacional. Comentando a IV<br />
Bienal, Pedrosa atacava duramente o elitismo “cosmopolita” incorporado<br />
pelo poderoso diretor do Museu de Arte Moderna de Nova York,<br />
Alfred Barr Jr., que ridicularizava o esforço dos latino-americanos para<br />
incorporar (e transformar) a arte abstrata construtiva: “O intrigara até<br />
a irritação o fato de jovens daqui e da Argentina se terem entregado<br />
a experiências chamadas concretistas. Irrita-o ainda a influência que<br />
Max Bill, por exemplo, chegou a exercer por nossas paragens”. E pergunta:<br />
“Que preferia o ilustre ex-diretor do MOMA de Nova York?<br />
Que os jovens artistas brasileiros ou argentinos se deixassem influenciar<br />
mais uma vez por Picasso, Rouault, Soutine ou mesmo por algumas<br />
das glórias descobertas pelo mesmo museu, gênero Peter Blume?”<br />
(PEDROSA, 1998, p. 280).<br />
Pois nossa pintura estaria na contramão do “gosto eclético hoje<br />
dominante em Paris ou em Nova York. E não encontrando nada que afagasse<br />
seus hábitos, (Barr Jr.) desviou-se, como todo estrangeiro importante<br />
faz ao chegar às nossas plagas, na procura de tabas de índios e de<br />
revoada de papagaios”. Os estrangeiros só querem “exotismo”, “não<br />
gostam de permitir aos nossos artistas uma pesquisa, uma linguagem<br />
moderna e não ao gosto do momento nos grandes centros europeus”.<br />
Os ricos, os europeus e norte-americanos, desejam o irracional: “Têm<br />
horror, como homens cansados de cultura e de experiências estéticas,<br />
a tudo que lembre estrutura, ordem, disciplina, tensões, otimismo,<br />
beleza plástica, em suma.” Nossos artistas resistem a isso, apropriam-<br />
se da cultura “universal” e a reinventam para tomar para si seu destino.<br />
Isso era a autonomia, na visão de Mário Pedrosa, “sentimento de<br />
independência que vai se generalizando entre os melhores de nossos<br />
artistas”. Um “embrião de escola, cujas características fundamentais é<br />
cedo para tentar definir e cuja designação ainda, portanto, é difícil de<br />
dar” (1998, p. 280). Creio que isso que ele antevê será o neoconcretismo,<br />
mas é também, e ao mesmo tempo, um projeto de emancipação<br />
nacional, terceiro-mundista e, aí sim, efetivamente internacional.<br />
Em um ensaio chamado exatamente “Paradoxo da arte moderna<br />
brasileira”, já quase eufórico com as novas possibilidades de união e<br />
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síntese entre o local e o cosmopolita (o projeto de sua geração, como<br />
vimos em Antonio Candido e Paulo Emílio também), Pedrosa diz:<br />
Não estará saindo desse paradoxo, dessa ‘vontade profunda’ o embrião<br />
ainda precário, mas já existente, de uma arte brasileira moderna<br />
e autóctone, isto é, autenticamente regional, de saborosos e fortes<br />
acentos dialetais, na grande linguagem abstrata universal? Como já é o<br />
caso com a nossa arquitetura” (PEDROSA, 1998, p. 319).<br />
Assim, para Mário Pedrosa (esse “socialista singular” como o definiu<br />
Antonio Candido” (in MARQUES NETO, 2001, p. 14)) a crítica tinha<br />
que ser sempre, como dizia Baudelaire, “parcial, apaixonada e política”<br />
para contribuir para a utopia emancipatória da arte e da vida, ideia<br />
que não era estranha ao princípio crítico de Paulo Emílio, como vimos.<br />
Por isso Mário Pedrosa não pode ser visto apenas como um teórico<br />
das vanguardas estéticas no Brasil, mas também (e ao mesmo tempo)<br />
como seu crítico. Pois<br />
a consciência dilacerada não é hoje apenas a consciência do povo, das<br />
massas, das classes: é também das elites e das vanguardas. A arte é um<br />
esforço perene de superação da consciência dilacerada. Ela é por isso<br />
mesmo vencida sempre, substituída por outro esforço, e assim indefinidamente<br />
até o ser da sociedade deixar de ser dilacerado (PEDROSA,<br />
1995, p. 275).<br />
Do mesmo modo, a atuação política socialista tem de ser ela mesma<br />
experimental, uma vez que<br />
o socialismo não consiste apenas na conquista do poder pelo proletariado<br />
e na execução das reformas de estrutura com a socialização dos<br />
meios de produção. O socialismo é a ação consciente, quotidiana e<br />
constante das massas, mas por elas mesmas e não por meio de uma<br />
“procuração” a um partido de vanguarda mais consciente (PEDROSA<br />
apud MARQUES NETO, 1993, p. 252).<br />
Trata-se, portanto, de uma concepção da revolução e do partido<br />
como uma experiência radical em processo constante de transforma-<br />
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ção e elaboração. Como se vê, o decisivo é defesa da utopia de uma<br />
arte autônoma e de uma política de massas, progredindo por rupturas<br />
em direção ao exercício da transformação da sociabilidade mais ampla.<br />
Essa concepção utópica, aprendida no Manifesto “Por uma arte<br />
revolucionária independente”, foi perseguida por Pedrosa, que entretanto<br />
soube ver, no percurso da história, a configuração de suas crises<br />
e de seus impasses.<br />
De fato, no final de sua vida, já diante do naufrágio das utopias construtivas<br />
na arte moderna, na vida social brasileira (após o Golpe Militar<br />
de 1964 e o fim da etapa desenvolvimentista) e da virada liberal do<br />
capitalismo internacional, ele percebeu a relativa falência da forma de<br />
intervenção que a arte moderna representou: “A sociedade de consumo<br />
de massas não é propícia às artes”, e especialmente “à arte moderna,<br />
com suas exigências de qualidade e não ambiguidade”. Por isso era<br />
inevitável perceber que uma “arte pós-moderna” tinha início:<br />
É que entre aquela e o povo, a sociedade de consumo de massa se interpôs<br />
pela comunicação de massa que deu à imagem uma força atributiva<br />
maior do que a palavra, e forneceu à indústria, ao poder da publicidade,<br />
suas invencíveis armas ofensivas. A chamada cultura de massa e arte<br />
de massa já não tem, entretanto, forças para deter a debandada geral<br />
(PEDROSA, 1998, p. 282-283).<br />
Esse “esvaziamento” utópico levou Mário de volta ao desejo da intervenção<br />
política, ao retorno ao partido socialista de modo a salvar<br />
a utopia que a arte não podia mais reter em si e exercitar livre e experimentalmente.<br />
No final dos anos 1970 (perto de sua morte), de<br />
novo mais crítico socialista da cultura política do que crítico da política<br />
das artes, ele avaliava a conjuntura político-cultural atacando tanto o<br />
flanco dos velhos vanguardistas da arte quanto das velhas políticas dos<br />
comunistas da América Latina.<br />
Desde as ditaduras militares na América Latina e a Guerra do Vietnã<br />
até o final de sua vida, Pedrosa iria reunir em seu esforço de interven-<br />
ção política uma série de textos e ações destinados a repensar a atuação<br />
política em tempos de transformações da ordem capitalista mundial.<br />
Nesse sentido é que elaborou dois alentados volumes e diversas reflexões<br />
sobre a nova face do imperialismo norte-americano, sobre o<br />
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significado do fim de qualquer sonho utópico possível em relação ao<br />
comunismo soviético e sobre a nova “cultura” da fase pós-industrial<br />
do capitalismo (que acompanhava sua leitura da arte “pós-moderna”).<br />
É o caso dos livros pioneiros A opção imperialista e A opção brasileira.<br />
Como ele mesmo explicou no prefácio de A opção imperialista,<br />
sua intenção nesse momento era “indicar a linha de forças que impõe<br />
ao Brasil uma distorção que o desnatura, se não o faz definhar ou mesmo<br />
perecer”, bem como “definir aos brasileiros a retificação que se impõe<br />
para fazê-lo reencontrar seu próprio destino” (PEDROSA, 1966, p. 2).<br />
No momento histórico daquilo que ele chamou de “internacionalismo<br />
burguês multinacional”, ou de arte pós-moderna, era preciso<br />
pensar além da arte e da política. E ele pensou o seguinte:<br />
Estou pensando em escrever um livro sobre as multinacionais ou a<br />
teoria da contrarrevolução mundial. Eles têm um projeto, fundado em<br />
uma tecnologia cada vez mais desumana. Um domínio da civilização<br />
do hotel Hilton. O que eles querem fazer é a civilização do hotel Hilton!<br />
Baseada no plástico, nessa matéria-prima que nada tem a ver com<br />
a organicidade da natureza e da terra, implantando uma civilização<br />
falsa. Isso é a teoria da contrarrevolução mundial, internacionalmente.<br />
É preciso um rearmamento ideológico fantástico para continuar a luta<br />
ideológica, que não se encontra mais em lugar nenhum (PEDROSA in<br />
MODERNO, 1984, p. 34).<br />
Nesse ponto, ele parou e abandonou a crítica de arte. Nesse ponto, a<br />
ideia da formação de uma crítica materialista da produção cultural nas<br />
condições brasileiras, que também se fundasse na crítica da configuração<br />
social do capitalismo contemporâneo, também parou, na medida<br />
em que o desmanche trazido pelo fim da etapa desenvolvimentista<br />
e do nosso ambíguo projeto de “civilização” estancou a veia crítica e<br />
abriu caminho para o ecletismo e a despolitização contemporânea.<br />
É desse ponto que nós devemos recomeçar, se de fato quisermos<br />
continuar a luta contra “a civilização do Hotel Hilton”, sobretudo aqui<br />
dentro do nosso Planeta Favela. Se não me enganei terrivelmente nas<br />
páginas anteriores, creio que os três críticos que vimos são uma fonte<br />
ainda fresca de possibilidades para se pensar para além do que nos<br />
tornamos.<br />
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REfERêNCiAS<br />
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111
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PEDROSA, M. Política das artes. São Paulo: EDUSP, 1995.<br />
PONTES, H. Destinos mistos: os críticos do Grupo Clima em São Paulo (1940<br />
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ROCHA, G. Origens de um cinema novo. In: ROCHA, G. Revisão crítica do<br />
cinema brasileiro. São Paulo: Cosac & Naif, 2003.<br />
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112 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 78-113 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
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SCHWARZ, R. Que horas são. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.<br />
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GoNÇALo m. tAvARES:<br />
o ENSAio, A DANÇA,<br />
o ESPÍRito LivRE<br />
Júlia Studart<br />
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Este artigo propõe uma leitura crítica do trabalho do escritor contemporâneo<br />
Gonçalo M. Tavares – concentrando-se no seu primeiro livro, Livro da Dança,<br />
publicado em 2001 – a partir de três questões principais: o ensaio, como experiência<br />
intelectual livre, método ou modelo literário e também como ato em si,<br />
repetição, treino; a dança, uma saída da condição habitual e um desequilíbrio,<br />
a invenção de um corpo-bailarino que toca a experiência do ensaio como palco<br />
de uma experiência intelectual aberta e contaminada com questões que são retiradas<br />
da filosofia e da dança; e, por fim, o espírito livre, conceito de Nietzsche,<br />
que remete a um espírito leve e que ri, aquele que detém o alegre saber. A<br />
literatura de Gonçalo M. Tavares como um livro-ensaio aberto que escolhe o<br />
texto como um laboratório de sensações; uma situação sempre experimental<br />
que se assemelha a um estado de dança, em um procedimento anacrônico,<br />
livre e descontínuo.<br />
Palavras-chave: ensaio; dança; espírito livre<br />
This article proposes a critical reading of the work of Gonçalo M. Tavares – focusing<br />
on his first book, Book of Dance, published in 2001 – based on three<br />
main issues: the rehearsal, as a free, intellectual experience, method or literary<br />
model and as the act itself, repetition, practice; the dance, a leaving of the<br />
usual condition and an imbalance, the invention of a body-dancer that uses the<br />
rehearsal’s experience as a stage for an open intellectual experience, contaminated<br />
with questions drawn from the philosophy and dance; and, finally, the<br />
free spirit, Nietzsche’s concept, which refers to a light spirit that laughs, one<br />
who holds the joyful knowledge. The literature of Gonçalo M. Tavares as an<br />
open book-of-rehearsal, that chooses the text as a laboratory of sensations; an<br />
ever experimental situation that resembles a state of dance, a free, anachronistic<br />
and discontinuous procedure.<br />
Keywords: rehearsal; dance; free spirit<br />
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1 o ENSAio, mÉtoDo É DESvio<br />
Gonçalo M. Tavares publica seu primeiro livro em Portugal em 2001<br />
(Assírio & Alvim), intitulado Livro da dança, 1 um poema longo dividido<br />
e numerado em 114 fragmentos, que também se aproxima muito do<br />
ensaio, como uma primeira hipótese. O livro mantém uma relação<br />
direta com questões da filosofia e com questões que parecem ter sido<br />
retiradas de um pensamento da dança e para a dança, como será demonstrado<br />
mais adiante. Ele saiu no Brasil em 2008 (Editora da Casa),<br />
com uma versão diferente da edição portuguesa, pois o texto parece<br />
indicar para outro desdobramento da linha, do verso, como alguns<br />
versos que descem e outros que ficam menores, com trechos inteiros<br />
removidos, o que marca ainda mais a imprecisão do gesto da dança,<br />
do movimento solto do corpo: a coreografia do corpo leve e do poema<br />
como um corpo que pode sempre ser outra coisa. No trabalho de<br />
Gonçalo M. Tavares a dança e o corpo vêm como um acidente mútuo,<br />
um gesto que pode e deve ser rearticulado de outra maneira e assim<br />
sucessivamente, em um sem-número de combinações infinitas, como<br />
um ensaio infinito. Na edição brasileira, os poemas, os fragmentos,<br />
que parecem vir em menor número, perdem a numeração, ganham<br />
títulos e são organizados em um sumário que aparece pela primeira<br />
vez. Dessa forma, o ensaio, no trabalho de Gonçalo M. Tavares, pode<br />
ser entendido de duas maneiras distintas e complementares.<br />
1 Esse primeiro livro foi definido pelo próprio escritor como “investigação”, termo<br />
ou “etiqueta” que constitui uma espécie de “modo de uso” ou de “como<br />
ler”, etiqueta que é também um nome de uso para identificar uma série de<br />
livros que mantêm entre si uma linha ou uma fronteira de texto comum. Essas<br />
etiquetas aparecem, principalmente, nas listagens dos livros que podem ser encontradas,<br />
por exemplo, no começo ou ao final de alguns de seus livros, quase<br />
sempre acompanhadas da biografia do autor. O termo “etiqueta” aparece no<br />
site oficial de Gonçalo M. Tavares (http://goncalomtavares.blogspot.com/). Elas<br />
se dividem em “Livros pretos – O Reino”, “Livros pretos – Canções”, “O Bairro”,<br />
“Estórias”, “Enciclopédia”, “Bloom Books”, “Poesia”, “Teatro”, “Arquivos”,<br />
“Investigações”, “Epopeia” e “Short Movies”. Dessa forma, e até agora, já que<br />
todos os projetos estão abertos e em processo, o Livro da dança faz parte de<br />
um grupo de três livros que formam as suas investigações, juntamente com o<br />
Investigações. Novalis (2002) e o Investigações geométricas (2004).<br />
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A primeira, como método ou modelo literário, procedimento de reflexão<br />
crítica ou estudo sobre algo, que é o caso, por exemplo, desse<br />
livro em que as reflexões acerca do movimento, do corpo e da dança<br />
já aparecem para depois se expandir por todo o seu projeto. Theodor<br />
Adorno, em seu conhecido texto “O ensaio como forma”, publicado<br />
em 1958, no volume intitulado Notas de literatura, diz que o ensaio é<br />
uma espécie de entusiasmo infantil, que faz com que alguém, como<br />
uma criança, tenha imensa disposição para algo e não tenha “vergonha<br />
de se entusiasmar com o que os outros já fizeram” (ADORNO, 2003,<br />
p. 16), uma sorte de felicidade e de jogo que exige certa liberdade de<br />
espírito, um corpo livre e disponível para tal tarefa. Assim, o ensaio<br />
seria mais ou menos como um espírito livre, inacabado e aberto que,<br />
ainda na proposição de Adorno, “diz o que a respeito lhe ocorre e<br />
termina onde sente ter chegado ao fim, não onde nada mais resta a<br />
dizer” (ADORNO, 2003, p. 17). Dessa forma, ele ocuparia um lugar entre<br />
os despropósitos, entre desatino e disparate, um excesso de desejo<br />
e atenção sobre algo, um pensamento fragmentado e relativizado que<br />
na maior parte das vezes é um pensamento sobre algo absolutamente<br />
efêmero e mutável, que recua diante de dogmas e de interpretações<br />
rígidas e universais. Gonçalo M. Tavares, por sua vez, procura transitar<br />
nessa “experiência intelectual” livre, o “ensaio”, articulado como um<br />
pensamento descontínuo, sempre um conflito em suspenso. Nas palavras<br />
de Adorno: “A descontinuidade é essencial ao ensaio; seu assunto<br />
é sempre um conflito em suspenso” (ADORNO, 2003, p. 35); assim, o<br />
Livro da dança de Gonçalo M. Tavares toma o exercício do ensaio como<br />
um pensamento para todos os lados, sem sentido único, ou seja, toma<br />
o próprio corpo [corpo orgânico e corpo do texto: “De qualquer modo<br />
a dança” e “De qualquer modo o corpo contém o dia” (TAVARES, 2001,<br />
p. 22)] como “palco da experiência intelectual”. Adorno propõe que<br />
o ensaio exige, ainda mais que o procedimento definidor, a interação<br />
recíproca de seus conceitos no processo da experiência intelectual.<br />
Nessa experiência, os conceitos não formam um continuum de operações,<br />
o pensamento não avança em um sentido único; em vez disso,<br />
os vários momentos se entrelaçam como em um tapete. Da densidade<br />
dessa tessitura depende a fecundidade dos pensamentos. O pensador,<br />
na verdade, nem sequer pensa, mas sim faz de si mesmo o palco da ex-<br />
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periência intelectual, sem desemaranhá-la. Embora o pensamento tradicional<br />
também se alimente dos impulsos dessa experiência, ele acaba<br />
eliminando, em virtude de sua forma, a memória desse processo. O<br />
ensaio, contudo, elege essa experiência como modelo, sem entretanto,<br />
como forma refletida, simplesmente imitá-la; ele a submete à mediação<br />
através de sua própria organização conceitual; o ensaio procede, por<br />
assim dizer, metodicamente sem método (ADORNO, 2003, p. 29-30).<br />
O livro-ensaio aberto, que Gonçalo M. Tavares apresenta em seu<br />
projeto desde o Livro da dança, também elege essa “experiência<br />
intelectual” como modelo, como laboratório de sensações, 2 uma situa -<br />
ção sempre experimental, como processo, em um trabalho que resulta<br />
“metodicamente sem método” em liberdade de espírito, em um<br />
procedimento anacrônico, livre e descontínuo, aberto e fechado ao<br />
mesmo tempo. E nenhum outro procedimento estaria tão próximo de<br />
um estado de dança como o ensaio, na “liberdade que dá ao objeto<br />
a chance de ser mais ele mesmo do que se fosse inserido impiedosamente<br />
na ordem das ideias” (ADORNO, 2003, p. 41).<br />
A segunda maneira de ler o ensaio no trabalho de Gonçalo M. Tavares<br />
é, principalmente, perceber o ensaio como ato em si, como ação,<br />
movimento de algo que se repete inúmeras vezes, como uma coreografia,<br />
uma dança – o texto inteiro como um corpo que dança, que<br />
2 Essa expressão é um desdobramento do estudo de José Gil sobre Fernando<br />
Pessoa, o primeiro capítulo do livro intitulado Fernando Pessoa ou a metafísica<br />
das sensações, que se chama “Laboratório Poético”. José Gil (1987, p. 13)<br />
comenta que Bernardo Soares tem por característica essencial “o facto de não<br />
viver nem escrever senão em situação experimental. O laboratório poético<br />
de Pessoa está em plena actividade no Livro do Desassossego”. Não à toa<br />
José Gil assinala que Bernardo Soares escreve apontando para um movimento<br />
neutro e para um estado larvar de consciência, uma consciência vazada em<br />
uma prosa nítida e com penetração; diz ele: “Não há nada para lá ou para cá<br />
dos fragmentos, do que estes narram: estados larvares de consciência, e uma<br />
consciência dessa consciência vazada nos moldes de uma prosa extremamente<br />
nítida, impressionante de penetração e rigor” (1987, p. 15). Pode-se dizer, de<br />
alguma maneira, que esse procedimento é um estado de dança, mesmo que<br />
ainda embrionário, mas sempre tocado pela repetição do gesto: eis o ensaio<br />
do qual Gonçalo M. Tavares parece tomar posse como despossessão.<br />
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treina, que ensaia. O ensaio seria aquilo que tenta “Treinar a nudez”<br />
e “Experimentar a roupa nua” (TAVARES, 2001, p. 40), diz ele. Ou<br />
seja, uma série de movimentos e de suspensão de movimentos que<br />
devem ser incorporados ao corpo do bailarino por meio de um hábito<br />
nu, de uma rotina nua de trabalho, de treino (exercitar, acostumar, ensaiar<br />
etc.), até que se saiba apenas o próprio corpo-movimento de cor,<br />
incorporado, ou seja, com o coração; e até que o corpo seja pensamento<br />
e resistência, corpo-pensamento-resistência, uma intensidade.<br />
Como sugere Alain Badiou, a partir de Nietzsche, quando fundamenta<br />
a dança como uma metáfora do pensamento, um corpo-pensamento.<br />
Segundo Badiou, ela é exatamente uma intensificação, um pensamento<br />
efetivo no lugar, e não exterior a ele, que se intensifica sobre si<br />
mesmo ou que representa o movimento de sua própria intensidade<br />
(BADIOU, 2002, p. 81). Porque a primeira maneira de ler-escrever<br />
o ensaio e a segunda maneira de ler-escrever o ensaio, ambas, têm a<br />
ver com corpo livre, desejo, estrato, afecção, modos de ser da escrita.<br />
Gonçalo M. Tavares indica em um poema intitulado “O mapa”– citado<br />
a seguir, que pertence ao “livro sete (Autobiografia)”, do livro de<br />
poemas 1, 3 publicado em 2004 –, a sua perspectiva de erro e impossibilidade<br />
de resposta à pergunta “Por que optei por escrever?” como<br />
um motor para seu modo de escrita. A resposta convulsa e imediata à<br />
pergunta é: “Não sei.” Com isso, no poema, ao advertir que a matemática<br />
é uma presença física de método, ele invade a interrogação de<br />
3 O livro de poemas 1 configura quase uma antologia de oito pequenos livros,<br />
de oito projetos aparentemente distintos. Foi publicado em Portugal em 2004<br />
(Relógio D’Água) e no Brasil, em 2005 (Bertrand Brasil). Os livros que compõem<br />
o projeto 1 estão divididos e nomeados como livro um, livro dois, livro<br />
três e assim sucessivamente até o livro oito. Os títulos dos livros, pistas de sua<br />
aparente distinção são, respectivamente, Observações, Livro dos ossos, Atenas<br />
e a metafísica, Frio no Alaska, Homenagem, Explicações científicas e outros<br />
poemas, Autobiografia e Livro das investigações claras. É de se notar que estes<br />
títulos de livros, de alguma maneira, acompanham os títulos que Gonçalo M.<br />
Tavares atribuiu a alguns poemas do Livro da dança na edição brasileira, porque<br />
perseguem a sua ideia de uma poética do movimento que é, ao mesmo tempo,<br />
uma poética de releitura da metafísica e uma tentativa de interferir nela: “Exibição”,<br />
“Sobre o osso”, “A técnica”, “Definição de função”, “Aprendizagem”,<br />
“Indicações quase gerais”, “Biografia e prestígio”, “Coração e cicatriz” etc.<br />
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Bernardo Soares, comezinha e lançada ao chão do moderno, como<br />
um “desassossego”, e procura incessantemente constituir uma correspondência<br />
entre algumas imagens (pelas quais pede desculpas) e essa<br />
pergunta de resposta taxativa e instantânea, mas que não diz nada:<br />
Sempre senti a matemática como uma presença<br />
Física; em relação a ela vejo-me<br />
Como alguém que não consegue<br />
Esquecer o pulso porque vestiu uma camisa demasiado Apertada<br />
nas mangas.<br />
Perdoem-me a imagem: como<br />
Num bar de putas onde se vai beber uma cerveja<br />
E provocar com a nossa indiferença o desejo<br />
Interesseiro das mulheres, a matemática é isto: um<br />
Mundo onde entro para me sentir excluído;<br />
Para perceber, no fundo, que a linguagem, em relação<br />
Aos números e aos seus cálculos, é um sistema,<br />
Ao mesmo tempo, milionário e pedinte. Escrever<br />
Não é mais inteligente que resolver uma equação;<br />
Por que optei por escrever? Não sei. Ou talvez saiba:<br />
Entre a possibilidade de acertar muito, existente<br />
Na matemática, e a possibilidade de errar muito,<br />
Que existe na escrita (errar de errância, de caminhar<br />
Mais ou menos sem meta) optei instintivamente<br />
Pela segunda. Escrevo porque perdi o mapa<br />
(TAVARES, 2005, p. 161, grifo do autor).<br />
O poema é uma proliferação deliberada de palavras e faz uso de<br />
uma circunstância da matemática como ponto de partida, porque a<br />
matemática é uma ciência que estuda objetos abstratos (entre eles os<br />
números, as figuras, as funções, as noções de ordem e tantos outros,<br />
daí uma ideia em torno das fabulações da astrologia, dos destinos,<br />
da imaginação de mundos e de universos, da constituição dos mapas<br />
etc.) e as tantas relações existentes entre esses objetos, com um<br />
procedimento sempre suspeito, o do método dedutivo. E um método<br />
que utiliza a dedução não pode ser senão um método que provoca<br />
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desejo no outro: um mundo onde se entra para a sensação do fora,<br />
de exclusão, por isso pode tratar o “infinito”, por exemplo, como um<br />
“objecto exacto”. No fragmento 67 do Livro da dança, intitulado na<br />
edição brasileira como “Um objecto exacto”, ele inscreve:<br />
Entreter o infinito.<br />
Tratar o infinito como objecto, atirá-lo ao chão, partir-lhe a FACE,<br />
curar-lhe as feridas, chamar pelo pai e pela mãe; dar-lhe pão à boca<br />
no dia das doenças, contar-lhe os ossos e, por fim, desprezá-lo.<br />
Entreter o infinito.<br />
Tratar o infinito como objecto.<br />
(TAVARES, 2001, p. 81).<br />
Neste “Um objecto exacto”, note-se, há um convite para deslocar o<br />
infinito de sua abstração numérica e jogá-lo ao chão para quebrá-lo ao<br />
meio, partir a sua face e, principalmente, dar a ele fome, contar seus ossos<br />
e desprezá-lo. Ou seja, dar a ele um corpo, a doença, uma possibilidade<br />
de morte, medo e, como paradoxo, alguma exatidão. O poema<br />
“O mapa”, então, nos apresenta sensações que tocam, principalmente,<br />
algo muito próximo de uma exterioridade, um não sentido da escrita.<br />
Assim, a sua tentativa de resposta pelas possibilidades de acertar muito,<br />
que vêm da matemática, e das de errar muito, que vêm da literatura.<br />
Daí o gesto mais ou menos sem meta nos modos de sua escrita que o<br />
poema já sugere: nada para lá, nada para cá do poema. A conclusão,<br />
na última linha, é categórica, “Escrevo porque perdi o mapa”, mas também<br />
não diz muita coisa, porque um mapa é sempre uma composição<br />
ficcional de um lugar imaginário ou imaginado, construído a partir do<br />
método dedutivo, como um ensaio, movido por uma errância sem método<br />
para atingir uma suposta meta 4 . E, assim, se meta tem a ver com<br />
4 Não por acaso, Gonçalo M. Tavares desenvolve um projeto intitulado “O<br />
Bairro”, que parte de um mapa. Esse mapa é a ficção de um lugar imaginário<br />
ou imaginado, também construída a partir do método dedutivo, sempre como<br />
um ensaio e movida pela errância sem método. Nesse bairro moram escritores,<br />
críticos, filósofos, uma bailarina e coreógrafa (Pina Bausch), que ele chama<br />
de “Senhores”. Esse “O Bairro” é também uma recuperação de sua afirmação:<br />
“Escrevo porque perdi o mapa.”<br />
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limite, fim, termo, remate ou, quiçá, equação resolvida, o que se pode<br />
espaçar depois disso – e a partir do movimento da escrita e seus modos<br />
de operação crítica – é uma errância. E toda errância tem vínculo com<br />
liberdade, com espírito livre e, principalmente, com erro.<br />
Há dois fragmentos do Livro da dança que vêm da anotação do erro,<br />
como título e sugestão, e demarcam a interdição de um pressuposto de<br />
escrita. Na edição portuguesa são os fragmentos 42 e 43, na edição<br />
brasileira se chamam, respectiva e propriamente, “Erro” e “Conselho<br />
consequência da definição de erro”, mas não há alterações dentro dos<br />
textos entre uma edição e outra. É interessante observar que o procedimento<br />
desses fragmentos exemplifica, de algum modo, o princípio<br />
de um plano para a escrita que é constituir um gesto circular e repetitivo<br />
para movê-la, para fazê-la se mover inteiramente. A repetição está<br />
como uma insistência de método e, no primeiro deles, é possível notar<br />
o passeio iniciado entre o erro e o método através dela. No segundo,<br />
um conselho a modo de Zenão de Cício, o estoico (334-262 a. C., que<br />
pregava a remoção das paixões e uma aceitação resignada do destino),<br />
ou como Sêneca em suas “Cartas” 5 , em um movimento circular entre<br />
razão e paixão, mas ao mesmo tempo negando certa condição estoica<br />
ao colocar um corpo como um perseguidor de outros corpos, um<br />
corpo perseguidor de outros sentidos, o que talvez não seja possível;<br />
5 Gonçalo M. Tavares diz em uma entrevista (Entrelivros, n. 29, set. 2007) que<br />
se considera “um filho de Sêneca”, que tem “uma parte estoica”, pois “guarda<br />
alguma distância em relação ao que vai acontecendo”. Diz também que o livro<br />
que mais marcou a sua vida é o das cartas de Sêneca a Lucílio, Cartas a Lucílio,<br />
livro em que Sêneca avisa que só tem domínio de si aquele que não faz de seu<br />
corpo um peregrinador por outros corpos. Ora, o estoicismo está ligado a uma<br />
colocação do ser na razão para sobrepor-se às paixões, mesmo que, depois, se<br />
ligue também a uma clivagem entre corpo e alma em uma tentativa de fazer<br />
com que o homem suplante a dor e, principalmente, a dor da perda provocada<br />
pela morte; dor que é uma inimiga da razão. Sabe-se que Sêneca (Corduba, 4<br />
a.C. — Roma, 65 d.C.), diz Joaquim Brasil Fontes (1992, p. 15) na apresentação<br />
a uma pequena edição brasileira de Consolationes (Cartas consolatórias), falava<br />
para e contra uma sociedade aristocrática, culta e em perpétuo sobressalto,<br />
em que Nero era o imperador e se autointitulava senhor da vida e da morte.<br />
Joaquim Fontes chama atenção para o quanto Sêneca tensiona a língua latina e<br />
a filosofia estoica, em uma dupla racionalidade, a da ordem das palavras e a da<br />
ordem do mundo, com um discurso entre razão e paixão.<br />
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sempre para tentar entender esta lacuna entre o erro e a correção do<br />
erro, entre voltar atrás e seguir em frente e, ainda, voltar atrás se atrás<br />
for seguir em frente:<br />
e<br />
Claro que podemos errar e não voltar atrás para corrigir o erro porque<br />
o erro não é o ERRO o erro só começa no corrigir, errar e avançar não<br />
é errar: é avançar; errar e corrigir não é corrigir: é errar (TAVARES,<br />
2001, p. 53).<br />
Só voltar atrás se atrás for à Frente.<br />
(TAVARES, 2001, p. 54).<br />
Ensaiar, no exemplo desses fragmentos, está no sentido daquilo que<br />
a dança se distingue e, ao mesmo tempo, também se assemelha: erro<br />
e correção e voltar atrás como se fosse voltar à frente. Esse movimento<br />
que se dá entre uma coisa ou outra é estabelecido por uma espécie<br />
de “primeira matemática” (expressão que Gonçalo M. Tavares indica<br />
e usa no fragmento citado a seguir, intitulado “A 2ª Matemática”), porque<br />
ainda é feita e pensada a partir de ordem e regras, quando toda<br />
oposição estabelece uma escolha entre uma coisa OU outra, como<br />
a paixão ou a razão no plano estoico ou o erro e sua correção,<br />
como está no trecho citado anteriormente. Desfazer isso é armar o<br />
paradoxo, arma-se o paradoxo quando propõe-se que o começo de<br />
algo, como o erro, está em sua correção, o que normalmente seria<br />
o contrário: a correção seria o fim do erro, e não o seu começo. O<br />
paradoxo, para Gonçalo Tavares, é o que abre o belo para sobreviver 6<br />
– “O paradoxo abre o belo. / A sobrevivência do belo: é urgente tornar<br />
PARADOXO o belo: / A sobrevivência do belo” (TAVARES, 2001,<br />
p. 46) –, seria, segundo ele, “mudar o corpo para melhor” (TAVARES,<br />
2001, p. 46), ou seja, “Evitar Pitágoras. Evitar Pitágoras dos números.<br />
/ Evitar Pitágoras dos números no centro do corpo” (TAVARES, 2001,<br />
p. 45). Para depois, seguindo o gesto circular e de repetição, refazer<br />
6 Na edição brasileira do Livro da dança esse fragmento, que é o de número<br />
35 na edição portuguesa, aparece intitulado como “Sobreviver” (p. 49). Na sequência,<br />
o fragmento que se inicia com “Evitar Pitágoras” (p. 48) é o de número<br />
34 na edição portuguesa e se intitula, na edição brasileira, como “Evitar”.<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 114-147 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
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o trecho ao dizer: “Entender Pitágoras / Entender Pitágoras para além<br />
dos números / Entender Pitágoras para além dos números no centro<br />
do coração no coração do corpo. / (...) / Evitar amar entender<br />
Pitágoras. / O corpo deve ao mesmo tempo, no mesmo momento,<br />
evitar amar e entender” (TAVARES, 2001, p. 45). Sobreviver e evitar<br />
passam a ser as ações do ensaio, e se lido aqui também como ato e<br />
ação, não teria a ver com método? Assim, é possível pensar que Gonçalo<br />
M. Tavares, ao passear entre o erro e o método, e ao tomar o erro<br />
como método, dá origem a um modo de uso da escrita “metodicamente<br />
sem método”, ou seja, a presença de um e de outro em uma<br />
mesma equação onde um não anula o outro porque é importante ter<br />
várias hipóteses. Isto, do “é importante ter várias hipóteses” e do “importante<br />
é o método”, está na peça de teatro intitulada “A colher de<br />
Samuel Beckett”, publicada em Portugal em 2002, no livro A colher<br />
de Samuel Beckett e outros textos:<br />
Quatro acções. (conta pelos dedos) Beber, olhar, deitar, organizar. Quatro<br />
acções possíveis. Podia ser pior. Há quem não tenha quatro acções.<br />
Há quem tenha menos. 4. Quatro. Não é mau. (pausa) Aborrecido deve<br />
ser quando se tem uma única acção. (pausa) É preciso organizarmo-nos<br />
para ter sempre várias acções a fazer. Nunca deixar que fique só uma.<br />
Nunca. (pausa) Sempre várias. Hipóteses, é a palavra. É importante ter<br />
várias hipóteses. Uma, duas, 3, 4. Uma ou outra ou outra ou outra [...]<br />
O importante é o método. Como utilizar o quê. (pausa, sorriso) [...] Não<br />
interessam as acções, mas sim como. (pausa)<br />
(TAVARES, 2002, p. 22-23).<br />
Não custa, depois desse exemplo, lembrar que proponho pensar, primeiro,<br />
o ensaio como ato, e que ele quando é ação e repetição para<br />
uma apreensão ou aprendizado é método. Depois, segundo, proponho<br />
pensar o ensaio como modo de uso da escrita, e que para a constituição<br />
de uma “cultura filosófica” ele é “metodicamente sem método”.<br />
Já no livro Breves notas sobre ciência, publicado em Portugal em<br />
2006, o primeiro dos volumes da sua “Enciclopédia”, Gonçalo M.<br />
Tavares escreve uma anotação intitulada “A 2ª matemática”, a partir<br />
de Wittgenstein, para insistir dessa vez na ideia de uma equação não<br />
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esolvida, quando a meta e o limite são feitos do erro da primeira<br />
matemática, que se constitui, também, por sua vez, de proposições<br />
incontestáveis da segunda matemática. Este ir e vir da equação, agora,<br />
leva a um pensamento constituído de opostos, a uma arquitetura<br />
sinuosa de um pensamento construído para o paradoxo: mal e bem,<br />
exatidão e falha, alto e baixo etc. Porque há também, aí, uma questão<br />
de crença – “Se todos os homens acreditarem” – e não apenas de resultado,<br />
há algo aí para além do mundo e completamente tocado pela<br />
imaginação, pela fantasia:<br />
A 2ª matemática<br />
Questão de Wittgenstein:<br />
“Se todos os homens acreditarem que 2 x 2 = 5,<br />
2 x 2 será ainda igual a 4?”<br />
Existe uma 2ª matemática atrás da primeira.<br />
É feita daquilo que é Erro na primeira, e é ainda —<br />
como a primeira matemática — feita de ordem e regras.<br />
Os erros da 2ª Matemática são também proposições<br />
incontestáveis na 1ª Matemática.<br />
[Pensar nos opostos. No mal e no bem. Na<br />
exactidão e na falha. No alto e no baixo].<br />
(TAVARES, 2006, p. 65).<br />
Assim, a escrita de Gonçalo M. Tavares não vai apenas de uma forma<br />
a outra, como transformação, mas sim como metamorfose, como<br />
aquilo que se move por dentro da forma ensaio, entre ato em si (treino,<br />
repetição, método) e o seu como fazer, modo de operar livremente<br />
a escrita para a construção de uma “cultura filosófica”, a construção<br />
de um pensamento. Pois são os próprios livros de Gonçalo M. Tavares<br />
que sugerem, ao mesmo tempo, tanto uma necessidade de deslocamento<br />
da perspectiva meramente literária, quanto uma tentativa de<br />
contato mais direto e mais aberto com algumas outras questões que os<br />
atravessam de uma maneira sistematicamente circular, coisas que vêm<br />
da filosofia e da dança, por exemplo. E isso se faz necessário porque<br />
é o próprio Gonçalo quem defende a ideia de que toda arte deve<br />
ser feita a partir de uma resistência, e que a grande resistência do ser<br />
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125
humano no mundo agora ainda é pensar, ainda é o pensamento 7 ; e<br />
que unir literatura e pensamento não é um ato de vanguarda, mas, ao<br />
contrário, é apenas uma interessante volta às raízes. Ele lembra que na<br />
antiguidade clássica, por exemplo, poesia e filosofia andavam juntas,<br />
elas eram uma mesma coisa, depois é que se separaram, e uni-las em<br />
uma só outra vez é voltar às raízes. Já aqui, de algum modo, estabelece<br />
que lhe interessa uma concepção circular da história, anacrônica,<br />
como modo de uso, leitura e escrita do ensaio.<br />
2 A DANÇA, o ESPÍRito LivRE<br />
Segundo Nietzsche, o que o falso “espírito livre” gostaria de perseguir<br />
com todas as forças é a “universal felicidade do rebanho em pasto<br />
verde, com segurança, ausência de perigo, bem-estar e facilidade para<br />
todos” (NIETZSCHE, 1992, p. 48), bem como todo o seu desejo e projeto<br />
para a arte e para a filosofia seria apenas o silêncio, a quietude, o<br />
“mar liso” ou ainda o entorpecimento, a embriaguez como vingança<br />
sobre a vida, como ausência de resistência, embotamento dos sentidos,<br />
em oposição àqueles que “sofrem de superabundância de vida” 8 , de<br />
7 Em entrevista para o jornal Rascunho (Curitiba, 5 de janeiro de 2010), perguntado<br />
acerca do uso notório de um pensamento mais reflexivo em sua literatura,<br />
algo muito próximo da filosofia, como uma armadilha contra o senso comum,<br />
Gonçalo M. Tavares responde que: “Pensar é ainda um dos atos de resistência<br />
do ser humano. Não concebo qualquer ato humano sem o pensamento, mas<br />
é evidente que este pode se expressar de muitas formas. Na antiguidade clássica,<br />
a filosofia e a poesia estiveram juntas, eram a mesma coisa, mais tarde se<br />
separaram. Juntar as duas de novo é voltar às raízes, não é ser vanguardista.”<br />
8 Em Nietzsche contra Wagner, Nietzsche faz uma distinção entre dois tipos de<br />
“sofredores”, que resultam do movimento da arte e da filosofia como socorro e<br />
remédio da vida em crescimento ou da vida em declínio. Ele diz que existem<br />
dois tipos de sofredores, os que sofrem de superabundância de vida, que buscam<br />
uma compreensão e perspectiva trágica da vida, tendo no conhecimento<br />
trágico e na arte dionisíaca o mais belo luxo da cultura; e os que sofrem de<br />
empobrecimento de vida, que necessitariam ao máximo de brandura e paz,<br />
que se encerrariam em horizontes otimistas e seguros, pouco instáveis – são<br />
os décadents (1999, p. 59-60). Ou ainda, pode-se intuir, este pode ser o falso<br />
espírito livre, o corpo cativo, obediente e sem dança, “rapazes bonzinhos e<br />
desajeitados, a quem não se pode negar coragem nem costumes respeitáveis,<br />
mas que são cativos e ridiculamente superficiais” (NIETZSCHE, 1992, p. 48).<br />
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profundidade no corpo e no pensamento; que sofrem de vontade livre,<br />
desejam uma arte dionisíaca, uma compreensão trágica do corpo, um<br />
corpo profundo, e uma compreensão trágica da vida. Não por acaso, o<br />
ensaio (aqui compreendido sempre nos dois movimentos já indicados)<br />
deseja certa “liberdade de espírito”, como sugeriu Adorno, o que se<br />
assemelha muito ao espírito livre do qual também nos fala Nietzsche.<br />
Em Ecce Homo, publicado em 1908, que por si só já é um livro-reação,<br />
Nietzsche comenta acerca de Humano, demasiado humano (1878):<br />
Humano, demasiado humano é o monumento de uma crise. Ele se<br />
proclama um livro para espíritos livres: quase cada frase, ali, expressa<br />
uma vitória – com ele me libertei do que não pertencia à minha<br />
natureza. A ela não pertence o idealismo: o título diz “onde vocês<br />
veem coisas ideais, eu vejo – coisas humanas, ah, somente coisas demasiado<br />
humanas!”... Eu conheço mais o homem... Em nenhum outro<br />
sentido a expressão “espírito livre” quer ser entendida: um espírito<br />
tornado livre, que de si mesmo de novo tomou posse (NIETZSCHE,<br />
2008, p. 69, grifos do autor).<br />
De alguma forma, esse “espírito tornado livre, que de si mesmo de<br />
novo tomou posse”, agora também com a posse da sua vontade plena<br />
e contra qualquer idealismo ou saída através de uma verdade espiritual,<br />
seja ela qual for, pode ser pensado junto à ideia de um “corpo<br />
soberano”, na acepção de Georges Bataille, leitor atento de Nietzsche.<br />
Bataille afirma que nada pode ser mais necessário e mais forte em nós<br />
do que a revolta, a desobediência do corpo, a suspensão da lei; que<br />
sem esse sentimento não podemos amar e nem estimar nada, pois<br />
tudo leva a marca da submissão. Dessa forma, Bataille propõe, com<br />
Nietzsche, um princípio de rebeldia, um “riso insidioso” no lugar do<br />
temor, da submissão, pois é próprio da revolta não se deixar submeter<br />
facilmente (BATAILLE, 2008, p. 227-228).<br />
Nietzsche define ainda o “espírito livre” – corpo desobediente e<br />
soberano que procuro demonstrar também nos textos de Gonçalo M.<br />
Tavares, bem como o texto inteiro como um corpo furioso e desobediente,<br />
corpo de intensidades –, como um desvencilhar-se de toda<br />
crença, de toda convicção profunda ou desejo de certeza, que pode<br />
ser representado por uma escolha, pela arrogância do paradigma, pela<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 114-147 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
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entrada no conflito, ou seja, escolher um e rejeitar outro, fazer a escolha<br />
certa e o erro etc. E crença entendida “quando uma pessoa chega à<br />
convicção fundamental de que tem de ser comandada” (NIETZSCHE,<br />
2001, p. 241), que é um estado de permanente obediência, de corpo<br />
dócil e servil. Nietzsche vê no “espírito livre” a liberdade de vontade<br />
por excelência e um corpo leve capaz de equilibrar-se sobre delicadas<br />
cordas ou de dançar até mesmo à beira de abismos, mesmo que esse<br />
“espírito livre” – como declara no prólogo para o volume I de Humano,<br />
demasiado humano – Um livro para espíritos livres –, seja uma espécie<br />
de invenção, de ficção sua, uma forma de “manter a alma alegre<br />
em meio a muitos males” (NIETZSCHE, 2005, p. 8). Esses espíritos seriam<br />
como “valentes confrades fantasmas, com os quais proseamos e<br />
rimos, quando disso temos vontade, e que mandamos para o inferno,<br />
quando se tornam entediantes – uma compensação para os amigos<br />
que faltam” (NIETZSCHE, 2005, p. 8). Porém Nietzsche define, em A<br />
gaia ciência, o “espírito livre por excelência”:<br />
Quando uma pessoa chega à convicção fundamental de que tem de<br />
ser comandada, torna-se “crente”; inversamente, pode-se imaginar<br />
um prazer e força na autodeterminação, uma liberdade da vontade,<br />
em que um espírito se despede de toda crença, todo desejo de certeza,<br />
treinado que é em se equilibrar sobre tênues cordas e possibilidades<br />
e em dançar até mesmo à beira de abismos. Um tal espírito<br />
seria o espírito livre por excelência (NIETZSCHE, 2001, p. 241, grifos<br />
do autor).<br />
Da mesma forma, para Barthes, uma reflexão sobre o Neutro é um<br />
modo de procurar livremente, de buscar (sempre de modo livre) o<br />
próprio estilo de atuação ou de presença nas lutas do nosso tempo<br />
(BARTHES, 2003, p. 20) – e nessa tarefa estão comprometidos todos<br />
aqueles que se despedem de toda crença, porque toda crença pressupõe<br />
escolher um e rejeitar outro, pressupõe escolher uma intensidade<br />
ou uma “atividade ardente” como um “prazer e força na autodeterminação,<br />
uma liberdade de vontade”, como nas palavras de Nietzsche já<br />
citadas. Por isso mesmo é que, de certa forma, o Neutro se aproximaria<br />
do sentido da dança, um estado quase permanente de dança para<br />
tocar o escuro do contemporâneo; de dança como desvio, embaço,<br />
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como um terceiro termo posto em movimento – um acontecimento,<br />
uma intensidade. Desta forma, outro fragmento de Gonçalo M. Tavares,<br />
extraído do Livro da dança, que parece exemplar para pensar essa<br />
questão é o fragmento 59:<br />
O Zen. SIM.<br />
dançar à beira dos abismos. SIM.<br />
A absoluta Qualidade do que não tem qualidades. SIM.<br />
Da cabeça utilizar a guilhotina para só arrancar o cérebro.<br />
[SIM.<br />
a lua? SIM.<br />
anda lua andas? SIM.<br />
Subir por 1 lado ao cavalo para descer logo a seguir do outro<br />
[lado?<br />
SIM.<br />
INÚTIL. SIM. Muito inútil!<br />
Quanto de inútil?<br />
Muita quantidade de inútil.<br />
Outros FILÓSOFOS?<br />
Por exemplo o Zen que conta histórias:<br />
uma: ele levantava o braço sempre, para tudo.<br />
o que significa isso?<br />
O OUTRO, o aprendiz, põe na explicação palavras. Muitas.<br />
ele, o mestre, por fim, depois de ouvir, levanta o braço.<br />
o outro: mas que significa isso?<br />
e o mestre levanta o braço, o mesmo braço, o braço.<br />
Como é a tua dança, a tua estética, a tua poética?<br />
O braço. É o Braço.<br />
Mas como, o quê?<br />
O braço, levantar o braço!<br />
(TAVARES, 2001, p. 71).<br />
Gonçalo M. Tavares, nesse fragmento, recupera a mesma imagem<br />
de Nietzsche com relação à dança e ao espírito livre, ou seja, “dançar<br />
à beira dos abismos” seria o ato livre por excelência, mas que também<br />
apresenta o desafio, o lance de dados entre a queda, a gravidade<br />
e a leveza irrestrita, o corpo micro, ínfimo, corpo treinado a se equi-<br />
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librar sobre tênues cordas e possibilidades, como uma espécie de funâmbulo.<br />
Note-se que Nietzsche faz uso do verbo treinar (üben) para<br />
descrever essa habilidade do corpo em equilibrar-se sobre o próprio desequilíbrio,<br />
corpo treinado, corpo ensaiado para dançar até mesmo<br />
sobre abismos, um ato que pode ser simplesmente para nada, com<br />
“muita quantidade de inútil” (TAVARES, 2001, p. 71), assim como<br />
também pode ser inútil o ato de levantar o braço. Mas esse mesmo ato<br />
de levantar o braço, no fragmento 59, também pode ser lido como<br />
uma existência, o aceno que diz ‘aqui estou’ e isso é também uma<br />
dança, uma estética, uma poética, sem mesmo precisar pôr na explicação<br />
palavras, como faz o aprendiz na pequena história narrada<br />
por Gonçalo M. Tavares. E que ao mesmo tempo é um gesto para<br />
tudo, como aparece no fragmento: “Ele levantava o braço sempre,<br />
para tudo” (TAVARES, 2001, p. 71), ou seja, levantava o braço para<br />
qualquer coisa, sempre, e levantava o braço como afirmação da vida,<br />
da existência – para tudo. Mas esse mesmo gesto repetido e para tudo<br />
também comparece como interrupção, confronto, ou seja, novamente<br />
o ato de hesitar, nem um nem outro, um e outro ao mesmo tempo, que<br />
é muito próximo da proposição ZEN asseverada com um imenso “SIM”<br />
que parece sair como exclamação para todos os lados logo no começo<br />
do fragmento, como se indicasse qual é o seu projeto estético e<br />
político, como resistência, como Neutro.<br />
Não se pode perder de vista que o “silêncio” é uma das 30 figuras<br />
do Neutro que Barthes analisa e que comparecem em alguns fragmentos<br />
de texto ou “no qual, mais vagamente, há Neutro” (BARTHES,<br />
2003, p. 24), sob a forma de pequenas cintilações, para criar um espaço<br />
projetivo de leitura. O fragmento de Gonçalo M. Tavares também<br />
faz uso dessa mesma figura quando o mestre, apenas depois de<br />
ouvir com atenção “O OUTRO”, o aprendiz, levanta o braço. E é bom<br />
lembrar que o Neutro, para Barthes, não corresponde a um silêncio<br />
permanente (vê-se que o mestre fala), mas por um gasto mínimo<br />
de uma operação de fala, nesse caso apenas seguido pelo ato repetido de<br />
levantar o braço. Assim, o “silêncio” corresponde a uma postulação<br />
do direito de calar-se, sem que com isto se tenha perdido o poder,<br />
o ato livre e soberano de não dizer nada. Assim, o ato de levantar o<br />
braço como uma dança ou logro, um silêncio que burla, um desvio,<br />
um gesto para tudo e para nada ao mesmo tempo, que marca uma<br />
130 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 114-147 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
liberdade da vontade, um despedir-se de toda crença para afirmar<br />
uma condição livre, uma espécie de “absoluta Qualidade do que não<br />
tem qualidades” (TAVARES, 2001, p. 71).<br />
Alain Badiou, por sua vez, no texto “A dança como metáfora do<br />
pensamento”, publicado no Pequeno manual de inestética, recupera,<br />
a partir de Nietzsche, esta mesma proposição – entre peso, o falso “espírito<br />
livre” como negação da vida, e corpo livre, desobediente, como<br />
desejo e afirmação da vida –, para pensar a dança como metáfora do<br />
pensamento subtraído de qualquer ideia de gravidade. Ele se pergunta:<br />
“Por que a dança ocorre a Nietzsche como metáfora obrigatória do<br />
pensamento?” E logo em seguida afirma que “a dança é o que se opõe<br />
ao grande inimigo de Zaratustra-Nietzsche, inimigo que ele designa<br />
como ‘o espírito de peso’. A dança é, antes de tudo, a imagem de<br />
um pensamento subtraído de qualquer espírito de peso” (BADIOU,<br />
2002, p. 79). O crítico português José Gil também diz que a finalidade<br />
de qualquer bailarino é vencer o peso do corpo, e que a ausência<br />
do peso, a facilidade são de tal forma vividos pelo bailarino que ao<br />
mesmo tempo em que ele parece ter a propriedade de “um móbil<br />
no espaço”, parece também experimentar essa ausência de peso no<br />
interior do próprio corpo, “como se a sua textura se tivesse tornado<br />
espaço” (GIL, 2004, p. 18). Assim, José Gil faz referência a uma leveza<br />
que é própria do movimento dançado e que o bailarino, espécie<br />
de móbil, na sua sequência de movimentos, abre no espaço infinitas<br />
possibilidades de ausência de peso ou de gravidade, infinitas nuances<br />
de leveza. O fato é que o bailarino nunca vive o peso objetivo do seu<br />
corpo, do corpo inerte e vulgar, o peso do seu “cadáver”, mas a modulação<br />
de intensidades diferentes de leveza, energias de fluxo que<br />
deixam o corpo mais ou menos leve e que são vividas pelo bailarino<br />
como virtualidades. Desse modo, “vencer o peso, tal é o fim primeiro<br />
do bailarino” (GIL, 2004, p. 19). José Gil diz que<br />
Há uma leveza própria do movimento dançado; [...] O bailarino não<br />
vive nunca o seu peso objetivo, científico, o peso do seu corpo-objeto,<br />
o seu cadáver. Avalia a sua leveza atual por comparação com outras<br />
levezas que acaba de atravessar no quadro específico de certa sequência<br />
de movimentos: cada sequência abre múltiplas possibilidades de<br />
ausência de peso, diferentes das oferecidas por outras sequências. São<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 114-147 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
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a modulação, as transformações da energia de fluxo que tornam o<br />
corpo mais ou menos leve no interior de uma leveza adquirida (a da<br />
posição de pé e a do movimento dançado).<br />
As duas barreiras que limitam de fora a esfera do movimento – o peso<br />
real do corpo inerte; a leveza máxima nunca atingida – nunca são<br />
vividas pelo bailarino como dados atuais; mas apenas como virtualidades<br />
que, se se atualizassem, destruiriam o seu movimento dançado.<br />
O peso específico virtual é a resultante da soma destes dois vetores<br />
contrários (GIL, 2004, p. 21).<br />
Esse esforço do bailarino para vencer o peso do seu corpo objetivo,<br />
corpo-objeto, demonstra ainda uma espécie de saída, um deslocamento<br />
da posição comum do corpo, de uma atitude comum, para<br />
um desequilíbrio do corpo, a dança como um Neutro, um desvio,<br />
uma abertura de sentido (levantar o braço, ato em si, ato incorporado,<br />
quando o braço é o próprio inteiro do corpo e, ao mesmo tempo, ato<br />
para nada). José Gil diz ainda que o bailarino “sai deliberadamente<br />
da postura do homem comum para se deslocar desde o início na dificuldade:<br />
desequilibra-se” (GIL, 2004, p. 21). Gonçalo M. Tavares,<br />
por sua vez, pergunta no fragmento 74 do Livro da dança, intitulado<br />
“Definição de função”, acerca do movimento dançado de sua escrita<br />
inserida no espaço contemporâneo da história e, também, ao mesmo<br />
tempo, fora da história: “O que é a dança que já não se deve dançar?<br />
/ [...] / O que é o corpo que dança bem? / O que é o dançarino?” E<br />
responde, como se gritasse a si mesmo e de si mesmo, o escritor, que<br />
traz a si o milagre para fugir do seu peso de corpo-objeto e do seu cadáver:<br />
“É o COVEIRO! É o COVEIRO!” (TAVARES, 2001, p. 90). Outro<br />
exemplo, que pode prosseguir acerca dessa inserção, é o poema<br />
“Dansa”, com “s”, do livro 1 9 . A inserção agora aparece de maneira<br />
formal na língua do poema, é a grafia da palavra que erra e se move,<br />
“metodicamente sem método”:<br />
9 O poema “Dansa” faz parte do conjunto de poemas que formam o livro<br />
cinco, intitulado Homenagem, do livro 1 (2004).<br />
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Dansa<br />
Tem S a palavra, pois certas curvaturas do mundo<br />
exigem alterações de grafia.<br />
O traço imprevisto obriga a parar a meio;<br />
E à paragem insólita chamarás insólito movimento.<br />
E ficarás contente.<br />
(TAVARES, 2005, p. 109).<br />
Esse “erro” de grafia, essa célula que salta da origem, levanta a questão<br />
acerca de um problema de legitimação do termo: dançar é com<br />
“s”, para oscilar na curvatura do mundo, ou é com “ç”, para insistir na<br />
repetição do comum? A palavra grafada assim, com “s”, clama a sua<br />
revolução, a sua recusa, a sua emancipação. Ela demonstra por fora o<br />
que acontece por dentro, a sua animalidade: sair do comum, provocar<br />
um desequilíbrio: dançar.<br />
Dessa maneira, a partir do primeiro livro de Gonçalo M. Tavares,<br />
pode-se pensar a invenção do corpo no seu trabalho e o seu trabalho<br />
como um corpo-bailarino, o que sai do comum para provocar o desequilíbrio<br />
entre ficção e imaginação. A ideia é propor ler o corpo mais<br />
como esse desvio, como desequilíbrio, e menos simplesmente como<br />
ausência de peso e de gravidade. Uma tarefa da literatura e para a<br />
literatura, um modo de uso político e crítico da literatura construída<br />
com um arsenal de corpos misturados e moventes, é o que parece<br />
propor Gonçalo M. Tavares. Isso nos leva ainda a José Gil, quando ele<br />
diz que “este pequeno deslocamento marca o nascimento da arte ou,<br />
pelo menos, da sua possibilidade” (GIL, 2004, p. 22) e que o bailarino<br />
não se limita a conservar o equilíbrio comum, mas procura uma<br />
espécie de equilíbrio no desequilíbrio, quase que em um estado de<br />
desobediência do corpo, uma resistência, uma intensidade. Mas a luta<br />
para vencer o próprio peso do corpo, essa leveza que deve ser incorporada<br />
ao corpo do bailarino como uma ausência de peso no interior<br />
do corpo – o corpo tornado espaço –, não deve ser compreendida<br />
apenas como simples ausência de peso. Bem como a dança, o voo e<br />
a leveza não são apenas gestos que se opõem ao espírito de peso ou<br />
de gravidade, mesmo que possam ser também uma espécie de marco<br />
fundador, capaz de deslocar todos os marcos de fronteiras já que,<br />
segundo Nietzsche “quem, um dia, ensinar os homens a voar, terá<br />
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deslocado todos os marcos de fronteira; as próprias fronteiras terão<br />
ido pelos ares para ele, que batizará de novo a terra – como ‘a leve’”<br />
(NIETZSCHE, 2006, p. 230).<br />
Para Nietzsche, além da dança apresentar a oposição mais radical<br />
ao espírito de gravidade e de ser capaz de dar à terra o seu novo<br />
nome, “a leve”, ela apresenta, especialmente, o corpo não forçado,<br />
livre e desconfiado, um corpo em estado de desobediência ou ainda,<br />
se pensarmos com José Gil, em desequilíbrio (levantar o braço<br />
como política, dizer que a literatura existe, apontar para uma resistência,<br />
parece propor Gonçalo M. Tavares). Badiou diz que esse corpo<br />
não forçado está em um estado de desobediência que se estende<br />
até mesmo às suas próprias impulsões, que a dança é “a mostração<br />
corporal da desobediência a uma impulsão” (BADIOU, 2002, p. 83,<br />
grifo do autor). Ele concebe a dança também como pensamento, um<br />
“pensamento como refinamento” e diz que essa reflexão está longe<br />
de qualquer princípio da dança como “êxtase primitivo ou agitações<br />
repetidas e descuidadas do corpo”, mas que “a dança metaforiza o<br />
pensamento leve e sutil, precisamente porque mostra a retenção imanente<br />
ao movimento e assim se opõe à vulgaridade espontânea do<br />
corpo” (BADIOU, 2002, p. 83). A vulgaridade seria toda impulsão<br />
que não é retenção, mas apenas um apelo corporal que é imediatamente<br />
obedecido e manifesto, um corpo obediente e incapaz de<br />
resistir a uma solicitação. Dessa forma, a dança seria um corpo subtraído<br />
não apenas de peso, mas também de qualquer vulgaridade.<br />
Esse é o corpo desenhado por Gonçalo M. Tavares em todo o seu<br />
projeto de escrita, um corpo de pensamento leve e sutil, corpo desobediente,<br />
não forçado e desconfiado, corpo subtraído de toda e<br />
qualquer vulgaridade, e que dança. E, seguindo as palavras de Badiou,<br />
“na dança concebida dessa maneira, a essência do movimento está<br />
no que não teve lugar, no que permaneceu não efetivo ou retido<br />
dentro do próprio movimento” (BADIOU, 2002, p. 82, grifo do autor).<br />
Assim, a dança apresenta-se como manifestação do que “não<br />
teve lugar”, da força do movimento retido no corpo, como um devir<br />
permanente – um pensamento como devir, como poder ativo e violento,<br />
na sugestão de Nietzsche –, muito mais do que a prontidão e<br />
exatidão dos movimentos em seus diversos desenhos exteriores. Nas<br />
palavras de Badiou: “Certamente, só se mostrará essa força no pró-<br />
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prio movimento, mas o que conta é a legibilidade poderosa da retenção”<br />
(BADIOU, 2002, p. 82). Tanto é que, em uma passagem, Badiou<br />
recupera de Nietzsche o sentido de corpo não forçado e desconfiado<br />
como atribuição do corpo leve que dança:<br />
Podemos pensar então, adequadamente, o que se diz no tema da<br />
dança como leveza. Sim, a dança opõe-se ao espírito de peso, sim,<br />
é o que dá à terra seu novo nome, “a leve”, mas, definitivamente, o<br />
que é a leveza? Dizer que é a ausência de peso não leva longe. Deve-<br />
-se compreender por leveza a capacidade do corpo de manifestar-se<br />
como corpo não forçado, não forçado até mesmo por si próprio, ou<br />
seja, em estado de desobediência a suas próprias impulsões. [...] A<br />
leveza tem sua essência, daí ser a dança a sua melhor imagem, na<br />
capacidade de manifestar a lentidão secreta do que é rápido. [...]<br />
Nietzsche proclama que “o que a vontade deve aprender é a ser lenta<br />
e desconfiada”. Digamos que a dança pode-se definir como a expansão<br />
da lentidão e da desconfiança do corpo-pensamento (BADIOU,<br />
2002, p. 83, grifo do autor).<br />
Badiou recupera ainda algumas imagens que aparecem em Nietzsche<br />
como fulguração desse corpo que dança, esse espírito “antes de mais<br />
nada”, que é o pensamento subtraído de qualquer espírito de peso e<br />
de qualquer vulgaridade como, por exemplo, a ave, que habitaria o<br />
interior do corpo, a fonte – porque o corpo dançante seria o corpo<br />
que jorra em estado permanente, um “fora do solo” e um “fora de si<br />
mesmo” (BADIOU, 2002, p. 80) –, ou ainda a criança, o corpo leve e<br />
inocente, “o corpo antes do corpo”. Para Badiou a dança é um estado<br />
de inocência porque é um corpo de antes do corpo e que também é<br />
esquecimento, porque é um corpo que esquece o seu próprio peso,<br />
a sua prisão. O corpo é ainda um novo começo, “porque o gesto<br />
da dança deve sempre ser como se inventasse seu próprio começo”<br />
(BADIOU, 2002, p. 79-80), a sua permanente fundação. Dentro dessa<br />
mesma ideia do corpo como esquecimento e ao mesmo tempo como<br />
eterno começar de si mesmo, como se constantemente inventasse seu<br />
próprio começo, Gonçalo M. Tavares, no fragmento 86 do Livro da<br />
dança, propõe uma espécie de interdição da memória e de retorno ao<br />
corpo sem início nem fim, arremessado no instante:<br />
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135
86.<br />
interditar a memória.<br />
Tornar a inteligência bela é voltar à não inteligência.<br />
Só é belo o que não é inteligente; porque o inteligente é o não<br />
imediato: um passo atrás ou à frente, enquanto o belo é o instante,<br />
a superfície tão fina que frente igual a COSTAS, o início é o mesmo<br />
que o FIM.<br />
interditar a memória<br />
a memória é ocupação do espaço<br />
a memória é o não imediato,<br />
a memória é o inteligente.<br />
interditar pois a memória.<br />
O Corpo inteligente é inteligente mas não é corpo porque corpo é estar<br />
presente, agora, por completo, e o inteligente, repito o inteligente<br />
é o não-imediato, um passo atrás ou à Frente.<br />
a dança não tem Memória.<br />
A criatividade não tem Memória.<br />
O Corpo começa agora no momento que acaba.<br />
O Corpo começa no mesmo sítio que acaba.<br />
O corpo é 1 sítio e 1 tempo e depois 1 outro sítio e 1 outro tempo que<br />
não se recordam o sítio e o tempo anteriores.<br />
CORPO AMNÉSICO<br />
Esqueceu porquê aqui e agora.<br />
Aqui e agora e antes nada.<br />
Aqui e agora e depois nada.<br />
CORPO AMNÉSICO e sem projetos.<br />
Cortar-lhe a cadeira dos velhos e o nome donde se vê o FUTURO dos<br />
NOVOS.<br />
Um CORPO sem cadeira (não há cansaço porque antes não existiu)<br />
e UM CORPO sem VISÃO (o FUTURO é 1 espaço onde antes não se<br />
chegou).<br />
Sem visão não há nenhum lado onde se chegar, e sem cadeira não há<br />
sítio onde descansar, portanto só resta ao corpo ser todo aqui e agora<br />
e só resta ao corpo dançar.<br />
(Corpo a quem cortaram a cadeira e os olhos)<br />
(TAVARES, 2001, p. 104-105).<br />
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“Interditar a memória”, diz o fragmento, interditar a memória de um<br />
corpo preso e que pesa, para que ele seja apenas superfície fina, instante,<br />
nem início nem fim, início e fim ao mesmo tempo, o gesto da dança<br />
que deve ser sempre como se inventasse um novo começo a partir do<br />
que não teve lugar, da força do movimento retido no próprio corpo.<br />
Gonçalo diz ainda que toda memória é ocupação do espaço, começo<br />
de espaço, uma memória inteligente que está sempre um passo atrás<br />
ou à frente e que, por isso mesmo, é um corpo não imediato. O corpo<br />
da dança, para Gonçalo M. Tavares, também é essencialmente sem<br />
memória – “a dança não tem Memória”, ele diz –, é um corpo circular<br />
e paradoxal – “O corpo começa agora no momento em que acaba” –,<br />
um corpo antes do corpo, sem inteligência, sem saber, sem ciência;<br />
corpo como acontecimento aqui e agora, no sítio de sua eclosão,<br />
um corpo-pensamento livre e que jorra, jamais alguém, mas carne,<br />
osso, corpo anterior ao sexo, corpo em sua nudez absoluta, a nudez de<br />
antes da exibição de qualquer ornamento, “nudez que não resulta de<br />
se despojar dos ornamentos, mas, ao contrário, da nudez tal como se<br />
dá ‘antes’ do nome” (BADIOU, 2002, p. 91). É a dança como metáfora<br />
do pensamento e como outra inserção da escrita no espaço-tempo<br />
contemporâneo, como um pensamento em relação, pensamento leve,<br />
que “apresenta-se sem relação com outra coisa senão consigo mesma,<br />
na própria nudez de seu surgimento” (BADIOU, 2002, p. 90, grifo do<br />
autor), no anonimato dos corpos, no apagamento dos sexos, como aparece<br />
no fragmento 29, que na edição brasileira é intitulado “Treinar”:<br />
29.<br />
Treinar a nudez.<br />
Pintar de céu a nudez.<br />
Pintar de sexo a nudez.<br />
Desenhar na nudez a inocência.<br />
Desenhar a Fornicação na nudez.<br />
a nudez clássica igual à nudez actual.<br />
experimentar roupas nuas.<br />
confirmar que a nudez é mais nua que a roupa nua.<br />
Treinar a nudez.<br />
Ser melhor NU que ontem se foi nu, ser melhor nu que ontem<br />
se foi nu.<br />
(TAVARES, 2001, p. 40).<br />
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Mais uma vez Gonçalo M. Tavares faz uso do verbo treinar (exercitar,<br />
acostumar, adestrar, versar, educar, ensaiar), agora para propor<br />
um ensaio da nudez, a repetição da nudez, bem como “experimentar<br />
roupas nuas”, desnudar-se de todo e qualquer ornamento para<br />
sentir no corpo profundo a nudez. Interessante também é que no<br />
fragmento de Gonçalo pode-se ser melhor ou pior NU, por isso a<br />
importância de treinar a nudez, de colocar nudez na dança, até que<br />
o corpo saiba-se NU de vez, e uma nudez sem julgamento ou valor,<br />
que tanto pode ser “céu”, como pode ser “sexo”, “inocência” ou<br />
“fornicação”. É uma nudez expandida, pois ele sugere experimentar<br />
roupas nuas; assim, se pode pensar em uma escrita que seja vestir a<br />
nudez com a própria nudez, o sentido com o não sentido do sentido.<br />
É como se a dança, como afirmou Badiou, fosse sempre uma nova<br />
invenção de começo, nem antes e nem depois, antes nada e depois<br />
nada, um corpo “amnésico”, subtraído de todo saber, de toda memória.<br />
Badiou lembra a conhecida proposição de Mallarmé 10 nas suas<br />
observações críticas de 1886, intituladas “Ballets”, quando este diz<br />
que a bailarina não é uma mulher que dança, visto que não é uma<br />
mulher, mas um corpo anônimo; e que não dança, pois não é a realização<br />
de um saber, mas um “corpo como eclosão”, um “esquecimento<br />
milagroso”. Mallarmé diz ainda que o corpo anônimo que dança é<br />
uma espécie de poema liberto de todo aparelho do escriba, ou seja,<br />
um poema não inscrito, livre e que dança sem deixar vestígio, uma<br />
espécie de corpo desobediente, subtraído de qualquer vulgaridade,<br />
em uma relação direta entre ser e desaparecer – um “hieróglifo” que<br />
dança, uma “aparição como acontecimento”, uma invenção do corpo<br />
de intensidade, do corpo profundo e paradoxal, como parece ser o<br />
projeto de Gonçalo M. Tavares com a sua literatura. Sobre essa proposição<br />
de Mallarmé, Badiou diz:<br />
O que se pronuncia aqui é a dimensão subtrativa do pensamento.<br />
Todo pensamento verdadeiro é subtraído ao saber onde se constitui.<br />
10 Mallarmé deixou alguns breves escritos sobre a dança, algumas observações<br />
críticas – as prosas de circunstâncias –, que foram destinadas a revistas de<br />
pouca circulação na época, mas que mais tarde foram incluídas nos capítulos<br />
Crayonné au théâtre e Ballets do livro Divagations, publicado em 1897.<br />
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A dança é metáfora do pensamento precisamente porque indica por<br />
meio do corpo que um pensamento, na forma de sua aparição como<br />
acontecimento, é subtraído a toda preexistência do saber.<br />
[...]<br />
“A dançarina não dança” quer dizer que o que se vê não é em momento<br />
algum a realização de um saber, embora de parte esse saber seja<br />
sua matéria, ou seu apoio. A dançarina é esquecimento milagroso de<br />
todo seu saber de dançarina, ela não executa qualquer dança, é essa<br />
intensidade retida que manifesta o indecidido do gesto. Na verdade, a<br />
dançarina suprime toda dança que sabe porque dispõe de seu corpo<br />
como se ele fosse inventado. De modo que o espetáculo da dança é<br />
o corpo subtraído a todo saber de um corpo, o corpo como eclosão<br />
(BADIOU, 2002, p. 90, grifos do autor).<br />
Também Valéry, em Degas Danse Dessin, publicado em 1935, faz referência<br />
a essa mesma proposição de Mallarmé. Ele diz que seu encantamento<br />
com a dança pode partir de outro lugar, muito além da cena<br />
comum, fora do palco e fora do solo como, por exemplo, diante de<br />
uma tela onde se encontram grandes Medusas aparentemente fixas e<br />
intocáveis. Valéry abre a perspectiva da dança para além do corpo que<br />
dança, efetivamente, da mulher que dança e põe em cena todo o seu<br />
saber de bailarina, quando diz que uma das mais livres, flexíveis e voluptuosas<br />
das danças possíveis apareceu-lhe em uma tela, em que não se<br />
encontravam mulheres e não se dançava, mas em que se viam Medusas<br />
tão fluidas que pareciam representar todo ideal de mobilidade, em seus<br />
“corpos de cristal elástico” que parecem se mover em “espasmos ondulatórios”,<br />
como se estivessem no dia da grande exibição – “vira-se ao<br />
avesso e se expõe, furiosamente aberta” (VALÉRY, 2003, p. 39). O que<br />
pode nos levar ao fragmento 95 do Livro da dança, “SER PROFUNDO<br />
no dia da EXIBIÇÃO Profunda” (TAVARES, 2001, p. 115). Diz Valéry:<br />
Mallarmé disse que a bailarina não é uma mulher que dança, pois ela<br />
não é uma mulher, e não dança.<br />
[...]<br />
A mais livre, a mais flexível, a mais voluptuosa das danças possíveis<br />
apareceu-me numa tela onde se mostravam grandes Medusas: não<br />
eram mulheres e não dançavam.<br />
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139
Não são mulheres, mas seres de uma substância incomparável, translúcida<br />
e sensível, carnes de vidro alucinadamente irritáveis, cúpulas de<br />
seda flutuante, coroas hialinas, longas correias vivas percorridas por<br />
ondas rápidas, franjas e pregas que dobram, desdobram; ao mesmo<br />
tempo em que se viram, se deformam, desaparecem, tão fluidas quanto<br />
o fluido maciço que as comprime, esposa, sustenta por todos os<br />
lados, dá-lhes lugar a menos inflexão e as substitui em sua forma. Lá,<br />
na plenitude incompressível da água que não parece opor nenhuma<br />
resistência, essas criaturas dispõem do ideal da mobilidade, lá se distendem,<br />
lá recolhem sua radiante simetria. Não há solo, não há sólidos<br />
para essas bailarinas absolutas; não há palcos; mas um meio onde é<br />
possível apoiar-se por todos os pontos que cedem na direção em que<br />
se quiser. Não há sólidos, tampouco, em seus corpos de cristal elástico,<br />
não há ossos, não há articulações, ligações invariáveis, segmentos que<br />
se possam contar...<br />
Jamais bailarina humana, mulher inflamada, embriagada de movimento,<br />
do veneno de suas forças excedidas, da presença ardente de olhares<br />
carregados de desejo, expressou a oferenda imperiosa do sexo,<br />
o apelo mímico da necessidade de prostituição, como aquela grande<br />
Medusa, que, por espasmos ondulatórios de sua torrente de saias<br />
engrinaldadas, que ela arregaça repetidas vezes com uma estranha e<br />
impudica insistência, transforma-se em sonho de Eros; e, subitamente,<br />
rejeitando todos seus folhos vibráteis, seus vestidos de lábios recortados,<br />
vira-se ao avesso e se expõe, furiosamente aberta.<br />
Mas imediatamente se recompõe, freme e se propaga em seu espaço,<br />
e sobe como balão à região luminosa proibida onde reinam o astro e<br />
o ar mortal (VALÉRY, 2003, p. 38-39).<br />
Interessante pensar o quanto Gonçalo M. Tavares também compõe<br />
a sua imagem da dança para além da ideia de um corpo feminino<br />
que dança e expõe todo o seu saber, para além do palco e do solo,<br />
seguindo essa sugestão de Valéry. Mas a figura que Gonçalo formula<br />
ou o seu corpo inventado no texto, que é também o texto como um<br />
corpo, se afasta da descrição feita por Valéry – ainda que se trate,<br />
como propõe Valéry, de um corpo leve de “estranha e impudica insistência”<br />
(VALÉRY, 2003, p. 39), que é afirmação da vida, e que se<br />
140 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 114-147 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
expõe, furiosamente aberto, talvez no instante da “EXIBIÇÃO Profunda”,<br />
porque é nesse momento que entendemos que, para Gonçalo<br />
M. Tavares, não há nenhum corpo completo, que ao corpo que faltam<br />
movimentos chamamos de corpo “INcompleto” (TAVARES, 2001,<br />
p. 91) e ao outro chamamos de deus. Mas que, principalmente, esse<br />
deus não se exibe. Gonçalo retoma a ideia de que o corpo que dança<br />
– no seu “projeto para uma poética do movimento” – é um corpo de<br />
osso e de articulação, um corpo que morre, um corpo sem metafísica,<br />
mais perto do chão, um corpo furioso e sólido, mas também gasoso<br />
e possível de evaporar, enquanto ensaia uma espécie de “dança<br />
desenfreada.” (NIETZSCHE, 2006, p. 268). Logo, o projeto literário<br />
de Gonçalo M. Tavares é também osso, carne, articulação, travessia<br />
violenta, paradoxo e oposição de termos, mas para desfazê-los por<br />
dentro, em contato, em uma armadilha para o sentido. Uma poética<br />
do osso imprevisto que sobrevive como movimento. Ele retoma essa<br />
questão no fragmento 50:<br />
Quando o Movimento acabar o osso sobrevive.<br />
O movimento da dança, o poético no oxigênio, deve MOSTRAR que<br />
o osso SOBREVIVE, o osso permanece quando acabar o Movimento.<br />
(TAVARES, 2001, p. 62).<br />
O fragmento trata da sobrevivência do osso, ele “SOBREVIVE” e<br />
permanece quando se retira a pele e o movimento termina. O osso<br />
nu agora é pele, o que volta a se exibir é de novo a pele. O osso nu<br />
é o que nada tem de flexível, ele é o único sólido que pode se impor<br />
às bailarinas absolutas de Valéry. Tanto que no fragmento 21 a carne<br />
que aparece como possibilidade para a dança, sobrevive e permanece<br />
quando se retira a pele. A carne nua é pele, o que volta a se exibir é<br />
de novo a pele. “A pele é cá fora e mostra-se” (TAVARES, 2001, p. 92).<br />
Diz ele no fragmento 76, que tem um título que indica evidência:<br />
“Isso é claro”. A dança, na escrita de Gonçalo M. Tavares, é a indicação<br />
de uma “poética dos ossos e dos Mortos”, porque ela é o osso nu<br />
que sobrevive quando o movimento acaba; é a carne nua que sobrevive<br />
quando o movimento acaba; osso e carne nus que se exibem como<br />
pele, o milagre. Segue o fragmento 21:<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 114-147 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
141
21.<br />
Meter na dança carne.<br />
a carne é igual no Feminino e no Masculino.<br />
Descobrir o corpo anterior ao feminino e descobrir o corpo<br />
anterior ao Masculino.<br />
A carne é o corpo anterior ao sexo.<br />
Meter carne na dança.<br />
Deixar a dança ser primeiro que o corpo.<br />
Ao corpo anterior ao Feminino e ao corpo anterior ao<br />
Masculino<br />
é impossível acrescentar algo novo.<br />
Não abrir o exterior do corpo para a carne entrar; Não abrir o<br />
exterior do corpo para deixar sair a CARNE.<br />
Não meter CARNE na Dança. Não tirar CARNE da dança.<br />
Deixar a dança ser Naturalmente Carne.<br />
CARNE: a poética dos ossos e dos Mortos é igual: CARNE.<br />
a Matéria da Poética obedece aos instrumentos de Medida.<br />
Exibir as Medidas da Alma.<br />
A carne quando aparece aparição antes do corpo exibe as<br />
Medidas da alma.<br />
A carne quando aparece aparição antes do corpo exibe as<br />
Medidas da alma.<br />
(TAVARES, 2001, p. 32).<br />
É possível verificar, porém, a partir do fragmento 21 intitulado “Medidas<br />
do corpo”, como Gonçalo M. Tavares elabora mais uma medida<br />
para sua escrita entre o corpo e a dança. A escrita como um ponto de<br />
mesura, de eclosão, de abertura, o seu acontecimento antes do corpo,<br />
como aquele estado de inocência ou de jorro permanente do qual nos<br />
fala Nietzsche e Badiou: como o gesto do bailarino ao dispor do corpo<br />
como se ele fosse inventado, quando a dança é o corpo subtraído de<br />
todo saber de um corpo, de toda ciência. É o corpo eclodido a partir<br />
do esquecimento de todo o seu saber, eis o milagre. E assim, o corpo<br />
como acontecimento paradoxal, ao retirar a pele, termina por “Exibir<br />
as medidas da alma” e passa a ser o osso nu e a carne nua, eis de novo<br />
o milagre. A escrita vem como a força de um movimento retido e sem<br />
lugar, resultado de um “Ser Profundo nos ENSAIOS” (TAVARES, 2001,<br />
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p. 115); a escrita segue a ideia de um corpo não inteligente, AMNÉSICO<br />
e sem projetos, porque é aqui e agora, nem antes e nem depois.<br />
Não por acaso Gonçalo M. Tavares escreve no breve fragmento<br />
de número 82 – que na edição brasileira ganha o significativo título de<br />
“Exclamação” 11 , ou seja, algo que se diz com ênfase ou em voz alta e<br />
que exprime admiração ou alegria –, uma espécie de acontecimento do<br />
corpo aqui e agora, como se a força do não ter lugar do movimento<br />
retido, em estado de desobediência, eclodisse em movimento violento<br />
e espantoso, em dança, em exclamação para todos os lados, como<br />
se também perdesse de vista a sua condição de sujeito do enunciado,<br />
para montar o paradoxo em direção a um sujeito da enunciação:<br />
Alguém me aconteço!<br />
Alguém<br />
me<br />
aconteço.<br />
(TAVARES, 2001, p. 99).<br />
O verso-exclamação “Alguém me aconteço!”, tal qual o gesto de<br />
levantar o braço (verso e gesto para nada, como talvez seja o lugar<br />
da literatura agora: para nada, logo para tudo), também parece conservar<br />
o segredo no corpo, a ausência de sexo e de ornamento na<br />
indeterminação do pronome “alguém” que produz um acontecimento<br />
no corpo; assim como levantar o braço é também um gesto indeterminado.<br />
Tudo não passa de uma tentativa de incorporação, um<br />
exercício de releitura da imagem do escritor como um corpo que se<br />
lança no mundo a partir do que escreve e a partir, principalmente, do<br />
que publica daquilo que escreve. Onde o acontecimento da escrita?<br />
Badiou diz justamente que o movimento desse corpo em eclosão, em<br />
exclamação e que jorra sugere o seguinte: “A dança seria a metáfora<br />
de que todo pensamento verdadeiro depende de um acontecimento.<br />
Pois um acontecimento é precisamente o que permanece indecidido<br />
entre o ter-lugar e o não-lugar, um surgir que é indiscernível de seu<br />
11 Na versão para a edição brasileira de o Livro da Dança (Editora da Casa,<br />
2008) Gonçalo M. Tavares desloca a exclamação para o final do poema: “Alguém<br />
me aconteço./ Alguém/ me/ aconteço!” (TAVARES, 2008, p. 99).<br />
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143
desaparecer” (BADIOU, 2002, p. 84). E é aqui onde parece residir o<br />
milagre da escrita pensada como um corpo que dança, entre planejar<br />
o milagre e ensaiar, pois o corpo que dança e tão logo desaparece é<br />
também o corpo que dura, o corpo infinito. José Gil, por sua vez, diz<br />
que “não havia repouso porque não havia paragem do movimento. O<br />
repouso era apenas uma imagem demasiado vasta daquilo que se movia,<br />
uma imagem infinitamente fatigada que afrouxava o movimento”<br />
(GIL, 2004, p. 13). Por isso o corpo leve, desobediente e soberano,<br />
esse corpo de escrita inventado por Gonçalo M. Tavares, “um bailarino<br />
subtil”, atravessa furiosamente todos os seus livros, sem repouso,<br />
em uma dança desenfreada, por dentro do seu permanente começar,<br />
como uma aparição sutil, um fantasma ou um esquecimento milagroso.<br />
Ou na sugestão de Valéry, como uma espécie de movimento<br />
ondulatório de saias engrinaldadas, que o bailarino levanta repetidas<br />
vezes com uma estranha e impudica insistência, em um jogo entre<br />
deixar o corpo à mostra e exposto, e esconder o corpo, fazer o corpo<br />
desaparecer.<br />
Badiou afirma que o corpo dançante tal como ele advém no sítio,<br />
tal como se espaça na iminência, “é um corpo-pensamento, jamais é<br />
alguém” (BADIOU, 2002, p. 87, grifo do autor). É bom lembrar que<br />
para Gonçalo M. Tavares o pensamento, o ato de pensar, é – ainda – o<br />
nosso gesto de resistência agora, como se um pensamento fosse – com<br />
o que afirma Nietzsche – leve e sutil, mas igualmente desconfiado<br />
e desobediente. E vejamos que, acerca desses corpos sugeridos por<br />
Badiou, Mallarmé já declarara que eles são sempre símbolo, apenas,<br />
não alguém. Por isso Gonçalo escreve tão incisivamente que “Alguém<br />
me aconteço!”.<br />
CoNSiDERAÇÕES fiNAiS<br />
O que parece é que Gonçalo M. Tavares apresenta, a partir desse<br />
primeiro livro, o Livro da dança, que ele define como “projeto para<br />
uma poética do movimento”, e em todos os livros posteriores a este,<br />
um texto que seria, antes, um corpo que cai e que também se eleva,<br />
como um corpo-móbil flexível e que dança, um corpo monstruoso,<br />
soberano, anônimo, desobediente, impossível, como uma criança travessa,<br />
sem gravidade e sem memória, que parece negar toda a ideia<br />
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de corpo orgânico, vulgar, dócil, obediente – o falso espírito livre, espírito<br />
cativo e “ridiculamente superficial” do qual fala Nietzsche. De<br />
outra maneira, pensando com José Gil, o projeto de Gonçalo M.<br />
Tavares aponta para um gesto dançado que abre no espaço a dimensão<br />
do infinito, pois “seja qual for o lugar onde se encontra o bailarino,<br />
o arabesco que descreve transporta o seu braço para o infinito” (GIL,<br />
2004, p. 14), pois, como já foi visto, o corpo do bailarino é sempre<br />
transportado pelo movimento em um gesto que começa antes dele,<br />
do próprio movimento, e que se prolonga depois dele. José Gil diz que<br />
“tudo se passa no espaço do corpo do bailarino” (GIL, 2004, p. 14)<br />
que abre buracos no espaço comum, que faz furos no espaço comum,<br />
vulgar, para abrir nele um campo de ventilação, de ar, uma espécie<br />
de estado de desobediência, de queda, de desequilíbrio, de quebra do<br />
movimento que provocará sempre outros movimentos, pois o gesto<br />
da dança inventa sempre novos começos, como um corpo que jorra<br />
para fora de si mesmo.<br />
Por esses e outros tantos desdobramentos podemos pensar que<br />
Gonçalo M. Tavares faz uso de um procedimento singular, como tarefa,<br />
da e na sua escrita, que é o de abrir o corpo da palavra, da frase,<br />
como um bailarino enraivecido em uma travessia violenta (a expressão<br />
é de Nietzsche), até projetá-las para fora, EXIBI-LAS, e armar um<br />
espaço em cada uma delas como um corpo que busca alcançar as<br />
intensidades mais altas, um corpo que é um círculo de desejos. José<br />
Gil chama a esse procedimento, na dança, de “plano de imanência da<br />
dança”, que se dá quando as ações do corpo já não se distinguem dos<br />
movimentos do pensamento, e isso pode ser tomado como uma consciência<br />
do corpo; corpo que passa a ser um corpo-pensamento, que<br />
se abre e se fecha, que pode ser atravessado por diferentes fluxos de<br />
vida; corpo que é uma pura afirmação da vida. Para José Gil, “dançar<br />
é criar a imanência graças aos movimentos” (2004, p. 44).<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 114-147 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
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REfERêNCiAS<br />
ADORNO, Theodor W. Notas de literatura I. Trad. Jorge M. B. de Almeida.<br />
São Paulo: Duas Cidades: Ed. 34, 2003. (Coleção Espírito crítico).<br />
BADIOU, Alain. Pequeno manual de inestética. Trad. Marina Appenzeller.<br />
São Paulo: Estação Liberdade, 2002.<br />
BARTHES, Roland. O neutro. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: M.<br />
Fontes, 2003.<br />
BATAILLE, Georges. La felicidad, el erotismo y la literatura: ensayos 1944-<br />
1961. Trad. Silvio Mattoni. Buenos Aires: Adriana Hidalgo Ed., 2008.<br />
GIL, José. Fernando Pessoa ou a metafísica das sensações. Lisboa: Relógio<br />
D’Água, 1987.<br />
GIL, José. Movimento total, o corpo e a dança. São Paulo: Iluminuras, 2004.<br />
NIETZSCHE, Wilhelm Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma<br />
filosofia do futuro. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das<br />
Letras, 1992.<br />
NIETZSCHE, Wilhelm Friedrich. O caso Wagner. Trad., notas e posfácio<br />
Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.<br />
NIETZSCHE, Wilhelm Friedrich. A gaia ciência. Tradução, notas e posfácio<br />
Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.<br />
NIETZSCHE, Wilhelm Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro<br />
para espíritos livres. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das<br />
Letras, 2005. v. 1.<br />
NIETZSCHE, Wilhelm Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos<br />
e para ninguém. Trad. Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,<br />
2006.<br />
NIETZSCHE, Wilhelm Friedrich. Ecce homo: como alguém se torna o que é.<br />
Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.<br />
SÉNECA. Cartas consolatórias. Trad. Cleonice Furtado de Mendonça.<br />
Campinas: Pontes, 1992.<br />
146 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 114-147 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
TAVARES, Gonçalo M. Breves notas sobre ciência. Lisboa: Relógio d’Água,<br />
2006.<br />
TAVARES, Gonçalo M. A colher de Samuel Beckett e outros textos. Porto:<br />
Campo das Letras, 2002.<br />
TAVARES, Gonçalo M. O humor e ironia com rigorosa habilidade e disciplina:<br />
entrevista. Jornal Rascunho, Curitiba, 5 jan. 2010.<br />
TAVARES, Gonçalo M. Ler para ter lucidez: entrevista. Entrelivros, São Paulo,<br />
n. 29, set. 2007. Entrevista concedida a Joca Terron.<br />
TAVARES, Gonçalo M. Livro da dança. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001.<br />
TAVARES, Gonçalo M. Livro da dança. Florianópolis: Ed. da Casa, 2008.<br />
TAVARES, Gonçalo M. 1. Lisboa: Relógio D’Água, 2004.<br />
TAVARES, Gonçalo M. 1. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.<br />
VALÉRY, Paul. Degas dança desenho. Trad. Christina Murachco, Célia<br />
Euvaldo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.<br />
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147
CAio PRADo JR.<br />
E o iNtELECtuAL<br />
mARxiStA HoJE<br />
Marco Aurélio Nogueira<br />
148 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 148-169 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
O presente artigo propõe-se a dialogar com a obra e a trajetória de Caio Prado<br />
Júnior, um dos mais importantes intelectuais marxistas do Brasil. A intenção<br />
não é proceder a uma avaliação em detalhe de sua produção, nem analisar as<br />
relações que essa produção teve com a época e com as opções políticas do<br />
historiador, trabalho que já foi realizado por diversos pesquisadores. Pretende-<br />
se, em vez disso, “usar” seu percurso e seu estilo para refletir livremente sobre<br />
alguns traços do marxismo no Brasil e especialmente sobre certos dilemas inerentes<br />
à atuação da intelectualidade marxista. Caio Prado Jr. será, portanto, tratado<br />
aqui como parâmetro para uma reflexão mais ampla sobre os intelectuais.<br />
Palavras-chave: Caio Prado Jr.; intérpretes do Brasil; Marxismo<br />
This article proposes to engage in dialogue with the work and the trajectory of<br />
Caio Prado Júnior, one of the most influential historians and Marxist intellectuals<br />
of Brazil. The intention is not to evaluate his production in detail, nor follow<br />
the relationships she had with the Brazilian society and the historian’s political<br />
options, something already conducted by several researchers. Instead, its intention<br />
is to “use” his trajectory and style to freely reflect on some traces of Marxism<br />
in Brazil and especially on certain dilemmas inherent in the performance<br />
of the Marxist intellectuality. Caio Prado Jr. will, therefore, be treated here as a<br />
parameter for a broader reflection on the intellectuals.<br />
Keywords: Caio Prado Jr.; Brazilian studies; Marxism<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 148-169 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
149
iNtRoDuÇAo<br />
Na atual época histórica, a melhoria da capacidade de compreensão<br />
do mundo tornou-se uma exigência. Não podemos nos contentar<br />
em ser meros consumidores de informações. Também não é suficiente<br />
atuar de modo excessivamente especializado, como se o domínio<br />
verticalizado de um único campo de saber bastasse para agir sobre<br />
o mundo. Devemos nos empenhar para ir além de informações e<br />
conhecimentos especializados, organizando-os em um quadro mais<br />
abrangente e aberto para a totalidade da experiência social. De certo<br />
modo, estamos sendo obrigados a viver como intelectuais, ou seja,<br />
como pessoas que fazem da relação com as ideias e os pensamentos<br />
uma espécie de pão cotidiano.<br />
Dentre os “clássicos” do pensamento social brasileiro, Caio da Silva<br />
Prado Júnior (1907-1990) ajusta-se como uma luva nessa consideração<br />
inicial. Ele não foi somente um historiador, e certamente não<br />
foi um historiador acadêmico, ainda que sua obra tenha sido fundamental<br />
para que uma historiografia acadêmica se consolidasse entre<br />
nós. Foi seguramente um historiador no melhor sentido da palavra:<br />
ajudou-nos a descobrir o Brasil, quer dizer, desvendou-nos o modo<br />
como nos tornamos brasileiros, o legado que recebemos da experiência<br />
histórica e os problemas que o século XX teria pela frente. Mas<br />
não se limitou a isso. Foi também geógrafo, escritor, político e editor,<br />
para nos lembrarmos das atividades profissionais a que se dedicou. E<br />
em cada uma dessas áreas, atuou de forma singular, sem reproduzir<br />
mecanicamente os padrões associados à sua classe social, às suas origens<br />
sociais, e acima de tudo sem perder de vista a sociedade como<br />
um todo. Foi, em suma, um intelectual na melhor acepção da palavra.<br />
No texto que se segue, não se pretende avaliar o teor da obra de<br />
Caio Prado Jr., nem acompanhar as relações que ela manteve com<br />
a sociedade brasileira ou analisar as opções políticas do intelectual,<br />
trabalho já realizado por diversos pesquisadores. Pretende-se, em vez<br />
disso, “usar” sua trajetória para refletir livremente sobre alguns traços<br />
do marxismo no Brasil e especialmente sobre certos dilemas inerentes<br />
à atuação da intelectualidade marxista. Caio Prado Jr. será, portanto,<br />
tratado aqui como parâmetro para uma reflexão mais ampla sobre os<br />
intelectuais.<br />
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1 À PRoCuRA DA REvoLuÇÃo buRGuESA<br />
Caio Prado não foi um intelectual que se manteve recluso em alguma<br />
esfera superior, sem contato vivo com a sociedade ou alheio à<br />
agenda da época. Bem ao contrário, foi um intelectual público, que<br />
viveu em contato corporal com seu tempo, integrado às lutas sociais<br />
e às questões que se debateram ao longo de um importante trecho<br />
do século XX. Foi também um intelectual marxista. E como marxista,<br />
envolveu-se intelectualmente com a política e com o Partido Comunista<br />
Brasileiro (PCB). Nessa condição, atuou como um organizador<br />
de cultura, seja como homem de partido, escritor e historiador, seja<br />
como editor.<br />
Tudo isso em uma fase decisiva da vida nacional, entre 1930 e 1980,<br />
anos que assistiram à consolidação do capitalismo no Brasil mas que<br />
não se caracterizaram pela estabilização de uma relação política e<br />
social com a democracia, nem pela sedimentação no país de uma<br />
cultura democrática. Foram anos de desenvolvimento econômico, de<br />
urbanização, de redefinição das relações entre o campo e a sociedade,<br />
de afirmação das modernas classes sociais no Brasil – ou seja, anos<br />
em que a vida moderna se disseminou pela sociedade. Mas não foram<br />
anos de democratização política: não houve consolidação de um sistema<br />
democrático de governo, de práticas democráticas, de modos<br />
democráticos de pensar e fazer política, nem mesmo de ampliação<br />
categórica do sufrágio. Duas décadas de democracia representativa<br />
(1946-1964) terminaram por simbolizar uma espécie de espasmo em<br />
uma longa noite de desenvolvimento econômico combinado com autoritarismo<br />
político, de capitalismo induzido e sem democracia.<br />
Esse contraste entre desenvolvimento econômico-social e desenvolvimento<br />
político tingiu toda a história brasileira. Não foi um acaso,<br />
portanto, que tenha aparecido em posição de destaque na elaboração<br />
teórica de Caio Prado, ainda que nem sempre de forma explícita ou<br />
adequada. O historiador fez dele, devidamente adaptado, uma espécie<br />
de chave para compreender a história brasileira, que ele via como<br />
envolvida por um processo em que o desenvolvimento se fazia sem<br />
rupturas radicais, reiterando o passado e com isso travando o futuro.<br />
Ao longo do tempo, teriam sido dois os efeitos principais desse “modelo”<br />
de desenvolvimento.<br />
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151
Em primeiro lugar, o processo conservador de desenvolvimento dificultava<br />
que o passado terminasse de passar, ou seja, ficasse para trás.<br />
Como ele escreveu em um de seus livros, vivemos a “assistir pessoalmente<br />
às cenas mais vivas de nosso passado”, frase com que, segundo<br />
ele, um professor francês havia definido os brasileiros como um povo<br />
a ser invejado pelos historiadores, que podiam trabalhar com o passado<br />
como se ele estivesse presente o tempo todo. Caio Prado sempre<br />
reiterou sua hipótese de trabalho: entre nós, é enorme a capacidade<br />
de resistência e reprodução da velha estrutura colonial, fonte de tantos<br />
problemas e de tantos desafios teóricos e práticos. Na “Introdução”<br />
redigida para Formação do Brasil contemporâneo, cuja primeira<br />
edição é de 1942, ele assim se expressou:<br />
Observando-se o Brasil de hoje, o que salta à vista é um organismo<br />
em franca e ativa transformação e que não se sedimentou ainda em<br />
linhas definidas; que não “tomou forma”. É verdade que em alguns<br />
setores aquela transformação já é profunda e é diante de elementos<br />
própria e positivamente novos que nos encontramos. Mas isto, apesar<br />
de tudo, é excepcional. Na maior parte dos exemplos, e no conjunto,<br />
em todo caso, atrás daquelas transformações que às vezes nos podem<br />
iludir, sente-se a presença de uma realidade já muito antiga que até<br />
nos admira de aí achar e que não é senão [o nosso] passado colonial<br />
(PRADO JR., 1970, p. 11).<br />
Em segundo lugar, o mencionado contraste iria se traduzir em déficit<br />
de subjetividade política, problematizando o protagonismo das classes<br />
sociais. A sociedade ficava como que sem energia para produzir, tanto<br />
entre as classes dominantes quanto entre as camadas subalternas<br />
(escravos, brancos marginalizados, agregados, desocupados, trabalhadores<br />
subalternos, operários), sujeitos políticos com competência para<br />
desenvolver ação consequente e eficaz, defendendo seus interesses<br />
mas também contribuindo para plasmar o país. O historiador se voltava<br />
para o Brasil do século XIX, mas a frase parecia escrita para toda uma<br />
época: na análise dos movimentos insurrecionais da primeira metade<br />
do século XIX, e mesmo depois, na luta abolicionista, por exemplo, ele<br />
registra “a ineficiência política das camadas inferiores da população<br />
brasileira”, ou mesmo sua “atitude revolucionária inconsequente”.<br />
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Nem os negros nem a população livre das camadas médias e inferiores<br />
estavam em contato com fatores capazes de lhes dar organicidade<br />
e consciência política. Tais setores,<br />
sem coesão, sem ideologia claramente definida, mesmo quando alcançam<br />
o poder, tornam-se nele completamente estéreis. Em todos<br />
os movimentos populares [do período imediatamente posterior à Independência],<br />
o que mais choca é sua completa desagregação logo<br />
que passa o primeiro ímpeto da refrega (PRADO JR., 1977, p. 60-61).<br />
O mesmo raciocínio poderia ser estendido para as classes dominantes,<br />
que nunca souberam elaborar politicamente seus interesses e<br />
por isso nunca apresentaram um projeto, uma ideia de país, com que<br />
convocar (e subordinar) os demais grupos e setores sociais.<br />
Tal modo de pensar foi importante para que se aperfeiçoasse o entendimento<br />
da revolução burguesa no Brasil e da trajetória seguida<br />
pelo país rumo à modernidade. Tornou-se uma das decisivas influências<br />
da historiografia e do modo brasileiro de pensar o Brasil.<br />
Caio Prado Jr. tratou em um registro forte, absolutizado, a ideia de<br />
que o passado não termina nunca de terminar, o que o levou, por<br />
exemplo, a dar pouca atenção às transformações ocorridas na sociedade<br />
brasileira a partir de 1930. Foi bastante criticado por ter empreendido<br />
análises que insistiram exageradamente no prolongamento<br />
do capitalismo mercantil, de base colonial, no país. Não há em seus<br />
escritos a consideração da afirmação industrial na economia brasileira,<br />
como se o capital tivesse parado no tempo. Sequer trabalharia a hipótese<br />
da industrialização retardatária, com a qual teria podido equacionar<br />
o tema. O Brasil, para ele, mesmo depois de 1964, permanece<br />
ancorado no passado, capitalista com certeza, desde sempre, mas sem<br />
pujança industrial e sem capitalização radical do mundo agrário. Com<br />
isso, não faltariam críticas e registros ao que se chamou de seu “marxismo<br />
estranho” (SANTOS, 2001).<br />
Há, de fato, uma limitação em seu modo de conceber o desenvolvimento<br />
capitalista no Brasil. Vista em grande angular, porém, sua<br />
concepção teve a vantagem de acentuar (de forma unilateral, digamos<br />
assim) o peso do passado na história brasileira. Ofereceu um retrato<br />
do Brasil que desautorizava qualquer tipo de ilusão ufanista, qualquer<br />
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153
idealização ou simplificação analítica, funcionando como um alerta<br />
para algumas de nossas dificuldades.<br />
Não estaria Caio Prado, com ela, querendo enfatizar que, no Brasil,<br />
dada a falta de uma subjetividade política consistente, o político não<br />
poderia funcionar como fator de estruturação social e desfecho histórico?<br />
Que o país integra uma história feita mais por “fatos” que por<br />
escolhas e construções políticas deliberadas, mais por “processos” que<br />
por “projetos”? Sua ênfase no peso do passado indicaria, assim, que<br />
no Brasil moderno a condição periférica, de base colonial, entranhou-<br />
se em todas as práticas e instituições, condicionando a marcha mesma<br />
da modernização e tingindo de incoerência e imperfeição a lógica<br />
da acumulação capitalista, ao menos até certo trecho do caminho. O<br />
passado pesado entrelaçou-se com ela e deu origem a formas inusitadas<br />
de vida moderna, potencializando os efeitos da “desagregação<br />
política” dos movimentos populares e da precária subjetividade política<br />
das classes sociais.<br />
O fato de Caio Prado Jr. ter sido um intelectual marxista certamente<br />
facilita o entendimento dessas suas hipóteses de trabalho e de seu estilo<br />
como historiador. O estudo do capitalismo como modo de produção,<br />
como sistema social e como Estado distingue o marxismo como teoria. Ao<br />
adotá-lo como ferramenta de trabalho, o intelectual foi inevitavelmente<br />
projetado para esse campo de observação, com o que ficou incentivado<br />
a buscar na história brasileira os elos e as contradições que a ativavam e<br />
a revelavam como um todo complexo, explicando seus padrões de desenvolvimento,<br />
seus atores, suas estruturas de funcionamento.<br />
Mas Caio Prado foi um marxista singular, e não somente “estranho”.<br />
Antes de tudo porque não se deixou modelar pelo marxismo realmente<br />
existente, pelo modo como a época dizia que se devia ser marxista.<br />
Especialmente entre os anos 1930 e 1940, e mesmo depois, o marxismo<br />
ainda não havia construído para si uma prática intelectual propriamente<br />
dita. Os marxistas eram, em sua maioria, revolucionários e<br />
políticos profissionais que também produziam teoria. Suas referências<br />
estavam na revolução, no partido político, na classe operária, no movimento<br />
comunista internacional, tudo o mais deveria ser um desdobramento<br />
disso. Faziam ciência, com certeza, mas também seguiam as<br />
orientações políticas e partidárias, concedendo algo a elas, ainda que<br />
fosse de forma protocolar.<br />
154 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 148-169 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
Quando Caio Prado publicou seu ensaio de interpretação materialista<br />
do Brasil (Evolução política do Brasil, que é de 1933), o ambiente<br />
intelectual não sugeria nem referendava a visão que ele começaria a<br />
adotar: a do desenvolvimento capitalista conservador e a do déficit de<br />
subjetividade política das classes subalternas. Muito ao contrário. Com<br />
a exceção do comunista italiano Antonio Gramsci (1891-1937), todos<br />
afirmavam a aproximação inevitável do socialismo como decorrência<br />
do desenvolvimento e da crise do capitalismo. Os subalternos, partido<br />
revolucionário e classe operária à frente, pareciam prontos para tomar<br />
o poder e reformar o mundo.<br />
Havia, portanto, no movimento comunista da época, mais confiança<br />
e empolgação do que realismo, rigor e distanciamento crítico, mais<br />
“otimismo da vontade” que “pessimismo da inteligência”, usando a<br />
bela expressão de Romain Rolland insistentemente empregada por<br />
Gramsci. É verdade que, com a ascensão triunfante do nazifascismo<br />
na Europa e no Japão, o clima de confiança cedeu. No Brasil, a derrota<br />
rápida da insurreição de 1935 ajudou a que se percebesse o quanto<br />
havia de ingenuidade nos marxistas. Mesmo assim, porém, o distanciamento<br />
crítico não chegou propriamente a preponderar, até porque<br />
também foi prejudicado por outros dois traços comuns do marxismo<br />
da época: o “obreirismo”, que supervalorizava a cultura e os procedimentos<br />
intelectuais de uma classe operária vista em abstrato, e o<br />
apego ritual e quase religioso às orientações recebidas dos centros oficiais<br />
do movimento comunista internacional. Tudo somado, entre as<br />
décadas de 1920 e 1940 irá se manifestar aquela característica que<br />
Leandro Konder brilhantemente chamou de “derrota da dialética”.<br />
Mais preocupado em “preparar os militantes políticos para a aceitação<br />
disciplinada das palavras de ordem emanadas da direção” (p. 44), o<br />
marxismo predominante perderia sua dimensão dialética e terminaria<br />
por ser praticado de modo tosco, sem vigor teórico (KONDER, 1988,<br />
p. 44-45).<br />
Seguindo à margem desse processo, Caio Prado Jr. adotaria um<br />
marxismo muito pessoal, que de algum modo o imunizou contra as<br />
tendências gerais. Foi sempre inimigo declarado do uso mecânico e<br />
doutrinarista de esquemas revolucionários para “enquadrar” os fatos<br />
brasileiros, como se fosse possível transpor para os trópicos, sem mais<br />
nem menos, elaborações válidas para outros contextos históricos ou<br />
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como se fosse procedimento metodológico válido construir e manusear<br />
conceitos a priori, sem raiz na observação criteriosa dos fatos.<br />
Em sua obra, aliás, não há discussão doutrinária ou embates em torno<br />
dos textos clássicos do marxismo. A história – a realidade social em<br />
seu vir-a-ser – sempre foi para ele mais importante. Uma conhecida<br />
passagem de A revolução brasileira (publicado em 1966) é exemplar<br />
de seu modo de pensar:<br />
No Brasil, talvez mais que em outro lugar, a teoria da revolução, na<br />
qual direta ou indiretamente, deliberada ou inadvertidamente, se inspira<br />
todo pensamento brasileiro de esquerda, e que forneceu mesmo<br />
os lineamentos gerais de todas as reformas econômicas fundamentais<br />
propostas no Brasil, a teoria marxista da revolução se elaborou sob o<br />
signo de abstrações, isso é, de conceitos formulados a priori e sem<br />
consideração adequada dos fatos; procurando-se posteriormente, e<br />
somente assim – o que é o mais grave – encaixar nesses conceitos a<br />
realidade concreta. Ou melhor, adaptando-se aos conceitos aprioristicamente<br />
estabelecidos, e de maneira mais ou menos forçada, os fatos<br />
reais (PRADO JR., 1978, p. 33).<br />
Não há confiança e empolgação em suas análises, por mais que ele<br />
também tenha sido seduzido pela revolução que ocorria na União<br />
Soviética e por mais que tenha estabelecido relações regulares e bastante<br />
disciplinadas com o Partido Comunista Brasileiro. Ao contrário,<br />
há nele muita prudência prospectiva e muito realismo político. A “teorização<br />
às avessas que vai dos conceitos aos fatos e não inversamente”<br />
pesaria como uma bola de chumbo sobre as esquerdas do país,<br />
impedindo-as de alcançar formulações que estivessem efetivamente<br />
sintonizadas com as situações concretas:<br />
A política revolucionária ficou exposta ao sabor das circunstâncias<br />
imediatas, oscilando continuamente entre os extremos do sectarismo<br />
e do oportunismo, e sem uma linha precisa capaz de orientar seguramente,<br />
em cada momento ou situação, a ação revolucionária (PRADO<br />
JR., 1978, p. 34).<br />
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Também por isso, seu relacionamento com o partido seria quase<br />
sempre polêmico, repleto de divergências e discrepâncias teóricas<br />
substantivas, como já foi assinalado por diversos estudiosos do tema<br />
(SANTOS, 2001; RICUPERO, 2000; REGO, 2000; SECCO, 2008).<br />
2 SER iNtELECtuAL E mARxiStA<br />
A postura de Caio Prado Jr. como marxista e como comunista esclarece<br />
importantes traços de sua biografia e de sua obra historiográfica.<br />
Oferece-nos uma ótima oportunidade para dar destaque a alguns dilemas<br />
do intelectual e particularmente do intelectual marxista no Brasil,<br />
do homem de ideias que se projeta para o campo da atuação política.<br />
Mas o que é o intelectual marxista, que traços o particularizam no<br />
universo cultural?<br />
1. Antes de tudo, o intelectual marxista vale-se de um método de investigação,<br />
de uma perspectiva metodológica: a totalidade concreta, a<br />
historicidade dialética, perspectiva que Marx assimilou da filosofia de<br />
Hegel e desenvolveu em sentido materialista. O marxismo é uma teoria<br />
que persegue o alcance de “sínteses” por meio de um trabalho de<br />
unificação das múltiplas determinações que organizam os processos<br />
sociais. O tratamento do real como um todo complexo e articulado faz<br />
com que o marxista rejeite a unilateralidade, o esquematismo e a simplificação.<br />
Para ele, o ser social é um produto humano, historicamente<br />
determinado, complexo e contraditório, que precisa ser interpelado<br />
como um todo. Causalidades simples tornam-se assim tão precárias<br />
quanto o determinismo mecânico, quer dizer, a tentativa de fazer com<br />
que tudo derive de uma única determinação, seja ela a economia, a<br />
política, as ideias ou a tecnologia, por exemplo. As causalidades, na<br />
verdade, traduzem-se no marxismo como interações dialéticas, que<br />
devem ser apreendidas historicamente. O modo de produção (a economia)<br />
é um decisivo fator de determinação, mas não é o único fator<br />
com potência explicativa. Nem o único, nem necessariamente o mais<br />
importante. Forças não econômicas jogam um peso igualmente decisivo<br />
na história, a começar da política, seja como ação política seja<br />
como superestrutura e institucionalidade política.<br />
Para o marxismo, o pensamento se afirma enquanto movimento,<br />
sendo, portanto, sempre incompleto: não está vazio de verdade, mas<br />
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não detém toda a verdade. A razão procede por sucessivas aproximações<br />
e alcança verdades que são sempre parciais e provisórias. Por<br />
isso, o marxista valoriza a dúvida, a incerteza, a necessidade de rever<br />
sempre o que se considera descoberto ou conhecido. Ao mesmo tempo,<br />
recusa a ideia de que a ciência pode tudo, que é a única forma de<br />
saber, tão perfeita que dispensaria até mesmo a arte, a sensibilidade, o<br />
conhecimento espontâneo, a criatividade, a imaginação, a religiosidade<br />
e especialmente a observação criteriosa dos fatos.<br />
2. Ser um intelectual marxista é portanto, em segundo lugar, empregar<br />
a perspectiva da totalidade concreta para investigar a realidade com<br />
o máximo rigor e objetividade, valorizando o conhecimento em si.<br />
O pensamento crítico dialoga permanentemente com a realidade:<br />
busca compreendê-la, alcançá-la por inteiro, reunificá-la. É desafiado<br />
por ela. Por isso mesmo, pode ser mais ou menos favorecido pelos arranjos<br />
sociais e pela cultura prevalecente em cada época histórica. Isto<br />
significa recusar os determinismos sedutores, com suas causalidades<br />
rígidas, e dar atenção dedicada ao incessante jogo de determinações<br />
recíprocas entre forças desiguais e contraditórias. A realidade somente<br />
pode ser compreendida se for pensada como processo, movimento,<br />
contradição, unidade do diverso. No fundo, tudo está ligado a tudo<br />
o tempo todo, e a astúcia do pensamento é perseguir o movimento<br />
que articula, aproxima e afasta as partes: os fluxos, as determinações<br />
(NOGUEIRA, 2005).<br />
3. O intelectual marxista persegue o conhecimento e a verdade do<br />
real, mas faz isso associado a uma proposta de intervenção e a um ideal<br />
de transformação social. Assimila o marxismo como uma teoria política<br />
em um duplo sentido: está sempre em busca da tradução política daquilo<br />
que é obtido pelo conhecimento crítico e vê a ação política como<br />
eixo estruturador da vida em sociedade.<br />
Ao longo do século XX, a exacerbação mecanicista do determinismo<br />
econômico tendeu, durante décadas, a congelar a política na esfera<br />
“determinada” das superestruturas, com o correspondente cancelamento<br />
da dimensão do sujeito e da vontade. Houve bastante menosprezo<br />
pela teorização sistemática da política e do Estado. O marxismo<br />
ficou assim em dificuldades para acompanhar as mudanças imponentes<br />
que apareceram na esfera mesma do político (generalização do<br />
sufrágio, socialização da política, democracia de massa, novos sujeitos<br />
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políticos). Ao invés de buscarem uma reconstrução teórica que superasse<br />
o caráter incompleto do pensamento de Marx, muitos de seus<br />
intérpretes procuraram simplesmente usar os fundamentos teóricos<br />
de Marx para ativar estratégias políticas. O dogmatismo paralisou a<br />
dialética marxista e fez com que o marxismo – bem como todos os<br />
seus produtos tópicos (teoria da revolução, teoria do Estado, teoria do<br />
partido) – parasse no tempo, deixasse de acompanhar e assimilar as<br />
transformações que se foram processando na realidade social do capitalismo.<br />
Como escreveu Caio Prado, “a longa fase de acentuado dog -<br />
matismo que imperou em todo pensamento marxista, como fruto dos<br />
graves erros do estalinismo”, somada às características culturais brasileiras,<br />
pesaram negativamente, “embaraçando qualquer tentativa de<br />
verdadeiro e fecundo trabalho de elaboração científica”. Os prejuízos<br />
consolidaram-se “em concepções rígidas, verdadeiros dogmas que se<br />
tornaram altamente respeitáveis” (PRADO JR., 1978, p. 34).<br />
4. O ideal de transformação social projeta o marxismo para o terreno<br />
da revolução social. O intelectual marxista, porém, não pensa<br />
a revolução como um momento mágico, localizado no tempo, com<br />
data certa para começar e ser concluído. Trata-se essencialmente de<br />
um processo de lutas, tensões, conflitos e negociações, no decorrer<br />
do qual se acumulam forças que projetam reformas estruturais e<br />
se empenham para sua implementação. Há uma mola processual<br />
e “consciente” nas revoluções imaginadas pelo marxismo. Ainda que<br />
possam conhecer momentos de explosão popular ou de aceleração<br />
das mudanças, o que conta é o longo prazo, aquilo que pode haver<br />
de transformação estrutural e sustentável da vida social. E ainda que<br />
o “acaso” e a espontaneidade social possam jogar algum peso na dinâmica<br />
reformadora das revoluções, o que conta é a capacidade que<br />
os sujeitos sociais têm de produzir organização política e projetos de<br />
transformação social. A revolução concebida pelos marxistas, assim,<br />
não é a passagem abrupta de um sistema social a outro, mas sim uma<br />
sucessão de reformas de variada intensidade e no decorrer das quais<br />
se encadeiam rupturas nas estruturas sociais, nas relações econômicas,<br />
no Estado e no equilíbrio recíproco das diferentes classes e categorias<br />
sociais. Ela se distingue claramente de uma “insurreição”, que se<br />
vale do emprego da força para derrubar um governo ou um regime.<br />
Seu sentido real e profundo aponta bem mais para a transformação<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 148-169 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
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abrangente, processo que pode ser estimulado por insurreições mas<br />
que necessariamente não o é: “O significado próprio se concentra na<br />
transformação, e não no processo imediato através de que se realiza”,<br />
na formulação precisa de Caio Prado (1978, p. 2).<br />
Precisamente por isso, revolução e reforma são termos que se aproximam<br />
e se completam.<br />
5. Isso significa que o intelectual marxista atua com os olhos nos<br />
processos de democratização social e na democracia política como<br />
princípio de governo e deliberação. Seu foco não é exclusivamente a<br />
revelação do que há de autoritarismo, opressão e miséria social nos<br />
sistemas capitalistas e o combate ao caráter classista do poder do Estado.<br />
Maior relevância é depositada na compreensão do processo por<br />
meio do qual se possam atingir a recomposição e o alargamento do<br />
sistema político, a incorporação e a integração social, a expansão e a<br />
consolidação da democracia em sentido amplo. Sua agenda inclui,<br />
por isso, tanto uma reflexão sobre a sociedade em que se vive e sobre<br />
seus sujeitos quanto uma reflexão sobre o sistema de regras que<br />
devem ser adotadas para que se possa disputar democraticamente o<br />
poder. O marxismo assimila o tema da representação política. Faz isso<br />
por meio da crítica da ideia liberal de representação, problematizando-a<br />
por seu caráter restrito e limitado, mas também pela rejeição de<br />
qualquer ideia imperativa ou vinculada de representação, que veja o<br />
representante político como uma extensão mecânica e passiva dos interesses<br />
de classe. Sua teoria da representação democrática incorpora<br />
a participação social e vê nela um decisivo fator de revigoramento e<br />
ampliação do sistema representativo.<br />
Para o intelectual marxista, a democracia é também democratização,<br />
processo de disseminação progressiva de valores, práticas, instituições<br />
e espaços de deliberação democrática. Sua ideia de democracia,<br />
portanto, aceita a perspectiva do avanço processual por meio de<br />
acúmulos e consolidações, que não eliminam lutas e antagonismos e<br />
pretendem ser obtidos de forma legal, conforme leis e constituições.<br />
Trata-se de uma ideia de democracia como recurso reformador, como<br />
critério de convivência e como valor universal, um bem a ser defendido<br />
e protegido.<br />
Caio Prado Júnior foi um intelectual marxista em todos esses sentidos.<br />
Ressalto aqui, para com ela concordar, a principal hipótese da<br />
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pesquisa desenvolvida por Bernardo Ricupero: “Boa parte do interesse<br />
da obra de Caio Prado Jr. provém precisamente de sua associação<br />
com o marxismo”. Ele “não é qualquer marxista do Brasil, mas verdadeiramente<br />
um marxista brasileiro, isto é, alguém que abre caminho<br />
para uma aproximação da teoria marxista com a realidade brasileira”<br />
(RICUPERO, 2000, p. 24). Sua obra representa a “nacionalização” do<br />
marxismo, a elaboração dessa teoria em interação com as condições<br />
específicas de nossa experiência histórico-social. Nele, as ideias se<br />
transformaram em “sentimento de uma realidade”, sentimento esse<br />
revelado “na paixão com que se voltou para dentro de seu país, não<br />
se encantando com a prática da imitação, tão comum na reflexão intelectual<br />
brasileira” (REGO, 2000, p. 23-24).<br />
Caio Prado relacionou-se com o marxismo como método da totalidade<br />
concreta, como teoria social e como teoria da ação, buscando<br />
atuar em prol de uma revolução que reestruturasse e democratizasse<br />
a sociedade brasileira. Travou conhecimento com a literatura marxista<br />
quase ao mesmo tempo em que se aproximou e aderiu ao Partido<br />
Comunista, em 1931. Ao final da juventude, ainda que sem alarde ou<br />
exacerbação verbal, rompeu com os limites políticos e ideológicos de<br />
sua classe de origem, interessou-se pelo socialismo e saiu em busca<br />
do Brasil e do mundo. Descobriu a pobreza, a miséria, as diferenças<br />
regionais, fatores que o impulsionaram para a militância comunista.<br />
“Eu era na realidade um burguês rico, de educação e visão europeia,<br />
acostumado ao conforto material. Ignorava até então a nossa realidade”,<br />
observou certa vez a Maria Cecília Naclério Homem. A partir de<br />
então, despertaria para os problemas brasileiros e para as soluções:<br />
Começou seu engajamento e o estudo sistemático do Brasil, adotando<br />
uma postura receptiva constante. Passou a trabalhar com o presente<br />
e o passado, em vista do futuro. Sua dimensão de história será muito<br />
mais ampla porque pretende transformá-la tanto pela produção escrita<br />
quanto pela própria participação dos acontecimentos políticos e culturais<br />
(apud D’INCAO, 1989, p. 47).<br />
Depois de aderir ao Partido Comunista Brasileiro, Caio Prado foi preso<br />
(em 1935, permanecendo na cadeia até 1937), viajou e fez contatos<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 148-169 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
161
com outros partidos, conheceu militantes de vários tipos e foi eleito<br />
deputado estadual em São Paulo (1947), cargo que abandonou quando<br />
o PCB teve o registro cassado, em 1948. Em 1943, juntamente com<br />
Monteiro Lobato e Arthur Neves, fundou a Editora Brasiliense e, nos<br />
anos 1950, a <strong>Revista</strong> Brasiliense, publicação que teria extraordinária importância<br />
na história política do Brasil. Nela, Caio publicou numerosos<br />
artigos históricos e políticos, muitos dos quais voltados para a estrutura<br />
agrária brasileira. A revista contribuiu para a formação de inúmeros intelectuais<br />
durante os anos em que circulou (de 1955 a 1964).<br />
Caio Prado foi um militante, mas jamais se deixou constranger intelectualmente<br />
pelo PCB. Não permitiu que o partido exigisse dele algo<br />
mais que lealdade, nem aceitou que o partido postulasse a função<br />
de “administrar” o impulso criativo e crítico do intelectual, fosse uma<br />
espécie de dono e gestor do conhecimento. Levou a sério a perspectiva<br />
de que atitude crítica e autonomia são requisitos essenciais para<br />
que o intelectual possa funcionar como usina de ideias, como agente<br />
cultural, e possa, desse modo, colaborar para que um partido atue<br />
adequadamente, isto é, fazendo escolhas e apostas corretas, desenhando<br />
programas factíveis, aprimorando seus cálculos. Terminou por<br />
ser, talvez sem plena consciência disso, um fator de contestação no<br />
interior do movimento comunista, contestação que só não repercutiu<br />
mais intensamente devido ao desinteresse que Caio Prado teve pelas<br />
disputas internas e pela luta ideológica que se processava no partido.<br />
Em nenhum momento chegou a integrar a direção partidária e nunca<br />
chegou a ser propriamente valorizado pelos comunistas.<br />
Seu relacionamento com o PCB sempre pressupôs que o partido não<br />
conseguia fazer escolhas políticas adequadas porque teorizava a partir<br />
de modelos e esquemas preconcebidos (fragilmente universalizados)<br />
e não de elaborações que fossem capazes de interagir com o processo<br />
real, traduzi-lo corretamente, compreendendo suas determinações e<br />
empregando-as para fazer análise política e projetar a revolução. Seu<br />
convívio com o PCB foi sempre eminentemente polêmico: vieram<br />
dele algumas das mais contundentes críticas à teoria e à prática que<br />
prevaleciam no partido. A revolução brasileira (1966) foi o ápice disso.<br />
Caio Prado Jr. não rompeu com o partido, nem dele se afastou.<br />
Foi uma situação atípica, especialmente se se levar em conta que as<br />
direções do PCB não costumavam ser tolerantes com aqueles que<br />
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atuavam com autonomia e espírito crítico aguçado. O fato reforça a<br />
tese de que o intelectual e o partido chegaram a uma “solução de<br />
acomodação” (RICUPERO, 2000, p. 128). Ao partido certamente interessava<br />
o vínculo de Caio Prado e o intelectual optou por aceitar<br />
certas restrições e críticas para não ser um “independente diletante”.<br />
No fundo, é provável que não tenha vislumbrado a possibilidade de<br />
ser um marxista tout-court fora desse ambiente, no qual seria possível<br />
pensar e agir como parte de um movimento potencialmente capaz de<br />
levar à prática certas soluções cogitadas teoricamente. Tratou o PCB<br />
como um partido que “historicamente sempre defendeu certa categoria<br />
social, o proletariado, além de ser um partido em que não entra o<br />
interesse pessoal” (apud SECCO, 2008, p. 50).<br />
Afinal, também o intelectual que não deseje ser diletante necessita<br />
de uma referência coletiva para poder ser produtivo. Isso significa<br />
encontrar um difícil equilíbrio entre pensamento e ação, autonomia e<br />
compartilhamento, conhecimento e pedagogia. O PCB foi essa referência,<br />
do mesmo modo que a <strong>Revista</strong> Brasiliense funcionou como um<br />
“segundo” partido, a plataforma a partir da qual Caio Prado operou<br />
como intelectual. Ação e pensamento puderam assim conviver.<br />
3 iNtELECtuAiS E mARxiSmo HoJE<br />
A época é de crise e perda de prestígio do marxismo. Há quase um<br />
consenso a decretar a “morte de Marx”, que flutua paradoxalmente<br />
sobre uma realidade, o capitalismo globalizado, que repõe sem cessar<br />
a validade de muitas teses de Marx, sua capacidade de permanecer<br />
interpelando os termos da dinâmica social. O marxismo que se repõe<br />
hoje, porém, não é de modo algum a doutrina onisciente e fechada,<br />
autossuficiente e dogmática, que vicejou em outras épocas, mas<br />
sim uma teoria carregada de potência explicativa, plural e dialética. O<br />
marxismo não está morto, mas há algo morto no marxismo.<br />
É equivocada a afirmação de que o marxismo como teoria política<br />
foi somente insuficiência e dogma. Em seu interior, entre outras coisas,<br />
produziu-se também uma proposição teórica como a do italiano<br />
Antonio Gramsci, categoricamente voltada para a reconstrução da<br />
abordagem marxista do Estado e da política, para o estabelecimento<br />
dos fundamentos de uma “teoria ampliada do Estado”, assentada em<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 148-169 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
163
uma inovadora teoria da hegemonia e da sociedade civil. Gramsci,<br />
além disso, caminhou ao largo da versão reducionista de Marx, com a<br />
qual se fixara uma quase absoluta dependência da construção social<br />
em relação à estrutura econômica. Superou tal versão, insistindo no<br />
reconhecimento de que o marxismo se singulariza por ser uma teoria que<br />
afirma, ao mesmo tempo, a autonomia relativa dos âmbitos da economia,<br />
da política, da ética e da cultura e a recíproca influência entre<br />
eles. Seu marxismo é uma teoria política que exclui o voluntarismo e<br />
o arbítrio (derivados da desconsideração dos condicionamentos econômicos)<br />
assim como o fatalismo e a subalternidade (resultantes da<br />
conversão da “determinação econômica” em “economicismo”).<br />
É preciso considerar também que as falhas e dificuldades teóricas<br />
do marxismo – suas insuficiências enquanto proposta científica – não<br />
decorreram de defeitos congênitos, epistemológicos ou ontológicos,<br />
inerentes à própria teoria, mas derivaram, ao menos em parte, dos<br />
condicionamentos, impactos e desdobramentos do movimento comunista.<br />
São problemas políticos que têm a ver com os nexos entre teoria<br />
e movimento político e que, portanto, só podem ser resolvidos com a<br />
redefinição destes mesmos nexos: ou com sua superação, quer dizer,<br />
com sua reposição em bases completamente novas, ou com seu cancelamento<br />
em nome da plena autonomização da teoria.<br />
Pressionado pela própria história da teoria, pela crise do marxismo<br />
e pela desagregação dos partidos comunistas em praticamente todos<br />
os países, o intelectual marxista tornou-se um personagem em busca<br />
de reinserção e contagiado por uma espécie de crise de confiança. Ele<br />
ainda encontra impulso para se reproduzir em nossos dias? Ele ainda<br />
faz sentido, ainda é necessário? Que obstáculos encontra para se afirmar<br />
e se expandir?<br />
O intelectual marxista não tem mais como ser um homem de partido<br />
no sentido de estar formalmente integrado a uma organização<br />
política concreta. Ele certamente precisa ser partidário: tomar partido<br />
e pôr-se em defesa de uma parte da sociedade, a dos subalternos, a<br />
dos excluídos, explorados e humilhados. Mas não precisa ser necessariamente<br />
um militante partidário em sentido estrito, muito menos<br />
um dirigente ou um funcionário de partido. E isso por dois motivos.<br />
Primeiro, porque a nossa não parece ser mais uma época de partidos<br />
entendidos como veículos de transformação social. Os partidos atuais<br />
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são figuras burocráticas, dedicadas à disputa eleitoral e ao controle<br />
do poder. Não são entidades voltadas para a produção de cultura, de<br />
valores, de formas de identidade. Deixaram de ser canais de paixões<br />
políticas, dedicam-se somente a interesses. Segundo, porque o intelectual<br />
que opera nas condições do capitalismo globalizado precisa ser<br />
livre de injunções para poder ser intelectual. Dado o empobrecimento<br />
cultural dos partidos, o casamento entre eles e os intelectuais parece<br />
ser problemático, mais propenso a produzir dor que prazer.<br />
Mas os intelectuais, a rigor, só têm como se realizar na política e a<br />
partir da perspectiva da política. Afinal, política não é sinônimo de<br />
poder, nem de mundo dos profissionais da política, mas um campo<br />
em que se disputam ideias a respeito do viver coletivo e em que se<br />
aposta nas possibilidades de construir o social, planejar o futuro, tornar<br />
mais justa a convivência entre grupos e pessoas. O intelectual que<br />
não se coloca nessa perspectiva e se recusa a pensar o todo – que se<br />
fecha em sua especialização, em seu corporativismo – mantém-se em<br />
função subalterna.<br />
Os diferentes tipos de intelectuais críticos e democráticos, e entre<br />
eles os marxistas, enfrentam outro problema. É que a vida pública está<br />
hoje em crise. O Estado, a ideia de Estado, a dimensão ética e educativa<br />
do Estado, tudo isso está envolto em um profundo mal-estar.<br />
Assiste-se à intensificação do mercado e à valorização da sociedade<br />
civil contra o Estado. É uma época com pouca política, na qual os<br />
cidadãos não encontram respostas para seus problemas no sistema político,<br />
não confiam nele e preferem não olhar para ele. A própria polí tica<br />
é vista com desconfiança, especialmente se for identificada com Estado e<br />
vida coletiva.<br />
Os ambientes em que vivemos parecem “despolitizados”, vazios de<br />
perspectiva cívica, com reduzida noção do que é público. Nada dá<br />
muito sentido e expressão às comunidades em que nos inserimos e<br />
que nos orientam. Das organizações profissionais à comunidade política<br />
“nacional”, o clima é de desconforto e melancolia. Assistimos a uma<br />
complicada alteração nas formas mesmas com que cada um pensa a<br />
sua relação com o todo: com os demais, com o Estado, com a história,<br />
com o futuro. O trabalho intelectual ficou com seu eixo deslocado.<br />
Uma constatação pode nos ajudar a entender isso. Presenciamos a<br />
radicalização daquele “desencantamento do mundo” de que falava<br />
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Max Weber no início do século XX. Protagonizamos uma era de especialização,<br />
racionalização e profissionalização intensas, em que estão<br />
sendo roubadas as bases que fomentavam a reprodução do intelectual<br />
rebelde, que não se submete a rotinas institucionais, não aceita as<br />
divisões rígidas do trabalho e está sempre mergulhado em embates<br />
doutrinários. É uma era que reduziu dramaticamente a possibilidade<br />
objetiva de que se empreendam esforços teóricos totalizantes. No<br />
lugar do romantismo revolucionário, dos conflitos éticos e da paixão<br />
cívica, entraram em cena o cálculo criterioso, as carreiras bem planejadas,<br />
o pragmatismo institucional, o respeito aos cânones e ritos burocráticos.<br />
O saber especializado parece frear o impulso intelectual para<br />
alçar-se ao “universal”, à crítica abrangente dos sistemas, à proposição<br />
de novos desenhos de vida.<br />
A época é individualista e individualizadora. Fragmenta e diferencia<br />
sempre mais, exacerba direitos e interesses, faz com que as obrigações,<br />
os deveres, sejam vistos como fardo e ônus. Nela, as pessoas lutam<br />
por interesses e por identidade, e essas lutas não produzem mais<br />
vida coletiva, ainda que sejam justíssimas. São lutas que produzem<br />
tensão e efervescência, mas não conseguem se traduzir em formas<br />
mais avançadas de convivência.<br />
Paradoxalmente, a nossa também se tornou uma era de instituições<br />
e organizações, situação que reflete o estágio de complexidade social<br />
em que nos encontramos. Em boa medida, as instituições chamam<br />
para si as tarefas “pedagógicas” que antes cabiam aos intelectuais. As<br />
atividades intelectuais estão cada vez mais condicionadas por orientações<br />
políticas que se confundem com iniciativas organizacionais,<br />
com seus invólucros administrativos, seus arranjos e suas restrições. A<br />
sombra da burocracia agigantou-se. Cresceu o atrito entre a liberdade<br />
intelectual e a rotina institucionalizada.<br />
É uma época de muita informação e pouco conhecimento. Há muitas<br />
ideias no ar, mas não temos certeza se elas são mesmo ideias (formas<br />
novas e sistematizadas de reflexão sobre o mundo) ou somente<br />
informações um pouco mais articuladas. Mesmo no terreno das informações,<br />
travestidas ou não de ideias, a dispersão, o detalhe, o supérfluo<br />
e o imediatismo parecem ser a regra. Os efeitos da informatização repercutem<br />
aqui de forma intensa. À nossa frente, ergue-se um complexo<br />
e fragmentado sistema de comunicação, com suas inúmeras redes<br />
166 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 148-169 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012
de contatos, suas imagens e informações que explodem sem cessar,<br />
suas sempre novas tecnologias da inteligência, que no mínimo subvertem<br />
os modos “normais” de produzir e transmitir conhecimentos.<br />
Os intelectuais sempre foram peças-chave dos processos de construção<br />
e reprodução de hegemonias. Hoje, nos contextos globalizados,<br />
com suas redes sociais conectadas em tempo real por dispositivos comunicacionais<br />
que operam como artífices de imaginários, fantasias e<br />
“vontades coletivas”, a hegemonia já não flui como antes. Do mesmo<br />
modo, o intelectual sempre deteve o monopólio de trabalhar com<br />
a palavra, e hoje, nas sociedades da informação, todos trabalham com a<br />
palavra e exercem “funções intelectuais”. Estreita-se a especificidade<br />
do intelectual e muda seu papel social.<br />
Tudo isso faz com que o intelectual passe a encontrar enorme dificuldade<br />
de agir publicamente, de se afirmar e com isso de escapar do<br />
cerco que suas próprias instituições o submetem. Todos ficam como<br />
que magnetizados pela indústria cultural, que é sempre mais indústria<br />
do entretenimento.<br />
Expandiu-se o campo de atuação dos intelectuais, seja porque cresceram<br />
as oportunidades de obter audiência, seja porque se expandiu<br />
a produção de conhecimentos, seja porque aumentaram os meios de<br />
difusão de ideias. Os intelectuais certamente não ficaram mais poderosos,<br />
nem estão mais influentes, mas sem eles os sistemas não funcionam.<br />
Quanto mais se expandem os meios de informação e comunicação,<br />
aliás, mais necessários e visíveis ficam os intelectuais. Tendo de responder<br />
a tantas demandas tópicas e especializadas, os intelectuais já não<br />
têm mais como se ocupar daquilo que os tipifica como intelectuais:<br />
o esforço de totalização.<br />
O intelectual público não morreu. Bem ao contrário, sua existência é<br />
uma exigência histórica e não tem como ser sumariamente descartada.<br />
O momento hoje é de certo refluxo, de certa dificuldade, mas ainda<br />
fornece bastante espaço para que nos dediquemos a pensar com autonomia,<br />
a rever nossos procedimentos e nossas apostas. Fazendo isso,<br />
abrimos caminho, mais uma vez, para a reiteração da figura do intelectual<br />
público.<br />
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167
CoNSiDERAÇoES fiNAiS<br />
O modo marxista de pensar e de proceder intelectualmente continua<br />
a ser indispensável. O mundo globalizado é radicalmente diferenciado<br />
e fragmentado. Não pode ser explicado e compreendido por<br />
abordagens que tenham pretensões esquemáticas, excessivamente categóricas<br />
ou dogmáticas. O predomínio unilateral da autoridade dos<br />
especialistas empurra o cidadão para os bastidores da decisão política.<br />
Corrói e enfraquece a democracia. O pensar em termos complexos e<br />
dialéticos, portanto, funciona como uma poderosa alavanca de compreensão:<br />
sua capacidade de totalização devolve sentido ao mundo e<br />
ao viver coletivo.<br />
A assimilação desse modo de pensar está na base tanto de um<br />
melhor entendimento da política, do Estado e da ação de governar<br />
quanto de uma reflexão a respeito dos recursos e caminhos de que<br />
dispomos para que se viabilize algum tipo de recuperação democrática<br />
da política. Isto quer dizer que pensaremos melhor a política se<br />
conseguirmos entendê-la como uma atividade e um espaço que se<br />
inserem em totalidades concretas que precisam ser analisadas e compreendidas.<br />
Veremos, assim, que a política não se rende nem se submete<br />
ao econômico, ao cálculo ou ao imediato, e só se realiza efetivamente<br />
por meio de sujeitos e em contato aberto com a democracia, a<br />
história e a vida comunitária. Para falar com os termos de Caio Prado,<br />
qualquer teoria da revolução ou qualquer projeto de reforma democrática,<br />
“para ser algo de efetivamente prático na condução dos fatos,<br />
será simplesmente – mas não simplisticamente – a interpretação da<br />
conjuntura presente e do processo histórico de que resulta” (PRADO<br />
JR., 1978, p. 15).<br />
Clássicos como Caio Prado Jr., ao serem revisitados, nos ajudam<br />
mais uma vez, agora não a iluminar e explicar nosso passado, mas a<br />
nos sugerir pistas com que avançar rumo ao futuro.<br />
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REfERêNCiAS<br />
D’INCAO, M. A. (Org.). História e ideal: ensaios sobre Caio Prado Jr. São<br />
Paulo: Brasiliense: Unesp, 1989.<br />
KONDER, L. A derrota da dialética: a recepção das idéias de Marx no Brasil,<br />
até o começo dos anos trinta. Rio de Janeiro: Campus, 1988.<br />
NOGUEIRA, M. A. Em defesa da política. 2. ed. São Paulo: Ed. Senac São<br />
Paulo, 2005.<br />
PRADO JÚNIOR, C. Evolução política do Brasil. 10. ed. São Paulo:<br />
Brasiliense, 1977.<br />
PRADO JÚNIOR, C. Formação do Brasil Contemporâneo. 10. ed. São Paulo:<br />
Brasiliense, 1970.<br />
PRADO JÚNIOR, C. A revolução brasileira. 6. ed. São Paulo: Brasiliense,<br />
1978.<br />
REGO, R. M. L. Sentimento do Brasil: Caio Prado Jr.: continuidade e<br />
mudanças no desenvolvimento da sociedade brasileira. Campinas: Ed. da<br />
Unicamp, 2000.<br />
RICUPERO, B. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil. São<br />
Paulo: Ed. 34, 2000.<br />
SANTOS, R. Caio Prado Jr. na cultura política brasileira. Rio de Janeiro:<br />
Mauad: FAPERJ, 2001.<br />
SECCO, L. Caio Prado Júnior: o sentido da revolução. São Paulo: Boitempo,<br />
2008.<br />
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 148-169 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012<br />
169
NÚmERoS ANtERioRES<br />
EDiÇÃo 15<br />
EDiÇÃo 16<br />
170<br />
A DESoRDEm Do muNDo<br />
André bueno<br />
ESCutA, ARtE E SoCiEDADE A PARtiR Do mÚSiCo ENfuRECiDo<br />
Daniel belquer<br />
EDuCAÇÃo SuPERioR No bRASiL: o REtoRNo PRivADo E AS REStRiÇÕES<br />
Ao iNGRESSo<br />
márcia marques de Carvalho<br />
APRENDizAGEm PoR PRobLEmAtizAÇÃo<br />
Pedro Demo<br />
A CiDADANiA AtRAvÉS Do ESPELHo:<br />
Do EStADo Do bEm-EStAR ÀS PoLÍtiCAS DE ExCEÇÃo<br />
Sylvia moretzsohn<br />
REPERCuSSÕES Do iCmS ECoLÓGiCo NA GEStÃo AmbiENtAL<br />
Em mAto GRoSSo, bRASiL<br />
Cristina Cuiabália Rodrigues Pimentel<br />
Sueli Ângelo furlan<br />
A HoRA DE iR PARA A ESCoLA<br />
Daniel Santos<br />
CRiAtiviDADE<br />
marsyl bulkool mettrau<br />
ENtRE o DRAmA E A tRAGÉDiA: PENSANDo oS PRoJEtoS SoCiAiS DE<br />
DANÇA Do Rio DE JANEiRo<br />
monique Assis<br />
Nilda teves<br />
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EDiÇÃo 17<br />
EDiÇÃo 18<br />
GiNÁStiCA ESCoLAR Como DiSPoSitivo bioPoLÍtiCo-PEDAGÓGiCo:<br />
umA ANÁLiSE DA RELAÇÃo ENtRE EDuCAÇÃo, SAÚDE E moRALiDADE<br />
Em fERNANDo DE AzEvEDo<br />
murilo mariano vilaça<br />
CiDADE mARAviLHoSA: ENCoNtRoS E DESENCoNtRoS NoS PRoJEtoS<br />
DE REmoDELAÇÃo uRbANA DA CAPitAL ENtRE 1902 E 1927<br />
José Cláudio Sooma Silva<br />
A CAPtuRA Do GoSto Como iNCLuSÃo SoCiAL NEGAtivA: PoR umA<br />
AtuALizAÇÃo CRÍtiCA DA ÉtiCA utiLitARiStA<br />
marco Schneider<br />
iNovAÇÃo, tECNoLoGiAS SoCiAiS E A PoLÍtiCA DE CiêNCiA E tECNoLoGiA<br />
Do bRASiL: DESAfio CoNtEmPoRÂNEo<br />
marcos Cavalcanti<br />
André Pereira Neto<br />
RECENtES DiLEmAS DA DEmoCRACiA E Do DESENvoLvimENto No bRASiL:<br />
PoR QuE PRECiSAmoS DE mAiS muLHERES NA PoLÍtiCA?<br />
marlise matos<br />
tRAbALHo iNfANtiL No bRASiL: Rumo À ERRADiCAÇÃo<br />
Ricardo Paes de barros<br />
Rosane da Silva Pinto de mendonça<br />
o DEbAtE PARLAmENtAR SobRE o PRoGRAmA boLSA fAmÍLiA No<br />
GovERNo LuLA<br />
Anete b. L. ivo<br />
José Carlos Exaltação<br />
EDuCAÇÃo PARA A SuStENtAbiLiDADE: EStRAtÉGiA PARA EmPRESAS Do<br />
SÉCuLo xxi<br />
Deborah munhoz<br />
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171
EDiÇÃo 19<br />
172<br />
fAGuLHAS Do AutoRitARiSmo No futEboL: EmbAtES SobRE o EStiLo<br />
DE JoGo bRASiLEiRo Em tEmPoS DE DitADuRA miLitAR (1966-1970)<br />
Euclides de freitas Couto<br />
JuvENtuDES, vioLêNCiA E PoLÍtiCAS<br />
PÚbLiCAS No bRASiL: tENSÕES ENtRE o<br />
iNStituÍDo E o iNStituiNtE<br />
Glória Diógenes<br />
A mÁQuiNA moDERNA DE JoAQuim CARDozo<br />
manoel Ricardo de Lima<br />
UM CONVITE À LEITURA<br />
Gabriel Cohn<br />
CAio PRADo JR. Como iNtÉRPREtE Do bRASiL<br />
bernardo Ricupero<br />
AS RAÍzES Do bRASiL E A DEmoCRACiA<br />
brasilio Sallum Jr.<br />
GiLbERto fREYRE E SEu tEmPo: CoNtExto iNtELECtuAL<br />
E QuEStÕES DE ÉPoCA<br />
Elide Rugai bastos<br />
ENtRE A ECoNomiA E A PoLÍtiCA – oS CoNCEitoS DE PERifERiA<br />
E DEmoCRACiA No DESENvoLvimENto DE CELSo fuRtADo<br />
vera Alves Cepêda<br />
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173
174<br />
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um canal plural para a disseminação do conhecimento e o debate<br />
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e) palavras-chave – máximo seis;<br />
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ABNT, NBR 6023/2002 e NBR 14724/2002;<br />
g) citações no artigo conforme NBR 10520/2001.<br />
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separados do texto com indicação dos locais nos quais devem ser inseridos.<br />
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direta. As imagens devem ser enviadas em alta definição (300 dpi,<br />
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principais dados sobre o autor: titulação acadêmica, cargo ocupado,<br />
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175
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siglas de instituições ou projetos devem vir por extenso. Ex.: Pontifícia<br />
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linhas, fonte Times New Roman, tamanho 10.<br />
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em ordem alfabética e cronológica, de acordo com o sobrenome do(s)<br />
autor(es) que, em caso de repetição, deve(m) ser sempre citado(s).<br />
REfERêNCiAS bibLioGRÁfiCAS – ExEmPLoS<br />
176<br />
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LivRoS<br />
BAUDRILLARD, J. A troca simbólica e a morte. São Paulo: Loyola, 1976.<br />
BAUDRILLARD, J. A transparência do mal: ensaios sobre os fenômenos<br />
extremos. Campinas: Papirus, 1990.<br />
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CAPÍtuLoS DE LivRoS<br />
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Tratado de nomadologia: a máquina de guerra.<br />
In: DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São<br />
Paulo: Ed. 34, 1980. v. 5. p.14-110.<br />
LYOTARD, J.F. Capitalismo energúmeno. In: CARRILHO, Manuel Maria (Org.).<br />
Capitalismo e esquizofrenia: dossier Anti-Édipo. Lisboa: Assírio & Alvim,<br />
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manter a ideia de bem público? Educação & Sociedade, Campinas, v. 24, n.<br />
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Rio de Janeiro.<br />
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Educação Básica (SAEB): 1995, 1999, 2001, 2005. Brasília, DF.<br />
iNtERNEt<br />
INEP. Sinopses estatísticas da educação básica: 1994 a 2005. Disponível<br />
em: . Pesquisado em jan. 2012.
Esta revista foi composta nas tipologias zapf Humanist 601 bt, em<br />
corpo 10/9/8,5, e itC officina Sans, em corpo 26/16/9/8<br />
e impressa em papel off-set 90g/m 2