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Síndrome de Clérambault - Saúde Mental

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Leituras / Readings<br />

54<br />

argumento básico para o seu romance “Le Rouge et le Noir”, e<br />

Flaubert inspirou-se no “caso Delamare” - a mulher adúltera <strong>de</strong><br />

um médico rural da Normandia cujo suicídio se tinha tornado<br />

famoso na região - para a personagem do seu livro imortal<br />

“Madame Bovary”. O escritor inglês Ian McEwan, que faz<br />

parte da geração literária <strong>de</strong> Martin Amis e Salman Rushdie,<br />

<strong>de</strong>u um passo mais além e baseou o seu romance “O fardo<br />

do Amor” (“Enduring love”) [1] num caso clínico <strong>de</strong> síndrome<br />

<strong>de</strong> <strong>Clérambault</strong> homoerótico publicado no British Journal of<br />

Psychiatry.<br />

Para não <strong>de</strong>siludir quem possa esperar o contrário, torna-se<br />

necessário ressalvar que, neste livro, McEwan parece menos<br />

interessado em mergulhar na mente perturbada do doente do<br />

que em analisar as repercussões que o aparecimento <strong>de</strong>ste<br />

tem na vida or<strong>de</strong>nada e equilibrada <strong>de</strong> John e Clarissa, um<br />

casal pacato <strong>de</strong> jovens universitários londrinos.<br />

Assim, somos testemunhas da <strong>de</strong>terioração progressiva do seu<br />

relacionamento e do aparecimento gradual dos fantasmas da<br />

<strong>de</strong>sconfiança e da insegurança, que vão surgindo a volta da<br />

paixão doentia que Parry, um jovem solitário e embebido em<br />

<strong>de</strong>lírios religiosos, sente por John.<br />

Como é habitual nesta síndrome, o quadro tem como ponto<br />

<strong>de</strong> partida um encontro casual: enquanto lancham num campo<br />

situado nas redon<strong>de</strong>zes <strong>de</strong> Londres, John e Clarissa são<br />

surpreendidos pela visão do aci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> um balão tripulado<br />

por uma criança e um adulto, em cujo resgate John participa,<br />

juntamente com outros espectadores, entre os quais se<br />

encontra Parry.<br />

Um olhar neutro <strong>de</strong> John torna-se para Parry em revelação <strong>de</strong><br />

uma paixão incomensurável, que interpreta como fazendo parte<br />

<strong>de</strong> um <strong>de</strong>sígnio divino, cujo objectivo é a salvação da alma <strong>de</strong><br />

John através do amor.<br />

John confessa ao leitor retrospectivamente:<br />

“Se soubesse na altura o que aquele olhar significava para ele<br />

e <strong>de</strong> que forma viria mais tar<strong>de</strong> a elaborá-lo e a construir em<br />

torno <strong>de</strong>le uma vida mental, não teria sido tão caloroso (…)<br />

Ele olhou para mim, sem conseguir falar. Estava tudo – <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

cada gesto a cada palavra – a ser armazenado, acumulado<br />

e empilhado, para servir <strong>de</strong> combustível ao longo Inverno da<br />

sua obsessão.” [2]<br />

O narrador assume <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início a perspectiva do John, que<br />

só abandona em três ocasiões, duas <strong>de</strong>las para mostrar as<br />

Saú<strong>de</strong> <strong>Mental</strong> <strong>Mental</strong> Health<br />

cartas que nos permitem dirigir um olhar ao interior da mente<br />

perturbada <strong>de</strong> Parry.<br />

Esta estratégia narrativa torna-nos testemunhas <strong>de</strong> primeira<br />

linha da evolução dos sentimentos do protagonista, um físico<br />

<strong>de</strong>dicado à crítica freelancer para publicações científicas, um<br />

racionalista aparentemente sem fissuras, que, ao contrário do<br />

que afirma no início do livro, termina por <strong>de</strong>scobrir que não tinha<br />

tão boas <strong>de</strong>fesas como acreditava perante a súbita instalação<br />

do irracional na sua vida.<br />

Suce<strong>de</strong>m-se, por parte <strong>de</strong> Parry, os comportamentos habituais<br />

nestes casos: telefonemas insistentes, mensagens <strong>de</strong>ixadas<br />

no gravador <strong>de</strong> chamadas, cartas que nos falam <strong>de</strong> uma “vida<br />

secreta” <strong>de</strong> palavras e gestos só perceptíveis para ele, esperas<br />

à porta da casa, o assédio e, finalmente, a inevitável tentativa<br />

<strong>de</strong> homicídio, quando Parry atinge a fase <strong>de</strong> rancor.<br />

Até ao fim do relato, este mantém a convicção <strong>de</strong>lirante <strong>de</strong><br />

que foi o objecto da paixão, John neste caso, quem começou<br />

a comunicação amorosa: “Foi você que <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ou isto.<br />

Agora não po<strong>de</strong> voltar as costas” [3] , acusa-o numa <strong>de</strong>terminada<br />

altura.<br />

McEwan é um subtil observador dos sentimentos humanos,<br />

como po<strong>de</strong> exemplificar o seguinte fragmento, em que John<br />

parece terminar por compreen<strong>de</strong>r a autêntica natureza do<br />

<strong>de</strong>lírio <strong>de</strong> Parry:<br />

“O seu amor não era <strong>de</strong>finido por influências externas, nem<br />

mesmo que partissem <strong>de</strong> mim. O seu mundo era <strong>de</strong>terminado<br />

a partir do interior, impelido por uma necessida<strong>de</strong> individual, e<br />

era por isso que conseguia manter-se intacto. Não havia nada<br />

que pu<strong>de</strong>sse provar que ele estava errado, nem era necessário<br />

nada que provasse que estava certo. Se lhe escrevesse uma<br />

apaixonada <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> amor, teria sido indiferente para ele<br />

(…) Iluminava o mundo com os seus sentimentos, e o mundo<br />

confirmava cada nova direcção que eles seguiam.” [4]<br />

2- Erotomania e <strong>Síndrome</strong> <strong>de</strong> <strong>Clérambault</strong><br />

Existe certa confusão entre o conceito <strong>de</strong> erotomania e a <strong>Síndrome</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>Clérambault</strong>. A primeira, também <strong>de</strong>nominada por<br />

Esquirol monomania erótica, foi incluída por este no seu famoso<br />

tratado “Des maladies mentales, considérées sous les rapports<br />

médicaux, hygiéniques et médico-legaux”, publicado em 1838,<br />

<strong>de</strong>ntro do capítulo das monomanias, isto é, aquelas formas <strong>de</strong><br />

loucura limitadas a uma só i<strong>de</strong>ia, sentimento ou instinto. [5]

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