Síndrome de Clérambault - Saúde Mental
Síndrome de Clérambault - Saúde Mental
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Leituras / Readings<br />
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argumento básico para o seu romance “Le Rouge et le Noir”, e<br />
Flaubert inspirou-se no “caso Delamare” - a mulher adúltera <strong>de</strong><br />
um médico rural da Normandia cujo suicídio se tinha tornado<br />
famoso na região - para a personagem do seu livro imortal<br />
“Madame Bovary”. O escritor inglês Ian McEwan, que faz<br />
parte da geração literária <strong>de</strong> Martin Amis e Salman Rushdie,<br />
<strong>de</strong>u um passo mais além e baseou o seu romance “O fardo<br />
do Amor” (“Enduring love”) [1] num caso clínico <strong>de</strong> síndrome<br />
<strong>de</strong> <strong>Clérambault</strong> homoerótico publicado no British Journal of<br />
Psychiatry.<br />
Para não <strong>de</strong>siludir quem possa esperar o contrário, torna-se<br />
necessário ressalvar que, neste livro, McEwan parece menos<br />
interessado em mergulhar na mente perturbada do doente do<br />
que em analisar as repercussões que o aparecimento <strong>de</strong>ste<br />
tem na vida or<strong>de</strong>nada e equilibrada <strong>de</strong> John e Clarissa, um<br />
casal pacato <strong>de</strong> jovens universitários londrinos.<br />
Assim, somos testemunhas da <strong>de</strong>terioração progressiva do seu<br />
relacionamento e do aparecimento gradual dos fantasmas da<br />
<strong>de</strong>sconfiança e da insegurança, que vão surgindo a volta da<br />
paixão doentia que Parry, um jovem solitário e embebido em<br />
<strong>de</strong>lírios religiosos, sente por John.<br />
Como é habitual nesta síndrome, o quadro tem como ponto<br />
<strong>de</strong> partida um encontro casual: enquanto lancham num campo<br />
situado nas redon<strong>de</strong>zes <strong>de</strong> Londres, John e Clarissa são<br />
surpreendidos pela visão do aci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> um balão tripulado<br />
por uma criança e um adulto, em cujo resgate John participa,<br />
juntamente com outros espectadores, entre os quais se<br />
encontra Parry.<br />
Um olhar neutro <strong>de</strong> John torna-se para Parry em revelação <strong>de</strong><br />
uma paixão incomensurável, que interpreta como fazendo parte<br />
<strong>de</strong> um <strong>de</strong>sígnio divino, cujo objectivo é a salvação da alma <strong>de</strong><br />
John através do amor.<br />
John confessa ao leitor retrospectivamente:<br />
“Se soubesse na altura o que aquele olhar significava para ele<br />
e <strong>de</strong> que forma viria mais tar<strong>de</strong> a elaborá-lo e a construir em<br />
torno <strong>de</strong>le uma vida mental, não teria sido tão caloroso (…)<br />
Ele olhou para mim, sem conseguir falar. Estava tudo – <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
cada gesto a cada palavra – a ser armazenado, acumulado<br />
e empilhado, para servir <strong>de</strong> combustível ao longo Inverno da<br />
sua obsessão.” [2]<br />
O narrador assume <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início a perspectiva do John, que<br />
só abandona em três ocasiões, duas <strong>de</strong>las para mostrar as<br />
Saú<strong>de</strong> <strong>Mental</strong> <strong>Mental</strong> Health<br />
cartas que nos permitem dirigir um olhar ao interior da mente<br />
perturbada <strong>de</strong> Parry.<br />
Esta estratégia narrativa torna-nos testemunhas <strong>de</strong> primeira<br />
linha da evolução dos sentimentos do protagonista, um físico<br />
<strong>de</strong>dicado à crítica freelancer para publicações científicas, um<br />
racionalista aparentemente sem fissuras, que, ao contrário do<br />
que afirma no início do livro, termina por <strong>de</strong>scobrir que não tinha<br />
tão boas <strong>de</strong>fesas como acreditava perante a súbita instalação<br />
do irracional na sua vida.<br />
Suce<strong>de</strong>m-se, por parte <strong>de</strong> Parry, os comportamentos habituais<br />
nestes casos: telefonemas insistentes, mensagens <strong>de</strong>ixadas<br />
no gravador <strong>de</strong> chamadas, cartas que nos falam <strong>de</strong> uma “vida<br />
secreta” <strong>de</strong> palavras e gestos só perceptíveis para ele, esperas<br />
à porta da casa, o assédio e, finalmente, a inevitável tentativa<br />
<strong>de</strong> homicídio, quando Parry atinge a fase <strong>de</strong> rancor.<br />
Até ao fim do relato, este mantém a convicção <strong>de</strong>lirante <strong>de</strong><br />
que foi o objecto da paixão, John neste caso, quem começou<br />
a comunicação amorosa: “Foi você que <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ou isto.<br />
Agora não po<strong>de</strong> voltar as costas” [3] , acusa-o numa <strong>de</strong>terminada<br />
altura.<br />
McEwan é um subtil observador dos sentimentos humanos,<br />
como po<strong>de</strong> exemplificar o seguinte fragmento, em que John<br />
parece terminar por compreen<strong>de</strong>r a autêntica natureza do<br />
<strong>de</strong>lírio <strong>de</strong> Parry:<br />
“O seu amor não era <strong>de</strong>finido por influências externas, nem<br />
mesmo que partissem <strong>de</strong> mim. O seu mundo era <strong>de</strong>terminado<br />
a partir do interior, impelido por uma necessida<strong>de</strong> individual, e<br />
era por isso que conseguia manter-se intacto. Não havia nada<br />
que pu<strong>de</strong>sse provar que ele estava errado, nem era necessário<br />
nada que provasse que estava certo. Se lhe escrevesse uma<br />
apaixonada <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> amor, teria sido indiferente para ele<br />
(…) Iluminava o mundo com os seus sentimentos, e o mundo<br />
confirmava cada nova direcção que eles seguiam.” [4]<br />
2- Erotomania e <strong>Síndrome</strong> <strong>de</strong> <strong>Clérambault</strong><br />
Existe certa confusão entre o conceito <strong>de</strong> erotomania e a <strong>Síndrome</strong><br />
<strong>de</strong> <strong>Clérambault</strong>. A primeira, também <strong>de</strong>nominada por<br />
Esquirol monomania erótica, foi incluída por este no seu famoso<br />
tratado “Des maladies mentales, considérées sous les rapports<br />
médicaux, hygiéniques et médico-legaux”, publicado em 1838,<br />
<strong>de</strong>ntro do capítulo das monomanias, isto é, aquelas formas <strong>de</strong><br />
loucura limitadas a uma só i<strong>de</strong>ia, sentimento ou instinto. [5]