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Tudo o que temos cá dentro”, de Daniel Sampaio

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Leituras<br />

A propósito <strong>de</strong>...<br />

”<strong>Tudo</strong> o <strong>que</strong> <strong>temos</strong> cá <strong>de</strong>ntro”,<br />

<strong>de</strong> <strong>Daniel</strong> <strong>Sampaio</strong><br />

J. Mar<strong>que</strong>s Teixeira<br />

Alguns livros contêm mais do <strong>que</strong> aquilo <strong>que</strong> se po<strong>de</strong> ler.<br />

Ou, pelo menos, outra coisa. Como nos palimpostos, um<br />

texto, recobre um outro, <strong>que</strong> uma leitura apressada nos<br />

po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar escapar. Assim é este livro <strong>de</strong> <strong>Daniel</strong> <strong>Sampaio</strong>.<br />

<strong>Tudo</strong> o <strong>que</strong> <strong>temos</strong> cá <strong>de</strong>ntro, é um livro em equilíbrio sobre<br />

o fio estendido da vida, em qual<strong>que</strong>r parte entre a memória<br />

<strong>que</strong> <strong>de</strong>vora e o es<strong>que</strong>cimento <strong>que</strong> apaga. Através <strong>de</strong>sta<br />

luta <strong>de</strong>sesperante entre a memória e o es<strong>que</strong>cimento,<br />

<strong>Daniel</strong> <strong>Sampaio</strong> coloca-nos face ao período mais doloroso<br />

da existência: os anos fugazes da adolescência.<br />

<strong>Tudo</strong> o <strong>que</strong> <strong>temos</strong> cá <strong>de</strong>ntro fala do amor, da família, da<br />

terapia. Das suas lutas, simultaneamente tão diferentes e<br />

tão semelhantes para continuarem a existir após a morte.<br />

Este último livro do autor abre com a seguinte<br />

expressão: “Hoje um doente disse-me: batem as portas,<br />

em tons <strong>de</strong> suicídios, como se fossem um corpo a cair<br />

do 9º andar...”.<br />

“ Batem as portas em tons <strong>de</strong> suicídio...” , uma expressão<br />

forte <strong>que</strong> liga o personagem ao narrador, o leitor à obra,<br />

um mote cujo <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>fine a trama <strong>de</strong>sta história.<br />

Uma história <strong>que</strong> se <strong>de</strong>senvolve em tríptico: uma vida<br />

<strong>de</strong> um jovem em crise, uma pessoa <strong>de</strong> um terapeuta<br />

<strong>de</strong>dicado e uma interacção contextuada entre os dois.<br />

Cada uma das partes remete para a outra dando<br />

sentido ao conjunto. A vivência das crises <strong>de</strong> um jovem<br />

na plenitu<strong>de</strong> da sua adolescência evoca memórias <strong>de</strong><br />

vivências <strong>de</strong> um terapeuta <strong>que</strong> se revê revendo; o<br />

pedido <strong>de</strong> ajuda <strong>de</strong> um pai perplexo perante um filho<br />

<strong>de</strong>sesperado formaliza um contexto profissional<br />

terapêutico <strong>que</strong> <strong>de</strong>fine os limites relacionais da<br />

interacção <strong>que</strong> se suce<strong>de</strong>, fazendo ligar a pessoa do<br />

terapeuta à sua competência técnica; a pulsão criadora<br />

<strong>de</strong> um escritor ficciona os <strong>de</strong>talhes da teia relacional<br />

dos personagens acabando por construir uma bela<br />

história sobre o amor. O amor na sua expressão mais<br />

dolorosa, por<strong>que</strong> distorcida pelas amarras <strong>de</strong> amores<br />

não resolvidos; o amor na sua expressão mais <strong>de</strong>dicada,<br />

revelado através da compaixão.<br />

A expressão forte sobre a qual esta obra gira é como<br />

<strong>que</strong> um tema <strong>de</strong> abertura <strong>de</strong> um concerto: “Batem as<br />

portas em tons <strong>de</strong> suicídio...”, uma expressão-frase,<br />

<strong>que</strong> à semelhança <strong>de</strong> uma frase musical, nos antecipa<br />

a composição, criando expectativas sobre o <strong>de</strong>senrolar<br />

da obra. Uma frase <strong>que</strong> é um gesto, um acto, <strong>que</strong> tem<br />

a precisão do movimento <strong>que</strong> se sente nas ressonâncias<br />

afectivas <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> nós. A <strong>que</strong> não se fica indiferente.<br />

A <strong>que</strong> o terapeuta não consegue ficar indiferente:<br />

“sentia-me com capacida<strong>de</strong> para esta nova situação?”,<br />

interrogação sábia <strong>de</strong> <strong>que</strong>m é capaz <strong>de</strong> se perturbar.<br />

A<strong>que</strong>la frase-tema é uma frase complexa, como <strong>que</strong> a<br />

anunciar a complexida<strong>de</strong> das vivências <strong>que</strong> se vão<br />

suce<strong>de</strong>r. “Batem as portas em tons <strong>de</strong> suicídio”... on<strong>de</strong><br />

colocamos nós o centro da tensão <strong>de</strong>sta frase? No<br />

som? No gesto suicidário? No <strong>que</strong> nos evoca em<br />

torrentes <strong>de</strong> sentimentos? Esta incerteza <strong>de</strong>ixada ao<br />

leitor, corre a par com a certeza da sua afirmação: a<br />

sensação <strong>de</strong> ansieda<strong>de</strong> mantém-se mesmo quando a<br />

narrativa continua. Este pulsar inicial do tema e a sua<br />

recorrência ao longo da obra, contribuem para a<br />

emergência <strong>de</strong> um sentimento <strong>de</strong> suspensão do<br />

movimento dramático. A sua simples repetição pelo<br />

narrador introduz um elemento transitivo entre o<br />

cliente e o seu terapeuta: a dor contida nesta frase a<br />

ambos afecta. “Sentia-me num caminho abandonado<br />

junto ao mar”... ouvimos do diálogo <strong>que</strong> o cliente<br />

mantinha consigo próprio, anunciando o medo, o<br />

<strong>de</strong>sespero, a perplexida<strong>de</strong>, expressão síntese <strong>de</strong> um<br />

sofrimento brutal; captado por este terapeuta atento<br />

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Leituras<br />

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e ecoado nas profun<strong>de</strong>zas da sua pessoa: “O alarme da sua dor<br />

moral permanecia <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim”. O impacto <strong>de</strong>sta “frase-feita-<strong>de</strong>som”,<br />

tematicamente angustiante, é imediato, disponível ali sem reflexão,<br />

por<strong>que</strong> essa já tinha sido feita pelo autor: “mesmo hoje não tenho<br />

certezas sobre o <strong>que</strong> levou estes jovens ao suicídio”, <strong>de</strong>ixando no ar<br />

a dúvida da experiência <strong>de</strong> <strong>que</strong>m sabe <strong>que</strong> nunca se sabe<br />

verda<strong>de</strong>iramente os motivos <strong>que</strong> acabam por conduzir a este gesto.<br />

“Batem as portas em tons <strong>de</strong> suicídio” não é apenas o primeiro<br />

anúncio proclamador da temática mas também o revelador do<br />

<strong>que</strong> o prece<strong>de</strong> – como o <strong>de</strong>curso da narrativa o <strong>de</strong>ixa entrever<br />

-- : um silêncio igual em intensida<strong>de</strong> à frase <strong>que</strong> o anuncia. Um<br />

silêncio acentuado. Um silêncio acentuado? Como po<strong>de</strong> um silêncio<br />

iniciar uma frase? Se nos fixarmos apenas na frase como se nada<br />

a prece<strong>de</strong>sse, ela impõe-se isolada no espaço, como uma ruptura<br />

abrupta. Mas, <strong>Daniel</strong> <strong>Sampaio</strong>, parece ter <strong>que</strong>rido <strong>que</strong> esta primeira<br />

frase crescesse a partir do silêncio <strong>que</strong> a antece<strong>de</strong>: o silêncio dos<br />

suicídios <strong>que</strong> conheceu, o silêncio das vidas sem sentido, o silêncio<br />

do ruído dos corredores dos serviços <strong>de</strong> psiquiatria, o silêncio<br />

das famílias adormecidas pelo tédio, o silêncio do tempo mortificado<br />

pela rotina, o silêncio...o silêncio da tensão reformuladora, o silêncio<br />

da meditação... como se houvesse uma profunda inspiração, antes<br />

<strong>de</strong> ela ser ouvida. Deste modo ela impõe-nos uma suspensão do<br />

tempo e da respiração, num profundo suspiro expectante.<br />

Por isso seguimos o roteiro proposto pelo narrador, <strong>que</strong> aos<br />

poucos nos vai revelando um dos pilares fundamentais do ser<br />

humano: a sua vida relacional. Fala-nos <strong>de</strong> um susto, dos medos e<br />

das <strong>de</strong>scobertas <strong>de</strong> um jovem <strong>de</strong> 17 anos, Nuno, <strong>que</strong> não<br />

compreen<strong>de</strong> como po<strong>de</strong> um homem muito mais velho compreen<strong>de</strong>r<br />

os dúvidas, as angústias, os medos, as certezas <strong>de</strong> <strong>que</strong>m está no<br />

início da gran<strong>de</strong> aventura <strong>que</strong> é viver uma vida. De um jovem <strong>que</strong><br />

não sabia <strong>que</strong> à sua frente e por sua obra estava também um jovem<br />

configurado nas memórias dos mesmos medos, dúvidas, angústias,<br />

agora evocados na sua memória e presentificados no seu teatro<br />

da consciência. Que não sabia <strong>que</strong> este homem mais velho estava<br />

a reviver momentos da sua vida – “também me aconteceu o mesmo<br />

Nuno [...]”, pensa, “[...] também eu, psiquiatra <strong>de</strong> meia-ida<strong>de</strong> e<br />

muita experiência <strong>que</strong> aqui tens à tua frente, fui menino e tive<br />

medo...” – pensa, não por mera evocação reflexa, mas para se<br />

<strong>de</strong>ixar envolver numa atmosfera emocional <strong>que</strong> mais o aproxime<br />

do sentir da<strong>que</strong>le <strong>que</strong> o procurou, por intermédio do pai, na<br />

esperança vaga <strong>de</strong> ser ajudado.<br />

E assim se abre uma outra folha <strong>de</strong>ste tríptico: a revelação do<br />

processo <strong>que</strong> o terapeuta vive, simultaneamente em privado e em<br />

partilha, revelação <strong>que</strong> não se confina a procedimentos técnicos<br />

(muito embora os apresente, já não como técnicas aprendidas no<br />

seu extenso processo <strong>de</strong> formação, mas como atitu<strong>de</strong>s impregnadas<br />

no seu actuar relacional), nem é passível <strong>de</strong> fórmulas redutoras.<br />

O autor impregna-nos <strong>de</strong>sta atmosfera por<strong>que</strong> ele próprio é capaz<br />

<strong>de</strong> se <strong>de</strong>ixar impregnar com todos os afectos <strong>que</strong> uma relação<br />

humana forte, íntima, problemática faz emergir. E vai-nos mostrando<br />

como uma relação terapêutica nunca po<strong>de</strong> ser falada <strong>de</strong> um modo<br />

puramente formal. Diz-se, <strong>de</strong> si para si: “Deixarei crescer <strong>de</strong>ntro<br />

<strong>de</strong> mim a recordação dos 17 anos, assim vou po<strong>de</strong>r ficar mais<br />

próximo...”, oferecendo-nos uma tela sobre o acto <strong>de</strong> escuta do<br />

Outro (seja ele um indivíduo ou uma família) cujas tonalida<strong>de</strong>s<br />

confluem para uma espécie <strong>de</strong> “simpatia emocional”. Proximida<strong>de</strong><br />

equilibrada numa distância óptima <strong>que</strong> <strong>de</strong>ixa espaço à emergência<br />

da diferença, fermento <strong>de</strong> mudança: “Olhei agora para o rapaz à<br />

minha frente, pensei como é diferente a adolescência <strong>de</strong> hoje [...],<br />

os jovens <strong>de</strong> agora herdam escombros, fragmentos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologias,<br />

restos <strong>de</strong> casamento, doenças e morte e, no entanto, <strong>que</strong>rem cada<br />

vez mais viver o momento...”. Mas <strong>que</strong> também assegura a cumplicida<strong>de</strong><br />

num projecto em <strong>que</strong> já estava envolvido: “mais tar<strong>de</strong> vou <strong>de</strong>cidir<br />

contigo a melhor forma <strong>de</strong> evoluirmos em conjunto [...]”.<br />

Qual<strong>que</strong>r processo terapêutico torna a vida num plano <strong>de</strong> vivências,<br />

cria constelações e narrativas, referências e transformações, todos<br />

eles seleccionados do gran<strong>de</strong> universo <strong>que</strong> é a vida do nosso<br />

cliente. Esse universo pleno <strong>de</strong> galáxias <strong>de</strong> on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>staca a família,<br />

esse microcosmos gerador da primeira e mais impregante visão<br />

do mundo. O autor, não podia <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> lado esta dimensão plural<br />

da individualida<strong>de</strong>. O terapeuta assegura-se da oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa<br />

abertura à intimida<strong>de</strong> familiar <strong>de</strong> Nuno e <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>-se avançar.<br />

Apresenta-nos um mundo complexo, feito <strong>de</strong> silêncios em torno<br />

da morte, das mortes, afinal as mortes <strong>que</strong> tanto afectaram Nuno<br />

e cujo significado é, paradoxalmente, ao mesmo tempo uma<br />

<strong>de</strong>terminação e uma escolha. É este paradoxo central <strong>de</strong>sta história,<br />

<strong>de</strong>svelado pelo processo terapêutico familiar, <strong>que</strong> torna possível<br />

compreen<strong>de</strong>r a natureza <strong>de</strong> um gesto. “Uma jovem parece ter<br />

morrido por amor” e um homem <strong>de</strong> bem sabe-se lá porquê.<br />

Perante um acto, perante um gesto, po<strong>de</strong>mos ter-lhes acesso pela<br />

linguagem e pela explicação, mas estas nunca <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ser aproximações,<br />

traduções, e nunca o substituem. Um gesto é completo: aguenta-se<br />

por si; tem um princípio, um meio e um fim; e produz um sulco no<br />

espaço e através do tempo. Foi criado para significar um átomo <strong>de</strong><br />

significado, um movimento. O acto <strong>de</strong> Rita <strong>de</strong>ixou um sulco em Nuno<br />

sob a forma <strong>de</strong> uma angústia dolorosa: após o seu <strong>de</strong>saparecimento,<br />

ele lembrar-se-á <strong>de</strong>la com um tal fervor como ela o amou?<br />

Na terapia, como na música, <strong>temos</strong> sempre <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r à forma<br />

<strong>de</strong>sabrochante, mapeá-la continuamente com significados, <strong>de</strong>socultarlhe<br />

o sentido. Na terapia, como na música, o <strong>que</strong> não po<strong>de</strong> ser<br />

explicado passa em silêncio. Paradoxal, é verda<strong>de</strong>, mas essencial. É<br />

aqui <strong>que</strong> se joga a arte da terapia: no equilíbrio, intuitivo, entre as<br />

palavras <strong>que</strong> tentam vencer o silêncio (“tens razão, Nuno, o <strong>que</strong><br />

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Leituras<br />

<strong>de</strong>ve ter transtornado o teu avô foi a atitu<strong>de</strong> menos honesta...”) e<br />

o <strong>que</strong> <strong>de</strong>ve passar em silêncio (“po<strong>de</strong>-se morrer por falta <strong>de</strong> amor?”).<br />

Esta história em torno da memória <strong>de</strong>ixa-nos a impressão da<br />

existência <strong>de</strong> algo pungente na vida <strong>de</strong> Nuno. Esse amor <strong>que</strong> não<br />

é dito, <strong>que</strong> não é confessado, <strong>que</strong> não é <strong>de</strong>clarado, <strong>que</strong> não é vivido,<br />

mas <strong>que</strong> lhe é revelado pelo acto <strong>de</strong> Rita <strong>de</strong>ixa-nos uma interrogação<br />

semelhante a um sopro efémero: o es<strong>que</strong>cimento <strong>de</strong> alguém não<br />

começa mesmo antes da sua morte?<br />

Aproximamo-nos do fim <strong>de</strong>sta história <strong>que</strong> me fez lembrar um<br />

concerto, em <strong>que</strong> o compositor, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o princípio, <strong>de</strong>finia o estilo<br />

da obra. Permitam-me a metáfora. Temos duas concepções diferentes<br />

<strong>de</strong> escrever concertos para solista e or<strong>que</strong>stra: a<strong>que</strong>la em <strong>que</strong> o<br />

realce vai para a virtuosida<strong>de</strong> do solista <strong>que</strong>, sendo como era,<br />

quase sempre, o autor da obra, fazia <strong>que</strong> o virtuosismo fosse<br />

criação (Chopin e Lizt, no piano, Paganini no violino); outra, em<br />

<strong>que</strong> o <strong>de</strong>senvolvimento sinfónico assenta na colaboração entre o<br />

solista e a or<strong>que</strong>stra, protagonistas ao mesmo nível (Brahms, no<br />

1º concerto para piano em ré menor). O autor apresenta-nos a<br />

segunda versão. Advinha-se <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início e certifica-se no fim da<br />

narrativa, quando o terapeuta diz à avó Teresa <strong>que</strong> “o estranho é<br />

<strong>que</strong> um terapeuta faz pouco [...] limitei-me a estar convosco, a<br />

fazer circular a informação, a construir convosco uma nova visão<br />

da realida<strong>de</strong>...”. Um pouco <strong>que</strong>, como verão ao lerem o livro, é<br />

tudo. Como num concerto, esse pouco-tudo é feito <strong>de</strong> serenida<strong>de</strong><br />

cósmica e nobreza <strong>de</strong> emoção. <strong>Daniel</strong> <strong>Sampaio</strong> mostra-nos <strong>que</strong> a<br />

atitu<strong>de</strong> terapêutica não é simplesmente uma expressão <strong>de</strong> uma<br />

emoções, ou <strong>de</strong> sentimentos, ou <strong>de</strong> pensamentos; não é uma<br />

tradução <strong>de</strong> uma outra coisa. É uma <strong>de</strong>dicação auto-contida, mas<br />

também plena <strong>de</strong> implicação e <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>. Mostra-nos também<br />

<strong>que</strong> ao longo do processo terapêutico as i<strong>de</strong>ias são cada vez mais<br />

refinadas, <strong>de</strong> modo <strong>que</strong> a continuida<strong>de</strong> e o irracional são<br />

gradualmente compreendidos. Cada passo para a frente re<strong>que</strong>r<br />

um passo reflexivo para trás, uma comparação entre o <strong>que</strong> é<br />

compreendido e o <strong>que</strong> é mostrado. Novos significados são<br />

<strong>de</strong>senvolvidos, continuando o processo e mudando o estilo.<br />

Movimento <strong>que</strong> possibilita a cada um uma viagem pelo interior <strong>de</strong><br />

si, marcada pela introspecção, pelo sonho e pela reflexão, viagem<br />

alquímica <strong>que</strong>, através da emergência <strong>de</strong> uma nova or<strong>de</strong>m interior,<br />

dá nascimento a um novo encontro com o mundo.<br />

As <strong>de</strong>scrições do processo usadas para “construir uma nova visão<br />

da realida<strong>de</strong>” e <strong>de</strong>marcar o ruído po<strong>de</strong>m, por vezes, parecer<br />

técnicas, abstractas, genéricas, mas as tonalida<strong>de</strong>s do discurso, a<br />

expressão literária dos sentimentos, emoções, dúvidas, certezas,<br />

hipóteses, or<strong>de</strong>m, <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m aqui criadas são elas próprias criadoras,<br />

num outro nível, <strong>de</strong>sses mesmos estados <strong>de</strong> alma nos leitores: o<br />

leitor é transformado num terapeuta pelo acto <strong>de</strong> leitura. Como<br />

num concerto, o autor revela-nos com clareza <strong>que</strong> a presença da<br />

<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m e do risco é o <strong>que</strong> dá po<strong>de</strong>r ao indivíduo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> <strong>que</strong><br />

a<strong>de</strong>quadamente jogados pela batuta do terapeuta.<br />

Este livro é para os avós e para os pais. Para os filhos. Para os<br />

namorados. Para os irmãos. Para os psicoterapeutas. Para as<br />

mulheres e para os homens. Para todos nós, afinal, <strong>que</strong> nos<br />

<strong>de</strong>ba<strong>temos</strong> com a certeza da morte – lembro-me <strong>de</strong> Mia Couto,<br />

“ a morte tem sempre on<strong>de</strong> cair em nós” – e <strong>que</strong> um dia<br />

apren<strong>de</strong>mos a amar, mas <strong>que</strong> só soubemos amar quando a dor<br />

nos bateu à porta. A dor, essa dor <strong>que</strong> jorrou ao longo <strong>de</strong>ssas<br />

linhas, <strong>que</strong> <strong>que</strong>ima os nossos peitos com um grito pleno <strong>de</strong> todas<br />

as paixões, essa dor <strong>que</strong> consome mas não <strong>de</strong>strói a esperança,<br />

essa dor é a expressão da vida, da autenticida<strong>de</strong>, da liberda<strong>de</strong>,<br />

afinal, do amor.<br />

Como disse Nuno no fim da história:<br />

“Olho para trás e afinal ainda lá estás, amor...”<br />

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