Unica Zürn, a Alucinada Subtil - Saúde Mental
Unica Zürn, a Alucinada Subtil - Saúde Mental
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Leituras / Readings <strong>Saúde</strong> <strong>Mental</strong> <strong>Mental</strong> Health<br />
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<strong>Unica</strong> <strong>Zürn</strong>, a <strong>Alucinada</strong> <strong>Subtil</strong><br />
<strong>Unica</strong> <strong>Zürn</strong>, the Subtle Hallucinated<br />
Adrian Gramary<br />
Médico Psiquiatra<br />
Centro Hospitalar Conde de Ferreira<br />
Rua Costa Cabral, 1211, 4200-227 Porto<br />
e-mail: adrian.gramary@gmail.com<br />
Fig. 1- <strong>Unica</strong> <strong>Zürn</strong> por Man Ray.<br />
“As iniciais H.L.M. da empresa parisiense de construção imobiliária<br />
são, aos seus olhos, uma saudação, um grande sorriso<br />
que lhe enviam. A megalomania, tão agradável, com o sentimento<br />
delicioso de já estar no centro de todos os acontecimentos,<br />
surge-lhe como um estado de eleição.” Este excerto,<br />
que pertence ao livro autobiográfico “O Homem-Jasmim”, foi<br />
escrito pela artista surrealista alemã Única <strong>Zürn</strong>. O sentimento<br />
expresso nele pela autora, essa sensação “de estar no centro<br />
de todos os acontecimentos”, corresponde à vivência que<br />
Klaus Conrad descreveu, no seu livro clássico “A esquizofrenia<br />
incipiente”, como sendo a experiência nuclear da denominada<br />
fase apofánica da esquizofrenia, a anastrofé, “a vivência que<br />
tem o doente esquizofrénico de que tudo gira a sua volta”. O<br />
texto de Única <strong>Zürn</strong> é pródigo em transcrições de conceitos<br />
psicopatológicos da esquizofrenia, no entanto, o que torna este<br />
livro um testemunho único, é o talento que a autora mostra<br />
para transformar a vivência do adoecer psicótico num texto<br />
poético de rara beleza.<br />
Única <strong>Zürn</strong> nasceu em Berlim, durante a Primeira Grande Guerra,<br />
no bairro residencial de Grunewald, no seio de uma família<br />
abastada – o pai era oficial de cavalaria, profissão que abandonou<br />
para trabalhar como editor e jornalista. A sua adolescência,<br />
que decorreu durante os conturbados anos da República de<br />
Weimar, ficou marcada pela separação dos pais.<br />
A partir de 1931, e ao longo da era nazi, trabalha na UFA,<br />
a maior produtora cinematográfica alemã na altura, primeiro<br />
como auxiliar de escritório e depois como argumentista de<br />
filmes de publicidade.<br />
Em 1942, casa com Erich Laupenmühlen, com quem teve dois<br />
filhos (Katrin e Christian). Após a separação, em 1949, perde a
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custódia dos filhos, e passa a viver como jornalista e escritora,<br />
frequentando os círculos artísticos de Berlim. Para financiar a<br />
sua subsistência, escreveu cerca de 140 contos para a imprensa<br />
diária berlinesa e diversas peças radiofónicas.<br />
Após a Segunda Guerra Mundial, em 1953, conhece o pintor e<br />
fotógrafo surrealista Hans Bellmer (1902-1975), artista inclassificável,<br />
famoso como criador de fetiches surrealistas, graças<br />
a sua famosa série de bonecas (Poupées). Apaixona-se por<br />
ele e, nesse mesmo ano, o casal parte para Paris.<br />
Fig. 2- <strong>Unica</strong> <strong>Zürn</strong> e Bellmer - desenho de Hans Bellmer.<br />
Na cidade das luzes, incitada por Bellmer, Única <strong>Zürn</strong> começa<br />
a desenhar e a escrever anagramas, uma espécie de jogo de<br />
palavras, que resulta do rearranjo das letras de uma palavra<br />
ou frase para produzir outras palavras. O anagrama foi uma<br />
das técnicas usadas pelos surrealistas – como a “escrita automática”<br />
ou os “cadáveres esquisitos” – para tentar reduzir<br />
ao mínimo o efeito das instâncias de controlo e repressão do<br />
subconsciente. Se as frases representam o mundo organizado<br />
e lógico, então a busca de outras frases numa frase significa<br />
a busca de outros mundos atrás do mundo do dia-a-dia. A<br />
escrita anagramática, assim como a cabala, tornaram-se para<br />
<strong>Zürn</strong> quase uma obsessão, com as quais se afastava cada vez<br />
mais do mundo real. Ela própria descreveu este comportamento.<br />
“Prazer inesgotável o de procurar uma frase dentro doutra<br />
frase. A concentração e o grande silêncio que este trabalho<br />
exige dão-lhe a oportunidade de poder isolar-se completa-<br />
mente do mundo que a Fig. 3- La poupée de Hans Bellmer.<br />
rodeia e até de esquecer<br />
a realidade – é isso o que<br />
ela quer.”<br />
Por intermédio de Bellmer,<br />
<strong>Zürn</strong> conhece os<br />
artistas do círculo surrealista<br />
parisiense: Man Ray,<br />
Marcel Duchamp, Max<br />
Ernst, Hans Arp e Henri<br />
Michaux. O primeiro<br />
deixou-nos dela um famoso<br />
retrato fotográfico<br />
em escorço. O encontro<br />
com Michaux, por quem<br />
se diz que esteve apaixonada,<br />
será decisivo para<br />
a sua obra posterior: ele tornar-se-á, na forma duma relação<br />
imaginada e sob as iniciais H.M., no protagonista do livro O<br />
Homem-Jasmim.<br />
A relação com Bellmer tinha, sem dúvida, muito na linha do<br />
transgressor mito surrealista do amour fou, um componente<br />
sadomasoquista, que ela teve a coragem de reconhecer: “O<br />
meu destino é ser uma vítima eterna”, escreveu. Nesse sentido<br />
é inevitável recordar a chocante série de fotografias que Bellmer<br />
fez, em 1958 - usando a perfomance própria dos rituais<br />
de bondage sadomasoquista - nas quais o corpo de Única<br />
<strong>Zürn</strong> aparece, em diferentes posições, atado com um cordel,<br />
como se fosse um pedaço de carne para assar. “Ela gostava<br />
de experienciar a dor com o prazer”, confessa <strong>Zürn</strong> num dos<br />
seus escritos. Bellmer, por sua vez, era um grande perverso<br />
que, sublimou, como outros artistas, as suas pulsões sádicas<br />
através da arte, mas também foi o seu companheiro, o seu<br />
principal apoio artístico e emocional e o fiel defensor dos seus<br />
direitos quando Única, já muito desequilibrada, demonstrava<br />
não ter capacidade para tratar com os marchantes. Única <strong>Zürn</strong><br />
tinha por ele sentimentos que oscilavam entre a admiração e a<br />
submissão. Talvez ela se tenha vingado dele no fim, quando em<br />
19 de Outubro de 1970, se atirou pela janela do apartamento<br />
de Bellmer em Paris. Ele, paralisado desde há alguns anos,<br />
nada pôde fazer para evitar o desenlace fatal, e não teve outra<br />
escolha senão contemplar impotente o gesto dela desde a sua<br />
cadeira de rodas. Bellmer morreu em 1974 e foi enterrado ao<br />
lado de Única no cemitério do Père-Lachaise, sob uma campa<br />
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com uma inscrição onde parece ecoar a história de amor além<br />
da morte d´O Monte dos Vendavais, romance tão caro para os<br />
surrealistas: “o meu amor seguir-te-á até a Eternidade”.<br />
Os primeiros sinais de esquizofrenia surgiram em <strong>Zürn</strong> em<br />
1957. A partir dessa altura a doença acompanhou-a, em surtos,<br />
até a morte, tendo de ser várias vezes internada em diversas<br />
clínicas psiquiátricas: Wittenau, em Berlim; e Sainte-Anne,<br />
Maisson Blanche, La Chesnai e La Rochelle, em Paris. Durante<br />
os internamentos recebeu inúmeras visitas de Henri Michaux,<br />
que se encarregava de levar papel para ela desenhar.<br />
Os seus desenhos e pinturas, de carácter automático, muito<br />
próximos de alguns desenhos das colecções de Prinzhorn ou<br />
de Dubuffet, representam, com um traço denso, obsessivo e<br />
repetitivo, fantásticas criaturas: quimeras, híbridos de animais,<br />
plantas e humanos, ou seres bizarros reticulados que nos fazem<br />
pensar em constelações, animais abissais ou organismos<br />
microscópicos. A sua obra pictórica foi exposta, com prefácio<br />
de Max Ernst na galeria Le Point Cardinale de Paris em 1962<br />
e 1964, mas só se tornaria mais conhecida após a grande<br />
exposição retrospectiva realizada na Alemanha em 1998.<br />
A sua obra literária, em grande parte publicada postumamente,<br />
foi criada à margem dos círculos literários, e sem perspectivas<br />
de publicação. A par dos contos e folhetins em jornais berlinenses,<br />
durante a vida de <strong>Zürn</strong> só foram publicados o pequeno<br />
volume de anagramas Hexentexte (1954) (Textos de Bruxas) e<br />
o conto Dunkler Frühling (1969). Nesta última obra (Primavera<br />
Sombria), a autora descreve o acordar psico-sexual de uma<br />
rapariga. O próprio título do livro torna clara a óptica com que<br />
<strong>Zürn</strong> aborda o tema e o expõe; narra as alegrias e os desejos,<br />
mas sobretudo os lados sombrios da sua infância: os medos,<br />
a violência sexual e o aparecimento de pulsões masoquistas.<br />
“Com toda a força da sua imaginação, chamava ardentemente<br />
por um homem selvagem, de instintos assassinos”, lemos nas<br />
suas páginas. O texto oferece-nos imagens perturbadoras e<br />
violentas, como o episódio em que a protagonista inicia-se<br />
na masturbação com uma tesoura; ou aquele sonho em que<br />
rodeada por um grupo de homens encapuçados e vestidos de<br />
preto, e violada com uma faca que finalmente se transforma na<br />
língua de um cão. A narrativa, que tem muito de confissão ou<br />
de livro de segredos, inicia-se com as primeiras percepções<br />
conscientes da rapariga: a descoberta do próprio corpo e<br />
o fascínio pelo sexo oposto, dirigido inicialmente ao pai. No<br />
entanto, é molestada sexualmente pelo irmão, mas não tem a<br />
possibilidade de se defender contra tal violência ou procurar<br />
<strong>Saúde</strong> <strong>Mental</strong> <strong>Mental</strong> Health<br />
protecção junto de outras pessoas com quem se relacione,<br />
pois não encontra o afecto necessário na mãe e o pai está<br />
muitas vezes ausente em viagem, limitando-se a digerir sozinha<br />
a sua dor. A saída é a fuga para a imaginação: “Com toda a<br />
violência tem de se salvar na fantasia para suportar a vida”.<br />
O seu consolo é o amor passivo por um homem adulto, que<br />
só conhece de vista da piscina. Quando o seu amor secreto<br />
é descoberto pela família, proíbem-lhe as idas à piscina. Tal<br />
proibição corta-lhe a derradeira saída. A realidade torna-selhe<br />
insuportável sem aquele amor – mesmo que totalmente<br />
passivo. Desespera-se. “Não o ver mais é para ela a morte”.<br />
Nessa mesma noite, pressagiando o suicídio real que produzirse-á<br />
quarenta e dois anos mais tarde, atira-se pela janela do<br />
quarto, pondo fim à vida.<br />
Os seus contos impressionam pela mistura de exibicionismo<br />
emocional e radical honestidade e pela facilidade com que<br />
diluem as fronteiras entre o real e o surreal, o sonho e a realidade.<br />
Mostra predilecção pelo paradoxo, pelo absurdo. As<br />
histórias, reflectindo a fidelidade pelo mundo da sua infância,<br />
desenrolam-se na Alemanha da República de Weimar; e em<br />
Fig. 4- Desenho de <strong>Unica</strong> <strong>Zürn</strong>.
Volume XI Nº2 Março/Abril 2009 Leituras / Readings<br />
termos de atmosfera são marcadas por motivos extraídos de<br />
mitos e contos fantásticos, bem como pelo mundo do circo,<br />
dos saltimbancos e vagabundos. Os protagonistas são muitas<br />
vezes crianças, a quem, abandonada a realidade do dia-a-dia,<br />
acontecem coisas maravilhosas.<br />
A sua obra mais conhecida, O Homem-Jasmim, permaneceu<br />
inédita durante muito tempo, sendo publicada postumamente,<br />
primeiro em tradução francesa (Paris, 1971) e depois em alemão,<br />
em 1977. Até onde nós sabemos, esta é a única obra<br />
de <strong>Zürn</strong> da qual existe uma cuidada tradução em português,<br />
publicada pela editora & Etc. Nesta crónica documental e poética<br />
da sua loucura, <strong>Zürn</strong> narra o surgimento e a evolução dos<br />
seus delírios e alucinações, falando de si própria em terceira<br />
pessoa, como se se contemplasse de fora.<br />
A protagonista encontra em 1957, em Paris, um homem<br />
que considera a personificação da sua visão de infância do<br />
“Homem-Jasmim”. Mantém uma relação imaginária com esse<br />
homem, sabe-se hipnotizada à distância e segue as suas<br />
instruções. Surgem assim as vivências de influência e as alterações<br />
da consciência do eu. Os actos e estados próprios do<br />
eu são vivenciados não como próprios mas sim como dirigidos<br />
ou influenciados pelo Homem-Jasmim. “Um magnetizador<br />
maravilhoso, dotado de uma extraordinária força de vontade a<br />
hipnotiza, vá ela para onde for. Impõe-lhe a sua vontade e ela<br />
nada pode fazer contra isso. Foi assim que cometeu os actos<br />
mais extravagantes porque ele assim o queria”, podemos ler no<br />
livro. Em breve se separa dele. Deixa Paris e viaja para Berlim,<br />
sua cidade natal, onde é esperada por amigos. Durante a viagem,<br />
e já em Berlim, continuam os delírios, as alucinações, os<br />
fenómenos de automatismo mental. Primeiro saboreia o insólito<br />
do novo estado em que se encontra. “Se alguém lhe tivesse<br />
dito que era preciso ficar louca para ter estas alucinações,<br />
sobretudo a última, de bom grado teria aceitado. São a coisa<br />
mais espantosa que algum dia lhe foi dado ver.” A narradora<br />
faz esta apreciação; a protagonista age consciente de que as<br />
suas invulgares experiências são normais. Não se apercebe da<br />
diferença entre as alucinações e o mundo “real”, “parecendolhe<br />
absolutamente normal tudo quanto faz, não compreende a<br />
súbita cólera dos amigos.” O seu comportamento bizarro (por<br />
exemplo, atira pela janela os óculos dum homem desconhecido)<br />
leva-a por fim ao internamento numa clínica psiquiátrica. Os<br />
amigos berlinenses apoiam-na e animam-na durante a estadia<br />
na clínica. Finalmente é libertada, volta para Paris e retoma a<br />
vida que levava. Mais em breve surgem novos delírios e aluci-<br />
nações; volta a deixar o ambiente onde vive e esforça-se por<br />
conseguir uma nova vida independente. Também esta tentativa<br />
acaba numa clínica psiquiátrica.<br />
O livro tem linhas de contacto com o interesse do surrealismo<br />
pela loucura e pelas experiências que transcendem, através<br />
de alucinações induzidas, a realidade do dia-a-dia, como<br />
foi a experimentação com drogas (pensemos em Cocteau,<br />
Michaux ou Artaud). A alternância de perspectivas interior e<br />
exterior (vivência e comentário da loucura) cria uma tensão que<br />
se mantém até ao final da narrativa. Esta tensão é suportada<br />
através da excelente manipulação da alternância de planos da<br />
realidade e da memória, sonho e alucinação.<br />
O seu amigo André Pierre de Mandiargues, que definiu como<br />
“diabólica” a beleza de Única <strong>Zürn</strong>, referiu-se a ela como “uma<br />
alucinada subtil”. Sabemos que no fim do livro, ela própria<br />
questiona-se se a sua paixão pelo extraordinário e pelo mundo<br />
da imaginação não será a causa das frequentes recaídas na<br />
psicose, como se esta fosse uma válvula de escape ou um<br />
refúgio face à insatisfação provocada pelo mundo real. A sua<br />
foi, sem dúvida, uma vida vivida testando os limites, pondo<br />
a prova continuamente uma frágil estrutura psicoemocional,<br />
pendurada em equilíbrio instável na corda bamba entre a<br />
perversão e a psicose.<br />
Fig. 5- Capas dos livros de <strong>Unica</strong> <strong>Zürn</strong>.<br />
Bibliografia:<br />
Combalía V (2006): Amazonas con pincel. Vida y obra de las grandes<br />
artistas del siglo XVI al siglo XXI. Destino – Imago Mundi. Barcelona<br />
Foster H (2008): Dioses prostéticos. Akal. Madrid<br />
<strong>Zürn</strong> U (2000): O Homem-Jasmim. Editora & Etc. Lisboa<br />
<strong>Zürn</strong> U (2004): El trapecio del destino y otros cuentos. Siruela. Madrid<br />
<strong>Zürn</strong> U (2005): Primavera sombría. Siruela. Madrid<br />
<strong>Zürn</strong> U (2006): El hombre Jazmín. Siruela. Madrid<br />
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