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A Crónica de um Erro Médico - Saúde Mental

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Leituras / Readings<br />

Saú<strong>de</strong> <strong>Mental</strong> <strong>Mental</strong> Health<br />

A Crónica <strong>de</strong> <strong>um</strong> <strong>Erro</strong> Médico<br />

The Chronicle of a Medical Mistake<br />

Fig. 1- Maria A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong> aos 18 anos.<br />

Fig. 2- Dr. Alfredo da Cunha.<br />

Adrian Gramary<br />

Médico Psiquiatra<br />

Centro Hospitalar Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ferreira<br />

Rua Costa Cabral, 1211, 4200-227 Porto<br />

e-mail: adrian.gramary@gmail.com<br />

Aconteceu no Porto, entre as pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong>ste mesmo Hospital<br />

on<strong>de</strong> eu estou a redigir hoje este artigo. Corria o ano <strong>de</strong> 1918.<br />

Portugal vivia os conturbados anos da Primeira República,<br />

presidida naquela altura por Sidónio Pais, com a Gran<strong>de</strong> Guerra<br />

a dar os últimos estertores, e a gripe espanhola a assolar o<br />

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Vol<strong>um</strong>e XI Nº3 Maio/Junho 2009<br />

Leituras / Readings<br />

mundo. A protagonista foi <strong>um</strong>a mulher que compensava a sua<br />

pequena estatura — cerca <strong>de</strong> <strong>um</strong> metro e meio — com <strong>um</strong>a<br />

<strong>de</strong>terminação irredutível para lutar pelo seu amor contra ventos<br />

e marés. O seu nome era Maria A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong> Coelho da Cunha e<br />

fazia parte da alta burguesia lisboeta. Era filha do fundador do<br />

jornal Diário <strong>de</strong> Notícias e casou com Alfredo da Cunha, que<br />

se iria tornar proprietário do mesmo jornal após a morte do pai<br />

fundador. As vicissitu<strong>de</strong>s da sua história, abordadas agora no<br />

livro <strong>de</strong> Manuela Gonzaga “Doida não e não!”, já pertencem<br />

ao imaginário popular <strong>de</strong> Portugal.<br />

A história tem <strong>um</strong> início singelo: Maria A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong> apaixonou-se<br />

pelo seu chauffeur — <strong>um</strong> homem cerca <strong>de</strong> vinte anos mais<br />

novo do que ela, <strong>de</strong> nome Manuel Cardoso Claro — e <strong>de</strong>cidida<br />

a <strong>de</strong>ixar <strong>um</strong>a vida abastada e mundana, que no entanto a<br />

tornava profundamente infeliz, foge com o homem dos seus<br />

sonhos para ir viver com ele <strong>um</strong> curto idílio n<strong>um</strong>a pequena e<br />

esquecida vila da Beira Interior. Mas a estadia neste paraíso<br />

bucólico dura o tempo necessário para que o marido traído e<br />

ávido <strong>de</strong> vingança consiga organizar <strong>um</strong>a caçaria policial que<br />

acabou com a captura da senhora e do amante.<br />

Até aqui nada <strong>de</strong> original encontramos nesta história que parece<br />

<strong>um</strong>a versão pacata <strong>de</strong> <strong>um</strong> dos romances <strong>de</strong> adultério <strong>de</strong><br />

Zola ou Flaubert: a inevitável relação triangular, a intervenção<br />

da paixão arrebatadora que faz saltar pelo ar as barreiras <strong>de</strong><br />

classe e educação, a obrigada fuga, a breve sinfonia pastoral<br />

dos amantes e o aparecimento final do marido traído.<br />

Mas é <strong>de</strong>pois da captura <strong>de</strong> Maria A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong> e do amante — que<br />

entretanto ficou preso na Ca<strong>de</strong>ia da Relação do Porto — que<br />

a história adquire tons mais tenebrosos e vira repentinamente<br />

<strong>um</strong>a história bem mais kafkiana e lúgubre. Alfredo da Cunha,<br />

ferido no seu orgulho masculino, obstina-se em retaliar o<br />

comportamento da esposa apesar <strong>de</strong> ela ter <strong>de</strong>clarado o seu<br />

<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> iniciar os trâmites do divórcio e, usando dinheiro e<br />

influências, consegue interná-la no Hospital Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ferreira<br />

do Porto, longe da distinta socieda<strong>de</strong> lisboeta <strong>de</strong> que ambos<br />

faziam parte, para evitar levantar muita poeira.<br />

Neste hospital ela é observada várias vezes pelo director da<br />

instituição, o Professor Magalhães Lemos, que, surpreen<strong>de</strong>ntemente,<br />

não questiona o internamento. Começa assim <strong>um</strong><br />

pesa<strong>de</strong>lo, que embora breve no tempo — apenas uns meses<br />

— comove e por vezes provoca a indignação do leitor, nomeadamente<br />

quando fica a saber que durante o tempo que<br />

durou o internamento ela não recebeu qualquer medicação<br />

ou tratamento específico para a suposta doença mental. Além<br />

disso, somos testemunhas <strong>de</strong> como ela, antes <strong>de</strong> ter sido <strong>de</strong>vidamente<br />

avaliada por <strong>um</strong> perito psiquiatra, passa a ver toda<br />

a sua correspondência interceptada, ao mesmo tempo que lhe<br />

é colocada <strong>um</strong>a empregada espiã que se torna a sua sombra<br />

e a vigia durante as vinte e quatro horas do dia. De igual forma,<br />

as visitas dos familiares só são autorizadas ao fim <strong>de</strong> alg<strong>um</strong><br />

tempo e sempre com o imprescindível beneplácito do marido.<br />

Vale a pena assinalar como curiosida<strong>de</strong> que, a partir da altura<br />

em que é aplicada a quarentena no hospital por causa da gripe<br />

espanhola, as referidas visitas passaram a ser realizadas na<br />

escadaria principal do hospital, convenientemente separados<br />

os intervenientes por <strong>um</strong> profiláctico lanço <strong>de</strong> escadas.<br />

Ao fim <strong>de</strong> alg<strong>um</strong> tempo, a senhora acaba por ser periciada<br />

por três famosos vultos da psiquiatria portuguesa da altura: o<br />

todo-po<strong>de</strong>roso Júlio <strong>de</strong> Matos, o Professor Sobral Cid e aquele<br />

que se iria tornar mais tar<strong>de</strong> Prémio Nobel <strong>de</strong> Medicina, o Professor<br />

Egas Moniz. O relatório elaborado pelos três psiquiatras<br />

conclui que a Senhora Maria A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong> sofre <strong>de</strong> doença mental<br />

grave que justifica a sua interdição. Os termos clínicos usados<br />

são os habituais para a época: “<strong>de</strong>generescência hereditária”,<br />

“loucura lúcida”, “neurastenia”. Os peritos salientam o papel<br />

da ovarite, a importante carga genética — para o qual vão<br />

<strong>de</strong>senterrar patologia psiquiátrica eventualmente presente em<br />

diferentes familiares mortos — e atribuem <strong>um</strong> relevo especial<br />

às alterações hormonais associadas à menopausa que terão<br />

provocado <strong>um</strong> recru<strong>de</strong>scimento sexual que impulsionou a<br />

doente a quebrar todas as barreiras inibitórias… Tudo vago<br />

<strong>de</strong>mais, além <strong>de</strong> pouco consistente, para justificar a natureza<br />

peremptória do procedimento e a <strong>de</strong>cisão da interdição, tendo<br />

em conta as repercussões que esta viria a ter inexoravelmente<br />

para a capacida<strong>de</strong> civil e para o futuro dos bens da senhora.<br />

Surge então a pergunta inevitável: como é possível que figuras<br />

<strong>de</strong> capacida<strong>de</strong> reconhecida e tão importantes para a história<br />

da psiquiatria portuguesa aceitassem participar n<strong>um</strong> procedimento<br />

que tinha por objectivo o internamento permanente<br />

e a interdição <strong>de</strong> <strong>um</strong>a mulher que não apresentava qualquer<br />

patologia psiquiátrica? A priori, são possíveis muitas hipóteses<br />

explicativas, <strong>um</strong>as mais verosímeis do que outras: por dinheiro,<br />

por erro <strong>de</strong> diagnóstico, porque o estado do saber psiquiátrico<br />

na época <strong>de</strong>ixava espaço teórico para que tais “processos<br />

morais” acontecessem, talvez por eles se terem erigido em<br />

representantes e <strong>de</strong>fensores dos bons cost<strong>um</strong>es ou do po<strong>de</strong>r<br />

patriarcal masculino… Será este caso, confirmando as teorias<br />

<strong>de</strong> Foucault, mais <strong>um</strong>a <strong>de</strong>monstração da i<strong>de</strong>ntificação do po<strong>de</strong>r<br />

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Leituras / Readings<br />

Saú<strong>de</strong> <strong>Mental</strong> <strong>Mental</strong> Health<br />

psiquiátrico como polícia moral? Parece tentador pensar que<br />

sim, e tal é a opinião da autora do livro.<br />

No entanto, é necessário salientar <strong>um</strong> aspecto que o livro <strong>de</strong><br />

Manuela Gonzaga, tão rico em pormenores históricos, se encarrega<br />

<strong>de</strong> esclarecer: ao contrário do que pudéssemos pensar,<br />

o caso <strong>de</strong> Maria A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong> não foi <strong>um</strong> caso isolado, já que nessa<br />

época era relativamente frequente o internamento psiquiátrico<br />

das filhas <strong>de</strong>scarriladas da burguesia e da aristocracia. Este<br />

procedimento constituía <strong>um</strong>a forma <strong>de</strong> punição que era vista<br />

como a<strong>de</strong>quada perante comportamentos consi<strong>de</strong>rados <strong>de</strong>sviantes<br />

entre os quais se incluíam os relacionamentos com<br />

indivíduos pouco recomendáveis ou <strong>de</strong> classe inferior.<br />

A autora do livro <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que o factor principal que <strong>de</strong>terminou<br />

a repercussão histórica <strong>de</strong>ste caso foi o papel fulcral que <strong>de</strong>sempenhou<br />

a imprensa, que agiu como caixa <strong>de</strong> ressonância,<br />

facilitando que o caso se tornara vox populi. A isto soma-se a<br />

<strong>de</strong>cisão da protagonista e do marido traído <strong>de</strong> saltarem à praça<br />

pública escrevendo livros e artigos on<strong>de</strong> tentavam arg<strong>um</strong>entar<br />

os seus pontos <strong>de</strong> vista: «Infelizmente louca!» intitulou-se<br />

o libelo <strong>de</strong> Alfredo da Cunha e «Doida não!» a contestação<br />

<strong>de</strong> Maria A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong>. Títulos exclamativos e melodramáticos<br />

que dão <strong>um</strong>a i<strong>de</strong>ia das paixões envolvidas neste processo,<br />

talvez <strong>um</strong> dos primeiros escândalos mediáticos da história <strong>de</strong><br />

Portugal, favorecido ainda pelo facto dos dois protagonistas<br />

fazerem parte <strong>de</strong> <strong>um</strong>a das mais conhecidas famílias ligadas à<br />

imprensa do país.<br />

A história, porem, teve <strong>um</strong> final <strong>de</strong>morado, embora mas mais<br />

feliz do que seria <strong>de</strong> esperar. A intervenção <strong>de</strong> <strong>um</strong> advogado<br />

diligente permitiu a libertação da senhora, para a qual foi<br />

necessária a intervenção do Governador Civil do Porto, que<br />

se apresentou no Hospital Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ferreira para or<strong>de</strong>nar<br />

e verificar a alta, tendo-lhe seguido a libertação posterior do<br />

chauffeur. Já livres, Maria A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong> e o jovem Manuel Cardoso<br />

Claro <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m estabelecer residência no Porto, on<strong>de</strong> ele trabalhou<br />

durante muitos anos como taxista com poiso na Avenida<br />

da Liberda<strong>de</strong>, enquanto ela cuidava do lar.<br />

O aspecto mais dramático da história é o facto <strong>de</strong> a interdição<br />

ter-se mantido até aos 77 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> da senhora, o que<br />

nos faz pensar no po<strong>de</strong>r que emanava da perícia realizada<br />

em 1918. Entretanto, ela já tinha renunciado a todos os seus<br />

bens, que passaram inicialmente para as mãos do marido e<br />

finalmente para o filho, mas ela já tinha esclarecido que não era<br />

bens que ela <strong>de</strong>sejava, mas sim que fosse corrigido o terrível<br />

erro médico cometido pelos peritos que a tinham avaliado<br />

sessenta anos atrás. Mais nada queria do que isso: recuperar<br />

a sua capacida<strong>de</strong> civil, que lhe tinha sido injustamente retirada,<br />

sem que nunca tivesse perdido as suas faculda<strong>de</strong>s mentais.<br />

Como tinha escrito no seu famoso livro, queria <strong>de</strong>monstrar<br />

apenas perante a opinião pública que ela, simplesmente,<br />

doída não era.<br />

Referências Bibliográficas<br />

- Gonzaga M (2009): Maria A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong> Coelho da Cunha: Doida<br />

não e não! Bertrand Editora. 3ª Edição. Lisboa.<br />

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