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Virgínia Woolf: A Morte e a Donzela - Saúde Mental

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Volume VIII Nº3 Maio/Junho 2006<br />

Leituras / Readings<br />

Virgínia <strong>Woolf</strong>:<br />

A <strong>Morte</strong> e a <strong>Donzela</strong><br />

Virgínia <strong>Woolf</strong>: The Death and the Maiden<br />

“Se não vivêssemos perigosamente (…) tremendo a beira dos precipícios, não estaríamos nunca deprimidos, estou segura disto, mas<br />

seríamos cinzentos, fatalistas e velhos.”<br />

V. <strong>Woolf</strong>, Diário: 2 Agosto de 1924 1<br />

“A loucura é aterradora, posso assegurar-te isto, e vale a pena tê-la em conta; na sua lava encontro ainda a maior parte das coisas<br />

acerca das quais escrevo.”<br />

Carta de V. <strong>Woolf</strong> a Ethel Smyth, 22 de Junho de 1930 1<br />

“Vivemos as nossa vidas, fazemos seja o que for que fazemos e depois dormimos: é tão simples e tão normal como isso. Alguns atiram-se<br />

de janelas, ou afogam-se, ou tomam comprimidos; um número maior morre por acidente, e a maioria, a imensa maioria é lentamente<br />

devorada por alguma doença ou, com muita sorte, pelo próprio tempo. Há apenas uma consolação: uma hora aqui ou ali em<br />

que as nossas vidas parecem, contra todas as probabilidades e expectativas, abrir-se de repente e dar-nos tudo quanto jamais imaginámos,<br />

embora todos, excepto as crianças (e talvez até elas), saibamos que a estas horas se seguirão inevitavelmente outras, muito<br />

mais negras e mais difíceis. Mesmo assim, adoramos a cidade, a manhã, mesmo assim desejamos, acima de tudo, mais.”<br />

M. Cunningham: As Horas 2<br />

Gordon Square (Bloomsbury).<br />

Adrian Gramary<br />

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Leituras / Readings<br />

Saúde <strong>Mental</strong> <strong>Mental</strong> Health<br />

que, com esta antologia, propôs-se mostrar a fala fracassada<br />

dos falhados. A leitura deste livro poderá ser dura e<br />

pouco grata, mas seguramente não irá deixar nenhum leitor<br />

indiferente.<br />

A falar em “cartas suicidas”, talvez uma das mais famosas<br />

representantes deste obscuro subgénero epistolar seja a<br />

que deixou a escritora inglesa Virgínia <strong>Woolf</strong>, que podemos<br />

encontrar na biografia escrita pelo seu sobrinho Quentin<br />

Bell (“Virgínia <strong>Woolf</strong>: A Biography”) 4 . No ano 2003 – sem<br />

dúvida o ano de Virgínia <strong>Woolf</strong>, a morte da autora foi visualmente<br />

imortalizada na abertura do filme “As Horas” de<br />

Stephen Daldry (baseado no romance homónimo de<br />

Michael Cunningham): a romancista inglesa escolheu para<br />

a sua despedida uma cenografia shakespeariana, mergulhando<br />

com os bolsos cheios de pedras nas frias águas do<br />

rio Ouse, em Sussex, numa manhã de Março de 1941, tal<br />

como o teria feito Ofélia, a comovente e perturbada donzela<br />

de Hamlet. Na carta que deixou para o seu dedicado<br />

marido, Leonard <strong>Woolf</strong>, confessava que se sentia novamente<br />

presa da loucura, declarando, no entanto, numa tentativa<br />

de o ilibar de qualquer responsabilidade, que abandonava<br />

este mundo com uma derradeira certeza: “Não<br />

creio que duas pessoas possam alguma vez ter sido mais<br />

felizes do que nós fomos”.<br />

Virgínia <strong>Woolf</strong><br />

1 - Uma carta suicida e uma cenografia<br />

shakespeariana<br />

Numa antologia de cartas de suicidas, compilada pelo historiador<br />

e jornalista alemão Udo Grashoff, recentemente<br />

publicada pela Editora Quetzal (“Vou-me embora: Cartas<br />

suicidas”) 3 , podemos ler que em 2001 apareceu por primeira<br />

vez na literatura médica uma carta de despedida de<br />

um suicida por s.m.s. Mais uma demonstração do velho<br />

adágio: Vinho velho em odres novos. No livro de Grashoff,<br />

o leitor pode deparar-se com frases lapidárias de despedida,<br />

últimas linhas inscritas no limiar da morte, expressão<br />

e extracto de contradições insolúveis, como a de um jovem<br />

com psicose maníaco-depressiva que termina a sua missiva<br />

com a frase terrível “é preferível um fim com medo do<br />

que um medo sem fim”. O autor confessa na introdução<br />

2 - A mãe do romance do século XX<br />

Virgínia <strong>Woolf</strong> é considerada mãe das inovações formais e<br />

estilísticas do romance do século XX. Para o título de pais<br />

existem mais candidatos: Joyce e Faulkner, entre outros.<br />

Um doente meu dizia-me recentemente numa consulta,<br />

tentando argumentar o prazer suscitado pela leitura de “O<br />

linguado” de Günter Grass, que afinal todas as histórias já<br />

tinham sido contadas, e que o que permitia diferenciá-las<br />

era o estilo. E o estilo é a palavra fulcral que poderia definir<br />

a obra de Virgínia <strong>Woolf</strong>: um estilo caracterizado pelo desenvolvimento<br />

e depuração do monólogo interior, esse<br />

recurso literário que tenta, usando as próprias palavras da<br />

autora, iluminar “as obscuras veredas da mente”, ou,<br />

usando as palavras de Vargas Llosa, “desaparecer nas<br />

consciências dos personagens, transubstanciar-se com<br />

elas.” 5 Nos seus romances o leitor assiste perplexo a uma<br />

permeabilização absoluta entre o mundo interior da<br />

consciência dos personagens e o mundo exterior, movi-<br />

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Volume VIII Nº3 Maio/Junho 2006<br />

Leituras / Readings<br />

mentos subtis que fazem que a leitura das suas obras seja<br />

uma experiência única, por vezes, deslumbrante, embora<br />

esforçada e cansativa.<br />

Li em algures que um critico literário, mestre da ironia, tentando<br />

sublinhar o carácter soporífero da obra da romancista<br />

inglesa, afirmava reservar a sua leitura para depois da<br />

sua morte (da do crítico, é claro). Talvez desconheça este<br />

crítico sagaz e brincalhão a existência de uma pequena<br />

ermida na Galiza, perdida nas falésias do norte, famosa<br />

pelo lema ameaçador e admonitório que usava para atrair<br />

os peregrinos, que se dirigiam preferentemente a Santiago<br />

de Compostela: “A San Andres de Teixido, vai de morto,<br />

quen non vai de vivo”. Eu, pelo sim ou pelo não, já lá fui; e<br />

confesso que também já li a Virgínia <strong>Woolf</strong>. Se calhar, porque<br />

prefiro não imaginar-me habitante de um círculo do<br />

inferno, não pensado pelo Dante, onde os pecadores fossem<br />

submetidos ininterruptamente à leitura das obras da<br />

autora inglesa.<br />

concluir. Pensava, como qualquer dos seus contemporâneos,<br />

que o papel da mulher devia limitar-se a ter filhos,<br />

cuidar do bom funcionamento da casa e servir de suporte<br />

afectivo incondicional do homem; qualquer saída deste<br />

esquema preconcebido era considerada extemporânea e<br />

condenada ao fracasso social e pessoal. A mãe, Júlia<br />

Stephen, uma boa materialização dos princípios acima<br />

referidos, dedicava os seus dias a supervisionar o adequado<br />

funcionamento da casa, reservando o seu tempo<br />

livre para acções de caridade, atendendo doentes moribundos<br />

e ajudando às famílias necessitadas. A sua defesa dos<br />

velhos valores vitorianos, que compartilhava com o seu<br />

marido, determinou que assinasse um documento oficial<br />

contrário às reclamações das sufragistas. Os pais de<br />

Virgínia tinham ficado viúvos dos seus respectivos primeiros<br />

casamentos, casando em segundas núpcias. Do primeiro<br />

casamento, Leslie tinha uma filha (Laura, portadora<br />

3 - Uma infância à sombra da Rainha Vitória<br />

Adeline Virgínia Stephen nasceu em 1882 no aristocrático<br />

bairro londrino de Kensington, no seio de uma família da<br />

alta classe média instruída. A sua casa, no nº 22 de Hyde<br />

Park Gate era o cenário adequado para aquela vetusta<br />

família vitoriana: uma casa de cinco andares, de paredes<br />

pintadas predominantemente a preto e cores escuras,<br />

preenchida de móveis inúteis, onde as eras da parede exterior<br />

e as grossas cortinas do interior pareciam aliar-se para<br />

impedir a entrada da escassa e cinzenta luz dos Invernos<br />

londrinos. Jane Dunn, a autora do livro “A Very Close<br />

Conspiracy”, biografia paralela de Virgínia e Vanessa,<br />

descreve o espírito repressivo e lúgubre desta casa: “Não<br />

havia vistas, não havia horizontes, só camadas e mais<br />

camadas de recordações familiares, muitas delas dolorosas,<br />

todas viradas para o passado.” 1 O pai, Leslie Stephen,<br />

era um conhecido intelectual vitoriano: antigo clérigo e<br />

catedrático de Cambridge, erudito circunspecto, filósofo<br />

agnóstico e jornalista, cujas cumpridas barbas brancas lhe<br />

conferiam um ensimesmado aspecto profético. Este<br />

patriarca permanecia dias a fio fechado na sua biblioteca,<br />

dedicado ao trabalho de redigir um monumental e enciclopédico<br />

Dictionary of National Biography (Dicionário de<br />

Biografias Nacionais), tarefa titânica que não conseguiu<br />

Leslie Stephen<br />

de deficiência mental, que passou a maior parte da sua<br />

vida internada numa instituição); e Júlia tinha três filhos<br />

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Leituras / Readings<br />

Saúde <strong>Mental</strong> <strong>Mental</strong> Health<br />

(George, Gerald e Stela). Do segundo casamento nasceram<br />

quatro filhos: Vanessa, Virgínia, Thoby e Adrian.<br />

Aquelas quatro crianças brincavam à sombra do palácio de<br />

Kensington (onde tinha nascido a Rainha Vitória, o símbolo<br />

da época), perseguindo esquilos e fadas pelos verdes relvados<br />

dos jardins de Kensington e Hyde Park, como as<br />

crianças protagonistas do livro Peter Pan de Barrie.<br />

Durante os meses de verão a família deslocava-se a uma<br />

casa de campo em St. Ives, na costa de Cornualles,<br />

paraíso marítimo que Virgínia tentaria mais tarde recriar no<br />

seu romance Rumo ao farol. No entanto, nem tudo era tão<br />

idílico na infância destas crianças, que precocemente<br />

viram-se obrigadas a seguir os percursos preestabelecidos<br />

por aquela sociedade fechada e anquilosada: os rapazes<br />

foram preparados para seguir estudos superiores,<br />

enquanto as duas raparigas eram educadas para ser boas<br />

amas de casa, recebendo uma educação rudimentar,<br />

baseada em conhecimentos básicos de música e dança,<br />

na aprendizagem da direcção do serviço doméstico e no<br />

conhecimento do ritual do chá, tudo orientado para o objectivo<br />

final e imprescindível do casamento.<br />

Imaginamos a Virgínia, que já despontava como uma<br />

criança perspicaz e imaginativa, olhando extasiada para o<br />

seu pai, enquanto este lia, mergulhado entre montes de<br />

livros, desejosa de absorver os seus conhecimentos enciclopédicos,<br />

tornando-se ela própria uma infatigável leitora.<br />

A escritora sempre respeitou e reconheceu a categoria<br />

intelectual do pai, embora nunca conseguisse perdoar-lhe<br />

os seus inamovíveis esquemas machistas, “as mulheres<br />

não sabem escrever nem pintar” era uma das suas famosas<br />

frases lapidárias. No entanto, apesar deste rígido<br />

esquema familiar, as duas irmãs conseguiram furar subrepticiamente<br />

o esquema: Vanessa entrou na Royal Academy<br />

Schools para estudar pintura, e Virgínia conseguiu a autorização<br />

do seu pai para receber explicações de grego clássico,<br />

fortalecendo assim uma formação forçosamente autodidacta.<br />

Mas o destino reservava para as duas irmãs um<br />

precipitado acesso ao mundo dos adultos: a morte da mãe,<br />

na sequência de uma pneumonia, deixou, especialmente<br />

às duas filhas, num estado de fragilidade extrema no limiar<br />

da vida adulta. Virgínia encontrou na crisálida das borboletas<br />

nocturnas uma metáfora adequada para a situação de<br />

aquelas duas adolescentes, abandonadas num ponto<br />

situado entre a infância e a adolescência; no seu diário<br />

podemos ler: “Com as suas patas e antenas pegajosas e<br />

trementes, esperando um momento, junto ao casulo partido,<br />

as asas húmidas e ainda coladas, os olhos deslumbrados,<br />

incapaz de voar” 1 . A sensação de que nunca tinham<br />

sido suficientemente amadas, especialmente pela mãe,<br />

que as abandonou prematuramente, uniu as duas irmãs<br />

numa simbiose emocional que foi fundamental na vida de<br />

Virgínia. Mas a morte iria tornar-se uma presença contínua<br />

na vida de Virgínia: à morte da mãe seguiu-se a da meiairmã<br />

mais velha (Stela), autentica mãe em funções; e, finalmente,<br />

a morte do pai por cancro, nove anos depois (já na<br />

vida adulta, ainda seria abalada pela morte do irmão mais<br />

velho, Thoby). Estas perdas sucessivas deixaram aos quatro<br />

irmãos sob a soturna tutela de George, o meio-irmão<br />

mais velho, enquanto Vanessa era obrigada a assumir o<br />

papel de ama de casa, vago após a morte da mãe. Foram<br />

dias difíceis para as irmãs Stephen, pois George, representante<br />

fiel do velho credo vitoriano, tentou, durante algum<br />

tempo, introduzi-las no mundo da alta sociedade londrina,<br />

procurando com rapidez candidatos adequados para os<br />

seus imprescindíveis casamentos.<br />

4 - O Grupo de Bloomsbury<br />

A Rainha Vitória - a avó da Europa - cujo reinado se estendeu<br />

durante sete longas décadas, tinha morrido com o despontar<br />

do século, em 1901, deixando passo ao período<br />

eduardiano. Pouco tempo depois, em 1904, os quatro<br />

irmãos, decidem libertar-se do jugo de George e mudamse<br />

para Gordon Square, no bairro boémio e mais barato de<br />

Bloomsbury. Vanessa, pintora e decoradora, esforçou-se<br />

por impor na nova casa de Bloomsbury um estilo em tudo<br />

diferente ao da velha casa vitoriana de Kensington: espaços<br />

abertos, paredes brancas, poucos móveis, luz abundante.<br />

Um espaço adequado para uma fase nova, cheia de<br />

expectativas, que se abria nas suas vidas. Virgínia escreveu<br />

no seu diário: “A fenda que atravessamos entre<br />

Kensington e Bloomsbury era como a que existe entre a<br />

impostura respeitável e mumificada e a vida tosca e talvez<br />

impertinente, mas vida ao fim.” 1 O irmão mais velho de<br />

Virgínia, Thoby, que estudava em Cambridge, começou a<br />

convidar os seus colegas de universidade à nova casa de<br />

Bloomsbury, assumindo as irmãs o papel de anfitriãs.<br />

Assim, surgiram os serões das quintas-feiras à noite,<br />

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Leituras / Readings<br />

acompanhados de chocolate e bolachas, gérmen do denominado<br />

Grupo de Bloomsbury, o grupo de intelectuais que<br />

haviam de renovar o panorama cultural inglês, fazendo tremer<br />

os pilares da sociedade vitoriana. O núcleo do grupo<br />

estava inicialmente formado pelos críticos de arte Clive Bell<br />

e Roger Fry, os escritores Lytton Stratchey e E.M. Forster,<br />

o que se iria tornar famoso economista Maynard Keynes, o<br />

intelectual socialista Leonard <strong>Woolf</strong>, e o pintor Duncan<br />

Grant. Todos eles compartilhavam uma visão racionalista,<br />

agnóstica e pacifista, durante alguns anos bastante boémia,<br />

e frontalmente contrária aos velhos ideais vitorianos e<br />

ao seu excesso de formalismos nas relações sociais. O<br />

grupo, que recebeu (e ainda recebe) críticas azedas pelo<br />

seu snobismo cultural, caracterizou-se por uma grande permeabilidade<br />

perante as novidades plásticas e intelectuais<br />

vindas do continente (foi este o grupo introdutor das escolas<br />

pictóricas pós-impressionistas e da psicanálise no<br />

mundo anglo-saxónico), e assumiu uma atitude permissiva<br />

e desinibida em termos sexuais (Stratchey, Forster e Grant<br />

eram homossexuais; Keynes e Adrian – o irmão mais novo<br />

de Virgínia - mantiveram relações homossexuais até a<br />

altura dos seus casamentos; e existiram ainda vários triângulos<br />

amorosos, como os formados por Vanessa, Duncan<br />

Grant e David Garnett; e Lytton Stratchey, Ralph Partridge<br />

e Dora Carrington).<br />

5 - Feminismo e Movimento Sufragista<br />

Virgínia <strong>Woolf</strong> pintada por Vanessa Bell<br />

Virgínia <strong>Woolf</strong> sofreu na própria carne as limitações impostas<br />

às mulheres pela sociedade vitoriana. Num dos seus<br />

livros podemos encontrar a seguinte critica irónica aos princípios<br />

tacitamente aceites por aquela sociedade: “Ao longo<br />

dos séculos as mulheres têm servido de espelhos, possuindo<br />

o poder mágico e delicioso de reflectir a figura do<br />

homem duplicando o seu tamanho natural… Se ela<br />

começa por dizer a verdade, a figura no espelho encolhe; a<br />

sua aptidão para a vida diminui. Como é que ele vai continuar<br />

a julgar, a civilizar os selvagens, a fazer leis, a escrever<br />

livros, a vestir-se com fatos de cerimonia e a discursar<br />

em banquetes se não se vir ao pequeno-almoço e ao jantar,<br />

pelo menos, com a sua estatura duas vezes maior que<br />

a realidade?”. 6 A sua luta pessoal para se abrir um espaço<br />

nesse mundo, quase vedado às mulheres, decidiu-a a<br />

escreve dois livros que se tornaram precursores do feminismo<br />

(“Um quarto só para si” e “Three Guineas”), onde<br />

fez uma análise da situação da mulher na Inglaterra da sua<br />

época. No primeiro dos livros referidos, a nossa autora<br />

chega a singela conclusão de que “a liberdade intelectual<br />

depende de situações materiais” 6 , sublinhando as necessidades<br />

materiais básicas para a mulher criadora: um quarto<br />

próprio com fechadura na porta, espaço protegido para a<br />

intimidade; e uma quantidade económica mínima (que calculou<br />

em quinhentas libras por ano) que permitisse a sua<br />

independência. O seu feminismo fez com que se implicasse,<br />

embora de maneira muito tangencial e indirecta, no<br />

movimento sufragista, escrevendo o endereço nos envelopes<br />

da associação (convém recordar que a sua mãe,<br />

alguns anos antes, tinha tido um papel bem mais directo e<br />

diametralmente oposto, ao assinar um documento contrário<br />

ao direito ao voto das mulheres). Embora sempre se man-<br />

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Leituras / Readings<br />

Saúde <strong>Mental</strong> <strong>Mental</strong> Health<br />

tivesse afastada da luta politica directa, participou pontualmente<br />

apoiando as actividades do seu marido Leonard no<br />

Partido Trabalhista, e dando aulas gratuitas para operárias<br />

fabris.<br />

6 - Sexualidade e Psicanálise<br />

A sexualidade complexa e ambígua da escritora inglesa<br />

tem sido objecto de múltiplos estudos. Os abusos sexuais<br />

de que foi vítima por parte dos seus meio-irmãos George e<br />

Gerald durante a sua infância - tema que abordou explicitamente<br />

nos seus diários – terão deixado nela uma ferida<br />

aberta que interferiu de maneira definitiva nas suas relações<br />

como os homens, e permitiria explicar, pelo menos<br />

em parte, a sua conhecida frigidez. Aos cinquenta e nove<br />

anos de idade, dois meses antes de morrer afogada, escrevia<br />

à sua amiga Ethel Smyth. “Ainda me estremeço de vergonha<br />

ao recordar o meu meio-irmão… explorando as minhas<br />

partes íntimas”. 1 O seu casamento com Leonard,<br />

baseado num afecto autêntico, e na amizade e respeito<br />

mútuo, foi praticamente assexuado, pelo menos nos últimos<br />

anos da sua vida. Fica ainda o seu famoso homoerotismo,<br />

sempre ávido de figuras maternais, baseado na fascinação<br />

que sentia pela sensibilidade feminina, e sustentado<br />

mais na compreensão e partilha emocional do que na<br />

atracção sexual. Em 1927, no entanto, conseguiu escandalizar<br />

a sociedade britânica ao assumir o seu relacionamento<br />

com a aristocrata, escritora e poetisa Vita Sackville-<br />

West, relação que inspirou o seu livro Orlando: a história<br />

de um homem que atravessa três séculos, ao tempo que<br />

muda de sexo, acabando o livro como mulher. A edição do<br />

livro, com fotografias de Vita, transformou-se num êxito de<br />

vendas. Numa das cartas dessa época encontramos esta<br />

descrição do relacionamento com Vita: “Ela colma-me de<br />

protecção materna que, por alguma razão, é o que mais<br />

desejo sempre de qualquer pessoa.” 4 Relativamente a<br />

maternidade, os diferentes médicos que a seguiram recomendaram-lhe<br />

evitar ter filhos, pelas eventuais consequências<br />

que poderia ter na evolução da sua doença psiquiátrica.<br />

Para a autora, que adorava crianças, esta proibição<br />

foi vivida com grande sofrimento, “penso que os meus<br />

esforços por comunicar com as pessoas são o resultado do<br />

facto de não ter filhos e do horror que às vezes me invade” 1 ,<br />

encontramos numa carta. É difícil não concordar com as<br />

palavras de Dunn, quando refere: “Virgínia não chegou a<br />

sair nunca totalmente da crisálida, onde existia como filha,<br />

e não conseguiu assumir a sua plena maturidade sexual e,<br />

com ela, a carga da maternidade.” 1<br />

É conhecida a rejeição que manifestava a nossa autora<br />

relativamente ao seu eventual seguimento psiquiátrico (ou<br />

psicanalítico). Da psiquiatria que poderíamos chamar mais<br />

médica e clássica, pintou um retrato implacável através da<br />

figura do psiquiatra que segue Septimus Severus, o comovente<br />

doente psicótico, torturado pelas recordações da<br />

Grande Guerra, protagonista do seu romance Mrs.<br />

Dalloway. Relativamente a psicanálise, manteve um interesse<br />

intelectual pela obra de Freud (que leu e publicou na<br />

sua editora Hogarth Press), chegando a conhecer o mestre<br />

vienense em 1939, no seu exílio de Hampstead; compartilhando<br />

este interesse com vários membros do grupo de<br />

Bloomsbury, que chegaram a estar ligados de forma directa<br />

à Sociedade Psicanalítica Britânica (James Stratchey, o tradutor<br />

da obra de Freud, e a sua mulher Alix; e o seu próprio<br />

irmão Adrian Stephen, que estudou o curso de Medicina<br />

para se transformar depois em conhecido analista, tal<br />

como sua mulher Karin). No entanto, apesar da natureza<br />

da sua própria obra, tão introspectiva e dirigida para o<br />

estudo da subjectividade e da voz interior dos personagens,<br />

a escritora sempre recusou deitar-se no divã, talvez,<br />

porque como Hemingway, pensava que a sua autêntica<br />

analista era a sua máquina de escrever. Por sua vez, o seu<br />

marido Leonard também pensava que a natureza do quadro<br />

de Virgínia não iria responder à terapia psicanalítica.<br />

Podemos encontrar, no entanto, espalhadas pelos seus<br />

livros, iluminações sobre o sono:<br />

“Mas se de sono se tratara, não podemos deixar de perguntar<br />

qual é a natureza de tais sonos… Terá o dedo da<br />

morte que poisar de tempos a tempos no tumulto da vida<br />

para que este nos não destrua? Seremos feitos de tal<br />

massa que precisemos de tomar diariamente pequenas<br />

doses de morte, sob pena de não conseguirmos cumprir a<br />

missão de viver?” 7<br />

“No entanto, é na nossa ociosidade, nos nossos sonhos,<br />

que a verdade imersa vem, por vezes, ao de cima.” 6<br />

Ou reflexões sobre a disparidade entre o tempo mental e o<br />

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Volume VIII Nº3 Maio/Junho 2006<br />

Leituras / Readings<br />

tempo do relógio:<br />

“A alma do homem, aliás, age de forma igualmente<br />

estranha sobre o corpo do tempo. Uma hora, alojada no<br />

bizarro elemento do espírito humano, pode valer cinquenta<br />

ou cem vezes mais que a sua duração medida pelo relógio;<br />

em contrapartida, uma hora pode ser fielmente representada<br />

no mostrador do espírito por um segundo.” 7<br />

7 - Psicose Maníaco-depressiva ou<br />

Perturbação Esquizoafectiva?<br />

Virgínia <strong>Woolf</strong> sofreu uma doença que começou na adolescência<br />

(já nessa altura os irmãos costumavam chamá-la “a<br />

Cabra louca”, epíteto que ela aceitava com boa disposição),<br />

caracterizada por alterações do humor, na forma de<br />

episódios depressivos e/ou disfóricos, associados ocasionalmente<br />

a sintomas psicóticos não congruentes com o<br />

humor (actividade alucinatória auditiva na forma de vozes,<br />

umas vezes vozes em comando que lhe mandavam fazer<br />

coisas desatinadas, outras vezes ouvia os pássaros cantando<br />

em grego clássico ou referia ouvir o rei Eduardo VII<br />

falando de forma imunda entre os arbustos). Durante as<br />

fases depressivas ficava acamada, recusando qualquer alimento,<br />

e apresentava insónias, crises de palpitações,<br />

ideias delirantes de culpabilidade e autoreferenciais, e sintomatologia<br />

somática (intensas cefaleias que a incapacitavam<br />

para qualquer actividade intelectual). O seu sobrinho<br />

Quentin Bell, na sua biografia, descreve com grande<br />

riqueza de detalhes os sintomas destas crises depressivas:<br />

“Acreditava que as pessoas se riam dela, que era a causa<br />

dos problemas de todas as pessoas; sentia-se invadida por<br />

um sentimento de culpa pelo qual devia ser castigada.<br />

Chegou a estar convencida de que o seu corpo, de alguma<br />

maneira, era monstruoso, com uma sórdida boca e um sórdido<br />

intestino que pediam comida (…) a única solução era<br />

recusar-se a comer. As coisas materiais adoptaram aspectos<br />

sinistros e imprevisíveis, bestiais e horríveis.” 4 Existe o<br />

registo de, pelo menos, cinco ou seis episódios depressivos,<br />

dois deles depois da morte da mãe e do pai (prováveis<br />

quadros endo-situacionais). Existe ainda um episódio, em<br />

1915, em que terá ficado num estado compatível com um<br />

episódio maníaco: “entrou num estado de frenesi verborreico,<br />

falando de forma mais turbulenta e incoercível, até<br />

cair numa total incoerência e afundar-se no coma.” 4<br />

Durante os episódios, com o apoio e a presença continua<br />

de Leonard e Vanessa, permaneceu internada em casas<br />

de saúde e sanatórios, pois sempre recusou os internamentos<br />

psiquiátricos. A prescrição básica consistia em<br />

repouso, comida, sossego e evitar excitações intelectuais,<br />

ao que se acrescentava a escassa farmacopeia disponível<br />

nessa época (veronal, paraldeido, hidrato de cloral ou vinho<br />

quente para a insónia, e aspirina para as cefaleias). Como<br />

refere Jane Dunn, fora dos episódios, a sua vida e a sua<br />

actividade criativa, foram perfeitamente normais, “De<br />

acordo com seus próprios cálculos, Virgínia cedeu à<br />

doença apenas cinco anos de uma vida que durou quase<br />

sessenta. A sua vida esteve caracterizada por um trabalho<br />

intenso, uma grande claridade intelectual, uma alegria de<br />

viver e uma visão absolutamente lúcida das coisas.” 1 Na<br />

carta que deixou escrita antes de suicidar-se, confessava<br />

apresentar novamente alucinações auditivas: “Comecei<br />

novamente a ouvir vozes e não me posso concentrar” 4 .<br />

Previamente tinha tido duas tentativas de suicídio: na primeira<br />

delas atirou-se de uma janela, na segunda fez uma<br />

ingestão de grandes quantidades de veronal. A maioria dos<br />

autores que tentaram analisar a doença psiquiátrica de<br />

Virgínia <strong>Woolf</strong> parecem concordar no diagnóstico de<br />

Psicose Maníaco-Depressiva (episódios depressivos recorrentes<br />

com sintomas psicóticos não congruentes com o<br />

humor para uns; perturbação bipolar para outros). 8,9 Para<br />

quem escreve, embora fiquem algumas dúvidas para<br />

excluir definitivamente o eventual diagnóstico de<br />

Perturbação Esquizoafectiva, a ausência de qualquer deterioração<br />

cognitiva parece inclinar mais o diagnóstico para a<br />

Psicose Maníaco-Depressiva.<br />

Existe ainda uma forte carga genética de tipo afectivo, que<br />

poderia explicar os quadros depressivos que também<br />

sofreram os irmãos de Virgínia, Vanessa e Adrian. Pelo<br />

menos, no caso deste último, temos a certeza que sofreu<br />

repetidas e graves depressões, e talvez foi a consciência<br />

da sua perturbação afectiva uma das razões que o empurraram<br />

à jovem disciplina da psicanálise. Como explica Jane<br />

Dunn no seu livro: “Parece evidente que os três compartilharam<br />

uma mesma herança genética e que viveram uma<br />

infância particular pelos privilégios intelectuais que gozaram,<br />

pelas desgraças pessoais que sofreram e pela repressão<br />

de qualquer manifestação de emotividade.” 1<br />

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Leituras / Readings<br />

Saúde <strong>Mental</strong> <strong>Mental</strong> Health<br />

Após a morte de Virgínia, Leonard confessou a Vanessa<br />

que tinha depositado as cinzas da sua mulher debaixo de<br />

um casal de ulmeiros que ela costumava chamar Leonard<br />

e Virgínia. Encima do tronco de um deles mandou colocar<br />

uma placa com as últimas linhas do romance As Ondas: “A<br />

<strong>Morte</strong> é o nosso inimigo. É contra a <strong>Morte</strong> que cavalgo de<br />

lança em riste e os cabelos flutuando ao vento.” 10 A figura<br />

de Leonard faz-nos pensar em todos aqueles homens e<br />

mulheres amantes, que observamos nas consultas dos<br />

nossos doentes, cuidadores infatigáveis, que conseguem<br />

acompanhar, dia a dia, a doença mental dos seus companheiros,<br />

aguentando situações que, por vezes, parecem<br />

insustentáveis, até para nós, cuidadores profissionais. A<br />

sua presença torna mais leves as horas mais negras e difíceis.<br />

Bibliografia:<br />

1. Dunn Jane (1993): Vanessa Bell, Virgínia <strong>Woolf</strong>. Circe. Barcelona<br />

(tradução espanhola do original inglês “A very close conspiracy”).<br />

2. Cunninghan M (2000): As Horas. Gradiva. Lisboa.<br />

Leonard <strong>Woolf</strong><br />

8 - E quem se lembra de Leonard <strong>Woolf</strong>?<br />

Leonard <strong>Woolf</strong>, intelectual judeu, socialista activo e comprometido,<br />

assume, nesta história, um papel secundário,<br />

embora transcendental. Ficará na história por ser o marido<br />

de Virgínia e talvez, por ter criado, junto com ela, a editora<br />

Hogarth Press, em cuja imprensa foram publicadas, entre<br />

outras, a obra completa de Freud vertida para o inglês por<br />

James Stratchey; ao lado das obras de outros autores da<br />

geração de Bloomsbury (os romances de E.M. Foster, para<br />

além, obviamente, de todas as obras da própria Virgínia) e<br />

de obras emblemáticas de outros autores contemporâneos<br />

(The Waste Land de T.S.Eliot, a poesia de Auden e<br />

Spender). Leonard foi, no entanto, o pilar imprescindível da<br />

vida de Virgínia, conseguindo ser, ao mesmo tempo, o<br />

marido tenaz e incansável, e o amigo capaz de servir de<br />

suporte emocional e artístico da criadora. Durante as múltiplas<br />

recaídas da sua doença mental, a sua presença (juntamente<br />

com a da irmã, Vanessa Bell) foi o factor decisivo<br />

para uma recuperação cada vez mais difícil.<br />

3. Grashoff, Udo (2006): Vou-me embora: Cartas suicidas. Editora<br />

Quetzal. Lisboa.<br />

4. Bell, Quentin (2003): Virgínia Wolf. Lumen. Barcelona (tradução<br />

espanhola do original inglês “Virgínia <strong>Woolf</strong>: A Biography”).<br />

5. <strong>Woolf</strong> V (2003): La señora Dalloway. Introducción de Mário<br />

Vargas Llosa. Lumen. Barcelona.<br />

6. <strong>Woolf</strong> V (2005): Um quarto só para si. Relógio D´Água. Lisboa.<br />

7. <strong>Woolf</strong> V (1994): Orlando. Relógio D´Água. Lisboa.<br />

8. Jamison KR (1993): Touched with Fire: Manic-Depressive Illness<br />

and the Artistic Temperament. The Free Press. New York.<br />

9. Gustavo Figueroa C (2005): Virginia <strong>Woolf</strong>: enfermedad mental y<br />

creatividad artística. Rev Méd Chile 2005; 133: 1381-1388.<br />

10. <strong>Woolf</strong> V (1988): As ondas. Relógio D´Água. Lisboa.<br />

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