A Crónica de um Erro Médico - Saúde Mental

Volume XI Nº3 Maio/Junho 2009
Leituras / Readings
mundo. A protagonista foi uma mulher que compensava a sua
pequena estatura — cerca de um metro e meio — com uma
determinação irredutível para lutar pelo seu amor contra ventos
e marés. O seu nome era Maria Adelaide Coelho da Cunha e
fazia parte da alta burguesia lisboeta. Era filha do fundador do
jornal Diário de Notícias e casou com Alfredo da Cunha, que
se iria tornar proprietário do mesmo jornal após a morte do pai
fundador. As vicissitudes da sua história, abordadas agora no
livro de Manuela Gonzaga “Doida não e não!”, já pertencem
ao imaginário popular de Portugal.
A história tem um início singelo: Maria Adelaide apaixonou-se
pelo seu chauffeur — um homem cerca de vinte anos mais
novo do que ela, de nome Manuel Cardoso Claro — e decidida
a deixar uma vida abastada e mundana, que no entanto a
tornava profundamente infeliz, foge com o homem dos seus
sonhos para ir viver com ele um curto idílio numa pequena e
esquecida vila da Beira Interior. Mas a estadia neste paraíso
bucólico dura o tempo necessário para que o marido traído e
ávido de vingança consiga organizar uma caçaria policial que
acabou com a captura da senhora e do amante.
Até aqui nada de original encontramos nesta história que parece
uma versão pacata de um dos romances de adultério de
Zola ou Flaubert: a inevitável relação triangular, a intervenção
da paixão arrebatadora que faz saltar pelo ar as barreiras de
classe e educação, a obrigada fuga, a breve sinfonia pastoral
dos amantes e o aparecimento final do marido traído.
Mas é depois da captura de Maria Adelaide e do amante — que
entretanto ficou preso na Cadeia da Relação do Porto — que
a história adquire tons mais tenebrosos e vira repentinamente
uma história bem mais kafkiana e lúgubre. Alfredo da Cunha,
ferido no seu orgulho masculino, obstina-se em retaliar o
comportamento da esposa apesar de ela ter declarado o seu
desejo de iniciar os trâmites do divórcio e, usando dinheiro e
influências, consegue interná-la no Hospital Conde de Ferreira
do Porto, longe da distinta sociedade lisboeta de que ambos
faziam parte, para evitar levantar muita poeira.
Neste hospital ela é observada várias vezes pelo director da
instituição, o Professor Magalhães Lemos, que, surpreendentemente,
não questiona o internamento. Começa assim um
pesadelo, que embora breve no tempo — apenas uns meses
— comove e por vezes provoca a indignação do leitor, nomeadamente
quando fica a saber que durante o tempo que
durou o internamento ela não recebeu qualquer medicação
ou tratamento específico para a suposta doença mental. Além
disso, somos testemunhas de como ela, antes de ter sido devidamente
avaliada por um perito psiquiatra, passa a ver toda
a sua correspondência interceptada, ao mesmo tempo que lhe
é colocada uma empregada espiã que se torna a sua sombra
e a vigia durante as vinte e quatro horas do dia. De igual forma,
as visitas dos familiares só são autorizadas ao fim de algum
tempo e sempre com o imprescindível beneplácito do marido.
Vale a pena assinalar como curiosidade que, a partir da altura
em que é aplicada a quarentena no hospital por causa da gripe
espanhola, as referidas visitas passaram a ser realizadas na
escadaria principal do hospital, convenientemente separados
os intervenientes por um profiláctico lanço de escadas.
Ao fim de algum tempo, a senhora acaba por ser periciada
por três famosos vultos da psiquiatria portuguesa da altura: o
todo-poderoso Júlio de Matos, o Professor Sobral Cid e aquele
que se iria tornar mais tarde Prémio Nobel de Medicina, o Professor
Egas Moniz. O relatório elaborado pelos três psiquiatras
conclui que a Senhora Maria Adelaide sofre de doença mental
grave que justifica a sua interdição. Os termos clínicos usados
são os habituais para a época: “degenerescência hereditária”,
“loucura lúcida”, “neurastenia”. Os peritos salientam o papel
da ovarite, a importante carga genética — para o qual vão
desenterrar patologia psiquiátrica eventualmente presente em
diferentes familiares mortos — e atribuem um relevo especial
às alterações hormonais associadas à menopausa que terão
provocado um recrudescimento sexual que impulsionou a
doente a quebrar todas as barreiras inibitórias… Tudo vago
demais, além de pouco consistente, para justificar a natureza
peremptória do procedimento e a decisão da interdição, tendo
em conta as repercussões que esta viria a ter inexoravelmente
para a capacidade civil e para o futuro dos bens da senhora.
Surge então a pergunta inevitável: como é possível que figuras
de capacidade reconhecida e tão importantes para a história
da psiquiatria portuguesa aceitassem participar num procedimento
que tinha por objectivo o internamento permanente
e a interdição de uma mulher que não apresentava qualquer
patologia psiquiátrica? A priori, são possíveis muitas hipóteses
explicativas, umas mais verosímeis do que outras: por dinheiro,
por erro de diagnóstico, porque o estado do saber psiquiátrico
na época deixava espaço teórico para que tais “processos
morais” acontecessem, talvez por eles se terem erigido em
representantes e defensores dos bons costumes ou do poder
patriarcal masculino… Será este caso, confirmando as teorias
de Foucault, mais uma demonstração da identificação do poder
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