Unica Zürn, a Alucinada Subtil - Saúde Mental
Unica Zürn, a Alucinada Subtil - Saúde Mental
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Volume XI Nº2 Março/Abril 2009 Leituras / Readings<br />
termos de atmosfera são marcadas por motivos extraídos de<br />
mitos e contos fantásticos, bem como pelo mundo do circo,<br />
dos saltimbancos e vagabundos. Os protagonistas são muitas<br />
vezes crianças, a quem, abandonada a realidade do dia-a-dia,<br />
acontecem coisas maravilhosas.<br />
A sua obra mais conhecida, O Homem-Jasmim, permaneceu<br />
inédita durante muito tempo, sendo publicada postumamente,<br />
primeiro em tradução francesa (Paris, 1971) e depois em alemão,<br />
em 1977. Até onde nós sabemos, esta é a única obra<br />
de <strong>Zürn</strong> da qual existe uma cuidada tradução em português,<br />
publicada pela editora & Etc. Nesta crónica documental e poética<br />
da sua loucura, <strong>Zürn</strong> narra o surgimento e a evolução dos<br />
seus delírios e alucinações, falando de si própria em terceira<br />
pessoa, como se se contemplasse de fora.<br />
A protagonista encontra em 1957, em Paris, um homem<br />
que considera a personificação da sua visão de infância do<br />
“Homem-Jasmim”. Mantém uma relação imaginária com esse<br />
homem, sabe-se hipnotizada à distância e segue as suas<br />
instruções. Surgem assim as vivências de influência e as alterações<br />
da consciência do eu. Os actos e estados próprios do<br />
eu são vivenciados não como próprios mas sim como dirigidos<br />
ou influenciados pelo Homem-Jasmim. “Um magnetizador<br />
maravilhoso, dotado de uma extraordinária força de vontade a<br />
hipnotiza, vá ela para onde for. Impõe-lhe a sua vontade e ela<br />
nada pode fazer contra isso. Foi assim que cometeu os actos<br />
mais extravagantes porque ele assim o queria”, podemos ler no<br />
livro. Em breve se separa dele. Deixa Paris e viaja para Berlim,<br />
sua cidade natal, onde é esperada por amigos. Durante a viagem,<br />
e já em Berlim, continuam os delírios, as alucinações, os<br />
fenómenos de automatismo mental. Primeiro saboreia o insólito<br />
do novo estado em que se encontra. “Se alguém lhe tivesse<br />
dito que era preciso ficar louca para ter estas alucinações,<br />
sobretudo a última, de bom grado teria aceitado. São a coisa<br />
mais espantosa que algum dia lhe foi dado ver.” A narradora<br />
faz esta apreciação; a protagonista age consciente de que as<br />
suas invulgares experiências são normais. Não se apercebe da<br />
diferença entre as alucinações e o mundo “real”, “parecendolhe<br />
absolutamente normal tudo quanto faz, não compreende a<br />
súbita cólera dos amigos.” O seu comportamento bizarro (por<br />
exemplo, atira pela janela os óculos dum homem desconhecido)<br />
leva-a por fim ao internamento numa clínica psiquiátrica. Os<br />
amigos berlinenses apoiam-na e animam-na durante a estadia<br />
na clínica. Finalmente é libertada, volta para Paris e retoma a<br />
vida que levava. Mais em breve surgem novos delírios e aluci-<br />
nações; volta a deixar o ambiente onde vive e esforça-se por<br />
conseguir uma nova vida independente. Também esta tentativa<br />
acaba numa clínica psiquiátrica.<br />
O livro tem linhas de contacto com o interesse do surrealismo<br />
pela loucura e pelas experiências que transcendem, através<br />
de alucinações induzidas, a realidade do dia-a-dia, como<br />
foi a experimentação com drogas (pensemos em Cocteau,<br />
Michaux ou Artaud). A alternância de perspectivas interior e<br />
exterior (vivência e comentário da loucura) cria uma tensão que<br />
se mantém até ao final da narrativa. Esta tensão é suportada<br />
através da excelente manipulação da alternância de planos da<br />
realidade e da memória, sonho e alucinação.<br />
O seu amigo André Pierre de Mandiargues, que definiu como<br />
“diabólica” a beleza de Única <strong>Zürn</strong>, referiu-se a ela como “uma<br />
alucinada subtil”. Sabemos que no fim do livro, ela própria<br />
questiona-se se a sua paixão pelo extraordinário e pelo mundo<br />
da imaginação não será a causa das frequentes recaídas na<br />
psicose, como se esta fosse uma válvula de escape ou um<br />
refúgio face à insatisfação provocada pelo mundo real. A sua<br />
foi, sem dúvida, uma vida vivida testando os limites, pondo<br />
a prova continuamente uma frágil estrutura psicoemocional,<br />
pendurada em equilíbrio instável na corda bamba entre a<br />
perversão e a psicose.<br />
Fig. 5- Capas dos livros de <strong>Unica</strong> <strong>Zürn</strong>.<br />
Bibliografia:<br />
Combalía V (2006): Amazonas con pincel. Vida y obra de las grandes<br />
artistas del siglo XVI al siglo XXI. Destino – Imago Mundi. Barcelona<br />
Foster H (2008): Dioses prostéticos. Akal. Madrid<br />
<strong>Zürn</strong> U (2000): O Homem-Jasmim. Editora & Etc. Lisboa<br />
<strong>Zürn</strong> U (2004): El trapecio del destino y otros cuentos. Siruela. Madrid<br />
<strong>Zürn</strong> U (2005): Primavera sombría. Siruela. Madrid<br />
<strong>Zürn</strong> U (2006): El hombre Jazmín. Siruela. Madrid<br />
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