Cartas entre amigos
Cartas entre amigos
Cartas entre amigos
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
de. Estamos engatinhando ainda em matéria de respeito. Fazemos<br />
pouco ou praticamente nada contra o recrudescimento da<br />
violência. E não precisamos ir longe. A dor mora bem ao lado,<br />
como dissemos.<br />
Uma vez, em um metrô lotado de pessoas apressadas, vi<br />
uma menina com uma boneca na mão, cabelos cacheados e um<br />
olhar triste, de mãos dadas com um pai cuja rudeza no olhar<br />
não escondia a pouca paciência com os passos lentos da filha.<br />
Puxava-a como se fosse um objeto enroscado. Sua pressa contrastava<br />
com a fragilidade da pequena. Olhou-me em algum<br />
momento. Ensaiei alguma conversa. O metrô parou. O pai a<br />
puxou e desceram. Fiquei por algum tempo imaginando a história<br />
familiar dos dois. A menina parecia triste. Podia ser apenas<br />
uma impressão minha. Mas ela passava-me tristeza, e ele,<br />
rudeza. Não tinha o poder de intervir. Ali não havia crime algum<br />
a não ser a criminosa falta de cuidado, de afeto. Fiquei conjecturando<br />
sobre a casa em que moravam, se tinha mãe a menina.<br />
Se tinha irmãos. Se o pai era agressivo. E, se fosse, como<br />
eu haveria de saber? Tenho essa mania, amigo, de tentar imaginar<br />
a vida dos outros. Aliás, esse é o nome de um filme alemão<br />
de 2006, ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro, que<br />
conta a história de um alto funcionário da Alemanha Oriental,<br />
incumbido de vigiar um dos maiores dramaturgos do país. Aos<br />
poucos, envolvido na trama de emoções que ele e sua mulher<br />
viviam, o antes impiedoso funcionário, acostumado a torturar<br />
para obter uma prova, se transforma. Um homem que não chorava<br />
passa a chorar; que não sorria passa a sorrir. A imagem foi<br />
moldando um novo conceito em sua história. Bastou o contato<br />
com o amor cotidiano para a metamorfose.<br />
15