Arquitetura e receptividade Simone Tostes Interpretar Arquitetura ...
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<strong>Arquitetura</strong> e <strong>receptividade</strong><br />
<strong>Simone</strong> <strong>Tostes</strong><br />
<strong>Interpretar</strong> <strong>Arquitetura</strong>, Edição 14<br />
O presente texto tem por objetivo questionar o espaço de <strong>receptividade</strong> potencial pela arquitetura<br />
de determinações oriundas das artes plásticas (críticas, práticas, teóricas) em termos de espaço,<br />
lugares, convenções, desconstrução. Como ponto de partida para tal questionamento, serão<br />
consideradas algumas experiências e idéias do arquiteto Adolf Loos e do artista Marcel Duchamp,<br />
por terem cristalizado nas respectivas obras questões cruciais que ainda hoje são pertinentes e<br />
reveladoras dos liames entre uma e outra disciplina.<br />
Será adotado a princípio o “recorte” de Georges Baird em seu The Space of appearance , no<br />
enfoque do arquiteto Loos referente à concepção contrária à Gesamtkunstwerk, a obra de arte<br />
total, e em seguida serão ampliadas as implicações por ele apresentadas, mostrando que mesmo<br />
em uma concepção da arquitetura pretensamente apartada das determinações artísticas, como é<br />
o caso de Loos, estão presentes os conflitos e questões que estas últimas põem em andamento.<br />
O arquiteto Adolf Loos, nascido em 1870, pertenceu à segunda geração de arquitetos modernos<br />
de Viena, que, como a primeira geração, manteve o afastamento com o tipo antigo de arte e<br />
imitação de exemplos ultrapassados. Na busca por uma nova expressão, artesanato e arquitetura<br />
ocupavam uma posição central nos experimentos de então. Desta segunda geração faziam parte<br />
os artistas que fundaram a Sezession vienense em 1897, dos quais Joseph Olbrich (nascido em<br />
1867) e Joseph Hoffmann (nascido em 1870) eram os líderes. Deste grupo fazia parte um<br />
arquiteto que posteriormente se tornaria um ferrenho oponente. Tratava-se de Adolf Loos, que<br />
começou sua carreira em Viena em 1896, após um período de três anos nos Estados Unidos.<br />
Seus escritos e seus projetos tiveram grande repercussão e de certa forma o isolaram das duas<br />
tendências polarizadoras da produção arquitetônica de então: de um lado, uma influência ainda<br />
poderosa de um estilo revivalista de decoração, e de outro o estilo modernista da Sezession, que<br />
se impunha gradativamente. Sua primeira manifestação controversa, Die Potemkinsche Stadt,<br />
publicada em 1898 no jornal do grupo, assinalou sua posição peculiar, marcando seu afastamento<br />
e o início da oposição com relação a seus pares e que se tornaria famosa postreriormente.<br />
Embora compartilhando com os componentes do grupo a consciência de que as formas antigas<br />
não mais se justificavam em tempos modernos, seu entendimento do que deveria guiar e ser uma<br />
concepção moderna de arquitetura diferia do grupo de maneira radical. Ao invés da exuberância<br />
da criação livre, sua concepção da arquitetura ligava-se a uma consciência social e a um<br />
entendimento bastante peculiar das necessidades humanas.<br />
A experiência de sua viagem aos Estados Unidos foi determinante para sua idéia do que deveria<br />
ser a vida moderna e a arquitetura adequada às condições de vida da modernidade. Diferente de<br />
sua Áustria natal, onde as condições de existência no campo e na cidade eram marcadas por<br />
diferenças e desigualdades profundas, a América que Loos conhecera não reservava, a seus<br />
olhos, grandes diferenças à vida do camponês, do operário e do habitante urbano, possibilitando,<br />
no seu modo de ver, uma identidade social cujo ideal se incorporou de modo definitivo a suas<br />
preocupações. Neste seu primeiro artigo, Die Potemkinsche Stadt, em que condenava o conjunto<br />
de palácios à moda barroca e renascentista que foram construídos em Viena no lugar das antigas
muralhas medievais, chamava de imoral esta arquitetura fundada sobre a mentira e a imitação de<br />
signos de um passado que já se fora. Uma sociedade burguesa que se camuflava sob a<br />
aparência de uma aristocracia em vias de desaparecimento, numa atitude que não compreendia<br />
as conseqüências das novas solicitações da existência moderna mereceu de Loos um repúdio<br />
contundente e explícito.<br />
Em 1900, publicou um outro ensaio, desta vez uma fábula cáustica, “A história de um pobre<br />
homem rico”, na qual ironizava a atitude autoritária do arquiteto, ao pretender planejar tudo, dos<br />
maiores aos menores detalhes de uma casa, tornando inabitável o espaço assim planejado. O<br />
resultado deste tipo de atitude foi descrito na fábula como um conjunto rígido e sem lugar para<br />
que a própria vida do cliente, representada na história por um presente de aniversário, pudesse se<br />
manifestar espontaneamente. Tratava-se na verdade de um ataque à concepção dos profissionais<br />
da Sezession, colocando em foco a concepção cultural conhecida como Gesamtkunstwerk, a obra<br />
de arte total, em termos arquitetônicos. Esta concepção, desenvolvida no final do século XIX, foi<br />
bastante familiar nas artes performáticas, das quais as óperas de Wagner eram exemplares.<br />
Constituíam-se numa forma artística híbrida de música, poesia e drama, na qual o impacto<br />
sinestésico amplificado pela sobreposição das diversas formas artísticas tinha seu efeito<br />
multiplicado sobre a audiência. Neste tipo de concepção, as fronteiras entre as diversas<br />
modalidades artísticas tornavam-se difíceis de serem estabelecidas. Por volta de 1900, as<br />
características de tal concepção total já se manifestavam nos meios arquitetônicos e das artes<br />
aplicadas, podendo ser identificadas a partir das seguintes estratégias, conforme Georges Baird<br />
(1992:32):<br />
Unidade fechada de concepção: desde a escala maior da configuração geral do projeto, até a<br />
menor, de talheres a cinzeiros, tudo era concebido pelo arquiteto.<br />
- Unicidade: não só a concepção da casa era completa, mas também única, específica para cada<br />
proprietário, de maneira a ser a própria expressão de sua individualidade<br />
- Assertividade: além de completa e única, a unidade conceitual da casa deveria ser aparente.<br />
Trata-se de uma abordagem da arquitetura e do projeto que assinala claramente um desejo de<br />
poder e controle por parte do arquiteto, assinalando também uma posição de passividade<br />
reservada ao “usuário”. Tais anseios certamente não devem ser pensados apenas como<br />
demandas e procedimentos puramente técnicos e neutros, mas pelo contrário, são de fato<br />
requerimentos necessários a toda uma construção ideológica e de poder por meio da qual a<br />
prática profissional se afirmava e se constituía a partir das novas demandas da sociedade<br />
capitalista da virada do século.<br />
Em seus escritos e projetos, Loos defendia uma outra abordagem da arquitetura, contrastando<br />
nitidamente com as características acima descritas. Novamente é Georges Baird quem assinala<br />
os traços característicos de sua abordagem:<br />
- Unidade aberta de concepção: seus projetos não refletiam o anseio de controle total da autoria<br />
dos diversos elementos; pelo contrário, acomodavam uma combinação mais heterogênea de<br />
objetos de diversas origens, sem que a unidade conceitual fosse cindida. - Tipicalidade: ao<br />
contrário da unicidade, Loos cultivava tipicalidade em suas obras: o uso de uma iluminação<br />
standard, fabricada em série, das poltronas de couro inglesas e dos móveis Thonet em madeira
vergada, estabeleceram um precedente claro dos objet-types que surgiriam posteriormente no<br />
desenvolvimento do vocabulário moderno da arquitetura. Para Loos, a individualidade do morador<br />
deveria ser estabelecida por ele mesmo, no uso dos espaços, e não pretensamente incorporada<br />
nos objetos.<br />
Todas essas questões apontam para uma série de desdobramentos, dos quais o primeiro é a<br />
distinção, fundamental para Loos, entre a concepção artística e a concepção dos objetos<br />
utilitários, ou dito de outra maneira, entre as artes autônomas e as aplicadas (que para ele não<br />
seriam arte). Para Loos, a arquitetura pertencia ao domínio das artes aplicadas, e desta condição<br />
e do material deveria sujeitar suas formas. Para o arquiteto vienense preocupações estéticas não<br />
deveriam incidir sobre as práticas não artísticas: a crítica à pretensão de uma expressão artística<br />
para os objetos utilitários e para os espaços arquitetônicos, característica dos integrantes da<br />
Sezession, foi exatamente o mote de “A história de um pobre homem rico”. Para Loos a<br />
consciência da distinção entre um e outro universos deveria interditar todos os comprometimentos<br />
da arte dentro da esfera dos objetos utilitários, uma vez que a confusão entre arte e artesanato,<br />
obra de arte e mercadoria constituíam em sua visão um grande equívoco a ser evitado. O<br />
arquiteto deveria trabalhar para as necessidades do homem moderno, e o que um artesão<br />
(marceneiro, serralheiro) pudesse fazer melhor que o arquiteto, graças a sua maior experiência,<br />
deveria ser deixado ao artesão. Loos considerava que as formas limpas que o artesão criava para<br />
seus artigos práticos eram as únicas válidas, corretas. Aqui, influenciado pelas idéias de Semper<br />
e a importância que este concedera aos objetos que respondiam a usos e meios precisos, e cuja<br />
repetição conduzia a seu aperfeiçoamento, Loos conferia à tradição desses ofícios práticos o<br />
status de instância ordenadora e exemplar para a criação arquitetônica. Mas estava consciente<br />
também que esta própria tradição se modifica: a sociedade de outrora, em lenta evolução, à qual<br />
correspondia o trabalho de um artesão operando na reprodução e aperfeiçoamento dos objetos<br />
utilitários, não existia mais. À estabilidade das formas produzidas pelo artesão se sucedeu a<br />
liberdade formal que autoriza o princípio da cópia e a renovação incessante dos objetos. Embora<br />
sob o risco da sedução da mera novidade, e da consequente obsolescência inexorável dos<br />
produtos, seria vão pretender voltar a um estado anterior, uma vez que a cópia constitui o caráter<br />
distintivo de nossa época. Em suas palavras: “Les siècles précédents n’ont pas copié. Cette<br />
activité est reservé à notre temps... elle est une conséquence de nos conditions sociales qui n’ont<br />
rien de commun avec celles des siècles passés” .<br />
Assim, a fim de se assegurar uma relação viva entre a sociedade e os objetos por ela produzidos,<br />
seria necessário estabelecer e definir as condições segundo as quais seriam legítimas tanto a<br />
cópia, como a modificação e a invenção dos objetos utilitários. E para tanto, seria necessário<br />
conhecer os fatores sempre presentes, o material e as influências diversas que permitiriam avaliar<br />
o aparecimento, a evolução e a obsolescência das formas. Os móveis utilizados em seus projetos<br />
são uma demonstração deste seu entendimento: modelos muito diversos tanto em sua forma, uso<br />
e procedência, escolhidos por sua eficácia e adequação, sem a preocupação de uma unidade<br />
formal. Assim, utiliza tanto as cadeiras em madeira vergada, produzidas industrialmente,<br />
contemporâneas, como uma cópia de um banco antigo egípcio. A tarefa do arquiteto consistiria,<br />
segundo Loos, em grande parte, em selecionar, entre tudo que está disponível, a solução correta<br />
em uma situação determinada. Tal seleção seria o verdadeiro motor da evolução durável das<br />
formas, acompanhando a evolução das necessidades e hábitos, ou trazendo um aperfeiçoamento<br />
das soluções anteriores. Somente sob tais condições seriam admitidas as soluções novas. Para
Loos, as novas necessidades estariam sempre ligadas ao conforto e ao bem-estar físico e moral<br />
da humanidade, assim como aos seus condicionantes: os deslocamentos, a comunicação, a<br />
higiene, a luz. Logo, não se trata absolutamente da exaltação da tecnologia ou da utilização<br />
estética das formas geométricas simples por ela geradas. A solução aos novos problemas não<br />
poderia responder à busca de um mero efeito de ruptura pretendendo diferenciar os novos objetos<br />
daqueles de épocas anteriores, mas deveria repousar sobre a estrita submissão a regras que se<br />
impõem igualmente a todos, reconstituindo um processo idêntico ao que permitiu às sociedades<br />
anteriores criar e disponibilizar objetos que não tinham sido herdados da tradição. Assim<br />
concebida por Loos, devendo renunciar à expressão artística e se submeter aos critérios de<br />
produção dos objetos utilitários, a arquitetura passou por verdadeira dessacralização, como<br />
observa Hubert Damisch (1975), estando reduzida a se exercer enquanto arte apenas em<br />
circunstâncias muito restritas.<br />
Este anseio de separação e delimitação das práticas artísticas e seus métodos na verdade reflete<br />
uma sensibilidade que ultrapassa os domínios artísticos e estéticos, caracterizando com a<br />
modernidade toda uma racionalidade que perpassa os diversos campos do saber, transformando-<br />
os em territórios estanques de conhecimentos especializados. Também a ciência, pretensamente<br />
apartada das determinações artísticas, se vê submetida a este regime de compartimentação,<br />
como explicita Cássio Hissa:<br />
“Algo do que se pode entender sobre a projeção da modernidade na ciência refere-se à<br />
fragmentação do saber e do conhecimento. Desvincula-se a arte da ciência, a ciência da filosofia.<br />
A ciência desmembra-se em várias ciências, em disciplinas buscando autonomia, em nome e à<br />
luz da racionalidade. A especialização levada ao extremo torna-se, ela mesma, um saber<br />
fragmentado que se faz insuficiente no processo de leitura da realidade. Todo esse processo, em<br />
termos gerais compreendido pela multiplicação das disciplinas científicas, pode ser interpretado<br />
como a criação de expectativas com respeito à autonomia disciplinar e, simultaneamente, como a<br />
multiplicação de fronteiras interdisciplinares” (HISSA, 2002:209).<br />
Trata-se de um movimento de separação e delimitação que vai gradualmente se aprofundando e<br />
se difundindo concomitantemente ao próprio desenvolvimento da modernidade.<br />
O que chama a atenção em toda a cruzada de Loos contra a concepção da arquitetura apoiada<br />
nas determinações artísticas é exatamente a coincidência de aspectos com esta sensibilidade<br />
moderna, criadora de separações e interdições que assenta-se sobre uma contradição irredutível:<br />
a reinvidicação das delimitações e separações de cada campo do saber e da ação na<br />
modernidade é ela mesma um traço que une todos estes campos pretensamente independentes.<br />
A delimitação encerra um vestígio de união e compartilhamento que se constitui como uma<br />
contradição inescapável.<br />
Desta maneira não é de surpreender o fato de a mesma dessacralização processada por Adolf<br />
Loos na arquitetura ser levada a cabo no domínio das artes plásticas, mais precisamente na figura<br />
de Marcel Duchamp, quase simultaneamente (os escritos de Loos antecederam em<br />
aproximadamente uma década os experimentos de Duchamp), e que levanta algumas questões<br />
sobre a pretensa distância entre os dois universos e entre a natureza dos problemas que estes<br />
dois domínios trazem à tona. A este respeito são bastante esclarecedores os argumentos de<br />
Theodor Adorno referentes exatamente a tais aspectos da abordagem de Loos:
“As artes utilitárias e não utilitárias não formam a oposição radical que ele supunha. A diferença<br />
entre o necessário e o supérfluo inere aos construtos e não se resume à sua referência a algo que<br />
lhes é exterior ou à ausência dessa referência [...] O utilitário e o não utilitário nos construtos não<br />
são separáveis entre si de maneira absoluta, porque estão historicamente imbricados” (ADORNO,<br />
1967:3).<br />
De acordo com o filósofo alemão, uma vez que a tradição não mais fornece o cânone do que é<br />
certo ou errado, cada obra deve examinar-se e proceder a esta reflexão (ADORNO, 1967:2), tanto<br />
no domínio da arte utilitária como no da arte autônoma. Em ambos os casos pode-se falar de<br />
contradições constitutivas, ligadas à utilidade ou à não utilidade, que aproximam os esforços<br />
reflexivos de um e de outro âmbito.<br />
Uma análise das questões envolvidas nos experimentos de Duchamp mostra que, ao contrário do<br />
que pensava Loos, as determinações presentes nas artes aplicadas também comparecem nas<br />
artes autônomas. Marcel Duchamp, nascido em 1887, foi um dos expoentes do movimento Dada,<br />
ao qual se filiou em 1918. Dentre seus inúmeros trabalhos, destacam-se os ready-made, objetos<br />
comuns introduzidos no âmbito artístico, dos quais o primeiro é a Bicycle Wheel, de 1913.<br />
Tratava-se de uma roda de bicicleta comum, apoiada sobre um banco como pedestal. Sua<br />
intenção fora desafiar as implicações codificadas pela arte como existentes nos museus e galerias<br />
da época: os critérios do valor artístico, assim como o próprio estatuto do objeto artístico.<br />
Escolhendo uma roda de bicicleta, objeto comum produzido industrialmente e portanto não<br />
originado da intenção de algum artista, podendo simplesmente ser substituído por outro idêntico,<br />
Duchamp perpetrou um ato de protesto dessacralizante contra o conceito de obra de arte. Sua<br />
escolha da roda de bicicleta, assim como posteriormente do porta garrafas (de 1914), do mictório<br />
(Fountain, de 1917), e dos demais ready-made deveu-se não por admiração por seu caráter de<br />
objeto industrial, suscetível de alguma beleza moderna, mas ao contrário, pelo fato de não<br />
pertencerem, a princípio, ao universo artístico. Segundo ele: “Um ponto que quero deixar bem<br />
claro é que a escolha desses ready-made nunca foi ditada pela apreciação estética. A escolha se<br />
baseou em uma reação de indiferença visual, ao mesmo tempo com uma total ausência de bom<br />
gosto ou de mau gosto, de fato, uma completa anestesia” (DUCHAMP, cf. STANGOS, 1993: 87)<br />
Essas operações de Duchamp, como de resto dos demais artistas Dada, fossem pintores ou<br />
poetas, consistiam em ações que podiam ser produzidas por qualquer um, não sendo necessário<br />
um surto de emoção ou um conhecimento técnico específico. Daí decorre que não só o cordão<br />
umbilical entre objeto e seu criador é rompido, como consequentemente, a diferença entre objeto<br />
produzido pelo homem (e até mais, produzido por um artista) e objeto produzido pela máquina<br />
deixava de existir. Sendo a escolha a única intervenção pessoal possível numa obra, e essa<br />
escolha (e não mais um procedimento operativo, técnico) o que conferiria o valor artístico ao<br />
objeto, o próprio estatuto de objeto artístico como aquele possuidor de uma qualidade específica é<br />
eliminado. Aqui podemos traçar um paralelo entre essas implicações e aquelas das idéias de<br />
Loos. A busca de elementos que retivessem um conteúdo de verdade que orientara as pesquisas<br />
de Loos pode ser comparada com a operação radical de Duchamp em demonstrar que tal<br />
conteúdo não era um atributo dos objetos, quer sejam artísticos ou utilitários. A visão de Loos da<br />
cópia como traço distintivo dos novos tempos e sua aceitação de objetos produzidos e<br />
reproduzidos industrialmente representou, à época, um avanço e uma sensibilidade não<br />
compartilhados com seus contemporâneos. A idéia do arquiteto como aquele que eventualmente
cria, mas que como condição distintiva de sua época é aquele que dispõe de um repertório em<br />
constante produção e a partir daí, opera mediante uma escolha, é bastante semelhante às<br />
questões que os ready-made de Duchamp trazem à tona. As questões da tipicalidade e da<br />
serialidade versus unicidade ( presentes tanto em Duchamp quanto em Loos), de certa forma<br />
enfatizadas pelo impacto da industrialização se ligam a questões anteriores a esta, mas por ela<br />
tornadas mais evidentes, ou seja, os critérios de universalidade e de especificidade. Se por um<br />
lado os objetos industrializados que Loos elege em seu repertório ainda pertencem ao domínio<br />
circunscrito dos móveis produzidos para um determinado fim e em sua utilização não fogem a<br />
este fim, ou seja possuem ainda uma especificidade que não é abandonada, por outro lado já não<br />
possuem o caráter de objeto único que tampouco os ready-made de Duchamp possuem. E<br />
diferentemente dos objetos utilizados por Loos, os de Duchamp têm sua especificidade subvertida<br />
ao migrarem do domínio prático, utilitário, para o artístico. Enfim, as bases sobre as quais se<br />
assentavam até então os critérios de valor são agora removidas. Como observa Argan:<br />
“Era inevitável que a arte, como atividade produtora de objetos-valor, findasse no mesmo<br />
momento em que a sociedade deixava de identificar o valor com objetos destinados a constituir<br />
um patrimônio a ser conservado e transmitido de geração a geração. O desenvolvimento<br />
tecnológico industrial levou à substituição do objeto individualizado e individualizante, feito pelo<br />
homem e para o homem, pelo produto autônomo, padronizado, repetido em séries ilimitadas: para<br />
uma sociedade que já não vincula a idéia do valor à realidade do objeto, não há serventia em<br />
objetos que sejam modelos de valor” (ARGAN, 1992:581).<br />
Desta maneira pode-se ver que mesmo quando pretensamente desvinculadas, as questões entre<br />
os dois universos se tocam de maneira clara. De fato as solicitações com as quais a cultura da<br />
modernidade se vê confrontada incidem em seus diversos campos de ação, e tal incidência pode<br />
ensejar diálogos frutíferos entre domínios arbitrariamente separados, de modo a enriquecer as<br />
reflexões de ambos. Portanto, apesar e em função mesmo das diferenças entre as artes<br />
autônomas e as utilitárias, as reflexões críticas de uma e outra<br />
Referências bibliográficas:<br />
ADORNO, Theodorn. Funcionalismo hoje. Tradução de Silke Kapp de Funktionalismus Heute, a<br />
partir de Theodor Adorno. Ohne Leitbild – Parva Aesthetica. Frankfurt a/M, Suhrkamp, 1967.<br />
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna- Do iluminismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo:<br />
Companhia das Letras. 1992<br />
BAIRD, Georges. The Space of appearance. Cambridge: The MIT Press, 1996.<br />
DAMISCH, Hubert. L’autre “ich”ou le désir du vide: pour un tombeau d’Adolf Loos. In Critique. A-<br />
Sept 1975, no.339-340. La Revue de l’École d’Architecture de Versailles. No.3, 1997. Pags. 40 a<br />
60.<br />
MUNZ, Ludwig, KUNSTLER, Gustav. ADOLF LOOS Pioneer of modern architecture. London:<br />
Thames and Hudson, 1966.<br />
STANGOS, Nikos. Conceitos da Arte Moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993. (<br />
pag.87)