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INTELECTUALIDADE BRASILEIRA
E MEXICANA DAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX:
PONTOS DE INTERESSE, MOVIMENTAÇÕES SIMÉTRICAS,
CONSTATAÇÕES INSTIGANTES
ANA LUIZA DE OLIVEIRA DUARTE FERREIRA 1
Meu objetivo hoje é apresentar um quadro comparativo dos universos intelectuais
brasileiro e mexicano, do início do século XX; e, para tanto, me inspiro nas reflexões teórico-
metodológicas do historiador belga Marcel Detienne.
Em meados da década de 1960 Detienne se apresentou como crítico no que diz
respeito ao costume da escola francesa dos Annales (sobretudo Marc Bloch) concentrar
esforços na primeira possibilidade de estudo comparado aventada por Émile Durkheim: a
comparação de unidades contíguas; e a consideração de marcos nacionais.
Autor de Comparar o incomparável, Detienne se dedicou à defesa do resgate da
segunda possibilidade de análise comparativa destacada por Durkheim; qual seja: entre
estruturas apartadas no espaço e no tempo. O fez, veja, porque percebia as sociedades em si
como conjuntos essencialmente complexos, variáveis, que assumem “por natureza” formas
múltiplas, fluidas e não hierarquizáveis; de forma que ele, Detienne, se sentia plenamente à
vontade para argumentar que cabia a si e aos historiadores a responsabilidade de estabelecer
os padrões de entendimento acerca do social (dentre os quais, tanto uma como outra das
possibilidades de comparação referidas: entre unidades contíguas e unidades apartadas no
espaço e no tempo).
Detienne nos dá um bom exemplo de quão interessante pode ser comparar o
“incomparável” para nós, historiadores de hoje: em seu livro mais famoso narra que em um
grupo de pesquisa coletiva comparada andavam os investigadores debatendo sobre os
conceitos basilares que deveriam assumir na próxima temporada; estavam chegando, juntos,
ao propósito de trabalhar as noções: “fundar, fundação, fundador”.
1 Doutoranda pelo PROLAM-USP.
Um dia, um dos japonizantes, há muito silenciosos enquanto avançávamos às
apalpadelas, intervieram para nos contar – estavam desolados com isso – que no
Japão, segundo os textos mais antigos, não havia fundação nem fundados. (...)
[Ora, essa descoberta não ocorreu por acaso. Foi] graças à provocação do
incomparável que uma categoria tão familiar como “fundar” veio a abalar-se,
rachar-se, desagregar-se (DETIENNE, 2004: 50).
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E será que o contrário não pode ser válido? E se ante a possibilidade de se comparar o
incomparável nos saltam aos olhos semelhanças que não se estabelecem por vias materiais ou
por vias visíveis a olho nu? Não é possível que desse viés possamos também partir para
questões filosóficas mais amplas?
Minhas fontes/objetos de análise são textos/imagens produzidos por filósofos, literatos
e artistas plásticos do Brasil e do México. E, sob pretensão didática mas também motivação
analítica, os dividido em três recortes temporais: as décadas de 1910, 1920, e 1930. Ora,
desses três momentos destaco como foram importantes, respectivamente, em ambas nações:
(1) a quebra de padrões na forma e no conteúdo do pensar e do criar e a temática do
urbano;
(2) a questão nacionalista; e
(3) a crítica das mitificações acerca do nacional e do Estado como agente cultural.
Embora aqui apresente esses três eixos temáticos desde já (quero dizer, antes de me
referir e citar fontes/objetos), o fato é que esses três eixos temporais/temáticos foram
definidos pouco a pouco; não vieram prontos. Foram definidos após e em razão de ter eu
realizado vaga e caótica leitura e observação da produção intelectual brasileira e mexicana no
princípio dos novecentos, assim como de pesquisadores, de diversas gerações, em análise
dessas conjunturas. Aqui os testo: endosso e complexifico. E admito: é preciso se investigar e
criticar mais.
Mas o fato é que a percepção cruzada dos universos intelectuais de Brasil e México,
para minha surpresa, resultou, afinal, um tanto harmoniosa.
É claro que não se pode falar em “homogeneidade” nem para o contexto de produção
literária e artística brasileira, nem para o mexicano, quanto menos para ambos, colocados lado
a lado. Porém, considero que há sim todo um contorno relativamente harmônico quando
sobrepomos ambas conjunturas.
De maneira que, no inventário de exemplos que segue, embora destaque
dessemelhanças e características próprias de cada país, aponto que fundamentalmente houve
algo como um movimento simétrico nos contextos brasileiro e mexicano. E destaco que, pelo
fato de isso ter ocorrido em grande medida de forma inconsciente, cabe a realização de
pesquisas mais radicais, sistêmicas e problematizadoras a respeito.
I.
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A década de 1910, para a intelectualidade brasileira, foi uma década de continuidades
e transformações. Como aponta Antonio Candido, eram entre nós os parnasianos os literatos
de maior renome, sendo eles os mais expressivos e pouco democráticos representantes da
Associação Brasileira de Letras. Contudo, já havia sintomas de inovação no trabalho dos
simbolistas (CANDIDO, 2010: 135).
É verdade que o simbolismo não tinha no Brasil a respeitabilidade do parnasianismo,
seus poetas eram popularmente rotulados jovens boêmios que não podiam ser levados muito a
sério, mas eles iam pouco a pouco imprimindo alterações significativas à noção de Literatura,
no Brasil.
Em Literatura e sociedade Candido pondera que os poetas simbolistas revelavam
interesse por questões ideológicas e estéticas, o que os diferenciava claramente dos
parnasianos, cujas obras se caracterizavam por um naturalismo plástico e pouco mais. Sim, os
simbolistas foram inovadores à sua maneira, porque apresentaram tanto um comportamento
quando uma métrica e interesses literários um tanto mais “livres”, “soltos”.
A vanguarda modernista vai, assim, conforme a análise de Candido, tomar emprestado
é do simbolismo esse curso de reflexão, de forma a investir mais e mais em pesquisa de temas
e formas.
Nas artes plásticas, sugere Sergio Miceli em Nacional estrangeiro, nas primeiras
décadas do século XX tinha maior projeção a arte decorativa e figurativa, sobretudo retratos e
naturezas mortas. E, a bem da verdade, a elite que bancava os jovens artistas não estava muito
disposta a apostar em grandes inovações; se comprava quadros ousados, não chegava a bancar
algum projeto ainda não concluído. Ainda assim, tais mecenas foram bastante importantes
para a renovação das artes no Brasil, financiando parentes e talentos em viagens para o
exterior, trazendo exposições estrangeiras, e organizando em suas próprias residências o
encontro com artistas de vários cantos do mundo (MICELI, 2003).
Anita Malfatti foi a primeira artista plástica brasileira a organizar uma exposição
pública com algo como uma pretensão de romper a estética tradicional. Não que o pretendesse
claramente; na verdade Malfatti dispunha de um espírito dócil e quieto. Mas o fato de ter se
proposto a inovar e ter enfrentado muitas críticas da opinião pública, dentre as quais a de
Monteiro Lobato, em conhecido episódio, ajudou efetivamente a aglutinar jovens intelectuais
brasileiros interessados na transformação das formas de se fazer literatura e arte no Brasil. E é
a partir do contato que trocaram nesse momento que a pintora e o comovido poeta paulista
Mário de Andrade se tornam amigos (ROSSETI, 2006).
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A mudança nas concepções estéticas, assim, foi pouco a pouco não apenas se
generalizando como ganhando um tom mais agudo e político no Brasil no início do século
XX: é nesse clima que é promovida a célebre Semana da Arte Moderna; fala-se então com
rigor do direito de se fazer uma arte livre e portanto nova.
Mas notem: como podemos observar nas obras de Malfatti comentadas por Lobato,
por ocasião de sua segunda exposição individual, em 1917, e também nos primeiros livros de
poemas de Mário – Paulicéia desvairada (1922) e Lozango cáqui (1926) (isso sem contar
evidentemente Há uma gota de sangue), a princípio as surpresas, sobretudo, foram formais.
No caso de Malfatti, atentemos para os borrões vanguardistas, de inspiração em
diversos pintores com quem ela convivera em passagens pela Alemanha e pelos Estados
Unidos; e temática variada: desde paisagens bem europeias, personagens estrangeiros, até
Negra baiana, de tom mais local, cujo nome foi apenas posteriormente alterado para Tropical.
Os dois referidos livros de poemas de Mário tampouco fizeram muito mais do que
romper com a métrica parnasiana – o que evidentemente era muito. Mas falar da cidade e de
procederes na cidade era coisa comum à Literatura, no Brasil; o que não era comum era fazê-
lo àquela maneira. Note que Mário só começará a considerar o tema do tropical, do nacional,
do brasileiro – e a trabalhar por uma construção, sistematização, evolução dessa temática-
tonalidade – bons anos mais tarde.
Mas aqui, estejamos atentos: isso não quer dizer que os vanguardistas brasileiros
voltassem as costas à tradição. Acredito que no Brasil seria impossível processarmos isso,
porque nossa história é marcada de continuidades e arcaísmos (para além dos exotismos). No
Prefácio interessantíssimo, que abre o livro Paulicéia desvairada, Mario assim se denomina,
provocativamente, “passadista”; e escreve: “ninguém pode se libertar de uma vez só das
teorias-avós que bebeu; e o autor deste livro seria hipócrita se pretendesse representar
orientação moderna que ainda não compreende bem” (ANDRADE, 1980: 14).
Isso é, afinal, igualmente notável no traço e nas cores de Malfatti e Di Cavalcanti, à
década de 1910. Não é mesmo? Há a mistura de traços, temas, cores, expressões mais
clássicos com mais novos. Não há um fio condutor muito bem delimitado, não. Afinal, o
propósito era fazer arte livre; e ainda não havia um “programa” modernista (ou vários, como
se verá adiante).
Tampouco no México o desejo de ruptura estética, para a Literatura como para a Arte,
surgiu prontamente. No caso dos literatos, desde o século XIX tinha-se a consolidação do
movimento chamado “modernista”, o qual incluía escritores que trabalhavam tanto poemas
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em tom mais parnasiano, como tom mais simbolista. Esse grupo, do qual podemos destacar o
nome de Enrique González Martínez, associável a expoentes estrangeiros como o
nicaraguense Ruben Darío, seguiu sendo bastante expressivo pelas décadas de 1910 a 1930, e
influenciou ou serviu como moeda política, ou alvo crítico – enfim, não passou em branco –
para todos os escritores mexicanos que aqui serão citados (LEAL, 1946).
González Martínez foi autor de um dos poemas mais analisados da História da
Literatura no México: Tuércele el cuello al cisne. Ali, zomba da métrica e da inspiração
plácida típica da primeira geração de poetas modernistas mexicanos, mais claramente
inspirada pelo parnasianismo. E assim, a despeito de trabalhar com a estrutura de soneto e em
métrica perfeita, a nós brasileiros faz lembrar Os sapos, de Manuel Bandeira.
A escolha do símbolo não é aleatória: a beleza, a perfeição, a brancura, a graciosidade,
a pureza de tais aves era sempre reverenciada pelos primeiros modernistas mexicanos. Mas
vale pontuar que González Martínez não apenas descreve a aparência física de cisnes, como
era comum entre os autores identificáveis ao parnasianismo; ele destaca características
subjetivas, compondo sutil prosopopeia metafórica: são impassíveis, “no sienten el alma de
las cosas ni la voz del paisaje” tal como acreditava que andavam a fazer os poetas
modernistas mexicanos de vertente parnasiana.
É então que a coruja passa a ser exaltada como novo símbolo poético, nos versos de
González Martínez: ela não é bela, vive na escuridão das florestas, na noite, mas está sempre
buscando mistérios a desvendar ao seu derredor.
Quer dizer: pode-se argumentar que foi dentre os modernistas, no México, que se
abriu pouco a pouco espaço para a gestação de elementos que hoje são considerados típicos da
estética de vanguarda.
Os primeiros escritores que se consideraram propriamente de vanguarda, no México,
entretanto, criticaram esses modernistas, e mesmo González Martínez, e se auto-denominaram
“estridentistas”. Se dizer “estridente” era uma forma de remeter ao dinamismo sonoro das
cidades e dos homens contemporâneos, vivendo aglomerados e trabalhando incessantemente
nas fábricas e no campo, a serviço do industrialismo insipiente; era uma metáfora que aludia a
algo que a escrita idílica modernista ignorava, e que nos lembra o título da primeira revista
vanguardista brasileira, a barulhenta Klaxon (KLICH, 2008).
Os estridentistas partiram da movimentação individual do poeta veracruzano Manuel
Maples Arce, que nos livros Andamios Interiores (1922) e Urbe (1924) apresentou
composições que rompiam com a métrica e a atmosfera romântica das composições hispano-
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modernistas. De forma caleidoscópica, em seus versos Arce falava sobre a vida nas cidades: a
paisagem absurda, os trabalhadores cansados, as formas de se relacionar transformadas. (Bem
semelhante ao tom de Mário em Paulicéia desvairada...)
Os autores que se associaram a Arce – Liszt Azurbide é outro nome importante –
formaram uma frente bem organizada, ligada ao governo do estado de Veracruz, do qual Arce
foi secretário. Pensavam esses autores em sua terra como um novo mundo, revolucionário, em
transformação, em movimento, voltado para o futuro. E a chamaram Estridentópolis.
Contrastará com essa postura engajada a de poetas ligados a González Martínez e seu
filho, Enrique González Rojo. Sim, porque já em meados da década de 1920 na capital do país
irá surgir um novo grupo vanguardista que não pretendia ser rotulado “grupo”, mas que
trabalhou por propostas mais ou menos comuns, e pela edição de uma revista literária de
grande repercussão: a revista Contemporáneos. Adiante retomarei os propósitos desses
autores, cruzando com propostas de autores brasileiros da época. Por enquanto cabe apenas
apontar que a experiência da revista pode ser dividida em dois momentos: um primeiro bem
marcado pela importância de Rojo, sob influência de Martínez; e um segundo um tanto mais
livre, sob os auspícios de autores bem jovens: sobretudo Salvador Novo e Xavier Villaurrutia
(SHERIDAN, 2003).
II.
No México, circularam entre os estridentistas pintores ditos “muralistas”, os quais
trabalharam com uma arte narrativa e colossal, na qual partiam de influências expressionistas
e traços primitivistas para abordar os mitos, a história e as utopias do México, em uma arte de
finalidade/propósito essencialmente públicos. Os muralistas – dentre os quais se destacam os
nomes de los tres grandes: Diego Rivera, Davi Alfaros Siqueiros e José Clemente Orozco –
tiveram subsídio do governo federal, e cobriram as paredes de dezenas de prédios
governamentais, sobretudo após a chegada de Álvaro Obregón à presidência (1920) e a
escolha de José Vasconcelos como Ministro da Educação e Cultura.
O governo de Obregón corresponde a um primeiro momento de maior
institucionalização da revolução. Na década de então, 1920, já havia maior estabilidade na
estrutura administrativa federal, e já não havia mobilizações tão disformes no campo, porque
Emiliano Zapata, líder do sul, havia sido assassinado (1919), e o do norte, Pancho Villa, logo
o seria (1923). Era, pois, momento de se rever a história da revolução, analisar os fatos
desdobrados desde 1910, e propor à população geral uma versão que consolidasse/legitimasse
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a forma como o poder se organizava, agora. Foi exatamente por isso que Obregón convidou
Vasconcelos – um influente intelectual – para trabalhar consigo. E foi por isso que
Vasconcelos trabalhou até 1924.
Vasconcelos defendia que se revisse a imagem depreciativa do mexicano e também do
ibero-americano em geral, e apresentou como lema da Universidade Nacional (agora
modernizada e reestruturada) a frase: “por mim raza hablará mi espíritu”. Apresentava-se,
assim, avesso ao materialismo/objetivismo norte-americano, e defendia um humanismo que
supostamente caracterizaria os povos americanos colonizados por espanhóis e portugueses, no
século XVI. O novo ministro da educação valorizou, então, por um lado, a arte popular
mexicana, o artesanato local, a música provinciana, mas também investiu na tradução edição
de clássicos universas, e montagem de bibliotecas camponesas. O mexicano era, afinal, a seu
ver, ibero-americano e universal. Devia resgatar sua auto-estima para melhor cuidar de sua
terra e para inspirar posturas mais humanas aos estrangeiros.
Nesse momento não apenas Vasconcelos mas muitos outros pensadores mexicanos se
dedicam a falar do que seria e deveria ser o mexicano; um outro bom exemplo é o professor
de Filosofia, Antonio Caso, autor de Discursos a la nación mexicana (1922).
Quanto à Literatura, importante lembrar que o poeta mexicano tido como o primeiro
vanguardista nacional, Maples Arce, propunha composições de temática urbana e
cosmopolita, em linguagem cadeidoscópica; entretanto, faz-se mister aqui destacar que essas
composições contrastavam nitidamente com os manifestos estético-ideológicos que o próprio
Maples Arce redigiu. Nos tais manifestos o tom era tradicionalista e nacionalista; bem
conforme o gosto de Vasconcelos e Obregón. Neles citava fatos da história mexicana, hábitos
alimentares e festas populares, expressões orais e chistes.
Eles eram, aliás, bem parecidos com os manifestos de Oswald na estrutura, e pelo fato
de fazerem menção a temas também presentes nos manifestos de Oswald.
Se pensarmos bem, aliás, facilmente atentamos para o fato de que também a política
cultural de Vasconcelos se aproximava às ideias de Oswald, expostas tanto no Manifesto Pau-
Brasil (1924) – a ideia de uma Literatura de exportação – como no Manifesto antropófago
(1928) – a ideia de uma cultura nacional essencialmente e pretensamente híbrida.
Se observarmos a produção artística brasileira da época, temos que Tarsila do Amaral,
que também teve formação europeia, voltou ao Brasil já ante os impactos da Semana, da qual
não participou. Seu Abaporu, criado com certeza sob influência do marido, Oswald de
Andrade, dialogava com a proposta antropófaga.
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E mesmo Mário fará uma curva em seus propósitos literários a partir de Clã do jaboti
(1927), no qual figuram os famosos poemas O poeta come amendoim, e os Dois poemas
acreanos, nos quais aborda explicitamente a tomada do desejo de falar sobre brasilidade. E no
qual figura também muitas outras composições que tomam o Brasil como tema (festas,
geografia, tipos populares) e, sobretudo, a estrutura das lendas nacionais, o modo de se
expressar do brasileiro comum, com gírias e ordenação de ideias – coisas que Oswald vinha
fazendo desde Memórias sentimentais de João Miramar e Poesia Pau-brasil (ambos 1924).
III.
Marca o surgimento de uma nova década intelectual, no Brasil, o desentendimento
entre Sérgio Buarque de Holanda e o grupo modernista, em 1926. É verdade que antes disso
aquele movimento que se pretendia “grupo”, mas que no mais das vezes correspondia à
expressão de diversas individualidades, tinha sido desenhado de rixas e rompimentos oficiais.
Não apenas o Grupo Anta se posicionou politicamente distinto, ao defender o integralismo,
mas também Oswald acabou rompendo com Graça Aranha, e depois com o inseparável amigo
Mário de Andrade. Entretanto, podemos dizer que foi Sergio – que respeitou Aranha como
um mestre, e amou a Mário e Oswald – quem teve um profundo senso de oportunidade ao
publicar, em 1926, um texto crítico de todo o movimento, com concessões mais suaves
apenas para à Antropofagia; e ainda assim bastante crítico a ela (HOLANDA, 1996).
Sérgio percebia, pois, e declarava formalmente que o modernismo trabalhara na
construção de uma Literatura nacional pelas vias da mitificação, e se sentia desconfortável
com isso. Via o modernismo servindo ao Estado getulista e se decepcionava. Largou a
carreira na capital carioca, doou todos os livros de sua biblioteca, e foi viver no interior do
estado do Espírito Santo.
É claro que Sergio não era o único insatisfeito. Literatos de grande renome, ligados à
Semana, já ousavam trabalhar temáticas variadas, para além do nacional: Carlos Drummond
de Andrade, Murilo Mendes, e Manuel Bandeira são bons exemplos disso. Assim, o primeiro
passou a se interessar mais e mais pela condição internacional do trabalhador explorado e da
guerra suja, embora não tenha deixado de falar em mineiridade assim como de fazer a crítica
da situação política do Brasil de então. O segundo, também mineiro, interessou-se sobretudo
pelo um sentido universalista da religião católica. E o terceiro, que publicara em 1930 o
emblemático livro de poemas Libertinagem, declarou-se afinal crítico inclusive do projeto de
Oswald: “Pau-brasil. Eu protesto. O nome é comprido demais. Bastaria dizer poesia pau. Por
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inteiro: Manifesto da Poesia Pau. Porque é poesia de programa e toda arte de programa é pau.
Aborrecem os poetas que se lembram de nacionalidade quando fazer versos. Eu quero ser
eventualmente mistura de turco com sírio-libanês. Quero ter o direito de falar ainda na
Grécia” (BORGES PINTO, 2001: 454).
Interessante, então, que Bandeira falasse justamente na Grécia. Porque no México, a
partir de 1932, houve uma querela contundente entre a segunda geração dos editores da
revista Contemporáneos e intelectuais mais tradicionalistas e esquematicamente nacionalistas,
e essa querela passou justamente pelo profundo interesse que esses novos poetas tinham pela
poesia clássica grega. Pelo interesse pela poesia grega, foram taxados de alienados,
descomprometidos com o sentido revolucionário, com os interesses nacionais, e, ademais,
afeminados. E defenderam o direito de acessar a Literatura dita “universal” como Literatura
também sua (afinal, entendiam o México não como uma realidade à parte, mas integrada à
Europa, ao mundo).
Em outras palavras: interessante (ok!), mas também óbvio que Bandeira e a segunda
geração dos Contemporáneos falassem em Grécia, certo? Bandeira e os Contemporáneos
foram intelectuais igualmente engajados num sentido cosmopolita, universalista de identidade
e arte.
Outro ponto que considero relevante: o professor da Universidade de Guanajuato
Andreas Kurz afirma, em artigo recente, que há um círculo de reflexão em torno da
mexicanidade que se abre com La raza cósmica e de fecha com El perfil del hombre y la
cultura en México (1934), escrito por Samuel Ramos. Isso porque esse filósofo ensaísta,
oriundo do estado de Michoacán, deixava em seu livro de propor uma alegoria do homem
americano, do homem tropical, do homem mexicano, para refletir sobre as imagens que o
mexicano teria de si; para refletir criticamente sobre o que até então se havia elaborado a
respeito. Em muitos pontos, assim, El perfil... se aproxima de Raízes do Brasil, clássico livro
do decepcionado Sérgio Buarque de Holanda (KURZ, 2008).
As artes plásticas também foram influenciadas por essa nota dissonante, no México,
que cortava com navalha crítica o tema da nacionalidade. É claro que los tres grandes
circularam entre os Contemporáneos. Ramos, aliás, foi amigo íntimo de Rivera, a quem
dedicou alguns estudos. No primeiro deles, publicado na década de 1950 junto a reproduções
impressas de trabalhos do muralista, abordou a importância política da arte (DEL VALLE,
1965: 53).
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Entretanto, Ramos não deixou de destacar os perigos de assim se incorrer em
simplificação e doutrinação (ao invés de liberdade, que seria a seu ver o sentido, a razão
primeira de se fazer e investir em arte).
Porém, esses jovens poetas interessados pela liberdade e pelo novo valorizaram e
divulgaram o trabalho também de outros jovens pintores mexicanos, dentre os quais o
excepcional Rufino Tamayo (MADRIGAL, 2008).
A opinião oficial de Villaurrutia sobre Tamayo, aliás, variou um tanto do final da
década de 1920 até a década de 1930; e essa variação tem claras conexões com o que estamos
tratando por agora: a reação cada vez mais clara dos Contemporáneos contra uma arte a
serviço do Estado, contra uma arte assim pautada na mitificação do nacional. Bom, quem já
teve o prazer de conhecer os quadros de Tamayo sabe que ele não usava a linguagem
narrativa, grandiosa e figurativa dos muralistas. Tamayo explorava cores, texturas, mesclando
técnicas estrangeiras e colorido tropical; além de temáticas várias, quase sempre bem simples.
Sendo assim, o elogio do poeta vanguardista mexicano esteve a princípio no fato do
pintor, mesmo não lançando mão de uma “forma/fórmula” cunhada nacional, partir –
indiscutivelmente - de uma “sensibilidade” mestiça, mexicana, primitiva, local. Com o tempo,
e a batalha em torno ao tema acirrada, Villaurrutia afinou o discurso e passou a pontuar que
Tamayo deveria ser prezado sobretudo por ser único, por ser atual, por ser rebelde e livre.
No Brasil da década de 1930, temos a valorização do trabalho de Candido Portinari. É
certo que ele passou esse período viajando pelo mundo, mas sua arte foi então conhecida no
exterior e aqui como uma arte genuinamente brasileira (ANDRES, 2005).
Interessante o fato de que Portinari passou a trabalhar justamente a estética frente a
qual Tamayo se pretendia como alternativa. Sim, investiu no muralismo, e conferiu
características bem próprias à base de ideias mexicanas; características aliás que vinham de
encontro a demandas do pensamento brasileiro à época. Isso porque aqui vivíamos a
consolidação do poder de Getúlio Vargas, e Portinari, membro do Partido Comunista, em sua
grandiosa arte pública trabalhou a temática da miséria, da fome, da guerra e da ausência de
liberdade de expressão. Sua arte narrativa não chegou a ser, destarte, tão mítica; correspondia
mais a um desejo de denúncia do que de elaboração de sentidos referenciais de nacionalidade.
Tal como Sérgio Buarque e Samuel Ramos, aliás.
Considerações finais
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Ora, como anunciado a princípio não foi minha intenção explorar razões para as
referidas semelhanças entre o universo intelectual brasileiro e mexicano, e sim tão somente
organizar essas semelhanças (caóticas, disformes, variadas) num quadro articulado.
Contudo, acredito que, a título de finalização desta apresentação, faz-se mister propor
duas possibilidades de caminhos a serem percorridos em futuras investigações, que se
dediquem a explorar essas razões. Cabe, primeiramente, considerar algumas trocas que se
teriam processado, de forma silenciosa ou tímida, singular ou deslocada, frágil ou
fragmentada. Pois fato é que, em última instância, algumas iniciativas existiram no sentido de
uma maior integração entre a produção cultural brasileira e mexicana no início dos
novecentos: a atuação de José Vasconcelos como ministro mexicano que defendia a ideia de
uma “raça ibero-americana” é o exemplo mais lembrado desse tipo de iniciativa; mas tivemos
também a revista América Brasileira (1922-1924).
Em segundo lugar, cabe considerar dialeticamente razões internas a cada um dos
países considerados e também externas, as quais teriam mobilizado demandas comuns a
autores e artistas que em grande parte se desconheceram.
Pode-se partir, desta apresentação, logo, para uma comparação “entre comparáveis”,
quer dizer, que considere marcos nacionais e pontes materiais que ligaram essas nações nos
referidos recortes temporais. Porém também para uma comparação “entre incomparáveis”, de
forma a – tal como propôs Detienne – nos despertar para a reflexão acerca de questões
filosóficas mais amplas, tal como, por exemplo, o conceito e a “essência” da
latinoamericanidade.
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Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.
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