26.04.2013 Views

Edição 111 - Jornal Rascunho - Gazeta do Povo

Edição 111 - Jornal Rascunho - Gazeta do Povo

Edição 111 - Jornal Rascunho - Gazeta do Povo

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

<strong>111</strong> • JULHO de 2009<br />

LUIZ BRAS<br />

rascunho<br />

RUÍDO BRANCO<br />

paraty<br />

Vou-me embora pra<br />

Vou fazer a mochila e partir, é, vou pra Paraty.<br />

Eu preferia fazer as malas, como os grandes escritores<br />

<strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, que por qualquer motivo faziam<br />

as malas e partiam. Intempestivamente. Gloriosamente.<br />

Pra Berlim. Moscou. Londres. Atrás de<br />

fortuna. De aventura. Do amor que viajou. Ah,<br />

como era belo o final <strong>do</strong> século dezenove, o início<br />

<strong>do</strong> vinte! Como era excitante fazer as malas e partir<br />

romanticamente. Em busca <strong>do</strong> tempo perdi<strong>do</strong>. De<br />

outros tempos. Do quarteto de Alexandria. Do<br />

peixe solúvel, de Nadja. Paris era uma festa.<br />

Que graça tem fazer uma reles mochila?<br />

Fazer as malas (sempre no plural) é que era<br />

emocionante.<br />

Nossa época não conhece o senti<strong>do</strong> profun<strong>do</strong><br />

dessa expressão: fazer as malas e partir. Nossa época<br />

conhece maravilhas e milagres impensáveis. Mas<br />

não conhece certos pavores delica<strong>do</strong>s. Quatro dias<br />

numa carruagem. Ou num trem. Ou quarenta num<br />

barco a vapor. A volta ao mun<strong>do</strong> em oitenta dias.<br />

Vou fazer a mochila e partir. Em Paraty apertarei<br />

a mão de meus escritores prediletos.<br />

Correrei pelas ruas <strong>do</strong> centro histórico, deslizarei<br />

pelas antigas ruas de pé-de-moleque, pra<br />

apertar a mão de Lobo Antunes e Mario Bellatin.<br />

De Anne Enright e Edna O’Brien.<br />

Apertarei a mão desses grandes cria<strong>do</strong>res de<br />

heróis e mun<strong>do</strong>s, conflitos e confrontos — maravilhosos<br />

embates mitopoéticos —, e perceberei<br />

mais uma vez que a mão <strong>do</strong>s escritores é tão<br />

prosaica como a de qualquer pessoa. Que os escritores,<br />

quan<strong>do</strong> em carne e osso, são tão comuns<br />

quanto qualquer sapateiro ou entrega<strong>do</strong>r de<br />

pizza. São tão comuns quanto eu mesmo.<br />

Uns são tími<strong>do</strong>s. Outros são vai<strong>do</strong>sos. Outros<br />

falam pelos cotovelos. Em pessoa, raramente são<br />

poéticos. Quan<strong>do</strong> são, é sem querer, por acidente<br />

(jamais quan<strong>do</strong> estão apertan<strong>do</strong> uma mão).<br />

Posso até abraçar, se o aperto de mão for insuficiente<br />

e injusto. Mas duvi<strong>do</strong> que um abraço<br />

fabrique <strong>do</strong> nada um escritor.<br />

A vida e as festas em Paraty são belas, mas<br />

não como nos livros. Não adianta abraçar: quan<strong>do</strong><br />

não está escreven<strong>do</strong>, o escritor não é um escritor.<br />

É outra coisa. Se está andan<strong>do</strong>, é um<br />

andarilho. Se está conversan<strong>do</strong>, é um conversa<strong>do</strong>r.<br />

Se está no cinema, é um especta<strong>do</strong>r. Se está<br />

cozinhan<strong>do</strong>, é um cozinheiro. Cada um é o que<br />

faz, na hora em que está fazen<strong>do</strong>.<br />

Eu carrego na mão direita todas as mãos que<br />

já apertei nesta vida. Todas. A maioria de escritores.<br />

Nem por isso sou mais leve ou mais lumi-<br />

De mochila feita, o jeito é seguir rumo à cidade tomada por escritores<br />

Tereza Yamashita<br />

noso <strong>do</strong> que o sol, pai e mãe das mãos — todas<br />

— que passaram pela Terra nos últimos quatro<br />

bilhões e meio de anos.<br />

Em Paraty, ouvin<strong>do</strong> tanta lamentação, “Pára<br />

de resmungar”, o poeta suplicará. “Pra que tanto<br />

azedume? Aqui somos amigos <strong>do</strong> rei. E <strong>do</strong>s<br />

reis <strong>do</strong> iê iê iê. Deixa as queixas para os queixu<strong>do</strong>s,<br />

os gemi<strong>do</strong>s para os algema<strong>do</strong>s.”<br />

Assusta<strong>do</strong> com a bronca <strong>do</strong> fantasma de pijama<br />

e sorriso raso, finalmente despertarei longe,<br />

<strong>do</strong> la<strong>do</strong> de fora da melancolia e <strong>do</strong> humor<br />

cinza e úmi<strong>do</strong>.<br />

Saudarei o poeta e seguirei em frente, sensibiliza<strong>do</strong><br />

com a ironia da situação. Quem diria?<br />

Eu, o entusiasmo em pessoa, estimula<strong>do</strong> pelo<br />

príncipe <strong>do</strong>s dentuços e <strong>do</strong>s melancólicos!<br />

Não.<br />

Em Paraty passarei despercebi<strong>do</strong>. Não apertarei<br />

mão alguma. Não tirarei fotos de mau gosto,<br />

cafonas mesmo, ao la<strong>do</strong> de Lobo Antunes e<br />

Mario Bellatin. De Anne Enright e Edna O’Brien.<br />

Seguirei em frente, saltitante e serelepe.<br />

Deixarei Lobo Antunes e Mario Bellatin,<br />

Anne Enright e Edna O’Brien em paz.<br />

Deixarei a festa para os vivos. Saudarei apenas<br />

os mortos.<br />

Nada de fotos. Cerca<strong>do</strong> de fantasmas, acompanha<strong>do</strong><br />

pela alma penada de to<strong>do</strong>s os escritores<br />

que já sofreram e amaram neste mun<strong>do</strong>, cantarei<br />

na chuva e dançarei to<strong>do</strong>s os tangos fugi<strong>do</strong>s<br />

de Buenos Aires.<br />

Bandeira, paralelepípe<strong>do</strong> Bandeira. Drummond,<br />

girân<strong>do</strong>la Drummond. Clarice, lusco-fusco Clarice.<br />

Rosa, fotossíntese Rosa. Murilo, octaedro Murilo.<br />

Cabral, miscelânea Cabral. Leminski, vaudeville<br />

Leminski. Macha<strong>do</strong>, traquitana Macha<strong>do</strong>.<br />

Criaturas peripatéticas, radioativas, rutilantes, aerodinâmicas,<br />

pós-possíveis, substantivas, adjetivas<br />

e adverbiais. Cantaremos e dançaremos juntos.<br />

Até a hora de refazer as malas.<br />

As malas não, a mochila.<br />

E partir de Paraty para Ouro Preto, de Ouro Preto<br />

para Passo Fun<strong>do</strong>, de Passo Fun<strong>do</strong> para Porto de<br />

Galinhas, de Porto de Galinhas para São Francisco<br />

Xavier, costuran<strong>do</strong> no mapa as festas e os fóruns, as<br />

jornadas e as ginásticas, as farras e as feiras.<br />

Viajarei. Cantarei e dançarei com to<strong>do</strong>s os fantasmas<br />

— benditos e malditos — que assombram<br />

joga<strong>do</strong>res iguais a mim, que jogam com as palavras<br />

e vivem com a destra lotada de apertos afetuosos,<br />

protocolares, enérgicos, indiferentes.<br />

Não, nada de fotos.<br />

• r<br />

15

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!