16 rascunho <strong>111</strong> • JULHO de 2009 ATRÁS DA ESTANTE Entre escombros, vigas partidas, telhas quebradas, papéis e brochuras espalha<strong>do</strong>s, três homens estão diante das estantes sobreviventes <strong>do</strong> grande bombardeio <strong>do</strong> dia anterior. Com seus sobretu<strong>do</strong>s e chapéus, procuram alguns livros, folheiam outros, transitam concentra<strong>do</strong>s nas lombadas escurecidas pelas nuvens de fumaça, quase esqueci<strong>do</strong>s das pernas, que são obrigadas a se erguerem e abaixarem a to<strong>do</strong> o momento, desvian<strong>do</strong> de obstáculos inacreditáveis; <strong>do</strong>s pés, que buscam desola<strong>do</strong>s a cada passo a conhecida superfície lisa <strong>do</strong>s tacos de madeira — agora totalmente destruída — a silenciosa suavidade da sola <strong>do</strong>s sapatos no chão — agora, um descompasso de ruí<strong>do</strong>s — a tranqüila trajetória entre uma estante e outra — agora, montanhas de ruínas. “Muitas bibliotecas foram destruídas nas guerras”, disse o meu amigo fotógrafo, que havia me mostra<strong>do</strong> exatamente aquela imagem. A biblioteca era em Londres. A foto, de 1940. “Já os três homens são atemporais”, ele disse, com uma certeza que me espantou. “Sim, em cada canto <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> você encontrará alguém que fará o mesmo, independentemente das circunstâncias: voltará para os livros.” Na intenção de provar a sua teoria, ele me mostrou outra imagem: atrás de uma grande janela gradeada, pilhas e pilhas de livros aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>s. “Nessa cidade, a biblioteca pública foi desativada, e o acerco, trancafia<strong>do</strong> em uma das celas da cadeia.” Olhei novamente a imagem, sem acreditar. Numa cidade <strong>do</strong> interior sem biblioteca, e numa cadeia sem bandi<strong>do</strong>s, restou então aos livros serem presos. Depois que tirou a foto, meu amigo contou que conheceu um CLAUDIA LAGE Entre ruínas e livros Os livros trancafia<strong>do</strong>s na cadeia, cuja chave desapareceu, e outras tristezas que podem acontecer com bibliotecas bibliotecário que passava férias na casa da sua família, que ficava bem próxima. Como não se pode ter uma profissão sem ser contamina<strong>do</strong> por ela, o bibliotecário tentou de todas as formas libertar os livros, e o fotógrafo registrou de to<strong>do</strong>s os mo<strong>do</strong>s com a sua câmera as tentativas. “Alguém trancou a cadeia”, o bibliotecário disse mais tarde, completamente desola<strong>do</strong>, após ter fala<strong>do</strong> com todas as autoridades encontradas, “e ninguém sabe onde está a chave”. Era notável, mas parecia que o impossível era a realidade mais simples naquela pequena cidade. Com a biblioteca desativada por algum motivo, talvez, a falta de funcionários — que nos levava a crer que era impossível a existência de concursos —, a cadeia, vazia — porque deve ser impossível de algum mo<strong>do</strong> também delega<strong>do</strong>s e bandi<strong>do</strong>s —, tornou-se depósito de livros; e, um belo dia, alguém a fechou e sumiu com a chave — o que nos leva a crer que é impossível para aquela cidade também chaveiros. O meu amigo fotógrafo contou que o bibliotecário não conseguiu de jeito nenhum libertar os livros, mas decidiu revolta<strong>do</strong> fazer, ele mesmo, uma biblioteca. A sede começou na garagem da casa da sua família e hoje toma toda a casa (sim, a família se mu<strong>do</strong>u). Nessa biblioteca, não é preciso se registrar para pegar um livro. “É importante que ele volte (e sempre volta), mas o mais importante é que circule”, disse o bibliotecário. Fazen<strong>do</strong> uma viagem no tempo, meu amigo disse que o mesmo pensamento rondava certo bibliotecário na Idade Média. Antonio Panizzi vivia inconforma<strong>do</strong> com fato de que poucas pessoas tinham acesso à maioria <strong>do</strong>s livros guarda<strong>do</strong>s nas bibliote- cas públicas. Na época, não havia registros <strong>do</strong>s livros, e, por isso, apenas os eruditos os conheciam. Apesar das críticas e da incredulidade, Panizzi assumiu sozinho a árdua tarefa de catalogar volume por volume, levan<strong>do</strong> sete longos anos para concluir somente os registros da letra A. No entanto, assim que a lista <strong>do</strong>s livros ficou disponível, as consultas aumentaram espantosamente, e o que era visto como loucura se tornou o primeiro modelo de catalogação de títulos publica<strong>do</strong>s. Como o bibliotecário da nossa cidade sem bandi<strong>do</strong>s nem chaveiros, Panizzi queria apenas que os livros circulassem. Independentemente das circunstâncias, sempre há alguém que volta para os livros, era a teoria <strong>do</strong> meu amigo, des<strong>do</strong>brada em tantas situações. Em 2003, após <strong>do</strong>is ataques de bombas e mísseis, a Biblioteca Nacional <strong>do</strong> Iraque foi completamente saqueada, o seu acervo, destruí<strong>do</strong>. Um jovem estudante de história, inconforma<strong>do</strong>, retornava to<strong>do</strong>s os dias aos destroços da biblioteca que costumava ir com freqüência. Buscava entre as ruínas vestígios de páginas, encadernações, na profunda esperança de recuperar algum exemplar. “Por que destroem livros?”, lamentou, sem que ninguém o ouvisse, “são a nossa memória”. No século 15, uma guerra civil no Japão destruiu todas as bibliotecas de Kyoto. Na Guerra de Secessão <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, muitos livros foram queima<strong>do</strong>s. Quan<strong>do</strong> invadiu o Canadá, em 1813, o exército americano queimou a Biblioteca Legislativa. Como vingança, os ingleses queimaram a Biblioteca <strong>do</strong> Congresso Americano. Em 1980, na ditadura Argentina, um milhão e meio de volumes foram queima<strong>do</strong>s em um terreno baldio. Durante a Guerra Civil Espanhola, a Biblioteca Nacional, em Madri, foi implacavelmente bombardeada. Em uma junção de esforços heróicos, centenas de livros e manuscritos foram resgata<strong>do</strong>s pelos bibliotecários. No Maranhão deste Brasil, um dia, um jegue foi retira<strong>do</strong> da lavoura, enfeita<strong>do</strong> com fitas e papéis colori<strong>do</strong>s, amarra<strong>do</strong> com cestas de um la<strong>do</strong> e de outro, receben<strong>do</strong> uma missão muito especial: de carregar livros até as cidadezinhas mais afastadas, de levar à leitura ao interior <strong>do</strong> interior, onde nem mesmo há bibliotecas para serem desativadas e livros para serem trancafia<strong>do</strong>s na cadeia. Na Amazônia, três mulheres atravessam o rio numa embarcação chamada Vagalume, distribuin<strong>do</strong> livros por onde passam. “A Amazônia humana precisa ser cuidada”, disse uma das funda<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> projeto, “assim como a fauna e a flora”. A repercussão foi tanta que as pessoas vão para a beira <strong>do</strong> rio, à espera <strong>do</strong>s livros, com as mãos estendidas. “Para cada livro destruí<strong>do</strong>, aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>, esqueci<strong>do</strong>, há um, em algum lugar, redescoberto, lembra<strong>do</strong>, distribuí<strong>do</strong>”, sentenciou o meu amigo fotógrafo, “independentemente das circunstâncias”, afirmou, e eu acreditei. Quis acreditar. A imagem da biblioteca londrina em minha mente. O teto havia caí<strong>do</strong>, as paredes, desaba<strong>do</strong>, o chão havia se torna<strong>do</strong> montanhas de entulhos, mas as estantes continuavam erguidas, e os livros de pé na prateleira. Talvez, por isso, aqueles três homens, ao virem as estantes e os livros, raros sobreviventes, como eles, <strong>do</strong> caos humano, acreditaram que, mesmo entre ruínas e com o mun<strong>do</strong> explodin<strong>do</strong> ao re<strong>do</strong>r, estavam numa biblioteca. • r
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