Edição 111 - Jornal Rascunho - Gazeta do Povo
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<strong>111</strong> • JULHO de 2009<br />
SUJEITO OCULTO<br />
Um dia, transformei minha mãe em ladra.<br />
Disse-lhe com desfaçatez: “Ninguém vai<br />
notar; apenas um entre tantos”. Desde então,<br />
há quase 20 anos, somos uni<strong>do</strong>s pelo<br />
crime. Transformei-a em ladra. Ela, a mulher<br />
que me levava à igreja, rezava-me orações<br />
antes de deitar (o inesquecível Santo Anjo)<br />
e hoje ainda caminha grandes distâncias<br />
atrás da santinha que percorre o bairro de<br />
tempos em tempos. Sou o grande mentor de<br />
um furto. Somos uma pequena quadrilha.<br />
Não utilizamos violência, apenas engendramos<br />
bem o plano, percorremos cada detalhe<br />
à perfeição. Uso o plural para não enfrentar<br />
solitário a fúria divina. Ela virá, sem dúvida.<br />
Minha mãe, tenho certeza, teme prestar<br />
contas a Deus. Seu único crime. Não fugimos<br />
da polícia. A justiça não nos preocupa<br />
nada. Nosso crime prescreveu, caducou.<br />
•••<br />
Pelos corre<strong>do</strong>res da <strong>Gazeta</strong> Mercantil, ouvia<br />
um rumor sobre um livro de poesias que<br />
em breve seria lança<strong>do</strong>. Um livro de poesias.<br />
A frase não desgrudava <strong>do</strong>s ouvi<strong>do</strong>s. Na<br />
ampla sala, um pequeno grupo de jornalistas<br />
destruía as máquinas de escrever. Em seguida,<br />
alguns textos eram envia<strong>do</strong>s àquela sala<br />
que tanto me aterrorizava. Confesso: ali entrei<br />
algumas vezes na hora <strong>do</strong> almoço, quan<strong>do</strong><br />
o seu <strong>do</strong>no não estava. Comia a marmita<br />
com avidez e, como um lacaio, infiltrava-me<br />
pela sala <strong>do</strong> diretor. Olhava livros. A máquina<br />
de escrever elétrica. Uma coisa espantosa.<br />
Bastava um leve toque nas teclas para um sonoro<br />
tilintar invadir a casa. Era quase mágica.<br />
Rápida como nada nunca antes. Eu, exímio<br />
datilógrafo, não poderia deixar pegadas.<br />
Apenas observava tu<strong>do</strong> antes de escapulir feito<br />
um rato. Depois de passar pelo olhar<br />
criterioso <strong>do</strong> diretor, as reportagens eram enviadas<br />
por telex (uma geringonça barulhenta<br />
a mastigar uma tirinha de papel). Tempos<br />
depois, sempre próximo àquela assusta<strong>do</strong>ra<br />
sala, aportou um aparelho de fax. Tive de<br />
rascunho<br />
ROGÉRIO PEREIRA<br />
Ladrões de versos<br />
A formação de uma quadrilha especializada em furtos e o livro ao la<strong>do</strong> da xícara de café<br />
aprender a escrever a palavra fax, mas a pronunciava<br />
com gosto quan<strong>do</strong> os jornalistas me<br />
chamavam: “Ei, tem de passar um fax destas<br />
matérias”. Os textos iam direto para a guardiã<br />
<strong>do</strong>s interesses <strong>do</strong> homem mais temi<strong>do</strong> naquela<br />
sala — pelo menos por mim —: o diretor<br />
regional da <strong>Gazeta</strong> Mercantil.<br />
•••<br />
“Mãe, pega apenas um. A mãe disse que<br />
há uma pilha na sala. Não vai fazer falta.<br />
Ninguém vai notar. Depois, eu devolvo. Não<br />
tenho coragem de pedir.” Após semanas de<br />
súplicas, consegui formar minha primeira (e<br />
única) quadrilha: eu e minha mãe. Eu, o<br />
mentor. Ela, a executora. Uma dupla perfeita.<br />
Em algum dia daquele 1991, quan<strong>do</strong><br />
cheguei em casa à noite da escola, após minha<br />
jornada como office-boy da <strong>Gazeta</strong> Mercantil,<br />
encontrei sobre a mesa o cobiça<strong>do</strong><br />
objeto: O que se viveu, livro de poemas de<br />
Claudio Lachini. Nunca mais o devolveria<br />
(ou quase). O inferno nos esperava, mãe. Eu<br />
estava forma<strong>do</strong> como ladrão de versos. Já<br />
tinha uma próxima vítima à vista.<br />
•••<br />
“Tira xerox destes textos.” A frase era<br />
apenas mais uma ordem que eu cumpria<br />
com prazer pelos corre<strong>do</strong>res daquele jornal.<br />
Um paraíso se compara<strong>do</strong> à fábrica de<br />
móveis, à venda de flores diante de cemitérios<br />
e às fatigantes entregas de produtos<br />
o<strong>do</strong>ntológicos — trabalhos executa<strong>do</strong>s até<br />
então. Com aquelas folhas, rumava para a<br />
pequena sala de xerox (nunca consegui chamar<br />
xerox de fotocópia), de onde podia ver<br />
pela vidraça o temi<strong>do</strong> diretor a trabalhar<br />
naquela invejável máquina elétrica. Eu,<br />
com certeza, datilografava melhor. Tenho<br />
até hoje o diploma <strong>do</strong> Senac. Enquanto os<br />
de<strong>do</strong>s gor<strong>do</strong>s de Lachini enfrentavam algum<br />
tema espinhoso (como me parecia chato<br />
aquele jornal sem mulher pelada e fute-<br />
bol; era um jornal para executivos, diziamme;<br />
eu me perguntava se executivo (?) não<br />
gostava de futebol e de mulher pelada; não<br />
entendia muito bem, mas flanava com orgulho<br />
entre jornalistas, secretárias e vende<strong>do</strong>res),<br />
a luz da máquina de xerox brilhava<br />
sobre versos de Nilson Monteiro, o jornalista<br />
baixinho, de cabelos sempre longos,<br />
risada miúda e prantos fáceis. Era uma cópia<br />
de um poema para ele, outra para mim.<br />
Mais uma vítima. Furto fácil. Lia às escondidas<br />
na escola ou na fila <strong>do</strong> banco. Alguns<br />
versos me acompanham até hoje. Inesquecíveis<br />
poemas de Lachini e Monteiro.<br />
•••<br />
Há palavras e gentes que nunca nos aban<strong>do</strong>nam.<br />
A guardiã <strong>do</strong>s interesses <strong>do</strong> homem<br />
mais temi<strong>do</strong> naquela sala chamava-se América<br />
Eudóxia de Araújo Guerra. Inesquecível.<br />
Guerra. Assusta<strong>do</strong>r. Outras a sucederam<br />
na missão de proteger a caverna onde habitava<br />
aquele senhor que com palavras, eu pensava,<br />
poderia mudar o mun<strong>do</strong>. Versos, reportagens,<br />
histórias brotavam-lhe da ponta <strong>do</strong>s<br />
de<strong>do</strong>s e repousavam no papel espremi<strong>do</strong> na<br />
máquina elétrica. Mas nenhuma nunca chegou<br />
aos pés de América Eudóxia de Araújo<br />
Guerra. A guardiã que nunca descobriu que<br />
eu, após destruir o arroz e feijão da marmita,<br />
rastejava pela sala a tentar descobrir segre<strong>do</strong>s.<br />
•••<br />
Não lembro como minha mãe foi contratada<br />
como empregada na casa de Claudio<br />
Lachini. Lembro-me, apenas, que ela era<br />
feliz a limpar banheiros, arrumar camas,<br />
varrer quintais, cuidar de uma casa que, a<br />
meus olhos, parecia uma imensidão<br />
inalcançável. Um dia, disse-me: “Vão te chamar<br />
para trabalhar como office-boy na <strong>Gazeta</strong><br />
Mercantil. O seu Lachini deu a idéia”. Eu já<br />
ostentava o diploma de “auxiliar de escritório”<br />
<strong>do</strong> Senac. Em poucos dias, estava a cor-<br />
• r<br />
31<br />
rer as ruas de C., com uma pasta repleta de<br />
<strong>do</strong>cumentos, contas bancárias, depósitos,<br />
jornais. Nascia a minha quadrilha, especializada<br />
no furto de versos. Flores, móveis e<br />
material o<strong>do</strong>ntológico foram sepulta<strong>do</strong>s para<br />
sempre por uma aluvião de personagens.<br />
•••<br />
Claudio Lachini foi embora. A sucursal<br />
da <strong>Gazeta</strong> Mercantil fechou. Minha mãe varre<br />
outras casas. Nilson Monteiro seguiu sua carreira<br />
de jornalista. América luta outras guerras.<br />
Ninguém foi preso. Eu já não preciso mais<br />
roubar versos. Sou soterra<strong>do</strong> por livros que<br />
me chegam de todas as partes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />
•••<br />
Abro meu e-mail e vejo uma mensagem<br />
de Claudio Lachini. Convida-me para um café<br />
da manhã em um grande hotel de C. — esta<br />
cidade feita de arame e muita ilusão. Deseja<br />
conversar sobre literatura, projetos literários.<br />
Ele agora escreve romances. Chego na hora<br />
marcada. Carrego um pequeno livro. Coloco-o<br />
sobre a mesa, ao la<strong>do</strong> da xícara de café<br />
com leite. Conto-lhe a história de um furto.<br />
Algo se ilumina entre nós. Após lembranças<br />
de um tempo que nos pertence e nos acompanha<br />
para sempre, despeço-me levan<strong>do</strong> de volta<br />
o exemplar <strong>do</strong> livro com um emociona<strong>do</strong><br />
autógrafo. Mãe, não precisa se preocupar com<br />
o castigo divino. Estamos per<strong>do</strong>a<strong>do</strong>s.<br />
•••<br />
O que se viveu — nunca um título de livro<br />
me pareceu tão pertinente — compõe<br />
minha biblioteca afetiva, ao la<strong>do</strong> de Simples,<br />
de Nilson Monteiro. Lachini e Monteiro não<br />
são meus poetas preferi<strong>do</strong>s. Antes deles vêm<br />
Bandeira, Drummond, Vinicius, Eliot, Pavese,<br />
Quintana, Cabral, Seamus Heaney, Pessoa e<br />
outros. Mas são, com certeza, os mais importantes<br />
da minha vida.