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Edição 111 - Jornal Rascunho - Gazeta do Povo

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<strong>111</strong> • JULHO de 2009<br />

rascunho<br />

Rastros de vanguardas envelhecidas<br />

ABISMO POENTE, de Whisner Fraga, perde-se pelo exagero, em um estilo opulento, gorduroso e barroco<br />

MAURÍCIO MELO JÚNIOR • BRASÍLIA – DF<br />

A leitura <strong>do</strong> novo romance de Whisner<br />

Fraga, Abismo poente, traz uma profunda<br />

e cansativa saudade de velhas vanguardas.<br />

De início é necessário lembrar indiscutíveis<br />

características das vanguardas, sobretu<strong>do</strong><br />

as literárias. Elas nascem como<br />

um espírito renova<strong>do</strong>r, revolucionário,<br />

quebran<strong>do</strong> regras e cânones, mas daí vem<br />

tempo e as torna também canônicas ou<br />

simplesmente, por absoluta inutilidade, as<br />

esquece numa prateleira qualquer.<br />

No caso específico <strong>do</strong> texto de Whisner<br />

a recorrência recai sobre duas velhíssimas<br />

inquietações, o dadaísmo e o hermetismo,<br />

que o tempo mais jogou na prateleira que<br />

os transformou em cânone. E isso se deve<br />

a pequenos males de origem que impregnam<br />

tais estilos e expressões.<br />

O dadaísmo nasceu ali pelo ano de<br />

1916 numa Europa conflagrada, ferida<br />

pelas <strong>do</strong>res da Primeira Grande Guerra.<br />

Seus cultores elegeram o riso como<br />

ponto de apoio para olhar a situação<br />

absurda vivida então pelo mun<strong>do</strong>. Sua<br />

estética, mais ousada ainda, pregava a<br />

quebra das regras gramaticais com uma<br />

forma de se voltar à linguagem mais pura<br />

da infância. Mas veio o tempo e envelheceu<br />

a piada exigin<strong>do</strong> uma leitura mais<br />

realista para a época.<br />

O hermetismo é filho de sucessivas<br />

releituras de conceitos químicos, mágicos,<br />

míticos e filosóficos envolven<strong>do</strong> alquimistas,<br />

magos, deuses pagãos, coisas inalcançáveis<br />

pelo simples leitor, como eu. Literariamente<br />

falan<strong>do</strong>, o termo acabou por explicar,<br />

ou pelo menos tentar, os textos que,<br />

exatamente por buscarem incontáveis fontes<br />

culturais, tornam-se quase ininteligíveis.<br />

E novamente o velho tempo danou-se a<br />

apontar os pressupostos básicos da comunicação,<br />

o diálogo entre emissor e receptor,<br />

exigin<strong>do</strong> clareza e objetividade para textos,<br />

interpretações, conceitos.<br />

Não que estas formas de expressão tenham<br />

somente gera<strong>do</strong> obras cansativas<br />

e incompreensíveis. Filho <strong>do</strong> dadaísmo<br />

é a oralidade que marcou a prosa de Antônio<br />

Fraga. O autor, já em 1945, quebra<br />

as regras gramaticais para dar maior<br />

autenticidade ao linguajar da malandragem<br />

carioca de então. O hermetismo, por<br />

sua vez, pariu aqui, em 1952, pelas mãos<br />

de Jorge de Lima, o belíssimo e<br />

comovente Invenção de Orfeu.<br />

Inútil e cansativa<br />

E o que Whisner Fraga tem com toda<br />

esta barafunda? Pouco, quase nada, mas<br />

também algo substancial para entender,<br />

ou pelo menos tentar, os meandros de<br />

seu novo romance. Abismo poente renuncia<br />

às maiúsculas numa brincadeira<br />

sem qualquer senti<strong>do</strong>, ou talvez, como<br />

fizeram os concretistas, para dar uma<br />

nova visão pictórica ao texto. Mas como<br />

a literatura se apega muito ao que foi<br />

dito e à maneira como foi dito, a ação<br />

tornar-se vazia, inútil, cansativa.<br />

Já o hermetismo vem de uma necessidade<br />

danada de revelar todas as leituras,<br />

to<strong>do</strong>s os conhecimentos que o autor<br />

acumulou ao longo <strong>do</strong>s anos. À parte o<br />

pedantismo que isso acarreta, o resulta<strong>do</strong><br />

é um intrica<strong>do</strong> de informações tão<br />

me<strong>do</strong>nho que somente enreda e confunde<br />

o leitor. Compreende-se o debate entre<br />

culturas que o autor traz para seu texto,<br />

neste caso os desacertos de famílias<br />

libanesas viven<strong>do</strong> no Brasil. Sinceramente,<br />

Salim Miguel e Milton Hatoum promovem<br />

o mesmo debate de maneira<br />

mais clara, objetiva, agradável.<br />

O enre<strong>do</strong> conta as paixões e desilusões<br />

que o protagonista sofre ao longo da vida<br />

com helena (lembran<strong>do</strong> que Whisner abomina<br />

as maiúsculas). E aí tu<strong>do</strong>, ou nada,<br />

pode acontecer. Só que o autor está tão<br />

preocupa<strong>do</strong> na grandiloqüência de seu<br />

texto que simplesmente esquece de nar-<br />

rar. O uso de instrumentos como fluxo<br />

de consciência, rememória, contradições,<br />

além <strong>do</strong> apoio constante nos fatos<br />

históricos recentes e nos costumes, estes<br />

antigos e atuais, confunde e cansa mesmo<br />

o leitor mais atento.<br />

O lamentável disso tu<strong>do</strong> é que, ao exagerar<br />

em suas <strong>do</strong>ses de arreme<strong>do</strong>s revolucionários,<br />

o autor deu um tiro até<br />

mesmo na indiscutível qualidade literária<br />

de seu texto. Vejamos. O romance<br />

abre com uma frase primorosa e<br />

instigante. “encontrei no álcool um pai,<br />

desde a noite alagadiça em que as desculpas<br />

se converteram em candeias e<br />

negrumes.” No final até se sabe que foram<br />

as frustrações geradas pelos<br />

desencontros com helena que motivam<br />

o alcoolismo e tu<strong>do</strong> o mais da vida <strong>do</strong><br />

narra<strong>do</strong>r. No entanto, persiste o incômo<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong>s volteios exagera<strong>do</strong>s.<br />

O parágrafo em que Whisner Fraga<br />

pesca o título <strong>do</strong> romance vale ser transcrito<br />

com o exemplo de seu estilo opulento,<br />

gorduroso, barroco.<br />

um mar latin<strong>do</strong> no barranco de suas pálpebras,<br />

helena, quan<strong>do</strong> o oriente se punha no<br />

sol de suas bochechas e era um luto aplaca<strong>do</strong><br />

no assoalho de suas feições, aquele acanha<strong>do</strong><br />

disfarce que nomeei abismo poente, porque<br />

era um trágico apego à suntuosidade <strong>do</strong>s devaneios,<br />

uma promessa de retorno, quan<strong>do</strong> a<br />

cadência <strong>do</strong>s anos ralhava contra a indigesta<br />

ilusão, o líbano para sempre distante dessa<br />

sua bolorenta conformidade.<br />

Ou seja, a intensidade com quis se dizer<br />

intelectual matou o mero narra<strong>do</strong>r de<br />

uma história que até poderia ser muito boa.<br />

Enfim Abismo poente é um desses<br />

livros que se perde pelo exagero. E ao se<br />

perder, despreza o que poderia ganhar<br />

em leituras. E por mais que o intelectual<br />

desdiga, a verdade é que desconheço<br />

quem escreva apenas para as gavetas.• r<br />

o autor<br />

WHISNER FRAGA nasceu em Ituiutaba,<br />

no interior mineiro, em 1971. É engenheiro<br />

e escritor. Participou de inúmeras<br />

antologias literárias. Tem contos<br />

publica<strong>do</strong>s em várias revistas e jornais,<br />

onde também publicou resenhas literárias.<br />

Seu romance As espirais de<br />

outubro foi finalista <strong>do</strong> I Prêmio SESC<br />

de Literatura e premia<strong>do</strong> pela União<br />

Brasileira de Escritores – RJ em 2004.<br />

Abismo poente<br />

Whisner Fraga<br />

Ficções<br />

112 págs.<br />

trecho • abismo poente<br />

um pastoso e agressivo húmus que<br />

o sêmen da natureza germinou em sua<br />

cabeça, uma debilidade agônica reunida<br />

por séculos de história familiar,<br />

em cuja extensão se realçam um<br />

tataravô epilético, um bisavô tantã, até<br />

ao limiar das gerações com um tio<br />

esquizofrênico e uma prima que vegeta<br />

numa dessas síndromes da moda,<br />

catalogada recentemente, séculos<br />

depois nutrida pela astúcia e<br />

mirabolância de seu corpo.<br />

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