Edição 111 - Jornal Rascunho - Gazeta do Povo
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18 rascunho <strong>111</strong> • JULHO de 2009<br />
Do outro la<strong>do</strong><br />
Natsuo Kirino<br />
Trad.: Roberto<br />
Wander Nóbrega<br />
Rocco<br />
544 págs.<br />
Para além da trama policial, DO OUTRO LADO mostra a luta de quatro mulheres japonesas encaran<strong>do</strong> o Japão moderno<br />
Makiokas<br />
de um novo Japão<br />
PAULO KRAUSS • CURITIBA – PR<br />
O romance policial Do outro la<strong>do</strong>, da japonesa<br />
Natsuo Kirino, ganhou seu principal prêmio<br />
justamente por ser <strong>do</strong> gênero policial, fican<strong>do</strong><br />
com o Grande Prêmio Japonês de Melhor<br />
Romance Policial de 1998.<br />
Outro grande prêmio <strong>do</strong> livro foi o sucesso<br />
nas vendas, tornan<strong>do</strong>-se um best-seller no Japão,<br />
com traduções para Europa, Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s<br />
e, agora, Brasil.<br />
O prêmio foi mais <strong>do</strong> que mereci<strong>do</strong>, pois<br />
realmente Do outro la<strong>do</strong> é um <strong>do</strong>s melhores<br />
policiais da última década. Mas o livro não se<br />
resume a uma trama policial. Além de mortes e<br />
sangue em abundância, Do outro la<strong>do</strong> mostra<br />
a luta de quatro mulheres japonesas, trabalha<strong>do</strong>ras<br />
e <strong>do</strong>nas de casa, encaran<strong>do</strong> o Japão moderno<br />
e as agruras de casamentos fracassa<strong>do</strong>s.<br />
O livro também é enriqueci<strong>do</strong> com o<br />
detalhamento <strong>do</strong> ambiente <strong>do</strong> trabalho dessas<br />
mulheres, operárias no turno da noite, em<br />
contraposição à vida noturna de Kabuki-cho,<br />
área de prostituição de Tóquio, <strong>do</strong>minada pela<br />
yakuza, a máfia japonesa. Completa o enre<strong>do</strong><br />
um personagem brasileiro, dekassegui que também<br />
trabalha na fábrica com as quatro mulheres<br />
e ganha destaque ao final <strong>do</strong> livro.<br />
Yayoi, Masako, Yoshie e Kuniko são mulheres<br />
de meia idade que trabalham de meianoite<br />
a 5h30 embalan<strong>do</strong> bentô, o tradicional<br />
marmitex japonês. O trabalho não é <strong>do</strong>s melhores,<br />
mas são poucas horas por turno e o salário<br />
é mais compensa<strong>do</strong>r que um emprego similar<br />
no horário diurno. As quatro formam um<br />
grupo de amigas dentro da fábrica, que abriga<br />
também diversos funcionários brasileiros, entre<br />
eles o imigrante Kazuo Miyamori.<br />
Logo no começo <strong>do</strong> romance, Kazuo comete<br />
uma desastrada tentativa de assédio a Masako,<br />
no la<strong>do</strong> de fora da empresa. Ela o reconhece e o<br />
coloca para correr, mas não acredita que aquele<br />
seja o tara<strong>do</strong> que anda ameaçan<strong>do</strong> outras<br />
moças nos arre<strong>do</strong>res. Nas pequenas cidades japonesas<br />
em que há muitos imigrantes brasileiros<br />
é comum que eles sejam os primeiros suspeitos<br />
em atos ilegais. Obviamente que o comportamento<br />
destes imigrantes contribui para as<br />
suspeitas, e também é grande o número de brasileiros<br />
que se envolvem com a criminalidade.<br />
Mas não é disso que trata o romance.<br />
Nas páginas iniciais, Natsuo faz uma descrição<br />
interessante <strong>do</strong> que seja trabalhar numa monótona<br />
linha de produção, no horário em que a<br />
maioria das pessoas está em casa <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>. Mas<br />
os bentôs precisam estar nas lojas no dia seguin-<br />
te e é justamente a monotonia que garante a eficiência<br />
na produção. O trabalho de assentar a comida<br />
na marmita é repetitivo e não permite um<br />
olhar para o la<strong>do</strong> ou uma conversa, para que a<br />
concentração não seja perdida. Fiscais da linha<br />
de produção estão sempre atentos para garantir<br />
que a monotonia não seja quebrada.<br />
Monotonia e infelicidade<br />
Na vida pessoal, as quatro amigas também<br />
enfrentam a monotonia. Cumprem obrigações da<br />
casa, atendem os filhos, isso tu<strong>do</strong> com um horário<br />
de sono inverso ao da família e <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> em<br />
geral. Elas também não são felizes no casamento.<br />
Yoshie já é viúva, como herança <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>, ficou<br />
com a sogra <strong>do</strong>ente, a quem tem de pajear, inclusive<br />
na troca das fraldas geriátricas.<br />
Kuniko, gorda e feinha, foi recém-aban<strong>do</strong>nada<br />
pelo mari<strong>do</strong>. Endividada, busca solução<br />
financeira nos agiotas liga<strong>do</strong>s à yakuza. Masako<br />
<strong>do</strong>rme em quarto separa<strong>do</strong> <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>. O filho<br />
a<strong>do</strong>lescente não fala com os pais. Yayoi, mais<br />
jovem e bonita, é casada com um bêba<strong>do</strong> que<br />
freqüenta prostíbulos e casas de jogo, além de<br />
constantemente agredir a mulher.<br />
A vida das quatro mulheres muda completamente<br />
após uma noite em que Yayoi é<br />
agredida pelo mari<strong>do</strong>. Meio que de forma automática<br />
e não premeditada, Yayoi estrangula o<br />
mari<strong>do</strong> com um cinto, até matá-lo. Desesperada,<br />
ela pede ajuda a Masako.<br />
Neste momento, o livro começa a ganhar as<br />
tintas <strong>do</strong> suspense, da violência e <strong>do</strong> inusita<strong>do</strong>,<br />
beiran<strong>do</strong> o fantástico. Masako decide ajudar<br />
Yayoi a se livrar <strong>do</strong> corpo. Leva o morto para o<br />
banheiro de sua casa e convoca Yoshie e Kuniko<br />
para a tarefa de cortá-lo em pedaços para jogar<br />
no lixo em várias sacolas.<br />
A desleixada Kuniko joga suas sacolas nas<br />
lixeiras de um parque e o caso logo ganha as<br />
páginas policiais <strong>do</strong>s jornais. A suspeita inicial<br />
da polícia recai sobre o <strong>do</strong>no de uma casa noturna<br />
e da casa de jogos de onde o mari<strong>do</strong> assassina<strong>do</strong><br />
foi expulso aos safanões. O <strong>do</strong>no <strong>do</strong> lugar é<br />
preso e seus negócios ilegais vão à falência. Sua<br />
vingança será contra a família <strong>do</strong> morto.<br />
A intrincada história policial tem a participação<br />
fundamental de Jumonji, o agiota de<br />
Kuniko. Ele desconfia da confusão toda, pressiona<br />
Kuniko e ela confessa tu<strong>do</strong> em troca <strong>do</strong> perdão<br />
da dívida. Jumonji aciona seus comparsas<br />
da máfia e lhes oferece a prestação <strong>do</strong> serviço<br />
que ele considera ter si<strong>do</strong> muito bem feito pelas<br />
mulheres, o desmembramento de assassina<strong>do</strong>s.<br />
A yakuza a<strong>do</strong>ra a oferta e Jumonji convence<br />
Masako a participar de uma sociedade para pres-<br />
tar o tenebroso serviço. Elas cortariam os mortos<br />
e ele daria o destino final às sacolas. Masako e as<br />
amigas caem na tentação, pois o trabalho renderá<br />
quase 20 mil dólares para cada, por cadáver.<br />
Vingança<br />
O romance até poderia acabar por aí, o que já<br />
garantiria um bom e sarcástico desfecho. Natsuo<br />
prefere alongar um pouco a história e traz à cena<br />
Satake, o <strong>do</strong>no da boate e da casa de jogos, que<br />
aparece para consumar a vingança contra aquelas<br />
que prejudicaram seus negócios.<br />
As mulheres só se dão conta <strong>do</strong> perigo quan<strong>do</strong><br />
desembrulham o segun<strong>do</strong> corpo que lhes é<br />
entregue para ser corta<strong>do</strong>. Elas reconhecem a<br />
vítima e entram em pânico, pois obviamente<br />
aquilo era uma mensagem ameaça<strong>do</strong>ra.<br />
O desfecho <strong>do</strong> livro não é óbvio e nem feliz,<br />
chega a soar esquisito, mas isso pouco importa.<br />
Natsuo fez uma ótima construção até então. Do<br />
outro la<strong>do</strong> é um ótimo policial, com uma boa<br />
trama de suspense, cenas horripilantes, estilo<br />
que a autora <strong>do</strong>mina e o qual já lhe garantiu<br />
reconhecimento e meia dúzia de prêmios.<br />
Em Do outro la<strong>do</strong>, Natsuo Kirino foi além<br />
<strong>do</strong> romance policial. As personagens são bens<br />
construídas e o cenário em que vivem reflete um<br />
Japão atual e desmistifica<strong>do</strong>. Tóquio, assim<br />
como qualquer outra cidade, tem sua boca-<strong>do</strong>lixo,<br />
com garotas de programa e cafetões circulan<strong>do</strong><br />
todas as noites pelas vielas de Kabuki-cho.<br />
Nas fábricas, os dekasseguis brasileiros são<br />
vistos como uma espécie exótica, competentes,<br />
trabalha<strong>do</strong>res, mas incapazes de compreender<br />
os costumes <strong>do</strong> povo que lhes deu origem, além<br />
de terem dificuldade com a língua japonesa.<br />
Natsuo foi também corajosa ao expor tu<strong>do</strong><br />
isso, num país que, por exemplo, finge combater<br />
a pornografia <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> mais arcaico possível.<br />
Uma revista Playboy enviada para o Japão<br />
pelo correio chegará às mãos <strong>do</strong> destinatário<br />
com tinta preta nas fotos de partes genitais.<br />
Enquanto isso, como Natsuo relata, as caixas<br />
de correio das residências são entupidas diariamente<br />
com panfletos de garotas de programa.<br />
De certa forma, Yayoi, Masako, Yoshie e<br />
Kuniko são um contraponto às personagens principais<br />
de As irmãs Makioka, de Junichiro<br />
Tanizaki, um <strong>do</strong>s principais romances da literatura<br />
japonesa atual. As Makiokas representam o<br />
Japão antigo, no tempo em que uma delas só<br />
poderia casar depois que a mais velha casasse, e<br />
assim por diante. E a vida das mulheres era o<br />
casamento arranja<strong>do</strong> pela família, a casa, a futilidade,<br />
enquanto os mari<strong>do</strong>s trabalhavam.<br />
Para essas Makiokas <strong>do</strong> século 21, o casa-<br />
mento é um far<strong>do</strong>. Puderam escolher o mari<strong>do</strong><br />
mas não tiveram escolha na vida que levariam<br />
a seu la<strong>do</strong>, exceto, obviamente, por Yayoi, que<br />
pôs fim à vida daquele lhe agredia. Talvez não<br />
tenha si<strong>do</strong> intenção deliberada de Natsuo Kirino<br />
de fazer contraponto algum, talvez ela tenha<br />
ti<strong>do</strong> apenas a intenção de escrever um bom livro<br />
policial, mas ela conseguiu mais que isso.<br />
Do outro la<strong>do</strong> é mais uma obra recomendável<br />
neste cartel de altíssima qualidade que é a literatura<br />
japonesa contemporânea.<br />
a autora<br />
Olavo Tenório<br />
NATSUO KIRINO nasceu em 1951 em<br />
Kanazawa e vive em Tóquio desde os 14<br />
anos. Formada em direito, trabalhou em<br />
diversas áreas antes de se tornar escritora.<br />
É autora de 13 romances e três<br />
livros de contos. Com Do outro la<strong>do</strong><br />
venceu o Grande Prêmio Japonês de Melhor<br />
Romance Policial de 1998 e ficou<br />
entre os finalistas <strong>do</strong> Edgar Allan Poe de<br />
2004, na categoria Melhor Romance, tornan<strong>do</strong>-se<br />
a primeira escritora japonesa<br />
indicada a este grande prêmio literário.<br />
trecho • <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong><br />
— Estes bisturis são ótimos — disse<br />
Yoshie, encantada. Os instrumentos<br />
cirúrgicos que Jumonji levou eram extremamente<br />
eficientes. Diferentemente<br />
das facas de sashimi que usaram com<br />
Kenji, os bisturis atravessavam a carne<br />
quase sem esforço algum, como uma<br />
tesoura nova cortan<strong>do</strong> teci<strong>do</strong>. Graças<br />
a esse progresso operacional, o serviço<br />
vinha andan<strong>do</strong> mais rápi<strong>do</strong> <strong>do</strong> que<br />
elas esperavam.<br />
Infelizmente, logo se deram conta de<br />
que não poderiam utilizar a serra elétrica<br />
que Jumonji havia compra<strong>do</strong> para<br />
cortar os ossos. Durante a primeira tentativa,<br />
ela fez com que uma fina névoa<br />
de ossos e carne voasse em seus olhos.<br />
Precisariam de óculos de proteção se<br />
quisessem utilizá-la futuramente. Conforme<br />
o serviço seguia em frente, o cômo<strong>do</strong><br />
ficou satura<strong>do</strong> de sangue, e o ar encheu-se<br />
<strong>do</strong> forte o<strong>do</strong>r asqueroso das entranhas<br />
<strong>do</strong> cadáver, assim como havia<br />
aconteci<strong>do</strong> com Kenji; mas da mesma<br />
maneira que o serviço parecia mais fácil<br />
desta vez, o horror associa<strong>do</strong> era, de<br />
alguma forma, menos acentua<strong>do</strong>.<br />
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