24 rascunho <strong>111</strong> • JULHO de 2009 POR AÍ Vir ao Rio de Janeiro uma vez por ano significa não apenas rever família e amigos, mas também os livros que ficaram moran<strong>do</strong> na cidade, maravilhosa e flechada como seu padroeiro São Sebastião, quan<strong>do</strong> eu arrumei as malas no fim de 2006 e parti. Já me mudei <strong>do</strong> Rio três vezes, mas o Rio não é uma cidade da qual a gente efetivamente se mude, porque ela vai junto, como se fosse um <strong>do</strong>cumento de identidade na carteira. E a gente leva o Rio por aí afora, na pele, nos olhos, e todas as coisas são em contraponto ao que seriam no Rio. Melhores, piores, em geral muito diferentes. Seja como for havia, no fim de 2006, ao arrumar as malas, a possibilidade de levar comigo um número muito limita<strong>do</strong> de livros. Ao escolhê-los, passei por uma experiência <strong>do</strong>lorosa (como seria possível seguir sen<strong>do</strong> feliz, ou tentan<strong>do</strong>, sem aqueles amuletos que moravam nas minhas estantes?) e curiosa (seria possível seguir sen<strong>do</strong> feliz, ou tentan<strong>do</strong>, sem aqueles amuletos que moravam nas minhas estantes). Mas voltar é revê-los. E tem esse caráter de festa. Eles estão mais gor<strong>do</strong>s e incha<strong>do</strong>s por causa da umidade <strong>do</strong> Rio de Janeiro. Estão amarela<strong>do</strong>s. Em silêncio, devem pensar que eu também envelheci um pouco. Não me lembrava mais que havia ali um estu<strong>do</strong> chama<strong>do</strong> O zen e a poética auto-reflexiva de Clarice Lispector, nem a coleção completa e ilustrada das fábulas de Andersen. Queria mesmo reler Jerusalém, de Gonçalo M. Tavares, S/Z, de Roland Barthes, e O vale da paixão, de Lídia Jorge. E como criança diante da bandeja de <strong>do</strong>ces numa festa, nem sei por onde começar. To<strong>do</strong>s esses livros, cada um deles uma viagem distinta, moram atualmente em estantes nos corre<strong>do</strong>res de uma casa no bairro de Laranjeiras, onde eles escutam o carro <strong>do</strong> compra<strong>do</strong>r de ferro-velho. Onde também escutam os policiais <strong>do</strong> Bope corren<strong>do</strong> embala<strong>do</strong>s por seus gritos de guerra às seis horas da manhã — “vai correr sangue a<strong>do</strong>ida<strong>do</strong> e eu vou dar gargalhadas, ha ha ha!” (mal necessário? Pura aberração nascida de outra aberração. Daquelas que vão ingressan<strong>do</strong> no cotidiano até o momento ADRIANA LISBOA Por aqui O reencontro com grandes amigos que envelhecem em silêncio e em fileiras mais ou menos desorganizadas perigoso em que viram normalidade.) Nas estantes, os livros envelhecem em silêncio e fileiras mais ou menos desorganizadas. Acatam o tempo e envergam as capas. Um dia, serão: leva<strong>do</strong>s na mala? Empresta<strong>do</strong>s e esqueci<strong>do</strong>s? Vendi<strong>do</strong>s para um sebo? Destruí<strong>do</strong>s pelo sopro lento <strong>do</strong> desuso? Transforma<strong>do</strong>s em algo esquisito e incongruente, num contraponto aos gritos de guerra <strong>do</strong> Bope? Penso neles como corpos que contêm alguma coisa, que contêm uma espécie de texto-alma, única metafísica que me agrada por inteiro. E o excesso <strong>do</strong> tempo, que desfaz tu<strong>do</strong>, vai desfazer a carne de papel desses corpos também, ce<strong>do</strong> ou tarde, mais ce<strong>do</strong> <strong>do</strong> que tarde. Mas ainda assim haverá uma décima ou uma vigésima-quinta edição de A louca da casa, de Rosa Montero, rolan<strong>do</strong> (rodan<strong>do</strong>) por aí — ou então sua versão de juventude eterna num desses leitores digitais hi-tech estilo Kindle. Sigo viagem entre eles. Pesco uma edição portuguesa da Poética de Aristóteles, da época da faculdade. Quanta coisa naquela capa inteiramente branca. Num lugar inapropria<strong>do</strong>, surpreen<strong>do</strong> Manuel Bandeira na seleção de Ivan Junqueira, Testamento de Pasárgada. Elegia de verão (não é verão, mas e daí): O sol é grande. Ó coisas Todas vãs, todas mudaves! (Como esse “mudaves”, que hoje é “mudáveis” e já não rima com “aves”.) O sol é grande. Zinem as cigarras Em Laranjeiras. Zinem as cigarras: zino, zino, zino... Como se fossem as mesmas Que eu ouvi menino. Ó verões de antigamente! Quan<strong>do</strong> o Largo <strong>do</strong> Boticário Ainda poderia ser tomba<strong>do</strong>. Carambolas ácidas, quentes de mormaço; Água morna das caixas-d’água vermelha de ferrugem; Saibro cintilante... Adriana Lisboa O sol é grande. Mas, ó cigarras que zinis, Não sois as mesmas que eu ouvi menino. São outras, não me interessais... Dêem-me as cigarras que eu ouvi menino. (Manuel, preciso te contar que sobre o Largo <strong>do</strong> Boticário, enfim tomba<strong>do</strong> pelo Instituto Estadual <strong>do</strong> Patrimônio Cultural em 1987, li no jornal esta semana que anda sujo e mal-conserva<strong>do</strong>. O Rio Carioca tem um cheiro ruim, ali. As árvores precisam de poda. Os azulejos se quebram e caem das casas <strong>do</strong> beco.) O Rio de Janeiro continua sen<strong>do</strong>. O Rio de janeiro, fevereiro e junho, de Manuel Bandeira e João <strong>do</strong> Rio, também de José Eduar<strong>do</strong> Agualusa, Sérgio Sant’Anna, Rodrigo Lacerda, Marcelo Moutinho, Ondjaki e também de Blaise Cendrars, e tantos outros <strong>do</strong> Rio e não. Reecontro-os a to<strong>do</strong>s nas ruas e estantes. Releio uma passagem de Etc..., etc... (um livro 100% brasileiro), de Cendrars: Uma luz deslumbrante inunda a atmosfera Uma luz tão colorida e tão fluida que os objetos que toca Os roche<strong>do</strong>s cor-de-rosa O farol branco que os <strong>do</strong>mina As cores <strong>do</strong> semáforo parecem liquefeitas E eis que agora eu sei o nome das montanhas que rodeiam essa baía maravilhosa O Gigante deita<strong>do</strong> A Gávea O Bico de Papagaio O Corcova<strong>do</strong> O Pão de Açúcar que os companheiros de Jean de Léry chamavam de Pote de Manteiga E as estranhas agulhas da Serra <strong>do</strong>s Órgãos Bom dia Vocês Paro neste bom dia. Respon<strong>do</strong> rápi<strong>do</strong>: Bom dia Vocês, com os olhos de Blaise Cendrars. Com os olhos e ouvi<strong>do</strong>s de Manuel Bandeira. Antes que o Bope me surpreenda às seis horas da manhã indican<strong>do</strong> uma outra coisa, um outro Rio, flechas acintosas no corpo já tão flecha<strong>do</strong> <strong>do</strong> santo, uma normalidade sangue e gargalhadas à qual é preciso continuar, ainda e apesar de tu<strong>do</strong>, tentan<strong>do</strong> não sucumbir. • r
Otro Ojo / Ricar<strong>do</strong> Humberto (detalhe) 26 MAURO 28 JULIÁN 30 RICARDO 31 ROGÉRIO 32 AFFONSO régis e o peão PINHEIRO caro rodrigo, FUKS otro ojo HUMBERTO ladrões de versos PEREIRA quase-diário ROMANO DE SANT’ANNA <strong>111</strong> • JULHO de 2009