A Hora em que Não Sabíamos Nada uns dos Outros
A Hora em que Não Sabíamos Nada uns dos Outros
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Pausa.<br />
A praça está vazia, na sua luz clara.<br />
Começa a ouvir-se um sussurro, torna-se mais forte, um rumor fundo <strong>que</strong> envolve a<br />
praça e depois se acalma.<br />
Um hom<strong>em</strong> (ou uma mulher) de olhos venda<strong>dos</strong>, às apalpadelas <strong>em</strong> pe<strong>que</strong>nos círculos,<br />
sai de uma das ruas para entrar logo numa outra e deixar de ser visto.<br />
Um hom<strong>em</strong> com uma pena no cabelo, como se tivesse ficado ali es<strong>que</strong>cida, põe a mão<br />
<strong>em</strong> pala por cima das sobrancelhas, enquanto um outro v<strong>em</strong> ao seu encontro, de olhos<br />
postos na sua própria mão <strong>que</strong>, como tudo indica, foi ligada recent<strong>em</strong>ente.<br />
Com um certo intervalo, entram como diabos, vin<strong>dos</strong> de la<strong>dos</strong> opos-tos, dois corredores,<br />
<strong>em</strong> grande tropel, quase roçam um pelo outro ao se cruzar<strong>em</strong>, s<strong>em</strong> se cumprimentar<strong>em</strong><br />
n<strong>em</strong> fazer<strong>em</strong> qual<strong>que</strong>r gesto.<br />
O contrário acontece quando se cruzam os caminhos de dois carteiros de bicicleta, e<br />
também quando se encontram dois polícias de giro (solda<strong>dos</strong> <strong>em</strong> patrulha?) <strong>em</strong> uniforme,<br />
e ainda, mas quase s<strong>em</strong> se dar por isso, como <strong>que</strong> <strong>em</strong> segredo, quando passam um pelo<br />
outro um hom<strong>em</strong> e uma mulher.<br />
Alguém puxa por <strong>uns</strong> instantes através da praça um esquife leve e azul, dentro do qual se<br />
adivinha uma figura branca, como múmia.<br />
Um outro, na pose do dono da loja de ombro na ombreira, aparece de um <strong>dos</strong> la<strong>dos</strong>,<br />
deixa-se ver assim durante algum t<strong>em</strong>po, e retira-se de novo.<br />
Um pe<strong>que</strong>no grupo de excursionistas atravessa <strong>em</strong> diagonal, subdividido <strong>em</strong>: grupo da<br />
frente, pelotão e um único atrasado, de cabeça caída, passo arrastado, e <strong>que</strong> não se<br />
apressa n<strong>em</strong> mesmo quando um <strong>dos</strong> outros leva os de<strong>dos</strong> à boca e solta um assobio do<br />
outro lado do palco; antes de sair, o atrasado pára mesmo um instante, deixa a cabeça<br />
descer sobre a nuca e desenha com a mão qual<strong>que</strong>r coisa como as figuras de vários<br />
pássaros <strong>em</strong> voo no ar, metendo a mão debaixo da roupa para se abanar enquanto anda.<br />
Entretanto, passou, com o seu ar distante, a beldade de antes, ou outra, de braço dado<br />
com o idiota da praça de há pouco, ou outro, <strong>que</strong> coxeia, saltita e rebola ao lado dela com<br />
um sorriso rasgado; a mu-lher irradia um grande brilho pelo caminho, vindo <strong>dos</strong> adornos<br />
espelha<strong>dos</strong> <strong>que</strong> usa, da coroa na cabeça até aos saltos altos; no meio disso, vai lançando<br />
olhares através de uma folha de árvore esburacada, como se fosse um le<strong>que</strong>; e o idiota<br />
sopra os seus beijos, da mão para dentro do círculo, de onde sai logo uma freira de negro,