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Raid Amezri – Uma história mal contada - TTVerde

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<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

<strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

1


Preâmbulo.<br />

<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Da janela do avião TP243 via as luzes das casas de Marrakech<br />

tornarem-se mais diminutas e pensei nas palavras de Saleh e no seu<br />

olhar bem fixo no meu, “vous dis impossible, je dis possible”.<br />

Ainda na véspera, ao cair da terceira noite, com o carro encurralado na<br />

garganta do Assif Melloul e na iminência de não se arranjar um<br />

reboque, vivi momentos de desespero…<br />

De regresso à segurança do táxi perguntavam-me:<br />

- Então e as férias, que tal?<br />

- Ótimas! Tempo maravilhoso, comida muito boa,<br />

paisagens lindas e emoções fortes!<br />

(uma <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong>)<br />

A minha “amante”, mais ou menos querida por todos lá<br />

em casa, o “fefender” das meninas, estava em perigo de<br />

vida.<br />

Bastava começar a chover, para rapidamente o ribeiro<br />

transformar-se numa força destruidora, que molda a<br />

paisagem que nos rodeava.<br />

Alá, Jesus e outros Poderes Superiores foram várias vezes<br />

invocados pelas Suas misericórdias e ajudas.<br />

Por isso, mais que não seja, para tentar repor a verdade, escrevo o que pensei e<br />

senti, deixando ao leitor a tarefa de ajuizar.<br />

Sem qualquer presunção literária, tento fazer um relato dos acontecimentos e<br />

dos percursos, tendo a audácia em pretender, que este documento possa de<br />

certa forma servir de guia, com algumas dicas, especialmente para outros<br />

apaixonados do todo-o-terreno que pretendam seguir alguns desses caminhos<br />

de Marrocos.<br />

2


Parte 1 <strong>–</strong> A costa.<br />

<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Infelizmente a Zizi, excelente navegadora e negociadora não podia vir, talvez para uma próxima vez, Insha'Allah!<br />

Pela primeira vez defini a maioria dos dias para pesquisa e descoberta de<br />

novos trajetos, recantos e imagens. Com exceção do 1º dia andámos<br />

sempre sem necessidade de pressas para atingirmos os objetivos diários.<br />

Sim porque, uma coisa é pensar que lá por irmos numa estrada nacional<br />

vamos fazer uma determinada média e depois são as carrinhas<br />

superlotadas, as bicicletas, os burros, as carroças, as obras, os buracos, e<br />

até as manifestações que nos podem atrasar.<br />

Foi quase com um suspiro de alívio que conseguimos sair de<br />

Portimão de tão tardia a hora. Depois das últimas despedidas<br />

e duma paragem na farmácia, decidimos fazer algumas<br />

compras em Huelva. Decisão errada por ter sido mais caro e<br />

termos perdido algum tempo. O suficiente para perdermos a<br />

última ligação na companhia onde tínhamos uma reserva.<br />

Tivemos de apanhar o último barco “lento” e para Ceuta,<br />

pouco importou, porque apesar do cansaço, o entusiasmo era<br />

grande. A vantagem desta hora tardia é a passagem na<br />

alfândega, que se torna mais rápida.<br />

Justiça seja feita ao amigo Toni, sempre com um<br />

sorriso, uma palavra encorajadora e sábia. Era a<br />

sua primeira ida a Marrocos e tal como para mim<br />

da primeira vez, foram uma sucessão de<br />

surpresas. Importante realçar que o Land Rover e<br />

os percursos escolhidos foram fundamentais<br />

para esta (sua) opinião.<br />

Também há outras “atrações” no caminho que nos retardam a chegada e não<br />

estou a falar dos inúmeros motivos fotográficos, mas sim da gastronomia.<br />

Amantes dos grelhados e da fruta procurámos almoçar nesse ponto de<br />

encontro de camionistas, vendedores e outros viajantes, junto dos churrascos<br />

fumegantes à beira da estrada, ao lado do respetivo talho e moscas.<br />

3


Querendo respeitar os nómadas do deserto e os<br />

seus recursos, precisávamos de apanhar lenha<br />

para as noites de acampamento. Daí a incursão<br />

numa mata com uma variedade de eucalipto, que<br />

nos era desconhecida e que percorremos ao longo<br />

duma praia, a norte de Azemmour.<br />

Depois de um verão intenso com muitas horas de<br />

trabalho, ansiava por mais do que uma saída da<br />

rotina. Precisava de um repouso mental da tensão<br />

quase sempre presente do serviço. Não muito<br />

longe da exaustão, nada melhor do que os<br />

desafios que se adivinhavam para concentrar o<br />

meu ser.<br />

<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Assim que começámos a subir, logo a seguir à fronteira, fomos<br />

cercados por um espesso nevoeiro, que nesta estrada <strong>mal</strong><br />

marcada e com muitas curvas, exige uma atenção redobrada.<br />

O novo porto Tanger-Med, já concluído, é deveras<br />

impressionante. Nada a salientar até Asilah onde estavam à<br />

nossa espera com lençóis lavados e tudo!<br />

<strong>Uma</strong> manhã soalheira perspetivava boas vistas ao longo dos<br />

muitos quilómetros de autoestrada até à saída em Chtouka a<br />

cerca de 35km a norte de El Jadida.<br />

Nessa perspetiva de alívio da<br />

tensão do trabalho noturno,<br />

ultrapassamos a saída da pista<br />

para a praia e acabámos<br />

numa cova, de onde só<br />

conseguimos sair à custa de<br />

pá e guincho!<br />

Nesta imagem, o Toni captou-<br />

me numa das variadíssimas<br />

vezes em que tivemos de<br />

vazar, ou de encher os pneus,<br />

consoante as condições do<br />

terreno.<br />

4


El Jadida foi visitada de fugida e é<br />

certamente um ponto a visitar,<br />

especialmente para quem se interesse por<br />

locais históricos e fotografias turísticas.<br />

Nós estávamos determinados em<br />

prosseguir com o plano e mantivemos a<br />

nossa rota ao longo de uma estrada<br />

movimentada, suja e sem grande<br />

interesse, com exceção da passagem pelo<br />

Cabo Beddouza, pouco antes de optarmos<br />

por dormir na industrial Safi, que foi mais<br />

uma das surpresas, para quem pensava<br />

que Marrocos não era um país<br />

desenvolvido.<br />

<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Essaouira talvez seja interessante para outros. Para nós<br />

pareceu-nos transformada numa Albufeira marroquina<br />

e só perdemos tempo para beber café, esticar um<br />

pouco as pernas e tirar fotografias a uns dromedários<br />

turísticos, versão marroquina duma qualquer charrete<br />

citadina de uma capital europeia. Decididamente, não é<br />

disto que viemos à procura.<br />

O encontro, primeiro com os pescadores e, depois com<br />

o “staff” do “rent-a-horse or rent-a-camel” na praia de<br />

Sidi Kaouki, agradou-nos muito mais e percebi que este<br />

sim, pode ser um sítio para um final/início de etapa.<br />

Independente do atraso de 150km que distam<br />

entre Safi e Sidi Kaouki, iniciámos mais um dia<br />

com o espírito cada vez mais descontraído e<br />

fomos apreciando uma paisagem sempre em<br />

mutação e cada vez mais interessante. O clima<br />

não era o mais favorável com neblinas, que<br />

impunham por vezes ligar os médios e que nos<br />

impediam de ver os contornos das falésias,<br />

fazendo lembrar a zona do nosso Cabo da Roca.<br />

5


<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Conforme estava previsto a pista conduziu-nos ao longo da<br />

falésia, progressivamente mais alta, com vistas<br />

deslumbrantes entre campo e mar, onde pescadores de<br />

linha, sem curso de alpinismo, desciam as altas arribas e<br />

não fora a neblina que persistia, teria sido perfeito. Mesmo<br />

assim conseguimos observar grandes ondas perfeitas sobre<br />

um azul-escuro, onde alguns surfistas efetuavam<br />

manobras, o que me trouxe há memória alguns amigos do<br />

meio e de como gostariam de estar agora ali na água!<br />

Arganias, arganias e mais<br />

arganias, quilómetros delas, ao<br />

longo da pista e nas colinas em<br />

redor! As cabras aproveitavam<br />

para se alimentar, com as patas<br />

no chão ou simplesmente<br />

trepando em busca dos rebentos<br />

mais tenros. A pista era<br />

desconfortável, fazendo lembrar<br />

os calhaus do sul, mas permitiu-<br />

nos encurtar alguns quilómetros<br />

e ver um mundo rural<br />

curiosamente tímido.<br />

Cheios de fome encostámos para a<br />

primeira Tagine de carneiro junto<br />

ao fumo dos churrascos, que afinal<br />

eram de sardinha. Não obrigado! O<br />

mais curioso aconteceu antes de<br />

sair do carro, quando afirmei que<br />

uns determinados clientes,<br />

sentados numas cadeiras com<br />

umas mesas, algo semelhante a<br />

uma esplanada, eram portugueses.<br />

E não é que eram mesmo!?<br />

Curiosa identidade, esta nossa…<br />

6


Não fazia ideia que Agadir fosse de semelhante<br />

dimensão, uma vila turística talvez… <strong>Uma</strong><br />

metrópole a bem dizer e de fugir! Muito ao<br />

contrário da limpinha e bem arranjada Tiznit.<br />

Virámos para Mirlef e fui-me sentido cada vez<br />

mais em harmonia e maravilhado com a<br />

paisagem. <strong>Uma</strong> estrada estreita serpenteando<br />

entre colinas com milhares de catos. Tenho visto<br />

muitos catos, mas nada como isto. Marrocos é<br />

realmente surpreendente em cada recanto!<br />

<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Um atraso nem sempre é coisa má e já começa a ser uma<br />

tradição a pequena noturna, que é sempre bem-vinda. A<br />

pista obriga a uma atenção redobrada, mesmo com os<br />

oito faróis. As pequenas acácias, catos e arbustos<br />

transformam-se e existe maior oportunidade de ver os<br />

furtivos fenecos, ou raposas-do-deserto (Vulpes zerda),<br />

encadeadas pelos faróis.<br />

Só vimos as ruínas do forte no dia seguinte, mas fomos<br />

chamados à atenção por uma misteriosa fogueira e uma<br />

placa a proibir o acampamento. A energia para o<br />

acampamento propriamente dito vem de um gerador a<br />

gasóleo e as luzes surgiram inesperadamente, após uma<br />

pequena elevação do terreno.<br />

Depois de Sidi Ifni a paisagem muda de uma<br />

forma radical. Terminam as colinas e<br />

percebe-se a aproximação ao deserto. Ainda<br />

se vêm as antigas pistas, mas o alcatrão está<br />

firme e para ficar.<br />

Apesar de a noite estar rapidamente a cair,<br />

ainda tentámos infrutiferamente ir ver Foum<br />

Assaka, para depois apanharmos a pista para<br />

Bou Jerif.<br />

7


<strong>Uma</strong> imagem vale mais<br />

do que mil palavras e<br />

infelizmente, não só os<br />

fotógrafos não são<br />

profissionais, como a<br />

pequena Pentax (já sem<br />

zoom) não nos permitiu<br />

obter o que procuro a<br />

seguir transmitir.<br />

<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

O acampamento do Fort Bou Jerif já foi<br />

acampamento em tempos, apesar de podermos<br />

continuar a utilizar a nossa tenda se o quisermos.<br />

Hoje em dia é muito mais do que um sítio para<br />

tomar um duche e armar a tenda. Pierre o dono e<br />

amigo de longa data do nosso amigo e mentor<br />

britânico, recebe como ninguém. Nada a apontar<br />

negativamente: instalações, alimentação,<br />

profissionalismo, simpatia e localização paisagística<br />

e histórica fazem deste, um sítio a não perder, para<br />

quem vá para qualquer um dos pontos cardeais.<br />

Efetuámos a ligação entre o forte e o Ksar Tafnidilt,<br />

passando pela Plage Blanche e o Cabo Draa.<br />

Numa palavra, magnífico!<br />

Imperdoável vir aqui e não fazer todo o percurso,<br />

mas não há bela sem senão.<br />

O primeiro é que percorrer a areia macia da Plage<br />

Blanche, sem uma maré completamente baixa, não<br />

é pera doce, exigindo muito motor e muita atenção,<br />

como infelizmente viemos a verificar.<br />

8


<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

A segunda é o penoso percurso de pedra e calhau após a Praia<br />

Aoreora, depois de seguir o curso de um rio, ao lado de uma duna<br />

impressionante.<br />

Chegados ao antigo forte, somos confrontados de um lado por uma<br />

extensa duna, que mais à frente passa a ser uma falésia alta e onde<br />

se vão encontrando abrigos de pescadores.<br />

Do outro, uma extensa planície a perder de vista, com uma paisagem árida de pedra e areia, que nos faz<br />

constantemente lembrar a proximidade ao deserto.<br />

Felizmente escolhemos esta altura do<br />

ano antes das chuvas, porque parte do<br />

percurso escolhido até ao destino, segue<br />

no vasto leito do rio. Um divertido<br />

ziguezague em zonas de areia e terra,<br />

que se devem revelar intransponíveis<br />

quando molhadas, como é bem visível<br />

pelas diversas marcas profundas de<br />

carros atolados.<br />

Depois, para que vem de norte, surge a imponente foz do Draa.<br />

A sensação para além da grandeza é de afastamento do mundo<br />

civilizado.<br />

9


<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

O casal proprietário do Ksar Tafnidilt (infelizmente não fixei os<br />

nomes) são de uma simpatia rara e receberam-nos de uma forma<br />

que nos fez sentir como em nossa casa.<br />

A Tagine de dromedário estava tão boa ou melhor que a da<br />

véspera. Estes senhores, amigos do célebre Gandini, são também<br />

uma fonte importante para informações gerais ou para situações<br />

mais delicadas.<br />

Passámos por vários rebanhos mistos<br />

de cabras e carneiros, partilhando o<br />

espaço com cáfilas de dezenas de<br />

dromedários. As cores e contrastes do<br />

fim do dia só ajudaram a realçar a<br />

beleza da paisagem envolvente.<br />

A primeira parte estava concluída, com alguns problemas que conseguimos<br />

sempre resolver, o que nos deixava otimistas para os próximos dias no<br />

deserto.<br />

A incógnita, em vez de ser paralisante, já era motivação para a dupla da<br />

Disney.<br />

10


Parte 2 <strong>–</strong> O deserto.<br />

De regresso ao leito do Draa percebemos<br />

que estamos a entrar num desfiladeiro e que<br />

o caminho nos ia deixar encurralados entre<br />

as paredes de rocha.<br />

Sitiada entre estranhas formações rochosas<br />

e quase sem vegetação a pista, desculpem,<br />

as marcas dos pneus, tentam evoluir ao<br />

sabor dos obstáculos da vegetação e do<br />

terreno.<br />

<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Era com alguma expectativa e inquietação que<br />

enfrentei este dia, confesso que um pouco<br />

influenciado pelas informações recolhidas em<br />

Tafnidilt via Gandini…<br />

Depois das fotos da praxe junto aos camelos de<br />

Tan-Tan, saímos do alcatrão junto ao WP, por<br />

umas marcas difusas de uma pista em desuso.<br />

Muito calhau e uma ou outra passagem mais<br />

destruída, como que a nos fazer por merecer o<br />

que vinha mais à frente.<br />

Há medida que íamos dificilmente progredindo,<br />

fomos envolvidos por um cenário selvagem, onde<br />

a única presença humana eram as marcas que<br />

procurávamos seguir. Entre a vegetação surgiam<br />

algumas bolsas de água, formando pequenas<br />

represas e garantindo assim a presença da vida.<br />

Diversos animais, como garças-reais, esquilos e<br />

várias cáfilas de dromedários mostravam-se umas<br />

vezes esquivos, outras curiosos com a nossa<br />

passagem.<br />

11


<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Por duas ou três vezes chegámos a becos sem saída onde<br />

tivemos de retroceder há procura de uma alternativa. Cruzámos<br />

o leito principal do rio por diversas vezes e obstinados em<br />

continuar, fomos ultrapassando as dificuldades que se nos<br />

deparavam, aproximando-nos metro a metro da saída<br />

pretendida.<br />

Finalmente a saída! Um afluente com muito cascalho e que se ia<br />

estreitando há medida que subíamos a montanha. Com a caixa de<br />

transferência em Low tivemos de subir em 2ª e 1ª para não danificar<br />

o material.<br />

A pista por fim começava a ficar definida e saiamos do ribeiro para<br />

um planalto rochoso, quando subitamente e tão surpreso quanto<br />

nós, um leopardo-do-atlas (Panthera pardus panthera)!<br />

Afortunados os audazes, apesar de não termos tido tempo para<br />

fotografias, tal o nosso espanto e a velocidade de fuga do gato.<br />

Recordei-me das imagens de satélite que tinha visto em casa e<br />

de como a definição era má, o que levantava maiores incertezas<br />

do que estava mais para a frente.<br />

12


Tilemson e Msied são duas aldeias<br />

isoladas, onde a sobrevivência deve<br />

ser tudo menos fácil.<br />

Procurávamos um local para um café<br />

e bolachas e tivemos o privilégio de<br />

ter uma sombra de uma grande<br />

palmeira, mesmo em frente ao<br />

“vulcão” de Msied, onde nos<br />

deslocámos propositadamente para o<br />

fotografar.<br />

<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Esta espécie em vias de extinção é dificílima de ser<br />

avistada e só nos aconteceu, por estarmos numa zona<br />

remota e com acesso à água.<br />

A seguir aparece o primeiro oásis, onde um rebanho de<br />

cabras e carneiros não nos prestou a mínima atenção.<br />

Um pouco mais à frente entroncamos com uma nova<br />

estrada, vinda da ligação de Tan-Tan para Tilemson e<br />

que aproveitamos para descontrair um pouco do<br />

trabalho árduo da manhã.<br />

Regressámos ao “vale de Msied”,<br />

definido assim por mim, por ser<br />

uma zona plana exatamente como<br />

antevi, delimitada a norte pelo Jbel<br />

Rich e a sul pelo Jbel Tassaout, que<br />

está apenas a esconder o imenso<br />

Jbel Ouarkziz.<br />

De início uma pista rápida típica do<br />

sul entre acácias, que neste<br />

começo, estão penteadas para<br />

sotavento, tal e qual a flora típica<br />

das costas marítimas fustigadas<br />

pelo vento.<br />

13


E é esse mesmo o dilema deste local, uma ratoeira<br />

descomunal. E o que parece plano e regular à<br />

distância, não o é de todo durante a progressão. Outro<br />

problema é que as saídas para norte estão espaçadas<br />

por dezenas de quilómetros impedindo qualquer<br />

alternativa que não seja seguir em frente. Mas a<br />

dificuldade maior é outra… A partir do momento em<br />

que o Oued Draa passa a fazer parte deste gigantesco<br />

vale, a pista segue forçosamente no seu leito. Em<br />

época de chuvas as armadilhas são muitas e a<br />

progressão será muito difícil, senão impossível.<br />

<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Um trajeto fascinante onde se deve pensar mais do que<br />

duas vezes antes de o tentar realizar.<br />

Nós encontramos um recanto abrigado por uma rocha de<br />

forma invulgar, onde montámos acampamento e onde<br />

disfrutámos de um Esparguete à Bolonhesa.<br />

Que pena tenho, não ter conseguido<br />

captar em imagem a imensidão deste<br />

local. A norte uma barreira rochosa<br />

irregular assumindo formas<br />

imaginárias. A sul uma imensa parede<br />

de mais de 500 metros de altura que<br />

nos acompanhou durante este dia e o<br />

dia seguinte. São 240km de uma<br />

escarpa negra que nos diz:<br />

Por aqui não passarás!<br />

Aliado a todas estas dificuldades existe outra que torna<br />

tudo isto num sério desafio. Pela primeira de todas as<br />

vezes que vim a este país, não vimos qualquer presença do<br />

homem. Sim existem ruínas e aparentemente os nómadas<br />

também trazem os seus rebanhos para aqui, mas nós não<br />

os vimos.<br />

Em caso de necessidade de socorro só com um telefone<br />

com comunicação satélite porque não existe rede móvel.<br />

14


<strong>Uma</strong> pista bem definida e estável,<br />

reforçada com pedras e calhaus, que<br />

teoricamente permite um acesso em<br />

épocas de chuva, apesar de duas<br />

passagens por duas curtas, mas<br />

profundas valas.<br />

Esta secção a sul do rio revelou-se<br />

igualmente fantástica. Por mais alto que<br />

nos posicionássemos era impossível<br />

distinguir até onde ia o vale e o fim da<br />

excelente e rápida pista.<br />

<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Apesar de estarmos mais à frente de onde eu<br />

tinha idealizado o nosso acampamento, muito<br />

havia ainda para andar, até porque não<br />

pretendia “subir” para Aouinet-Torkoz, mas sim<br />

“descobrir” a passagem para sul sobre o leito<br />

principal do rio, o que viemos a conseguir cerca<br />

de três quilómetros à frente de onde eu tinha<br />

idealizado.<br />

Finalmente a estrada entre Assa e Zag onde os<br />

perigos não são exclusivamente de origem mecânica.<br />

Depois de atestar em Assa, onde ficámos bem<br />

impressionados pela limpeza, procurámos logo à<br />

saída por umas gravuras rupestres, no entanto o que<br />

encontrámos foi um pastor que nos pediu primeiro<br />

cigarros e depois água. Nor<strong>mal</strong>mente quando pedem<br />

água é apenas um pretexto para qualquer outra<br />

coisa, mas não era… A sedenta personagem bebeu<br />

metade duma das garrafas de 2 litros sem tirar a<br />

garrafa da boca!<br />

15


Podíamos regressar ao Draa e<br />

prosseguir na nossa senda ao<br />

longo do seu trajeto, no<br />

entanto ansiávamos por um<br />

banho e tínhamos um plano a<br />

seguir. Por isso optamos por<br />

prosseguir no alcatrão e mesmo<br />

assim fomos recompensados<br />

por lindas paisagens do deserto,<br />

nos cerca de 230km a que<br />

distava Tata.<br />

<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Antes de tentarmos localizar a zona onde decidimos acampar ao sul<br />

de Mrhimina, não conseguíamos resistir e continuámos a parar para<br />

admirar os quadros naturais envolventes em lugares como Taimzour.<br />

Todo este ambiente de relaxe provocou uma desconfortável<br />

aproximação à hora do Pôr-do-Sol, o que veio a complicar e a<br />

comprometer o nosso acampamento para a noite, isto depois de não<br />

encontrarmos a pista, de termos de cruzar o Oued Zguid,<br />

surpreendentemente com bastante água e de fugirmos dos<br />

mosquitos no local escolhido para o acampamento.<br />

Seguimos o instinto e a sorte bafejou-nos<br />

quando entramos no Dar Infiane, onde me<br />

lembrei dos relatos dos fóruns e sítios da<br />

internet sobre este local, o que me deixou<br />

mais crítico e observador. Nada a apontar.<br />

Foram muito simpáticos para connosco e<br />

ofereceram-nos chá, amêndoas e tâmaras<br />

enquanto aguardávamos que a água para o<br />

duche ficasse quente. <strong>Uma</strong> residencial dentro<br />

de um antigo kasbah, onde cada recanto é<br />

uma agradável surpresa. Um espaço ideal<br />

para relaxar ou passar um fim-de-semana<br />

romântico, numa posição de destaque sobre o<br />

palmeiral.<br />

16


<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Mas, ainda bem que assim foi, porque agora já tinha mais<br />

do que um pretexto para visitar Hassan em Foum Zguid e<br />

jantar outra coisa que não fosse um enlatado!<br />

Tranquilizados depois das espetadas, batatas fritas e<br />

salada, na noite da vitória de Marrocos sobre a Tanzânia<br />

com duas bolas a uma, desenvolvemos uma conversa na<br />

praça agora deserta, onde bem me recordo de outras<br />

ocasiões em que víamos dezenas de jipes, motas e camiões<br />

que se juntavam nesta encruzilhada nas portas do deserto.<br />

Fatigados e de barriguinha cheia só fomos despertados às<br />

cinco da manhã pela primeira oração. É que o minarete da<br />

mesquita, onde estão os megafones, ficava do outro lado<br />

da rua!<br />

Só nessa altura é que percebemos a existência das neblinas na costa, pequenas poças de água, troços de pista húmidos<br />

e os rios com água e areia molhada. A razão foram as fortes chuvadas de há quatro dias e que chegaram a produzir<br />

cheias em Zagora! A parte central do lago era de evitar porque certamente existiam zonas da terrível areia molhada,<br />

que deixam o carro enterrado até aos eixos! Se já fazíamos intenção de passarmos a sul do Lago Iriki, agora mais do que<br />

nunca esse seria o caminho a seguir, até porque a alternativa eram as penosas pistas de pedra na zona norte do lago.<br />

Com a fronteira próxima da zona sul do<br />

Lago Iriki, sabíamos que existiam postos de<br />

controlo, onde nos poderiam impedir de<br />

seguirmos pelo caminho desejado. Ainda<br />

em Tafnidilt, uns motards espanhóis,<br />

confirmaram a localização de um desses<br />

postos um pouco a sul de onde pensámos<br />

acampar na véspera, daí termos optado por<br />

uma rota mais para sueste.<br />

17


<strong>Uma</strong> pequena passagem pelo meio<br />

duma extensa formação rochosa em<br />

forma de bossas de camelo parecia<br />

perfeita, quando para nossa surpresa<br />

surgem duas construções em pedra,<br />

uma cancela e os soldados! Depois de<br />

uns dez minutos de comunicações via<br />

rádio, sobre de onde vínhamos, para<br />

onde íamos e quem eramos deixaram-<br />

nos seguir sem mais demoras.<br />

Alguns quilómetros mais à frente alguns<br />

soldados reabasteciam um depósito de<br />

água com um camião cisterna e não se<br />

mostraram surpresos, quando três<br />

minutos depois voltámos a passar por<br />

eles, mas em sentido contrário!<br />

A paisagem sempre em mutação não<br />

nos deixava de surpreender com a<br />

sua beleza. Desde areia de um<br />

amarelo escuro salpicada por<br />

minúsculas pedras negras, passando<br />

por zonas de rocha nua de diferentes<br />

tonalidades, ou zonas de areia<br />

cinzenta, onde aqui ou ali, pequenas<br />

acácias teimam em crescer, apesar<br />

da escassa chuva e os poucos animais<br />

procuram proteção do sol letal.<br />

<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

A pista que tínhamos no GPS não estava no<br />

terreno, nem tão pouco os vestígios de algo<br />

antigo e em desuso. Experimentámos<br />

diferentes deslocações de mais de 500mts e<br />

nada. Começamos a navegar por intuição no<br />

terreno aproveitando da melhor maneira o<br />

relevo, com o intuito de entroncarmos com a<br />

antiga pista a sul.<br />

18


<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Ao meio-dia já avistávamos as grandes dunas que pensei ser<br />

possível evitar enquanto o pretendêssemos. Em determinado<br />

ponto abandonámos a larga pista e aproximamo-nos das<br />

areias. A areia revelou-se mais fácil de ultrapassar do que eu<br />

esperava, mas sozinhos não podíamos correr riscos e<br />

procurámos contornar as grandes areias, seguindo as<br />

sucessivas marcas no terreno e as pistas cartografadas no GPS.<br />

Finalmente a antiga pista balizada por pedras<br />

sobrepostas e pintadas de branco. O rali até<br />

Dakar passou inúmeras vezes por aqui. Piso<br />

bom e ondulante, constantemente cruzado por<br />

pequenos cursos de água secos obrigando-nos a<br />

baixar dos 80km/h para 20km/h e depois<br />

recomeçar tudo de novo. Metemos conversa<br />

primeiro com um grupo de cinco jipes franceses<br />

e depois com um casal francês (todos com<br />

cartografia Gandini). Estes últimos iam numa<br />

Hilux transformada em autocaravana em<br />

direção a Smara e já vinham para aqui antes de<br />

eu ter nascido. Fantástico encontrar um casal<br />

daquela idade e experiência aqui tão longe da<br />

civilização das cidades.<br />

A pista era consecutivamente cortada e onde antes existia uma passagem<br />

estavam agora sucessivos cordões de dunas com dois, ou três metros de<br />

altura. Fora disto o piso é de areia e terra dura e muito irregular tornando<br />

a progressão um exercício de paciência, destreza e atenção constante.<br />

Tentámos mais a norte, mas as extensas zonas planas ocultavam zonas<br />

húmidas onde o perigo de atascarmos era constante. Estávamos em pleno<br />

Lago Iriki e precisávamos de avançar a todo o custo para leste!<br />

Resolvemos fazer uma pausa para uma pequena refeição, recuperar forças e espirito.<br />

Tentámos mais a sul, por forma a “apanharmos” a pista principal, mas o leito do Draa<br />

com água impedia qualquer tentativa e vimo-nos envolvidos num labirinto de vegetação<br />

e dunas de pequena dimensão. Era necessário seguir nordeste! Quando finalmente nos<br />

libertámos, encontrámos inesperadamente a pista! Quase que rejubilámos e parámos<br />

para usufruir do momento, quando nos apercebemos que faltava uma tenda!<br />

19


<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Na aproximação a uma das zonas das grandes dunas a sul da “Source Sacré”<br />

acabámos por atascar, mas não desistimos de tentar outra aproximação para<br />

acamparmos no lugar ideal, bem próximo duma das grandes dunas, onde<br />

fizemos uma fogueira com os restos da lenha de Azemmour.<br />

Antes do jantar era o momento para concluir os apontamentos do dia até<br />

porque depois, para ajudar à digestão, subimos penosamente ao topo de uma<br />

das grandes dunas, para apreciarmos a paisagem lá de cima sobre a luz da Lua<br />

Cheia.<br />

Estranhos para nós, mas não para os<br />

locais, que sabem muito bem onde<br />

estão e eu afinal também sabia, só que<br />

já não me lembrava e só me apercebi<br />

disso quando nos deparámos com<br />

outro posto de controlo!<br />

Eu tinha reeditado o sucedido na “Portugal<br />

Campaign” em 2008 e esqueci-me da tenda no<br />

tejadilho após o almoço! Não retrocedi o “track” e<br />

fomos diretos onde calculei que tínhamos almoçado.<br />

Bem jogado apesar de tudo e a pista estava a apenas<br />

20mts do local onde almoçamos. Incrível como de tão<br />

perto não a tínhamos conseguido distinguir. Nos<br />

quilómetros seguintes deparámo-nos inúmeras vezes<br />

com este problema, em que as marcas desapareciam<br />

devido à ação da água e vento e voltavam a<br />

reaparecer uns metros à frente ou ao lado.<br />

Apesar de termos feito uma noitada até às dez e meia da noite,<br />

despertámos de espirito rejuvenescido e pronto para chegarmos ao<br />

porto seguro em Zagora. Mesmo com o sentimento de estarmos já<br />

em casa, ainda tivemos de batalhar um pouco para prosseguirmos<br />

no caminho mais direto até Mhamid.<br />

A fúria revelou-se por causa de um troco adulterado no café, mas<br />

sem provocar incidentes e assim prosseguimos a nossa aventura<br />

novamente a sul do Draa em busca dos kasbahs desconhecidos...<br />

20


<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

A aldeia de Ouled Driss está envolvida pelo palmeiral e esconde ao viajante menos atento dois antigos kasbahs, o Ksar<br />

Bab el Janoub e o Ksar Bounou que merecem a pena ser visitados por quem aprecie os lugares históricos.<br />

Depois de ultrapassarmos o Jbel Bani a planície volta a se revelar,<br />

agora com os diferentes palmeirais que seguem os rios, sendo<br />

principal o Oued Draa, que voltamos a cruzar depois de inúmeros<br />

lugares envoltos pelas palmeiras e parcelas cultivadas. As crianças<br />

e jovens já tinham saído da escola, caminhando ou pedalando<br />

indiferentes ao pó.<br />

O nosso propósito era uma pequena diversão por uma antiga<br />

pista, revelada por um pisteiro berbere de nome Lahcen e que<br />

segue junto ao rio e à rocha que a acompanha. Um pequeno<br />

recanto da natureza ainda intacto e que sempre me agrada rever.<br />

O piloto da KTM berbere aguardava à entrada de Zagora por<br />

potenciais clientes e reconheceu imediatamente o Defender da cor<br />

das areias do Erg Chebi. Tratou-me pelo nome próprio quando me<br />

cumprimentou e conduziu-nos à garagem Iriki, onde não consegui<br />

evitar três beijos do Aziz e dois do Sahid.<br />

Enquanto saboreávamos o chá e as amêndoas, o Sahid contou-me das cheias em Zagora devido<br />

ao granizo! Falámos um pouco de tudo, do banal e do principal, a família. Aguardámos que o<br />

carro estivesse tratado e acertamos pormenores com o primo Lahcen da loja Sables d’Or para a<br />

visita depois de jantar. Rumámos ao hotel, onde apesar de a reserva não ter chegado,<br />

conseguimos um preço razoável.<br />

O objetivo era a piscina que não desperdiçamos de usar e abusar.<br />

21


Precisávamos de pilhas para a máquina e percebi<br />

que as Duracell estavam todas adulteradas. A<br />

embalagem parece nova, mas de facto está é colada<br />

com precisão e as pilhas sem carga. Com alguma<br />

dificuldade conseguimos outras numa outra loja,<br />

numa outra viela. De regresso à avenida principal em<br />

busca do jantar, fomos confrontados pelo<br />

“macdunald” lá do sítio, mesmo em frente à loja das<br />

bicicletas e ao lado da mercearia, numa rua de terra<br />

onde pessoas, bicicletas, motas, carroças e pequenas<br />

carrinhas se atropelavam e nós sentados na<br />

esplanada tínhamos de encolher os pés para de<br />

baixo da cadeira, não fosse alguém se descuidar.<br />

Fila constante de clientes à espera dos grelhados e<br />

das espetadas do paraíso, principalmente as<br />

primeiras seis. Depois derivamos para umas salsichas<br />

picantes de borrego que fariam inveja à melhor<br />

salsicha alemã que se possa encontrar.<br />

<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Na loja Sable d’Or por vontade minha trazia a loja quase toda, mas<br />

apenas trouxe uma lembrança para as pessoas mais importantes<br />

porque o orçamento não é infinito. Pela primeira vez consegui apreciar<br />

na 1ª pessoa o processo de negociação, talvez porque me faltava a<br />

principal interlocutora. Há <strong>mal</strong>es que vêm por bem e esperemos que<br />

continue assim, Insha'Allah!<br />

Adormeci a pensar que apesar das dificuldades, tínhamos conseguido<br />

concluir mais um objetivo, ao seguir o Draa desde a sua foz ao longo<br />

do deserto e até à segurança de Zagora. O saldo era bastante positivo<br />

e era com otimismo que encarava a entrada nas montanhas.<br />

22


Parte 3 <strong>–</strong> As montanhas.<br />

Tendo sido os primeiros a chegar ao pequeno-<br />

almoço e mesmo com o prolongado repasto da<br />

véspera, não nos intimidamos com a extensa<br />

variedade oferecida e fomos tudo menos frugais.<br />

Apesar do convite para um chá de despedida, eu<br />

já contava com a ausência dos atores principais<br />

assim de manhãzinha. Por isso não nos tardámos<br />

muito pela cidade e voltámos a seguir o Oued<br />

Draa agora mais luxuriante e envolvido por<br />

milhares de palmeiras e campos de cultivo.<br />

Antes de começar a subir a pista<br />

parámos para contemplar as<br />

redondezas e detivemos mais um<br />

pouco a nossa marcha por causa<br />

de uns gritos vindos de parte<br />

incerta… Dois miúdos desciam a<br />

grande velocidade a longa<br />

ribanceira sem travões nas<br />

bicicletas e mesmo assim, tal como<br />

nós há muito tempo atrás,<br />

abrandaram a marcha com os pés<br />

a fazerem pressão diretamente no<br />

pneu.<br />

Que saudades!<br />

<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Ao longo da estrada para Ouarzazate sucedem-se as<br />

povoações intimamente ligadas ao rio. Nós aproveitamos<br />

para comprar por duas vezes à beira do caminho duas caixas<br />

de tâmaras, que vieram mais tarde a revelar-se importantes.<br />

Agdz ou Agdez, qualquer destas designações servem para<br />

indicar uma povoação onde em 2008 vimos uma<br />

manifestação. Está em pleno Vale do Draa e nós não<br />

chegamos a passar por ela, porque virámos à direita em<br />

direção a Nekob e logo a seguir à esquerda, para tentarmos<br />

a passagem ocidental do Jbel Sahro.<br />

23


Isto porque a abundancia é tão grande, que mesmo<br />

que quisessem construir um castelo medieval, bastava<br />

dar um passo e recolher as pedras.<br />

O nor<strong>mal</strong> neste país é uma alternância de cenários<br />

constante e aqui não é exceção. Depois do longo vale<br />

que cruzamos de sul para norte, enveredamos por uma<br />

garganta de um rio com escarpas muito altas e de<br />

rocha nua.<br />

A pista desaparece dando lugar a marcas de rodados<br />

por cima do calhau redondo, típico dos rios. Este<br />

trecho de quatro ou cinco quilómetros é deveras<br />

impressionante e de uma beleza quase perturbadora.<br />

<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Após a primeira passagem de um<br />

pequeno cume, descemos a um vale<br />

cheio de pequenas quintas onde,<br />

como é costume nas zonas<br />

pedregosas, a terra para ser<br />

cultivada necessita que as pedras<br />

que cobrem o solo sejam removidas,<br />

sendo depois aproveitadas para a<br />

construção dos muros que delimitam<br />

os lotes.<br />

Algumas dessas pedras são<br />

guardadas em montes e utilizadas<br />

para outro fim, mas para qualquer<br />

coisa próxima.<br />

Começamos a subir à crista do Jebel Azlou a<br />

cerca de 1800mts de altitude, quando podemos<br />

observar ao longe e bem lá em baixo o Vale do<br />

Draa. À medida que nos embrenhamos na<br />

montanha vamo-nos sentindo mais pequeninos.<br />

De um lado profundos desfiladeiros com<br />

centenas de metros de altura, do outro,<br />

sucessivos picos em direção a oriente. Alguns<br />

com formas que nos deixam a pensar quem terá<br />

sido o criador destas formas…<br />

24


Aqui em Marrocos vê-se muitas<br />

vezes, principalmente por parte<br />

das mulheres, uma atitude<br />

defensiva. Por razões culturais há<br />

uma tendência para esconder a<br />

cara e quando isso não acontece,<br />

quase sempre viram a cara assim<br />

que vêm a máquina.<br />

Importante não esquecer que é<br />

proibido fotografar edifícios<br />

governamentais ou militares, o<br />

que não quer dizer que não se<br />

faça, mas convém estar disposto<br />

a sofrer as consequências.<br />

<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Um rio corta as montanhas em<br />

ziguezague fazendo lembrar as<br />

Gargantas do Dades, visitadas por<br />

nós em 2009 e que mereciam<br />

melhor máquina para captar a<br />

beleza e a dimensão deste lugar.<br />

Esse capricho, ou talvez<br />

necessidade de fotografar tudo o<br />

que nos atrai, é algo que por vezes<br />

me incomoda até em mim próprio<br />

e também aos que são o alvo da<br />

teleobjetiva. É importante<br />

respeitar isso, bastando para tal<br />

colocar-me no lugar do outro, tão<br />

simples como isso!<br />

A pista é mais demorada do que se possa inicialmente pensar. Há<br />

secções sensíveis onde se impõe uma marcha lenta e está quase<br />

sempre presente a tendência para se parar, fotografar e admirar mais<br />

um penhasco ou um vale escondido.<br />

25


<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Em dado momento, a cerca de 200mts da pista, bem no<br />

centro da montanha, uma tribo nómada tinha<br />

estabelecido o seu acampamento na parte superior de<br />

um pequeno vale onde existia alguma vegetação e<br />

corria um pequeno curso de água. Paramos…<br />

Retrocedemos… E sem sair do carro tiro duas<br />

fotografias. O Imã ou chefe da tribo, isto é, o único<br />

homem completamente vestido de branco, começa a<br />

bracejar em fúria e nós metemos primeira com o<br />

rabinho entre as pernas à procura doutro entretém.<br />

Sempre a subir em direção às<br />

antigas minas de Timdrhas<br />

chegamos ao Jbel Amgroud e<br />

passamos a barreira dos 2000mts<br />

de altitude. São sucessivas<br />

montanhas dentro desta enorme<br />

formação. O Jbel Sahro mais uma<br />

vez não é dececionante, antes pelo<br />

contrário, deixa-nos maravilhados<br />

com a sua natureza.<br />

No fundo de um vale atingimos<br />

Tagmout onde estivemos quase<br />

para comprar um litro e meio de<br />

mel, dentro de uma garrafa de<br />

Coca-Cola, mas a mulher pedia<br />

muito dinheiro e recusámos.<br />

Eventualmente num determinado momento “sentimos” que<br />

estamos a chegar “ao outro lado”, apesar de ainda estarmos<br />

a 1800mts de altitude. É esse o momento em que somos<br />

confrontados com uma visão quase surreal de uma enorme<br />

massa de rocha, bem mais elevada que o nosso horizonte.<br />

Apesar de estar a quase 60km de distância conseguimos<br />

distinguir os diversos picos do Maciço do Mgoun para onde<br />

nos dirigíamos. Dali a barreira descomunal parece<br />

intransponível, mas não é bem assim, pois existe uma<br />

passagem, que era para onde nos íamos dirigir.<br />

26


<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Quando entramos na vila junto ao alcatrão quisemos fazer um corta-<br />

mato, mas tivemos de voltar para trás e seguir o track que tínhamos<br />

no GPS, porque demos por nós no meio de vielas exclusivas a peões e<br />

bicicletas.<br />

A estrada vinda de Boulmane Dades segue ao longo do maciço que se<br />

ergue no final do planalto à nossa direita e que se estende para lá de<br />

Ouarzazate, onde estão os famosos estúdios de Hollywood e não<br />

muito longe da emblemática Ait-Ben-Haddou e também da<br />

fantástica pista de Telouet. Sem esquecer todos esses sítios, que<br />

devem ser visitados pelo menos uma vez, mas com outro<br />

pensamento mais prioritário, parámos em Skoura para comprar<br />

alguma fruta, incluindo melão bonito e perfumado…<br />

Cruzamos vários cursos de água secos vindos da montanha que<br />

crescia diante dos nossos olhos. Após a passagem da primeira<br />

aldeia, a pista está completamente destruída e temi o pior,<br />

porque ainda tínhamos muito que rodar. Com algum cuidado<br />

fomos progredindo contra a corrente descendente e seguimos<br />

por um pequeno afluente à esquerda quando vimos os restos da<br />

pista destruída a cruzar o rio. Surpreendentemente, após a<br />

saída do ribeiro pelo meio de umas casas surge o alcatrão, onde<br />

íamos sendo abalroados por uma “carrinha multiuso” parecida<br />

com esta. Neste novo trajeto até ao entroncamento na pista<br />

para Tamzerit, vimos várias e há inclusive uma, que chegamos a<br />

ultrapassar durante a ascensão à aldeia.<br />

No entanto naquele momento na minha<br />

alma corria outro pensamento.<br />

Finalmente tínhamos chegado ao momento<br />

da verdade. A subida ao Tizi n’Oulaoun<br />

estava a ser iniciada e não tinha nenhuma<br />

confirmação das condições que iriamos<br />

encontrar, será que iriamos atingir o Vale<br />

Rosa de Tassaout, e a aldeia de <strong>Amezri</strong>?!<br />

Pouco depois de Skoura seguíamos rumo a<br />

norte quando entramos numa pista de<br />

areia cinzenta com alguns tons quase<br />

metálicos.<br />

27


A ascensão mesmo com o piso bom é impressionante<br />

e igual às imagens estudadas quase até à exaustão.<br />

Finalmente o Tizi n’Oulaoun e tivesse eu outra<br />

máquina fotográfica e outro dom na escrita para<br />

poder transmitir a dimensão e beleza deste lugar.<br />

Para sul o profundo desfiladeiro com a pista aos esses<br />

cortando a montanha, para norte o vale, que é<br />

mesmo rosa e para sudoeste uma outra pista, onde<br />

irá ter? Não encontrei qualquer registo nem antes e<br />

nem agora já em casa.<br />

<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Com o aproximar da hora do Pôr-do-Sol não nos detivemos<br />

naquele que pensámos ser o último reduto da civilização, no<br />

entanto, a pista em excelentes condições dizia-nos o contrário.<br />

Nota-se aqui e ali um melhoramento do seu traçado com<br />

cotovelos reforçados e manilhas para canalizar a água por de<br />

baixo da via. Sem dúvida que houve uma intervenção com<br />

máquinas pesadas neste local, o que fazia sentido, pois o acesso<br />

ao vale do outro lado do passo de montanha segue o curso do rio,<br />

logo está permanentemente regulado pelas condições do clima.<br />

Conforme estudado não devíamos<br />

seguir a pista principal e ainda bem,<br />

porque a alternativa em direção a<br />

Tassaout n’Oufelia é inesquecível. São<br />

poucos quilómetros de uma pista com<br />

pouco uso, que penetra num<br />

desfiladeiro de rocha negra, cortada<br />

por um ribeiro, onde nos detivemos<br />

para cumprimentar dois pastores.<br />

Os habitantes de Tassaout n’Oufelia<br />

olharam-nos desconfiados,<br />

extremamente tímidos e até com<br />

algum receio. Desconcertante esta<br />

reação pois nunca me tinha acontecido<br />

tal e preocupámo-nos em respeitar o<br />

(seu) território, saindo em direção a<br />

<strong>Amezri</strong> o mais depressa possível.<br />

Nada de fotografias, claro está!<br />

28


<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Tivemos de andar dentro duma espécie de canal com<br />

água quase a chegar às portas, pois era esse o único<br />

caminho, mas a recompensa para contrastar com a<br />

reação anterior, foi uma alegre surpresa na entrada em<br />

<strong>Amezri</strong>, onde fomos rodeados por crianças, entre os doze,<br />

treze anos e os mais pequenos com dois ou três anos.<br />

A noite aproximava-se a passos largos e pedimos<br />

autorização para estabelecer o acampamento num local<br />

mais ou menos plano e com menos pedras.<br />

Os miúdos não nos largavam e queriam coisas, mas o que<br />

eles precisavam não era o que queriam a princípio,<br />

porque apesar de ainda estarmos no início de Outubro,<br />

quase todos tinham frieiras nas mãos e a pele da cara<br />

muito desidratada. Que podíamos fazer?<br />

A festa na aldeia ia rija e a cantoria certamente não nos ia deixar<br />

dormir. Apesar da Lua quase cheia conseguíamos ver com nitidez<br />

as estrelas, certamente devido à altitude, pois apesar de<br />

O Toni, com o seu dom natural, não teve qualquer problema no relacionamento e<br />

rapidamente travou amizades. Eu agarrei no estojo de primeiros-socorros, algodão<br />

embebido em Betadine e primeiro tratei dos mais graves, depois com um milagroso<br />

creme Nivea “Soft” do colega, comecei a massajar todas as mãos e algumas caras.<br />

Que recompensa! Só por isto valeu a pena chegarmos até aqui ao ver as expressões<br />

de agradecimento. Desculpem, eu é que agradeço esta oportunidade de vos ajudar!<br />

Para conseguirmos jantar tivemos que nos impor e lá se foram para a aldeia um<br />

pouco mais a cima. Sobremesa: uvas e melão perfumado…<br />

estarmos num vale, estávamos a cerca de 2300mts de altitude,<br />

rodeados por montanhas, que reluziam em nosso redor.<br />

Mas não foi a música da aldeia que nos impediu<br />

de recolhermos às tendas… Quatro<br />

companheiros regressaram radiantes por<br />

estarmos ali. Eramos a novidade da noite e<br />

queriam conhecer melhor a dupla animada!<br />

29


<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Primeiro ao som de Madonna ou dos Pet Shop Boys dançamos<br />

e tirámos fotografias juntos. Depois cantaram canções da<br />

escola e percebemos que tínhamos de regressar e ajudar um<br />

pouco mais estas crianças. O que é muito pouco ou lixo para<br />

nós, representa muito para eles.<br />

Antes do Sol nascer algo não estava bem comigo. Fortes dores<br />

de barriga e um ataque de diarreia fortíssimo. De manhã ainda<br />

estava pior e com febre. O Toni não estava tão <strong>mal</strong>,<br />

certamente devido ao calo colonial. Maldito melão!<br />

A única coisa que me animou de manhã foi uma segunda<br />

ronda de Betadine e massagens nas mãos com o Nivea “Soft”,<br />

desta vez no resto das crianças da aldeia.<br />

Com certeza que alguém tinha passado palavra!<br />

Quando arrancámos senti que tínhamos deixado algo para trás<br />

e assumi o compromisso comigo mesmo, que na próxima<br />

viagem a Marrocos iria voltar aqui.<br />

Assim um dos requisitos do próximo raide é<br />

que não será um raide, mas uma viagem<br />

diferente, onde darei maior importância ao<br />

contato com as pessoas. Se naquela altura<br />

ainda teria alguma dúvida na<br />

determinação desta ideia, agora depois do<br />

que se passou aqui e mais à frente no Assif<br />

Melloul, é imperativo fazer algo mais por<br />

estas pessoas simples, do que ser um<br />

simples turista com um grande carro e uma<br />

máquina fotográfica na mão.<br />

Se me perguntassem qual a melhor, a mais<br />

bonita, a mais completa pista em<br />

Marrocos, esta do Vale de Tassaout, que<br />

segue ao longo do maior e mais profundo<br />

desfiladeiro que percorremos durante<br />

30km, é sem nenhuma dúvida uma<br />

pertencente há seleção cinco estrelas que<br />

poderei eleger.<br />

30


Para combater a má disposição e fraqueza limitei-<br />

me a beber água e a comer algum pão seco, mas<br />

não estava a recuperar e tivemos de parar algumas<br />

vezes. Numa dessas paragens voltámos a intervir<br />

com o estojo de primeiros socorros, desta vez na<br />

mão coberta de sangue de um dos operários do<br />

camião que nos atrasou a passagem, enquanto<br />

carregava pedra para reforço da pista.<br />

Mais do que uma vez perdemos a receção do<br />

satélite, tal não era a altura das paredes do<br />

desfiladeiro. Depois de confirmar os dados<br />

topográficos percebo agora a verdadeira dimensão<br />

desta garganta. Havia seções onde a largura do<br />

desfiladeiro é inferior a 200mts e a altura das<br />

paredes superior a 800mts! Para nós aqui no<br />

Algarve, basta lembrar que a altitude (não altura)<br />

máxima da Serra de Monchique é de 902mts, mas<br />

mesmo assim é difícil transmitir a sensação de<br />

clausura e ao mesmo tempo de espanto perante a<br />

beleza e grandeza deste sítio. Inesquecível!<br />

<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

A pista umas vezes segue no leito<br />

do rio e ao longo da base do<br />

desfiladeiro e outras é escavada<br />

nas descomunais paredes verticais,<br />

acompanhando as suas curvas<br />

como se tratasse de uma serpente.<br />

As aldeias vão se sucedendo<br />

construídas em socalco nas zonas<br />

onde o declive é um pouco menor.<br />

As crianças dizem adeus e pedem<br />

os habituais “bonbon” ou as<br />

“stylo”. Também os mais velhos<br />

acenam e vimos algumas<br />

Associações e roupa europeia, o<br />

que significa, que já houve quem<br />

fizesse alguma coisa para<br />

melhorar um pouco as condições<br />

de vida desta gente.<br />

31


Ao chegarmos próximos do alcatrão lembrei-me<br />

uma vez mais do correspondente Parola com<br />

quem tenho trocado alguma informação e que<br />

infelizmente não conseguiu entrar neste<br />

desfiladeiro no início do Verão e ainda por cima<br />

teve uma avaria grave mais tarde na sua viagem.<br />

Espero que já esteja tudo sanado e quem sabe um<br />

dia possamos trilhar juntos as mesmas pistas.<br />

Insha'Allah!<br />

Nem nos detivemos um segundo em busca da ponte<br />

natural em Imi-n’Ifri e prosseguimos curiosos ao<br />

longo da bonita R302, que inexplicavelmente não<br />

estava referenciada no “Morocco-Topo” instalado<br />

no Garmin. Isto é, até estava, mas só durante os<br />

primeiros quilómetros onde eu tinha esperança que<br />

terminasse o alcatrão. Enganei-me por mais de<br />

uma dúzia, porque está em curso a repavimentação<br />

desta Regional, para que se complete a ligação ao<br />

Vale de Ait Bougmez.<br />

<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Deveríamos ter abandonado a R307<br />

em Imi-n’Ifri e seguir a R302, mas eu<br />

precisava de recuperar e também era<br />

preciso ir ao banco, que não iriamos<br />

encontrar nos próximos quatro dias,<br />

por isso resolvemos seguir até<br />

Demnate, onde depois de se levantar<br />

dinheiro e atestar o depósito sentámo-<br />

nos numa esplanada para devorar um<br />

franco assado num daqueles fornos<br />

verticais em vidro e que estava<br />

envolvido em açafrão amarelo. Estava<br />

uma delícia e era mesmo o que eu<br />

precisava!<br />

32


É por estas e outras razões, para<br />

além da beleza paisagística do<br />

país, que me levam à conclusão,<br />

que o que para uns é sinal de<br />

progresso, para outros é sinal de<br />

abandono de valores culturais e<br />

formas de viver. À semelhança do<br />

resto de outras zonas de Africa,<br />

aqui também já se percebeu há<br />

bastante tempo a importância da<br />

eletricidade em primeiro lugar e<br />

das vias de comunicação em<br />

segundo lugar ou vice-versa.<br />

<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

A pista começa em Aghbalou e pode-se ver por onde irá a nova<br />

estrada, graças a montes de pedra pintados de branco, sempre<br />

acima da nossa cota. Neste processo haverá pessoas desalojadas<br />

como podemos constatar pela visão bizarra e desconfortável das<br />

casas assinaladas com cruzes e setas brancas, fazendo lembrar os<br />

tempos da peste negra ou dos nazis. No entanto, perto destas<br />

casas viam-se homens a construírem novas habitações, utilizando<br />

materiais e máquinas modernas, nada que aparentasse um<br />

trabalho meramente comunitário, mas sim a mão do estado, que<br />

se nota um pouco por todo o lado a criar infraestruturas para<br />

melhorar e manter as populações no seu local de origem, por<br />

mais remoto que seja.<br />

Para nós turistas é muito mais pitoresco e aventureiro<br />

uma pista cheia de dificuldades e pernoitar num Gite<br />

d’Etape, tendo para jantar uma Tagine de borrego<br />

cozinhada na lenha e comida à luz das velas ou de um<br />

candeeiro a petróleo. Mas para quem lá vive os<br />

outros 364 dias do ano é mais confortável e seguro a<br />

luz elétrica! E se pensarmos no doente ou ferido, que<br />

tenha de ser transportado, seguramente que ninguém<br />

poderá contestar as vantagens duma estrada de<br />

alcatrão!<br />

33


Quando conheci o Neil Hopkinson em 2006,<br />

com quem acabei por criar uma amizade,<br />

já nessa altura a sua maior dificuldade em<br />

manter “o espirito da aventura”, era o<br />

avanço do alcatrão. Esse é um dos desafios<br />

de qualquer expedição nos anos vindouros<br />

a Marrocos. Não para quem vá a primeira<br />

vez, onde tudo é novo e fascinante, mas<br />

para quem já conhece um pouco e não se<br />

quer limitar ao deserto e continua a querer<br />

utilizar o seu 4x4 na sua plenitude,<br />

passando por todo o tipo de pisos e<br />

visitando lugares onde se vive de maneira<br />

tradicional.<br />

<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Este será o rumo da Land Challenge anualmente,<br />

junto com o outro maior, tentando fazer a<br />

diferença e contribuir para melhorar a vida das<br />

crianças das muitas “<strong>Amezri</strong>s” ou de pessoas<br />

como o Sr. Ben Amou de quem falarei mais à<br />

frente. Talvez hoje em dia seja mais fácil de<br />

transmitir esta mensagem, porque as dificuldades<br />

de subsistência estão mais perto de nós, ali ao<br />

virar da esquina, na janela em frente ou mesmo<br />

dentro da nossa porta. Infelizmente o ser humano<br />

funciona assim mesmo e só consegue dar valor ao<br />

que tem, quando deixa de o ter.<br />

Sem dúvida que a passagem por Tirsal teria sido<br />

mais arrebatadora, principalmente depois de ter<br />

o relato na primeira pessoa, mais uma vez do<br />

amigo Parola. O desafio continua lá, mas aquela<br />

não era a altura certa. Estávamos sozinhos,<br />

debilitados e precisávamos de outra refeição<br />

decente e de uma cama quente, por isso<br />

queríamos chegar quanto antes ao vale da tribo<br />

dos Ait Bougmez.<br />

34


Nestes sítios mais isolados e em pequenas<br />

unidades torna-se mais fácil conhecer outros<br />

viajantes. Para além duma dupla espanhola<br />

das motas, conhecemos um casal de suíços,<br />

que conheciam a região como ninguém. E não<br />

digo isto por causa do ditado, “em terra de<br />

cego…”, mas porque esta personagem é<br />

geólogo e vem para aqui desde o final dos anos<br />

60. Contaram-nos que já tinham atravessado<br />

diversas partes do Atlas a pé, levando por vezes<br />

semanas, carregando equipamento em mulas e<br />

dormindo na montanha.<br />

<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

O vale encantado recebeu-nos às<br />

escuras e com chuva. Fatigados<br />

como estávamos, optámos pelo<br />

primeiro Gite com aspeto razoável,<br />

que nos apareceu. Tivemos sorte:<br />

bom, confortável, acolhedor e<br />

barato. Apesar de ser uma<br />

construção recente, conseguiram<br />

reter uma aura algo rústica e com<br />

um ambiente quase familiar. Note-<br />

se que só trabalham ali homens,<br />

mas muito atenciosos e<br />

preocupados com os hóspedes.<br />

Recordo um pouco mais estes senhores pelo<br />

incentivo que me deram a uma crescente vontade<br />

minha de por vezes sair do carro e caminhar um<br />

pouco. Recomendaram-nos especialmente uma<br />

zona perto de Zaouiat Ahansal, onde especialistas<br />

em escalada vêm de todo o mundo para subirem<br />

uma determinada parede, com várias centenas de<br />

metros de altura e de forma côncava.<br />

35


Há medida que o vale termina, começamos a subir e<br />

entramos numa zona árida e com uma pista como não<br />

via há bastante tempo, por ser tão boa. Continuamos<br />

a ver grandes montanhas e as panorâmicas são<br />

sempre grandes, pois seguimos sempre acima dos<br />

2000mts de altitude, afinal é preciso não esquecer que<br />

continuamos no Alto Atlas. A paisagem vai-se<br />

modificando e começamos a ver juníperos, as famosas<br />

árvores esqueleto.<br />

A descida em direção a Zaouiat Ahansal é<br />

deslumbrante! Um extenso vale estende-se diante de<br />

nós e uma gigantesca escarpa acompanha-nos a sul.<br />

<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Depois de uma noite muito bem dormida e necessitada,<br />

encarava este dia com melhor disposição. O vale é de facto<br />

muito bonito e cheio de contrastes. Nas sucessivas aldeias as<br />

pessoas são extremamente amistosas e as crianças não eram<br />

nada como as da zona de Agouti. Marcamos no GPS um posto<br />

de abastecimento, uma farmácia e a polícia que estão todos<br />

juntos, mas fora da pista principal, porque se encontram no<br />

centro de Tabant, a principal aldeia.<br />

Apesar de estar fora do caminho<br />

resolvemos investigar a aldeia e para<br />

nosso espanto existia um posto de<br />

correios, que era ao mesmo tempo um<br />

banco e uma casa de câmbios, numas<br />

instalações modernas.<br />

Ficámos com o contato de um guia<br />

para a escarpa dos alpinistas, que<br />

também é dono de um Gite.<br />

36


No regresso detivemo-nos<br />

num antigo Ighremt<br />

completamente restaurado,<br />

colocado estrategicamente<br />

num promontório sobre um<br />

vale.<br />

<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Pouco a pouco vão surgindo pinheiros e lembrei-me da nossa<br />

Serra da Malcata, mas em ponto grande e fui aos poucos<br />

invadido por uma sensação de tranquilidade e conforto. É o<br />

efeito que as árvores têm em mim, quando me encontro<br />

rodeado por elas.<br />

Também ficámos com o contato porque pareceu ser<br />

mais um lugar onde poderá valer a pena terminar<br />

uma etapa.<br />

37


Apesar da destruição de algumas secções<br />

esta é uma pista que pode ser feita com<br />

neve, conforme nos confirmou o casal<br />

suíço.<br />

No entanto o nosso estado de alerta<br />

estava focado na expetativa da primeira<br />

visão da La Cathédrale.<br />

<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

A pista inclui algumas passagens mais sensíveis<br />

onde devemos ser mais cuidadosos e onde<br />

podemos ver os efeitos do Inverno.<br />

Cada contorno da<br />

montanha ia sendo<br />

abordado com anseio e<br />

apesar de termos à<br />

nossa volta enormes<br />

formações assombrosas,<br />

era por aquela especial<br />

que ansiávamos.<br />

38


Parámos mesmo junto à base<br />

onde fizemos um pequeno<br />

lanche junto ao rio.<br />

Que lugar bonito!<br />

Um vale rodeado por<br />

montanhas repletas de<br />

vegetação destacando-se<br />

grandes pinheiros.<br />

<strong>Uma</strong> paisagem de contrastes e<br />

na base um rio de aspeto<br />

selvagem com um promontório<br />

vertical de 700mts de altura.<br />

<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Subitamente à saída de<br />

uma curva, lá estava e<br />

lá em baixo…<br />

É que apesar dos seus<br />

700mts da base até ao<br />

topo nós vínhamos de<br />

grande altitude e<br />

tínhamos a perspectiva<br />

da águia.<br />

39


<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Eu sabia muito bem onde estávamos e também sabia que a pista do Assif<br />

Melloul estava cortada, mas será que estava mesmo? Será que com cautela e<br />

um Defender muito bem preparado não se conseguiria passar? Precisava de<br />

obter mais informação e detivemo-nos no Gite de La Cathédrale. A cozinheira<br />

confirmou: a pista está cortada para os 4x4, mas não para as motos. Então uma<br />

mota passa e o Defender não? Ambíguo, a não ser que o corte seja a meio da<br />

encosta e a largura esteja reduzida para metade. Agora no leito do rio, sobre as<br />

pedras e devagar, o carro consegue progredir em terreno muito difícil e em<br />

certas situações, até melhor que uma moto grande.<br />

Quando nos preparávamos para arrancar, fomos<br />

alcançados pelos dois espanhóis da véspera e que<br />

pretendiam seguir fora da pista pelo leito do rio e nos<br />

pediram para irmos à frente. Havia algumas marcas de<br />

camião e procurei segui-las durante algum tempo.<br />

Evoluímos com cautela pelo meio das pedras e árvores<br />

caídas, tendo que entrar dentro de água mais do que uma<br />

vez. O Defender é de facto fantástico e continuava<br />

sempre a revelar-se. Senti uma excitação e sensação de<br />

domínio, que em breve se iria revelar quase fatal…<br />

O toque de midas para a armadilha mental, acabou de ser montado<br />

durante a conversa com um motard italiano, que nos disse: “se vocês<br />

não se importam de andar aos tombos e andarem devagar, tirando<br />

uma ou outra pedra do caminho conseguem passar, porque o<br />

problema é no rio e o rio tem pouca água”.<br />

Era mesmo isto que eu queria ouvir! De qualquer forma se não fosse<br />

possível voltávamos para trás e ficávamos a dormir aqui no Gite.<br />

Como estávamos os dois de acordo, avançamos para o Assif Melloul!<br />

40


Parte 4. Assif Melloul.<br />

<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Para a <strong>história</strong> deixar de ser “<strong>mal</strong> <strong>contada</strong>” era preciso dedicar uma parte inteira ao que aconteceu, quando<br />

aconteceu, de que forma, o que ia dentro da minha cabecinha e de que forma isso afetou os que foram envolvidos na<br />

ocorrência. Entendi que esta era a única forma verdadeira de transmitir o acontecimento e ao mesmo tempo de<br />

mostrar a nobreza do marroquino.<br />

A resposta a esta pergunta veio logo a seguir, quando iniciamos a<br />

entrada dentro da garganta do rio. A pista a princípio é muito amena e<br />

contorna suavemente os arredondados contornos do terreno. O rio de<br />

início à nossa esquerda e praticamente ao mesmo nível da pista começa<br />

aos poucos a se distanciar, à medida que subimos em direção a<br />

montante. A vegetação envolvente é relativamente densa e variada,<br />

continuando a se destacarem alguns pinheiros de grande porte. Mais à<br />

frente vemos zonas com catos e plantas carnudas de variadíssimas<br />

espécies, enfim um envolvente verde que dá um encanto selvagem a este<br />

desfiladeiro. Porque é mesmo disso que se trata, um profundo<br />

desfiladeiro onde facilmente se perde a ligação GSM e até a cobertura de<br />

satélite de tão profundo que se torna. Diferente do Oued Tassaout, que<br />

talvez seja mais imponente, mas para mim este é mais belo.<br />

Finalmente aqui, depois de três anos à espera de<br />

uma oportunidade e estando tão longe de casa,<br />

não queria deixar de tentar, nem que fosse só<br />

um bocadinho… Tinha confiança no carro,<br />

conhecia-o bem e não era de todo a primeira vez<br />

que atravessava longos trajetos no leito de rios.<br />

Até agora para mim eram só imagens de<br />

satélite, fotos e mais recentemente o filme de<br />

“motomarrakech”, o que ainda piorou a<br />

cabecinha e aumentou a vontade de atravessar<br />

esta garganta.<br />

Até 2008 nunca houve grandes problemas, pelo<br />

menos que eu soubesse. A partir do momento<br />

em que alcatroaram a estrada vinda de norte<br />

para Anergui, desse lado da garganta, penso que<br />

tenha deixado de haver uma preocupação tão<br />

grande em manter a ligação até Tilouguite a sul.<br />

Porquê tanta espectativa, porque é que era<br />

assim tão importante?<br />

41


<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Ao longo do trajeto podemos ver várias secções reparadas de uma forma<br />

arcaica com paus e pedras, mas nem por isso menos eficaz. Lá em baixo<br />

vê-se por todo o lado vestígios do inverno, com árvores de grande porte<br />

arrastadas pela corrente. Enormes calhaus, capazes de destruir qualquer<br />

camião, que repousam lá no fundo, após terem sido vítimas das<br />

enxurradas nas encostas ingremes.<br />

A todo o momento esperávamos por um corte decisivo na pista que nos<br />

impedisse a progressão. É que do lado direito apresentava-se ora uma<br />

parede, ora uma encosta intransponível com centenas de metros de altura.<br />

Do outro lado persistia um abismo a pique, com muitas dezenas de metros<br />

e do qual ninguém consegue sobreviver a uma queda.<br />

O rio mesmo nesta altura do ano mete<br />

respeito e não tem assim tão pouca água,<br />

na realidade até tem pouca, se<br />

considerarmos a besta branca da época<br />

das chuvas. Branca e besta porque o Assif<br />

Melloul, ou Rio Branco, sobe facilmente<br />

três metros acima do que podíamos agora<br />

observar. Naquele momento era apenas<br />

um dócil ribeiro.<br />

É tudo aquilo pelo que eu esperava. A<br />

natureza no seu estado puro e indomável.<br />

Portanto, qualquer incisão na pista<br />

implicava um prolongado regresso<br />

em marcha atrás, é que considerar a<br />

opção de inversão de marcha seria<br />

demasiado arriscado, porque pura e<br />

simplesmente não havia espaço!<br />

Mas a pista não se manteve sempre<br />

nas alturas e a dado momento<br />

chegamos ao nível do rio fazendo-nos<br />

recordar as palavras do italiano “é no<br />

rio que estão os problemas”.<br />

42


<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

E continuamos neste embriagante dilema até passarmos a primeira<br />

ponte onde pelo sim pelo não, o Toni saiu primeiro para “testar” a ponte,<br />

não que o meu amigo pesasse algo como três toneladas, mas a estrutura<br />

levantava sérias suspeitas. Voltaram à lembrança as imagens do francês<br />

na moto no YOUTUBE e ao mesmo tempo continuava a haver marcas de<br />

rodados, o que é sempre um alento encorajador.<br />

Quase não se vê ninguém e só passamos por duas ou três casas ao longo<br />

do trajeto. Um homem tentou dissuadir-nos a continuarmos, ao mesmo<br />

tempo que pedia boleia para Tilouguite. Influenciados pela nossa<br />

determinação em prosseguir, quisemos entender que a sua insistência se<br />

devia essencialmente à sua necessidade de uma boleia no sentido oposto<br />

e por isso insistimos em frente.<br />

Olhávamos para cima e pensámos em<br />

todas aquelas rochas em posições<br />

periclitantes, ameaçando rolar encosta a<br />

baixo e prontas a esmagar quem se<br />

atravessasse no caminho da enxurrada.<br />

A chuva chegou entre alguns raios de sol<br />

do fim do dia e com ela o arco iris,<br />

enquanto passávamos ao lado de uma<br />

pequena ponte pedonal feita com troncos,<br />

mas com um pilar central em cimento.<br />

Agora na margem esquerda, a pista<br />

oscilava entre os contornos das encostas,<br />

com partes de arrepiar o mais sensível e<br />

secções ao nível do rio, onde se viam<br />

muitos vestígios do Inverno, com paus,<br />

restos de árvores e a terra remexida com a<br />

força da água, deixando a entender que o<br />

caminho fica facilmente interdito com<br />

alguma chuva. A juntar a este cenário<br />

quase dantesco de desolação e ao mesmo<br />

tempo de beleza e tranquilidade ouvia-se<br />

uma crescente trovoada que ameaçava<br />

nos alcançar.<br />

43


<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

E assim fizemos… De facto a pista estava partida, mas nem<br />

por isso se deixavam de ver aqui ou ali uma ou outra marca,<br />

principalmente de mota. A água corria na parte direita do<br />

desfiladeiro ocupando apenas uns 20mts deixando uma zona<br />

composta essencialmente de calhau e alguma areia com<br />

uma largura de mais de 50mts exposta e seca e que se<br />

estendia por algumas centenas de metros. Não era<br />

especialmente difícil, nem necessitava para já que fossem<br />

retiradas pedras do caminho.<br />

Passámos uma mini montanha russa e somos<br />

confrontados por dois Defender e um Toyota<br />

mesmo de frente e que podiam ter esperado<br />

uns segundos para nos deixarem chegar de<br />

onde vinham e permitir a nossa passagem,<br />

mas não! Fomos obrigados a recuar cerca de<br />

100mts! Fiquei irritado e mais ainda porque<br />

nos disseram que a pista estava cortada ali a<br />

300mts e tínhamos de regressar. Quem nós<br />

os lusos? Os gauleses talvez desistam com<br />

um pequeno corte, mas nós não! Primeiro<br />

vamos ver o que se passa e depois decidimos<br />

o que fazer. Afinal estávamos a 2000km de<br />

casa e não era por causa de 300mts que<br />

íamos voltar para trás!<br />

Um pouco à frente o Toni saiu para tirar umas fotos<br />

e ajudar a orientar uma passagem entre dois<br />

grandes calhaus. Logo a seguir, uma secção com<br />

pelo menos uns cem metros de pequenos calhaus<br />

garantindo uma rápida progressão. À esquerda e em<br />

cima estava a pista quebrada pela ação concertada<br />

entre a corrente do rio e uma queda de água vinda<br />

lá de cima da encosta, era como um pequeno<br />

afluente.<br />

À direita uma pequena praia e uma passagem pela<br />

água com cerca de 15mts, numa espécie de enseada<br />

com pequenos calhaus do outro lado.<br />

44


Hesito, calculando qual a<br />

melhor forma de atravessar por<br />

esta praia com dois metros por<br />

seis ou sete de largo e que<br />

parecia o sítio ideal.<br />

Engato segunda e arranco<br />

devagar, assim que a roda da<br />

frente do lado direito entra na<br />

areia o carro adorna à direita,<br />

desliza mais um metro e<br />

imobiliza-se, ficando com a<br />

água a chegar ao farol da<br />

frente da direita e com uma<br />

inclinação de uns 20 graus.<br />

Mas o que se passou?<br />

Tinha de agir rápido, porque quanto mais tempo o<br />

carro permanece-se neste lodo pior. Para além disso<br />

já não tínhamos muito tempo de Sol, talvez uma<br />

hora e meia ou duas horas se tanto.<br />

Tive de me despir e ficar em cuecas pois sabia que<br />

iria precisar da roupa seca a seguir. Já que<br />

estávamos naquela situação, precisava de saber a<br />

profundidade até ao baixio ali em frente.<br />

Boas notícias! Foi o que desejei acreditar...<br />

<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Ainda liguei o bloqueio de trás, já que o da<br />

frente é permanente, mas nada. Finalmente saí<br />

do carro e percebi a estupida e incauta<br />

armadilha onde me tinha metido!<br />

Eu que vi dezenas de sítios como este no Rio<br />

Tejo, quando subíamos de barco até Valada<br />

com o mano Tó Merlini e a Escola de Vela<br />

Atlântica. Foram anos a desembarcar em<br />

praias fluviais, a estabelecer acampamentos e<br />

só por excesso de confiança e comodismo, não<br />

saí do carro! E agora?<br />

45


No entretanto, entre ligar o controlo do<br />

guincho, passar a cinta numa árvore e o<br />

Toni dar a volta para me ajudar a esticar<br />

o cabo que estava no limite, decorreram<br />

uns bons cinco minutos… Quando chego<br />

de volta ao carro para começar a<br />

guinchar, o motor desliga-se por si só!<br />

Pensei o pior e tinha razões para isso, pois<br />

só deveria ser uma coisa, água na<br />

Centralina! Foi a única coisa que desta vez<br />

não tive tempo de verificar. O isolamento<br />

da caixa que fica por baixo do lugar do<br />

pendura.<br />

<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Não só a água só me chegava à<br />

cintura durante e apenas cinco<br />

metros, como o fundo era de<br />

pedra e areia e mesmo<br />

esgravatando com o pé por baixo<br />

do cascalho, a superfície não era<br />

lodo, mas areia nor<strong>mal</strong> e com<br />

consistência Portanto acreditei<br />

que se o guincho conseguisse tirar<br />

o carro daquela posição e o<br />

obrigasse a descer mais um<br />

pouco, o carro ficaria solto<br />

daquele lodo e depois tudo seria<br />

mais fácil.<br />

Isolado por mim quando o carro era ainda novo, nunca<br />

me tinha dado problema e estive muitas vezes com<br />

água a tapar as rodas. Mas o silicone não é eterno.<br />

Num ato de desespero ainda tentámos com o Hi-Lift<br />

puxar o carro, mas não só já não tínhamos tempo<br />

porque a noite se aproximava, como para além de um<br />

esforço concertado entre os dois, a tarefa era<br />

infrutífera, pois três toneladas enterradas no lodo<br />

eram demasiadas, mesmo para o valente Hi-Lift.<br />

46


Percebendo esta realidade não<br />

podia bloquear e lembrei-me dos<br />

ensinamentos de sobrevivência:<br />

primeiro estabelecer a nossa<br />

segurança e conforto para<br />

aumentar a percentagem das<br />

condições de sobrevivência, depois<br />

fazer o mesmo com o carro, se<br />

possível, e finalmente estabelecer<br />

as necessidades para um resgate.<br />

Escolhemos o ponto mais<br />

abrigado, elevado e próximo do<br />

carro que fosse possível.<br />

Enquanto o Toni montou o<br />

acampamento, fui apanhar lenha.<br />

Precisávamos de nos alimentar e<br />

descansar convenientemente. O<br />

fogo não só nos aquece, como<br />

transmite uma sensação de<br />

segurança e tranquilidade. É algo<br />

intrínseco, talvez seja algo já<br />

instintivo e que venha da Pré-<br />

História.<br />

<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Eu não me sentia confortável com a<br />

perspectiva de no dia seguinte cavar,<br />

endireitar o carro e à força de Hi-Lift,<br />

utilizando a âncora como ponto de<br />

apoio à retaguarda, tirarmos o carro.<br />

Mesmo que o conseguíssemos,<br />

tínhamos outro problema em mãos. O<br />

carro não trabalhava, quase de certeza<br />

por causa da Centralina. Se isso se<br />

confirmasse, não tínhamos hipótese.<br />

Precisávamos de um reboque.<br />

Assistência em viagem, nem pensar.<br />

Não havia a mínima possibilidade de<br />

nos virem buscar a este sítio.<br />

47


Localização aproximada<br />

<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Não ia esperar por uma remota tentativa de sacar o<br />

carro de onde estava, até porque a seguir tinha o<br />

problema do motor. Também havia o problema das<br />

comunicações, porque só às vezes é que havia alguma<br />

rede de telemóvel. Ainda bem que o Toni tinha<br />

assinatura, porque o meu saldo tinha acabado a meio<br />

de uma conversa para Portugal, ainda em Zagora.<br />

Ponto partida do Sahid<br />

Apesar de a trovoada já ter passado,<br />

nós não estávamos numa posição<br />

muito confortável e o carro não teria<br />

salvação. Bastava começar a chover<br />

para que a água do rio subisse. Nós<br />

até tínhamos comida para alguns dias<br />

e a água mesmo que se acabasse,<br />

podíamos sempre ferver a água do rio,<br />

mas o fator clima e o fator tempo<br />

eram determinantes.<br />

Não deveríamos facilitar e decidi que<br />

devíamos pedir ajuda já!<br />

Quem está a ler pode-se interrogar… Mas iam ligar a<br />

quem? Portugal? Não, Zagora! Eu tinha a certeza que<br />

nos viriam buscar, mesmo estando a pelo menos doze<br />

horas de viagem, vindo pelo caminho mais correto, o<br />

Sahid e o Aziz não me iriam negar ajuda, mesmo com<br />

um rali prestes a começar.<br />

Tirei as coordenadas e tentámos ligar, mas era<br />

impossível! Quando conseguíamos ligar, não<br />

compreendiam onde estávamos e só se ouvia alguém<br />

aos bocados. Mandei uma mensagem, com alguma<br />

informação, mas não especifiquei que o motor tinha<br />

parado com o carro meio enterrado no lodo. Depois de<br />

várias tentativas, conseguimos perceber que o Sahid ia<br />

sair à meia-noite de Zagora para Tinerhir, para se<br />

encontrar com um guia da região e depois seguiriam<br />

viagem às cinco da manhã. De Tinerhir? Pensei eu.<br />

Porquê de Tinerhir?<br />

48


É que de Tinerhir onde estávamos vai<br />

uma grande distância. Nor<strong>mal</strong>mente os<br />

guias conhecem a sua região como<br />

ninguém, mas nós estávamos fora da<br />

zona das Gargantas do Todra e Dades.<br />

Um guia de Tinerhir nor<strong>mal</strong>mente<br />

conhece bem até Imilchil e toda a zona<br />

envolvente, ora o Assif Melloul nasce<br />

precisamente na zona de Imilchil.<br />

Será que havia informação distorcida?<br />

Estas incertezas deixavam-me mais<br />

intranquilo. Não tinham GPS, mas talvez<br />

pudessem pedir a alguém que o tivesse<br />

para introduzir as coordenadas e<br />

perceberem exatamente onde estávamos.<br />

<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

É preciso não esquecer que o país é oito vezes maior que Portugal e o que para mim é uma referência no mundo 4x4,<br />

para eles trata-se apenas de um rio no meio de tantos outros, numa cordilheira com 800km de comprimento por 200km<br />

de largura!<br />

Tinha feito a minha parte o melhor que consegui, agora era preciso descansar, porque amanhã tinha muito trabalho<br />

pela frente.<br />

No dia seguinte estava mais moralizado e<br />

com vontade de meter mãos ao trabalho a<br />

seguir ao pequeno-almoço. O carro estava<br />

mais inclinado para a direita e não havia a<br />

certeza de que não se iria inclinar mais.<br />

Precisava de solucionar isso. Resolvi passar<br />

um cabo ao Roll-Bar, fixá-lo algures na<br />

margem utilizando a âncora, mesmo sabendo<br />

que poderia vir a necessitar dela como<br />

suporte à retaguarda. Descobri uma enorme<br />

rocha que formava praticamente 90 graus<br />

com o eixo do carro, o problema é que tinha<br />

dez metros de arbustos com três ou quatro<br />

metros de altura no meio do caminho.<br />

Precisava de ajuda, por muito difícil que lhe custasse. Eu cortaria com um serrote curto e o Toni transportava a<br />

ramagem para a zona da fogueira. E assim se passaram cerca de duas horas antes que pudesse segurar o carro<br />

lateralmente.<br />

49


<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Agora vinha a tarefa mais difícil. Cavar no lodo.<br />

Rapidamente percebi que mesmo que estivesse habituado a<br />

muito esforço físico, a tarefa feita por um só iria demorar<br />

muito tempo. O poder de sucção transformava cada<br />

movimento com a pá numa tarefa Herculina.<br />

Durante a manhã só me recordo de ter passado uma<br />

pessoa, que veio a desempenhar um papel fundamental. O<br />

homem de meia-idade não vinha vestido de camponês, nem<br />

de trabalhador, pelo contrário, apresentava um vestuário<br />

elegante e falava francês, o que não é muito comum nestes<br />

sítios mais remotos onde falam em berbere entre eles.<br />

O meu amigo convencido que a cavalaria<br />

não tardaria muito, ainda tentou<br />

algumas vezes dissuadir-me da minha<br />

tarefa. Eu em troca pedi-lhe almoço.<br />

Podia ser esparguete com um dos<br />

molhos de Huelva. Depois de almoço<br />

voltei a cavar apesar de a progressão ser<br />

muito lenta e só desisti lá para as três da<br />

tarde quando estava exausto.<br />

Deitei-me na tenda e adormeci.<br />

Dirigia-se a Anergui e perante a nossa<br />

situação crítica e dificuldade em<br />

comunicar eficazmente onde estávamos<br />

exatamente, ofereceu-se para falar com o<br />

grupo de resgate que vinha a caminho.<br />

Percebemos que conseguia-se fazer<br />

entender melhor do que nós, mas não<br />

falou em árabe, o que significava que não<br />

estava a falar com o Sahid. Oferecemos<br />

chá e tâmaras e mostrou-se algo curioso<br />

com a Keli-Catle. Eu não conseguia estar<br />

descontraidamente a beber chá e voltei<br />

ao trabalho.<br />

50


Naquele momento a água corria sem pressa e uma<br />

amena brisa vinda de norte embalava as árvores ao<br />

longo das margens. As encostas eram descomunais e<br />

senti que estávamos no meio da natureza crua e<br />

alcancei a nossa fragilidade. Mas a espera era<br />

angustiante e mais valia a pena dedicar-me a algo<br />

útil, já que era certo irmos passar ali mais uma noite.<br />

Fui apanhar mais lenha um pouco mais para<br />

montante, onde me recordava ter visto uns bocados<br />

bons para arder, quando reparo num movimento no<br />

meio do rio a cerca de 200mts.<br />

Parei e mantive-me imóvel…<br />

<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Afinal não tinha passado muito tempo quando despertei.<br />

A ansiedade da incerteza e o medo de poder perder o<br />

carro não me deixavam dormir. Enquanto aquecia a<br />

água para o café, deixei-me admirar onde estava.<br />

Mesmo “atrás” do acampamento uma enorme marca<br />

semicircular cavada na parede vertical do desfiladeiro<br />

indicava uma queda de água, que desembocava num<br />

declive de cascalho. Ali nascia um pequeno afluente do<br />

Assif Melloul em época de chuva.<br />

Mesmo ao lado do acampamento, a apenas um ou dois<br />

metros mais abaixo, folhas e troncos moldados aos<br />

arbustos e a algumas rochas de grandes dimensões,<br />

davam a entender que quando o rio subia, a corrente<br />

passava ali, deixando o tejadilho do Defender uns dois<br />

metros abaixo desta cota…<br />

No local do acampamento viam-se algumas rochas e<br />

pedras vindas “lá de cima” com as enxurradas. No leito<br />

do rio havia árvores partidas e destroços por todo o lado.<br />

A cerca de 40metros do acampamento na nossa margem<br />

uma derrocada com rochas do tamanho de pequenos<br />

automóveis e um pinheiro com mais de trinta metros de<br />

comprimento jaziam como testemunhas do Inverno.<br />

Hesitante e investigador, parando por vezes e olhando em redor vinha um babuíno. Certamente deveriam vir outros<br />

pensei. Ainda não me tinha dado por mim, certamente por causa da direção do vento. Depois reparo em outro muito<br />

pequeno e mais outro de tamanho intermédio. Pai, mãe e filho. Ainda bem que aqui estão, pensei outra vez, é sinal que<br />

a natureza está no seu devido lugar.<br />

51


Voltei à minha tarefa e quando regresso ao<br />

acampamento descubro que o meu amigo tinha<br />

seguido a pista e regressava com um pastor. Um<br />

jovem aparentando entre 18 a 20 anos de nome<br />

Karim.<br />

Os contatos telefónicos continuavam péssimos e<br />

não tínhamos a certeza quanto tempo ainda<br />

poderiam demorar. Não estávamos seguros se<br />

tinham entendido exatamente onde estávamos e<br />

seguramente, mesmo que chegassem “hoje”, não<br />

iriam conseguir resolver o problema.<br />

Era altura para um lanchezinho. Os três<br />

partilhamos, chá e tâmaras. Nisto o telefone toca…<br />

<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Era Lahcen da loja Sable d’Or de Zagora. Estavam próximos, dizia. Vinham em direção à catedral e estavam a ser<br />

orientados por uma pessoa que tinha estado connosco.<br />

<strong>Uma</strong> pessoa que tinha estado connosco no rio?!<br />

De início não compreendemos, depois recordámo-nos do homem que passou de manhã e com quem tínhamos bebido<br />

chá. Será esse?<br />

Resolvi começar a fazer a pista tentando ir ao<br />

encontro deles. O jovem pastor acompanhou-<br />

me, porque tinha de regressar a casa. Sentia<br />

de novo um pouco de esperança e<br />

caminhávamos quase a par, mas nem sempre<br />

porque o caminho ideal por vezes não dava<br />

para dois. Nem tinham passado cinco minutos<br />

e a sola da minha bota direita descolou-se até<br />

à zona do calcanhar. Karim fez-me<br />

instintivamente sinal para a amarrar com os<br />

atacadores e assim fiz, meio desconcertado<br />

por não ter sido eu a lembrar-me<br />

imediatamente dessa ideia simples e eficaz.<br />

Desenfiei dois ou três buracos e com o excedente dei a volta ao pé e continuamos a caminhar como se nada fosse. Eram<br />

17:30h quando saímos e o Pôr-do-Sol era por volta das 18:15h, portanto podia caminhar pelo menos meia hora e<br />

regressar sem ser apanhado pela noite.<br />

52


A ideia transmitida por muitos, de que é<br />

somente durante a caminhada que nos<br />

envolvemos diretamente com o meio ambiente,<br />

foi comprovada pelo que senti durante o tempo<br />

em que acompanhei Karim. A beleza da<br />

natureza desta garganta foi elevada, assumindo<br />

outra dimensão e também a pista foi avaliada<br />

de forma a absorver todos os detalhes.<br />

Quando chegámos à ponte pedonal já tinha<br />

passado da hora que tinha pré-determinado<br />

para regressar. Nunca duvidei que viessem em<br />

nosso socorro, mas continuava com a incerteza<br />

de que nos iriam encontrar rapidamente.<br />

<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Já depois do Sol se pôr, decidi que devíamos enviar uma<br />

mensagem para Portugal repetindo a nossa localização.<br />

Podia ser que de lá sem os problemas de comunicações a<br />

informação fosse de facto passada.<br />

Depois de mais uma chamada do Lahcen, resolvi<br />

retroceder novamente e com o Toni combinamos uma<br />

comunicação com lanternas, para ele saber onde eu<br />

estava e vice-versa, no entanto não foi necessário<br />

porque vimos as luzes e ouvimos o ruído os dois em<br />

simultâneo.<br />

Ainda não tinha tido a confirmação que<br />

tinham compreendido exatamente onde<br />

estávamos e foi com estes pensamentos,<br />

que iniciei o regresso, parando duas ou três<br />

vezes para ajustar o atacador da bota<br />

direita.<br />

Mais para o fim resolvi marcar, com um pau<br />

queimado que apanhei pelo caminho, em<br />

duas rochas de superfície liza as palavras:<br />

IRIKI e ZAGORA. Depois de passar pelo ponto<br />

em que a pista estava destruída comecei a<br />

simular uma pista com pedras amontoadas<br />

da mesma forma como “eles” fazem.<br />

53


<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Quando estavam mesmo por baixo do local onde me<br />

encontrava desci e cumprimentei-os efusivamente. Sahid<br />

tinha trazido consigo um mecânico cujo nome<br />

inexplicavelmente varreu-se da minha memória. Saleh o<br />

guia berbere de Tinerhir foi o primeiro que alcancei. Trazia<br />

uma lanterna esse bom homem de meia-idade, muito<br />

comunicativo e que me perguntou, se eu era o João.<br />

Estavam estupefactos com o sítio onde estávamos. A<br />

acompanha-lo vinha um senhor aparentando mais de 70<br />

anos mas que devia ter menos de sessenta.<br />

Eles vinham aí! Estavam a chegar! Que alivio,<br />

embora tivesse consciência que era temporário,<br />

não me inibi de desfrutar do momento.<br />

Fizemos sinais de luzes, gritámos e finalmente<br />

percebemos que já nos tinham visto!<br />

Não sei porquê mas nessa altura tinha a máquina<br />

fotográfica comigo e estava numa secção elevada<br />

da pista a qual se tinha partido. Daquele ponto de<br />

destaque tinha uma vista privilegiada apesar da<br />

noite que se aproximava. Enquanto o Defender<br />

branco ia progredindo muito lentamente, três<br />

pessoas seguiam um pouco à frente e retiravam<br />

as maiores pedras de um trajeto escolhido.<br />

Morava um pouco mais a baixo, aqui no<br />

Assif Melloul e tinha-se disponibilizado a<br />

acompanha-los. Chamava-se Ben Ahmou<br />

e por tudo o que aconteceu nas 48 horas<br />

seguintes, fiquei-lhe com uma divida de<br />

gratidão, que tenho de saldar assim que<br />

possa…<br />

Ausente deste encontro faltava uma<br />

personagem fundamental. O viajante<br />

bem vestido da manhã e que seguia em<br />

direção à Associação de Anergui. Esperou<br />

sair do desfiladeiro para conseguir falar<br />

claramente com a equipa de resgate,<br />

orientando-a durante todo o dia por<br />

telemóvel até à entrada no desfiladeiro.<br />

54


Se o Sahid tem a experiencia de situações dramáticas<br />

com veículos 4x4, se o Saleh tem a capacidade de<br />

motivar e converter uma multidão, Ben Ahmou tem a<br />

bondade e o verdadeiro espirito da fraternidade.<br />

Os autóctones foram passar a noite a casa do<br />

anfitrião local e nessa noite fizemos uma fogueira<br />

maior do que habitual e que iluminava para além do<br />

nosso canto, trepando pela encosta vertical. Sentados<br />

em frente ao fogo que nos aquecia, tive o privilégio de<br />

ouvir um extenso relato dos últimos dias da presença<br />

portuguesa em Angola, contados na primeira pessoa.<br />

Os tumultos em Luanda, a guerra dos taxistas e muito<br />

mais, mas essa não é uma <strong>história</strong> para eu contar,<br />

pois não é a minha <strong>história</strong>.<br />

<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Saleh confessou que foi essa personagem a<br />

responsável por terem chegado ali sem mais<br />

demoras. Ele, Saleh não conhecia bem esta<br />

parte do Atlas e por pouco não estiveram<br />

para entrar no desfiladeiro vindo de norte, o<br />

que daria um atraso de mais um dia de<br />

espera e o mais grave, que era o término da<br />

extensão do seguro do carro e da assistência<br />

em viagem.<br />

O Sahid, como sempre, tranquilizou-me. Este<br />

otimismo marroquino perante as<br />

adversidades é espantoso. Muito<br />

pragmáticos estão sempre prontos a lidar<br />

com a solução em vez de gastarem energias<br />

com o problema. Já conheço o Sahid há<br />

algum tempo e inclusive viajamos juntos e<br />

conheço a sua capacidade para resolver<br />

contrariedades, mas esta nova personagem,<br />

esse homem de Tinerhir, ex-camionista,<br />

antigo guia turístico da zona do Todra e<br />

atualmente dono de um restaurante é uma<br />

daquelas pessoas com um dom para<br />

comunicar e de criar sinergias entre os<br />

outros, como tenho visto poucas.<br />

55


<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Provavelmente o Assif Melloul nunca tenha tido naquele<br />

local, tanta fé como naquele dia de Outubro. Dizem que a fé<br />

move montanhas, mas ali era preciso mover três toneladas de<br />

Land Rover parcialmente sugadas por lodo mole e pegajoso.<br />

Primeiro tentámos puxar direto, isto é, usámos uma das<br />

minhas roldanas para dobrar o cabo do guincho do Defender<br />

do Sahid, travamos as rodas com pedras e tentámos puxar.<br />

Em vez de sair o laranja, era o branco que vinha para a frente<br />

de rodas bloqueadas e empurrando os enormes calhaus.<br />

Enquanto tentava adormecer<br />

não pude deixar de considerar a<br />

sorte e a bênção de Sahid ter<br />

vindo em nosso socorro e que<br />

por isso Saleh e Ben Ahmou<br />

cruzarem o nosso caminho. Não<br />

podíamos estar melhor<br />

entregues e foi por isso mesmo,<br />

que nessa segunda noite<br />

consegui descansar. Do<br />

desespero, encontrei a força<br />

para acreditar que havia<br />

alguém a cuidar de nós e que a<br />

ajuda material estava naquelas<br />

três pessoas em quem confiei.<br />

Fé, músculo, pedras, paus, ervas, blocos de<br />

madeira, corda e muito Hi-Lift foi a receita.<br />

O “chef” era o Sahid e os cozinheiros para<br />

esta receita, além de todos nós, juntaram-<br />

se Karim, o rapaz pastor da véspera e mais<br />

três caçadores, que no entretanto<br />

passavam por ali. Perto do fim do dia<br />

tínhamos o “fefender” em seco e num local<br />

mais elevado, mesmo no caminho do<br />

pequeno afluente do Melloul. Era um sítio<br />

temporário, mas o melhor possível naquele<br />

momento.<br />

56


Depois de tantas aventuras, tantos<br />

momentos vividos com a família e amigos.<br />

Este carro, não era apenas um carro, tinha<br />

sido o meio pelo qual vim a conhecer muitos<br />

sítios e a fazer amigos. Só quem tem um<br />

membro da fábrica oval consegue sentir em<br />

toda a sua amplitude a afinidade. Não era à<br />

toa que alguém lá em casa o tinha<br />

rebatizado de amante. Horas a preparar, a<br />

reparar, a melhorar. Sangue, suor e lágrimas<br />

estavam relacionados com um automóvel e<br />

por causa de um impulso ia perder tudo! Por<br />

momentos quase que me ia a baixo…<br />

<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

O carro tinha mais do que um<br />

problema depois de estar vinte e<br />

quatro horas meio submergido no<br />

lodo. O maior era a Centralina porque<br />

sem o “cérebro” do carro a funcionar,<br />

não o conseguiríamos pôr a trabalhar.<br />

Mesmo depois de lavada com álcool e<br />

assoprada não havia nada a fazer,<br />

estava morta! Parecia que todo o<br />

esforço tinha sido em vão, porque o<br />

Sahid recusou-se a rebocar o carro!<br />

Era demasiado perigoso e ele não<br />

tinha confiança na embraiagem do<br />

seu Defender. Fiquei desesperado!<br />

Que iria eu dizer às minhas filhas? Ainda não tinha tido<br />

oportunidade de ir acampar com elas. Sempre que as ia buscar à<br />

escola no Nissan era a desilusão:<br />

- Papá, porque não vieste no “fefender”?<br />

Tinha de haver uma alternativa…<br />

Mais uma vez tive de confiar e acreditar que havia uma solução. A<br />

força para acreditar veio de Saleh. Sempre positivo e inventivo,<br />

transmitia energia e essa sua energia vinha da crença.<br />

Não partilhamos o mesmo Deus, mas pouco importava, a sua fé deu<br />

mais alento à minha.<br />

57


<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Atento, fiz sempre o possível por observar, aprender e<br />

respeitar os seus costumes. A casa do Sr. Ben Ahmou onde<br />

ficámos estava a cerca de 15 metros acima da pista e a<br />

uns 40 metros do leito do rio. Ao lado permanecia<br />

tombado um pinheiro gigantesco e seco, que tinha caído<br />

há alguns invernos, numa noite de temporal, quando um<br />

grupo de 19 turistas, com mulheres e crianças se<br />

refugiaram em sua casa. Em sua casa, isto é, numa sala<br />

anexa ao curral mesmo em frente ao galinheiro, onde<br />

jantámos, tomámos o pequeno-almoço e dormimos.<br />

Consegui falar com a minha mulher, que além de<br />

obviamente muito preocupada, estava furiosa comigo!<br />

Mesmo assim pedi-lhe que fizesse o favor de entrar em<br />

contato com o Renato da Motormáquina e com o Neil, na<br />

tentativa de arranjar rapidamente uma Centralina. Ambos<br />

retribuiriam a chamada no dia seguinte de manhã. O<br />

primeiro já com uma, que estaria como nova, e o segundo<br />

tinha acabado de aterrar em Málaga ao serviço da<br />

Nissan. Desde já um grande abraço e uma palavra de<br />

agradecimento pela preocupação e força de ambos.<br />

Muito obrigado!<br />

Também havia a voz da razão e eu precisava de<br />

me recompor fisicamente e comunicar com<br />

Portugal para sossegar a família.<br />

Ben Ahmou tinha-me convidado para jantar em<br />

sua casa e naquela zona do rio havia melhor<br />

cobertura de rede, por isso não podia recusar.<br />

Karim acompanhou o Toni, que ficou a guardar<br />

o acampamento.<br />

Até esse dia nunca tinha tido o prazer de<br />

partilhar um serão entre berberes das<br />

montanhas da forma descontraída como passei.<br />

58


Todas estas dificuldades levaram-me a<br />

verbalizar, que talvez não fosse possível.<br />

Saleh imediatamente rebateu, dizendo que<br />

se fosse necessário arranjariam o caminho,<br />

várias pessoas iriam ajudar e empurrar o<br />

carro, portanto não era impossível, mas<br />

talvez fosse possível. Esta mensagem de<br />

esperança tem tudo a ver com uma<br />

poderosa fé e crença, profundamente<br />

ligada à religião, conforme tenho<br />

presenciado ao longo do tempo e que se<br />

pode ver até na beira das estradas.<br />

<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Depois de jantar fizemos uma reunião e tive de<br />

aceitar que o Defender iria ficar numa posição<br />

próxima de onde o tínhamos deixado. Ben<br />

Ahmou comunicou a Saleh que na ausência de<br />

um trator, ou reboque, num raio de 50km só<br />

haveria a derradeira possibilidade do Land<br />

Rover, que costuma trazer provisões para as<br />

casas do desfiladeiro. O Land Rover chegou<br />

ainda a tempo do condutor jantar connosco.<br />

Mas não era bem um Land Rover, mas sim a sua<br />

versão espanhola. Um pequeno Santana, de<br />

aspeto gasto e muito usado. Um ao pé do outro<br />

parecia David e Golias e eu por momentos<br />

esqueci-me do enlace dessa <strong>história</strong> bíblica.<br />

Ali na garganta do Assif Melloul, dentro da casa de<br />

hóspedes de Ben Ahmou, o momento de rezar<br />

assumiu um caráter mais próximo. Tão próximo, que<br />

se podia ouvir as palavras sussurradas há medida<br />

que os diversos companheiros entendiam ser o seu<br />

momento para o fazerem. Nessa altura confirmei,<br />

que apesar de o Deus não ser o mesmo, a intenção<br />

continuava a ser a mesma do resto do mundo.<br />

59


<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Para rezarem não precisam de privacidade, basta que não sejam<br />

diretamente abordados. Num canto, de joelhos ou em pé. Em<br />

silêncio ou murmurando, mas sempre virados para o mesmo lado.<br />

Uns com mais frequência do que outros, não abdicam desse<br />

momento sagrado. Eu sou mais polivalente e a orientação ou a<br />

posição não são importantes, mas prezo mais o silêncio em redor,<br />

por isso agradeci por tudo o que me estava a acontecer, antes de<br />

adormecer, no meio dos outros companheiros deitados no chão,<br />

surpreendente confortável, graças a vários tapetes, todos de<br />

fabrico caseiro.<br />

Esgotado por todo o esforço físico e mental dos últimos dois dias<br />

adormeci com um pensamento de esperança.<br />

A esperança é mesmo a última gota a secar e o que parecia<br />

impossível, revelou-se numa ainda maior mobilização de mais<br />

pessoas. A juntar a todos os que nos tinham ajudado na véspera<br />

apareceram mais dois irmãos de Karim e percebia-se que a palavra<br />

tinha passado pelo vale.<br />

Saleh falou e assim se fez. Com picaretas e ferros para levantar as<br />

maiores pedras, começou-se a criar um caminho uniforme, sempre<br />

orientados pelo pequeno condutor, tal qual David. O diminuto<br />

Santana foi carregado com três enormes calhaus para melhorar a<br />

tração e começou a mostrar o que valia. E quando a subida era<br />

demasiado ingrime, ou o terreno demasiado macio todos<br />

ajudavam, entoando a ajuda de Alá. Allah Akbar!<br />

60


Eventualmente conseguimos<br />

chegar ao fim da pista e respirar<br />

de alívio.<br />

Livre de tudo o que vivi nestes<br />

dramáticos dias na Garganta do<br />

Assif Melloul, a vida seguiu o<br />

seu curso nor<strong>mal</strong> e as pessoas<br />

continuaram nas suas rotinas.<br />

<strong>Raid</strong> <strong>Amezri</strong> <strong>–</strong> <strong>Uma</strong> <strong>história</strong> <strong>mal</strong> <strong>contada</strong><br />

Enquanto sobrevoávamos o Estreito de Gibraltar, sabia que<br />

o regresso a Marrocos tinha de passar por mais do que uma<br />

expedição. A ajuda espontânea ao próximo, demonstrada<br />

em vários pontos do país, independentemente de poderem<br />

vir a receber, ou não, de uma recompensa ou pagamento,<br />

revela o verdadeiro espírito de solidariedade e sacrifício:<br />

“Eu abdico do meu conforto e do meu tempo para ti”.<br />

As crianças de <strong>Amezri</strong>, o homem da Associação de Anergui,<br />

Ben Ahmou, Saleh e os amigos de Zagora ficaram para<br />

sempre na memória.<br />

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