12. DA TRAGÉDIA AO ROMANTISMO: Dois olhares sobre ... - UniABC
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Profª. Drª. Fernanda Verdasca Botton<br />
<strong>12.</strong> <strong>DA</strong> <strong>TRAGÉDIA</strong> <strong>AO</strong> <strong>ROMANTISMO</strong>:<br />
<strong>Dois</strong> <strong>olhares</strong> <strong>sobre</strong> o amor de Romeu e Julieta<br />
Profª. Drª. Fernanda Verdasca Botton 1<br />
Resumo<br />
O presente artigo tem duplo objetivo. Primeiramente, compreender<br />
por meio do estudo da obra cinematográfica do diretor australiano<br />
Baz Luhrmann, como o texto shakespeariano Romeu e Julieta possui<br />
características que seriam exploradas pelo Romantismo. Em segundo<br />
lugar, apresentar um exemplo bem sucedido de transposição da literatura<br />
para o cinema, e sua relevância pedagógica.<br />
Palavras-chaves:<br />
Shakespeare; romantismo; cinema.<br />
Abstract<br />
This paper has two objectives. Firstly, it aims at understanding, by<br />
studying the cinematographic work of the Australian director Baz Luhrmann,<br />
the way the Romantics explored certain features of the Shakespearean play<br />
Romeo and Juliet. Secondly, it aims at presenting a successful example of<br />
transposition from literature to cinema, and its pedagogical relevance.<br />
Keywords:<br />
Shakespeare; romanticism; movies.<br />
Revista <strong>UniABC</strong> - v.1, n.1, 2010 - ISSN: 2177-5818 | Humanas | Letras - Languages - Letras<br />
Resumen<br />
1 Bacharel e Licenciada em Letras pela Universidade de São Paulo, mestre e doutora em Literatura Portuguesa<br />
pela mesma instituição. Professora de Literatura do Ensino Médio e professora de Teoria Literária,<br />
Literatura Portuguesa e Literatura Brasileira da Universidade do Grande ABC.<br />
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Da Tragédia ao Romantismo: dois <strong>olhares</strong> <strong>sobre</strong> o amor de Romeu e Julieta<br />
Este artículo tiene un doble objetivo. Primero comprender por medio del<br />
estudio de la obra cinematográfica del director australiano Baz Luhmann,<br />
como el texto shakesperiano Romeo y Julieta posee características que<br />
serían exploradas por el Romanticismo. En segundo lugar, presentar un<br />
ejemplo bien sucedido de transposición de la literatura para el cine y su<br />
importancia pedagógica.<br />
Introdução<br />
Palabras-llaves:<br />
Shakespeare; romanticismo; cine.<br />
O gênero teatral por diversas vezes foi desvinculado da literatura por ser<br />
pertencente a uma fôrma mista, ou seja, para compreendermos realmente<br />
uma peça teatral, não basta lermos o texto, precisamos também presenciar<br />
o momento de sua encenação no palco. Com o advento do cinema, porém,<br />
a efemeridade da representação teatral pôde ser reduzida por alguns<br />
filmes que resgatam obras de grandeza suprema e as trazem das luzes da<br />
ribalta para as luzes mais duradouras dos projetores cinematográficos ou<br />
dos televisores.<br />
Dentre os filmes que conseguem perpetuar o que seria uma digna<br />
encenação teatral, citamos o Romeu + Julieta dirigido pelo australiano<br />
Baz Luhrmann (20th Century Fox, 1996). Nessa película, Luhrmann<br />
começa acertando onde muitos “ditos autores” de nossa modernidade<br />
erram: ele tem a dignidade de colocar, nos créditos iniciais de seu filme,<br />
que o criador da obra é William Shakespeare (devemos lembrar que nossas<br />
novelas televisivas usam e abusam dos argumentos shakespeareanos<br />
como se fossem invenções de “nossos pequenos autores”, cito aqui as<br />
personagens de Catarina e Petrucchio que, furtados da comédia A Megera<br />
Domada, habitaram por vários meses a casa global). Mas o acerto do<br />
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diretor australiano não pára neste ponto, ele nos possibilita também<br />
compreendermos porque o dramaturgo inglês e suas obras foram<br />
cultuados pelos autores do Romantismo e por todos aqueles que, ainda<br />
hoje, têm seus olhos marejados por esta época literária.<br />
Neste artigo, com o intuito de observarmos como a obra cinematográfica<br />
moderna pode nos ajudar a compreender não só a literatura elisabetana,<br />
mas também a sociedade romântica em que estamos inseridos, propomos<br />
um estudo comparativo entre a peça teatral escrita por Shakespeare<br />
(Romeu e Julieta – 1595-96) e o filme escrito e dirigido por Baz Luhrmann<br />
(Romeu + Julieta – 1996).<br />
O contar do passado nos holofotes românticos de um presente.<br />
Começamos nosso estudo observando que, como na peça original do<br />
dramaturgo inglês, um prólogo é trazido à película para nos contar o<br />
que será encenado (no filme, o prólogo corresponde a uma reportagem<br />
jornalística a narrar como ocorreu a trágica morte dos enamorados Romeu<br />
e Julieta). Aos menos conhecedores da literatura, este resumo inicial pode<br />
parecer estranho, afinal de contas por que assistir a uma peça (ou a um<br />
filme) se já nos é revelado o desenrolar e o final do enredo? Aos que já<br />
experimentaram a beleza da arte, a resposta é simples: a imortalidade de<br />
uma história está vinculada não somente ao que ela conta, mas sim, e<br />
principalmente, a como ela o faz.<br />
Pensando na grandeza do “como contar”, o filme preserva a musicalidade<br />
poética do verso elisabetano e acrescenta às rimas do texto de Shakespeare<br />
a sonoridade e a letra da moderna “pop music” americana. Deste modo,<br />
por exemplo, em um dueto a provocar nossa empatia amorosa, às palavras<br />
que Romeu usa para descrever sua primeira visão de Julieta, o diretor<br />
musical Nellee Hooper acrescenta a melodia sentimental que acompanha<br />
a música Kissing you (de Des’ree e Tim Atack).<br />
LETRA <strong>DA</strong> MÚSICA: Aguenta o orgulho um milhar<br />
de provas. Não cai nunca o que é forte. Mas vendo<br />
as estrelas longe de ti. Minha alma chorou. Coração<br />
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arfante está cheio de dor. Oh, o doer. Porque estou a<br />
beijar-te. Estou a beijar-te. Toca-me fundo em pureza<br />
e verdade.<br />
ROMEU: Meu coração, até hoje, teve a dita de conhecer<br />
o amor? Oh! que simpleza! Nunca soube até agora o<br />
que é beleza.<br />
Salientamos que este expediente utilizado no filme, o de acrescentar<br />
música ao texto falado para conseguir uma empatia sentimental do público,<br />
não foi inventado por nossa modernidade: ele já é presente em textos mais<br />
antigos, mais especificamente em obras designadas como melodramas.<br />
O termo melodrama foi utilizado pela primeira vez no ano de 1594.<br />
Nesta época, o músico Jacopo Peri e o libretista Ottavio Rinuccini se<br />
uniram para construir um texto que unisse melodia (melos) a uma ação<br />
teatral (drama2 ). Ao resultado obtido dessa união, a ópera Dafni, os<br />
autores denominaram de melodrama. Nos anos seguintes, outros autores<br />
de óperas chamaram de melodrama seus textos inteiramente cantados.<br />
Com o passar do tempo, porém, o melodrama se distanciou da fôrma<br />
operística e passou a ser utilizado para espetáculos cujo acompanhamento<br />
musical salientava apenas os momentos significativos do enredo. Esse<br />
entendimento do termo surgiu pela primeira vez quando, em 1770, Jean<br />
Jacques Rousseau classificou como melodrama seu texto Pigmalião. O autor<br />
em questão julgou pertinente dar essa denominação à sua peça por ter<br />
utilizado, na construção dramatúrgica dessa, árias da ópera italiana para<br />
salientar os solilóquios sentimentais de um escultor que expressa, pela<br />
estátua de uma Ninfa que esculpira, um amor funesto. A partir da obra<br />
de Rousseau, portanto, a música inserida no drama passou a objetivar o<br />
sentimentalismo que, por sua vez, tornou-se o principal elemento da fôrma<br />
melodramática.<br />
2 Na Antiguidade Clássica, o vocábulo drama era utilizado para designar a representação teatral pois, em<br />
grego, esta palavra significa “ação”. Segundo um dos principais literatos daquela época, Aristóteles, a<br />
utilização do vocábulo é pertinente já que dentre todos os gêneros literários (a saber: o lírico, o épico e<br />
o dramático), esse é o que faz “aparecer e agir as próprias personagens” (ARISTÓTELES, 1969, p. 243).<br />
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Observamos, contudo, que a alcunha de “pai do melodrama” não coube<br />
aos autores acima citados, mas sim a um autor que, no período literário<br />
do Romantismo, escreveu mais de 120 peças teatrais que determinaram<br />
os elementos essenciais do texto melodramático: René-Charles Guilbert<br />
de Pixérécourt.<br />
Em Coelina, ou a filha do mistério (1800), sua principal obra,<br />
Pixérécourt expressa, nos melos da cena final, o pensamento que permeia<br />
todos os seus melodramas:<br />
Vejam, meus caros amigos, / De trevas ilusórias se cobrem/<br />
Os crimes cometidos/ Cedo ou tarde tudo é descoberto/<br />
Sejamos bons, francos e virtuosos / Façamos constantemente<br />
o bem / Agora nós alegremente dancemos/<br />
O rigodon / Zig, zag, don, don; / Nada aquece mais a<br />
canção/ Do que uma boa ação. (ESTÈVE, 1923, p. 150)<br />
Ou seja, em suas peças Pixérécourt entendeu o melodrama não só<br />
como um texto a aproveitar a melodia como acompanhamento de cenas<br />
sentimentais, mas também, e principalmente, como um texto a retratar<br />
que a vitória redentora da virtude ainda pode existir em uma sociedade<br />
corrompida pelo Mal.<br />
Baz Luhrmann parece ter trazido à sua película esse entendimento de<br />
melodrama, pois, além de permear o texto com músicas que salientam<br />
os momentos mais sentimentais da trama, também cria, em Romeu +<br />
Julieta, uma luta do sublime amor que deve vencer, em nossa sociedade<br />
ainda romântica, as personificações do mal.<br />
Nesse sentido, o diretor cinematográfico aproveita a situação<br />
shakespeariana do baile de máscaras para colocar, em cada personagem,<br />
sua visão romântica do Mal e do Bem.<br />
Na preparação do baile, Lady Capuleto não é apenas a mãe de Julieta<br />
é também a personificação de uma bruxa de contos de fadas que,<br />
descabelada e gritando com voz estridente, orienta a filha a se casar com o<br />
rico Páris. Além disso, o jovem pretendente de Julieta torna-se, na película,<br />
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um astronauta americano cujo narcíseo espelho de beleza salienta a figura<br />
do tolo cômico que não sabe o que acontece ao seu redor (vide a cena<br />
em que Romeu escarnece, com a anuência de Julieta, do jeito de dançar<br />
de Páris). Acrescentamos ainda que o pai de Julieta, vestido de imperador<br />
romano, revela duas atitudes: a do presente, homem a aproveitar de uma<br />
festa-orgia; e a do futuro, tirano que, no final do enredo, obrigará a filha a<br />
casar-se com quem ele deseja.<br />
Seguindo o mesmo pensamento melodramático, a primeira visão<br />
que a película constrói do casal Romeu e Julieta é baseada em fantasias<br />
provenientes de figuras clichês do Bem romântico: Romeu é um cavaleiro<br />
medieval, Julieta, por sua vez, é uma menina-anjo.<br />
Sendo assim, Luhrmann constrói, já nas primeiras cenas de seu filme,<br />
personagens que, por se repetirem em vários melodramas românticos,<br />
tornaram-se símbolos já conhecidos do Mal e do Bem.<br />
Observamos que, se no século XX, o cineasta Baz Luhrmann traz ao<br />
texto shakespeariano elementos da literatura do período do Romantismo,<br />
o escritor Victor Hugo, um dos maiores expoentes dessa escola literária, já<br />
havia, no século XIX, observado William Shakespeare como o mestre dos<br />
modernos.<br />
No texto denominado Prefácio de Cromwell, Hugo divide as épocas<br />
literárias em três: os tempos primitivos (com a ode do Gênese), os tempos<br />
antigos (com a epopéia de Homero) e os tempos modernos (com o drama 3<br />
inspirado por Shakespeare). Com o intuito de melhor compreendermos<br />
porque Victor Hugo coloca o dramaturgo inglês como a principal fonte<br />
de inspiração dos românticos, trazemos à nossa análise alguns trechos do<br />
texto em questão:<br />
(...) a poesia tem três idades, das quais cada uma<br />
corresponde a uma época da sociedade: a ode, a<br />
epopéia e o drama. (...) A ode canta a eternidade,<br />
a epopéia soleniza a história, o drama pinta a vida.<br />
3 Observamos que, no entendimento de Victor Hugo o vocábulo drama é utilizado como maneira de<br />
simbolizar que a literatura de seu tempo deve unir o cômico e o trágico<br />
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O caráter da primeira poesia é a ingenuidade, o caráter<br />
da segunda é a simplicidade, o caráter da terceira,<br />
a verdade. (...) A ode vive do ideal, a epopéia<br />
do grandioso, o drama do real. Enfim, esta poesia<br />
provém de três grandes fontes: a Bíblia, Homero,<br />
Shakespeare. (HUGO, 1988, p. 37)<br />
(...) Com efeito, na poesia nova, enquanto o sublime<br />
representará a alma tal qual ela é, purificada pela<br />
moral cristã, ele [o grotesco] representará o papel<br />
da besta humana. O primeiro tipo, livre de toda a<br />
mescla impura, terá como apanágio todos os encantos,<br />
todas as graças, todas as belezas; é preciso que<br />
se possa criar um dia Julieta, Desdémona, Ofélia. O<br />
segundo tomará todos os ridículos, todas as enfermidades,<br />
todas as feiúras. Nesta partilha da humanidade<br />
e da criação, é a ele que caberão as paixões, os<br />
vícios, os crimes; é ele que será luxurioso, rastejante,<br />
guloso, avaro, pérfido, enredador, hipócrita (...)<br />
(idem, p. 33)<br />
Ou seja, para Vitor Hugo a importância de Shakespeare reside no<br />
fato de que esse dramaturgo inglês conseguiu, em suas peças e poemas,<br />
influenciar os Românticos a pintarem a vida real do homem sublime e<br />
grotesco que habita o tempo “moderno”.<br />
Sendo assim, mesmo que Luhrmann não soubesse da relação existente<br />
entre Shakespeare e os Românticos, ao trazer para seu filme este parentesco<br />
literário, ele acabou por realizar uma ligação coerente.<br />
Além disso, a coerência do cineasta também pode ser observada à<br />
medida que esse salienta em sua película que no mundo moderno, a ser<br />
visto com olhos românticos, existe aquilo a que Victor Hugo designou<br />
como sublime (representado principalmente por Julieta) e como grotesco<br />
(representado, no filme, pela feiúra da mãe, pelo ridículo de Páris ou pela<br />
luxúria e perfídia do pai de nossa menina-anjo).<br />
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Acrescentamos ainda que, para salientar o universo do sublime, o filme<br />
Romeu + Julieta evidencia um elemento que, no texto shakespeariano, era<br />
apenas um dado secundário a compor a trama: a religiosidade católica.<br />
Na cena inicial da película (que, como vimos, resume o desenrolar e<br />
o final do enredo), o diretor coloca uma estátua de Cristo a acolher a<br />
imensa cidade de Verona. No desenrolar do enredo, Julieta menina-anjo<br />
está sempre cercada por imagens de santos. No desfecho da trama, a<br />
morte dos apaixonados é adornada por várias cruzes a mostrarem que, se<br />
os corpos expiraram, as almas, assim como acredita o cristianismo, terão<br />
na vida eterna a felicidade de se reencontrarem. Salientamos ainda que a<br />
própria ambiguidade criada no título da película, que une Romeu e Julieta<br />
por um sinal de adição que se assemelha a uma cruz, é o aviso de que os<br />
holofotes de Luhrmann estarão voltados para uma visão cristã do texto<br />
shakespeariano.<br />
Observemos, novamente, como o romântico Victor Hugo entenderia o<br />
papel do cristianismo na obra moderna.<br />
Nova era vai começar para o mundo e para a poesia.<br />
Uma religião espiritualista, que supera o paganismo<br />
material e exterior, desliza no coração da sociedade<br />
antiga, mata-a, e neste cadáver de uma civilização<br />
decrépita deposita o germe da civilização moderna.<br />
Esta religião é completa, porque é verdadeira (...) e<br />
de início, como primeiras verdades, ensina ao homem<br />
que ele tem duas vidas que deve viver, uma<br />
passageira, a outra imortal; uma na terra, a outra<br />
no céu. Mostra-lhe que ele é um duplo (...) que há<br />
nele um animal e uma inteligência, uma alma e um<br />
corpo (...) (idem, p. 42)<br />
Sendo assim, ao sublinhar o cristianismo na obra Romeu e Julieta, o<br />
cineasta acabou por transformar este texto shakespeariano numa obra<br />
romântica em que o homem sublime pode ter a esperança de, no céu,<br />
conseguir a imortalidade da verdadeira vida: a espiritual.<br />
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Porém, se a peça Romeu e Julieta propicia uma interpretação romântica,<br />
pois, em seu bojo estão os principais elementos do melodrama e do<br />
pensamento hugoniano, Shakespeare a escreveu, contudo, como uma<br />
tragédia.<br />
A catarse shakespeariana em Romeu e Julieta.<br />
Trazemos à nossa análise o prólogo da peça Romeu e Julieta para<br />
compreendermos porque Shakespeare a classifica como tragédia.<br />
CORO — Duas casas, iguais em dignidade – na formosa<br />
Verona vos dirão – reativaram antiga inimizade,<br />
manchando mãos fraternas sangue irmão. Do<br />
fatal seio desses dois rivais um par nasceu de amantes<br />
desditosos, que em sua sepultura o ódio dos pais<br />
depuseram, na morte venturosos. Os lances desse<br />
amor fadado à morte e a obstinação dos pais sempre<br />
exaltados que teve fim naquela triste sorte em<br />
duas horas vereis representados. Se emprestardes a<br />
tudo ouvido atento, supriremos as faltas a contento.<br />
(SHAKESPEARE, 1998, p. 5)<br />
O primeiro elemento do trágico que devemos observar é que<br />
Shakespeare criou suas personagens principais (Romeu e Julieta) como<br />
seres provenientes de casas iguais em dignidade. Esta respeitabilidade<br />
que o dramaturgo inglês imprimiu às suas personagens é, provavelmente,<br />
inspirada pela teoria que diz ser a tragédia uma imitação de seres melhores<br />
(entendidos por Aristóteles 4 , e ao que parece por Shakespeare, como seres<br />
possuidores de caracteres bons).<br />
O segundo elemento, é que a fala do coro já salienta que os amantes<br />
4 Lembramos que, na Antiguidade Clássica, Aristóteles (384-322 a.C.) observou que os textos dramáticos<br />
podem ser divididos em comédia e tragédia conforme as personagens que nele são imitadas: “uma<br />
propõe-se imitar homens, representando-os piores, a outra, melhores do que são na realidade” (ARIS-<br />
TÓTELES, 1969, p. 242).<br />
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serão desgraçados, pois o destino que os aguarda é a fatídica morte que os<br />
levará à sepultura. Neste momento da análise acrescentamos que, também<br />
segundo Aristóteles, o herói trágico é vítima de um destino inexorável que<br />
lhe traz o infortúnio do extremo sofrimento ou da morte.<br />
Porém, se na tragédia grega os seres melhores possuem um fim fatídico<br />
para mostrar a supremacia dos deuses, na tragédia shakespeariana esse<br />
fim, mais do que pregar a subserviência humana a seu destino, propicia,<br />
segundo o próprio Prólogo, a ventura ao casal de amantes.<br />
Harold Bloom, ao estudar o texto de Romeu e Julieta, observa que o<br />
tema desse não é meramente retratar a fatídica morte dos amantes de<br />
Verona, mas sim mostrar, através dessa, que o sentimento do casal é eterno<br />
porque, antes que morresse, o suicídio dos corpos tornou imortal o Amor<br />
virtuoso experimentado pelas almas.<br />
Nesse sentido, notamos que Shakespeare constrói, durante todo<br />
seu texto, vários retratos de uma sociedade em que habita o amor<br />
corrompido. É o amor perverso que se manifesta nos homens Capuleto<br />
que lutam contra os inimigos não só por uma rincha sem motivos, mas<br />
também para serem cruéis com as donzelas. É o amor efêmero de um<br />
Romeu Montecchio que sofre, no início do texto, não pela jovem Julieta<br />
(a quem conhecerá somente no final do primeiro ato), mas sim porque<br />
não é correspondido pela bela Rosalinda. É o amor luxúria de Mercúcio<br />
que, em sonhos embalados pela feiticeira Mab, vê as raparigas tornaremse<br />
mulheres quando suportam nas costas o peso dos maridos. É o amor<br />
interesse da Ama que aconselha Julieta, no final do terceiro ato, a abdicar<br />
dos votos matrimoniais que fizera com Romeu em prol de um casamento<br />
mais tranquilo com o belo e rico Páris.<br />
Sendo assim, na peça de William Shakespeare, a morte dos amantes<br />
de Verona não simboliza, como no filme de Luhrmann, um amor que<br />
será venturoso porque fora eternizado no Céu católico dos românticos,<br />
mas sim porque invadirá a todos os que ouvirem a história. A diferença é<br />
importante pois, enquanto a visão romântica traz alento somente àqueles<br />
que acreditam na Igreja Católica (mais especificamente na vida pós-morte<br />
pregada pelo cristianismo), a visão shakespeariana é muito mais ampla:<br />
ela servirá como fonte de inspiração não só aos católicos, mas também aos<br />
perversos, aos inconstantes, aos feiticeiros, aos interesseiros... ou seja, a<br />
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todos aqueles que, na peça ou fora dela, não acreditavam, antes de ouvir<br />
a história de Romeu e Julieta, na supremacia do Amor.<br />
Salientamos ainda que a última cena da peça, não acontece, como no<br />
filme de Luhrmann, sob o cenário florido das cruzes de uma Igreja católica,<br />
mas sim na cripta da família de Julieta, onde estão mortos não somente<br />
o casal de amantes, mas também Páris e Tebaldo. O dado é importante,<br />
pois, se no filme a ressurreição para a eternidade comove a platéia através,<br />
principalmente, da piedade conseguida pela imagem amorosa; na peça de<br />
Shakespeare, por imitar a fôrma trágica, a catarse 5 é conseguida pela união<br />
igualitária dos sentimentos de piedade (conseguido através da morte do<br />
casal de amantes) e de terror (provocado pela imagem dos cadáveres que<br />
morreram em nome do ódio e do amor).<br />
Podemos compreender essa escolha de Luhrmann através de dois dados<br />
que se <strong>sobre</strong>ssaem no filme. O primeiro é que o cineasta valoriza, como<br />
vimos, a idéia romântica e cristã de felicidade celestial. O segundo, que<br />
agora abordaremos, é que, ao optar pela sua visão melodramaticamente<br />
romântica, o cineasta abdicou de homens que, em uma visão<br />
shakespeariana são atormentados não somente pelo mal externo, mas<br />
também pela perigosa dúvida de um, como diria Hamlet, “ser ou não ser<br />
(...) do tumulto da existência” (Shakespeare, 1976, p. 108). Nesse aspecto,<br />
devemos comparar as duas construções da personagem de Romeu: no<br />
filme “adaptação” e na peça “paradigma”.<br />
Na adaptação, a trajetória de Romeu parece ser dividida em três<br />
tempos. No primeiro, Romeu é um jovem que vaga pela praia e expressa,<br />
em um monólogo hiperbolizado pelo melos de uma música triste, seu<br />
sofrimento por um amor aparência pela jovem Rosalinda. No segundo,<br />
já no baile de máscaras, ele é um cavaleiro medieval que encontra sua<br />
amada, porém, para conseguir este verdadeiro amor de sua menina-anjo,<br />
terá de lutar contra a figura fugaz de um tolo (personificado no astronauta<br />
narcíseo Páris), a figura perversa de um diabo (personificada na fantasia de<br />
demônio vestida por Tebaldo) e a figura de uma sociedade em que grassam<br />
os valores errôneos (personificada pelos progenitores de Julieta e pelo<br />
5 Para Aristóteles, a catarse é a ação purificadora das paixões que traz ao público o sentimento de terror<br />
(phóbos) e de piedade (éleos).<br />
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drogado Mercúcio). No terceiro momento, após lutar bravamente contra<br />
as diversas manifestações do Mal, o Bom Romeu tem sua recompensa ao<br />
se unir, em um amor celestial, a Julieta.<br />
Na obra paradigma, porém, entendermos o jovem Romeu não é tão<br />
fácil, pois a luta que nele existe é de um homem que, se inicialmente<br />
enxerga a si como uma “alma de chumbo” (Ato I, Cena V), posteriormente<br />
percebe, ao encontrar seus mortos, que outros homens também suportam<br />
o peso da infelicidade. No sepulcro da família de Julieta, Romeu mata Páris<br />
e, após esse ato insano, expressa sua compaixão por aquele que também<br />
sofre pela morte de Julieta (“Dá-me essa mão, ó tu que estás inscrito, como<br />
eu também, no livro do infortúnio. (...) Repousa, morto, por um morto<br />
enterrado” (Ato V, Cena III)). Ainda neste local fúnebre, Romeu encontra<br />
Tebaldo e sente nesse o sofrimento de uma morte injusta (“Tebaldo, jazes<br />
num lençol de sangue? Oh! que maior favor fazer-te posso do que com esta<br />
mesma mão que a tua mocidade cortou, destruir, agora, também, a do que<br />
foi teu inimigo? Primo, perdoa-me” (Ato V, Cena III)).<br />
Em Shakespeare, portanto, somente a rima do amor pode salvar do<br />
tumulto da existência não apenas o sofredor Romeu, mas também os<br />
homens que possuem uma vida mais fúnebre do que a própria morte. Ou,<br />
como diria Shakespeare em um de seus poemas:<br />
Nem mármore, nem áureos monumentos<br />
De reis hão de durar mais que esta rima,<br />
E sempre hás de brilhar nestes acentos<br />
Do que na pedra, pois o tempo a lima.<br />
(...)<br />
Há de seguir teu passo sobranceiro<br />
Vencendo a morte e as legiões do olvido,<br />
E os pósteros, no juízo derradeiro,<br />
Hão de a este louvor prestar ouvido.<br />
Pois até a sentença que levantes<br />
Vive aqui e no lábio dos amantes.<br />
(SHAKESPEARE, 1994, p. 479)<br />
Letras - Languages - Letras | Humanas | Revista <strong>UniABC</strong> - v.1, n.1, 2010 - ISSN: 2177-5818
Profª. Drª. Fernanda Verdasca Botton<br />
Lágrimas que orientam para a sabedoria.<br />
Portanto, apesar da película de Luhrmann iluminar de maneira<br />
melodramática e romântica a obra Romeu e Julieta, ela é, para um<br />
pedagogo atento que quer trabalhar com a linguagem dos jovens, uma<br />
excelente porta de entrada à compreensão do homem shakespeariano.<br />
Sendo assim, aos que querem saber não só como “aumentar com suas<br />
lágrimas o orvalho matutino e acrescentar com seus suspiros fundos novas<br />
nuvens às nuvens existentes” (Ato I, Cena I), mas também compreender<br />
o sofrimento ainda moderno dos seres humanos, o filme é o início de um<br />
caminho para o dramaturgo que reinventou os olhos com os quais nos<br />
vemos: William Shakespeare.<br />
Referências bibliográficas:<br />
ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Rio de Janeiro: Ediouro,<br />
1969.<br />
BLOOM , Harold. Shakespeare: invenção do humano. São Paulo: Editora<br />
Objetiva Ltda., 2000.<br />
ESTÈVE, Edmond. Études de littérature préromantique. Paris, Librarie<br />
ancienne édouard champion , 1923.<br />
HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime (Prefácio de Cromwell). São<br />
Paulo: Editora Perspectiva S.A., 1988.<br />
VER<strong>DA</strong>SCA BOTTON, Fernanda. Fígados de tigre: em busca da origem<br />
e genealogia do melodrama. 2002. Dissertação (Mestrado em Letras)- Faculdade<br />
de Letras da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.<br />
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252<br />
Da Tragédia ao Romantismo: dois <strong>olhares</strong> <strong>sobre</strong> o amor de Romeu e Julieta<br />
Shakespeare, William. Comédias e sonetos. São Paulo: Círculo do livro, 1994.<br />
_______. Hamlet. São Paulo: Abril Cultural e Industrial, 1976.<br />
_______. Romeu e Julieta. Porto Alegre: LPM,1998.<br />
ROMEU + Julieta. Produção: Baz Luhrmann. Estados Unidos: 20th.<br />
Century Fox, 1996. (120min), color.<br />
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