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Serviço social, residência multiprofissional e pós-graduação ... - pucrs

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<strong>Serviço</strong> Social, Residência<br />

Multiprofissional e Pós-Graduação:<br />

A excelência na formação do<br />

Assistente Social


Chanceler<br />

Dom Dadeus Grings<br />

Reitor<br />

Joaquim Clotet<br />

Vice-Reitor<br />

Evilázio Teixeira<br />

Conselho Editorial<br />

Ana Maria Lisboa de Mello<br />

Augusto Buchweitz<br />

Beatriz Regina Dorfman<br />

Bettina Steren dos Santos<br />

Clarice Beatriz de C. Sohngen<br />

Carlos Graeff Teixeira<br />

Elaine Turk Faria<br />

Érico João Hammes<br />

Gilberto Keller de Andrade<br />

Helenita Rosa Franco<br />

Ir. Armando Luiz Bortolini<br />

Jane Rita Caetano da Silveira<br />

Jorge Luis Nicolas Audy – Presidente<br />

Lauro Kopper Filho<br />

Luciano Klöckner<br />

Nédio Antonio Seminotti<br />

Nuncia Maria S. de Constantino<br />

EDIPUCRS<br />

Jerônimo Carlos Santos Braga – Diretor<br />

Jorge Campos da Costa – Editor-Chefe


Maria Isabel Barros Bellini<br />

Thaísa teixeira Closs<br />

Organizadora<br />

<strong>Serviço</strong> Social, Residência<br />

Multiprofissional e Pós-Graduação:<br />

A excelência na formação do<br />

Assistente Social<br />

EDIPUCRS<br />

Porto Alegre, 2012


© EDIPUCRS, 2012<br />

CAPA Rodrigo Braga<br />

REVISÃO DE TEXTO Fernanda Lisbôa<br />

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Andressa Rodrigues<br />

S491 <strong>Serviço</strong> <strong>social</strong>, <strong>residência</strong> <strong>multiprofissional</strong> e <strong>pós</strong>-<strong>graduação</strong> :<br />

a excelência na formação do assistente <strong>social</strong> [recurso<br />

eletrônico] / org. Maria Isabel Barros Bellini, Thaísa<br />

Teixeira Closs. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre :<br />

EdiPUCRS, 2012.<br />

191 p.<br />

Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader<br />

Modo de Acesso: <br />

ISBN 978-85-397-0192-6 (on-line)<br />

1. <strong>Serviço</strong> Social – Ensino. 2. Assistentes Sociais –<br />

Formação Profissional. 3. Residência Multiprofissional em<br />

Saúde. 4. Pós-Graduação – Ensino. I. Bellini, Maria Isabel<br />

Barros. II. Closs, Thaísa Teixeira.<br />

CDD 361<br />

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas<br />

gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial,<br />

bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também<br />

às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos, do Código<br />

Penal), com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998,<br />

Lei dos Direitos Autorais).


Sumário<br />

APRESENTAÇÃO ...................................................................................7<br />

INTRODUÇÃO ....................................................................................10<br />

Maria Isabel Barros Bellini<br />

EXERCÍCIO PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL NA<br />

ATENÇÃO PRIMÁRIA EM SAÚDE ........................................................14<br />

Marisa Camargo<br />

Maria Isabel Barros Bellini<br />

INSERÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL NAS RESIDÊNCIAS<br />

MULTIPROFISSIONAIS EM ATENÇÃO BÁSICA .....................................34<br />

Thaísa Teixeira Closs<br />

SERVIÇO SOCIAL E EDUCAÇÃO NA SAÚDE ...................................................................... 63<br />

Tatiane Moreira de Vargas<br />

Maria Isabel Barros Bellini<br />

A FAMÍLIA COMO REDE DE APOIO AO<br />

DEPENDENTE QUÍMICO .....................................................................79<br />

Cláucia Ivete Schwerz<br />

Maria Isabel Barros Bellini<br />

FAMÍLIAS VULNERÁVEIS ..................................................................101<br />

Simone da Fonseca Sanghi<br />

Maria Isabel Barros Bellini<br />

ASSISTÊNCIA EM SAÚDE MENTAL ....................................................118<br />

Vanessa Maria Panozzo<br />

Berenice Rojas Couto


VIVÊNCIAS DESENCADEADAS PELA<br />

REFORMA PSIQUIÁTRICA .................................................................136<br />

Maíra Giovenardi<br />

Maria Isabel Barros Bellini<br />

OS FILHOS DA AIDS ..........................................................................155<br />

Luciana Basile Silva<br />

Kelinês Gomes<br />

Maria Isabel Barros Bellini<br />

SOBRE AS AUTORAS ........................................................................189


APRESENTAÇÃO<br />

No processo de indução e apoio à institucionalização,<br />

fortalecimento e expansão das <strong>residência</strong>s multiprofissionais em saúde,<br />

os gestores federais da saúde e da educação têm sido questionados<br />

com relação ao alto custo dessa formação, à dificuldade de considerar<br />

sua abrangência em contraponto ao seu real impacto sobre as ações e<br />

serviços de saúde e à escala necessária de qualificação de profissionais<br />

para atender às necessidades do Sistema Único de Saúde/SUS. Outro<br />

questionamento frequente diz respeito a que profissões devem compor a<br />

equipe <strong>multiprofissional</strong> no serviço e, portanto, também nos programas<br />

de formação na modalidade <strong>residência</strong>.<br />

É necessário financiar a formação de profissionais de saúde das<br />

diversas categorias em um programa de 60 horas semanais, em dedicação<br />

exclusiva por dois anos? Por outro lado ainda, como foram definidas<br />

as profissões consideradas da saúde? Há as que se manifestam como<br />

injustamente excluídas, como a especialidade da Física Médica, e há as<br />

que estão incluídas, mas se consideram como sendo profissões não apenas<br />

da área da saúde, como a Psicologia e a Educação Física. São questões<br />

complexas, a serem abordadas à luz da construção do também complexo<br />

princípio da integralidade da atenção à saúde que conforma o SUS.<br />

A presente publicação apresenta um conjunto de artigos escritos<br />

a partir da práxis e das reflexões de assistentes sociais, que, a<strong>pós</strong><br />

vivenciar a experiência de cursar a <strong>residência</strong> <strong>multiprofissional</strong> em<br />

saúde, na atenção básica e na saúde mental, buscaram a continuidade<br />

da sua formação em nível de <strong>pós</strong>-<strong>graduação</strong> stricto sensu – mestrado<br />

e doutorado – no Programa de Pós-Graduação em <strong>Serviço</strong> Social da<br />

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).<br />

A leitura dos artigos que compõem esta publicação nos transporta<br />

a um entendimento sobre a importância de investir na formação dos<br />

diversos profissionais que compõem a equipe de saúde com distintos<br />

papéis na conformação da rede de atenção à saúde, quando o desafio<br />

colocado é o de promover mudança do modelo de atenção e efetivar<br />

o preceito constitucional de que cabe ao SUS ordenar a formação de<br />

recursos humanos para a saúde.<br />

Ao considerar a inserção dos Assistentes Sociais e as experiências<br />

formativas pautadas na gestão e no planejamento da atenção básica,


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

8<br />

é possível projetar seu papel na “participação e sistematização de<br />

demandas da população e na construção de interfaces entre serviços” das<br />

diferentes áreas, na perspectiva da ação intersetorial das políticas sociais.<br />

A democratização dos serviços e a organização do trabalho aberta às<br />

demandas da população, promovendo o encontro entre as necessidades<br />

de saúde e a oferta de serviços, são aspectos particularmente afeitos à<br />

atuação do <strong>Serviço</strong> Social.<br />

Ao tratar da Assistência em Saúde Mental, um dos trabalhos<br />

postula a questão sobre como o Estado se tem organizado para o<br />

enfrentamento da questão <strong>social</strong>, entendendo a saúde mental como<br />

expressão dessa relação. A análise do processo histórico mostra a<br />

evolução da Reforma Psiquiátrica, da rede de atenção integral à saúde<br />

mental e da mudança conceitual que resultou na criação dos Centros de<br />

Atenção Psicos<strong>social</strong> (CAPS). Ao mesmo tempo, há muitos desafios<br />

ainda a serem enfrentados para a real inclusão <strong>social</strong> de portadores de<br />

sofrimento psíquico no cotidiano da comunidade.<br />

Os objetos de estudo aqui selecionados apontam para a<br />

ampliação do campo de visão no que diz respeito à construção <strong>social</strong> do<br />

processo de saúde e doença, no âmbito individual e coletivo. O estudo<br />

sobre a família como rede de apoio ao dependente químico destaca a<br />

importância deste acolhimento e também o risco da sobrecarga para a<br />

família enquanto cuidadora. É impactante o relato da mãe de um dos<br />

dependentes participantes da pesquisa quando declara “Hoje deixo ele<br />

voltar para casa, é meu filho. Antes, botava ele para correr e os laços<br />

que ele formou na rua foram mais fortes”.<br />

O estudo sobre famílias vulneráveis, suas múltiplas configurações<br />

e formas de organização para enfrentar um cotidiano altamente adverso<br />

oferece pistas sobre a importância da abordagem necessária para que<br />

as políticas públicas sociais possam ser adequadamente endereçadas e<br />

beneficiar efetivamente a quem precisa delas. E o artigo “Filhos da AIDS:<br />

contando histórias de vida” traz depoimentos que se constituem em lição<br />

de vida e rica fonte de reflexão sobre como se organiza a rede de atenção,<br />

a importância de que ela seja usuário-centrada, e de que os profissionais<br />

de saúde estejam preparados para a atenção integral, para muito além<br />

dos saberes cognitivos, técnicos e práticos. O acolhimento e o vínculo<br />

de que o usuário do SUS precisa só se concretizarão se os profissionais<br />

de saúde puderem dispor em caráter abrangente, de uma formação ético-


política preparada para captar a complexidade da realidade em que a vida<br />

acontece, e onde a saúde e a doença se manifestam.<br />

Nos últimos dois anos, o Ministério da Saúde e o Ministério da<br />

Educação, em parceria com a CAPES, têm promovido, como parte das<br />

múltiplas estratégias que integram a política de formação dos profissionais<br />

de saúde, apoio à criação de programas de <strong>pós</strong>-<strong>graduação</strong> em ensino na<br />

saúde, incluindo a articulação entre a <strong>residência</strong> médica e <strong>multiprofissional</strong><br />

aos mestrados profissionais. A trajetória das pesquisadoras materializada<br />

nesta publicação nos remete ao acerto deste caminho. O conjunto das<br />

pesquisas, desenvolvidas em programa de <strong>pós</strong>-<strong>graduação</strong> stricto sensu,<br />

constitui-se em um precioso material de investigação e registro do que<br />

pode ser alcançado pela <strong>residência</strong> <strong>multiprofissional</strong> em saúde e, em<br />

especial, de visibilidade sobre a inserção do profissional Assistente Social<br />

na equipe <strong>multiprofissional</strong> de saúde.<br />

A iniciativa dialoga também com os objetivos estratégicos<br />

estabelecidos pelo Ministério da Saúde para a atual gestão, que<br />

envolve o fortalecimento das redes de atenção à saúde, a atenção<br />

básica como ordenadora da rede e a Saúde Mental (ou Atenção<br />

Psicos<strong>social</strong>), como prioridade.<br />

A oportunidade de apresentar esta publicação é motivo de grande<br />

satisfação, por tantas razões, mas principalmente pelo aprendizado<br />

proporcionado e pela constatação de que o Brasil, em que pesem os<br />

desafios ainda postos, pode orgulhar-se da qualidade da educação<br />

superior que tem produzido, por contar com instituições de excelência,<br />

como a PUCRS, e do amplo movimento em curso, com o forte<br />

engajamento das universidades, dos gestores da saúde, da educação<br />

e dos serviços, de integração ensino-serviço-gestão-comunidade, que<br />

norteia a política nacional de gestão do trabalho e da educação na saúde.<br />

Ana Estela Haddad<br />

Diretora de Programa<br />

Secretária-Substituta de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde<br />

do Ministério da Saúde<br />

APRESENTAÇÃO<br />

9


INTRODUÇÃO<br />

Maria Isabel Barros Bellini<br />

Esta publicação atende a vários interesses. Interesse dos órgãos<br />

representativos da categoria profissional dos assistentes sociais, das<br />

instituições de ensino superior e do Ministério da Saúde e da Educação<br />

quanto aos investimentos realizados para qualificação profissional na área,<br />

para valorização das práticas e cenários de prática na saúde e consolidação<br />

do SUS. Reitera-se que essa qualificação só é possível se amparada na<br />

parceria entre instituições governamentais e universidades impactando na<br />

forma como a política de saúde é ensinada nas universidades e conduzida<br />

pelos gestores e profissionais nos municípios e estados do Brasil.<br />

Nessa perspectiva, em 2004, o Ministério da Saúde reiterava,<br />

no documento sobre a Política de Educação e Desenvolvimento para o<br />

SUS: caminhos para a Educação Permanente em Saúde, a importância<br />

da “criação e ampliação de programas de <strong>residência</strong> em saúde da<br />

família, <strong>residência</strong>s integradas em saúde e a redistribuição ou ampliação<br />

das bolsas de <strong>residência</strong> entre as áreas, profissões e especialidades<br />

importantes para a implementação do SUS” (BRASIL, 2004, p. 26).<br />

Antecipando essa necessidade, o Rio Grande do Sul, já na década de<br />

1970 criou a <strong>residência</strong> <strong>multiprofissional</strong> no Centro de Saúde-Escola<br />

Murialdo e, na década de 1980, a <strong>residência</strong> em saúde mental que<br />

funciona junto ao Hospital Psiquiátrico São Pedro/RS, formação que<br />

atualmente é denominada Residência Integrada em Saúde/RIS/SES<br />

e está composta por quatro ênfases (Saúde Mental Coletiva, Atenção<br />

Básica, Dermatologia Sanitária e Pneumologia Sanitária).<br />

A experiência foi seguida pelo Grupo Hospitalar Conceição,<br />

PUCRS e Hospital de Clínicas de Porto Alegre (RS) os quais criaram<br />

as suas <strong>residência</strong>s multiprofissionais e atualmente esses programas<br />

oferecem, anualmente, “um total de 159 vagas para o ingresso de<br />

diferentes profissionais de saúde” (VARGAS, 2011, p. 91), do total<br />

dessas vagas estima-se que 22 são para Assistentes Sociais (VARGAS,<br />

2011), configurando um percentual de aproximadamente 15%.<br />

A implementação da busca dessa modalidade de formação<br />

pelos assistentes sociais e a inserção do <strong>Serviço</strong> Social na <strong>residência</strong>


<strong>multiprofissional</strong> é motivo de atenção pela Associação Brasileira de<br />

Ensino e Pesquisa em <strong>Serviço</strong> Social/ABEPSS entidade civil, de natureza<br />

político-científica de âmbito nacional, de direito privado, sem fins<br />

lucrativos que propõe e coordena a política de formação profissional na<br />

área de <strong>Serviço</strong> Social articulando a <strong>graduação</strong> com a <strong>pós</strong>-<strong>graduação</strong> e que<br />

tem como preocupação o fortalecimento de uma concepção de formação<br />

profissional integradora. Por essa razão, a modalidade de formação da<br />

<strong>residência</strong> <strong>multiprofissional</strong> tem sido digna do olhar atento dos órgãos<br />

representativos da categoria profissional dos assistentes sociais e já foi<br />

entendida como uma formação especializada e focada apenas na realidade<br />

de saúde, portanto, limitada e/ou depositária do temor quanto à diluição<br />

das competências e atribuições de cada profissional.<br />

Essas preocupações estão presentes no documento intitulado<br />

Parâmetros para Atuação dos Assistentes Sociais na Área da Saúde,<br />

de março/2009, o qual preconiza, no item 3.2.6. Ações de Assessoria,<br />

Qualificação e Formação Profissional, “a participação na formação<br />

profissional através da criação de campo de estágio, supervisão de<br />

estagiários, bem como a criação e/ou participação nos programas de<br />

<strong>residência</strong> <strong>multiprofissional</strong> e/ou uniprofissional” (p. 34), reiterando<br />

que essas atividades devem ser articuladas com as unidades de<br />

formação acadêmicas. O mesmo documento discrimina as ações<br />

a serem desenvolvidas e entre elas que o Assistente Social deve<br />

“participar ativamente dos programas de <strong>residência</strong>, desenvolvendo<br />

ações de preceptoria, coordenação, assessoria ou tutoria, contribuindo<br />

para qualificação profissional da equipe de saúde e dos assistentes<br />

sociais, em particular” (p. 35). Quanto ao trabalho em equipe<br />

destaca-se que a interdisciplinaridade é colocada como o princípio<br />

fundamental na modalidade de formação em <strong>residência</strong> que tem no<br />

trabalho coletivo o seu compromisso.<br />

A produção aqui disponibilizada apresenta artigos elaborados a<br />

partir de dissertações e teses de assistentes sociais que, a<strong>pós</strong> realizarem<br />

formação em <strong>residência</strong> <strong>multiprofissional</strong>, levaram suas discussões e<br />

suas experiências em saúde para maior adensamento na formação em<br />

nível de mestrado e doutorado no Programa de Pós-Graduação em<br />

<strong>Serviço</strong> Social da PUCRS. O objetivo é publicizar e compartilhar o<br />

resultado de pesquisas em nível de mestrado e doutorado que abordam<br />

experiências oriundas de programas de <strong>residência</strong> <strong>multiprofissional</strong> em<br />

INTRODUÇÃO<br />

11


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

12<br />

saúde <strong>social</strong>izando a riqueza das possibilidades de investigação que<br />

essa convergência de área proporciona.<br />

A primeira parte é dedicada à relação do <strong>Serviço</strong> Social com<br />

a formação em nível de <strong>residência</strong> <strong>multiprofissional</strong>, são três artigos<br />

que abordam o exercício profissional do assistente <strong>social</strong>, a inserção<br />

do assistente <strong>social</strong> na <strong>residência</strong> e a relação do <strong>Serviço</strong> Social e da<br />

Educação na Saúde. Problematiza-se a contribuição deste profissional<br />

tanto para a manutenção de um modelo de saúde superado como para a<br />

construção de um modelo em consonância com a Reforma Sanitária e<br />

para consolidação do SUS.<br />

A segunda parte apresenta cinco artigos sendo três sobre<br />

experiências em saúde mental problematizando as conquistas da reforma<br />

psiquiátrica, o tratamento domiciliar de dependentes químicos e a<br />

atenção em saúde mental. Sem dúvida, são exercícios que adentram “os<br />

resistentes muros dos hospitais psiquiátricos e seus saberes instituídos”<br />

para, assim, “começar a quebrar as correntes e abrir as portas para um<br />

novo modelo de atenção à saúde mental” (GIOVENARDI, 2010, p. 115).<br />

Os muros a serem vencidos não são apenas dos hospitais psiquiátricos,<br />

mas também de práticas profissionais superadas, preconceituosas, e<br />

discursos que se amparam em um projeto de sociedade que não considera<br />

as conquistas da Reforma Sanitária. Os outros dois artigos abordam<br />

a dramaticidade das vidas de famílias em situação de vulnerabilidade<br />

e seus acordos de sobrevivência e a experiência de adolescentes que<br />

vivem e convivem com a AIDS desde o primeiro minuto de suas vidas,<br />

ou mesmo antes de nascer.<br />

São discussões e experiências riquíssimas todas amparadas e<br />

sustentadas por um mesmo horizonte: o compromisso com o Projeto<br />

Ético Político profissional do assistente <strong>social</strong>. São relatos plenos<br />

de possibilidades, não são planos e nem projetos, são antes de tudo<br />

realidades e têm como objetivo <strong>social</strong>izar experiências de formação<br />

na <strong>residência</strong> <strong>multiprofissional</strong> adensadas no mestrado ou doutorado,<br />

portanto, inquestionáveis quanto ao rigor com que foram elaborados.<br />

Espera-se contribuir para a consolidação e ampliação da<br />

inserção do assistente <strong>social</strong> na modalidade de formação em <strong>residência</strong><br />

<strong>multiprofissional</strong> com seguimento em nível de <strong>pós</strong>-<strong>graduação</strong> stricto<br />

sensu, qualificando cada vez mais a formação profissional.


PARTE I<br />

SABERES CONSTRUÍDOS<br />

X<br />

SABERES INSTITUÍDOS:<br />

A formação profissional em movimento


EXERCÍCIO PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL NA<br />

ATENÇÃO PRIMÁRIA EM SAÚDE<br />

Entre o ideal e o real na atenção primária em saúde<br />

Marisa Camargo<br />

Maria Isabel Barros Bellini<br />

O interesse pela temática do exercício profissional do assistente<br />

<strong>social</strong> na atenção primária em saúde teve sua gênese no processo de<br />

formação em Atenção Básica em Saúde Coletiva através do Programa<br />

de Residência Integrada em Saúde (RIS), ofertado anualmente pela<br />

Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul (ESP) na capital do<br />

estado, Porto Alegre. Essa formação em nível de <strong>pós</strong>-<strong>graduação</strong> lato<br />

sensu com ênfase na díade ensino-serviço possibilitou a inserção em<br />

equipes multidisciplinares de unidades básicas e, em menor proporção,<br />

de unidades secundárias do Sistema Único de Saúde (SUS), compostas<br />

por categorias profissionais de saúde de nível superior e técnico, na<br />

condição de residente de <strong>Serviço</strong> Social, no período de 2005 a 2007.<br />

Um conjunto de contradições que perpassavam a realidade<br />

vivenciada nas unidades de saúde campo do ensino em serviço da<br />

RIS pertencentes ao Centro de Saúde-Escola Murialdo (CSEM),<br />

instituição pioneira na criação da Residência em Medicina Comunitária<br />

no Brasil, suscitou, a priori, o interesse pela temática do processo<br />

de trabalho do qual os assistentes sociais eram partícipes no âmbito<br />

das equipes multidisciplinares de saúde. Era preliminar, dentre as<br />

contradições evidenciadas, o hiato entre o atendimento considerado<br />

ideal às necessidades sociais de saúde e o atendimento real ofertado nas<br />

unidades do SUS.<br />

Por um lado, integrava-se um processo de trabalho multidisciplinar<br />

em que, apesar das dificuldades institucionais de toda ordem para a<br />

efetivação da RIS, essa modalidade de ensino em serviço apresentava-se<br />

como potente estratégia de formação de recursos humanos qualificados<br />

para atuar no SUS com base em uma proposta de caráter educativo e<br />

político de ensino em serviço, com vistas à atenção integral, de caráter<br />

interdisciplinar, ao privilégio da articulação intersetorial e fortalecimento


dos princípios da atenção primária em saúde. Por outro lado, a realidade<br />

do SUS não garantia a absorção dos profissionais assistentes sociais no<br />

espaço sócio-ocupacional da atenção básica, principal campo de inserção<br />

dos residentes em Atenção Básica em Saúde Coletiva.<br />

Sob essa lógica, ainda que o assistente <strong>social</strong> egresso da RIS<br />

se constituísse em recurso humano qualificado para atuar no SUS, sua<br />

inclusão em equipes de atenção básica dependeria do interesse dos<br />

gestores municipais. Paradoxalmente, percebia-se a existência de um<br />

aspecto nuclear entre a saúde coletiva e o exercício profissional do<br />

assistente <strong>social</strong>, o que se convencionou denominar de convergência<br />

entre o objeto de atenção da saúde coletiva e o objeto de trabalho do<br />

assistente <strong>social</strong> (CAMARGO, 2009). A saúde coletiva, entendida<br />

como o conjunto de práticas em nível econômico, político, ideológico<br />

e técnico, toma como objeto as necessidades sociais de saúde (PAIM,<br />

ALMEIDA FILHO, 1998), o que se aproxima de maneira estrita com<br />

a forma sob a qual as expressões da questão <strong>social</strong>, objeto de trabalho<br />

do assistente <strong>social</strong>, emergem no âmbito da saúde. As necessidades<br />

de saúde são decorrentes das formas como os grupos se inserem na<br />

reprodução <strong>social</strong> (CAMPOS, SOARES, 2003), o que demanda<br />

compreender a saúde a partir de uma concepção ampliada e situá-la<br />

para além do espaço da produção <strong>social</strong>.<br />

O contexto vivenciado apontava para o insuficiente volume<br />

de informações acessadas acerca das particularidades do trabalho do<br />

assistente <strong>social</strong>, na busca por constituir respostas às necessidades<br />

sociais de saúde às quais aquele nível de atenção se voltava. A inquietude<br />

profissional em relação à explicitação dessas particularidades, tendo em<br />

vista ratificarem a coerência e necessidade de inserção do assistente<br />

<strong>social</strong> nas equipes de atenção básica do SUS, foi canalizada para o curso<br />

de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em <strong>Serviço</strong> Social (PPGSS)<br />

da Faculdade de <strong>Serviço</strong> Social (FSS), da Pontifícia Universidade<br />

Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), cujo ingresso ocorreu no ano<br />

de 2007. A imersão na revisão teórica da temática e o estabelecimento de<br />

um esquema metodológico das questões norteadoras e dos respectivos<br />

objetivos permitiram importantes interpretações sobre o processo de<br />

EXERCÍCIO PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL...<br />

15


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

16<br />

ensino em serviço da RIS e, consequentemente, das configurações do<br />

processo de trabalho em que participa o assistente <strong>social</strong> na atenção<br />

básica em saúde, constituindo-se em tema de pesquisa.<br />

A partir de uma pesquisa qualitativa, com caráter exploratório<br />

e descritivo, que fundamentou a dissertação de Mestrado em <strong>Serviço</strong><br />

Social, defendida no ano de 2009, desvendaram-se as configurações<br />

do processo de trabalho em que participa o assistente <strong>social</strong> na<br />

saúde coletiva, no espaço sócio-ocupacional da atenção básica do<br />

SUS, tendo como lócus o município de Porto Alegre, no estado do<br />

Rio Grande do Sul (RS). 11 Cabe registrar que, ainda no processo<br />

de seleção dos participantes da pesquisa – assistentes sociais que<br />

trabalharam em unidades de atenção básica do SUS durante o ano<br />

de 2007 –, não foram localizados profissionais na ESF, tampouco as<br />

informações sobre a inserção destes nas unidades de atenção básica<br />

estavam corretas e atualizadas.<br />

A grande maioria dos profissionais constantes como<br />

trabalhadores de unidades básicas de saúde a partir dos subsídios oficiais<br />

da Coordenadoria Geral de Atenção Básica à Saúde/CGRABS, órgão<br />

da Secretaria Municipal de Saúde/SMS, era na realidade proveniente<br />

de unidades de outros níveis de atenção no âmbito do SUS. Em virtude<br />

disso, dos 75 assistentes sociais identificados inicialmente, somente<br />

12, isto é, 16% realmente trabalharam em unidades de atenção básica<br />

do SUS. Destes, dois recusaram-se a participar da pesquisa; um não<br />

obteve aval do coordenador da unidade de saúde para participar, sob<br />

a alegação de evitar prejuízos ao atendimento dos usuários do <strong>Serviço</strong><br />

Social; e um foi excluído por trabalhar na gestão de uma unidade de<br />

média complexidade (CAMARGO, 2009).<br />

Em relação aos resultados encontrados, destaca-se que o tempo<br />

de inserção dos assistentes sociais nas unidades básicas de saúde<br />

apresentou variação de seis a 26 anos. No que diz respeito à qualidade<br />

dos serviços prestados, essa característica foi considerada positiva,<br />

à medida que o vínculo entre profissional e usuário contribui na<br />

qualificação da atenção em saúde e do modelo de atenção. Do ponto<br />

de vista das condições de trabalho e inserção do assistente <strong>social</strong> em<br />

1 Dissertação de Mestrado em <strong>Serviço</strong> Social apresentada ao Programa de Pós-Graduação em <strong>Serviço</strong><br />

Social (PPGSS) da Faculdade de <strong>Serviço</strong> Social (FSS), da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande<br />

do Sul (PUCRS), desenvolvida com o auxílio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e<br />

Tecnológico (CNPq) através da concessão de bolsa integral, defendida no ano de 2009, aprovada com voto<br />

de louvor e orientada pela Profa. Dra. Ana Lúcia Suárez Maciel.


unidades de atenção básica do SUS, essa mesma característica associase<br />

à transferência de profissionais a unidades de atenção secundária, a<br />

não realização de concursos públicos ou outras formas de contratação<br />

profissional pelas últimas gestões municipais e, ao crescente desmonte<br />

desse espaço sócio-ocupacional (CAMARGO, 2009).<br />

A redução do contingente profissional inserido em unidades<br />

básicas do SUS na realidade estudada, remonta à década de 90 do<br />

século XX, contexto de adesão do Estado aos pressupostos neoliberais<br />

enquanto proposta teórica inspiradora das políticas econômicas e<br />

sociais. Permeada por políticas de minimização do Estado interventor<br />

no campo <strong>social</strong>, amplia-se a adoção do Programa Saúde da Família<br />

(PSF) e da atenção básica como estratégias de organização do<br />

primeiro nível de atenção no âmbito do SUS, em um contexto de<br />

intensificação da focalização e da privatização da saúde, distanciandose<br />

progressivamente dos cuidados primários à população, privilegiados<br />

na Declaração de Alma-Ata.<br />

Em meio à polissemia de concepções adotadas nos diferentes<br />

países para referenciar o primeiro nível de atenção em saúde das<br />

populações, nos anos iniciais da primeira década do século XXI,<br />

as principais agências mundiais de saúde mobilizaram as Américas<br />

em prol da renovação da atenção primária em saúde. Em face das<br />

recentes mudanças desencadeadas em direção à renovação do nível<br />

primário de atenção à saúde, em nível continental, com repercussões<br />

locais para a saúde pública, bem como a necessidade de dar<br />

continuidade ao estudo empreendido no Mestrado em <strong>Serviço</strong> Social,<br />

o presente ensaio é produto das primeiras aproximações teóricas<br />

com as categorias temáticas orientadoras da proposta de pesquisa<br />

da tese de doutoramento em <strong>Serviço</strong> Social pelo PPGSS da FSS,<br />

da PUCRS. Nesse ínterim, apresentam-se os resultados da revisão<br />

do estado da arte sobre o tema de pesquisa: “exercício profissional<br />

do assistente <strong>social</strong> na atenção primária em saúde”, realizada em<br />

duas importantes fontes de informações secundárias que armazenam<br />

produções teóricas em <strong>Serviço</strong> Social.<br />

Essa proposta tem como objetivo identificar o direcionamento<br />

dado às produções da área sobre o exercício profissional do assistente<br />

<strong>social</strong> na renovação da atenção primária em saúde. Ampliar a leitura<br />

da realidade de trabalho do assistente <strong>social</strong> pressupõe enriquecer<br />

EXERCÍCIO PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL...<br />

17


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

18<br />

o tratamento teórico do exercício profissional considerado em suas<br />

múltiplas determinações e mediações, o que implica “caminhar para<br />

uma abordagem na óptica de totalidade da mesma, ampliando o foco<br />

de análise para o trabalho em seu processo de realização no mercado de<br />

trabalho, em condições e relações sociais determinadas” (IAMAMOTO,<br />

2008, p. 258). O exercício profissional extrapola o foco centrado no<br />

trabalho do assistente <strong>social</strong>, visto que esse se restringe a um dos<br />

elementos do exercício profissional.<br />

Saúde no Século XXI: Renovação da Atenção Primária em Saúde<br />

Por ocasião da Conferência Internacional de Alma-Ata, realizada<br />

no ano de 1978, sob a promoção da Organização Mundial da Saúde<br />

(OMS) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), os<br />

cuidados primários de saúde foram considerados foco principal do<br />

sistema de saúde dos países, e parte integrante do desenvolvimento<br />

global comunitário. Por sua vez, a Atenção Primária em Saúde (APS)<br />

foi definida como a principal estratégia para a expansão das coberturas<br />

dos serviços para toda a população e diminuição das taxas de morbidade<br />

e mortalidade. No conteúdo da Declaração de Alma-Ata, produto desse<br />

processo, consta a preocupação com a promoção da saúde de todos os<br />

povos do mundo, destacando-se a participação comunitária como um dos<br />

princípios fundamentais dos cuidados primários de saúde (OMS, 1978).<br />

Nesse contexto, a saúde foi considerada um direito humano<br />

fundamental e alcançar o seu mais alto nível tornou-se a mais importante<br />

meta <strong>social</strong> mundial atrelando-se a sua efetivação, para além do setor<br />

saúde, à ação coletiva de setores sociais e econômicos. Para tanto,<br />

aprovaram-se inúmeras resoluções, dentre as quais, que a Organização<br />

Pan-Americana de Saúde (OPAS) e o UNICEF seguissem apoiando<br />

estratégias nacionais de cuidados básicos de saúde, cujas recomendações<br />

foram aprovadas na Assembleia Mundial de Saúde no ano seguinte,<br />

1979, e acatadas pelo governo brasileiro, fazendo referência à relação<br />

entre saúde e desenvolvimento (NUNES, 1994; CAMARGO, 2009).<br />

Na década de 90 do século XX, o Banco Mundial assinalou<br />

a necessidade de os países das Américas lutarem contra a pobreza e<br />

investir em saúde, influenciando na criação de um pacote de serviços<br />

de atenção primária. Em reunião para dirigentes mundiais, promovida


pela Organização das Nações Unidas (ONU), no ano 2000, chefes<br />

de Estado e de governo de diversos países, dentre os quais o Brasil,<br />

aprovaram os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM),<br />

quais sejam: 1) erradicar a extrema pobreza e a fome; 2) alcançar o<br />

ensino básico universal; 3) promover a igualdade entre os sexos e a<br />

autonomia das mulheres; 4) reduzir a mortalidade infantil; 5) melhorar<br />

a saúde materna; 6) combater o HIV/AIDS, a malária e outras doenças;<br />

7) garantir a sustentabilidade ambiental; 8) desenvolver uma parceria<br />

global para o desenvolvimento (ONU, 2000).<br />

Durante a primeira década do século XXI pode-se constatar um<br />

crescente interesse em renovar a APS, em nível mundial. Em 2004,<br />

a OPAS e a OMS convocaram os estados membros a adotarem uma<br />

série de recomendações em prol do fortalecimento da atenção primária.<br />

Criou-se então um Grupo de Trabalho sobre APS, responsável pela<br />

revisão de literatura dos países e elaboração de diversos documentos<br />

que foram apresentados e discutidos em fóruns virtuais e em sessões<br />

plenárias em reunião na Costa Rica (OPAS/OMS, 2005).<br />

No ano seguinte, em 2005, um documento provisório foi<br />

enviado aos países, com sugestões para conduzir o processo nacional<br />

de consulta sobre a APS, bem como de diretrizes específicas para a<br />

análise. O produto desse processo foi o lançamento do documento<br />

de posicionamento da OPAS e da OMS, denominado “Renovação da<br />

Atenção Primária em Saúde/APS nas Américas” (OPAS/OMS, 2005).<br />

Dentre os motivos para adotar uma abordagem renovada da<br />

APS, são destacados no documento supracitado: o surgimento de novos<br />

desafios epidemiológicos; a necessidade de corrigir os pontos fracos e<br />

as inconsistências presentes em algumas das abordagens amplamente<br />

divergentes da APS; o desenvolvimento de novas ferramentas e o<br />

conhecimento de melhores práticas que a APS pode capitalizar de forma<br />

a serem mais eficazes. Além disso, há um crescente reconhecimento de<br />

que a APS é uma ferramenta para fortalecer a capacidade da sociedade<br />

de reduzir as iniquidades na área da saúde (OPAS/OMS, 2005).<br />

Nessa perspectiva, a abordagem renovada da APS é vista como<br />

condição essencial para alcançar os compromissos da Declaração do<br />

Milênio, abordando os determinantes sociais e alcançando o nível mais<br />

EXERCÍCIO PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL...<br />

19


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

20<br />

elevado de saúde para todos. Contudo, a atenção primária seletiva, isto<br />

é, aquela cujas atividades são voltadas às populações pobres, tem sido<br />

a realidade de muitos países, ao passo que um sistema de saúde com<br />

base na APS deveria ter como princípios: receptividade, orientação<br />

de qualidade, responsabilização governamental, justiça <strong>social</strong>,<br />

sustentabilidade, participação e intersetorialidade. O mesmo deve ser<br />

composto por um conjunto central de elementos funcionais e estruturais<br />

garantidores de cobertura e acesso universal a serviços aceitáveis à<br />

população, que aumentem a equidade (OPAS/OMS, 2005).<br />

Em nível nacional, há algumas medidas aprovadas recentemente<br />

pelo Ministério da Saúde (MS) brasileiro que sinalizam a polivalência<br />

de concepções adotadas para referir-se a estratégias e serviços<br />

desenvolvidos no primeiro nível de atenção no âmbito do SUS. Merece<br />

destaque a aprovação da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB),<br />

no ano de 2006, em cujo cenário o PSF, com composição de equipe<br />

mínima médico assistencial, foi considerado a estratégia prioritária para<br />

a sua organização no âmbito do SUS, em território nacional (BRASIL,<br />

2006; CAMARGO, 2009). No documento preliminar divulgado pelo<br />

MS três anos mais tarde, em 2009, tratando sobre as diretrizes do<br />

Núcleo de Apoio a Saúde da Família (NASF), a Estratégia de Saúde<br />

da Família (ESF) foi caracterizada como “vertente brasileira da APS<br />

[Atenção Primária em Saúde]” (BRASIL, 2009, p. 07).<br />

Em 2008, aprovou-se a composição de equipes multidisciplinares<br />

matriciais através dos NASF, com indicação da inclusão do profissional<br />

assistente <strong>social</strong>. Nesse contexto, ficou instituído que o NASF deve atuar:<br />

Dentro de algumas diretrizes relativas à APS [Atenção<br />

Primária em Saúde], a saber: ação interdisciplinar e<br />

intersetorial; educação permanente em saúde dos profissionais<br />

e da população; desenvolvimento da noção de território;<br />

integralidade, participação <strong>social</strong>, educação popular; promoção<br />

da saúde e humanização (BRASIL, 2009, p. 07).<br />

Para verificar a prevalência da utilização das concepções<br />

de atenção primária, atenção básica e programa saúde da família na<br />

produção teórica brasileira contemporânea, Gil (2006) analisou os<br />

principais documentos normativos do SUS, publicados pelo MS, no<br />

período de 1990 a 2005. Também, revisou a base de dados da Biblioteca<br />

Virtual em Saúde (BVS/BIREME), a partir dos textos completos


apresentados na Scielo. 22 A análise revelou que no período anterior à<br />

criação do SUS “a atenção primária à saúde representava um marco<br />

referencial para a organização dos serviços numa lógica que tinha como<br />

proposta ser uma das principais alternativas de mudança do modelo<br />

assistencial” (GIL, 2006, p. 1171 apud CAMARGO, 2009, p. 70).<br />

Enquanto a atenção primária apresenta difusão internacional, a<br />

atenção básica é uma expressão tipicamente brasileira utilizada para<br />

definir uma forma própria de organização do primeiro nível de atenção<br />

no âmbito da política pública de saúde. Com o advento do SUS, tem-se<br />

tornado cada vez mais frequente a utilização da atenção básica como<br />

referência aos serviços municipais, concepção que assim como a atenção<br />

primária sofreu forte influência do Banco Mundial na organização das<br />

ações (GIL, 2006). A adoção da concepção de atenção básica surgiu<br />

permeada por políticas de redução do papel do Estado caracterizadoras<br />

da década de 90 do século XX, diante da intensificação do processo de<br />

focalização e privatização da saúde (DIAS, 2007).<br />

À parte ou mesclada a essas novas medidas do Estado em<br />

relação à saúde pública, tem-se observado a ampliação dos serviços<br />

de atenção especializada no âmbito privado. Trata-se de um mesmo<br />

cenário que, em suma, condensa avanços e retrocessos no que diz<br />

respeito à efetivação do direito <strong>social</strong> à saúde sob a responsabilidade do<br />

Estado. Na prática, a viabilização de novas diretrizes tem-se mostrado<br />

uma tarefa extremamente difícil devido ao comprometimento histórico<br />

do Estado com o modelo de atenção em saúde médico assistencial<br />

privatista engendrado.<br />

Exercício profissional do assistente <strong>social</strong> no contexto de<br />

renovação da atenção primária em saúde<br />

Ao discutir sobre práticas de atenção primária, mais<br />

especificamente sobre profissionais médicos, subespecialistas e<br />

profissionais não médicos, Starfield (2002) refere que existem três<br />

tipos de funções para esses últimos. O primeiro tipo desempenha<br />

função “suplementar” “[...] que amplia a eficiência do médico ao<br />

assumir parte das tarefas, geralmente aquelas que são de natureza<br />

2 Gil (2006) refere ter considerado essa base de dados pela acessibilidade e fluência que apresenta entre<br />

pesquisadores e estudiosos.<br />

EXERCÍCIO PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL...<br />

21


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

22<br />

técnica e, comumente, sob a orientação do médico” (STARFIELD,<br />

2002, p. 162). No segundo tipo, os profissionais não médicos atuam<br />

como “substitutos”, prestando serviços geralmente prestados por<br />

médicos (STARFIELD, 2002). No terceiro tipo, também de caráter<br />

“complementar”, os profissionais não médicos “ampliam a efetividade<br />

dos médicos fazendo coisas que os médicos não fazem, fazem mal, ou<br />

fazem relutantemente” (STARFIELD, 2002, p. 162).<br />

A<strong>pós</strong> enumerar estudos sobre os tipos de profissionais que<br />

constituem as experiências de atenção primária em diversos países,<br />

Starfield (2002) também observa que “nenhum estudo examinou o<br />

potencial de profissionais não médicos para realizar ou contribuir com as<br />

funções da atenção primária” (STARFIELD, 2002, p. 163). Contudo, o<br />

investimento em recursos humanos é enfatizado pela OPAS e OMS como<br />

uma área essencial e uma das barreiras à implementação da APS, desde a<br />

Conferência Internacional de Alma-Ata (OPAS/OMS, 2005), uma vez que<br />

a qualidade dos serviços depende dos profissionais que neles trabalham.<br />

Nessa perspectiva, convém desvendar como vem se efetivando<br />

o exercício profissional da categoria dos assistentes sociais no<br />

contexto de renovação da APS. Esta proposição parte do pressuposto<br />

de que o assistente <strong>social</strong> é o profissional privilegiado para atuar nos<br />

determinantes sociais de saúde, produto da ação humana, responsáveis<br />

pelas iniquidades em saúde:<br />

Os Determinantes Sociais da Saúde [DSS] incluem as<br />

condições mais gerais socioeconômicas, culturais e ambientais<br />

de uma sociedade, e relacionam-se com as condições de vida<br />

e trabalho de seus membros, como habitação, saneamento,<br />

ambiente de trabalho, serviços de saúde e educação, incluindo<br />

também a trama de redes sociais e comunitárias (COMISSÃO<br />

NACIONAL SOBRE OS DETERMINANTES SOCIAIS DA<br />

SAÚDE, 2006).<br />

Para revisar o estado da arte sobre o exercício profissional do<br />

assistente <strong>social</strong> no contexto de renovação da atenção primária do SUS<br />

brasileiro, tema de pesquisa da tese de doutoramento em <strong>Serviço</strong> Social<br />

pelo PPGSS da FSS, da PUCRS, realizou-se um estudo exploratório da<br />

produção teórica da profissão acerca da temática. A coleta de informações<br />

ocorreu em duas fontes secundárias: 1) resumos de dissertações e teses no<br />

portal de busca da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível


Superior (CAPES), no período de 2005 a 2009; e 2) resumos das produções<br />

publicadas nos anais do X e XI Encontros Nacionais de Pesquisadores<br />

em <strong>Serviço</strong> Social (ENPESS), promovidos pela Associação Brasileira de<br />

Ensino e Pesquisa em <strong>Serviço</strong> Social (ABEPSS) e pelo Conselho Federal<br />

de <strong>Serviço</strong> Social (CFESS), nos anos de 2006 e 2008, respectivamente.<br />

O marco referencial adotado para delimitar o início do processo<br />

de coleta de informações foi o ano de 2005, por se tratar da ocasião de<br />

lançamento do documento “Renovação da Atenção Primária em Saúde/<br />

APS nas Américas”, explicitado anteriormente. Para a conclusão, optouse<br />

pelo ano de 2009 para a CAPES, e o ano de 2008 para o ENPESS, por<br />

corresponderem às suas edições mais atuais. Privilegiou-se a análise de<br />

conteúdo de corte temático (BARDIN, 1977) dos resumos das produções<br />

de ambas as fontes secundárias, sendo coletadas informações referentes<br />

às categorias temáticas: 1) atenção primária em saúde; 2) atenção básica<br />

em saúde; 3) saúde da família 4); assistente <strong>social</strong> e atenção primária; 5)<br />

assistente <strong>social</strong> e atenção básica; 6) assistente <strong>social</strong> e saúde da família.<br />

O expressivo número de dissertações e teses encontradas no<br />

portal de busca da CAPES, sobre a expressão exata atenção primária<br />

em saúde (2005-2009), demonstra que o estudo dessa temática no<br />

âmbito das diversas áreas de conhecimento tem aumentado anualmente,<br />

conforme se pode observar no Quadro 1. Entretanto, com essa<br />

característica de busca, não foram localizadas produções que tratassem<br />

do exercício profissional do assistente <strong>social</strong> na atenção primária em<br />

saúde, ao proceder-se a leitura dos resumos.<br />

Quadro 1 – Expressões exatas de atenção primária em saúde, no período<br />

de 2005 a 2009.<br />

Ano Profissionalizante Dissertação Tese Subtotal<br />

2005 01 04 04 09<br />

2006 01 07 04 12<br />

2007 01 10 02 13<br />

2008 02 10 04 16<br />

2009 05 22 05 32<br />

Total 10 53 19 82<br />

Fonte: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior<br />

(CAPES, 2010).<br />

EXERCÍCIO PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL...<br />

23


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

24<br />

Na opção de busca por todas as palavras sobre assistente <strong>social</strong><br />

e atenção primária (2005 a 2009), emergiram duas produções, das quais<br />

uma apresentou relação com o tema de pesquisa. Tratava-se de uma<br />

dissertação de Mestrado em <strong>Serviço</strong> Social defendida na Universidade<br />

Federal de Juiz de Fora (UFJF, 2009), baseada em pesquisa qualitativa<br />

sobre o trabalho do assistente <strong>social</strong> na atenção primária à saúde<br />

em Juiz de Fora, estado de Minas Gerais (MG), no que se refere<br />

à sua organização, desenvolvimento, objeto, objetivos, instrumentos<br />

e condições de trabalho. A outra produção foi excluída por restringir<br />

a citação do assistente <strong>social</strong> a profissional integrante dos recursos<br />

humanos em pesquisa sobre o sistema de saúde mental no contexto de<br />

Reforma Psiquiátrica no município de Santos, estado de São Paulo (SP).<br />

Na análise dos cento e 34 resumos das produções encontradas<br />

sobre a expressão exata atenção básica em saúde (2005-2009),<br />

identificou-se três dissertações relacionadas ao tema pesquisado.<br />

A primeira tratava-se de uma dissertação de Mestrado em <strong>Serviço</strong><br />

Social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ (2006),<br />

que utilizou um estudo de caso com enfoque qualitativo para analisar<br />

o trabalho do assistente <strong>social</strong> no PSF de Ipatinga (MG). A segunda<br />

constituía-se uma dissertação de Mestrado em Saúde na Comunidade<br />

na Universidade de São Paulo/Ribeirão Preto/USP (2008), baseada<br />

em estudo comparativo sobre os tipos de intervenções apresentadas<br />

ao <strong>Serviço</strong> Social pelos usuários dos modelos de prestação da atenção<br />

básica no Distrito de Saúde Oeste de Ribeirão Preto (SP). A terceira<br />

referia-se à dissertação de Mestrado em <strong>Serviço</strong> Social na PUCRS<br />

(2009), baseada em estudo exploratório sobre o processo de trabalho<br />

em que participa o assistente <strong>social</strong> na saúde coletiva, no espaço<br />

sócio-ocupacional da atenção básica em Porto Alegre (RS).<br />

Na opção de busca por todas as palavras sobre assistente <strong>social</strong><br />

e atenção básica (2005-2009), foram listadas 14 produções. Dessas,<br />

a metade, ou seja, sete foram excluídas por trazerem o assistente<br />

<strong>social</strong> em seus resumos, sem, no entanto, referirem elementos do seu<br />

exercício profissional na atenção primária em saúde. Quatro produções<br />

encontradas em buscas anteriores e incluídas nas produções referentes<br />

ao tema de pesquisa “exercício profissional do assistente <strong>social</strong> na<br />

atenção primária em saúde”, reapareceram na opção de busca todas as<br />

palavras sobre assistente <strong>social</strong> e atenção básica (2005-2009).


Dentre as sete produções escolhidas, emergiram três novas.<br />

Essas foram incluídas na seleção sobre o tema de pesquisa. A primeira<br />

dissertação de Mestrado em <strong>Serviço</strong> Social na PUCRS baseava-se<br />

em pesquisa qualitativa sobre o processo de trabalho do assistente<br />

<strong>social</strong> no PSF da 6ª Coordenadoria Regional de Saúde, região<br />

norte do estado. A segunda, dissertação de Mestrado em <strong>Serviço</strong><br />

Social na Universidade Paulista Júlio Mesquita Filho/Franca (SP),<br />

constituía-se em estudo quantitativo sobre o perfil da população<br />

portadora de Hipertensão Arterial Sistêmica (HAS) atendida nas<br />

ESF de Franca. A terceira tratava-se de uma tese de Doutorado em<br />

<strong>Serviço</strong> Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo<br />

(PUCSP), objetivando: apreender as condições que favoreceram<br />

ou restringiram a implantação do PSF em Aracaju; refletir sobre<br />

a política de saúde construída nesse município; subsidiar o debate<br />

sobre a inclusão, enquanto política nacional, do assistente <strong>social</strong><br />

nas equipes de Saúde da Família e da condição do assistente <strong>social</strong><br />

enquanto trabalhador da saúde.<br />

Na opção de busca por todas as palavras sobre assistente<br />

<strong>social</strong> e saúde da família (2005-2009), foram listadas 29 produções.<br />

Com base na totalidade de resumos, 76%, isto é, 22 das 29 produções<br />

foram excluídas, por dedicarem-se à discussão da política de saúde; do<br />

trabalho em equipe; de concepções de usuários e profissionais sobre<br />

diversas temáticas; da atenção por áreas temáticas; outros níveis de<br />

atenção no âmbito do SUS. As demais sete produções sobre assistente<br />

<strong>social</strong> e saúde da família, foram incluídas na seleção sobre o tema<br />

pesquisado. Entretanto, seis dessas produções foram localizadas e<br />

incluídas em buscas anteriores. A produção ímpar tratava-se de uma tese<br />

de doutorado em <strong>Serviço</strong> Social pela PUCSP, sobre questões relativas à<br />

temática de subjetividade do trabalho.<br />

Do número total de dissertações e teses localizadas no portal<br />

de busca da CAPES, referentes ao período pesquisado (2005-2009),<br />

de acordo com as opções e expressões explicitadas, oito apresentaram<br />

alguma relação com o tema de pesquisa “exercício profissional do<br />

assistente <strong>social</strong> na atenção primária em saúde”. Cinco das oito<br />

produções listadas na busca pela expressão exata de atenção básica<br />

em saúde reapareceram na lista das expressões exatas sobre saúde<br />

da família, conforme indicado no Quadro 2. Essa informação ratifica<br />

EXERCÍCIO PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL...<br />

25


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

26<br />

a utilização generalizada da expressão PSF para identificar a atenção<br />

básica na atual conformação do SUS.<br />

Quadro 2 – Produções identificadas sobre o tema de pesquisa, no<br />

período de 2005 a 2009.<br />

Ano<br />

Atenção primária<br />

em saúde<br />

Atenção básica<br />

em saúde<br />

Saúde da Família<br />

(SF)<br />

Subtotal<br />

2005 00 00 01 (T) 01<br />

2006 00 01 (D) 01 (D) r3 01<br />

2007 00 01 (D) 01 (D) r 01<br />

2008 00 02 (D) 02 (D) r 02<br />

2009 01 (D) 01 (D) + 01 (T) 01 (T) r 03<br />

Total 01 Dissertação<br />

05 Dissertações<br />

e 01 Tese<br />

05 Dissertações e<br />

01 Tese<br />

08<br />

Fonte: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior<br />

(CAPES, 2010). 3<br />

De maneira semelhante, a produção listada na busca pela<br />

expressão exata de atenção primária em saúde se repetiu na busca<br />

pela expressão exata de saúde da família. Porém, o resumo desta<br />

produção não apresentou a mesma concepção das demais, visto que a<br />

metodologia da pesquisa utilizada pelo autor da produção contemplou<br />

serviços de atenção para além do PSF. Apenas uma produção sobre a<br />

expressão exata atenção básica em saúde não voltou a aparecer nas<br />

demais opções de busca realizadas.<br />

No que diz respeito à instituição de ensino onde foram<br />

apresentadas, seis das oito produções que demonstraram relação<br />

com o tema de pesquisa “exercício profissional do assistente <strong>social</strong><br />

na atenção primária em saúde”, isto é, 75% eram provenientes de<br />

Instituições de Ensino Superior (IES), localizadas na Região Sudeste<br />

do Brasil. Os outros 25% das produções provêm de universidades da<br />

Região Sul do País. Os núcleos temáticos e a frequência dos temas<br />

dessas produções apresentaram-se da seguinte maneira:<br />

1. Trabalho do assistente <strong>social</strong> na atenção primária em saúde<br />

[01]: a) organização, desenvolvimento, objeto, objetivos, instrumentos,<br />

condições de trabalho: 01.<br />

3 Informa repetição da produção.


2. Trabalho do assistente <strong>social</strong> na atenção básica em saúde<br />

[06]: a) prestação de serviços assistenciais: 01; b) manutenção do<br />

modelo de atenção em saúde médico privatista: 02; c) contribuição para<br />

a mudança do modelo de atenção em saúde, com ações inovadoras e<br />

críticas: 01; d) mediação entre o projeto ético-político profissional e os<br />

princípios orientadores do SUS: 01; e) complementaridade e subsídios<br />

à equipe multidisciplinar: 01; f) manutenção do modelo de atenção<br />

em saúde médico privatista: 02; g) atuação nas refrações da questão<br />

<strong>social</strong>, gestão, formulação e planejamento de políticas sociais: 01; h)<br />

levantamento de indicadores socioeconômicos da população usuária:<br />

01; i) elaboração de estratégias de intervenção: 01; j) participação no<br />

movimento de Reforma Sanitária: 01.<br />

3. Trabalho do assistente <strong>social</strong> na estratégia Saúde<br />

da Família [05]: a) prestação de serviços assistenciais: 01; b)<br />

manutenção do modelo de atenção em saúde médico privatista: 02;<br />

c) complementaridade e subsídios à equipe multidisciplinar: 01;<br />

d) atuação nas refrações da questão <strong>social</strong>, gestão, formulação e<br />

planejamento de políticas sociais: 01; e) levantamento de indicadores<br />

socioeconômicos da população usuária: 01; f) elaboração de estratégias<br />

de intervenção: 01; g) participação no movimento de Reforma<br />

Sanitária: 01; h) questões relativas à temática da subjetividade do<br />

trabalho (romantismo, família, religiosidade e política): 01.<br />

De acordo com o número total de produções publicadas nos<br />

anais do X e XI ENPESS, nessas duas edições do evento bianual<br />

foram aprovados e inscritos 1.050 trabalhos (ABEPSS/CFESS, 2006;<br />

ABEPSS/CFESS, 2008). Na análise dos resumos cuja produção<br />

continha título que demonstrava relação com o tema de pesquisa<br />

“exercício profissional do assistente <strong>social</strong> na atenção primária em<br />

saúde”, foram identificados 24 sobre as categorias temáticas: 1)<br />

atenção primária, 2) atenção básica e 3) saúde da família, conforme<br />

informações dispostas no Quadro 3.<br />

EXERCÍCIO PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL...<br />

27


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

28<br />

Quadro 3 – Produções sobre atenção primária, atenção básica e saúde<br />

da família por eixo temático, nos Encontros Nacionais de Pesquisadores<br />

em <strong>Serviço</strong> Social (ENPESS) (2006; 2008).<br />

Eixo temático X ENPESS<br />

2006<br />

XI ENPESS<br />

2008<br />

Subtotal<br />

1) Fundamentos do <strong>Serviço</strong> Social 01/48 00/54 01<br />

2) Formação profissional e o processo<br />

interventivo do <strong>Serviço</strong> Social<br />

04/57 00/56 04<br />

3) Questão <strong>social</strong> e trabalho 02/234 00/263 02<br />

4) Política <strong>social</strong> 09/143 08/195 17<br />

Total 16/482 08/568 24/1050<br />

Fonte: Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em <strong>Serviço</strong> Social<br />

(ABEPSS) e pelo Conselho Federal de <strong>Serviço</strong> Social (CFESS) (2006; 2008).<br />

O volume de produções sobre as categorias temáticas de atenção<br />

primária, atenção básica e saúde da família reduziu pela metade na edição<br />

de 2008, em relação à de 2006. A partir da análise dos 24 resumos das<br />

produções cujos títulos demonstraram relação com o tema pesquisado,<br />

observou-se que nem todas refletiam sobre ele. Somente oito, ou<br />

seja, 33% realmente tratavam de elementos relacionados ao tema de<br />

pesquisa, enfatizando um dos elementos do exercício profissional do<br />

assistente <strong>social</strong>: o trabalho.<br />

Sobressaiu o eixo de “política <strong>social</strong>” com quatro das oito<br />

produções, seguido do eixo de “formação profissional e o processo<br />

interventivo do <strong>Serviço</strong> Social” com três produções. O eixo “fundamentos<br />

do <strong>Serviço</strong> Social” apresentou uma produção. Submetidos à técnica<br />

de análise de conteúdo com recorte temático (BARDIN, 1977), foram<br />

identificados os núcleos temáticos e a frequência dos temas nos resumos<br />

das produções, apresentados no Quadro 4.


Tema<br />

Quadro 4 – Núcleos temáticos e frequência dos temas nas produções<br />

sobre <strong>Serviço</strong> Social e atenção primária, nos Encontros Nacionais de<br />

Pesquisadores em <strong>Serviço</strong> Social (ENPESS) (2006; 2008). 4<br />

X ENPESS<br />

2006<br />

XI ENPESS<br />

2008<br />

Subtotal<br />

1) Avaliação sobre a atuação do assistente <strong>social</strong> na<br />

estratégia Saúde da Família (usuários e/ou equipe<br />

<strong>multiprofissional</strong> de saúde)<br />

01 00 01<br />

2) A dimensão educativa do <strong>Serviço</strong> Social no Programa<br />

Saúde da Família (PSF) (educação em saúde)<br />

01 00 01<br />

3) Inserção do assistente <strong>social</strong> no Programa Saúde<br />

da Família (PSF)<br />

01 00 01<br />

4) <strong>Serviço</strong> Social na Residência Multiprofissional<br />

em Saúde da Família<br />

01 00 01<br />

5) O Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF)<br />

como possibilidade emergente para o trabalho do<br />

assistente <strong>social</strong><br />

00 01 01<br />

6) O trabalho do assistente <strong>social</strong> na atenção<br />

primária em saúde (dificuldades enfrentadas pela<br />

falta de recursos para atender as demandas)<br />

00 01 01<br />

7) Resumo e texto completo indisponível 024 00 02<br />

Total 06 02 08<br />

Fonte: Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em <strong>Serviço</strong> Social<br />

(ABEPSS) e pelo Conselho Federal de <strong>Serviço</strong> Social (CFESS) (2006; 2008).<br />

Das oito produções em destaque, apenas uma utilizava a<br />

concepção de atenção primária para caracterizar o nível de atenção<br />

em saúde. A maior parte dessas produções, isto é, 63% enfatizavam o<br />

trabalho do assistente <strong>social</strong> junto ao PSF. As outras duas produções<br />

não tinham resumos disponíveis. Nenhuma das IES de origem dos<br />

autores apresentou um volume de trabalhos significativamente superior<br />

às demais, visto que sete das oito produções eram provenientes de<br />

universidades distintas. No entanto, prevaleceram as universidades da<br />

Região Sudeste, seguida da Região Nordeste do Brasil, a exemplo das<br />

produções localizadas através do portal de busca da CAPES.<br />

4 Uma dessas produções tem título e autoria idêntica à produção localizada no portal de busca da<br />

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES, 2010).<br />

EXERCÍCIO PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL...<br />

29


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

30<br />

Considerações finais<br />

A partir da pesquisa realizada em duas fontes secundárias para<br />

a área de <strong>Serviço</strong> Social: portal de busca da CAPES e anais do X e XI<br />

Encontros Nacionais de Pesquisadores em <strong>Serviço</strong> Social, realizados<br />

nos anos de 2006 e 2008, respectivamente, localizaram-se 16 produções<br />

referentes ao período de 2005 a 2009, que apresentaram relação com o<br />

tema de pesquisa “exercício profissional do assistente <strong>social</strong> na atenção<br />

primária em saúde”. Cabe ressaltar que nenhuma dessas produções<br />

adotou como marco referencial de estudo o processo de renovação da<br />

APS nas Américas, proposto por organismos internacionais de saúde na<br />

primeira década do século XXI.<br />

Percebe-se, a partir da análise da totalidade de resumos dessas<br />

produções, que há o privilégio de um dos elementos do exercício<br />

profissional do assistente <strong>social</strong>, qual seja: o trabalho, tendo como foco<br />

a atividade do sujeito em ação. O desafio dessa perspectiva de análise<br />

é traduzi-la em “suas particulares inserções nas esferas de produção<br />

de bens e serviços [...] em suas múltiplas determinações e mediações,<br />

no âmbito da práxis <strong>social</strong>” (IAMAMOTO, 2008, p. 258). Ratifica-se<br />

que a grande maioria das produções enfatizou experiências específicas<br />

de inserção do assistente <strong>social</strong> em unidades da atenção básica ou<br />

ESF, tendo apenas uma delas ampliado a discussão para o conjunto de<br />

serviços correspondentes à atenção primária em saúde, contudo, ainda<br />

centrando-se na discussão da prática profissional.<br />

Em algumas das produções pesquisadas, destaca-se a<br />

insuficiência da ESF em garantir a promoção das mudanças<br />

pretendidas no modelo de atenção médico assistencial privatista,<br />

historicamente hegemônico no contexto da política de saúde<br />

brasileira. Em outras produções, e em contraposição às primeiras, a<br />

ESF é destacada como possibilidade de afirmação da atenção básica<br />

no SUS, e espaço sócio-ocupcional emergente para o profissional<br />

assistente <strong>social</strong>. Destarte, inserido no contexto contraditório de<br />

produção e reprodução <strong>social</strong> da saúde na ESF, o assistente <strong>social</strong><br />

efetiva seu trabalho em prol tanto da manutenção do modelo de<br />

atenção quanto contribuindo para a sua mudança, buscando mediar<br />

os princípios norteadores do projeto ético-político profissional e os<br />

princípios orientadores do SUS.


Nesse cenário contraditório, afirma-se a dimensão qualitativa do<br />

trabalho do assistente <strong>social</strong>: <strong>social</strong>mente construído e indispensável na<br />

mediação do acesso às ações intersetoriais, bens e serviços necessários<br />

à efetivação do direito <strong>social</strong> à saúde, de responsabilidade do Estado.<br />

Urge, portanto, desvendar as múltiplas determinações e mediações que<br />

perpetram o exercício profissional do assistente <strong>social</strong> no processo de<br />

renovação da atenção primária em saúde.<br />

EXERCÍCIO PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL...<br />

31


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

32<br />

Referências<br />

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ENSINO E PESQUISA EM SERVIÇO<br />

SOCIAL; CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL. Encontro<br />

Nacional de Pesquisadores em <strong>Serviço</strong> Social. Anais do X e XI. [Recurso<br />

eletrônico]. 2006 e 2008.<br />

BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa/Portugal: Edições 70, Ltda,<br />

1977. 225 p.<br />

BRASIL. Portaria n. 648, de 28 de março de 2006. Ministério da Saúde.<br />

Gabinete do Ministro. Política Nacional de Atenção Básica. Diário Oficial<br />

da República Federativa do Brasil. Brasília/DF: 29 mar. 2006. Seção 1. 26 p.<br />

_______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de<br />

Atenção Básica. Saúde na escola/Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à<br />

Saúde, Departamento de Atenção Básica. Brasília: Ministério da Saúde, 2009.<br />

160 p. Série B. Textos Básicos de Saúde. Cadernos de Atenção Básica, n. 27.<br />

CAMARGO, Marisa. Configurações do processo de trabalho em que<br />

participa o assistente <strong>social</strong> na saúde coletiva no espaço sócio-ocupacional<br />

da atenção básica. Dissertação (Mestrado em <strong>Serviço</strong> Social) – Faculdade<br />

de <strong>Serviço</strong> Social. Programa de Pós-Graduação em <strong>Serviço</strong> Social. Pontifícia<br />

Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2009.<br />

CAMPOS, Célia Maria Sivalli; SOARES, Cássia Baldini. A produção de<br />

serviços de saúde mental: a concepção de trabalhadores. Rev. Ciências Saúde<br />

Coletiva, v. 8, n. 2, 2003, p. 621-628.<br />

COMISSÃO NACIONAL SOBRE OS DETERMINANTES SOCIAIS<br />

DA SAÚDE. Determinantes Sociais da Saúde ou por que alguns grupos da<br />

população são mais saudáveis que outros? 2006. Disponível em: . Acesso em: 28 de nov. de 2010.<br />

COORDENAÇÃO DE APERFEIÇOAMENTO DE PESSOAL DE NÍVEL<br />

SUPERIOR. Banco de teses. Resumos. Disponível em: . Acesso em: 01, 02 e 03 de nov. 2010.<br />

DIAS, Míriam Thaís Guterres. O contexto histórico das políticas de saúde e<br />

de saúde mental no Brasil e no Rio Grande do Sul. A reforma psiquiátrica<br />

brasileira e os direitos dos portadores de transtorno mental: uma análise<br />

a partir do <strong>Serviço</strong> Residencial Terapêutico Morada São Pedro. Tese<br />

(Doutorado em <strong>Serviço</strong> Social) – Faculdade de <strong>Serviço</strong> Social. Programa de<br />

Pós-Graduação em <strong>Serviço</strong> Social. Pontifícia Universidade Católica do Rio<br />

Grande do Sul. Porto Alegre, 2007.<br />

GIL, Célia Regina Rodrigues. Atenção primária, atenção básica e saúde da<br />

família: Sinergias e singularidades do contexto brasileiro. Cad. Saúde Pública,<br />

v. 22, n. 6. Rio de Janeiro: jun. 2006, p. 1171-1181.


IAMAMOTO, Marilda Villela. <strong>Serviço</strong> Social em tempo de capital fetiche: capital<br />

financeiro, trabalho e questão <strong>social</strong>. 2.ed. São Paulo: Cortez, 2008. 495 p.<br />

NUNES, Everardo Duarte. Saúde coletiva: história de uma ideia e de um<br />

conceito. Rev. Saúde e Sociedade, v. 3, n. 2, 1994, p. 05-21.<br />

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração do Milênio. Nova<br />

Iorque, 2000. 20 p.<br />

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Declaração de Alma Ata.<br />

Conferência Internacional de Alma-Ata, 06-12 set. 1978, 3 p. Disponível em:<br />

. Acesso em: 28<br />

de nov. de 2010.<br />

ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE; ORGANIZAÇÃO<br />

MUNDIAL DA SAÚDE. Renovação da Atenção Primária em Saúde nas<br />

Américas. Documento de Posicionamento da OPAS/OMS, agosto de 2005. 37 p.<br />

STARFIELD, Barbara. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde,<br />

serviços e tecnologia. Brasília: UNESCO, Ministério da Saúde, 2002. 726 p.<br />

EXERCÍCIO PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL...<br />

33


INSERÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL NAS RESIDÊNCIAS<br />

MULTIPROFISSIONAIS EM ATENÇÃO BÁSICA: FORMAÇÃO<br />

EM EQUIPE E INTEGRALIDADE<br />

Thaísa Teixeira Closs<br />

Transcorridas cerca de duas décadas da implantação do Sistema<br />

Único Saúde (SUS), significativos são os avanços quanto à ampliação<br />

do acesso à saúde, mas ainda permanecem desafios no que se refere a<br />

mudanças efetivas no modelo assistencial, com base na integralidade<br />

da atenção. Nesse horizonte, a temática do trabalhador e do trabalho<br />

realizado nessa política assume destaque nesse processo de mudanças,<br />

demarcando a importância de profissionais sintonizados com as<br />

demandas emergentes para o SUS.<br />

Dessa forma, acreditamos que a qualificação do SUS, entre<br />

outros aspectos, implica um processo amplo de mudanças no trabalho<br />

em saúde, o que exige estratégias em direções distintas: no campo<br />

da assistência e da gestão, no desenvolvimento de processos sociais<br />

direcionados à construção de uma cultura sanitária de defesa e<br />

afirmação da vida, bem como no plano da formação em saúde. Assim,<br />

destacamos a importância da adoção e ampliação das políticas de<br />

Recursos Humanos em Saúde, dentre as quais se situa a Residência<br />

Multiprofissional em Saúde (RMS), como uma modalidade de<br />

formação que comporta possibilidades de contribuições para a<br />

consolidação do SUS.<br />

A potencialidade da Residência consiste em sintonizar trabalho<br />

e formação, em situar as necessidades de saúde da população<br />

como eixo norteador da qualificação dos profissionais, além de<br />

constituir-se numa formação pautada pelo trabalho em equipes.<br />

Porém, sua conformação como política pública é recente, o<br />

que aponta para a importância de serem ampliados os debates<br />

sobre essa formação, tendo em vista consolidá-la e qualificála.<br />

Dentre as profissões envolvidas na Residência, ressaltamos<br />

que há uma inserção consolidada dos assistentes sociais, sendo<br />

que o <strong>Serviço</strong> Social representa a terceira maior categoria<br />

em número de bolsas financiadas pelo Ministério da Saúde<br />

(BRASIL, 2006a).


Embora se evidencie essa presença significativa nas Residências,<br />

há uma insuficiência de dados sistematizados sobre a inserção da<br />

profissão nessa formação. Tal “lacuna” remete ao adensamento<br />

da produção sobre essa temática, em especial no que se refere à<br />

integralidade na atenção básica, pois esse nível do SUS tem assumido<br />

um papel fundamental na reestruturação do modelo assistencial, em<br />

especial pelas suas características assistenciais que possibilitam o<br />

estabelecimento de vínculo e atendimento continuado da população.<br />

Nesse horizonte, este artigo apresenta elementos da dissertação<br />

de mestrado “O <strong>Serviço</strong> Social nas Residências Multiprofissionais em<br />

Atenção Básica: formação para a integralidade?” (CLOSS, 2010),<br />

realizada a partir do Programa de Pós-Graduação em <strong>Serviço</strong> Social<br />

da PUCRS. A pesquisa, do tipo quantiqualitativa, foi realizada junto<br />

a dois programas de Residência em atenção básica, no município de<br />

Porto Alegre/RS, tendo como sujeitos 23 assistentes sociais. Essa<br />

proposta de estudo emergiu do trabalho desenvolvido em equipes<br />

multiprofissionais diretamente na atenção básica do SUS, em especial,<br />

através das experiências efetivadas junto ao Programa de Residência<br />

Integrada em Saúde da Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul.<br />

O presente artigo discute inicialmente a RMS no contexto da<br />

política de formação de recursos humanos em saúde, destacando suas<br />

particularidades e diretrizes, com destaque para a formação voltada<br />

para a atenção básica. No segundo momento, discutimos perspectivas<br />

para o trabalho e a formação dos assistentes sociais nas Residências,<br />

discutindo a inserção desses profissionais na atenção básica e sua<br />

contribuição frente à afirmação da integralidade em saúde.<br />

As Residências Multiprofissionais na Atenção Básica e o<br />

Desafio de Materialização da Integralidade<br />

Com a constituição do SUS, o ordenamento de Recursos<br />

Humanos é afirmado como atribuição desse Sistema, destacando a<br />

importância da intervenção do Estado frente à formação de profissionais<br />

com competências para atuar de acordo com os princípios dessa política.<br />

Trata-se de uma área do SUS que tem como finalidade contribuir para a<br />

afirmação de uma lógica pública na formação e no trabalho em saúde, na<br />

qual o compromisso com a valorização do trabalhador de saúde alia-se à<br />

INSERÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL NAS RESIDÊNCIAS MULTIPROFISSIONAIS...<br />

35


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

36<br />

qualificação da atenção em saúde. Se esse sistema destina-se à garantia<br />

da saúde da população brasileira como um direito de cidadania, ele<br />

necessita, portanto, criar condições que fortaleçam o exercício do trabalho<br />

em saúde orientado para a afirmação desse direito e para a materialização<br />

do modelo assistencial que o SUS instaura.<br />

O ordenamento da formação de recursos humanos,<br />

conforme define a Lei Orgânica da Saúde, 11 prevê a organização<br />

de um sistema educativo em todos os níveis de ensino, englobando<br />

formação técnica, graduada, <strong>pós</strong>-graduada e permanente, além da<br />

especialização em serviço e a área da pesquisa. Além disso, aponta<br />

para a concepção de que a rede de serviços do SUS constitui-se em<br />

lócus de ensino-aprendizagem, o que implica, fundamentalmente, a<br />

educação permanente dos trabalhadores e iniciativas de integração<br />

entre ensino e serviço, instituindo, no interior dessa rede, práticas de<br />

formação e de pesquisa. Trata-se, assim, de uma importante mudança<br />

de perspectiva na abordagem dos serviços de saúde: estes como<br />

espaços de geração de novos conhecimentos e práticas voltados para<br />

a inovação assistencial.<br />

Nesse quadro em que se insere a RMS. Embora respaldada<br />

no arcabouço jurídico do SUS, somente na conjuntura recente a RMS<br />

adquire estatuto de política, contando com normatização específica<br />

construída através de processos de mobilização. 2<br />

A RMS constitui-se numa modalidade de formação <strong>pós</strong>graduada,<br />

lato sensu, desenvolvida em serviços do SUS, sob supervisão<br />

técnico-profissional. Sua potencialidade reside em estar orientada para<br />

o atendimento ampliado às necessidades de saúde, para a qualificação<br />

do cuidado frente aos processos saúde-doença em suas dimensões<br />

individuais e coletivas. Para tal, a formação ocorre através da integração<br />

do eixo ensino-serviço-comunidade e da permanente inter-relação entre<br />

os núcleos de saberes/práticas das profissões envolvidas na formação<br />

com o campo da Saúde Coletiva.<br />

1 O ordenamento de recursos humanos na área na saúde, em especial no que tange à formação, é abordado<br />

nos artigos 6º, 12º, 13º, 14º, 15º, 16º, 27º e 30º da Lei 8080/90.<br />

2 No período de 2005 a 2007 efetivaram-se amplos debates sobre essa formação, bem como Seminários<br />

Regionais e Nacionais, os quais tiveram como produto a pactuação de diretrizes sobre Residência<br />

Multiprofissional e Residência em Área Profissional em Saúde, constantes na Portaria nº 45 de 12 de<br />

Janeiro de 2007. Mais recentemente, a Portaria nº 1.077/2009 (BRASIL, 2009a) redefiniu a carga horária<br />

através da qual deve ser desenvolvida a formação, bem como alterou a organização da Comissão Nacional<br />

de Residência Multiprofissional, com impactos negativos na representatividade dos segmentos envolvidos<br />

nessa formação nesta Comissão.


Dessa forma, os conceitos de campo e núcleo de saberes e<br />

práticas de saúde (CAMPOS, 2000) auxiliam na operacionalização da<br />

interdisciplinaridade e têm sido incorporados na organização dos programas<br />

de <strong>residência</strong>. O núcleo consiste nos saberes e práticas relacionadas à dada<br />

profissão, enquanto o campo se constitui na área de limites imprecisos<br />

entre as disciplinas e as profissões, conformando um território de saberes<br />

e práticas comuns ou confluentes. Nessa linha, a interdisciplinaridade<br />

consiste em trocas criadoras entre núcleos profissionais na construção de<br />

interfaces de saberes e práticas visando empreender respostas aos desafios<br />

emergentes no cotidiano do trabalho em equipe.<br />

A formação em serviço remete à centralidade do trabalho como<br />

polo educativo, aspecto que também demarca a particularidade e a<br />

potencialidade da RMS. Para tal, a categoria trabalho deve ser alvo<br />

de reflexão e crítica e, portanto, pontuaremos alguns elementos acerca<br />

das particularidades do trabalho em saúde que atravessam o campo dos<br />

processos da Residência.<br />

O primeiro elemento a ser considerado é o fato de esse trabalho<br />

ser fortemente regulado pelas lógicas nucleares das profissões, tais<br />

como as normatizações específicas e os atos privativos, implicando<br />

uma tensa arena de interesses corporativos, por vezes contrários ao<br />

Projeto de Reforma Sanitária. Esse elemento indica que a mudança no<br />

trabalho em saúde passa pelo diálogo com os organismos das profissões<br />

em saúde, de modo que o exercício dessas possa empreender respostas<br />

ao campo das necessidades sociais em saúde, ao modelo assistencial<br />

previsto pelo SUS.<br />

Outra particularidade, relacionada com o aspecto anterior, é o<br />

fato de ele ter como base uma dada formação específica que media<br />

a conformação de sua intencionalidade e a relação com o campo das<br />

necessidades sociais em saúde, ou seja, compreende o processo de<br />

apreensão e respostas a essas necessidades. Trata-se, assim, de um<br />

campo estratégico para a efetivação de mudanças no trabalho em saúde,<br />

diretamente relacionado com o ensino superior.<br />

Consideramos que as contribuições realizadas por Marx (1989;<br />

2004a; 2004b) em relação à categoria trabalho são especialmente<br />

relevantes para essa discussão. Nessa trilha, é necessário pensarmos o<br />

trabalho como unidade dialética e contraditória, ou seja, como trabalho<br />

que pode materializar-se em alguns momentos como concreto e em<br />

INSERÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL NAS RESIDÊNCIAS MULTIPROFISSIONAIS...<br />

37


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

38<br />

outros como abstrato, bem como mediarmos esses conceitos com as<br />

particularidades do trabalho no setor saúde, de forma a construir aportes<br />

para a formação voltada para o SUS.<br />

No que tange à dimensão concreta do trabalho, é fundamental<br />

relacioná-la com os produtos e o valor de uso, ou seja, identificar de<br />

que forma estes impactam na atenção em saúde e o que representam<br />

do ponto de vista do trabalhador dessa área. Nesta trilha, abre-se como<br />

possibilidade a análise da dimensão concreta particular dos trabalhos<br />

das diferentes profissões inseridas nas equipes multiprofissionais.<br />

Outro aspecto consiste na apreensão da dimensão teleológica do<br />

trabalho (MARX, 2004a; 2004b), ou seja, o plano da intencionalidade,<br />

que, no caso dos trabalhadores da saúde, se insere diretamente no<br />

campo da disputa de projetos para esse setor, indissociáveis de projetos<br />

societários. Nesta dimensão do trabalho que se move a esfera cultural<br />

e valorativa que pode, em parte, reforçar tendências regressivas no<br />

campo do direito <strong>social</strong> ou, estrategicamente, fortalecer o Projeto de<br />

Reforma Sanitária, contribuindo para a consolidação de uma contrahegemonia<br />

no setor saúde.<br />

Se atentarmo-nos para a dimensão ontológica do trabalho<br />

(MARX, 2004a; 2004b), ela também oferece aportes para a<br />

discussão dos processos educativos a partir do mundo do trabalho.<br />

Tal dimensão demarca o significado do trabalho como atividade<br />

humana constituinte do ser <strong>social</strong>, que ao projetar e incidir na<br />

realidade a transformando, também é produtora de sentidos para<br />

o próprio sujeito que a realiza. Ou seja, o trabalho não opera<br />

transformações somente no objeto ou matéria sobre a qual incide,<br />

mas converte-se em processo de transformação/produção dos<br />

sujeitos. Neste horizonte, ganham destaque o processo de educação<br />

permanente do trabalhador e a formação pelo próprio trabalho, o que<br />

implica apreender e fortalecer o trabalho em saúde na sua dimensão<br />

criativa, valorizando o potencial educativo que dele emerge para a<br />

qualificação do atendimento às necessidades em saúde.<br />

É fundamental também considerarmos o trabalho na sua<br />

dimensão abstrata (MARX, 2004a; 2004b), pois esse se materializa<br />

pela mediação do mundo/mercado de trabalho e da gestão do trabalho<br />

no SUS, imprimindo-lhe configurações diversas que, por vezes,<br />

tensionam sua dimensão teleológica e ontológica. Assim, são crescentes


os processos de precarização no interior do setor saúde, bem como a<br />

diversificação dos vínculos contratuais, acarretando uma realidade<br />

por vezes adversa para os trabalhadores dessa área, com importantes<br />

impactos na qualidade da atenção.<br />

Apreender essa dimensão abstrata do trabalho é fundamental,<br />

tendo em vista não esvaziá-lo de historicidade e desvinculá-lo dos<br />

processos de alienação, bem como das lutas pela superação dessa<br />

forma determinada de trabalho (IAMAMOTO, 2008). As expressões<br />

particulares do trabalho abstrato e dos processos de alienação<br />

no setor saúde podem ser visualizadas nas crescentes relações<br />

desumanizadas, na banalização e indiferença frente ao sofrimento<br />

humano, na baixa disponibilidade para a escuta e acolhimento às<br />

demandas dos sujeitos.<br />

Além desses aspectos, o trabalho possui centralidade na<br />

natureza do setor saúde, pois é este o elemento central da produção dos<br />

serviços nessa área, materializados no cuidado prestado à população<br />

usuária. Assim, caracteriza-se por ser trabalho vivo em ato, no qual<br />

ganha destaque a sua dimensão relacional (campo das tecnologias<br />

leves), posto que incide no complexo objeto da saúde, em sujeitos que<br />

vivenciam o processo saúde-doença e as distintas necessidades dele<br />

decorrentes (MERHY, 2007). Sobre esse aspecto, vale lembrar o debate<br />

marxista sobre o trabalho como serviço (MARX, 1989; 2004a; 2004b)<br />

consumido em ato, e por se dar na esfera estatal, tal como o trabalho em<br />

saúde do SUS, seria considerado improdutivo. Contudo, é pertinente<br />

ressaltar que, embora não produza diretamente mais-valia, compõe a<br />

sua distribuição <strong>social</strong> via Estado e políticas sociais.<br />

Considerar as particularidades do trabalho em saúde é<br />

fundamental para que possamos tecer estratégias que as contemplem nos<br />

processos de formação, buscando consolidar a articulação necessária<br />

entre os setores de saúde e educação. A necessidade dessa articulação<br />

ganha densidade pela pouca permeabilidade dos processos educativos<br />

na área da saúde às lutas pela redemocratização da sociedade e à<br />

afirmação da saúde como direito <strong>social</strong>, eixos que informam o Projeto de<br />

Reforma Sanitária. O campo da educação das profissões da saúde ainda<br />

se encontra fortemente arraigado ao modelo privatista e hegemônico<br />

de saúde, conformando um polo de tensão e resistência ao SUS que<br />

necessita ser alvo de diferentes ações.<br />

INSERÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL NAS RESIDÊNCIAS MULTIPROFISSIONAIS...<br />

39


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

40<br />

Na contratendência dessa realidade, a RMS procura romper com<br />

a lógica de fragmentação entre as profissões, buscando a necessária<br />

complementaridade entre práticas e saberes distintos. Dessa forma,<br />

essa modalidade de formação tem-se constituído como estratégia<br />

potencializadora da mudança do modelo assistencial. Por estar inserida<br />

diretamente na rede de serviços e ser desenvolvida tendo como foco de<br />

ensino o trabalho em saúde, ela própria converte-se em uma estratégia<br />

de Educação Permanente em Saúde, pois impulsiona a crítica e a análise<br />

dos processos de trabalho, favorecendo, assim, mudanças no modo de<br />

fazer a atenção em saúde das equipes multiprofissionais.<br />

A EPS baseia-se na aprendizagem no trabalho, realizada a partir<br />

dos problemas enfrentados na realidade e considera que as necessidades<br />

de formação e desenvolvimento dos trabalhadores devem ser pautadas<br />

pelas necessidades de saúde concretas dos sujeitos, a partir da dinâmica<br />

também concreta dos serviços de saúde. Constitui-se em um processo<br />

educativo que ocorre a partir da problematização do cotidiano de<br />

trabalho, sendo realizado através de espaços e temas que gerem<br />

autoanálise, implicação, mudança institucional e transformação das<br />

práticas em saúde (CECCIM, 2005).<br />

Além do referencial da Educação Permanente, a Residência deve<br />

ser desenvolvida de modo a articular-se a um sistema de formação de<br />

recursos humanos ou, mesmo, contribuir para fortalecê-lo, como prevê<br />

a Lei Orgânica. Isso implica que a Residência mantenha relações com as<br />

formações de <strong>graduação</strong> e <strong>pós</strong>-<strong>graduação</strong>, tais como a integração com<br />

estágios da <strong>graduação</strong> e com os programas de mudança e reorientação<br />

da formação em saúde (PRÓ-SAÚDE e PET-SAÚDE), além da<br />

articulação com núcleos e redes de pesquisa.<br />

Da portaria que dispõe sobre a Residência Multiprofissional e<br />

define seus eixos norteadores, 3 podemos destacar a integralidade da<br />

atenção e a atuação em equipe interdisciplinar como diretrizes centrais<br />

para os processos de ensino/trabalho nas Residências, os quais necessitam<br />

estar alicerçados em projetos pedagógicos críticos e consistentes.<br />

3 A seguir, apresentamos alguns destes eixos: “II - concepção ampliada de saúde (...) IV - abordagem<br />

pedagógica que considere os atores envolvidos como sujeitos do processo de ensino-aprendizagemtrabalho<br />

(...); V - estratégias pedagógicas capazes de utilizar e promover cenários de aprendizagem<br />

configurada em itinerário de linhas de cuidado de forma a garantir a formação integral e interdisciplinar; VI<br />

- integração ensino-serviço-comunidade (...) ; VII - integração de saberes e práticas que permitam construir<br />

competências compartilhadas para a consolidação do processo de formação em equipe (...) integralidade<br />

que contemple todos os níveis da Atenção à Saúde e à Gestão do Sistema” (BRASIL, 2007).


Assim, a formação na Residência necessita dialogar e contribuir<br />

com a afirmação da integralidade, tanto no plano dos níveis de atenção do<br />

SUS como na gestão em saúde. De forma bastante sintética, a integralidade<br />

implica uma abordagem totalizante das necessidades e da atenção em saúde,<br />

o que se desdobra na análise e intervenção sobre: a relação entre demandas,<br />

as necessidades de saúde e ofertas de serviços; a (re)organização dos<br />

processos de trabalho das equipes, tendo como foco o usuário; o trabalho<br />

em equipe e a afirmação da interdisciplinaridade; a relação profissionalusuário,<br />

tais como escuta, vínculo, acolhimento, tendo em vista a abordagem<br />

ampliada do sujeito e das suas necessidades; a acessibilidade a diversos<br />

níveis de atenção de forma articulada visando ampliar as possibilidades de<br />

atendimento às necessidades de saúde singulares e coletivas; a diversificação<br />

de ações que transcendam o enfoque curativo; os modelos assistenciais e a<br />

gestão dos serviços e políticas.<br />

A integralidade na formação em RMS se expressa no processo<br />

de formação em equipe diretamente nos serviços de saúde. Dessa<br />

forma, as experiências formativas na RMS precisam ter como eixo a<br />

integração de saberes e práticas entre os trabalhadores da saúde, de<br />

modo que sejam construídas competências compartilhadas na formação<br />

em equipe, voltada para a interdisciplinaridade.<br />

Essas diretrizes direcionam-se ao fortalecimento da dimensão<br />

cooperativa entre os profissionais de saúde, em contraposição à<br />

fragmentação operada pela divisão <strong>social</strong> e técnica do trabalho.<br />

A construção da interdisciplinaridade – entendida como processo<br />

e movimento de sínteses e totalizações provisórias na apreensão<br />

da realidade e intervenção nela – deve partir da reflexão sobre as<br />

necessidades sociais postas no cotidiano do trabalho, as quais demandam<br />

ações que transcendem os conhecimentos de uma área específica e,<br />

assim, desafiam a permanente integração de saberes e a construção de<br />

competências compartilhadas.<br />

O trabalho em equipe com vistas à interdisciplinaridade parte da<br />

perspectiva de que cada trabalho de qualidade particular se insere em<br />

um processo de trabalho coletivo, no qual a articulação dos diversos<br />

saberes que os conformam visa ampliar a resolutividade das ações em<br />

saúde desenvolvidas. Para tanto, os trabalhadores precisam conhecer a<br />

particularidade de cada trabalho, reconhecendo o seu valor de uso em<br />

cada situação demandada pela população.<br />

INSERÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL NAS RESIDÊNCIAS MULTIPROFISSIONAIS...<br />

41


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

42<br />

Nessa perspectiva, a formação em RMS potencializa a<br />

constituição de competências e saberes compartilhados, os quais<br />

tensionam a especialização do trabalho fundada em saberes utilizados<br />

privativamente. Isto não implica a diluição da particularidade de cada<br />

trabalho, porque isso também implicaria a perda de qualidade da atenção<br />

em saúde, mas sim na aquisição de novas competências, construídas<br />

conjuntamente. Essa construção passa pela preservação das atribuições<br />

profissionais, mas as competências das profissões envolvidas na equipe<br />

devem ser conjugadas. Contudo, as ações privativas das profissões<br />

devem ser informadas por um conjunto de valores sintetizados nos<br />

princípios do SUS que o sintonizem com a dimensão cuidadora na<br />

produção de saúde (MERHY, 2007).<br />

Assim, a formação da RMS engloba tanto a qualificação de<br />

cada trabalho particular quanto a qualificação do trabalho coletivo em<br />

saúde. A inserção e o trabalho em equipe <strong>multiprofissional</strong> necessitam<br />

englobar tanto as ações relativas a cada profissão, como também as ações<br />

coletivas, resultando em um processo de ensino-aprendizagem-trabalho<br />

voltado para a construção de mudanças na atenção em saúde e na gestão<br />

dos serviços. Trata-se, assim, de apreender as requisições que o processo<br />

de qualificação do SUS coloca para o trabalho coletivo em saúde –<br />

em especial na ênfase em dadas áreas do sistema, conforme a área de<br />

concentração do programa – e também para o trabalho de cada profissão.<br />

Nesse horizonte, uma das áreas do SUS com maior concentração<br />

de programas de Residência e com ampla inserção de assistenciais sociais<br />

consiste na formação voltada para a atenção básica em saúde. Atualmente<br />

esse nível de atenção é responsável pela cobertura e pelo acesso a serviços<br />

de saúde de grande contingentes populacionais. Mendes (2002) destaca<br />

que a atenção básica, no quadro do sistema de saúde, deve cumprir três<br />

funções essenciais: a resolutividade, podendo, assim, resolver grande<br />

parte das necessidades de saúde da população usuária; o papel organizador<br />

dos sistemas de referência, dos fluxos da rede; e a responsabilização,<br />

mantendo a corresponsabilidade pela saúde dos sujeitos, independente<br />

do nível do sistema de saúde no qual estão sendo atendidos.<br />

Além dessas funções, podemos também destacar atributos<br />

assistenciais da atenção básica, que a caracterizam e demarcam<br />

sua relevância e abrangência na organização do sistema de saúde.<br />

Conforme Starfield (2002), esses atributos consistem: na acessibilidade


e no primeiro contato, que se refere ao acesso preferencial e facilitado<br />

da população a serviços de saúde; a longitudinalidade, constituída<br />

pelo estabelecimento de cuidado e relações contínuas entre equipe e<br />

população; a coordenação, que consiste na responsabilização pelo<br />

cuidado em saúde, mesmo quando o usuário acessa outros níveis de<br />

atenção do sistema; a abrangência do cuidado, relativa à adequação das<br />

ações programadas pelo serviço frente às necessidades de saúde e à<br />

capacidade de resolutividade dessas ações.<br />

Dessa forma, esse nível do SUS tem assumido certa centralidade<br />

nas agendas governamentais, o que se expressa na implantação expansiva<br />

dos Programas de Saúde da Família (PSF) e de Agentes Comunitários<br />

de Saúde (ACS), que vem operando uma reestruturação desse nível de<br />

atenção. Atualmente esses programas integram a Estratégia de Saúde<br />

da Família (ESF), diretriz prioritária da Política Nacional de Atenção<br />

Básica (BRASIL, 2006b).<br />

Desde a sua implantação, o debate sobre esses programas tem<br />

congregado tensões, passando a ser alvo de distintas abordagens,<br />

aglutinadas em dois polos de análise. O primeiro problematiza a<br />

tendência de precarização e focalização de serviços sociais contida<br />

nesses programas, ou seja, a lógica de racionalização de recursos<br />

com assistência em saúde através da priorização de serviços básicos<br />

direcionados a populações mais vulnerabilizadas, com restrições de<br />

acesso aos demais níveis de atenção. Já o outro polo de análise enfatiza<br />

os resultados positivos alcançados, tal como a ampliação do acesso a<br />

serviços de saúde, a melhoria dos indicadores de saúde das populações<br />

atendidas, bem como a potencialidade de reorientação do modelo<br />

assistencial, pois as diretrizes desses programas sinalizam para a<br />

ampliação do objeto das práticas de saúde e para a superação da atuação<br />

curativa e pontual.<br />

As diretrizes da referida Política Nacional de Atenção Básica<br />

compreendem uma ampla gama de ações, se relacionam com uma<br />

concepção ampliada de saúde, estando explícito o direcionamento<br />

no sentido de efetivar processos de trabalho fundamentados na<br />

interdisciplinaridade, na intersetorialidade, na atenção ampliada às<br />

necessidades de saúde. Porém, os processos de trabalho realizados<br />

diretamente a partir da ESF contam com um número reduzido de<br />

núcleos de conhecimento acionados na produção do cuidado, o que<br />

INSERÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL NAS RESIDÊNCIAS MULTIPROFISSIONAIS...<br />

43


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

44<br />

pode limitar as possibilidades de trocas criadoras que fortaleçam<br />

os saberes do campo da Saúde Coletiva. Neste sentido, acreditamos<br />

que um aspecto a ser adensado de reflexões é a contradição entre a<br />

ampliação do objeto saúde e do escopo de ações, proposta pela ESF,<br />

com a redução da <strong>multiprofissional</strong>idade das equipes, frequentemente<br />

denominadas de “equipes mínimas”. No entanto, é questionável se a<br />

presença de outros profissionais na composição básica dessas equipes<br />

não seria uma estratégia potencializadora do modelo de atenção à saúde<br />

buscado por essa política.<br />

Neste horizonte, torna-se premente a necessidade de criação<br />

de estratégias de suporte a essas equipes, que vão desde arranjos que<br />

ampliem a sua composição, ancoradas nas necessidades de saúde locoregionais,<br />

bem como a implantação dos Núcleos de Apoio à Saúde da<br />

Família (NASF). Essa necessidade se coloca também como um desafio<br />

para a formação em <strong>residência</strong> na atenção básica, tendo em vista<br />

impulsionar a vivência de novos arranjos de equipes, voltados para<br />

a ampliação da resolutividade e adequação às necessidades de saúde<br />

prevalentes no território, subsidiando também a inserção dos egressos<br />

das Residências nos NASFs.<br />

No que tange especialmente aos NASFs, entendemos que<br />

este é um debate que necessita ser aprofundado, em especial, em<br />

relação ao trabalho pautado no apoio matricial 4 /assessoria. Afinal, que<br />

particularidades adquirem o trabalho desse profissional vinculado aos<br />

NASFs? Quais saberes e competências profissionais são mobilizados no<br />

processo de suporte às equipes de ESF? A construção de respostas para<br />

tais perguntas necessita considerar as ações previstas para os assistentes<br />

sociais, definidas na Portaria que as institui, as quais têm como eixos:<br />

a “promoção da cidadania, a produção de estratégias que fomentem e<br />

fortaleçam redes de suporte <strong>social</strong> e maior integração entre serviços de<br />

saúde (...) contribuindo para o desenvolvimento e ações intersetoriais<br />

para a realização efetiva do cuidado” (BRASIL, 2009b).<br />

4 Para essa discussão, cabe ressaltar as indicações de CAMPOS (2007) sobre apoio matricial: a relação<br />

entre apoiador (ou equipe) matricial baseia-se na construção de projetos terapêuticos, ou seja, na discussão<br />

e no planejamento conjunto das terapêuticas (ou plano de acompanhamento) direcionadas a cada usuário,<br />

sempre de modo integrado com a equipe de referência; composição de diferentes estratégias de apoio,<br />

tais como atendimentos e intervenções conjuntas entre equipe e apoiador, atendimento especializado do<br />

apoiador em algum caso emergente (com a co-responsabilização e permanência de vínculo com a equipe<br />

de referência), troca de conhecimentos e orientações. Ressaltamos, ainda, outra possibilidade de trabalho,<br />

tal como processos de assessoria, que compreendam a análise e identificação de necessidades no território,<br />

objetivando a potencialização de ações existentes e o planejamento de novas ações.


Entendemos que os NASFs representam um novo espaço sócioocupacional<br />

a ser explorado pelos assistentes sociais, elucidado em suas<br />

potencialidades e contradições. Questões implicadas no processo de<br />

implantação (composição das equipes, priorização das áreas/equipes de<br />

ESF) e na dinâmica de funcionamento (o grande número de equipes de<br />

ESF vinculadas a cada NASF, a tendência deste de assumir o papel de<br />

um serviço de média complexidade e funcionar na lógica tradicional da<br />

referência e contrarreferência) necessitam ser debatidas, serem alvo de<br />

pesquisas, bem como privilegiar relatos de experienciais profissionais<br />

sobre a atuação em apoio matricial.<br />

Nesse quadro de transição e mudança na atenção básica, a<br />

integralidade em saúde se coloca como premissa fundamental, diretriz<br />

que, compondo a tríade de princípios doutrinários do SUS junto<br />

com a universalidade e equidade, necessita ser explorada e adensada<br />

na formação nas RMS. A integralidade ancora-se na perspectiva<br />

de necessidades em saúde como conceito-chave para a análise da<br />

materialização da Política de Saúde, em suas diferentes dimensões, de<br />

modo a efetivar o conceito ampliado de saúde no cotidiano do SUS.<br />

Dessa forma, as necessidades de saúde podem ser apreendidas em<br />

quatro grandes eixos (CECÍLIO, 2006), quais sejam: o que se refere<br />

às condições de vida dos sujeitos; ao acesso às tecnologias de saúde<br />

capazes de melhorar, qualificar e prolongar a vida; ao vínculo usuário/<br />

serviços de saúde, ou seja, responsabilização, compromisso com suas<br />

questões de saúde; e aos crescentes níveis de autonomia do usuário,<br />

como dimensão de emancipação.<br />

Tal diretriz pode ser entendida como o compromisso crescente<br />

do sistema de saúde, em sua totalidade, com o atendimento qualificado e<br />

ampliado das distintas necessidades de saúde. Mattos (2006) ressalta que<br />

integralidade pode ser analisada e materializada em três planos distintos:<br />

no âmbito das práticas – como um atributo das respostas profissionais<br />

que buscam a compreensão sobre o conjunto de necessidades de ações<br />

de saúde que o usuário apresenta; no plano da organização dos serviços –<br />

através de uma lógica de programação de saúde horizontalizada, na qual<br />

o serviço busca atingir as necessidades da população-alvo; e também<br />

na organização das políticas deste setor, o que significa a noção de<br />

responsabilidade estatal na resposta a problemas de saúde, juntamente à<br />

recusa do reducionismo do objeto das políticas que são alvo de formulação.<br />

INSERÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL NAS RESIDÊNCIAS MULTIPROFISSIONAIS...<br />

45


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

46<br />

Podemos também nos valer da discussão de Cecílio (2006)<br />

sobre a integralidade, o qual destaca que essa pode ser apreendida<br />

tanto em uma dimensão ampliada, no plano do conjunto do Sistema,<br />

como também numa dimensão focalizada, no plano de dado serviço<br />

e equipe de saúde. Ressalta o autor que o atendimento integral às<br />

necessidades de saúde não se realiza somente no âmbito de um serviço<br />

de saúde – por mais competente e compromissado que ele esteja com<br />

tais necessidades – e sim deve ser pensado e efetivado através da<br />

articulação entre os demais níveis do sistema e do acesso a serviços e<br />

políticas para além do setor saúde, visando à melhoria e à ampliação<br />

da qualidade de vida dos usuários.<br />

Já no espaço do serviço de saúde, conforme Cecílio (2006), a<br />

integralidade corresponde ao movimento empreendido pela equipe, no<br />

contato profissional-usuário, no sentido de realizar a melhor escuta,<br />

apreensão e atendimento das necessidades de saúde, frequentemente<br />

travestidas em demandas simplificadas, ou moduladas pela oferta dos<br />

serviços. Deve-se, segundo o autor, investir na confluência de saberes<br />

das equipes multiprofissionais, na organização e capacitação dessas<br />

equipes, no sentido de ampliar esse processo de escuta, apreensão e<br />

atenção às necessidades de saúde.<br />

Diante do exposto, podemos ressaltar que a integralidade<br />

em saúde possui como eixos analisadores para sua materialização<br />

a intrassetorialidade, a intersetorialidade e interdisciplinaridade,<br />

dimensões potenciais para serem desenvolvidas como experiências<br />

formativas nas RMS, bem como a serem exploradas na atuação dos<br />

profissionais da saúde, entre esses o assistente <strong>social</strong>.<br />

Perspectivas para o trabalho e formação dos assistentes sociais<br />

sob o eixo da integralidade na atenção básica<br />

A discussão sobre a materialização do trabalho e formação dos<br />

assistentes sociais nas Residências de forma articulada com a afirmação<br />

da integralidade em saúde implica, necessariamente, a problematização<br />

do campo de valores e princípios que norteiam as ações profissionais,<br />

bem como a elucidação do objeto sobre o qual incidem essas ações.<br />

Dessa forma, é fundamental estabelecermos mediações entre o projeto<br />

ético-político profissional e o Projeto de Reforma Sanitária, bem como


entre saúde e questão <strong>social</strong>. Além disso, a configuração particular da<br />

atenção básica em saúde, as diretrizes e políticas que a norteiam também<br />

apontam tendências para o trabalho e a formação dessa profissão nesse<br />

âmbito do SUS. Dessa forma, o primeiro aspecto a ser enfatizado<br />

consiste na centralidade do conceito ampliado de saúde 5 como norteador<br />

do trabalho e da formação nas Residências. Tal conceito permite-nos<br />

dialogar com a questão <strong>social</strong> em suas diferentes expressões, bem como<br />

sinaliza para a importância de considerarmos a determinação <strong>social</strong><br />

do processo saúde/doença, apreendendo “a influência da cultura, das<br />

relações sociais e econômicas e das condições de vida nos processos<br />

saúde-doença” (NOGUEIRA, MIOTO, 2006, p. 228).<br />

Tal perspectiva é fundamental, tendo em vista fortalecer que<br />

esse trabalho esteja atento às refrações da questão <strong>social</strong> no âmbito<br />

dos processos saúde/doença e às demandas emergentes no cotidiano<br />

profissional, de forma a potencializar a produção e a garantia da saúde<br />

através da defesa e da ampliação de direitos. Adensar as mediações<br />

entre saúde e questão <strong>social</strong>, tendo como foco de problematização os<br />

determinantes sociais do processo saúde/doença, consiste num dos<br />

principais eixos do trabalho e da formação dos assistentes sociais<br />

nas Residências. Os dados 6 obtidos em nossa pesquisa indicam a<br />

necessidade de que esse eixo seja aprofundado nos processos de ensino.<br />

Outro aspecto consiste na direção <strong>social</strong> do trabalho do assistente<br />

<strong>social</strong> nas Residências, o qual necessita ancorar-se nos valores e princípios<br />

consubstanciados no Projeto de Reforma Sanitária e no projeto éticopolítico<br />

profissional, pois são estes projetos que balizam a abordagem da<br />

profissão e da saúde (BRAVO, MATOS, 2006). Por Projeto de Reforma<br />

Sanitária, entende-se um conjunto de concepções e valores em torno da<br />

democratização da saúde na sociedade brasileira, bem como dos meios<br />

de concretizá-los, o que se expressa nos planos ideológico, jurídico,<br />

político, institucional e assistencial. No que tange ao projeto profissional,<br />

esse se articula com um projeto societário radicalmente democrático,<br />

5 “Em seu sentido mais abrangente, a saúde é a resultante das condições de alimentação, habitação,<br />

educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso à posse da terra<br />

e acesso a serviços de saúde. É, assim, antes de tudo, o resultado das formas de organização <strong>social</strong> da<br />

produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida (BRASIL, 1987, p. 384).<br />

6 Na pesquisa realizada identificamos que grande parte dos assistentes sociais (60%) apreende a questão<br />

<strong>social</strong> como matéria profissional, contudo, somente parte destes estabelece mediações entre saúde e questão<br />

<strong>social</strong> (46,67% dos sujeitos). Dentre os que não apontam a questão <strong>social</strong> como objeto, a maior parcela<br />

(26,67%) refere conteúdos relacionados a objetivos do trabalho na saúde, e pequena parcela (13,33%)<br />

aponta outras abordagens de objeto profissional.<br />

INSERÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL NAS RESIDÊNCIAS MULTIPROFISSIONAIS...<br />

47


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

48<br />

com valores emancipatórios referentes à conquista da liberdade, situando<br />

a centralidade do trabalho na (re)produção da vida <strong>social</strong> (BARROCO,<br />

2006). A valoração ética desse projeto remete, prioritariamente, ao campo<br />

da ação profissional frente à questão <strong>social</strong>, balizando a intencionalidade<br />

e a direção do trabalho do assistente <strong>social</strong>.<br />

Na pesquisa realizada, os dados indicam claramente a direção<br />

<strong>social</strong> do trabalho referendada em ambos os projetos. Através dos<br />

dados 7 quantitativos, podemos constatar uma predominância dos<br />

princípios do SUS sobre os do atual Código de Ética, dentre os<br />

princípios elencados pelos residentes como norteadores do trabalho<br />

e da formação. Contudo, devemos ponderar sobre a implicação entre<br />

tais princípios, pois, por exemplo, tanto o Projeto de Reforma Sanitária<br />

como o Projeto Profissional têm como direção <strong>social</strong> a consolidação<br />

da democracia, da cidadania e a premissa de universalização de<br />

direitos. Outro ponto é que a particularidade dessa formação também<br />

contribui para uma valorização dos princípios desse Sistema como<br />

norteadores das ações, o que por sua vez também contribui para<br />

fortalecer finalidades comuns entre os trabalhadores das equipes,<br />

necessárias para a materialização da interdisciplinaridade.<br />

Dadas essas considerações introdutórias que balizam a discussão<br />

da inserção profissional no SUS, passaremos à discussão de possibilidades<br />

de materialização do trabalho profissional na atenção básica frente à<br />

diretriz da integralidade, de forma articulada com a formação nas RMS.<br />

Como discutimos no item anterior, esse nível do sistema –<br />

dada a centralidade que assume na organização e na reestruturação do<br />

SUS, somada às suas singularidades e potencialidades assistenciais<br />

– é estratégico para a qualificação do sistema de saúde, com vistas à<br />

consolidação de uma abordagem integral.<br />

Dentre atual contexto de mudanças na atenção básica, de<br />

reorganização dos serviços e expansão da ESF, inclusive nos grandes<br />

centros urbanos, visualizamos três tendências para a inserção dos<br />

assistentes sociais na atenção básica, quais sejam: a participação direta deste<br />

7 Na abordagem quantitativa de nossa pesquisa sobre intencionalidade profissional, os três princípios com<br />

maior frequência de escolha pelos residentes, selecionados dentre o Código de Ética e dentre as diretrizes<br />

do SUS, foram: a participação popular/controle <strong>social</strong> (13), a integralidade em saúde (12), a saúde como<br />

direito <strong>social</strong> (12), a universalidade do acesso (12). A análise comparativa dos dados, entre princípios do<br />

Código e do SUS, demonstra que os princípios priorizados pelos residentes no trabalho são: a participação<br />

popular/controle <strong>social</strong> (13), seguido da integralidade e da saúde como direito <strong>social</strong> (12); o posicionamento<br />

em favor da equidade e justiça <strong>social</strong> (9), seguido da ampliação e consolidação da cidadania (8).


profissional em equipes de ESF, contudo, condicionada às configurações<br />

locais da rede de saúde, em que esta garanta a inclusão de outros<br />

profissionais além dos previstos na equipe mínima; sua participação direta<br />

em equipes de outros serviços de atenção básica onde não foi implantada<br />

a ESF, voltando-se para o atendimento da população adstrita, juntamente<br />

com o atendimento “especializado” de referência para a ESF e também<br />

participando de iniciativas de apoio matricial; a inserção direta em equipes<br />

de apoio matricial, em especial os NASF, na qual a atuação ocorre a partir<br />

da interface com as equipes ESF e territórios vinculados ao NASF.<br />

A formação dos assistentes sociais nas Residências necessita<br />

dialogar com essas tendências atuais de inserção na atenção básica.<br />

Implica apreendê-las e problematizá-las, sobretudo, de forma articulada<br />

com uma análise conjuntural sobre a própria configuração da rede básica<br />

no contexto dos sistemas locais de saúde. É a partir deste debate mais<br />

amplo – a configuração da rede básica nos sistemas locais e o desafio<br />

da sua qualificação – que o tema candente da inserção do assistente<br />

<strong>social</strong> nas equipes mínimas de ESF ganha densidade política, pois se<br />

articula ao processo de construção de novos arranjos de equipes que<br />

qualifiquem a atenção em saúde.<br />

É justamente nesse contexto que a integralidade em saúde se<br />

coloca como premissa fundamental, indagadora da reorientação do<br />

modelo assistencial e também impulsionadora de uma inserção crítica e<br />

propositiva do trabalho do assistente <strong>social</strong> na saúde, sintonizada com<br />

os desafios de materialização do SUS.<br />

A busca pelo atendimento integral das necessidades sociais, no<br />

âmbito do SUS, insere-se num contexto mais amplo de disputa pela<br />

afirmação de democracia e justiça <strong>social</strong>, que se soma à contraditória<br />

luta por emancipação e cidadania da classe trabalhadora no seio das<br />

sociedades capitalistas. 8<br />

Como uma noção prenhe de sentidos e uma “imagem-objetivo”,<br />

a integralidade em saúde indaga sobre valores a serem defendidos na<br />

materialização do sistema de saúde, assim como remete necessariamente<br />

à centralidade do direito universal à saúde, o qual implica num duplo<br />

movimento que articule a garantia/oferta de Políticas Públicas que<br />

8 É importante nos atentarmos para os limites da emancipação humana na ordem capitalista burguesa, pois<br />

a efetiva emancipação <strong>social</strong> transcende o limitado horizonte do direito burguês, sendo impensável sem a<br />

construção de uma sociedade radicalmente democrática (MARX, 2004c). Na mesma linha, se evidenciam<br />

as limitações da efetiva universalização da cidadania nos marcos da sociedade burguesa, ou seja, não há<br />

como compatibilizar cidadania plena e capitalismo (COUTINHO, 2008).<br />

INSERÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL NAS RESIDÊNCIAS MULTIPROFISSIONAIS...<br />

49


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

50<br />

incidam sobre a melhoria das condições de vida da população com a<br />

luta <strong>social</strong> pelo acesso igualitário e universal aos serviços de saúde<br />

(MATOS, 2005; 2006).<br />

Conforme Paim (2008), a integralidade nas bases conceituais<br />

da Reforma Sanitária brasileira incorpora quatro perspectivas,<br />

compreendendo-a:<br />

a) como integração das ações de promoção, proteção,<br />

recuperação e reabilitação da saúde compondo níveis de<br />

prevenção primária, secundária e terciária; b) como forma<br />

de atuação profissional, abrangendo as dimensões biológica,<br />

psicológica e <strong>social</strong>; c) como garantia da continuidade da<br />

atenção nos distintos níveis de complexidade do sistema de<br />

serviços de saúde; d) como articulação de um conjunto de<br />

políticas públicas vinculadas a uma totalidade de projetos<br />

de mudanças (Reforma Urbana, Reforma Agrária, etc.) que<br />

incidissem sobre as condições de vida, determinantes da<br />

saúde e dos riscos de adoecimento, mediante ação intersetorial<br />

(PAIM, 2008, p. 15).<br />

Neste horizonte, a integralidade, no debate da Reforma Sanitária<br />

brasileira, necessita ser materializada tanto no plano da atuação profissional<br />

como na própria organização do sistema de saúde. Em especial, essa<br />

organização volta-se para a articulação e construção de um sistema<br />

integrado: integração de abordagens assistenciais, articulação dos serviços<br />

de saúde, interfaces com as demais políticas de Seguridade Social.<br />

Além desses aspectos, reiteramos que a integralidade pode ser<br />

apreendida como o direcionamento do sistema de saúde, em sua totalidade,<br />

para o atendimento qualificado e ampliado das distintas necessidades de<br />

saúde, de modo a efetivar o conceito ampliado no cotidiano do SUS. Essa<br />

perspectiva foi encontrada na pesquisa realizada em nossa dissertação na<br />

qual identificamos que a grande maioria dos assistentes sociais (93,33%)<br />

relaciona a integralidade com o conceito ampliado de saúde, destacando<br />

a superação da fragmentação e uma abordagem que prime pela totalidade<br />

na apreensão das necessidades de saúde da população usuária. Em<br />

menor frequência (26,6%), os assistentes sociais também associam a<br />

abordagem ampliada da saúde com a perspectiva da intersetorialidade e<br />

da interdisciplinaridade e, ainda, com a intrassetorialidade (6,67%).<br />

Partindo dessa apreensão de integralidade, os assistentes sociais<br />

têm um papel fundamental na construção dessa diretriz do SUS, tendo<br />

em vista ser esta um


princípio dotado de vários sentidos que consistem tanto na<br />

abordagem do indivíduo na sua totalidade como parte do<br />

contexto <strong>social</strong>, econômico, histórico e político, quanto na<br />

organização de práticas de saúde que integrem ações de<br />

promoção, prevenção, cura e reabilitação (NOGUEIRA;<br />

MIOTO, 2006b, p. 278).<br />

Essa abordagem da integralidade instiga a realização de ações<br />

profissionais sintonizadas com a sua materialização em diferentes<br />

planos, como já apontamos anteriormente: no âmbito das práticas<br />

em saúde, da organização dos serviços e na organização das políticas<br />

setoriais (MATTOS, 2006). Esses planos, além de se traduzirem em<br />

eixos sobre os quais incidem as ações profissionais, se convertem, sob<br />

o ponto de vista da formação em Residência, em aspectos que devem<br />

perpassar os processos de ensino, seja das atividades desenvolvidas nos<br />

serviços, seja dos espaços com ênfase teórica e também da pesquisa.<br />

O primeiro pressuposto é superarmos uma perspectiva<br />

segmentadora da realidade e da própria Política de Saúde, apreendendo<br />

o contexto que conforma esta política e as possibilidades que se<br />

colocam para a afirmação do direito à saúde. Tal perspectiva necessita<br />

estar presente no plano da dimensão assistencial desenvolvida pelo<br />

serviço que é cenário de aprendizagem/trabalho na Residência, e ainda<br />

do ponto de vista da inserção em espaços de gestão, viabilizadas pela<br />

realização de estágios especializados durante a formação.<br />

Este se constitui num terreno fértil para o trabalho/formação<br />

do assistente <strong>social</strong>. Através dos aportes do projeto profissional,<br />

ressaltam-se os processos de diagnóstico, planejamento e gestão<br />

como um dos polos das competências profissionais. Competências,<br />

essas, ancoradas na perspectiva de apreensão das necessidades de<br />

saúde como necessidades humanas (PEREIRA, 2007), interligadas à<br />

garantia de direitos e acesso a Políticas Públicas na esfera da proteção<br />

<strong>social</strong>. Isso se traduz na construção de interfaces entre as políticas<br />

públicas como uma contribuição fundamental da profissão no campo<br />

da integralidade, afirmando as possibilidades de potencialização da<br />

Seguridade Social como um conjunto articulado de políticas e serviços<br />

pautados na universalidade.<br />

Para tanto, é fundamental o enfoque para a esfera da gestão da<br />

Política de Saúde e para a atuação nas instâncias que a compõem, tais<br />

como Conselhos e Conferências. O controle <strong>social</strong> representa não só o<br />

INSERÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL NAS RESIDÊNCIAS MULTIPROFISSIONAIS...<br />

51


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

52<br />

desafio de aprofundamento da gestão democrática da Política de Saúde,<br />

mas também um campo de possibilidades de disputa da organização do<br />

sistema através de um modelo assistencial integral. Do ponto de vista do<br />

ensino na Residência, trata-se de construirmos experiências formativas dos<br />

assistentes sociais, pautadas na gestão e no planejamento da atenção básica,<br />

que tomem como eixos a participação, a sistematização de demandas da<br />

população e a construção de interfaces entre serviços de diferentes políticas.<br />

Além disso, a integralidade no âmbito da organização dos<br />

serviços e processos de trabalho desafia-nos a superar a lógica privatista<br />

hegemônica que orienta o trabalho em saúde. Isso implica mudanças<br />

nas instituições, na democratização dos serviços e na adoção de uma<br />

organização do trabalho aberta às demandas da população: uma relação<br />

dialética entre necessidades de saúde e oferta de serviços. São necessárias<br />

também estratégias permanentes de apreensão da realidade vivida<br />

pela população, do território/comunidade no qual se insere o serviço,<br />

de modo a impulsionar ações contínuas e planejadas. Esse desafio<br />

necessita, sem dúvida, permear o processo de ensino-aprendizagem dos<br />

assistentes sociais nas Residências, podendo ser adensado através do<br />

debate e do estudo sobre modelos assistenciais em saúde, 9 de forma<br />

conjunta com as demais áreas profissionais.<br />

Outro aspecto fundamental, como já referimos, consiste no fato<br />

de que o fortalecimento do trabalho coletivo realizado pela equipes<br />

multiprofissionais não “exclui” a qualificação do trabalho de cada<br />

profissão. Assim, merece destaque nessa formação o processo de<br />

fortalecimento do campo de saberes teórico-práticos e competências<br />

relativas ao exercício profissional do <strong>Serviço</strong> Social, conjugado no<br />

processo de construção de práticas interdisciplinares. Nesse ponto,<br />

reside um dos desafios de articulação do trabalho do assistente <strong>social</strong><br />

com a diretriz da integralidade, valorizando a particularidade deste<br />

trabalho, sua natureza qualitativa e valor de uso. Esse aspecto pode<br />

ser alvo de problematização nos espaços de ensino denominados de<br />

momentos “núcleo”, tal como a preceptoria realizada no serviço, que<br />

9 Modelos de atenção em saúde constituem-se em “um dado modo de combinar técnicas e tecnologias<br />

para intervir sobre problemas de saúde (danos e/ou riscos) e atender necessidades de saúde individuais<br />

e coletivas; é uma maneira de organizar os ‘meios de trabalho’ (saberes e instrumentos) utilizados nas<br />

práticas ou processos de trabalho em saúde. Aponta como melhor integrar os meios técnico-científicos<br />

existentes para resolver problemas de saúde individuais e/ou coletivos. Corresponde à dimensão ‘técnica’<br />

das práticas em saúde; incorpora uma ‘lógica’ que orienta as intervenções técnicas sobre os problemas e<br />

necessidades de saúde” (PAIM, 2003, p. 165). Para discussão de diferentes modelos assistenciais no campo<br />

da saúde coletiva, ver análise de Teixeira (2003).


problematize as ações profissionais, bem como nos espaços com ênfase<br />

teórica, que agreguem os assistentes sociais residentes e preceptores.<br />

Na pesquisa realizada junto aos programas de Residência, os<br />

dados quantiqualitativos obtidos indicam a construção de mediações<br />

sistemáticas, por parte dos assistentes sociais, que conformam a<br />

particularidade profissional na abordagem da saúde, as quais mobilizam<br />

e se traduzem em estratégias profissionais frente aos desafios de<br />

afirmação da integralidade.<br />

Tais mediações ancoram-se nos fundamentos teórico-metodólogicos<br />

e ético-políticos do <strong>Serviço</strong> Social, da produção recente desta área, e podem<br />

ser denominadas como: mediações fundamentadas no método dialéticocrítico,<br />

as quais se evidenciam na abordagem da saúde que prima pela<br />

totalidade, na perspectiva de desvelamento e reflexão crítica da realidade;<br />

nas mediações relativas ao campo de valores do projeto profissional,<br />

nas quais ganha destaque a centralidade para a garantia de direitos,<br />

indissociáveis da busca pela ampliação da cidadania e democratização;<br />

e as mediações articuladas ao campo das Políticas Sociais, ou seja, que<br />

expressam o acúmulo de saberes teórico-práticos que essa categoria vem<br />

produzindo sobre a esfera da prestação de serviços sociais, seja no campo<br />

estatal, como no âmbito de diferentes organizações.<br />

Tais mediações e sua materialização em ações profissionais<br />

integradas nas equipes resultam em contribuições para a integralidade<br />

do cotidiano das práticas de saúde, na medida em que se relacionam<br />

com o conceito ampliado de saúde, pois busca apreender, de forma<br />

totalizante, as necessidades de saúde dos sujeitos. Neste horizonte, a<br />

partir da pesquisa realizada, identificamos dois eixos nos quais podem<br />

ser agrupadas as contribuições profissionais para essa diretriz do SUS,<br />

conforme os depoimentos dos residentes. Esses eixos consistem:<br />

nos aportes da particularidade do <strong>Serviço</strong> Social nas equipes – que<br />

abarcam a “visão” crítica e totalizante da saúde (56,25%), a direção<br />

<strong>social</strong> do projeto ético-político profissional (25%), o enfoque para o<br />

protagonismo do usuário (18,75%) – e as estratégias desenvolvidas<br />

para a viabilização da integralidade, que compreendem o trabalho<br />

em equipe (31, 25%), a discussão dos acompanhamentos em saúde<br />

entre os profissionais de diferentes áreas (12,5%), o trabalho em rede<br />

(12,5%), o fortalecimento do acesso ao serviço de saúde (6,25%) e a<br />

ampliação do controle <strong>social</strong> (6,25%).<br />

INSERÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL NAS RESIDÊNCIAS MULTIPROFISSIONAIS...<br />

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<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

54<br />

Com base nos expostos até então, ressaltamos a importância<br />

da construção do trabalho do assistente <strong>social</strong> no sentido de efetivar<br />

abordagens socioeducativas junto a indivíduos, famílias e grupos,<br />

que superem intervenções pontuais centradas apenas em demandas<br />

emergentes dirigidas pela população ou equipe <strong>multiprofissional</strong>, para<br />

o seu trabalho, de forma a efetivar ações integradas, seja com a equipe,<br />

com demais serviços e/ou políticas.<br />

Assim, buscamos identificar em nossa pesquisa a participação dos<br />

residentes no conjunto das ações em saúde desenvolvidas pelas equipes<br />

de atenção básica. Os dados referentes às ações profissionais indicam que<br />

há uma inserção ampla e contínua dos assistentes sociais em diferentes<br />

ações da atenção básica, com destaque para as abordagens relativas ao<br />

controle <strong>social</strong>/mobilização comunitária e à saúde da família. Essas ações<br />

possuem enfoque interdisciplinar, operacionalizadas através de interfaces<br />

entre as áreas profissionais inseridas na equipe. Identificamos que as<br />

principais ações realizadas continuamente, por ordem de frequência são:<br />

o acompanhamento a famílias e a participação no controle <strong>social</strong> (100%),<br />

a realização de visitas domiciliares (91,6%), o acolhimento aos usuários<br />

(83,3%), a participação em projetos interdisciplinares e a realização de<br />

práticas grupais (75%).<br />

Neste horizonte, a partir das experiências profissionais<br />

pesquisadas nas Residências, da revisão de produções e pesquisas<br />

sobre a atenção básica, podemos ressaltar alguns eixos fundamentais<br />

com os quais o trabalho e a formação do assistente <strong>social</strong> necessitam<br />

estar sintonizados, podendo aportar contribuições significativas.<br />

Um dos primeiros aspectos a serem enfatizados é a<br />

centralidade do território, apreendido não somente como<br />

delimitação de abrangência e intervenção do serviço de atenção<br />

básica, mas como palco de relações, espaço de pertencimento <strong>social</strong>,<br />

locus de expressão da cultura, da condição e do modo de vida da<br />

população. O desafio é consolidar uma inserção proativa nesses<br />

territórios, que possibilite identificar e trabalhar com a diretriz da<br />

equidade, com as necessidades de saúde de grupos populacionais,<br />

juntamente com o enfoque para microáreas. A ênfase para o território<br />

também se desdobra na articulação com organizações comunitárias,<br />

na identificação de recursos e serviços, fortalecendo interfaces e<br />

parcerias conjuntas.


Outro ponto é a ampliação da acessibilidade do serviço como<br />

desafio permanente do trabalho que se pauta pela universalidade do<br />

direito. Implica, assim, a organização do processo de trabalho da equipe e<br />

da dinâmica do serviço, tendo em vista a realidade da população/território.<br />

A participação ativa na implantação de acolhimento, englobando a escuta,<br />

identificação de necessidades e inserção nos atendimentos ofertados pelo<br />

serviço, ou da rede, é uma estratégia importante. O acolhimento também<br />

está associado à mudança da organização da atenção em saúde centrada<br />

somente na demanda espontânea (Pronto Atendimento), ampliando o<br />

acesso e também qualificando a atenção.<br />

Nesta linha, também se coloca como estratégico afirmar a<br />

atenção em saúde longitudinal, voltada para o grupo familiar. Esta<br />

atenção necessita da construção de estratégias que favoreçam o<br />

acompanhamento continuado da família e a superação do atendimento<br />

pontual de agravos em saúde e de grupos populacionais/recortes<br />

geracionais. Uma possibilidade para fortalecer esse processo é a<br />

definição de profissionais de referência para famílias por microáreas do<br />

território. Outro eixo de atuação consiste no enfoque para a promoção<br />

em saúde. A perspectiva da promoção parte de uma concepção ampla da<br />

saúde de seus determinantes, juntamente com a crítica da medicalização<br />

da sociedade e da saúde. Busca a articulação entre diferentes saberes,<br />

constituindo-se em “um enfoque político e técnico em torno do processo<br />

saúde-doença-cuidado” (BUSS, 2003, p. 15). As ações pautadas na<br />

promoção abrangem práticas educativas e grupais, tendo como eixos a<br />

ênfase para a informação e ampliação da autonomia, o fortalecimento<br />

da participação comunitária, explorando parcerias com serviços das<br />

demais políticas presentes no território.<br />

Os programas da atenção básica também podem ser alvo de<br />

intervenção do assistente <strong>social</strong>, tendo em vista qualificar e ampliar as<br />

ações relativas à saúde da mulher, saúde da criança, saúde do adulto,<br />

pré-natal, planejamento familiar, entre outros. Estes programas, ao<br />

combinarem tecnologia e ações de enfoque clínico-epidemiológico,<br />

têm alcançado avanços e impactos na melhoria dos indicadores, porém,<br />

frequentemente, organizam-se a partir de especialidades médicas e<br />

da atuação fragmentada dos trabalhadores (CAMPOS, 2003). Uma<br />

possibilidade para superar essa realidade é a inclusão de abordagens<br />

educativas, grupais, articuladas com esses programas, juntamente com<br />

INSERÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL NAS RESIDÊNCIAS MULTIPROFISSIONAIS...<br />

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<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

56<br />

a criação de “protocolos” que favoreçam o enfoque interdisciplinar,<br />

bem como a atenção voltada para a família.<br />

Os aspectos abordados anteriormente se articulam com o<br />

modelo assistencial Vigilância da Saúde, 10 pois levam em consideração<br />

a centralidade do território, o enfoque para a promoção da saúde e<br />

seus determinantes sociais, sendo uma perspectiva que auxilia na<br />

operacionalização do trabalho do assistente <strong>social</strong>. Para tanto, é<br />

fundamental aprofundar competências relativas à utilização de dados<br />

socioepidemiológicos em articulação com indicadores sociais, de forma<br />

a subsidiar o planejamento e a avaliação das ações de saúde.<br />

Como último ponto, mas transversal ao exercício profissional,<br />

destacamos o controle <strong>social</strong> em saúde. O desenvolvimento permanente<br />

de ações que fortaleçam a participação e mobilização dos usuários deve<br />

compor as estratégias de trabalho do assistente <strong>social</strong>, juntamente com<br />

o estímulo à criação de conselhos locais de saúde e à participação/<br />

articulação sistemática destes com os conselhos distritais, municipais,<br />

fóruns e movimentos pela defesa do SUS.<br />

Considerações finais<br />

Entendemos que o debate sobre as Residências coloca em cena<br />

o desafio de imprimir mudanças nas práticas em saúde, como um dos<br />

eixos estratégicos para a qualificação do atendimento às necessidades<br />

sociais no âmbito do SUS. Aglutinar forças sociais para a materialização<br />

do Projeto da Reforma Sanitária no plano assistencial do SUS passa,<br />

sem dúvida, pela valorização dos trabalhadores deste setor e do papel<br />

fundamental que possuem no cotidiano desse Sistema. Para tanto,<br />

é fundamental consolidarmos uma lógica pública no ordenamento<br />

da formação de Recursos Humanos, que tenha como pontos-chave a<br />

efetivação de uma educação voltada para as necessidades da saúde e<br />

para o SUS, o foco para a mudança do modelo assistencial e a articulação<br />

intersetorial saúde-educação, ancorada no controle <strong>social</strong>.<br />

A atenção básica também assume relevância no quadro<br />

de políticas e ações públicas voltadas para a mudança de modelos<br />

assistenciais, pois, dadas suas características assistenciais, precisa<br />

assumir cada vez mais um papel estratégico no SUS. Dotá-la de<br />

10 Para discussão do modelo assistencial de vigilância da saúde, ver Paim (2003).


acessibilidade efetiva, orientar sua atuação para a equidade, valorizando<br />

abordagens diferenciadas para a população com déficits históricos de<br />

acesso e cuidados em saúde, são perspectivas importantes, juntamente<br />

com a busca pela afirmação da integralidade.<br />

Por tanto, é fundamental apreender essa diretriz do SUS<br />

através de um enfoque amplo que abarque diferentes planos<br />

do Sistema, compreendendo da atenção à gestão, do trabalho à<br />

formação. Tal diretriz associa-se a valores sociais emancipatórios e,<br />

como uma noção prenhe de sentidos, nos interroga sobre que modelo<br />

assistencial queremos construir com base na Reforma Sanitária.<br />

Destacamos, ainda, que a intrassetorialidade, a intersetorialidade e<br />

interdisciplinaridade podem se converter em eixos analisadores da<br />

integralidade, porque voltados para empreender respostas ampliadas<br />

às necessidades sociais, premissa fundamental para concretizar o<br />

direito <strong>social</strong> à saúde.<br />

Nessa direção, o foco de atuação do <strong>Serviço</strong> Social – as refrações<br />

da questão <strong>social</strong> e suas interfaces com os determinantes sociais do<br />

processo saúde-doença – delineia a relevância dessa profissão no SUS,<br />

porque relacionada com o conceito amplo de saúde e também dotada de<br />

sintonia com a área da Saúde Coletiva.<br />

Fortalecer uma formação <strong>pós</strong>-graduada nessa perspectiva, tal<br />

como a Residência, é fundamental, em especial na atenção básica, a<br />

qual necessita ser mais priorizada nos debates e produções do <strong>Serviço</strong><br />

Social na saúde. Tais produções necessitam incorporar as tendências<br />

de inserção da profissão na atenção básica juntamente com os desafios<br />

de qualificação desses serviços, adensando contribuições profissionais<br />

para a consolidação do SUS e também identificando aspectos a serem<br />

fortalecidos no exercício profissional nessa área.<br />

Pesquisas sobre a configuração da rede local de atenção básica<br />

e a inserção dos assistentes sociais nessa rede, em interface com fóruns<br />

profissionais, poderiam auxiliar nesse sentido. Outra possibilidade é a<br />

sistematização das experiências profissionais desenvolvidas nas RMS,<br />

as quais precisam ser privilegiadas como polo de experimentação e<br />

inovação da profissão no SUS.<br />

Neste horizonte, apresentamos a seguir uma sistematização<br />

em torno de algumas das diretrizes de formação da Residência,<br />

de forma particularizada com o trabalho/formação dos assistentes<br />

INSERÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL NAS RESIDÊNCIAS MULTIPROFISSIONAIS...<br />

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<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

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sociais, nos seguintes âmbitos formativos: 1) o ensino em serviço,<br />

ou seja, a formação realizada diretamente nas equipes; 2) as aulas/<br />

espaços de reflexão teórica desenvolvidos com o grupo de assistentes<br />

sociais; 3) a pesquisa e sistematização de saberes e práticas, ou seja,<br />

o adensamento de conhecimentos e dados que subsidiem os dois<br />

primeiros âmbitos da formação.<br />

Concepção ampliada de saúde:<br />

Qualificação do processo de apreensão e de formulação de<br />

respostas profissionais às refrações da questão <strong>social</strong> no âmbito do<br />

processo saúde-doença de indivíduos, famílias e comunidades.<br />

Estudo da determinação <strong>social</strong> do processo saúde-doença<br />

(individual e coletivo) e suas interfaces com o processo de produção/<br />

reprodução da vida <strong>social</strong>.<br />

Sistematização de necessidades e demandas de saúde que dão<br />

visibilidade às refrações da questão <strong>social</strong>; conhecimento do modo e da<br />

condição de vida da população usuária e das formas de enfrentamento<br />

por ela empreendidas (resistências sociais).<br />

Integração de saberes e práticas, construção de competências<br />

compartilhadas na formação em equipe:<br />

Construção conjunta na equipe de projetos de acompanhamento a<br />

indivíduos e famílias. Realização de atendimentos e acompanhamentos<br />

através de interconsultas. Planejamento e execução de abordagens<br />

grupais socioeducativas. Supervisão e matriciamento entre equipes.<br />

Discussão da inserção do <strong>Serviço</strong> Social nos processos de<br />

trabalho/ações da equipe e das particularidades que assume esse<br />

trabalho. Estudo de temáticas articuladas com o ensino do campo<br />

(Saúde Coletiva), identificando e aprofundando os aportes da área de<br />

<strong>Serviço</strong> Social para elas.<br />

Mapeamento do trabalho do assistente <strong>social</strong> na equipe e<br />

no planejamento de ações conjuntas, interdisciplinares (ações nos<br />

programas, “protocolos” no serviço). Construção de fluxogramas<br />

analisadores (das demandas e necessidades, dos saberes e<br />

competências compartilhados).


Integralidade que contemple todos os níveis, da atenção à gestão:<br />

Ações que contribuam para o acesso e atendimento integral<br />

das necessidades sociais em saúde na rede SUS (intrassetorialidade)<br />

e demais Políticas Públicas (intersetorialidade). Ações no âmbito da<br />

gestão do serviço e estágios especializados em gestão relativos à ênfase<br />

do programa de RMS.<br />

Discussão e estudo sobre modelos de atenção e gestão, sobre as<br />

interfaces entre os serviços de saúde e demais políticas públicas que<br />

garantam a integralidade, com destaque para linhas de cuidado.<br />

Sistematização de necessidades sociais da população e<br />

estratégias intrassetoriais e intersetoriais para seu atendimento<br />

(fomento às linhas de cuidado). 11<br />

Esta breve sistematização trata-se de uma possível contribuição<br />

para a construção de eixos norteadores da formação dos assistentes sociais<br />

nas Residências. Tal construção consiste num dos desafios centrais para o<br />

debate da inserção do <strong>Serviço</strong> Social nesta formação, ou seja, debatermos<br />

parâmetros que subsidiem a qualificação dos processos de ensino/<br />

trabalho vivenciados pelos assistentes sociais, residentes e preceptores,<br />

no cotidiano das Residências. Consideramos que se trata de um caminho<br />

em aberto, no qual se faz presente a importância da análise das diretrizes<br />

legais da Residência e das políticas de formação em saúde, a interlocução<br />

com fóruns das diferentes profissões que participam dessa formação, a<br />

apreensão de particularidades das áreas de concentração dos programas<br />

de Residência, bem como a interlocução com as instâncias de regulação<br />

dessa formação e do controle <strong>social</strong> em saúde.<br />

11 Para discussão de linhas de cuidado, ver Ceccim e Ferla (2006).<br />

INSERÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL NAS RESIDÊNCIAS MULTIPROFISSIONAIS...<br />

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<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

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saúde. In: CZERESNIA, D. (org.). Promoção da saúde: conceitos, reflexões,<br />

tendência. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003.<br />

_______. Reforma Sanitária Brasileira: contribuição para a compreensão e<br />

crítica. Salvador: EDUFBA; Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2008.<br />

PEREIRA, P. A. P. Necessidades humanas. Subsídios à crítica dos mínimos<br />

sociais. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2007.<br />

STARFIELD, B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde,<br />

serviços e tecnologia. UNESCO, 2002.<br />

TEIXEIRA, C. F. A mudança do modelo de atenção à saúde no SUS: desatando<br />

nós, criando laços. In: Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 27, n. 65, set/dez, 2003.


SERVIÇO SOCIAL E EDUCAÇÃO NA SAÚDE: CONSIDERAÇÕES<br />

SOBRE A INSERÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL NOS PROGRAMAS<br />

DE RESIDÊNCIA MULTIPROFISSIONAL EM SAÚDE 1*<br />

Tatiane Moreira de Vargas<br />

Maria Isabel Barros Bellini<br />

As motivações que levaram a construção do estudo dessa inserção<br />

estão estreitamente vinculadas à vivência como Assistente Social Residente<br />

no Programa de Residência Multiprofissional em Saúde e, posteriormente,<br />

como Assistente Social Preceptora 21 do mesmo programa de formação.<br />

A experiência nesse espaço tem marcado significativamente a trajetória<br />

profissional e pessoal, tendo em vista a possibilidade de, além de atuar<br />

profissionalmente como Assistente Social, assumir o compromisso com a<br />

formação de outros profissionais da área da saúde. Constantemente, as trocas<br />

de conhecimentos e o diálogo entre os saberes vivenciado no cotidiano,<br />

com os demais profissionais que assumiram esse compromisso e com<br />

aqueles que buscam essa modalidade de formação, provocam inquietações.<br />

Essas inquietações alimentam o desejo de aprofundar as discussões sobre<br />

essa experiência, com o intuito de buscar algumas respostas ou criar outras<br />

perguntas acerca da inserção do Assistente Social nesta modalidade de<br />

educação profissional <strong>pós</strong>-graduada <strong>multiprofissional</strong>.<br />

A Política de Educação para o Sistema Único de Saúde (SUS)<br />

propõe a educação permanente, na perspectiva da busca da transformação<br />

das práticas das equipes de saúde, considerando a análise coletiva dos<br />

problemas reais e a construção de estratégias de enfrentamento, a partir<br />

1* A revisão de literatura apresentada é parte da pesquisa desenvolvida na dissertação de Mestrado intitulada<br />

“O <strong>Serviço</strong> Social no Programa de Residência Multiprofissional em Saúde: uma estratégia de consolidação<br />

do projeto ético-político profissional”, defendida em janeiro de 2011, no Programa de Pós-Graduação em<br />

<strong>Serviço</strong> Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PPGSS/PUC-RS), orientada<br />

pela Professora Dra. Maria Isabel Barros Bellini. A pesquisa foi aprovada pelos Comitês de Ética onde foi<br />

desenvolvida, conforme os seguintes protocolos: CEP 10/04983 na Pontifícia Universidade Católica do<br />

Rio Grande do Sul, CEPS-ESP 572/10 na Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul e CEP 10-094 no<br />

Grupo Hospitalar Conceição.<br />

2 Conforme a Portaria nº 1.111/GM, de 05 de julho de 2005, Art. 7º, preceptoria: função de supervisão docenteassistencial<br />

por área específica de atuação ou de especialidade profissional, dirigida aos profissionais de saúde<br />

com curso de <strong>graduação</strong> e mínimo de três anos de experiência em área de aperfeiçoamento ou especialidade<br />

ou titulação acadêmica de especialização ou de <strong>residência</strong>, que exerçam atividade de organização do processo<br />

de aprendizagem especializado e de orientação técnica aos profissionais ou estudantes, respectivamente em<br />

aperfeiçoamento ou especialização ou em estágio ou vivência de <strong>graduação</strong> ou de extensão.


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

64<br />

do diálogo. Trata-se de uma mudança de concepção educacional na área<br />

da saúde, reconhecendo a vivência como importante na possibilidade<br />

de aprender (FEUERWERKER, 2005).<br />

Ao refletir sobre essa proposta, é preciso considerar como vemse<br />

apresentando a política de saúde no Brasil, com suas contradições<br />

marcadas pelo desejo de implementar a política de saúde orientada<br />

pela Reforma Sanitária, conquistado legalmente no SUS, mas em<br />

conflito com a radicalização da política macroeconômica, que tem<br />

reduzido ao máximo os compromissos do Estado com as políticas<br />

públicas. É nesse cenário que se dá a prática profissional e a educação<br />

pelo trabalho. Assim,<br />

[...] realizar e ampliar a direção <strong>social</strong> do SUS – sua perspectiva<br />

<strong>social</strong>izante e emancipatória – depende de formação e capacitação<br />

profissional relacionadas a um projeto de sociedade orientado para<br />

o enfrentamento das contradições centrais que se manifestam na<br />

crise <strong>social</strong> da saúde (VASCONCELOS, 2007, p. 156).<br />

Nesse sentido, a formação e a capacitação dos Assistentes Sociais<br />

precisam estar orientadas na perspectiva <strong>social</strong>izante e emancipatória<br />

do SUS. Em consonância com essa orientação, o <strong>Serviço</strong> Social,<br />

através da sua atuação na área da saúde, traz para esse contexto as suas<br />

particularidades e o compromisso com o seu projeto ético-político. No<br />

cotidiano, diferentes riscos e desafios são colocados para o Assistente<br />

Social e precisam ser analisados, buscando identificar possibilidades de<br />

superação direcionadas para o projeto profissional e para a defesa do<br />

SUS idealizado na Reforma Sanitária.<br />

Uma das possibilidades de (trans)formação 32 da realidade, baseada<br />

na educação permanente, é o Programa de Residência Multiprofissional<br />

em Saúde. Nesse Programa de formação <strong>pós</strong>-graduada, os profissionais<br />

da área de saúde vivenciam a prática, inseridos no universo de trabalho. O<br />

<strong>Serviço</strong> Social está inserido em muitos desses Programas de Residência<br />

em Saúde, por todo o Brasil, com assistentes sociais residentes – que<br />

estão fazendo a formação de dois anos de duração e os assistentes sociais<br />

preceptores – responsáveis pela formação, em conjunto com os assistentes<br />

sociais tutores ou orientadores.<br />

3 A opção pela escrita (trans)formação busca destacar o objetivo de transformar a realidade das práticas de<br />

saúde, através da formação de profissionais, baseada na educação permanente.


Transformações Societárias e Educação na Saúde para o<br />

<strong>Serviço</strong> Social<br />

O contexto atual das políticas sociais no Brasil revela<br />

características de fragmentação e subordinação à lógica econômica.<br />

Iamamoto (2008b, p. 39) afirma que “são instituídos critérios de<br />

seletividade para o atendimento aos direitos sociais universais,<br />

constitucionalmente garantidos”. Há um desmonte de direitos já<br />

conquistados, através da focalização da política <strong>social</strong>, da precarização<br />

dos serviços pela diminuição do financiamento.<br />

Correia (2007) afirma que as contrarreformas implementadas a<br />

partir da década de 90 vão demandar da Política de Saúde brasileira:<br />

1) o rompimento com o caráter universal do sistema público de<br />

saúde, com o Estado encarregando-se da parte não lucrativa e a rede<br />

privada complementando os serviços; 2) a flexibilização da gestão<br />

dentro da lógica custo/benefício, privatizando e terceirizando serviços<br />

de saúde, com repasse para Organizações Sociais, Organizações da<br />

Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs), Fundações de Apoio<br />

e Cooperativas de profissionais de medicina e com a criação de<br />

Fundações Estatais de direito privado; 3) estímulo à ampliação do<br />

setor privado na oferta de serviços de saúde.<br />

O projeto político-econômico neoliberal, consolidado no<br />

Brasil confronta-se com o Projeto da Reforma Sanitária. A perspectiva<br />

da Política de Saúde, articulada ao mercado, tem como tendência<br />

a contenção dos gastos com a racionalização da oferta. O Projeto<br />

de Reforma Sanitária sofreu desmobilização, e outras concepções<br />

teóricas passaram a influenciá-lo, com postulações <strong>pós</strong>-modernas,<br />

ressaltando estudos do cotidiano sem relacioná-los com a Política de<br />

Saúde (BRAVO, 2007).<br />

Uma preocupação assumida no Projeto de Reforma Sanitária<br />

Brasileira para construção de um sistema de saúde único, com<br />

acesso universal, gestão descentralizada, atendimento integral e<br />

controle <strong>social</strong> foi a educação dos profissionais, integrando ensino<br />

e trabalho em saúde, como uma ação estratégica para a reforma no<br />

setor saúde. O “ordenamento da formação de recursos humanos na<br />

área da saúde” foi previsto, explicitamente, no inciso III, do artigo<br />

200, da Constituição Federal.<br />

SERVIÇO SOCIAL E EDUCAÇÃO NA SAÚDE...<br />

65


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

66<br />

Conforme o Ministério da Saúde/MS (BRASIL, 2009), a<br />

Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS)<br />

“visa contribuir para transformar e qualificar as práticas de saúde,<br />

a organização das ações e dos serviços de saúde, os processos<br />

formativos e as práticas pedagógicas na formação e desenvolvimento<br />

dos trabalhadores de saúde”. A Educação Permanente reconhece a<br />

vivência como significativamente importante para a possibilidade<br />

de aprender, parte do pressuposto da aprendizagem significativa,<br />

considerando que o fato de dialogar com conhecimentos prévios<br />

permite que as pessoas desempenhem papel ativo e se apropriem<br />

de novos elementos. A aprendizagem significativa ocorre quando há<br />

necessidade de buscar responder um questionamento real ou quando<br />

o conhecimento novo é construído a partir de um diálogo com o que<br />

já existia. A Educação Permanente ocorre no cotidiano do trabalho,<br />

a partir dos problemas enfrentados na realidade.<br />

Na aprendizagem de adultos é muito importante partir do que<br />

inquieta: o que provoca curiosidade é o que estimula a busca por<br />

aprender. Também é importante destacar que a Educação Permanente se<br />

faz no coletivo, pois o olhar do outro sempre levanta questões diferentes<br />

entre os sujeitos. São ideias trabalhadas por Freire e por outras correntes<br />

construtivistas no campo da educação (FEUERWERKER, 2005).<br />

Ceccim (2005, p. 162) identifica que, na saúde, a educação<br />

permanente, configura, para alguns autores, o “desdobramento de<br />

vários movimentos de mudança na formação dos profissionais”. Para<br />

fins de discussão nesse artigo, a concepção de Educação Permanente<br />

deve considerar o processo pedagógico a partir da problematização da<br />

realidade, com objetivo de transformar práticas. Orientada por essa<br />

intenção, tem sua referência na pedagogia progressista liberal, em<br />

que a análise crítica das realidades sociais sustenta implicitamente as<br />

finalidades sociopolíticas da educação. Nessa perspectiva, a educação é<br />

um instrumento de luta para a transformação <strong>social</strong> (LIBÂNEO, 2002).<br />

A proposta da Educação Permanente tem uma relação<br />

próxima com o <strong>Serviço</strong> Social, sendo defendida, em estudo recente<br />

(FERNANDES, 2008), como uma “dimensão formativa vivenciada nas<br />

situações de trabalho dos assistentes sociais”. A autora descreve o quanto<br />

os espaços sócio-ocupacionais podem configurar-se como local de<br />

produção de conhecimento e aprendizagem significativa. Nesses espaços,


identificamos as expressões da questão <strong>social</strong> e a intencionalidade do<br />

fazer profissional, dando direcionamento e sentido às práticas.<br />

Assim, na Educação Permanente,<br />

a partir do processo de trabalho, se pode identificar quais as<br />

exigências e saberes são necessários ao assistente <strong>social</strong> para<br />

a qualificação e provisão das necessidades sociais demandas<br />

pelos usuários dos serviços (FERNANDES, 2008, p. 07).<br />

A educação, nessa perspectiva, traz a experiência de atuação com<br />

diferentes demandas oriundas da questão <strong>social</strong> e as particularidades<br />

atribuídas à profissão na divisão sociotécnica do trabalho. É necessário<br />

identificar, nesse contexto, as implicações ético-políticas, teóricometodológicas<br />

e técnico-operativas que perpassam o processo de<br />

trabalho do <strong>Serviço</strong> Social.<br />

O <strong>Serviço</strong> Social traz para o campo da saúde, na sua<br />

particularidade, também o compromisso com o projeto ético-político<br />

da profissão. Um projeto profissional recente, que<br />

para que se afirme na sociedade, ganhe solidez e respeito frente<br />

às outras profissões, às instituições privadas e públicas e frente<br />

aos usuários dos serviços oferecidos pela profissão é necessário<br />

que ele tenha em sua base um corpo profissional fortemente<br />

organizado. (NETTO, 2006, p. 144)<br />

Nessa organização, a recente iniciativa do Conselho Federal<br />

de <strong>Serviço</strong> Social (CFESS) buscou elaborar, a partir de discussões<br />

em diferentes locais do país, um documento que define parâmetros<br />

para a atuação de assistentes sociais na saúde. A iniciativa pôde<br />

demonstrar a necessidade de “fortalecer o trabalho dos assistentes<br />

sociais na saúde, na direção dos projetos de reforma sanitária e<br />

ético-político profissional” (CFESS, 2009, p. 09). No entanto, os<br />

parâmetros descritos no documento precisam encontrar respaldo na<br />

intencionalidade das ações realizadas e nos pressupostos ideopolíticos<br />

dos trabalhadores que as realizam.<br />

Muito mais do que listar essas possibilidades de instrumentos<br />

e de meios de trabalhar, está a forma como os utilizamos, a<br />

intenção, os pro<strong>pós</strong>itos, a viabilização dos direitos, do acesso, a<br />

informação, a participação, que correspondem ao resultado da<br />

ação profissional. (FERNANDES, 2008, p. 84).<br />

SERVIÇO SOCIAL E EDUCAÇÃO NA SAÚDE...<br />

67


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

68<br />

Assim, a construção de parâmetros, a partir da discussão entre<br />

os profissionais, é significativa não somente pelo resultado alcançado,<br />

que será avaliado posteriormente, mas principalmente no seu processo<br />

de elaboração, que traz a reflexão sobre a prática e possibilidades de<br />

organização profissional.<br />

O Assistente Social, permanentemente, busca o significado<br />

da sua prática e analisa os objetivos alcançados através de sua<br />

intervenção. Essa busca permanente é decorrente do entendimento de<br />

que, nos diferentes espaços de atuação do <strong>Serviço</strong> Social, o profissional<br />

convive com a tensão entre projetos político-institucionais distintos.<br />

Segundo Iamamoto (2008), o primeiro projeto norteia os princípios<br />

da seguridade <strong>social</strong> na Constituição de 1988, apostando no avanço da<br />

democracia. Implica partilha e deslocamento de poder e supõe politizar a<br />

participação. O segundo, de inspiração neoliberal, parte das políticas de<br />

ajuste recomendadas pelos organismos internacionais, comprometidas<br />

com a lógica financeira do grande capital internacional, num contexto<br />

de crise e fragilização da organização dos trabalhadores.<br />

Na área da saúde, é possível identificar dois projetos políticos<br />

em disputa, relacionados aos já descritos, requisitando diferentes<br />

demandas aos assistentes sociais (BRAVO, 1998): o Projeto da<br />

Reforma Sanitária, com demandas de busca de democratização do<br />

acesso às unidades e aos serviços de saúde, atendimento humanizado,<br />

estratégias de interação da instituição de saúde com a realidade,<br />

interdisciplinaridade, ênfase nas abordagens grupais, acesso<br />

democrático às informações e estímulo à participação cidadã. E o<br />

projeto privatista, que demanda seleção socioeconômica dos usuários,<br />

atuação psicos<strong>social</strong> através de aconselhamento, ação fiscalizatória<br />

aos usuários dos planos de saúde, assistencialismo através da ideologia<br />

do favor e predomínio de práticas individuais.<br />

Nesse cenário, Nogueira e Mioto (2006a) destacam estudos<br />

sobre o trabalho do Assistente Social na saúde. Em relação ao<br />

eixo ético-político da atuação profissional, as autoras destacam<br />

as contribuições de Bravo (1996) e de Nogueira (2002a, 2002b,<br />

2004), que relacionam os riscos quanto às possibilidades da ação<br />

do Assistente Social no sentido da garantia de direitos universais<br />

ao analisarem o cenário atual, apontando as ameaças presentes<br />

no confronto entre o projeto privatista de cuidados de saúde e o


projeto da reforma sanitária. Já, as produções direcionadas à ação<br />

profissional, as autoras salientam as contribuições de Costa (2000),<br />

Matos (2003), Vasconcelos (2002), Wiese (2002), Mioto (2004),<br />

Nogueira (2003), que têm pautado em suas análises os desafios para<br />

a materialização do atual projeto ético-político da profissão e do<br />

próprio SUS. Nogueira e Mioto (2006a) apontam ainda a ampliação<br />

da preocupação com a especificidade do <strong>Serviço</strong> Social, a partir<br />

da concepção ampliada de saúde e o novo modelo de atenção dela<br />

decorrente, preconizado na PNEPS. Segundo as autoras, é evidente<br />

a força que a temática do <strong>social</strong> e do trabalho com o <strong>social</strong> vem<br />

ganhando no âmbito da saúde, à medida que outras profissões<br />

alargam suas ações nesse sentido. Mas é possível identificar uma<br />

desqualificação pela qual vem passando os aspectos relacionados<br />

ao <strong>social</strong>. No entanto, na concepção ampliada de saúde, indicada na<br />

VIII Conferência Nacional de Saúde (Brasil, Ministério da Saúde,<br />

1986), o <strong>Serviço</strong> Social adquire um novo estatuto para o trabalho na<br />

área da saúde. Mas deve ser protagonista de um novo modelo, que<br />

deve ser construído na discussão interdisciplinar, dando visibilidade<br />

ao projeto de formação profissional e ao projeto ético-político<br />

(NOGUEIRA, MIOTO, 2006b). No entanto,<br />

observa-se que os assistentes sociais, talvez por falta de clareza<br />

ou de conhecimento quanto aos projetos em confronto ou por<br />

opções ideológicas, têm se inserido no campo da saúde muitas<br />

vezes de forma acrítica, ou seduzidos pelo canto das sereias,<br />

que é o mercado, na direção oposta ao projeto ético-político.<br />

(NOGUEIRA, MIOTO, 2006b, p. 274)<br />

Assim, a atuação do <strong>Serviço</strong> Social, nesse novo estatuto<br />

conferido pela ampliação do conceito de saúde, 43 exige uma inserção<br />

crítica no trabalho, consciente dos projetos socioinstitucionais em<br />

disputa. Considerando essa exigência, é necessário orientar-se pelo<br />

Projeto Profissional do <strong>Serviço</strong> Social e o Projeto da Reforma Sanitária,<br />

no cotidiano de prática na saúde, principalmente, quando se configura<br />

como espaço de (trans)formação, através da educação permanente.<br />

4 A definição da saúde como resultado dos modos de organização <strong>social</strong> da produção, como efeito da<br />

composição de múltiplos fatores, exigindo que o Estado assuma a responsabilidade por uma política de<br />

saúde integrada às demais políticas sociais e econômicas e garanta a sua efetivação e ratificando, também,<br />

o engajamento do setor saúde por condições de vida mais dignas e pelo exercício pleno da cidadania.<br />

(CAMPOS, G. W. et al. Avaliação de política nacional de promoção da saúde. Disponível em: . Acesso em: 18/11/2008.)<br />

SERVIÇO SOCIAL E EDUCAÇÃO NA SAÚDE...<br />

69


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

70<br />

A inserção do <strong>Serviço</strong> Social nos Programas de Residência<br />

Multiprofissional em Saúde<br />

Considerando os pressupostos da Educação Permanente é<br />

possível identificar, na formação através de Programas de Residência<br />

Multiprofissional em Saúde, uma organização propícia para atender<br />

à concepção pedagógica que a fundamenta. Neste caso, a modalidade<br />

de Residência Multiprofissional em Saúde (RMS) como proposta de<br />

formação pode constituir-se como um espaço significativo para projetos<br />

contra-hegemônicos que buscam uma transformação de práticas, a partir<br />

da reflexão crítica da realidade. Significativo porque a formação deve<br />

articular experiência do trabalho no cotidiano da área da saúde e discussões<br />

relacionadas a essa experiência, em seminários, aulas ou outros espaços<br />

de debates, subsidiados por referenciais teóricos, em alguns momentos,<br />

em conjunto com os diferentes profissionais da área da saúde e, em outros,<br />

entre os trabalhadores da mesma categoria profissional.<br />

Conforme Portaria Interministerial nº 1.077, de 12 de novembro<br />

de 2009, a RMS é uma modalidade de ensino de especialização, de <strong>pós</strong><strong>graduação</strong><br />

lato sensu, com duração mínima de dois anos, em que os<br />

profissionais da área de saúde vivenciam a prática, inseridos no universo<br />

de trabalho e atuando efetivamente, com uma carga horária semanal<br />

de 60 horas, com períodos específicos (20% do total da carga horária)<br />

para discussão sobre a prática desenvolvida no processo de trabalho. As<br />

profissões inseridas, descritas no documento, são Biomedicina, Ciências<br />

Biológicas, Educação Física, Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia,<br />

Fonoaudiologia, Medicina Veterinária, Nutrição, Odontologia, Psicologia,<br />

<strong>Serviço</strong> Social e Terapia Ocupacional. Assim, na Residência, as vivências<br />

práticas de inserção na equipe de saúde fazem parte da formação,<br />

contribuindo para um processo aprendizagem significativa, baseada na<br />

experimentação desenvolvida nos processos de trabalho.<br />

A operacionalização do Programa de Residência traz as<br />

consequências das transformações societárias relacionadas ao cotidiano<br />

dos serviços de saúde e a condução do trabalho do assistente <strong>social</strong><br />

na atualidade. O trabalho do Assistente Social nesse Programa articula<br />

experiência prática do cotidiano da área da saúde e os debates teóricos<br />

em espaços de discussão de conhecimentos específicos. A partir dessa<br />

articulação, o profissional é orientado e acompanha atividades de atenção


integral à saúde em serviços e atividades de estudo, em conjunto com<br />

outras categorias profissionais. Assim, o trabalho pode ser um espaço<br />

privilegiado de formação, onde é possível compartilhar conhecimentos<br />

para a consolidação do projeto ético-político do <strong>Serviço</strong> Social.<br />

Na proposta do Programa, o Assistente Social participa da<br />

formação pelo cotidiano de práticas no mundo do trabalho. Mas o<br />

trabalho, no contexto do sistema capitalista, é transformado em valor<br />

de troca (ANTUNES, 1999) e o trabalhador, mesmo na área da saúde,<br />

sofre essa influência. Nessa lógica, o trabalhador da área da saúde,<br />

muitas vezes, não vê significado <strong>social</strong> no seu trabalho, mas só o sentido<br />

da prestação de serviço para o “patrão” (Estado ou iniciativa privada),<br />

vendendo a sua força como mercadoria.<br />

Dessa forma, é preciso elucidar a tensão e a disputa entre projetos<br />

distintos no campo da saúde, a partir da análise das propostas de debates<br />

teóricos previstos no Programa de Residência Multiprofissional em<br />

Saúde e do processo de trabalho dos Assistentes Sociais nele inseridos.<br />

Os diferentes riscos e desafios colocados para o Assistente Social no<br />

cotidiano da sua atuação profissional na área da saúde precisam ser<br />

analisados, buscando identificar possibilidades de superação.<br />

Para Iamamoto, essa análise supõe articular uma dupla dimensão:<br />

De um lado, as condições macrossocietárias, que estabelecem o<br />

terreno sócio-histórico em que se exerce a profissão, seus limites<br />

e possibilidades; e, de outro, as respostas sócio-históricas, éticopolíticas<br />

e técnicas de agentes profissionais a esse contexto,<br />

as quais traduzem como esses limites e possibilidades são<br />

analisados, apropriados e projetados pelos assistentes sociais.<br />

(2008, p. 222).<br />

Nesse sentido, os profissionais, inseridos no Programa<br />

de Residência Multiprofissional em Saúde – espaço de ensinoaprendizagem-trabalho,<br />

devem contemplar o projeto ético-político do<br />

<strong>Serviço</strong> Social no seu processo de trabalho e nos temas debatidos nos<br />

espaços de discussão teórica, também com o objetivo de qualificar a<br />

formação, considerando as particularidades do <strong>Serviço</strong> Social e o<br />

compromisso com os usuários e com os Assistentes Sociais residentes.<br />

Iamamoto (2008) afirma ainda que o projeto realiza-se em<br />

diferentes dimensões do universo da profissão: a) nos instrumentos<br />

legais, b) nas expressões e manifestações coletivas da categoria, c)<br />

SERVIÇO SOCIAL E EDUCAÇÃO NA SAÚDE...<br />

71


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

72<br />

nas articulações com outras entidades de <strong>Serviço</strong> Social ao nível<br />

latino-americano e internacional e outras categorias profissionais e<br />

movimentos organizados, d) no trabalho profissional desenvolvido<br />

nos diferentes espaços ocupacionais, e) no ensino universitário,<br />

responsável pela qualificação teórica nos níveis de <strong>graduação</strong> e<br />

<strong>pós</strong>-<strong>graduação</strong>. Assim, o Programa de Residência Multiprofissional<br />

contempla diferentes dimensões desse universo no qual o projeto<br />

profissional pode ser realizado.<br />

No entanto, a apropriação do projeto ético-político na prática dos<br />

Assistentes Sociais ainda é bastante fragilizada pelas diferentes tensões<br />

vivenciadas nos espaços sócio-ocupacionais. O projeto profissional<br />

diverge dos interesses do projeto societário hegemônico. É importante<br />

considerar esse enfrentamento,<br />

exceto se quiser esterilizar no messianismo, até mesmo um<br />

projeto profissional crítico e avançado deve ter em conta tais<br />

limites, cujas linhas mais evidentes se expressam nas condições<br />

institucionais do mercado de trabalho (NETTO, 2006, p. 146<br />

e 147).<br />

Além disso, segundo Netto (2006), o debate acerca do projeto<br />

ético-político é muito recente, aproximadamente desde a transição<br />

dos anos 70 aos 80. A partir de então, a formação/ensino precisou ser<br />

redimensionada para a preparação de um novo perfil profissional, capaz<br />

de responder às demandas tradicionais e emergentes. Nesse sentido, os<br />

Assistentes Sociais que buscam a formação <strong>pós</strong>-graduada já acessaram<br />

conteúdos para a compreensão dessa necessidade na <strong>graduação</strong>. Esses<br />

conteúdos são os componentes imperativos à formação acadêmica,<br />

em instituições de nível superior, credenciadas e segundo padrões<br />

curriculares minimamente determinados.<br />

Entretanto, a formação dos Assistentes Sociais tem sido<br />

marcada pelas consequências da contrarreforma da educação superior,<br />

mercantilizando o ensino e desconfigurando as diretrizes curriculares,<br />

construídas coletivamente e defendidas pelas entidades organizativas<br />

da profissão, que têm como base o projeto ético-político. Nesse sentido,<br />

houve uma simplificação drástica dessas diretrizes curriculares, pelo<br />

Conselho Nacional de Educação (CNE), acompanhando um projeto de<br />

formação reduzido, mais flexível, atendendo necessidades do mercado<br />

e precarizando o ensino. Além disso, a aplicabilidade desses conteúdos


na prática profissional, para a materialização do projeto ético-político<br />

da profissão, diz respeito também às opções teóricas e ideológicas.<br />

Nesse sentido, Bravo (2007) aponta questões que indicam uma<br />

ofensiva conservadora à tendência hegemônica do <strong>Serviço</strong> Social,<br />

iniciada na década de 1990, que passa pelo discurso do distanciamento<br />

entre teoria e prática, pela descrença da possibilidade da existência<br />

de políticas públicas e da suposta necessidade da construção de um<br />

saber específico na área, com ênfase numa dimensão subjetiva e/ou<br />

fragmentada conforme especialidades da medicina. Para a autora, o<br />

problema não é o fato de os profissionais buscarem estudos na área<br />

da saúde, mas sim quando obscurece a função <strong>social</strong> da profissão na<br />

divisão <strong>social</strong> e técnica do trabalho e desconsidera a importância de<br />

formar trabalhadores de saúde para o SUS com visão generalista.<br />

Através da educação pelo trabalho, o Assistente Social<br />

inserido no Programa de Residência, pode analisar criticamente as<br />

práticas desenvolvidas, buscando aproximá-las com os princípios<br />

fundamentais do Código de Ética Profissional. No entanto, com a<br />

lógica de racionalização de gastos na área da saúde, o financiamento<br />

desse Programa de formação atualmente também sofre cortes,<br />

em favorecimento de outras estratégias de educação que reduzem<br />

as possibilidades de processo de ensino-aprendizagem-trabalho<br />

significativo, entre elas, a educação à distância, por exemplo.<br />

Considerações finais<br />

A reflexão construída buscou problematizar conceitos que<br />

podem ser operacionalizados de forma estratégica para a construção do<br />

SUS, idealizado pela Reforma Sanitária, como a Educação Permanente<br />

e o projeto ético-político do <strong>Serviço</strong> Social. Ao problematizá-los é<br />

possível compreender os desafios impostos pelo contexto atual das<br />

políticas sociais no Brasil, em especial da política de saúde. Ampliar<br />

a compreensão poderá permitir a construção de subsídios para superálos,<br />

a fim de atender o compromisso assumido por esta proposta de<br />

formação e por esta categoria profissional.<br />

Atuar em um espaço de constante tensionamento gerado por<br />

interesses fortemente articulados para atender ao sistema de produção<br />

capitalista, exige iniciativas organizadas pelo coletivo de Assistentes<br />

SERVIÇO SOCIAL E EDUCAÇÃO NA SAÚDE...<br />

73


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

74<br />

Sociais, mas principalmente buscando compor com as demais categorias<br />

profissionais, a partir do necessário diálogo constante. É importante<br />

destacar que essa aproximação com os diferentes trabalhadores da saúde,<br />

que também vivenciam as consequências do enxugamento das políticas<br />

sociais, é condicionada por uma disposição para o debate, mesmo entre<br />

posicionamentos que representam projetos societários distintos.<br />

Assim, articulado ao demais trabalhadores, o compromisso<br />

assumido na educação pelo trabalho dos Assistentes Sociais<br />

residentes deverá contribuir para a garantia da defesa do projeto éticopolítico,<br />

bem como para a defesa do Projeto da Reforma Sanitária<br />

e os pressupostos da educação permanente na formação para a<br />

transformação da realidade <strong>social</strong> – grande bandeira do movimento<br />

sanitário nos anos 80 e intencionalmente atenuada no contexto atual<br />

da política de saúde brasileira.


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SERVIÇO SOCIAL E EDUCAÇÃO NA SAÚDE...<br />

77


PARTE II<br />

FAZERES CONSTRUÍDOS<br />

X<br />

FAZERES INSTITUÍDOS:<br />

A concretude da formação


A FAMÍLIA COMO REDE DE APOIO AO DEPENDENTE<br />

QUÍMICO: DESAFIOS E POSSIBILIDADES NO ÂMBITO DA<br />

SAÚDE PÚBLICA 1*<br />

Cláucia Ivete Schwerz<br />

Maria Isabel Barros Bellini<br />

A discussão acerca da dependência química no âmbito da saúde<br />

pública brasileira apresenta-se como uma temática de fundamental<br />

relevância para os diferentes profissionais que atuam nesse campo, uma<br />

vez que os dados nos remetem a uma realidade que abrange grande<br />

parte da sociedade. Aproximadamente 45% da população brasileira<br />

são dependentes de alguma droga lícita ou ilícita (LARANJEIRA,<br />

2005). Somente a partir da explicitação desse dado é possível afirmar<br />

a necessidade de aprofundamento científico e de proposição de<br />

alternativas que sejam eficazes no trato da questão. Ao ampliarmos<br />

nosso olhar e considerarmos as inúmeras implicações da drogadição<br />

em nossa sociedade torna-se possível visualizar os prejuízos laborais,<br />

sociais, afetivos, que se estendem pelas linhas que constituem a rede de<br />

vida dos sujeitos, o que representa sua família, seus laços de amizade,<br />

seu espaço profissional, sua vizinhança, sua comunidade, enfim, sua<br />

identidade, sua representação <strong>social</strong>. O lastro que a dependência de<br />

determinadas substâncias pode deixar na vida de inúmeros cidadãos<br />

pode tomar uma dimensão quase devastadora, mas não irreversível.<br />

Diante desse quadro, o <strong>Serviço</strong> Social, enquanto categoria<br />

profissional inserida no rol dos trabalhadores da área da saúde e como<br />

uma profissão que tem em seu objeto as diferentes expressões da questão<br />

<strong>social</strong>, deve-se inserir no atendimento a essa demanda de forma crítica,<br />

no que se refere à apreensão da realidade, e propositiva, em ações que<br />

possam ampliar o leque de alternativas tanto eficazes como viáveis para<br />

o SUS – competências essas que são de sua atribuição.<br />

1 O presente artigo é um recorte da dissertação de mestrado A Família enquanto rede de apoio aos<br />

Dependentes Químicos: desafios e possibilidades nas linhas percorridas no âmbito da saúde pública,<br />

orientada pela professora Dra. Maria Isabel Barros Bellini, concluída em 2007. Sua elaboração foi inspirada<br />

no trabalho de conclusão de curso intitulado “Internação Domiciliar para Dependentes Químicos”, resultado<br />

da experiência prévia construída no âmbito da Residência Integrada em Saúde Mental Coletiva da Escola<br />

de Saúde Pública/RS. A continuidade da investigação se deu na pesquisa realizada junto ao Programa de<br />

Pós-Graduação da Faculdade de <strong>Serviço</strong> Social nos anos de 2006/2007.


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

80<br />

No que diz respeito à importância da atenção voltada para<br />

a família, essa se encontra fundamentada e preconizada nas leis que<br />

regem os diferentes campos das políticas públicas. Um exemplo é a<br />

Política Nacional de Assistência Social (PNAS), sendo ainda firmada<br />

nas bases da Política de Atenção Integral à Saúde Mental. No campo<br />

da dependência química, o atendimento ao dependente químico<br />

integrado à família, à comunidade e aos demais serviços da rede que<br />

constituem a vida do sujeito se encontra preconizado nos decretos<br />

de Lei que determinam a política de atenção à dependência química.<br />

Esses reconhecem a fundamental importância da atenção integral<br />

no tratamento dessa demanda, que consiste em campo fértil para a<br />

intervenção do assistente <strong>social</strong>.<br />

Este artigo trata de pesquisa realizada em nível de mestrado<br />

que teve como disparador a vivência como Residente do Programa<br />

de Residência Integrada em Saúde Mental Coletiva, que se constitui<br />

espaço formador de trabalhadores na área da Saúde Pública. O modelo<br />

de atendimento utilizado para fins dessa investigação, cujo objetivo é<br />

analisar a possibilidade de fortalecimento da família enquanto rede de<br />

apoio ao dependente químico, bem como seu potencial na prevenção<br />

de recaída ou na redução de danos é o modelo de tratamento da<br />

internação domiciliar, que se encontra como modalidade do serviço<br />

preconizado na Lei do SUS.<br />

A demanda da dependência química não pode ser vista somente<br />

sob um ponto de vista, é necessário que as expressões da questão <strong>social</strong>,<br />

dentre elas a dependência química, sejam compreendidas enquanto<br />

partes intrínsecas ao sistema macro para que se possam desdobrar as<br />

possibilidades e mesmo os limites de suas refrações.<br />

Segue-se uma discussão acerca da família, sua centralidade<br />

no campo das políticas públicas enquanto categoria de análise para a<br />

proposta da pesquisa desenvolvida, que visa identificar as possibilidades<br />

de fortalecê-la na condição de rede de apoio ao dependente químico<br />

e a ela própria enquanto grupo. Seguindo com a discussão acerca de<br />

possibilidades de intervenção com a demanda da dependência química<br />

bem como com a sua história na sociedade, e a condição para a mudança<br />

dos sujeitos permeados por essa realidade através de um conjunto<br />

de ações que devem estar na contramão de uma lógica moralista e<br />

repressora ainda presente em políticas públicas do Estado.


A dependência química, seus reflexos sociais e a política de<br />

saúde pública no Brasil<br />

É com o olhar crítico para o contexto, e em meio a este, que se<br />

faz a discussão acerca do tema da pesquisa. Em se tratando do âmbito<br />

da saúde, é preciso destacar que a Constituição Federal de 1988, do<br />

artigo 196 ao 200, promoveu uma verdadeira revolução, criando um<br />

novo sistema de saúde pública no país. A Legislação Federal e Estadual<br />

do SUS (2000, p. 14) determina que<br />

A saúde é direito de todos e dever do Estado,<br />

garantido mediante políticas sociais e econômicas, que visem<br />

à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso<br />

universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção,<br />

proteção e recuperação.<br />

Assenta, ainda, que o SUS deve dispor de serviços integrados em<br />

uma rede regionalizada e hierarquizada, basear-se na descentralização,<br />

com direção única em cada esfera de governo.<br />

No tratamento da dependência química, são propostos diversos<br />

métodos de intervenção. Ganham destaque as intervenções com a família,<br />

na comunidade, as relações significativas e o ambiente de trabalho<br />

(SONENREICH, 2000, p. 341). Indica-se, primeiramente, que os pacientes<br />

sejam desintoxicados ambulatorialmente. Nos casos considerados mais<br />

graves e que reúnam condições de fazer uma internação domiciliar, essa<br />

deve ser a opção, deixando-se a hospitalização indicada para o último<br />

caso (RAMOS; BERTOLOTE, 1987, p. 116).<br />

A abordagem sobre a drogadição e as políticas públicas para<br />

enfrentamento dessa realidade são questões geradoras de polêmica, devido<br />

às diferentes concepções de entendimento e tratamento do tema; outro<br />

problema é o fato de tratar-se de drogas em um país que, como outros, tem<br />

uma sociedade permeada por elas sob as mais diversas formas. Lícitas e<br />

ilícitas, envolvidas em fortes relações de poder e interesses políticos, nos<br />

mais diversos meios de propagação, possibilitando ao ser humano delas<br />

fazer uso, abuso ou mesmo tornar-se dependente.<br />

No Brasil, a corrente de pensamento que defendia a redução de<br />

danos teve pouca adesão. A primeira experiência ocorreu em 1989, na<br />

cidade de Santos, no Estado de São Paulo, onde o governo municipal<br />

lançou a proposta de distribuição de seringas e agulhas, a fim de<br />

A FAMÍLIA COMO REDE DE APOIO AO DEPENDENTE QUÍMICO...<br />

81


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

82<br />

controlar a epidemia de usuários de drogas injetáveis. A medida gerou<br />

polêmica nacional, sendo a intervenção enquadrada como crime, antes<br />

de ser referência para uma política brasileira de redução de danos pelo<br />

uso indevido de drogas (MESQUITA, 1994).<br />

A ideologia que permeia o Estado em suas intervenções no<br />

campo referente às drogas seja no atendimento à dependência química<br />

ou no enfrentamento ao tráfico, nos remete ao Estado de Polícia,<br />

instaurado no período medieval. Tratava-se de um “setor subsidiário<br />

da atividade do Estado, visando, sobretudo, à prevenção e punição dos<br />

ilícitos, mediante o emprego de um aparelho rígido e autoritário de<br />

investigação e intervenção” (BOBBIO, 1999, p. 410) que se estende até<br />

fins do século XVIII.<br />

Na própria conduta tomada a partir da primeira discussão do<br />

programa de redução de danos e nas demais situações de repressão,<br />

vistas em nosso atual sistema de “segurança” pública, e se formos mais<br />

a fundo com nossa visão sobre as políticas públicas, em seus diferentes<br />

setores, veremos ainda que as ideologias se parecem com as dos Estados<br />

de Polícia e Liberal.<br />

Essa percepção se dá ao tomarmos a conduta repressiva e<br />

moralista do Estado atual em relação ao abuso de substâncias em<br />

nossa sociedade. Observa-se, de acordo com (BUCHER, 1997), o<br />

processo de demonização e de criminalização dos drogadictos, que<br />

serve de balizamento para práticas normativas de correção de desvios,<br />

de controle <strong>social</strong> e moral daqueles que se distanciam dos padrões<br />

“normais” de funcionamento (BRAVO, VASCONCELOS, GAMA,<br />

MONNERAT, 2004, p. 168).<br />

No entanto, na contramão dessa lógica, ao se trabalhar com<br />

sujeitos que se tornam dependentes de substâncias psicoativas, assim<br />

como em outras áreas, buscamos com estes, a partir de uma perspectiva<br />

de acolhimento, viabilizar a protagonização de seus projetos de vida.<br />

Projetos que encontram sérios desafios no atual contexto <strong>social</strong> do país<br />

– que não pode ser deixado de lado nesta análise, na medida em que<br />

grande parte da população encontra-se atingida pelos fatores estressores<br />

sociais e afetada em suas condições de vida.<br />

A internação domiciliar ressalta-se, está prevista na Lei 8.080, de<br />

19 de setembro de 1990, quando passa a vigorar acrescida do seguinte<br />

Capítulo VI e do art. 19º, “são estabelecidos, no âmbito do SUS, o


atendimento domiciliar e a internação domiciliar”, constando ainda<br />

do parágrafo 1.º que “na modalidade de assistência de atendimento e<br />

internação domiciliares incluem-se, principalmente, os procedimentos<br />

médicos, de enfermagem, fisioterapêuticos, psicológicos e de<br />

assistência <strong>social</strong>, entre outros necessários ao cuidado integral dos<br />

pacientes em seu domicílio”.<br />

O suporte <strong>social</strong> é fundamental para a melhora do prognóstico<br />

dos dependentes de substâncias psicoativas (RUSCH, 1989, p. 35). Uma<br />

investigação completa deve abordar a situação do sujeito em seu meio<br />

de convivência, a estabilidade do núcleo familiar e a disponibilidade<br />

deste para cooperar no tratamento, devendo-se organizar uma rede de<br />

suporte <strong>social</strong> (DEPARTMENT OF HEALTH, 1999, p. 162).<br />

Kern (2003) aporta uma importante discussão acerca do<br />

trabalho do assistente <strong>social</strong> via mediações em redes, discutindo a<br />

importância das redes sociais para o homem; na verdade, entendoas<br />

como essenciais para o tratamento, uma vez que o homem é por<br />

natureza um ser <strong>social</strong>.<br />

Nessa perspectiva, o autor trabalha o sentido da potencialização<br />

das redes que constituem as relações humanas e aborda a subjetividade,<br />

quer dizer, o potencial encontrado nas redes através da subjetividade,<br />

tanto a individual quanto a coletiva, transmitida uma para a outra<br />

instância em um movimento constante de relações intersubjetivas.<br />

Segundo Kern (2003, p. 54):<br />

A condição humana de estar com o outro significa que<br />

o ser humano move-se em direção ao relacionamento com o<br />

mundo que o rodeia, em busca de recursos de que necessita, não<br />

só para a subsistência, mas também para seu desenvolvimento.<br />

Faleiros (2001, p. 57), ao discutir as estratégias de fortalecimento<br />

do usuário por meio das mediações em rede, descreve as redes primárias<br />

como aquelas “que se configuram mais significativas para o eu, como<br />

as relações afetivas familiares e de amizade. As redes secundárias são<br />

formais, institucionalizadas, e dizem respeito à <strong>social</strong>ização do sujeito<br />

e a vínculos sociais mais amplos”. Nessa relação, o autor enfatiza que<br />

“as estratégias de intervenção devem combinar as mediações da rede de<br />

relação primária com as da rede secundária para fortalecer o patrimônio,<br />

o poder, a crítica e a autonomia do sujeito”.<br />

A FAMÍLIA COMO REDE DE APOIO AO DEPENDENTE QUÍMICO...<br />

83


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

84<br />

Seguindo com a leitura deste autor, em se tratando da questão da<br />

dependência química, aponta que<br />

a fragilização afetiva, resultante da rejeição familiar, que se<br />

manifesta em drogadição ou doença mental, implica uma<br />

estratégia voltada tanto para as relações familiares em que se<br />

imbricam de imediato como para a relação com instituições,<br />

com a garantia de direitos sociais, com a cultura (2001, p. 58).<br />

Cabe ainda enfatizar, de acordo com a mesma referência, o<br />

desdobramento dessa estratégia de intervenção voltada a essa demanda,<br />

através de uma compreensão do movimento que se dá do particular para<br />

o todo, assim como desse todo para o particular. Sobre a compreensão<br />

desse movimento, o autor faz a seguinte exposição:<br />

consumo de drogas – rejeição – abandono – família – rede<br />

familiar – relações de solidariedade – políticas de atendimento<br />

– garantia de direitos – imaginário da droga – atividade laboral,<br />

implicando o envolvimento dos atores que vão dando suporte<br />

tanto à compreensão da questão como à mudança de trajetória<br />

do sujeito (2001, p. 58).<br />

Com esse entendimento que se busca a mediação das situações<br />

adversas do cotidiano, viabilizando o protagonismo dos sujeitos<br />

envolvidos. A discussão acerca da família tem de se ater às condições<br />

em que essas famílias vivem no seu dia a dia, no âmbito doméstico,<br />

familiar e de vizinhança, com vistas a construir um projeto <strong>social</strong> no<br />

sentido de uma nova qualidade de vida. É nesta via das linhas das<br />

redes formadas pelos sujeitos que haverá a possibilidade de tencionar,<br />

fortalecer, abrir seus laços, apoiando, unindo, através dos vários<br />

protagonistas sociais – a família, comunidades, vizinhos, parentes,<br />

profissionais, instituições, lideranças, políticos –, enfim, a relação da<br />

totalidade com as partes e dessas com o todo.<br />

A partir da perspectiva de uma intervenção que considera a<br />

família como rede de apoio ao dependente químico, é necessária uma<br />

reflexão voltada para a sua centralidade no campo das políticas públicas.<br />

Tais políticas devem entendê-la como instância que deve ser igualmente<br />

atendida em suas necessidades, na medida em que essa compõe um<br />

papel central na vida do homem, enquanto âmbito de potencialidades e<br />

de situações conflituosas, constituindo uma complexa teia de relações


interpessoais influenciadas pela estrutura externa e por sua própria<br />

estrutura interna.<br />

A família como referência<br />

É nosso ponto de partida a afirmação de Mioto (1997:128)<br />

de que é preciso “pensar as famílias sempre numa perspectiva de<br />

mudança, dentro da qual se descarta a ideia dos modelos cristalizados<br />

para se refletirem as possibilidades em relação ao futuro”. Nesse<br />

sentido, reitera que as transformações ocorridas no âmbito familiar<br />

são históricas e articuladas com a sociedade, e quando não encontram<br />

“soluções adequadas para os desafios, elas expressam suas dificuldades<br />

por meio de inúmeros problemas (dificuldades de relacionamento,<br />

membros-problema, doenças)”. Esses aspectos são reiterados por<br />

Bellini quando refere que<br />

A historicidade das transformações estruturais e<br />

relacionais da família deve ser compreendida pelos profissionais<br />

e pesquisadores com intimidade, com olhar atento e um diálogo<br />

vigilante, rigoroso, pois muitas destas transformações estão<br />

ligadas a estereótipos surgidos ainda no período de imigração<br />

do Brasil. (2011, p. 116).<br />

Os conflitos devem ser compreendidos pelas condições em que<br />

vivem as famílias que lidam diariamente com a luta de conquistarem seu<br />

alimento, sempre escasso, “processos que são acentuados por condições<br />

desfavoráveis” (BELLINI, 2011, p. 126). Lutam, igualmente, por um<br />

espaço no interior de suas pequenas casas que, geralmente, abrigam um<br />

grande número de membros, sendo necessário lutarem por um lugar<br />

nas camas e colchões, tornando-se impossível a privacidade. Nas casas,<br />

encontram-se literalmente jogados uns sobre os outros, compartilhando<br />

seus sentimentos, sejam eles de afeto, raiva ou de frustração.<br />

Para seguirmos compreendendo a dinâmica dos conflitos<br />

existentes no contexto familiar, utilizaremos a seguinte definição de<br />

Schabbel (2004, p. 417):<br />

considera-se a família como um sistema <strong>social</strong>, formado por<br />

unidades interdependentes (pessoas) que, por comunicação e<br />

comportamentos recursivos, estabelecem um intercâmbio de<br />

influências recíproco. Os membros de uma família desenvolvem<br />

A FAMÍLIA COMO REDE DE APOIO AO DEPENDENTE QUÍMICO...<br />

85


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

86<br />

padrões compartilhados de comportamento a partir da<br />

sistematização de hábitos e do “mergulho” em conhecimento<br />

por vezes inconsciente ou de níveis mais arcaicos, a ecologia<br />

das ideias, que são determinantes no entrelaçamento das<br />

relações familiares.<br />

Nesse sentido, entende-se que a família constrói significados<br />

que podem estar baseados em suas crenças, premissas, regras, que irão<br />

orientar as interações entre seus membros, além das demais relações<br />

sociais, de uma forma que os caracteriza em alguns aspectos.<br />

Considerando-se os fatores que colaboram para o agravamento<br />

dos conflitos internos das famílias, o alcoolismo, as dependências de<br />

outras drogas e as violências somam-se ao quadro de fragilização.<br />

A condição de miséria das famílias brasileiras consideradas<br />

de baixa renda é um quadro alarmante, que exige políticas voltadas<br />

para a distribuição de renda enquanto uma política de proteção em<br />

meio ao sistema capitalista que gera, cada vez mais, um número<br />

massivo de desempregados. A família, afetada nesse contexto,<br />

necessita de um apoio direcionado ao maior usufruto de bens e<br />

serviços indispensáveis à alteração da qualidade de vida e à exclusão<br />

a que estão submetidas.<br />

Há a necessidade de se ampliar a rede <strong>social</strong> de apoio às famílias<br />

que sejam conhecedoras do trato com essas questões, ultrapassando a<br />

oferta de serviços exclusivamente solidários, de cunho caritativo. Essa<br />

rede deve abranger os serviços de saúde, educação, assistência <strong>social</strong> e<br />

outros, uma vez que tratamos de uma realidade complexa, que exige a<br />

integração dos diferentes âmbitos das políticas públicas.<br />

No campo da dependência química, igualmente dispomos de<br />

alternativas para os sujeitos. Trata-se de uma acolhida que propicie<br />

às pessoas uma escolha consciente, que não pode ser encorajada em<br />

um sistema no qual as pessoas são induzidas a seguirem determinado<br />

modo de ação, nem em programas em que um tratamento relativamente<br />

padronizado é oferecido a todos. Há de se motivar aqueles que buscam<br />

ajuda a reconhecerem sua liberdade de escolha em relação à forma<br />

como desejam tratar de sua condição.<br />

Portanto, trabalhar na perspectiva de cidadania e do<br />

fortalecimento da autoestima dos sujeitos inclui receptividade, respeito,<br />

apoio, afeto, preocupação, compreensão empática, comprometimento e<br />

interesse pelo que pensam, sentem e fazem.


Nesse sentido, o atendimento ao sujeito dependente químico<br />

e sua família é entendido como um processo que implica uma escuta<br />

ativa, visando à criação de um espaço para o diálogo com avaliação<br />

de interesses e necessidades, com uma análise de causas e soluções,<br />

e planejamento de ações inovadoras a partir das possibilidades e<br />

circunstâncias que estão sendo vivenciadas no momento.<br />

A pesquisa<br />

Nesta pesquisa de mestrado investigamos as vantagens e<br />

desvantagens identificadas pelas famílias no Modelo de Internação<br />

Domiciliar para Dependentes Químicos, bem como pela equipe<br />

responsável pelo Programa de Dependência Química do Ambulatório<br />

Melanie Klein, de Porto Alegre.<br />

A primeira fase foi realizada em 2004 enquanto projeto de<br />

pesquisa desenvolvida no terceiro ano do Programa de Residência<br />

Integrada em Saúde Mental/RIS/ESP. Na época foram acompanhados<br />

quatro sujeitos os quais foram internados no seu domicilio.<br />

Nossa pesquisa buscou esses sujeitos e suas famílias dois anos<br />

a<strong>pós</strong> para avaliar com eles a experiência de internação domiciliar.<br />

Conhecer o que pensam os sujeitos a respeito da proposta<br />

de atendimento realizada em seu domicílio em conjunto com seus<br />

familiares, buscando desvelar os sentimentos que perpassam todos e<br />

a forma como conduzem o tratamento e pensar possibilidades para<br />

prevenção de recaída ou mesmo na elaboração de estratégias de redução<br />

de danos na dependência química, foi o que nos moveu.<br />

Com objetivo de analisar o modelo de internação domiciliar<br />

do dependente químico realizado no Ambulatório Melanie Klein, no<br />

âmbito da Saúde Pública, nossa finalidade foi apontar vantagens e<br />

desvantagens identificadas pela família e pelo sujeito neste modelo<br />

de atendimento, bem como pela equipe responsável pelo Programa<br />

de Dependência Química, de modo a contribuir com subsídios para<br />

o seu aprimoramento.<br />

O método utilizado foi o método dialético-crítico, pois está em<br />

consonância com o Documento da Associação Brasileira de Ensino e<br />

Pesquisa em <strong>Serviço</strong> Social – ABEPSS (1996, p. 12-13), a orientação da<br />

formação profissional dos Assistentes Sociais está pautada pela matriz<br />

A FAMÍLIA COMO REDE DE APOIO AO DEPENDENTE QUÍMICO...<br />

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<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

88<br />

marxista que, ao referir-se à abordagem da questão <strong>social</strong>, objeto do<br />

<strong>Serviço</strong> Social, aponta que,<br />

na apreensão do processo como totalidade, reproduzindo<br />

o movimento do real em suas manifestações universais,<br />

particulares e singulares, em seus componentes de objetividade<br />

e subjetividade, em suas dimensões econômicas, políticas,<br />

éticas, ideológicas e culturais, fundamentado em categorias que<br />

emanam da teoria crítica.<br />

A perspectiva dialético-crítico busca refletir sobre o contexto<br />

histórico, político, econômico e <strong>social</strong>, considerando os sujeitos<br />

da intervenção determinados pelas relações de poder, capazes de<br />

transformar sua realidade, movendo-se dentro da estrutura da sociedade<br />

e posicionando-se frente a essa.<br />

O saber buscado nesse processo implica conhecer a realidade da<br />

forma mais ampla possível, relacionada às singularidades dos sujeitos,<br />

com objetividade e autocrítica diante da intervenção, para que seja<br />

comprometida ética e politicamente com os princípios que norteiam a<br />

práxis do <strong>Serviço</strong> Social.<br />

Os participantes da pesquisa foram aqueles que participaram desta<br />

modalidade de atendimento para dependência química no Ambulatório<br />

Melanie Klein do Hospital Psiquiátrico São Pedro no período em que<br />

foi implementado, no ano de 2004, com a realização dos atendimentos<br />

nos meses de junho a agosto, ou seja, aqueles que participaram da<br />

primeira fase de implantação do modelo a fim de se observar como se<br />

encontravam no período em que a segunda etapa foi retomada, no ano<br />

de 2006, bem como os processos que passaram a<strong>pós</strong> o tratamento, para<br />

que se possa identificar a possibilidade de contribuição na prevenção<br />

da recaída ou na redução de danos. Cabe ressaltar que os critérios para<br />

a amostra do respectivo período em que foi efetivada consistiam em<br />

sujeitos do sexo masculino ou feminino que fecharam critérios para<br />

dependência de acordo com a OMS (1993). Seus perfis configuram-se<br />

por faixas etárias entre 18 e 60 anos, com suporte familiar, desejo de<br />

realizar esse tipo de atendimento e não apresentação de riscos físicos<br />

importantes, como delirium tremens, suicídio e agressão.<br />

Identificamos quatro sujeitos na primeira fase da<br />

implementação do projeto de internação domiciliar no Ambulatório<br />

Melanie Klein realizada no ano de 2004, no período de junho


a agosto, sendo esses os mesmos sujeitos entrevistados para o<br />

aprofundamento da análise desse modelo de tratamento. Foram<br />

feitas entrevistas enquanto instrumentos para análise, bem como<br />

as entrevistas colhidas no primeiro ano da sua realização, a fim de<br />

verificar se houve mudanças quanto aos aspectos apontados.<br />

A equipe constituída dos técnicos do Ambulatório Melanie<br />

Klein, sendo uma psicóloga, uma psiquiatra, um médico clínico e uma<br />

assistente <strong>social</strong>, também foi entrevistada, assim como os residentes<br />

que na época eram cinco médicos psiquiatras, um enfermeiro, uma<br />

assistente <strong>social</strong>, duas terapeutas ocupacionais e uma artista plástica.<br />

As abordagens foram realizadas no espaço do ambulatório<br />

Melanie Klein, conforme acordado com a Coordenadora do Programa de<br />

Dependência Química. A respeito das intervenções que foram realizadas<br />

nos domicílios dos sujeitos na primeira fase em que foi implantado o<br />

modelo, essas foram realizadas diariamente, em duplas, composta<br />

pela pesquisadora e por mais um membro da equipe. O tempo para a<br />

internação domiciliar neste modelo foi de um período médio de sete<br />

dias, de acordo com as necessidades de cada sujeito, podendo chegar a<br />

10 dias. Para os acompanhamentos diários do modelo, foram utilizados<br />

roteiros, para que a equipe estivesse voltada aos aspectos que devem ser<br />

contemplados, de acordo com os objetivos da pesquisa e os cuidados<br />

ao sujeito que devem ser observados. A metodologia utilizada para a<br />

análise dos dados qualitativos foi a denominada análise de conteúdo,<br />

a qual visa não somente à descrição de resultados, mas à compreensão<br />

dos significados envoltos na realidade que se está buscando estudar.<br />

O reencontro – uma oportunidade de compartilhar a história<br />

O reencontro é, então, a realização da pesquisa no âmbito da<br />

academia, a fim de aprofundar a discussão quanto a esse modelo de<br />

tratamento. Cumpre-se, assim, o objetivo de analisar o modelo de<br />

internação domiciliar do dependente químico, realizado no Ambulatório<br />

Melanie Klein no âmbito da Saúde Pública. A finalidade é identificar as<br />

vantagens e desvantagens identificadas pela família e pelo sujeito neste<br />

modelo de atendimento, bem como a avaliação da equipe responsável<br />

pelo Programa de Dependência Química, de modo a contribuir com<br />

subsídios para o seu aprimoramento.<br />

A FAMÍLIA COMO REDE DE APOIO AO DEPENDENTE QUÍMICO...<br />

89


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

90<br />

Assim, serão descritos trechos importantes das falas dos sujeitos<br />

que contêm os que indicarão as categorias principais que estão sendo<br />

interpretadas em relação aos objetivos da pesquisa.<br />

O primeiro sujeito do sexo masculino, com 37 anos de idade,<br />

residia com a esposa e três filhos. Possuía segundo grau completo,<br />

profissional de Técnico em Enfermagem, estando em licença saúde no<br />

período da internação domiciliar. Dependente de álcool desde os 12 anos<br />

de idade, com consumo de meio litro de cachaça por dia, relatava estar a<br />

três meses sem fazer uso da bebida. Buscou atendimento ambulatorial,<br />

pois “se sentia muito nervoso com a família e estava com medo de<br />

agredir os filhos” (sic).<br />

Desde sua avaliação inicial, de acordo com os seus relatos<br />

e avaliação da equipe interdisciplinar, trabalhou-se com a hipótese<br />

diagnóstica de este sujeito ter uma comorbidade psiquiátrica 21 de<br />

depressão com sintomas psicóticos. A investigação então da equipe<br />

buscava identificar se essa era primária ou secundária à dependência<br />

química. Seus familiares não queriam que fosse realizada uma<br />

internação hospitalar, optando, assim, pela internação domiciliar,<br />

onde ficou sendo acompanhado durante cinco dias, quando apresentou<br />

sintomas psicóticos graves, sendo então encaminhado para internação<br />

hospitalar devido ao risco de suicídio avaliado pelos profissionais.<br />

No reencontro, encontrava-se exercendo sua atividade profissional<br />

de auxiliar de enfermagem em um hospital da rede pública de Porto<br />

Alegre. Depois de terminado o ano de 2004 em acompanhamento no<br />

Ambulatório Melanie Klein, foi encaminhado para a Unidade Básica de<br />

Saúde (UBS) de sua região para obter continuidade no acompanhamento<br />

da depressão e ao Grupo de Alcoólicos Anônimos como apoio para a<br />

manutenção da abstinência para o álcool.<br />

Nesse intervalo de tempo, relatou três recaídas, mas que não<br />

consistiram em reinstalação. 3 Durante a realização da entrevista, ele<br />

e sua esposa contaram suas vivências, suas descobertas, seus “limites”<br />

(sic). Apontaram como vantagens do período da internação domiciliar<br />

ter recebido um atendimento “especializado”, que “esclareceu” seu<br />

2 O uso de drogas pode ser ao mesmo tempo causa, consequência de transtorno mental ou simplesmente<br />

ocorrer na presença de outro diagnóstico psiquiátrico, sendo em geral difícil determinar se a patologia<br />

observada é resultado do uso regular das drogas, consequência de seus efeitos ou faz parte da síndrome de<br />

abstinência (SEIBEL; TOSCANO JR., 2004).<br />

3 Retorno a um nível preexistente de uso e de dependência de substância psicoativa em um indivíduo a<strong>pós</strong><br />

período de abstinência (SEIBEL; TOSCANO JR., 2004).


“problema” (sic). Relatava sua própria historia como: iniciou o consumo<br />

de álcool aos 12 anos de idade e a depressão foi decorrente, dentre<br />

outros fatores, da dependência. A esposa compartilhara deste ponto e<br />

relatara o “medo” que sentiu, vendo a doença do marido se agravando<br />

em casa, mas, ao mesmo tempo, “amparada”, porque “vocês iam todos<br />

os dias lá” (sic), referindo-se à equipe. Ambos relataram que o fato de<br />

ter sido atendido por uma equipe especializada em saúde mental foi<br />

esclarecedor, tanto para o seu diagnóstico como para o tratamento, o<br />

que o ajudou nas recaídas.<br />

A segunda participante, do sexo feminino, com 44 anos de<br />

idade, divorciada, residia sozinha nos fundos da casa de um de seus<br />

filhos. Possuía terceiro grau incompleto e era professora aposentada.<br />

Dependente de benzodiazepínicos desde os 29 anos e de álcool desde<br />

os 36 anos. Consumia diariamente meio litro de vinho ou cachaça.<br />

Apresentava comorbidade psiquiátrica de Transtorno Afetivo Bipolar<br />

que se caracteriza por alterações do humor, com episódios depressivos<br />

e maníacos ao longo da vida, para o qual já recebia acompanhamento<br />

interdisciplinar no Ambulatório Melanie Klein, sendo encaminhada<br />

para a internação domiciliar para a realização da desintoxicação do<br />

álcool, o que não conseguiu realizar em nível ambulatorial. Continuava<br />

vinculada ao Grupo de Dependência Química do Ambulatório Melanie<br />

Klein, o qual frequentava semanalmente. No período de dois anos e<br />

oito meses, não teve nenhuma recaída para o álcool nem para os<br />

benzodiazepínicos, fato que se deve também ao acompanhamento<br />

continuado que se encontrava recebendo até o dado momento.<br />

Em seu relato, afirma que “este foi o tratamento para a<br />

dependência química que mais me beneficiou” (sic). Atribuía ao fato<br />

de ter trabalhado em sua casa novos hábitos de rotina, paralelamente à<br />

realização da desintoxicação, ao que se refere como as estratégias para<br />

a prevenção da recaída – fato que, na internação hospitalar, de acordo<br />

com ela, “fica só na ideia”. A aproximação da família seguiu identificada<br />

como benéfica, pois relembra que no período da intoxicação constante<br />

afastou-se da família. “Tava na minha vidinha de remédios e bebida...<br />

perdida e isolada” (sic). Aponta os sentimentos de acolhida, carinho,<br />

afeto e confiança por parte da família.<br />

Em sua situação, o Ambulatório Melaine Klein é o serviço<br />

de referência mais próximo de sua <strong>residência</strong> e, portanto, a rede<br />

A FAMÍLIA COMO REDE DE APOIO AO DEPENDENTE QUÍMICO...<br />

91


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

92<br />

institucional de apoio que deve atendê-la, uma vez que os serviços de<br />

rede devem localizar-se próximos à moradia do usuário do serviço.<br />

O terceiro sujeito do sexo masculino, com quarenta anos de<br />

idade, divorciado, residia com a mãe e dois irmãos. Possuía o primeiro<br />

grau incompleto e estava sem trabalhar a quatro anos, não possuía renda<br />

pessoal mensal e contava, portanto, com a renda familiar proveniente<br />

da aposentadoria da mãe e da prestação de serviço de um dos irmãos.<br />

Foi morador de rua em momentos alternados em que não se sentia<br />

em condições de voltar para casa, segundo seu relato. Sua situação<br />

caracterizava-se por dependência cruzada, 4 utilizando-se de álcool,<br />

solventes e cocaína (crack), diariamente.<br />

Não foi encontrado e a entrevista foi realizada com sua família<br />

pela visita domiciliar. Segundo sua mãe e seu irmão, que participaram<br />

do tratamento da internação domiciliar, ele havia voltado para a rua a<strong>pós</strong><br />

permanecer seis meses em abstinência ao término do tratamento. Em<br />

seus relatos, acreditavam que, devido ao fato de ele não ter conseguido<br />

“emprego fixo”, sentia-se frustrado em não colaborar com as despesas<br />

da casa e “não aguentou” (sic). No entanto, nesse intervalo de tempo,<br />

a família conta que “ele vai e vem”. Ambos apontam que, com a<br />

internação domiciliar, puderam acompanhar seu familiar “de perto” e<br />

compreender sua doença. “Hoje, deixo ele voltar pra casa. É meu filho.<br />

Antes, botava ele pra correr” (sic). O vínculo familiar ficou mantido<br />

da forma “possível”. Eles entendem que o fato de ele não ter renda<br />

para contribuir nas despesas, o que já lhe preocupava no período da<br />

internação domiciliar, dificulta a manutenção da abstinência. Os laços<br />

que ele formou na rua “são mais fortes” (sic).<br />

O quarto sujeito da pesquisa, do sexo masculino, com 37 anos<br />

de idade, era casado e morava com a esposa e três filhos. Possuía<br />

o primeiro grau incompleto e realizava “biscates” como atividade<br />

profissional, mas a renda familiar fixa era proveniente da atividade<br />

profissional da esposa. Dependente de álcool desde os 14 anos, fazia<br />

consumos diários de um litro, variando entre destilado ou vinho.<br />

Buscou ajuda para tratamento ambulatorial, mas a<strong>pós</strong> um período de<br />

atendimento foi encaminhado pela equipe para a internação domiciliar,<br />

pois não estava conseguindo manter a abstinência.<br />

4 Termo farmacológico para denotar a capacidade de uma substância ou uma classe de substâncias de<br />

suprimir as manifestações da síndrome de abstinência de outra substância ou classe e assim manter o estado<br />

de dependência (SEIBEL; TOSCANO Jr, 2004).


Sua esposa inicia a conversa: “Continua a mesma coisa... Tem dias<br />

que ele bebe mais, outros menos, mas, pelo menos, voltou a fazer os biscates<br />

dele” (sic). Ele, com um gesto afirmativo com a cabeça, consente. Quanto<br />

ao relacionamento com os filhos, ambos afirmam que, com a internação<br />

domiciliar, foi possível que entendessem a doença do pai. “Eles não têm<br />

mais medo dele, quando tá muito bebum, todo mundo sai de perto”, diz a<br />

esposa. Ambos dizem que procuram a UBS, conforme lhes foi encaminhado<br />

no período a<strong>pós</strong> a desvinculação com o Ambulatório Melanie Klein, nos<br />

momentos em “que a coisa está demais” (sic). É uma forma de retomar<br />

as orientações acerca dos prejuízos do alcoolismo e das estratégias que<br />

podem utilizar para diminuir o consumo, sendo orientados na perspectiva<br />

da Redução de Danos, ou seja, minimizar os agravos individuais e sociais<br />

na medida em que não apresente condições de modificá-los, indicação mais<br />

adequada a ser trabalhada pelos profissionais da saúde de acordo com a<br />

situação deste usuário do serviço.<br />

A família como rede de apoio ao dependente químico<br />

A realidade estudada, sem dúvida, possui uma série de implicações<br />

e relações que são entendidas de formas diversas no campo teórico<br />

através das diferentes especificidades do conhecimento e mesmo para os<br />

cidadãos envoltos com essa questão. Portanto, a partir do entendimento<br />

do constante movimento do real e suas múltiplas implicações nas<br />

esferas de vida e em seu próprio significado, não se pretendeu com esta<br />

investigação determiná-la enquanto um saber que responde à demanda<br />

da dependência química. Mesmo porque o movimento dialético não se<br />

propõe a tal, ou seja, não esgota possibilidades.<br />

Os significados tidos para os sujeitos que vivenciaram esse<br />

modelo de tratamento estão contidos nas mensagens identificadas<br />

em seus relatos, os quais se referem tanto à subjetividade quanto à<br />

possibilidade efetiva da abstinência total. Tal situação foi encontrada em<br />

um dos casos, tornando-se condição para lidar e entender a dependência<br />

química de modo diferente ao entendimento do período anterior ao da<br />

vivência desse tratamento, identificado nas quatro situações atendidas<br />

nessa modalidade de tratamento.<br />

As dificuldades enfrentadas na vida podem fortalecer o<br />

sujeito, dependendo do modo como são vivenciadas. Conforme os<br />

A FAMÍLIA COMO REDE DE APOIO AO DEPENDENTE QUÍMICO...<br />

93


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

94<br />

relatos obtidos a<strong>pós</strong> a internação domiciliar, é possível perceber que,<br />

independentemente da manutenção da abstinência, o envolvimento<br />

familiar durante o tratamento teve destaque enquanto vantagem dessa<br />

modalidade de tratamento. A possibilidade de o grupo familiar entender<br />

a dependência química enquanto doença, bem como os prejuízos que<br />

decorrem dela desmistificando julgamentos morais, possibilitou outras<br />

formas de relacionamento intrafamiliar, calcadas em sentimentos de<br />

cuidado, respeito, tolerância. Como ainda o fato de os membros da<br />

família do dependente químico falarem de seus sentimentos e percepções<br />

em relação às situações vivenciadas deu-lhes também possibilidade de<br />

organizarem as suas questões.<br />

Não se trata de a família ser a “cuidadora de seu doente”, mas<br />

de ela receber atenção em sua integralidade, como forma de fortalecêla<br />

em períodos de crises e conflitos, nos quais comumente perpassam<br />

sentimentos de derrota, culpa, enfim, sentimentos punitivos, presentes<br />

em situações de familiar de dependente químico. As experiências<br />

negativas que são vivenciadas em meio à dependência química podem<br />

ser muitas e traumáticas, pois, como vimos nos casos pesquisados, ela<br />

se inicia precocemente na vida dos sujeitos. Portanto, os sentimentos<br />

negativos e mesmo doloridos que ficam para cada membro da família,<br />

de acordo como cada um assimila tais vivências, não são apagados, ao<br />

contrário, eles podem ir acumulando-se.<br />

Schabbel (2004, p. 420) refere que as disputas que surgem em<br />

virtude da presença de um dependente químico em uma família podem<br />

ser “disputas baseadas em interpretação, equívocos ou ambiguidades,<br />

e disputas em valores e objetivos”. Segundo a autora, a mediação<br />

necessária para tais situações é a seguinte:<br />

tem por objetivo preparar as partes para que se sintam<br />

suficientemente seguras para falar do problema, experienciar<br />

suas próprias potencialidades diante da questão e desenvolver<br />

o que Busch e Folger chamam de “força da compaixão”, que<br />

inclui empatia para com as outras partes envolvidas no conflito.<br />

Realizar tal trabalho pressupõe uma predisposição dos membros<br />

da família que, muitas vezes, não é encontrada em um primeiro<br />

momento devido à historicidade do grupo com a problemática.<br />

Assim, buscar a motivação desse grupo para a proposta faz parte da<br />

mediação e do início do fortalecimento da rede. A aceitação para esse


tipo de intervenção sinaliza que há laços e sentimentos positivos ainda<br />

presentes, fato que, por ele próprio, dá início ao fortalecimento da<br />

família, pois se reconhece a importância que um membro tem para o<br />

outro. Caso contrário, poderiam abster-se dessa intervenção e optar por<br />

um tratamento individual do dependente químico.<br />

Quando alguém se torna dependente de uma substância, muda<br />

seu modo de ser, seus hábitos e suas relações; passa a girar em volta de<br />

um contexto particular ao universo das drogas, o que, gradualmente,<br />

vai modificando seu estado natural enquanto ser humano e, assim,<br />

sua forma de se relacionar com o mundo. Essas modificações podem<br />

causar estranhamento às pessoas mais próximas e implicar mudanças<br />

também de sua parte. Tal situação pode transformar-se em um ciclo de<br />

conflitos em que as partes não se reconhecem mais e vão distanciandose<br />

ou culpando uns aos outros pelas transformações, com dificuldades<br />

de manter ou restabelecer os vínculos que um dia os uniu – fato que<br />

também foi relatado pelos familiares entrevistados.<br />

Nesse contexto, trabalhar em uma perspectiva de rede de apoio<br />

à família significa trabalhar para que os vínculos da família e sua rede<br />

sejam reconectados, na construção do fortalecimento da autonomia dos<br />

sujeitos a partir do reconhecimento de sua rede de pertencimento, na<br />

tentativa de auxiliar as pessoas a contatarem com aqueles que fazem<br />

parte da sua história.<br />

Em relação à análise de recaídas ao longo do tempo, há estudos<br />

que mostram que a estabilização da taxa de ocorrência começa a<br />

acontecer aproximadamente 90 dias a<strong>pós</strong> o início da abstinência<br />

(HUNT, BARNETT, BRANCH, 1971). No entanto, os 12 primeiros<br />

meses são considerados como período de alto risco de acordo com o<br />

DSM-IV (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 1994).<br />

Na clássica análise (CUMMINGS, GORDON, MARLATT,<br />

1980) de 311 episódios de recaída em dependentes de álcool, tabaco,<br />

heroína, alimentos e jogo compulsivo, identificou três situações primárias<br />

associadas ao problema: 1) estados emocionais negativos (35% das<br />

recaídas); 2) conflito interpessoal recente (16% das recaídas); e 3)<br />

pressão <strong>social</strong> (20% das recaídas). Estudos subsequentes não apontaram<br />

mudanças no quadro apresentado, mas variaram quanto à definição de<br />

pontos críticos. Um estudo (GOSSOP, GREEN, PHILLIPS, BRADLEY,<br />

1989) sobre recaídas em 80 dependentes de álcool e heroína, submetidos<br />

A FAMÍLIA COMO REDE DE APOIO AO DEPENDENTE QUÍMICO...<br />

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<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

96<br />

a tratamento em regime de internação, informou que: 1) quase dois terços<br />

daqueles que recaíram reconheceram falhas em tomadas de decisão e<br />

em planejamento de atividades (fatores cognitivos); e 2) mais da metade<br />

indicou que algum estado de humor negativo precedeu à recaída. O estudo<br />

salientou ainda que, frequentemente, esses fatores ocorriam juntos.<br />

Nesse sentido, a respeito de se verificarem as contribuições<br />

desse modelo no que concerne à redução de danos e prevenção de<br />

recaída, em dois dos casos atendidos, trabalhar as estratégias de<br />

prevenção de recaída contribuiu para que ambos fizessem uso dessas<br />

ao longo do período de tempo a<strong>pós</strong> a internação domiciliar. Sendo<br />

que para um significou utilizá-las nos momentos em que teve as<br />

recaídas, e para outro, nas situações em que essa sentia vontade de<br />

recair que são identificadas na dependência química como situações<br />

de risco. Vale lembrar que a Prevenção de Recaída se refere ao<br />

conjunto de habilidades para antecipar, prevenir, modificar, enfrentar<br />

e lidar com situações que a coloquem em risco para a recaída, isto é,<br />

situações que façam com que ela volte a consumir álcool ou outras<br />

drogas (KNAPP et al., 1994).<br />

Sobre como a equipe de residentes do Programa de Dependência<br />

Química avalia o envolvimento familiar nessa modalidade de<br />

tratamento, compartilham do potencial que a internação domiciliar<br />

possui para mediar as relações familiares dos sujeitos, bem como no<br />

fortalecimento das estratégias de prevenção de recaída na medida em<br />

que são trabalhadas com a família como forma de auxiliar o dependente<br />

químico em momentos de possíveis retornos ao uso de substância. Mas<br />

avaliam, de acordo com as experiências que acompanharam e com o<br />

suporte teórico que aprendem com a formação na <strong>residência</strong>, que o<br />

acompanhamento ao dependente químico e a sua família necessita ser<br />

continuado e integrado à rede de atenção na saúde, que, por sua vez, não<br />

se encontra disponível a todos de acordo com a demanda necessitada,<br />

o que propicia a recaída. Como ainda, a complexidade da realidade<br />

dos sujeitos, conforme já apontado, a falta de perspectiva de atividade<br />

profissional e suas consequências, acaba sendo um fator que leva as<br />

pessoas a retomarem o uso de drogas, fato esse também discutido<br />

ao longo deste processo evidenciado na pesquisa anteriormente<br />

referenciada que aponta a pressão <strong>social</strong> como responsável em 20% das<br />

recaídas (CUMMINGS, GORDON, MARLATT, 1980).


Considerações finais<br />

A proposta de internação domiciliar, assim como outras modalidades<br />

de tratamento, apresenta vantagens e desvantagens. A proximidade com<br />

a família possibilita a realização de um trabalho em conjunto com essa<br />

através de uma escuta estendida a todos que se incluem no grupo e da<br />

mediação das situações conflitantes, como na identificação de situações<br />

que são consideradas como risco para a recaída, a partir do entendimento<br />

dos demais e não só do dependente químico e no fortalecimento das<br />

estratégias de prevenção para essa. Possibilita ainda, que o sujeito possa<br />

permanecer em seu meio com um atendimento especializado para sua<br />

necessidade. Mas é necessário considerar que esse envolvimento familiar<br />

pode, também, apresentar algumas dificuldades que destacam o cuidado<br />

de estar atento para não responsabilizar unicamente a família no cuidado<br />

ao dependente químico, desresponsabilizando as políticas públicas.<br />

É necessário ressaltar que a internação domiciliar é uma estratégia<br />

que não exclui a internação hospitalar ou o atendimento ambulatorial,<br />

devendo cada indicação de tratamento ser cuidadosamente avaliada<br />

pela equipe de atendimento juntamente com o sujeito e seus familiares.<br />

O SUS deveria, portanto, disponibilizar para os dependentes químicos<br />

as diferentes modalidades de tratamento para que assim possa ser<br />

respeitada a necessidade de cada pessoa.<br />

Para tanto, a política de saúde pública apresenta-se enquanto<br />

espaço de aprimoramento e articulação de ações através da integração<br />

de programas, serviços e projetos que tenham como base a família<br />

reafirmando seu papel central nas políticas públicas. Nesse sentido é<br />

necessário valorizar, recuperar e articular a rede de proteção à família,<br />

fortalecendo seus vínculos enquanto nicho afetivo de relações que são<br />

estendidas às diferentes esferas de vida dos indivíduos, potencializando<br />

seu sentido de pertencimento <strong>social</strong>.<br />

Sem dúvida, a família é um campo de mediação imprescindível<br />

para diferentes profissionais que devem se integrar a partir de uma<br />

perspectiva interdisciplinar, considerando-se as múltiplas expressões<br />

que se fazem presente em seu âmbito. O <strong>Serviço</strong> Social constitui-se,<br />

portanto, em uma das categorias profissionais que, ao longo de sua<br />

história, voltou sua intervenção para a família sob diferentes aspectos,<br />

devendo seguir com seu olhar voltado para as transformações societárias,<br />

A FAMÍLIA COMO REDE DE APOIO AO DEPENDENTE QUÍMICO...<br />

97


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

98<br />

articulando e viabilizando a conscientização e o acesso às políticas<br />

públicas, bem como intervindo diretamente nas mais diversas expressões<br />

da questão <strong>social</strong>, nas suas refrações e particularidades, promovendo a<br />

emancipação dos sujeitos e o fortalecimento da autonomia, rompendo<br />

com possíveis práticas de assistencialismo e negligência em programas<br />

sociais, promovendo novas ações e dando novos sentidos à sua prática.<br />

Por fim, a pesquisa que foi descrita partiu de uma experiência<br />

prévia no campo da saúde mental no Programa de Residência Integrada<br />

em Saúde Mental Coletiva da Escola de Saúde Pública/RS, a qual se<br />

constitui local estratégico para a reflexão sobre o ensino e o serviço<br />

em saúde coletiva, na medida em que essa propicia aos residentes o<br />

conhecimento do SUS, as possibilidades de planejamento, o trabalho<br />

em grupo e os programas de prevenção e promoção em saúde através<br />

da educação em saúde.


Referênc3ias<br />

ABEPSS. Associação brasileira de ensino e pesquisa em <strong>Serviço</strong> Social:<br />

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A FAMÍLIA COMO REDE DE APOIO AO DEPENDENTE QUÍMICO...<br />

99


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FAMÍLIAS VULNERÁVEIS: A CONSTANTE BUSCA POR PERTENCER... 1*<br />

Simone da Fonseca Sanghi<br />

Maria Isabel Barros Bellini<br />

Felizes são as palavras de Leo Buscaglia (1982), que define<br />

“introdução” como “preparar o caminho para um discurso”, pois bem,<br />

essa é a primeira tarefa que me cabe: preparar o caminho!<br />

Esse caminho se inicia com uma história que fez muito sentido<br />

para mim durante minha trajetória. É a fábula de um cavaleiro conhecido<br />

por usar uma armadura de aço reluzente que sempre estava preparado<br />

para lutar em qualquer batalha. Quando não estava nos campos de<br />

batalha matando dragões, ficava experimentando e admirando o lustre<br />

de sua armadura, porém, depois de um tempo, o cavaleiro tornou-se tão<br />

enamorado de sua armadura a ponto de não tirá-la mais. Ele a usava para<br />

jantar e até para dormir, pois se sentia protegido com ela. No entanto,<br />

usando sua armadura de aço já não podia sentir os raios de sol, os pingos<br />

da chuva, o calor de um abraço, um afago da sua família, enfim, estava<br />

preso naquela armadura rígida e pesada (FISCHER, 2006).<br />

Essa pequena história fez refletir que todos nós, de alguma<br />

forma, estamos presos em algum tipo de armadura. A minha era feita<br />

de limitações, preconceitos, medos diante do novo, do incerto, do<br />

acaso. Então, assim que iniciei minha caminhada, o peso da armadura<br />

começou a incomodar e pensei que só conseguiria prosseguir se<br />

tentasse me desvencilhar aos poucos das amarras e rever, em pele, osso<br />

e sentimentos, a bagagem que sou e a que carregava. Por isso, tentarei<br />

conduzi-los pelo caminho que escolhi e percorri, e mostrarei um pouco<br />

da bagagem que carreguei e a que construí.<br />

Esse caminho se inicia nos anos de 2003 a 2004, quando ingressei<br />

na Residência Integrada em Saúde/RIS (ESPRS), 2 uma modalidade<br />

de educação profissional <strong>pós</strong>-graduada de caráter <strong>multiprofissional</strong><br />

e interdisciplinar, no Centro de Saúde Escola Murialdo-CSEM, 3<br />

1* Este artigo é parte integrante da dissertação de mestrado intitulada Pertencer ao espaço comunitário:<br />

desafio da autoeco-organização de famílias moradoras do Campo da Tuca, orientada pela Professora Dra.<br />

Maria Isabel Barros Bellini, concluída em 2007.<br />

2 ESPRS – Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul.<br />

3 O Centro de Saúde Escola Murialdo (CSEM) é um órgão vinculado à Escola de Saúde Pública da


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

102<br />

localizado no município de Porto Alegre, composto por seis Unidades<br />

Básicas de Saúde distribuídas no bairro Partenon, uma das unidades<br />

localizada na Comunidade do Campo da Tuca.<br />

A RIS tem como objetivo qualificar profissionais dentro do<br />

modelo de assistência à saúde pautada no Programa/Estratégia de<br />

Saúde da Família – PSF. 4 O PSF teve como referência o ano de 1994,<br />

definido pela Organização das Nações Unidas (ONU) como o “Ano<br />

Internacional da Família”, o que se tornou um marco brasileiro de<br />

oficialização da família, como foco do cuidado profissional de saúde.<br />

Essa experiência de trabalho e aprendizagem me proporcionou<br />

uma reflexão acerca do contexto no qual estamos inseridos, permeados<br />

de mudanças que interferem na dinâmica <strong>social</strong> como um todo, e de<br />

forma particular na família, conforme suas configurações, histórias,<br />

conflitos e demandas. O que observava era a família sendo abordada,<br />

geralmente, de forma fragmentada, permeada por juízos de valor por<br />

parte de alguns profissionais e, algumas vezes, por mim mesma, sendo<br />

raramente vista como um sistema vivo, 5 com valores, cultura, saberes,<br />

produto e produtora da sociedade em que vive.<br />

Igualmente, me surpreendiam as estratégias utilizadas por<br />

algumas famílias, que, por mais equivocadas que pudessem parecer,<br />

muitas vezes fomentavam sentimentos de inserção na comunidade,<br />

estratégias que se expressavam em vincular os filhos ao tráfico,<br />

vivenciar a precoce gravidez da filha adolescente como positiva<br />

(ainda que isso significasse não ter dinheiro para sustentar mais um<br />

membro na família), silenciar diante de crimes em troca de proteção.<br />

Tudo isso por uma busca de pertencimento <strong>social</strong>, de reconhecimento<br />

em sentirem-se pertencentes aquele local.<br />

Essa necessidade de reconhecimento era algo que me<br />

chamava a atenção e me inquietava muito, reconhecer a importância<br />

de aceitação, do pertencimento a um território. E, foi pensando na<br />

diversidade de estratégias que as diferentes configurações familiares<br />

Secretaria Estadual de Saúde do RS.<br />

4 O Programa Saúde da Família – PSF estrutura-se em unidades de saúde, com equipe <strong>multiprofissional</strong>,<br />

que assume a responsabilidade por uma determinada população, em território definido, onde desenvolve<br />

ações de saúde. Integra-se numa rede de serviços, de forma que se garanta atenção integral aos indivíduos<br />

e famílias. Atualmente chama-se Estratégia Saúde da Família.<br />

5 Sistema Vivo: é todo organismo – animal, planta, microrganismo ou ser humano – integrado, um sistema<br />

vivo. Em toda a natureza encontramos sistemas vivos dentro de outros sistemas vivos. Os sistemas vivos<br />

também incluem comunidades de organismos, que podem ser sistemas sociais como uma família, uma<br />

escola, uma cidade – ou ecossistemas (CAPRA, 1998).


utilizavam, assim como na necessidade de serem reconhecidas em seu<br />

contexto <strong>social</strong>, econômico, cultural e político, que uma pesquisa de<br />

mestrado começou a ser pensada.<br />

Compreendia que conhecer as pessoas e as famílias impõe<br />

conhecer as comunidades onde elas vivem, entendendo que elas<br />

se relacionam das mais diferentes formas, podendo se ajudar ou se<br />

prejudicar mutuamente, dependendo dos interesses que as mobilizam.<br />

Afinal, que relações socioculturais são estabelecidas? Qual a importância<br />

do espaço territorial para o grupo familiar?<br />

Esses questionamentos me levaram a refletir e ampliar a<br />

discussão sobre exclusão/inclusão a partir das ideias de Sawaia (1999,<br />

p. 09) para explicar esse processo complexo e multifacetado, uma<br />

configuração de dimensões materiais, políticas relacionais e subjetivas.<br />

Complemento este pensamento baseada nas ideias de Edgar Morin<br />

(1997), que salienta que o princípio da exclusão comporta de maneira<br />

complementar e antagônica o princípio da inclusão.<br />

Nesse sentido, aponto para a dialógica (dois princípios que<br />

deveriam excluir-se reciprocamente, mas são indissociáveis em uma<br />

mesma realidade, Morin, 2000, p. 96). Portanto, a exclusão/inclusão<br />

são focos de análise antagônicos e complementares, uma realidade não<br />

pode ser pensada sem a outra (GOMES, 2005, p. 80).<br />

Assim, não é mais possível pensar a exclusão <strong>social</strong> baseada<br />

somente na divisão entre as classes sociais, no nível cultural, no<br />

acesso à educação, na etnia, na língua, na religiosidade etc., que já<br />

são dados constatados e bastante discutidos na academia, na mídia,<br />

nos espaços institucionais. Mas a exclusão/inclusão baseada no<br />

surgimento de novas formas organizativas de inserção nos diversos<br />

espaços vivenciados pelas famílias.<br />

De acordo com Koga (2002, p. 24), “Cada vez mais a<br />

complexidade da exclusão <strong>social</strong> exige respostas igualmente complexas<br />

para o seu enfrentamento”. Ou seja, compreender a exclusão <strong>social</strong> não<br />

só como uma questão de sobrevivência, mas agregar a diversidade de<br />

outros fatores de agravamento <strong>social</strong>.<br />

Nesse sentido, percebi que não existem fenômenos de causa<br />

única e que, muitas vezes, é o nosso pensamento fechado que contribui<br />

para a inflexibilidade diante do novo e da incerteza. E que é preciso<br />

dar vistas à realidade, não focando apenas no extremo sofrimento e<br />

FAMÍLIAS VULNERÁVEIS: A CONSTANTE BUSCA POR PERTENCER...<br />

103


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

104<br />

privações, mas destacando o princípio dialógico (MORIN, 1997) em<br />

que a comunidade se constitui de múltiplas formas complementares,<br />

concorrentes e antagônicas.<br />

Assim, conforme avançava a minha caminhada, meu pensamento<br />

também mudava e minha armadura foi desprendendo-se, fui incorporando<br />

à minha bagagem conhecimento, vontade, persistência, curiosidade pelo<br />

novo, pelo desconhecido, me reconhecendo nas palavras de Fischer<br />

(2006, p. 105): “Embora possua este universo, nada possuo, pois não<br />

posso conhecer o desconhecido, se ao conhecido me agarro”.<br />

Cada caminho percorrido, cada conhecimento construído, cada<br />

página escrita me subsidiaram na construção deste estudo, em meio ao<br />

incerto, ao acaso, ao inesperado, o caminho foi constituindo-se como<br />

nas palavras do poeta Antônio Machado (1964) “Caminhante, não há<br />

caminho, o caminho se faz ao andar”.<br />

E, inspirada na história do cavaleiro e nas palavras do poeta,<br />

é que esta pesquisa foi realizada a fim de satisfazer inquietações<br />

surgidas no período em que participei da Residência e que se<br />

mantiveram vivas dentro de mim até que pudesse voltar a explorá-las.<br />

E daí surge este artigo que reitera as discussões realizadas no período<br />

da pesquisa e muitas inquietações que ainda me acompanham. Cabe<br />

agora apresentá-las a vocês!<br />

A descoberta do caminho<br />

Na caminhada, que se pretendia solitária, muitos<br />

se juntaram ao caminhante, dispostos a partilhar<br />

o sol e poesia, saber e esperança, fábulas e<br />

conhecimento, tolerância e descoberta.<br />

(SILVA, 2001, p. 16)<br />

Pontuando o que Morin refere ao abordar o mundo como uno e<br />

global,.. “uno no sentido de que cada parte do mundo faz parte cada vez<br />

mais do mundo em sua globalidade. E que o mundo em sua globalidade<br />

encontra-se dentro de cada parte” (1997, p. 46). Aqui, refiro-me que<br />

a organização comunitária não é algo isolado, mas também reflexo<br />

de como a sociedade se organiza, da mesma forma que a sociedade<br />

manifesta a influência do mundo globalizado.


A globalização tem redimensionado a noção de espaço e tempo,<br />

ultrapassando fronteiras, extrapolando as barreiras nacionais e locais.<br />

Essa nova realidade de transformação, impulsionada pelas novas<br />

tecnologias de informação, projeta uma reorganização na sociedade,<br />

atingindo todos os segmentos de forma geral. E está entre os conceitos<br />

mais discutidos da atualidade se apresentando sob as mais diversas<br />

dimensões como: econômica, política, <strong>social</strong>, ambiental, cultural, entre<br />

outras. É um complexo de processos e forças de mudanças (HALL,<br />

2005). Nesse sentido, Vieira (1998, p. 103) aponta que,<br />

Apesar da predominância econômica, o processo<br />

de globalização transcende os fenômenos meramente<br />

econômicos e deve ser entendido também em suas dimensões<br />

políticas, ecológicas e sociais. Afetando todas as esferas<br />

da vida, trabalho, educação e lazer, expressão artística,<br />

tecnologia, administração de empresas e instituições públicas<br />

– a globalização, como vimos, implica mudanças sociais e<br />

reestruturação da ordem mundial.<br />

Como mostra a citação, o conjunto de fatores que influenciam<br />

a sociedade globalizada vai além da questão econômica, chegando<br />

a interferir na organização das comunidades e mais diretamente no<br />

cotidiano das famílias. Para além do certo e do errado, do bem e do mal,<br />

a globalização tem provocado mudanças na forma de viver e conviver<br />

a nível mundial e local.<br />

Nesse sentido, os reflexos das posturas globais podem ser vistos<br />

nas comunidades. O termo Comunidade vem do latim communitas,<br />

quando muitos formam uma unidade. A comunidade pode ser constituída<br />

segundo Gustav Radbruch (2004) como uma relação entre os homens<br />

derivada da existência de uma obra comum que os prende entre si. E,<br />

nessa relação, existem elementos de harmonia e interesses em comum,<br />

mas também elementos de conflito.<br />

Para Tönnies (1947), desde que existam homens que dependam<br />

uns dos outros, por suas vontades, e se aprovem reciprocamente,<br />

haverá comunidade. Essa poderá ser de parentesco, vizinhança ou<br />

amizade. O parentesco tem a <strong>residência</strong> como lugar; a vizinhança é o<br />

caráter geral da vida comum, onde a proximidade das casas determina<br />

numerosos contatos entre os homens; e a amizade se distingue das<br />

duas formas anteriores, é caracterizada por uma identidade nas formas<br />

de pensar. Portanto, viver em comunidade requer a compreensão do<br />

FAMÍLIAS VULNERÁVEIS: A CONSTANTE BUSCA POR PERTENCER...<br />

105


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

106<br />

viver em comum, e está associado a um modo de vida. De acordo com<br />

Magnani (1998, p. 69):<br />

A vida na cidade, no entanto, não se restringe às<br />

experiências do cotidiano que transcorrem no âmbito do<br />

bairro. A circulação em direção e através de territórios mais<br />

amplos se dá por meio de trajetos – percursos determinados<br />

por regras de compatibilidade – que abrem o particularismo<br />

do pedaço a novas experiências, situadas fora das fronteiras<br />

daquele espaço conhecido, onde se está protegido por regras<br />

claras de pertencimento.<br />

A construção de uma ideia de pertencimento ligada a uma<br />

referência não só físico-espacial, mas também sociocultural, imprime<br />

uma força simbólica à ideia de representar-se no mundo e ocupar um<br />

espaço na sociedade. Além das características territoriais, também<br />

o tempo de moradia dentro de uma comunidade gera mecanismos e<br />

regras a serem compartilhados e ritualizados, compondo um código<br />

de obrigações e reciprocidades a ser cumprido, como condição de<br />

reconhecimento e legitimidade (LIMA, 2003).<br />

Esse sentimento de pertença a um grupo, com seus valores<br />

simbólicos e práticas culturais comuns, sedimenta o processo de<br />

formação da identidade <strong>social</strong> do sujeito e contribui para que a família<br />

crie novas formas de organização para sobrevivência do grupo familiar,<br />

não só ao que se refere a sua subsistência, mas também quanto às<br />

relações estabelecidas no espaço onde vivem.<br />

Essa é uma das inegáveis mudanças ocorridas no mundo nas<br />

últimas décadas: a diversificação dos arranjos familiares e suas<br />

formas de sobrevivência. De acordo com Gomes (2005): “cresce,<br />

consideravelmente, a parcela da população que vive em condições<br />

desfavoráveis, tanto nas relações estabelecidas por seus membros<br />

quanto nos meios que utiliza para sua subsistência”.<br />

Tal complexificação que significa um processo que envolve o<br />

acaso, a imprevisibilidade, o inesperado e a incerteza que fazem parte<br />

do cotidiano dos integrantes da família (GOMES, 2005) e tem exigido<br />

a criação de estratégias que implicam na adoção de medidas de caráter<br />

econômico, <strong>social</strong>, cultural, as quais contribuam para o desenvolvimento<br />

do grupo familiar e os ajudem a lidar com situações de vulnerabilidade<br />

no contexto ao qual estão inseridos.


Portanto, conhecer o meio <strong>social</strong> 6 no qual a família está inserida<br />

permite identificar suas demandas, bem como os recursos do grupo<br />

familiar, importantes para entender as estratégias utilizadas pelas<br />

famílias na comunidade, mas para isso é preciso conhecer aspectos da<br />

vida comunitária como costumes, crenças, hábitos.<br />

Além disso, é necessário dar visibilidade de como as famílias vêm<br />

se autoeco-organizando – termo usado para designar um dos princípios do<br />

Paradigma da Complexidade onde é preciso primeiro cuidar de si para<br />

depois cuidar do outro – no espaço comunitário, onde necessitam de<br />

estratégias e da legitimidade de um conjunto de práticas para garantir o<br />

seu pertencimento <strong>social</strong>. Vale ressaltar que a comunidade escolhida para<br />

a aplicação da pesquisa sempre foi estigmatizada pela sociedade, sendo<br />

constantemente associada ao tráfico de drogas, não se percebendo os<br />

movimentos sociais e participativos existentes dentro daquele espaço, onde<br />

uma série de serviços, projetos e programas funcionavam ao mesmo tempo<br />

em prol de seu desenvolvimento <strong>social</strong>, comunitário, cultural e econômico.<br />

A pesquisa qualitativa foi desenvolvida na Comunidade do Campo<br />

da Tuca, localizada no bairro Partenon, zona leste do município de Porto<br />

Alegre/RS, que conta hoje com uma população de aproximadamente<br />

10.000 pessoas que, em sua maioria, vivenciam situações de adversidade.<br />

A amostra contou com 10 famílias representadas pelas mulheres-mãe<br />

participantes de projetos sociais na comunidade e para a coleta de dados<br />

foram realizadas entrevistas e visitas domiciliares.<br />

O Campo da Tuca é uma das poucas vilas na cidade de Porto<br />

Alegre que preserva seu campo de futebol como espaço de integração<br />

<strong>social</strong>, motivo de orgulho de seus moradores. Seu nome é alusivo à<br />

antiga proprietária do terreno – Dona Tuca, que o cedeu para que se<br />

transformasse em um espaço de lazer para os moradores.<br />

Esse local conta a história do futebol de várzea e da prática<br />

esportiva estimulada e preservada por seus moradores mais antigos, em<br />

que a memória faz parte das atividades socioculturais desenvolvidas, e que<br />

em outras épocas revelou craques de futebol para o esporte profissional.<br />

Mas a prática esportiva não é o único destaque dessa comunidade,<br />

ela também é conhecida por sua organização no tráfico de drogas, o<br />

qual, diariamente, movimenta a comunidade e agrava os índices de<br />

6 Meio <strong>social</strong> aqui é entendido, como a comunidade ou o território onde vive a família, onde ela estabelece<br />

seus laços de amizade, sua rede primária (LIMA, 2003).<br />

FAMÍLIAS VULNERÁVEIS: A CONSTANTE BUSCA POR PERTENCER...<br />

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<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

108<br />

violência no local. A comunidade é visivelmente dividida, existindo as<br />

ruas dos trabalhadores, formada em sua maioria por carroceiros que<br />

trabalham como catadores de lixo, e as ruas dos traficantes, ou “bocas<br />

de fumo”, como são popularmente conhecidas.<br />

Assim, a partir da minha imersão neste contexto, e das<br />

inquietações trazidas em minha bagagem, fui procurando entender<br />

como se davam as relações nessa comunidade, como se estabeleciam<br />

as interações, e isso me permitiu soltar um grande pedaço da minha<br />

armadura e vislumbrar melhor o horizonte que se descortinava diante de<br />

mim. E, diante dessa perspectiva, minha principal indagação foi: Como<br />

famílias moradoras da Comunidade do Campo da Tuca, se autoecoorganizam,<br />

dando visibilidade ao processo de pertencimento <strong>social</strong>?<br />

O prazer de caminhar<br />

A caminhada consiste em fazer um ir e vir<br />

incessante entre certezas e incertezas, entre<br />

o elementar e o global, entre o separável e o<br />

inseparável.<br />

(MORIN, 2006, p. 205)<br />

Este item mostra o processo de reflexão desenvolvido durante<br />

o caminho que escolhi e percorri, destacando que foi preciso uma<br />

imersão em um novo pressuposto epistemológico – o paradigma<br />

da complexidade, que, segundo Silva (2001, p. 18), “negocia<br />

com a incerteza, não para exorcizá-la, o que é impossível, mas na<br />

perspectiva do estabelecimento de pontes provisórias entre o serque-busca<br />

e o desconhecido”.<br />

Durante a pesquisa o desafio foi seguir esse novo paradigma,<br />

baseada nas ideias de Edgar Morin, que rompe com os limites<br />

deterministas e simplificados e incorpora o acaso, a probabilidade e a<br />

incerteza como parâmetros necessários à compreensão da realidade.<br />

No intuito de atingir os objetivos da pesquisa, optei por uma<br />

abordagem metodológica de natureza qualitativa, onde o foco da<br />

pesquisa foram famílias moradoras da Comunidade do Campo da Tuca/<br />

Partenon, que estavam vinculadas a algum dos Programas de Proteção<br />

Social Básica à Família junto à Associação Comunitária do bairro.


Entre as singularidades da pesquisa destaco a convivência,<br />

o cotidiano, os ritos, hábitos, costumes que circundam a vida em<br />

comunidade e, principalmente, o quanto isso representava para as<br />

famílias que estavam inseridas naquele espaço. Minhas observações<br />

já iniciavam no caminho para comunidade aonde ia interagindo com<br />

aquele local, percebendo as pessoas sentadas na frente das casas, as<br />

crianças brincando soltas em meio aos cães e às fezes de cavalos;<br />

aglomerações nas esquinas; olhares desconfiados sobre todos que se<br />

aproximavam e que não eram reconhecidos como parte daquele local.<br />

As mulheres sentadas nos pátios das casas em meio aos filhos<br />

menores, chimarreavam 7 e conversavam como quem, simplesmente,<br />

espera o tempo passar e não tem muitas aspirações sobre o futuro. Seus<br />

olhares não eram desconfiados, nem confiantes, apenas indiferentes.<br />

No entanto, durante o estudo foi possível perceber a busca de<br />

uma relação de pertencimento que se estabelecia: desde uma simples<br />

troca de favores até o comprometimento e/ou envolvimento com o<br />

círculo do tráfico em troca de proteção. Isso é evidenciado na fala de<br />

uma moradora que conota positivamente a forma como as pessoas<br />

envolvidas com o tráfico auxiliam os moradores da comunidade. A<br />

situação referida por ela diz respeito ao momento do parto de seu sexto<br />

filho onde foram os “trabalhadores do tráfico” que providenciaram um<br />

carro para levá-la ao hospital, por que de outra forma ninguém, segundo<br />

a moradora, subiria no morro para atendê-la.<br />

Ficou evidente também que, apesar de existir um comando geral<br />

da comunidade por parte do tráfico, os moradores possuem uma relação<br />

de apego àquele território, onde se reconhecem como pertencentes e,<br />

por isso, estabelecem regras de convivência fundamentais para sua<br />

própria segurança. E onde o comando do tráfico existente naquele<br />

local não servia apenas como referência a um comércio, mas também<br />

como um mediador entre os moradores que seguiam essas regras de<br />

convivência estabelecidas e aqueles que burlavam estas regras a fim<br />

de satisfazer interesses próprios.<br />

Tacitamente existia um acordo, um trato, no qual certamente o<br />

elemento principal era o silêncio por parte dos moradores em contrapartida<br />

da proteção por parte do traficante. Esse movimento evidencia o princípio<br />

7 “Chimarrear” é um termo do vocabulário tradicionalista gaúcho referente ao ato de tomar chimarrão<br />

(bebida feita à base de erva-mate e água quente), costumeiramente acompanhado de prosas entre amigos.<br />

FAMÍLIAS VULNERÁVEIS: A CONSTANTE BUSCA POR PERTENCER...<br />

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110<br />

da autoeco-organização, pois muitos dos moradores entrevistados<br />

silenciavam para se proteger e, por conseguinte, protegerem seus filhos,<br />

sua família. A autoeco-organização se expressa no momento em que as<br />

famílias cuidam de si para cuidar do outro, a partir de suas competências<br />

e possibilidades em meio a um contexto marcado pela imprevisibilidade.<br />

E, dessa forma, o contexto das famílias moradoras do Campo da Tuca vem<br />

sendo permeado por um cotidiano de adversidades onde, muitas vezes, se<br />

utilizam de estratégias de inserção no espaço comunitário, como uma forma<br />

de proteção, a fim de potencializar uma relação de pertencimento <strong>social</strong>.<br />

Mas, afinal, por que o pertencimento é tão importante?<br />

Historicamente o homem tem sobrevivido, em todas as sociedades,<br />

pertencendo a grupos sociais. Desde o nascimento de uma criança já se<br />

pressupõe a existência de alguém para alimentá-la, cuidá-la e ampará-la<br />

na chegada a este mundo novo. De acordo com Kaloustian (2002, p. 48),<br />

O bebê, ao ser concebido, já pertence a uma rede<br />

familiar, que compreende o pai e a mãe e seus respectivos<br />

grupos familiares. Ao pertencer a estes grupos, também já<br />

está estabelecido quem são os outros e o universo de escolhas<br />

amorosas e interdições às quais estará sujeito, de acordo com a<br />

cultura onde ele está inserido.<br />

Daí desencadeia-se todo um processo de identidade desse<br />

novo ser. Cada criança recebe um nome próprio e um sobrenome que<br />

indicam sua pertinência a uma família, a uma rede de parentesco, a um<br />

determinado lugar inserido num contexto <strong>social</strong> e geográfico.<br />

A família aparece como a matriz da identidade de seus membros<br />

em todas as culturas, pois é ela que confere a eles um “sentido de<br />

pertencimento e um sentido de ser separado” ao se inserir em outros<br />

grupos sociais, como nos aponta Minuchin, (1982, p. 53): “O sentido<br />

de pertencimento de cada membro é influenciado por seu sentido de<br />

pertencer a uma família específica, já o sentido de separação se dá<br />

através da participação em grupos extrafamiliares”.<br />

Os primeiros grupos extrafamiliares surgem no espaço comunitário<br />

onde vivem, e onde são estabelecidas as primeiras referências de igualdade<br />

com pessoas com que partilham sentimentos significativos, conflitos e<br />

contradições. Esse cotidiano permeado de relações, onde se estabelece<br />

o processo de construção de identidade entre iguais é denominado por<br />

Lima (2003, p. 299) de “sociabilidade local”.


Este traço importante da sociabilidade local se reafirma com<br />

a disponibilidade para a cooperação, já que há uma mobilidade e<br />

um compromisso moral em ajudar e ser ajudado por aqueles que se<br />

consideram iguais. Nessa “rede de solidariedade é estabelecida a<br />

colaboração entre familiares, amigos e vizinhos” (LIMA, 2003) e, mais<br />

do que isso, estabelece estratégias de sobrevivência e cooperação.<br />

Sendo assim, não pode haver comunidade sem a presença do<br />

sentimento de pertencimento. Esse sentimento é inerente à condição<br />

humana, pois todos nós de alguma forma buscamos pertencer a algum<br />

espaço e/ou lugar, seja por uma questão geográfica, cultural, <strong>social</strong>,<br />

étnica etc. Segundo Amaral (2006),<br />

Pertencimento, ou sentimento de pertencimento é<br />

a crença subjetiva numa origem comum que une distintos<br />

indivíduos. Os indivíduos pensam em si mesmos como<br />

membros de uma coletividade nas quais símbolos expressam<br />

valores, medos e aspirações.<br />

Ainda de acordo com essa autora, esse sentimento de<br />

pertencimento pode ser reconhecido na forma como um grupo<br />

desenvolve sua atividade de produção, manutenção e aprofundamento<br />

das diferenças, cujo significado é dado por eles próprios em suas<br />

relações sociais. Quando a característica dessa comunidade é sentida<br />

subjetivamente como comum, surge o sentimento de “pertinência”, de<br />

pertencimento, ou seja, há uma comunidade de sentido.<br />

Pode-se observar que formas de organizações decorrem deste<br />

sentimento de pertinência, que é capaz de realizar a união entre pessoas<br />

de ascendência, crenças, valores e costumes diferentes, mas que<br />

partilham de um sentido de pertencimento comunitário.<br />

A importância da família e da relação de pertença está relacionada<br />

à aproximação e à ligação com o local de origem. É uma ideia de<br />

enraizamento, em que o indivíduo constrói e é construído, planeja e se<br />

sente parte de um projeto, modifica e é por ele modificado.<br />

A sensação de “pertencimento” significa que precisamos nos<br />

sentir como pertencentes a tal lugar e ao mesmo tempo sentir que esse<br />

lugar nos pertence e, por isso, territorializar-se ultrapassa a garantia de<br />

ter um lugar para morar, indo além da sua representação. Significa a<br />

sedimentação de uma identidade <strong>social</strong> e o uso de estratégias comuns,<br />

compartilhadas em determinados espaços da vida cotidiana.<br />

FAMÍLIAS VULNERÁVEIS: A CONSTANTE BUSCA POR PERTENCER...<br />

111


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

112<br />

Mais uma vez, o que se vê é a relação de reciprocidade estabelecida<br />

entre os moradores e o tráfico, criando relações sociais ancoradas em<br />

práticas comuns com sentido de sobrevivência e de partilha de sentimentos,<br />

gostos, hábitos e valores próprios do seu modo de vida. A construção<br />

desta relação faz parte da autoeco-organização das famílias no espaço<br />

comunitário onde através da rede de solidariedade, da intensa troca de<br />

informações e de experiências, há um estreitamento de vínculos, respeito,<br />

medo, subalternidade, cordialidade que estabelece valores, costumes e<br />

padrões de comportamento fundamentados no cuidado mútuo.<br />

As famílias dentro da comunidade se autoeco-organizam<br />

das mais variadas formas, através de suas interações locais, de suas<br />

demandas, de seus conflitos, de suas articulações, estabelecendo a<br />

construção de regras internas de vivências e convivências. E, nesse<br />

tensionamento entre o que é vivenciado no espaço comunitário e o que<br />

é percebido pela sociedade em geral, é que surge a possibilidade de<br />

compreensão deste contexto complementar, antagônico e concorrente,<br />

estabelecido pela comunidade e que deve ser abarcado nas práticas e<br />

políticas sociais, a fim de torná-las mais efetivas para essa população.<br />

O processo de autoeco-organização comunitária vem contribuindo<br />

para a constante ordem/desordem/organização/reorganização nas<br />

relações familiares. E isso não quer dizer que seja bom ou ruim, certo<br />

ou errado, mas vem sendo vivenciado pela família e influenciado na<br />

construção de novas formas de viver e conviver, o que, muitas vezes, é<br />

desconsiderado na elaboração e execução de políticas sociais.<br />

Essa pluralidade de formas organizativas mobilizadas por uma<br />

infinidade de interesses necessita encontrar espaços de expressão que<br />

contemplem tamanha diversidade. Sendo assim, é preciso estar atento<br />

para acompanhar a travessia que a comunidade faz no caminho da<br />

autoeco-organização.<br />

Nesse sentido, cada vez mais, tem-se observado a força que<br />

os territórios e comunidades vêm exercendo sobre as populações.<br />

Por mais instáveis que possam parecer, as pessoas têm suas vidas<br />

feitas de afinidades e da construção de relações acumuladas, tanto na<br />

individualidade quanto na coletividade. Surge aí a exigência de um<br />

novo olhar sobre as pessoas e suas interações com o território onde<br />

vivem, não apenas para enxergar mais longe, mas para que não haja<br />

somente a consideração da homogeneidade das situações.


Mas não é apenas a autoeco-organização das famílias que<br />

merece ser vista como um novo elemento dessa discussão, mas também<br />

a necessidade de mudança nas práticas dos profissionais que atendem<br />

essa demanda, em particular os Assistentes Sociais, que necessitam<br />

constantemente acolher novas questões que surgem na sociedade<br />

contemporânea e que, se abarcadas nos programas, projetos e políticas,<br />

podem trazer resultados mais efetivos à população.<br />

Considerações finais<br />

A busca do complexo orienta uma aventura,<br />

nunca uma finalização.<br />

(SILVA, 2001, p. 21)<br />

Como pesquisadora e assistente <strong>social</strong> aprendente, segui o caminho<br />

da pesquisa acompanhada por minha thémata, que nas palavras de Morin,<br />

ao citar Holton (1997, p. 08) “são as ideias obsessivas que estimulam a<br />

pesquisa e o pensamento dos cientistas”. Pois bem, o estudo com famílias<br />

e a importância de pertencer a um território com todas as implicações<br />

correlatas a esse movimento foi e continua sendo minha thémata.<br />

Compreender o desconhecido nas relações estabelecidas dentro<br />

de uma comunidade, não só a do Campo da Tuca, implica que se tenha<br />

uma percepção multidimensional dos fenômenos e que não se perca<br />

a capacidade de se inquietar. Por isso, estas considerações são finais,<br />

mas não conclusivas.<br />

Inquietar-se significa continuar constantemente olhando para a<br />

realidade, considerando os novos desafios colocados pela dimensão do<br />

cotidiano, que se apresenta sob várias formas exigindo enfrentamento<br />

de forma integrada. O desafio está posto também para o <strong>Serviço</strong> Social,<br />

pois meramente romper com a história não significa um avanço, pelo<br />

contrário, caminhar na direção da ampliação de conquistas significa ter<br />

consciência da caminhada já realizada em seus diferentes momentos,<br />

podendo dessa forma dar continuidade e credibilidade a uma categoria<br />

que se movimenta assim como a realidade.<br />

Vale lembrar que qualquer discussão acerca da família deve<br />

atentar-se, também, às condições em que essas famílias vivem. Não se<br />

FAMÍLIAS VULNERÁVEIS: A CONSTANTE BUSCA POR PERTENCER...<br />

113


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

114<br />

pode desconhecer que a organização e condições de vida das famílias<br />

não são só definidas por fatores externos a elas, isto é, por fatores<br />

como a dinâmica da economia e as oportunidades ocupacionais,<br />

mas também precisam ser compreendidas em seu contexto cultural,<br />

inclusive levando em conta suas origens.<br />

Portanto, ao falar de comunidade, principalmente a do Campo<br />

da Tuca, não posso esquecer-me de falar de questões que circundam<br />

esse território e ajudam a estabelecer as relações de convivência e<br />

vivência nesse espaço, como a violência e o poder do tráfico. Algumas<br />

opiniões sobre esta questão afirmam que nas comunidades que<br />

apresentam maiores índices de vulnerabilidade <strong>social</strong> o crime consegue<br />

instalar-se mais facilmente. São os chamados espaços segregados, em<br />

que a infraestrutura urbana de equipamentos e serviços apresenta-se<br />

precária ou insuficiente.<br />

Não busco generalizações, mas faço uso das palavras do<br />

sociólogo Souza para reiterar essa discussão: “A pobreza não é causa<br />

da violência, mas quando aliada à dificuldade dos governos em oferecer<br />

melhor distribuição dos serviços públicos, torna os bairros mais pobres<br />

mais atraentes para a criminalidade e a ilegalidade”.<br />

E, não é só isso, outros aspectos importantes na formação do ser<br />

humano, como constituição de vínculos, afeto, além de oportunidades<br />

ocupacionais podem ter relação direta com o aumento da violência, pois<br />

aqueles que não obtêm sucesso em nenhum desses aspectos, tornam-se<br />

mais vulneráveis ao ingresso na criminalidade, fazendo-o buscar outras<br />

formas de reconhecimento.<br />

A família em meio a esse cotidiano vem lançando mão de<br />

estratégias que protejam o grupo familiar e possam ir de encontro ao<br />

forte estímulo que o crime organizado oferece, como apoio, prestígio<br />

e poder, mesmo que algumas vezes faça uso dessa própria organização<br />

para sentir-se protegida e pertencente <strong>social</strong>mente.<br />

Assim, a investigação sobre como famílias moradoras da<br />

Comunidade do Campo da Tuca se autoeco-organizam, dando<br />

visibilidade ao processo de pertencimento <strong>social</strong>, mostra uma série<br />

de estratégias utilizadas pelas mesmas, destacando-se a autoecoorganização<br />

de si para poderem cuidar dos filhos e se organizarem no<br />

mundo. Através desse movimento as famílias contemplam questões<br />

externas e internas, objetivas e subjetivas que vão desde contar com


o crime organizado até burlar programas sociais para suprirem suas<br />

demandas e sentirem-se pertencentes.<br />

Portanto, perceber o espaço comunitário para além da violência é<br />

também perceber que por trás do crime organizado vive uma população<br />

que clama por autonomia, cidadania e emancipação. E o que há de novo<br />

nesse cotidiano são justamente as possibilidades que essas famílias<br />

encontram de enfrentar a violência sem o embate, através do processo<br />

de conscientização de que eles não vivem na melhor das comunidades,<br />

mas isso não quer dizer que eles não almejam uma comunidade melhor,<br />

como aponta Morin (2001, p. 15), “acreditar que a renúncia ao melhor<br />

dos mundos não significa renunciar a um mundo melhor”.<br />

E, ao concluir este artigo, me remeto novamente à fábula do<br />

Cavaleiro e sua armadura, pois ao longo da minha trajetória como<br />

pesquisadora e assistente <strong>social</strong> pude muitas vezes sentir partes da minha<br />

armadura se desvencilhando. Nesse caminho construí e desconstruí<br />

conhecimentos, avancei e retrocedi nas minhas ideias e principalmente<br />

aprendi que caminhos óbvios levam sempre aos mesmos lugares. E<br />

eu não queria chegar a um lugar conhecido, pelo contrário, queria me<br />

aventurar no desconhecido, nas incertezas, assim minha busca teria<br />

realmente sentido... e teve.<br />

FAMÍLIAS VULNERÁVEIS: A CONSTANTE BUSCA POR PERTENCER...<br />

115


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

116<br />

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FAMÍLIAS VULNERÁVEIS: A CONSTANTE BUSCA POR PERTENCER...<br />

117


ASSISTÊNCIA EM SAÚDE MENTAL: IDENTIFICANDO<br />

CAMINHOS DO (DES)CUIDADO EM SAÚDE 1*<br />

Vanessa Maria Panozzo<br />

Berenice Rojas Couto<br />

A proposta de compreender teoricamente o campo da saúde<br />

mental vem acompanhando, de forma intensa, o processo de formação<br />

profissional como pesquisadora, fruto da experiência prática construída<br />

como assistente <strong>social</strong>, em espaços institucionais que, em anos de<br />

existência, aplicam uma política de saúde mental desumana e excludente.<br />

Foi, ainda, no espaço de formação na <strong>graduação</strong> no <strong>Serviço</strong> Social que,<br />

durante o processo de estágio curricular, pode-se conhecer e intervir nas<br />

políticas de Seguridade Social. Esse cotidiano possibilitou identificar as<br />

contradições dessa realidade e visualizar a rede de atendimento para os<br />

usuários moradores de rua (loucos de rua), na qual eram acompanhados.<br />

Esse processo instigou buscar um aprofundamento acerca da<br />

política de saúde mental e foi por meio da inserção num Programa de<br />

Residência Profissional 21 que se pode compreender o campo de atuação<br />

dessa política pública. A Residência Integrada em Saúde Coletiva:<br />

Saúde Mental, promovida pela Escola de Saúde Pública da Secretaria do<br />

Estado do Rio Grande do Sul, teve a duração de três anos, onde se atuou,<br />

como residente de <strong>Serviço</strong> Social, em diferentes espaços institucionais,<br />

dentre esses: hospital psiquiátrico, no primeiro ano; serviço substitutivo<br />

– Centro de Atenção Integral em Saúde Mental – CAIS Mental – no<br />

Município de Viamão/RS, no segundo ano e no terceiro, na gestão<br />

de um projeto específico, cujo objetivo era referenciar os usuários/<br />

moradores do Hospital Psiquiátrico São Pedro às unidades básicas de<br />

saúde regionalizadas.<br />

As diferentes experiências profissionais proporcionaram um<br />

desvelamento das distintas concepções que traduziam as formas de<br />

1 Artigo baseado na Dissertação de Mestrado intitulada As possibilidades de inclusão <strong>social</strong> dos usuários<br />

da saúde mental nas políticas de seguridade <strong>social</strong>, orientada pela Professora Dra. Berenice Rojas Couto,<br />

apresentada para o PPGSS no ano de 2003.<br />

2 Nos anos 2000 a 2002, a autora fez parte do Programa de Residência Integrada em Saúde Mental<br />

Coletiva: Saúde Mental, pela Escola de Saúde Pública -ESP- da Secretaria Estadual de Saúde do Estado do<br />

Rio Grande do Sul (SES).


acesso aos direitos. No que tange a vivência de formação em serviço, isto<br />

é, do processo de Residência Profissional, como assistente <strong>social</strong>, esse<br />

suscitou, ainda, diferentes inquietações no âmbito da saúde mental. Nesse<br />

sentido, a inserção num Programa de Pós-Graduação em <strong>Serviço</strong> Social<br />

– Mestrado – garantiu uma possibilidade concreta de realizar pesquisa de<br />

campo, bem como o aprofundamento teórico no campo da saúde pública.<br />

Nesse sentido, este artigo compõe parte da dissertação de Mestrado<br />

apresentada no ano de 2005 que teve a preocupação de desvelar como<br />

ocorre a garantia dos direitos sociais – no âmbito da seguridade <strong>social</strong> –<br />

para o usuário da saúde mental dos Centros de Atenção Psicos<strong>social</strong>.<br />

A construção metodológica do estudo<br />

A pesquisa tem como atividade básica a indagação e a descoberta<br />

da realidade. Por isso, a identificação do objeto de pesquisa está<br />

diretamente ligada à visão de homem e de mundo e de como a realidade<br />

se constrói. A atitude de pesquisar está intrinsecamente relacionada<br />

com o aporte teórico, que, através de sucessivas aproximações com a<br />

realidade, busca uma combinação particular entre a teoria e os dados<br />

coletados (MINAYO, 1994).<br />

O referencial apoiado no materialismo histórico apontado por Marx<br />

interpreta a realidade como uma totalidade onde tantos<br />

fatores visíveis como as representações sociais, integram e<br />

configuram um modo de vida condicionado pelo modo de<br />

produção específico. [...] trabalha-se com dados qualitativos<br />

para o interior da análise, o subjetivo e o objetivo, os atores<br />

sociais e o próprio sistema de valores do cientista, os fatos e os<br />

significados, a ordem e os conflitos (MINAYO, 1994, p. 34-35).<br />

A perspectiva de pesquisar no campo da saúde, enfocando<br />

a saúde mental, tem o intuito de revelar como se têm construído as<br />

práticas em saúde e como se revelam as contradições da sociedade<br />

capitalista no cotidiano dos serviços e a assistência ofertada para os<br />

usuários dessa política pública. Isso requer um entendimento de como<br />

o Estado tem-se organizado para o enfrentamento da questão <strong>social</strong>,<br />

sendo a saúde mental uma das expressões dessa relação de conflito,<br />

que, ainda, apresenta para sociedade a exclusão <strong>social</strong> como alternativa<br />

para estabelecer a ordem. Conforme, também, aponta Minayo:<br />

ASSISTÊNCIA EM SAÚDE MENTAL...<br />

119


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

120<br />

Numa sociedade capitalista onde as relações se<br />

fazem a partir de diferenciação de classes, da desigualdade<br />

na distribuição e atribuição de riquezas, a concepção saúde/<br />

doença está marcada por essas contradições. Contradições<br />

marcam as representações da classe dominante que informam<br />

as concepções mais abrangentes da sociedade como um todo<br />

(MINAYO, 1994, p. 179).<br />

A partir dessa compreensão, a pesquisa propõe a interação do<br />

pesquisador e dos sujeitos, a fim de conhecer a realidade através do<br />

método qualitativo, que<br />

responde a questões muito particulares. Ela se preocupa, nas<br />

ciências sociais, com um nível de realidade que não pode<br />

ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo de<br />

significados, motivos, aspirações, crenças, valores, e atitudes,<br />

o que corresponde a um espaço mais profundo das relações,<br />

dos processos e dos fenômenos que não pode ser reduzidos à<br />

operacionalização de variáveis (MINAYO, 1994, p. 21-22).<br />

Para tanto, considera-se fundamental o conhecimento no campo<br />

das políticas sociais e da pesquisa, neste contexto, elemento constitutivo<br />

no exercício da efetivação dos direitos. Assim, como assistente <strong>social</strong>,<br />

busca-se, através da intervenção profissional, a organização das ações<br />

técnico-assistenciais e ético-políticas, a fim de dar respostas às expressões<br />

da questão <strong>social</strong> que se colocam no cotidiano do trabalho do assistente<br />

<strong>social</strong>. Nesse sentido, para que haja efetividade no trabalho profissional,<br />

essas ações devem estar articuladas teoricamente, buscando investigar a<br />

realidade <strong>social</strong>, para propor ações que viabilizem o acesso aos direitos<br />

sociais, via efetivação das políticas de proteção <strong>social</strong>, pois “é na história<br />

da sociedade, na prática <strong>social</strong> que se encontram a fonte dos nossos<br />

problemas e a chave de suas soluções” (IAMAMOTO, 1996, p. 102).<br />

O estudo teve como objetivo conhecer como os Centros de<br />

Atenção Psicos<strong>social</strong> II se estruturavam para ofertar um serviço de<br />

atendimento aos usuários da saúde mental com integralidade e como se<br />

articulavam no campo das políticas de seguridade <strong>social</strong>, em especial da<br />

saúde e da assistência <strong>social</strong>, com vistas a referendarem os direitos de<br />

cidadania dessa população. A amostra intencional contou com usuários<br />

e profissionais de dois serviços de CAPS II do Município de Porto<br />

Alegre/RS, devidamente cadastrados no Ministério da Saúde a partir da<br />

Portaria 336/2002.


O instrumento utilizado para a coleta de dados, elaborado<br />

pela pesquisadora, foi um formulário 32 semiestruturado, 43 contendo<br />

perguntas abertas e fechadas, 5 utilizou-se, também, a técnica de<br />

observação. Para a análise dos dados qualitativos fundamentou-se na<br />

análise de conteúdo de Bardin (1977), a fim de se poderem problematizar<br />

os resultados, relacionando-as com construções teóricas já produzidas.<br />

Respeitando os parâmetros éticos apontados pelas Ciências<br />

Humanas e Sociais, no caminho para a efetivação da pesquisa,<br />

houve passos a serem cumpridos dentro do contexto institucional<br />

da Secretaria de Saúde do Município de Porto Alegre, bem como na<br />

aprovação do Projeto no Programa de Pós-Graduação. O projeto<br />

foi apreciado e aprovado pelo Comitê de Ética da Assessoria de<br />

Planejamento (Assepla), que autorizou o processo de pesquisa. A<strong>pós</strong><br />

essa aprovação, ocorreu o contato com os serviços de saúde mental<br />

selecionados – CAPS II – Centro e CAPS II – Cruzeiro, que também<br />

sofreu avaliação e aprovação de suas coordenações, direcionado para a<br />

equipe de profissionais sua aceitação. Na equipe de serviço do CAPS II,<br />

Centro, houve a apresentação do projeto pela pesquisadora, em reunião<br />

de equipe. A partir do consentimento para a coleta dos dados, iniciou-se<br />

o processo de pesquisa, evidenciando-se a proposta dos CAPS II, bem<br />

como as contradições expressas nessa realidade.<br />

Anteriormente ao processo de entrevista, os participantes assinaram<br />

o Termo de Consentimento Informado, autorizando fazer parte do estudo.<br />

A<strong>pós</strong> a coleta de dados iniciou-se o processo de análise. Num primeiro<br />

momento os formulários foram fichados. Os profissionais receberam uma<br />

identificação com números e os usuários foram identificados por letras,<br />

sexo e idade. Ainda, entendeu-se, num primeiro momento, a necessidade<br />

de buscar dados sobre a região onde os serviços estão instalados, bem<br />

como sobre a demanda atendida pelos serviços.<br />

3 É um dos instrumentos essenciais para a investigação <strong>social</strong> cuja coleta de dados consiste em obter<br />

informações diretamente do entrevistado (MARCONI; LAKATOS, 2002, p. 114).<br />

4 Característica dada ao instrumento que possibilita a formulação de perguntas previamente elaboradas<br />

acerca do objeto, sendo possível a construção de indagações do pesquisador no momento da entrevista<br />

(MARCONI, LAKATOS, 1999).<br />

5 As perguntas abertas e fechadas são utilizadas na construção do formulário, contendo dados referentes<br />

ao objeto de estudo, problematizando as questões norteadoras. A pesquisa qualitativa prevê a construção de<br />

instrumentos que possibilitem o sujeito pesquisado apresentar sua concepção frente ao problema de pesquisa.<br />

Para Marconi e Lakatos, as perguntas abertas são chamadas de livres, que irão permitir ao informante<br />

responder livremente, usando a própria linguagem e emitir opiniões. Já as fechadas caracterizam-se pela<br />

escolha do informante às respostas entre as opções apresentadas (1999, p. 101).<br />

ASSISTÊNCIA EM SAÚDE MENTAL...<br />

121


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

122<br />

Para analisar a pesquisa, elencaram-se categorias que se<br />

mostraram essenciais para a problematização em relação ao tema:<br />

Integralidade da Atenção; 6 Seguridade Social 7 compondo a Assistência<br />

Social, 8 Saúde, 9 Previdência Social 10 e Cidadania. 11 Essas categorias<br />

foram de fundamental importância, uma vez que a compreensão das<br />

políticas sociais e dos direitos historicamente construídos irá permitir<br />

visualizar as concepções de acesso e cuidado em saúde para população<br />

usuária da política de saúde mental.<br />

A Constituição do Modelo de Assistência em Saúde Mental<br />

É em grandes períodos históricos que a loucura ganha evidência<br />

através de seus diferentes enfoques. Conforme Foucault (1994),<br />

existiram três importantes momentos na História, para a compreensão<br />

desse conceito. São eles:<br />

• ao final da Idade Média e no apogeu do século XV,<br />

quando se caracterizou o período de liberdade e a loucura era<br />

experimentada em “estado livre”;<br />

6 A integralidade da atenção é o reconhecimento na prática dos serviços de que: cada pessoa é um todo<br />

indivisível e integrante de uma sociedade; as ações de promoção, proteção e recuperação da saúde formam<br />

também um todo indivisível e não podem ser fragmentados; as unidades prestadoras de serviços, com seus<br />

diversos graus de complexidade, também formam um todo indivisível configurando um sistema capaz de<br />

prestar assistência integral (SUS, 1990).<br />

7 “A Seguridade Social compreende um conjunto integrado de ações iniciativas dos poderes públicos e<br />

da sociedade, destinados a assegurar os direitos relativos a saúde, a previdência e a assistência <strong>social</strong>”<br />

(BRASIL, 1988, art.194).<br />

8 “A assistência <strong>social</strong>, direito do cidadão e dever do Estado, é a política de Seguridade Social não contributiva,<br />

que prevê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações da iniciativa pública e da<br />

sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas” (LOAS, 1993, art. 1º).<br />

9 “A saúde não é um conceito abstrato, define-se num contexto histórico de determinada sociedade e num<br />

dado momento de seu desenvolvimento, devendo ser contestada pela sua população em suas lutas cotidianas<br />

(...) saúde é o resultante das condições de alimentação, habitação, renda, meio ambiente, transporte, lazer,<br />

emprego, liberdade, acesso (...) é o resultado das formas de organização <strong>social</strong> de produção que pode gerar<br />

desigualdades” (MENDES, 1994).<br />

10 A previdência será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação<br />

obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e atenderá, nos termos da<br />

lei: “I - cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada; II - proteção à maternidade,<br />

especialmente a gestante; III - proteção ao trabalhador em situação de desemprego involuntário; IV -<br />

salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda; V - pensão por morte<br />

do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes” (BRASIL, 1988, art. 201).<br />

11 “cidadania entendida como a capacidade conquistada por alguns indivíduos, ou por todos os indivíduos,<br />

de se apropriarem dos bens <strong>social</strong>mente criados, de atualizarem todas as potencialidades de realização<br />

humana abertas pela vida <strong>social</strong> em cada contexto historicamente determinada (COUTINHO, 2000, p. 50).


• nos séculos XVII e XVIII, o período das grandes internações,<br />

quando a loucura ocupou o lugar da lepra no mundo da<br />

exclusão; e,<br />

• desde a Revolução Francesa até os dias atuais, com o<br />

advento da psiquiatria.<br />

O tratamento da loucura teve domínio da medicina com o passar<br />

dos anos, e os regimes de internação dos loucos ocorreram de forma<br />

maciça na Europa, no século XVII. A doença mental era considerada<br />

como um caso de polícia, e as medidas de internação tinham o caráter<br />

de aprisionamento, já que a loucura representava ociosidade. A loucura<br />

é associada à “ideia de desvio em relação à norma”;<br />

uma aberração da conduta em relação aos padrões ou valores<br />

dominantes de uma certa sociedade, ou, ainda, como um<br />

estado individual da perda da razão ou do controle emocional,<br />

independentes dos significados sociais ou políticos de tais<br />

aberrações (PESSOTI apud FERRAZ, 2000).<br />

Foucault (1978) ainda refere que a loucura é uma categoria<br />

historicamente construída pela sociedade, com determinantes históricos<br />

e culturais baseados em formas de controle da população, principalmente<br />

daqueles que pudessem trazer algum dano aos modos de sustentação<br />

do capital e que prejudicassem o andamento da produção de riquezas.<br />

O movimento de construção desse processo histórico-<strong>social</strong>-político<br />

conduziu a loucura ao confinamento, à rotulação, à cristalização e ao<br />

silêncio. Através da condição de doença, a loucura ganha evidência<br />

enquanto doença mental. Como Ferraz (2000) afirma, ela é uma<br />

patologia de desvio de normas, porque “a doença é definida sempre<br />

em relação à média, norma ou padrão”, caracterizada pelo afastamento<br />

desse padrão. Essa foi a forma de determinar as características desses<br />

sujeitos que começam a aparecer na história a partir da lógica de doença,<br />

de patologia que se afasta dos ideais preestabelecidos. Dessa forma, a<br />

loucura “é vista sob o prisma de deficiência, definida como um distúrbio<br />

de personalidade, com alterações de percepção, do pensamento e da<br />

afetividade” (FERRAZ, 2000, p. 38). O sentido da loucura, conforme<br />

aponta o autor, traz significados sociais e políticos “que dizem respeito<br />

ao modo como o grupo <strong>social</strong> a ela reage, juntamente com o uso que<br />

ASSISTÊNCIA EM SAÚDE MENTAL...<br />

123


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

124<br />

uma sociedade dela faz” (FERRAZ, 2000, p. 34). Para a “sociedade<br />

perfeita”, todos devem estar habilitados a nela permanecer. Como Rosa<br />

aborda: “a seletividade funciona como um processo perverso de acentuar<br />

a exclusão e aumentar a desigualdade entre os desiguais” (1995, p. 87).<br />

o processo histórico de exclusão da loucura não tem suas raízes<br />

na natureza da loucura, não são características inerentes ao<br />

sujeito louco que geram tal exclusão; este processo resulta de<br />

uma série de embates, enfrentamentos, correlações de força,<br />

no âmbito de uma cultura que acredita demasiadamente na sua<br />

própria razão (LOBOSQUE, 2001, p. 18).<br />

Através das elegebilidades, a sociedade, com seus valores<br />

dominantes, exclui as tentativas de inclusão dos movimentos<br />

sociais construídos historicamente, favorecendo apenas os mais<br />

pobres por possuírem mérito de pobreza, ou sustentando os que são<br />

considerados capazes. O fenômeno da exclusão <strong>social</strong> vem agravandose<br />

expressivamente. Esse movimento sempre acompanhou as formas<br />

de organização da sociedade e os modelos de desenvolvimento. É um<br />

quadro marcado pela segregação por parte “[d]aqueles que consideram<br />

normal e justa a prevalência absoluta dos indivíduos e dos grupos<br />

fortes” (AMARANTE, 1995, p. 25).<br />

O processo de exclusão <strong>social</strong> do louco é uma das formas de<br />

separá-lo do convívio <strong>social</strong>, uma vez que esse não caminha junto com<br />

a lógica da “sociedade perfeita”. Excluir o sujeito louco é também julgálo<br />

de forma simplificada, como responsável pelos problemas sociais,<br />

distanciado de uma leitura de totalidade e das contradições inerentes ao<br />

processo <strong>social</strong> que transforma diferença e desigualdade. Como aponta<br />

Lobosque (2001, p. 18), “trata-se de uma leitura psicologizante dos graves<br />

problemas representados pela exclusão da loucura, e a psicologização<br />

de tais problemas é sempre correlata à sua despolitização”. Dentro do<br />

controle do <strong>social</strong>, constituiu-se a Instituição Total, 12 a fim de romper<br />

com as ameaças ao status quo. Com todos os “perigosos e os loucos<br />

fechados” – sem contato com o mundo externo e proibidos de saírem,<br />

em qualquer momento, com muros altos, portas trancadas, poder-se-ia<br />

ter a sociedade ideal, podendo ser controlada pelos pequenos grupos<br />

dirigentes, que, desde aquela época, se caracterizam como capitalistas,<br />

12 Instituição Total: pode ser definida como “um local de <strong>residência</strong> e trabalho onde um grande número<br />

de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla, por considerável período de<br />

tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada” (GOFFMAN, 1974, p. 16).


com direções burocráticas, autoritárias e assistencialistas (GOFFMAN,<br />

1974). “O controle de muitas necessidades humanas pela organização<br />

burocrática de grupos completos de pessoas – seja ou não uma<br />

necessidade ou meio eficiente de organização <strong>social</strong> nas circunstâncias<br />

– é o fato básico nas instituições totais” (GOFFMAN, 1974, p. 18).<br />

A prevalência desse modelo macro-hospitalar, característico<br />

dessas instituições, perdurou por muitos anos, onde as decorrentes<br />

cronicidades de práticas caracterizadas pela burocratização e pela<br />

verticalização das relações pessoais no cotidiano se dirigiam,<br />

prioritariamente, para a manutenção e a perpetuação do modelo<br />

excludente, através da máquina administrativa que exclui, manipula e<br />

ameaça a cidadania.<br />

A existência de pobreza e de diferentes condições do vivido é<br />

sentido por distintos segmentos todos os dias: os “loucos”, a população<br />

de rua, as crianças desnutridas, a questão <strong>social</strong> expressada nas mais<br />

diferentes formas. As realidades são fugidias, quando se precisa<br />

enfrentá-las. O padrão hegemônico exclui e, mais que isso, não permite<br />

existir a diferença. E, quando essa existe, esse mesmo padrão, não dá<br />

nenhuma contribuição para que ela sobreviva: “as discriminações são<br />

formas de exercício de poderes para excluir as pessoas do acesso a<br />

certos benefícios ou vantagens, a do próprio convívio <strong>social</strong> da maioria<br />

através da rotulação ou etiquetagem desses esteriótipos <strong>social</strong>mente<br />

fabricados” (FALEIROS, 1995, p. 124).<br />

Assim, podem-se verificar avanços em relação ao tratamento<br />

dispensados aos usuários da saúde mental, representados pelo<br />

envolvimento dos trabalhadores da área, dos usuários e de seus<br />

familiares a respeito do significado do manicômio como instituição de<br />

exclusão, bem como sobre a possibilidade de construir uma cidadania.<br />

De qualquer modo, o problema da exclusão é uma das<br />

principais questões que ainda não resolvemos e que nem as<br />

sociedades avançadas resolveram. Existem sociedades que<br />

alcançaram uma aceitável situação econômica, um aceitável<br />

nível de democracia, um aceitável nível de relativa igualdade<br />

entre as pessoas, no que se refere às condições de vida; mas o<br />

problema da exclusão não só não foi resolvido, mas foi sendo<br />

agravado. Isso não apenas em relação à questão do louco, mas<br />

inclui, ainda, a questão dos idosos, das crianças [...] Creio que<br />

quando, sem nenhuma onipotência, afirmamos que é necessário<br />

enfrentar prioritariamente a questão do hospital psiquiátrico,<br />

que colocamos o problema do manicômio em primeiro lugar, é<br />

ASSISTÊNCIA EM SAÚDE MENTAL...<br />

125


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

126<br />

porque é aí onde, paradigmaticamente, tem lugar o processo de<br />

exclusão; a existência do manicômio é a configuração, na fantasia<br />

das pessoas, da inevitabilidade deste estado de coisas, que é<br />

impossível lutar contra esta situação, que as coisas são sempre<br />

assim e serão sempre igual. Existirá sempre a necessidade de<br />

um lugar para se depositar as coisas que são rejeitadas, jogadas<br />

fora e que servem para que nos reconheçamos pela diferença?<br />

Este papel pedagógico, no sentido negativo, do hospital<br />

psiquiátrico é o que nós técnicos devemos por em discussão se<br />

não quisermos avalizar com nossas ações uma perversão que<br />

é política, científica, mas sobretudo cultural (ROTELLI apud<br />

AMARANTE, 1998, p. 2-3).<br />

A partir da década de 1970, iniciaram os movimentos para uma real<br />

desinstitucionalização, 13 dos usuários da saúde mental, principalmente, a<br />

partir da experiência da Psiquiatria Democrática Italiana. No Brasil, podese<br />

destacar o ano de 1978 como o período em que a reforma psiquiátrica<br />

ganhou uma forte vitalidade e visibilidade <strong>social</strong>, a<strong>pós</strong> denúncias<br />

da situação dos grandes asilos, da privatização e da mercantilização<br />

de assistência na rede de hospitais conveniados e das reivindicações<br />

de humanização dos hospitais. A proposta da desinstitucionalização<br />

surgiu através do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental,<br />

na I Conferência Nacional em Saúde Mental, cujo lema era “Por uma<br />

Sociedade sem Manicômios” (1987). A partir desse movimento, o<br />

projeto de desinstitucionalização, que passava “a ser um conceito básico<br />

determinante na reorganização dos serviços, nas ações em saúde mental<br />

e na ação do movimento” (AMARANTE, 1995, p. 81), desenvolveu uma<br />

luta política pela transformação do modelo hegemônico asilar, criando<br />

novas práticas e modalidades de atenção e cuidado.<br />

Nessa movimentação de discussões e debates sobre paradigmas,<br />

surgiu, no Estado do Rio Grande do Sul, a Lei da Reforma Psiquiátrica –<br />

Lei nº 9.716, de 07 de agosto de 1992 – estabelecendo propostas referentes<br />

à superação do modelo hospitalocêntrico, bem como garantindo aos<br />

direitos sociais aos portadores de sofrimento psíquico. Essa superação<br />

diz respeito à mudança de uma sociedade culturalmente construída em<br />

relação à loucura, no sentido de não mais rejeitá-la e segregá-la, mas,<br />

sim, em busca de debates envolvendo os diferentes segmentos sociais<br />

para fazer valer os paradigmas de inclusão <strong>social</strong> (FAGUNDES, 1992).<br />

13 “Desinstitucionalização [...] é um trabalho terapêutico, voltado para a reconstituição das pessoas<br />

enquanto sujeitos que sofrem. É provável que não se resolva por hora, não se cure agora, mas, no entanto,<br />

seguramente se cuida” (ROTELLI, 1990, p. 16).


A partir da proposta por uma sociedade sem manicômios, tendo<br />

como norte a proposta da política de saúde mental do Estado, que propõe<br />

a cada município o atendimento à sua população, e concretizando a<br />

Lei da Reforma Psiquiátrica Estadual, foram construídos modelos de<br />

atenção integral, os Centros de Atenção Psicos<strong>social</strong> (CAPS), a partir<br />

das Conferências Nacionais de Saúde Mental, tendo em vista:<br />

criar um filtro de atendimento entre hospital e comunidade<br />

com vistas à construção de uma rede de prestação de serviços<br />

preferencialmente comunitária [...] se pretende garantir<br />

tratamento de intensidade máxima no que diz respeito ao tempo<br />

reservado ao acolhimento de pessoas com graves dificuldades de<br />

relacionamento e inserção <strong>social</strong> (AMARANTE, 1995, p. 82).<br />

No final da década de 1980, esses centros surgiram através<br />

de unidades e de equipes de hospitais psiquiátricos que passaram<br />

a trabalhar sob essa nova lógica. No Rio Grande do Sul, a Lei da<br />

Reforma Psiquiátrica, sancionada em 1992, que determinou a<br />

substituição progressiva dos leitos nos hospitais psiquiátricos por<br />

redes de atenção em saúde mental, impôs regras de proteção aos<br />

que padecem de sofrimento psíquico, especialmente quanto às<br />

internações compulsórias, e criou diretrizes no âmbito da saúde<br />

mental em contraposição ao modelo hospitalocêntrico, que perdurou<br />

por anos, bem como instituiu o “conceito” de cidadania para os<br />

portadores de sofrimento psíquico.<br />

A criação de serviços de saúde mental deu-se a partir dos<br />

conceitos definidos pela Constituição Federal de 1988, na qual a Política<br />

de Saúde Mental é entendida como “a proposição dos processos que<br />

possibilitem a mobilização de grupos sociais na direção da melhoria<br />

da qualidade de vida” (PORTO ALEGRE, 1992, p. 11). Assim,<br />

esses serviços vêm ao encontro dessa proposta de qualidade de vida,<br />

visando que as pessoas possam obter uma atenção de forma integral e<br />

acreditando que “a integralidade passa pela constituição da identidade,<br />

através da reconstrução de vínculos sociais e culturais na perspectiva<br />

de ressignificar a própria história dos sujeitos” (PORTO ALEGRE,<br />

1992, p. 11). Esse atendimento de forma integral substituiu o modelo de<br />

assistência crônico e tutelador aos portadores de sofrimento psíquico,<br />

caracterizado pelas internações.<br />

ASSISTÊNCIA EM SAÚDE MENTAL...<br />

127


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

128<br />

Desvelando as possibilidades de concretizar uma nova cultura<br />

de assistência em saúde mental<br />

A trajetória da assistência em saúde mental efetivou-se com práticas<br />

excludentes, numa perspectiva manicomial. Essa prática tinha como<br />

pro<strong>pós</strong>ito o isolamento dos usuários, tirando-os de seu meio de convívio.<br />

Foi somente com a organização dos movimentos sociais, representados<br />

pelos usuários, seus familiares e trabalhadores, que se iniciou a luta por uma<br />

assistência mais digna e que se puderam traçar novos modelos de cuidado<br />

para os usuários da política de saúde mental. A partir da contextualização<br />

histórica apresentada no item anterior, foi possível desvelar como os serviços<br />

de saúde mental têm assistido os usuários na proposta do atendimento<br />

integral, fundamentado nas legislações legais vigentes.<br />

A caracterização dos serviços conforme apontado no caminho<br />

metodológico permitiu visualizar a composição das equipes e das<br />

diferentes modalidades de atendimento. Compreende-se que esses itens<br />

possuem uma relação estreita na forma de assistir os usuários, valendose<br />

das premissas da reforma psiquiátrica que nega práticas individuais,<br />

excludentes e institucionalizadas.<br />

Os dois serviços (CAPS Cruzeiro e CAPS Centro) pesquisados<br />

eram devidamente cadastrados no Ministério da Saúde. Possuíam<br />

uma equipe interdisciplinar, sendo referência de atendimento para<br />

o Município de Porto Alegre. Os profissionais entrevistados, na sua<br />

maioria, trabalhavam na área da Política de Saúde e saúde mental há<br />

mais de cinco anos, com experiências vinculadas a unidades de saúde,<br />

hospital psiquiátricos, hospital geral etc.<br />

As atividades dividiam-se em atendimentos individuais,<br />

em grupo, oficinas terapêuticas, visitas domiciliares etc., conforme<br />

preconizado na Portaria nº 336/2002, que faz referência às diferentes<br />

modalidades de atendimentos para o usuário da Política de Saúde<br />

Mental. Entretanto, o CAPS Cruzeiro sinalizou uma perda considerável<br />

de profissionais que atuavam na equipe, bem como a dificuldade de<br />

assistir os usuários conforme preconiza a Portaria, no que se refere<br />

aos atendimentos do Centro de Atenção Diária – CAD, com atividades<br />

organizadas diariamente e as refeições realizadas no próprio serviço.<br />

Os usuários do serviço CAPS II Cruzeiro, conforme se<br />

constatou na amostra da pesquisa, eram em sua maioria homens,


com idade entre 30 e 40 anos. Desses, a maioria possuía benefício<br />

da Previdência Social e já estive internada em hospital psiquiátrico<br />

pelo menos duas vezes. Todos os usuários entrevistados pertenciam à<br />

região do Distrito Glória, Cruzeiro e Cristal.<br />

O CAPS II Centro era considerado pela Secretaria de Saúde<br />

municipal referência no atendimento aos usuários da saúde mental, no<br />

modelo de serviço substitutivo. Criado desde 1996, contava com uma<br />

equipe 18 profissionais, que dão conta dos atendimentos à população do<br />

Distrito Centro, da cidade de Porto Alegre, com diferentes modalidades<br />

de atendimento, conforme preconiza a Portaria nº 336/2002. Esse<br />

CAPS destaca-se por um direcionamento no que se refere ao<br />

atendimento aos moradores de rua do Município de Porto Alegre. Esse<br />

atendimento era oferecido em conjunto com outros órgãos, dentre eles,<br />

a Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC), articulados no<br />

processo de atendimento. O CAPS II Centro realizava em média de<br />

400 atendimentos/mês, dividindo-se em cuidados intensivos, semiintensivos<br />

e não intensivos.<br />

Os usuários do serviço CAPS II Centro eram, a partir da<br />

amostra eleita, na maioria mulheres, com idade entre 20 e 30 anos de<br />

idade. Dessas, a maior parte possui benefícios da Previdência Social<br />

ou da Assistência Social e com histórico de internação em hospital<br />

psiquiátrico, pelo menos cinco vezes. Um dado destacado é que a<br />

minoria dos entrevistados não pertence à região/território que compõe<br />

o Distrito Centro, e sim a outros bairros do Município, como da Região<br />

Norte, Sul e Restinga.<br />

No que se refere à análise dos dados em relação às categorias<br />

centrais da pesquisa pode-se reconhecer que a política de saúde mental<br />

mostra-se incipiente, apesar dos movimentos construídos no próprio<br />

Estado. Não há uma política de referência e contrarreferência, o<br />

que revela uma fragilidade na capacidade de acesso dos usuários às<br />

unidades básicas de saúde, bem como a outros equipamentos sociais.<br />

Há um reconhecimento dos profissionais da área da necessidade de um<br />

atendimento integral, na busca de romper com a centralização do saber<br />

médico, com uma proposta de um modelo curativo individual, conforme<br />

aponta a fala: “A integralidade é um princípio, o sujeito é visto como um<br />

todo, não por especialidade, considerando as questões biopsicossociais,<br />

não só as biológicas” (Profissional 1). Esse princípio oferece, de forma<br />

ASSISTÊNCIA EM SAÚDE MENTAL...<br />

129


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

130<br />

conjunta, as ações de promoção, proteção, prevenção, tratamento, cura e<br />

reabilitação, tanto no nível individual como no coletivo. No individual,<br />

no sentido de ser capaz de atender a cada usuário singularmente,<br />

propondo-se um plano terapêutico individualizado, e no coletivo à<br />

medida que se garante a proposta institucional do serviço, buscando<br />

uma nova cultura de assistência. Porém irá aparecer que a integralidade<br />

da atenção recai sobre o próprio serviço, onde o usuário é atendido de<br />

forma completa, não acessando as outras políticas sociais. Argumentase<br />

que não existem equipamentos suficientes para contrarreferenciar os<br />

usuários na rede de atendimento: “A rede não está adequada: há falta<br />

de medicação, a demanda é muito grande o que dificulta o atendimento<br />

aos usuários, entram muitos [...] poucas altas, por causa da dificuldade<br />

da rede” (Profissional 7).<br />

A integralidade sugerida pela Política de Seguridade Social não<br />

atinge diretamente o cidadão usuário da saúde mental, uma vez que não só<br />

a saúde mental como expressão da questão <strong>social</strong> dá conta de ser atendida<br />

de forma integrada pelo sistema. O Sistema de Seguridade Social, apesar<br />

de 12 anos de existência, apresenta deficiências concretas de acesso à<br />

população, necessitando de uma análise mais ampla de como ele vem<br />

“ajustando-se” frente à lógica neoliberal, imposta no final da década de<br />

90 do século passado. Essa lógica coloca para os cidadãos brasileiros a<br />

dificuldade de proteção <strong>social</strong>, subjugando o sistema construído com<br />

princípios de igualdade e cidadania, ao ser relegado pelo viés econômico<br />

de sustentação das necessidades, inclusive sociais, no mercado. Tal lógica<br />

determina à população brasileira, e, neste estudo, aos usuários do CAPS<br />

II, uma cidadania restrita à complementação de programas de determinada<br />

política <strong>social</strong>, não articulando o tripé da proteção <strong>social</strong> como um todo.<br />

A Lei de Reforma Psiquiátrica, legalmente sancionada no Estado,<br />

em 1992, serve (e serviu) de base para construção de um novo olhar à<br />

saúde mental, porém a substituição progressiva de leitos em hospitais<br />

psiquiátricos por outros em hospitais gerais não acontece no cotidiano,<br />

ainda servindo de referência para a internação os hospitais psiquiátricos<br />

do município. Há também uma cultura de descaso e reprovação para com<br />

os usuários da saúde mental, uma crença de que os “doentes” devem ser<br />

tratados nos hospitais especializados, no caso os psiquiátricos, com a<br />

resistência às suas presenças na comunidade. Contrariamente à proposta<br />

do SUS, os usuários têm a possibilidade de ser atendidos no posto de


saúde, porém não o do próprio bairro, por se sentirem estigmatizados em<br />

relação à doença; ele não querem ser reconhecidos como doentes mentais.<br />

Referente a isto a usuária diz: “Eu não gostaria de ir para o posto, lá eles<br />

não sabem que eu sou doente, se fosse num outro bairro que não o meu,<br />

sim” (Usuária J, 48 anos). Eles também definem a doença como incômodo<br />

para as famílias: “A doença incomoda o familiar, porque eu tenho que<br />

estar esmolando, mendigando” (Usuário N, 27 anos). Os usuários sentem<br />

o preconceito da sociedade quanto à loucura, que os caracteriza fora dos<br />

padrões estéticos e normais. A sociedade perfeita determina padrões não<br />

admitindo que um “usuário louco” esteja inserido no mesmo: “o louco<br />

tem que andar feio, molambento, tem que fazer alguma coisa errada; a<br />

gente não pode se arrumar...” (Usuária P, 37 anos).<br />

A nova lógica de assistir os usuários da saúde mental na<br />

comunidade rompe, com a lógica manicomial, mas não rompe com<br />

a lógica dos critérios de acesso restritos às demais políticas sociais,<br />

reforçando, de certa forma, a segregação do “doente mental”, que se<br />

sente acolhido apenas nos programas específicos da saúde mental.<br />

Dessa forma, a cidadania fica comprometida, veiculando-se apenas o<br />

direito de acesso ao programa.<br />

O estudo apontou que havia uma precária articulação das<br />

políticas sociais no Município, revelando um esvaziamento de propostas<br />

no âmbito <strong>social</strong>, as quais são ainda norteadas por concepções arcaicas,<br />

sob a égide do neoliberalismo, sendo estimulado a criar modelos de<br />

assistência de cunho paternalista e com noções de caridade, uma vez que<br />

a sociedade civil se divide com o Estado para dar conta das necessidades<br />

da população. A partir dessa análise, se entende que há emergência<br />

de se integrarem as políticas sociais, de se criarem mecanismos que<br />

permitam a inclusão desses sujeitos na comunidade, com direito a<br />

trabalho e renda, e não apenas de criação de programas que somente<br />

instrumentalizam o acesso por parte dos mesmos.<br />

As falas dos usuários e dos profissionais revelam que o<br />

funcionamento dos CAPS representa algo novo na forma de atender às<br />

demandas da saúde mental. Esse modelo caracteriza-se por um atendimento<br />

regionalizado, com base no SUS, buscando a promoção da cidadania.<br />

Contudo, esse novo não consegue romper com alguns preconceitos,<br />

principalmente por parte dos usuários, quando buscam garantir toda a<br />

cobertura de atendimento no programa e não se sentem estimulados a<br />

ASSISTÊNCIA EM SAÚDE MENTAL...<br />

131


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

132<br />

buscar novos caminhos, reforçando a sua institucionalização em espaços<br />

específicos e não contribuindo, dessa forma, para desmistificar a loucura<br />

e promover a sua inclusão <strong>social</strong> no cotidiano da comunidade. Os<br />

profissionais, ao entenderem a dificuldade de articulação na sociedade<br />

para atender às demandas dos usuários acabam inclusive por colocar<br />

em discussão os princípios da reforma psiquiátrica. À medida que o<br />

próprio serviço não articula a inclusão <strong>social</strong> e a promoção da cidadania<br />

nos espaços da cidade, ele não possibilita a legitimação dos serviços<br />

substitutivos em contraponto à lógica manicomial, segrega a identidade<br />

dos sujeitos e limita a pluralidade de ações no âmbito das políticas sociais.<br />

Embora a perspectiva de assumir um modelo assistencial seja<br />

extremamente positiva, com concepções de liberdade e autonomia, o<br />

CAPS II ainda é embrionário como modelo que garanta um atendimento<br />

que assegure características de reforço do acesso como cidadão. Para que<br />

isso aconteça, faz-se necessária uma nova cultura a respeito do significado<br />

de serviço substitutivo, contextualizado na dimensão legal dos direitos<br />

sociais. A Constituição Federal de 1988 criou premissas fundamentais<br />

no que tange ao compromisso real de constituir cidadãos e os caminhos<br />

a seguir. A partir da seguridade <strong>social</strong>, foi possível vislumbrar o acesso<br />

aos direitos sociais, mas a atual conjuntura desmantela a possibilidade de<br />

firmá-los, elegendo as prioridades e quem deve ser assistido.<br />

O desafio é o de criar estratégias que legitimem a cidadania,<br />

na perspectiva de articular realmente as políticas de seguridade<br />

<strong>social</strong>, deixando para trás uma herança de práticas assistencialistas,<br />

individuais e de exclusão.<br />

Considerações finais<br />

A inserção dos usuários da saúde mental nas políticas sociais<br />

brasileiras foi marcada pela ausência de direitos. A trajetória histórica<br />

dos modelos de atenção em saúde mental fundamentou-se na noção<br />

de seletividade, primando pela segregação dos doentes mentais. Foi<br />

somente com a Constituição de 1988 que se pôde inovar o conceito<br />

de direito <strong>social</strong> ao criar as bases da seguridade <strong>social</strong> como sistema<br />

de proteção <strong>social</strong>, direito do cidadão e dever do Estado. Dentre as<br />

significativas inovações, trouxe para a área da saúde o dever de assistir<br />

a todos de forma universal; do reconhecimento das diferenças de cada


sujeito; de a população poder usufruir níveis de atenção em saúde de<br />

forma a dar conta do cuidado em saúde; de compreender o sujeito como<br />

um todo, isso é composto por diferentes necessidades.<br />

Neste sentido pesquisar e dar visibilidade a Política de Saúde<br />

Mental é o que se pretendeu ao traçar incipientes discussões neste momento<br />

histórico. Incipiente, pois se sabe que não são verdades absolutas acerca do<br />

tema, ao contrário, são movimentos do desvelar da realidade que permitem<br />

o surgimento de novas inquietações acerca do objeto estudado.<br />

Ao revelar os dados da pesquisa pode-se perceber uma dificuldade<br />

de materializar os preceitos da reforma psiquiátrica. Mesmo com os avanços<br />

legais existe ainda uma cultura “intra” e “extramuros” institucionais que<br />

irão compor práticas tuteladoras, paternalistas; centralizando um cuidado<br />

legitimado pelo acesso do próprio serviço de CAPS, não potencializando<br />

os recursos sociais. Dessa forma a condição de cidadania fica tangenciada<br />

ao próprio campo da saúde, com a inserção do usuário a programas<br />

determinados, sem potencializar o acesso a bens e serviços oferecidos<br />

pelas políticas públicas, prevendo a condição de sujeito de direitos. Nessa<br />

perspectiva, se assim for feito, há uma possibilidade de institucionalizar<br />

novos espaços da cidade, apenas ocupando territórios diferentes, em<br />

vez da instituição total, mantendo o modelo manicomial. As práticas<br />

burocráticas, cronificadas no conteúdo histórico do “louco” que não tem<br />

autonomia, que não têm condições de pensar ou opinar, que não possuem<br />

identidade; devem ser substituídas todos os dias pelo conteúdo da vida<br />

desses usuários, vida essa que deve ser compreendida a partir daquilo que<br />

é de significado para essa população.<br />

As possibilidades de construir processos de trabalho condizentes<br />

se dão no cotidiano que é real, que é dinâmico e que permite ser<br />

superado. Caminhos como, por exemplo, a discussão de conceito<br />

da desinstitucionalização, do que é cuidado em saúde mental, do<br />

significado de direito, entre outros, deve compor os espaços de reflexão<br />

da equipe de trabalho nos CAPS, na rede de saúde, na discussão de rede<br />

<strong>social</strong>, com os departamentos das diferentes políticas públicas, com<br />

os gestores locais e estaduais, nos espaços de formação profissional:<br />

Residências, Universidades, entre outros. Para finalizar destaca-se que<br />

isso somente é possível com a participação orgânica dos usuários dessa<br />

política, pois é para eles que como profissionais políticos que temos que<br />

garantir direitos.<br />

ASSISTÊNCIA EM SAÚDE MENTAL...<br />

133


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

134<br />

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ASSISTÊNCIA EM SAÚDE MENTAL...<br />

135


VIVÊNCIAS DESENCADEADAS PELA REFORMA<br />

PSIQUIÁTRICA: DAS CORRENTES ÀS PORTAS ABERTAS 1*<br />

Maíra Giovenardi<br />

Maria Isabel Barros Bellini<br />

Devemos lutar pela igualdade sempre que a<br />

diferença nos inferioriza,<br />

mas devemos lutar pela diferença sempre que a<br />

igualdade nos descaracteriza.<br />

Boaventura de Souza Santos<br />

O presente artigo tem como temática a Reforma Psiquiátrica<br />

Brasileira, implementada legalmente no ano de 2001, através da Lei<br />

n° 10.216, que trata da proteção e direitos do portador de sofrimento<br />

psíquico 21 redefinindo o modelo assistencial em saúde mental.<br />

Esta pesquisa foi gestada a partir da observação e preocupação<br />

enquanto assistente <strong>social</strong> em formação na Residência Integrada em<br />

Saúde da Escola de Saúde Pública/RS, mantida pela Secretaria de<br />

Estado da Saúde (SES-RS), nos anos de 2007 a 2009, em relação ao<br />

grande número de reinternações em hospital psiquiátrico de pessoas<br />

em sofrimento psíquico. Dados observados tanto nos prontuários<br />

quanto no cotidiano da unidade onde se realizou a formação em Saúde<br />

Mental Coletiva, espaço este que permitiu refletir sobre o processo<br />

saúde-doença (ALIATTI, BELLINI, CAMBOIM, CASSAL, CRUZ,<br />

ROSSONI, SOARES, 2009). Na ocasião verificou-se, através dos<br />

prontuários, que nas unidades de internação para adultos masculina e<br />

feminina, respectivamente, mais de 50% e 40% dos sujeitos internados<br />

estavam em sua segunda internação e alguns já foram internados mais de<br />

duas vezes, esses dados evidenciando um alerta para que se aprofunde<br />

essa realidade das reinternações.<br />

Dessa maneira, o problema de pesquisa que norteou o projeto foi<br />

assim elaborado: Como o portador de sofrimento psíquico, sua família<br />

ou cuidador e os trabalhadores que compõem a rede de atenção à saúde<br />

1 Artigo baseado na dissertação de mestrado de mesmo título, orientada pela Professora Dra. Maria Isabel<br />

Barros Bellini, concluída em 2011.<br />

2 Portador de sofrimento psíquico é o termo escolhido pelo movimento de usuários e familiares em<br />

substituição aos termos considerados por eles pejorativos: “loucura” e “doença mental”.


mental vivenciam os processos desencadeados no atendimento a saúde<br />

desde a Reforma Psiquiátrica?<br />

Neste artigo apresenta-se um recorte de nossa pesquisa, e buscase<br />

traduzir as falas dos sujeitos participantes, respeitando suas vivências<br />

advindas do processo da Reforma Psiquiátrica, com a tentativa de ser<br />

coerente com a realidade e com as percepções daqueles sujeitos.<br />

Política de Saúde no Brasil<br />

A política de saúde, no início do século XX, configurava-se em<br />

saúde pública e medicina previdenciária. A saúde pública era destinada à<br />

população que não estava inserida no mercado formal de trabalho, sendo<br />

o foco de atuação do Ministério da Saúde a medicina preventiva, as<br />

doenças infectocontagiosas e os programas de imunização e a medicina<br />

previdenciária destinada aos contribuintes da previdência <strong>social</strong> inseridos<br />

no mercado formal de trabalho tendo como foco de atuação a especialização<br />

clínica e a medicina hospitalar (CAVALCANTI, ZUCCO, 2006). No<br />

entanto, o modelo hegemônico de saúde até meados dos anos 60 era a saúde<br />

pública e, somente a partir de 1966, o modelo previdenciário ganha ênfase.<br />

É no bojo do processo histórico-econômico e político<br />

que marcou a conjuntura brasileira dos anos 30 que ocorre a<br />

formulação da política de saúde, que teve caráter nacional –<br />

como as demais políticas sociais – e foi organizada em dois<br />

subsetores: o de saúde pública e o de medicina previdenciária<br />

(BRAVO, MATOS, 2004, p. 26).<br />

Em decorrência da Segunda Grande Guerra, vivenciou-se<br />

uma profunda alteração na realidade mundial onde se implantou uma<br />

nova ordem econômica e política. Os Estados Unidos da América<br />

consolidaram sua liderança e hegemonia no mundo (BRUM, 1999),<br />

o que permitiu a difusão e expansão do seu modelo de assistência<br />

sanitária, sendo que a partir da década de 1950, consistiu na ênfase do<br />

modelo assistencial à saúde centrado no hospital (ALMEIDA, 1997).<br />

Foi também no período <strong>pós</strong>-segunda guerra mundial que se iniciaram<br />

as críticas aos hospitais psiquiátricos, em detrimento da experiência<br />

de médicos e enfermeiros que foram prisioneiros dos campos de<br />

concentração nazistas e comparavam o tratamento desumano recebido<br />

em hospital psiquiátrico com suas vivências enquanto aprisionados.<br />

VIVÊNCIAS DESENCADEADAS PELA REFORMA PSIQUIÁTRICA...<br />

137


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

138<br />

Outro marco importante no que diz respeito à política de<br />

saúde no Brasil foi o desenvolvimento do setor industrial, suscitando<br />

uma “preocupação” com os trabalhadores, devido à necessidade de<br />

conservá-los – força de trabalho – com saúde suficiente para participar<br />

na produção. Dessa maneira, com o processo de industrialização<br />

vivenciado no Brasil a partir da década de 50, o importante era atuar<br />

sobre o corpo do trabalhador, mantendo e restaurando sua capacidade<br />

produtiva (MENDES, 1999).<br />

A política na área da saúde surge vinculada ao mundo do<br />

trabalho e, concomitantemente, com seu desenvolvimento a partir do<br />

privilégio do setor privado e a extensão da cobertura previdenciária,<br />

evidenciavam-se as desigualdades no acesso quantitativo e qualitativo<br />

entre as diferentes clientelas.<br />

No final de 1970, diversos setores da sociedade iniciaram um<br />

questionamento sobre o sistema de saúde, na busca por um atendimento<br />

mais igualitário e menos excludente, gerado pela insatisfação popular.<br />

Há um crescimento em número e intensidade de denúncias da área da<br />

saúde e organização da sociedade que reivindicavam a reforma do setor<br />

de saúde. Surge então o Movimento Sanitário, configurado como um<br />

grupo restrito de intelectuais, médicos e lideranças políticas do setor<br />

saúde provenientes do Partido Comunista Brasileiro, difundindo o<br />

pensamento crítico da saúde.<br />

Portanto, a Reforma Sanitária tinha como propostas: a criação de<br />

um sistema único, com predomínio do setor público, a descentralização,<br />

a participação e controle da população e a readequação financeira. Tais<br />

propostas visavam alcançar uma redistribuição mais equitativa do<br />

cuidado à saúde da população (GERSCHMAN, 1995).<br />

Em decorrência dos avanços nessa área, é elaborado e implementado<br />

em 1987 o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS), um<br />

convênio entre o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência<br />

Social 32 (INAMPS) e os governos estaduais. Suas proposições vieram<br />

ao encontro dos vários debates que estavam ocorrendo em relação ao<br />

setor de saúde, o que resultou na Constituição de 1988 (BRASIL, 1988)<br />

aprovando a criação do SUS (BRASIL, 1990), reconhecendo a saúde<br />

como um direito a ser assegurado pelo Estado e pautado pelos princípios<br />

3 Anteriormente, a assistência médica estava a cargo do Instituto Nacional de Assistência Médica da<br />

Previdência Social ficando restrita aos empregados que contribuíssem com a previdência <strong>social</strong>; os demais<br />

eram atendidos apenas em serviços filantrópicos.


de universalidade, equidade, integralidade e organizado de maneira<br />

descentralizada, hierarquizada e com participação popular.<br />

O conceito de saúde foi por muito tempo entendido como ausência de<br />

doenças, onde os sistemas de saúde possuíam como características práticas<br />

centradas no adoecimento, marcadas por medidas pontuais e fragmentadas.<br />

O SUS amplia este conceito quando concebe promoção, intersetorialidade,<br />

integralidade e interdisciplinaridade através da articulação das ações de<br />

saúde e com outros setores do município – como educação, meio ambiente,<br />

segurança, geração de renda e emprego, entre outros –, elevando a qualidade<br />

de vida da população e garantindo sua cidadania.<br />

No contexto brasileiro, até 1988, a saúde era um benefício<br />

previdenciário, um serviço comprado na forma de assistência médica ou<br />

uma ação de clemência oferecida à parcela da população que não tinha<br />

acesso à previdência ou recursos para pagar assistência privada. Com a<br />

promulgação da Constituição Federal de 1988 e a criação do SUS, esse<br />

cenário mudou, sendo garantido legalmente o acesso da população aos<br />

serviços públicos de saúde.<br />

Contudo essa mudança na conjuntura é de grande complexidade,<br />

sendo marcada por avanços e retrocessos os quais se deram por meio<br />

de enfrentamentos ao modelo vigente, desempenhado pelas forças<br />

reformistas tais como os movimentos sociais, sindicatos, partidos<br />

políticos progressistas, intelectuais e a própria sociedade.<br />

Assim, desde o início da implantação das políticas de saúde,<br />

havia interesses econômicos e políticos. No início da década de 90, o<br />

projeto na área da saúde passa a ser voltado para o mercado, assistindose<br />

o redirecionamento do papel do Estado, influenciado pela Política<br />

de Ajuste Neoliberal (BRAVO, 2006, p. 13). Esses percalços fizeram<br />

com que as ações voltadas para a saúde, inclusive as que estão previstas<br />

constitucionalmente, não fossem plenamente efetivadas.<br />

A afirmação das contrarreformas de cunho neoliberal, iniciada<br />

na década de 1990, defendidas pelas agências internacionais, onde<br />

o projeto do grande capital tem como vetores privilegiados a defesa<br />

do processo de privatização e a constituição do cidadão consumidor<br />

(MOTA, 1995), afetou a realização de ações na área da saúde.<br />

as políticas de saúde desenvolvidas nos anos 80 deram-se<br />

num contexto de luta política, ideológica e técnica entre dois<br />

projetos alternativos: o da Reforma Sanitária e o neoliberal.<br />

VIVÊNCIAS DESENCADEADAS PELA REFORMA PSIQUIÁTRICA...<br />

139


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

140<br />

O primeiro conforma e inscreve na legislação boa parte<br />

de um ideário democrático da saúde. O segundo, tendo<br />

como pano fundo o fenômeno da “universalização<br />

excludente”, hegemoniza-se à custa de sua dinâmica<br />

própria e de mecanismos de racionamento. O principal<br />

deles é a inquestionável queda de qualidade do subsistema<br />

público de saúde (MENDES, 1999, p. 93).<br />

No processo de privatização ocorrido no projeto neoliberal,<br />

ressalta-se a mercantilização da Saúde e da Previdência e a ampliação do<br />

assistencialismo. As principais diretrizes são: a Reforma da Previdência<br />

inserida no bojo da Reforma do Estado, que vem sendo implantada<br />

paulatinamente e possui características de uma contrarrevolução<br />

(GUERRA, 1998) ou contrarreforma e a defesa do SUS para os pobres<br />

e a refilantropização da assistência <strong>social</strong>, com forte expansão da ação<br />

do setor privado na área das políticas sociais.<br />

Assim, ocorre a segmentação do sistema, com ênfase nas ações<br />

privadas que passam de complementares para essenciais, incidindo<br />

o contrário do que está previsto na legislação do SUS em sua Lei n°<br />

8.080, de 19 de setembro de 1990, artigo 4°: “A iniciativa privada<br />

poderá participar no SUS, em caráter complementar” (BRASIL, 1990).<br />

Apesar de as propostas do Movimento da Reforma Sanitária<br />

terem sido estabelecidas em forma de legislações anteriormente citadas,<br />

não houve uma real efetivação pela garantia dos direitos da população,<br />

principalmente no que diz respeito ao acesso universal a saúde.<br />

Contudo, a construção e consolidação dos princípios da<br />

Reforma Sanitária permanecem como desafios fundamentais na agenda<br />

contemporânea do setor saúde, onde a população possui um importante<br />

papel, ao exemplo das conquistas realizadas no setor da saúde ao longo<br />

dos anos, para que se possa obter um sistema público de saúde conforme<br />

os ditames da Constituição Cidadã.<br />

Política de saúde mental no Brasil<br />

Nas últimas décadas, vem sendo delineada, no Brasil, uma<br />

transformação do modelo assistencial em saúde mental, a partir da<br />

implantação de novos dispositivos de atenção psicos<strong>social</strong>, apesar de<br />

ainda se configurarem como alternativos ao modelo tradicional. Por<br />

modelo tradicional entende-se todos os modos de cuidado centrados em


uma prática clínica que objetiva unicamente a remissão dos sintomas,<br />

desconsiderando que portador de sofrimento psíquico é um sujeito<br />

possuidor de desejos, necessidades e com características singulares em<br />

seu sofrimento psíquico.<br />

Nos últimos anos do século XX a assistência centrada no hospital<br />

psiquiátrico e pautada na perspectiva de isolamento do diferente ganhou<br />

grande ênfase. Foucault, em seu livro A História da Loucura (1972),<br />

descreve em diversos momentos da história o lugar ocupado pelo louco na<br />

sociedade, sendo que a loucura não era entendida como uma doença, mas<br />

como a revelação divina. Durante a Antiguidade e idade média, o louco<br />

circulava sem grandes preocupações na sociedade e a intervenção do<br />

Estado se dava em assuntos pontuais, como por exemplo, em casamentos.<br />

Porém, no século XVII, dá-se o enclausuramento da loucura através<br />

do afastamento dos então denominados doentes mentais da sociedade,<br />

sendo que a loucura estava estreitamente ligada a uma ameaça ao mundo<br />

dos ditos “normais” e, consequentemente, o manicômio era o lugar dos<br />

“insanos”, tendo como função a organização e o estabelecimento de<br />

métodos de controle das condições insalubres e de contaminação e como<br />

um local terapêutico e de predomínio da medicina, ocupando o lugar dos<br />

religiosos na sua administração (DIAS, 1997).<br />

Assim, o tratamento oferecido aos denominados “loucos” teve,<br />

por muito tempo, como único recurso o hospital psiquiátrico. Este se<br />

constitui em um lugar de violência, morte, silenciamento, humilhação,<br />

estigma, segregação, desrespeito aos direitos humanos, exclusão <strong>social</strong><br />

e ausência de direitos. No modelo manicomial, a instituição com suas<br />

rotinas e protocolos torna o sujeito passivo, paciente, ficando desprovido<br />

de liberdade, cidadania, convivência (DALMOLIN, 2006).<br />

O hospital psiquiátrico configura-se assim como uma instituição<br />

total (GOFFMAN, 1961), regula a vida dos sujeitos internados sob uma<br />

única autoridade, estabelecendo uma reorganização <strong>social</strong> para atender<br />

os objetivos institucionais desencadeando um processo de deterioração<br />

da identidade e individualidade. Os indivíduos ficam presos a um<br />

sistema que não possui práticas de saúde voltadas para a promoção<br />

da saúde ou tratamento, anulando qualquer possibilidade de interação<br />

<strong>social</strong> com o mundo exterior ao hospital psiquiátrico.<br />

Nesse contexto, emerge na Europa, nos anos 60, o movimento<br />

da Reforma Psiquiátrica tendo como objetivo a desinstitucionalização<br />

VIVÊNCIAS DESENCADEADAS PELA REFORMA PSIQUIÁTRICA...<br />

141


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

142<br />

dos sujeitos internados em manicômios, ou seja, a superação gradual<br />

da internação nos manicômios através da criação de serviços na<br />

lógica da inserção <strong>social</strong>. Já no Brasil, organizou-se o Movimento dos<br />

Trabalhadores de Saúde Mental em 1970, com o intuito de uma nova<br />

lógica de atenção em saúde mental, baseada nos princípios do SUS<br />

(VASCONCELOS, 2006).<br />

Nesse cenário, em que diversos segmentos da sociedade iniciam<br />

uma crítica ao modelo de tratamento oferecido em hospital psiquiátrico,<br />

ao portador de sofrimento psíquico e, através de movimentos<br />

significativos ocorridos nas Conferências Nacionais, cria-se a Lei da<br />

Reforma Psiquiátrica (Lei Federal 10.216, de 06 de abril de 2001),<br />

sendo o Rio Grande do Sul o primeiro Estado Brasileiro a promulgar a<br />

Lei 9.716 em agosto de 1992 que trata da Reforma Psiquiátrica.<br />

A Lei da Reforma Psiquiátrica reforça o estabelecimento de uma<br />

rede de atenção integral em saúde mental em que sejam respeitados os<br />

princípios de equidade, integralidade e humanização, sendo composta<br />

por Centros de Atenção Psicos<strong>social</strong> (CAPS), <strong>Serviço</strong>s Residenciais<br />

Terapêuticos (SRT), Centros de Convivência, Ambulatórios de Saúde<br />

Mental, Hospitais Gerais, Atenção Básica, entre outros. Essa rede de<br />

atenção à saúde mental é também composta por atores que contribuíram<br />

em seu processo de implantação: os trabalhadores dos serviços que<br />

compõem a rede, os familiares e/ou cuidadores e os próprios portadores<br />

de sofrimento psíquico.<br />

A rede de atenção à saúde mental deve prever o estabelecimento<br />

de relações profissionais coerentes e eticamente comprometidas com<br />

os interesses dos usuários, como refere Iamamoto (2001), é condição<br />

essencial no sentido do fortalecimento do protagonismo dos usuários e<br />

avanço da organização <strong>social</strong> e formação da consciência crítica destes.<br />

Conforme a Lei da Reforma Psiquiátrica, os serviços<br />

substitutivos em saúde mental encontram-se integrados, como uma<br />

rede em que se entrelaçam seus fios para atingir um objetivo em<br />

comum, a substituição da internação em hospital psiquiátrico por um<br />

tratamento em locais de base comunitária que respeite a autonomia do<br />

sujeito em sofrimento psíquico.<br />

Nesse sentido, acredita-se que o atendimento realizado nesses<br />

serviços deve ser desenvolvido por uma equipe interdisciplinar,<br />

entendendo o sujeito em sua singularidade e complexidade, com a


perspectiva de que o profissional trabalhador na área da saúde mental<br />

deve contribuir para que haja um processo de cuidado considerando a<br />

subjetividade do sujeito.<br />

Estamos sempre mais convencidos de que o trabalho<br />

terapêutico seja este trabalho de desinstitucionalização voltado<br />

para reconstruir as pessoas como atores sociais, para impedirlhes<br />

o sufocamento sob o papel, o comportamento, a identidade<br />

estereotipada e introjetada que é a máscara que se sobrepõe à<br />

dos doentes. Que tratar signifique ocupar-se aqui e agora para<br />

que se transformem os modos de viver e sentir o sofrimento<br />

do paciente e que ao mesmo tempo se transforme a sua vida<br />

concreta cotidiana (ROTELLI, 1990, p. 94).<br />

A desinstitucionalização é um processo que tem como palavrachave<br />

o conceito de desconstrução, não só dos manicômios, como<br />

também dos saberes e das estratégias, todos referidos ao objeto abstrato,<br />

ou seja, à doença (ROTELLI 1990). Nesta perspectiva, transformam-se<br />

os modos como as pessoas são tratadas, e o objeto deixa de ser a doença<br />

e passa ser a existência – sofrimento do indivíduo e sua relação com o<br />

corpo <strong>social</strong>, portanto, a ênfase não se centra mais no processo de cura e<br />

sim no projeto de “invenção de saúde”. O olhar passa a ser direcionado<br />

à pessoa, sua cultura e vida cotidiana, tornando-se essa o objetivo do<br />

trabalho terapêutico e não mais a doença.<br />

De tal modo, o sujeito portador de sofrimento psíquico e sua<br />

família devem receber um suporte da rede de atenção à saúde mental,<br />

com o objetivo de um atendimento permanente visando à efetivação<br />

da atenção integral, bem como a necessidade de cuidado, por parte<br />

da equipe de saúde com o grupo familiar, sendo que o sentimento<br />

de pertencimento em relação a essa rede tem a função de referência,<br />

segurança e afeto entre os sujeitos.<br />

Dessa forma reitera-se que o efetivo exercício de cidadania<br />

requer uma concepção e uma vivência de cuidado para além do acesso<br />

a um conjunto de serviços. A participação ativa e crítica coloca os<br />

sujeitos na condição de protagonistas do processo de concepção dessa<br />

rede de atendimento.<br />

a existência de um cidadão ativo, qualificado não apenas para<br />

controlar de modo passivo a gestão, mas também para interferir<br />

nela, direcioná-la, submetê-la a sua vontade. A gestão assim<br />

configurada mostra-se capacitada para se responsabilizar por<br />

VIVÊNCIAS DESENCADEADAS PELA REFORMA PSIQUIÁTRICA...<br />

143


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

144<br />

seus atos e decisões, ao tempo que admite ser responsabilizada<br />

pela população e a responsabilizar o conjunto do aparelho do<br />

Estado (NOGUEIRA, 2005, p. 46).<br />

Desse modo, as ações em conjunto dos profissionais de saúde,<br />

familiares, sociedade e usuários são importantes no que se refere ao<br />

tratamento dos portadores de sofrimento psíquico para o resgate de sua<br />

cidadania, enfatizando uma gestão democrática e participativa.<br />

Caminhos percorridos<br />

Esta pesquisa foi orientada pelo método dialético-crítico, que,<br />

segundo Kosik (1995, p. 15), “a dialética é o pensamento crítico que<br />

se propõe a compreender a ‘coisa em si’. Entretanto, a realidade não<br />

se manifesta, se revela de forma imediata devido a complexidade dos<br />

fenômenos”. As categorias do método utilizadas foram a historicidade, a<br />

totalidade e a contradição e como categorias temáticas têm-se o processo da<br />

Reforma Psiquiátrica, a Política de Saúde Mental e o sofrimento psíquico.<br />

O tipo de estudo é qualitativo, pois “os estudos qualitativos podem ser<br />

definidos como aqueles que trabalham com o universo de significados,<br />

motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um<br />

espaço mais profundo das relações” (MINAYO, 2000, p. 21-22).<br />

Na etapa de coleta de dados foi utilizada uma pesquisa exploratória<br />

do tipo bibliográfica e de campo e como técnica utilizou-se: análise<br />

documental, observação sistemática e história oral temática. Escolheu-se<br />

a história oral temática porque se pretendeu pesquisar sobre um período<br />

específico da vida dos sujeitos pesquisados, ou seja, sobre sua utilização<br />

da rede de saúde mental, considerando as vivências de internação e<br />

tratamento, a partir do processo da Reforma Psiquiátrica, assim, foram<br />

entrevistados sujeitos com internações psiquiátricas anteriores e posteriores<br />

ao ano de 1992 (data em que se iniciou o processo da Reforma Psiquiátrica<br />

no Rio Grande do Sul), seu familiar ou cuidador, profissionais de hospital<br />

psiquiátrico e de serviços da rede de atenção à saúde mental.<br />

Entende-se que a história oral se configurou como uma técnica<br />

adequada a essa pesquisa na medida em que “implica a percepção do<br />

passado que tem continuidade hoje e cujo processo histórico não está<br />

acabado. A presença do passado no presente imediato das pessoas é<br />

razão de ser da história oral” (MEIHY, 1998, p. 13). Como se pretendeu


conhecer as vivências dos atores a partir da implantação da Reforma<br />

Psiquiátrica, então passado e futuro tiveram sua razão nesta pesquisa.<br />

Foi utilizada a análise de conteúdo dos dados qualitativos<br />

(CHIZZOTTI, 1995) e, para que os aspectos éticos fossem resguardados,<br />

os sujeitos participantes, na ocasião da entrevista, assinaram o Termo<br />

de Consentimento Livre e Esclarecido.<br />

Vivências dos Atores Frente aos Processos Desencadeados pela<br />

Reforma Psiquiátrica<br />

A vida não é aquilo que uma pessoa viveu,<br />

mas sim como ela recorda e como a recorda<br />

para contá-la.<br />

Gabriel García Márques<br />

A<strong>pós</strong> a análise dos dados elegeram-se categorias e, para melhor<br />

visualizá-las, organizou-se um quadro especificando as categorias<br />

elencadas para cada ator envolvido na pesquisa.<br />

Quadro 1 – Categorias de Análise da pesquisa<br />

Portador de sofrimento psíquico Profissional do hospital psiquiátrico<br />

Autonomia<br />

Cidadania<br />

Confinamento<br />

Compromisso<br />

História<br />

Mudança<br />

Privação de direitos<br />

Rede<br />

Solidão<br />

Autonomia<br />

Cidadania<br />

Confinamento<br />

Dificuldade<br />

História<br />

Invenção<br />

Privação de direitos<br />

Rede<br />

Profissional de referência/cuidador Profissional da rede<br />

Autonomia<br />

Apoio<br />

Compromisso<br />

História<br />

Invenção<br />

Mudança<br />

Rede<br />

Fonte: elaboração da Autora.<br />

Autonomia<br />

Cidadania<br />

Dificuldade<br />

Confinamento<br />

História<br />

Mudança<br />

Rede<br />

VIVÊNCIAS DESENCADEADAS PELA REFORMA PSIQUIÁTRICA...<br />

145


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

146<br />

Tais categorias se expressam no conjunto das falas presentes nas<br />

diversas unidades de análise, compondo os subcapítulos a seguir: o primeiro<br />

nomeado como “Das correntes...”, o segundo como “... às portas abertas” e<br />

o terceiro intitulado “Para as portas continuarem sendo abertas”.<br />

Das correntes...<br />

Já foi comemorado aqui aniversário de paciente de<br />

102, 103 anos. Você imagina uma vida, uma vida. Então por<br />

um lado é uma glória para o hospital porque se percebe assim o<br />

quanto são bem cuidados, que duram até essa idade. Por outro<br />

lado, se pensar na vida dessa pessoa, é uma vida sem direitos<br />

na minha opinião. Bom... é muito engraçado... é uma vida sem<br />

direitos e ao mesmo tempo o paciente está tendo um direito<br />

seu, de ser cuidado. A questão é: que forma? É a forma de ser<br />

cuidado (Profissional do Hospital Psiquiátrico).<br />

O fragmento denuncia a complexidade que há em discutir<br />

o sofrimento psíquico e suas formas de tratamento. O sofrimento<br />

psíquico sempre foi visto como um desvio em relação a um padrão<br />

de comportamento preestabelecido do que seja normalidade, tanto pela<br />

sociedade em geral como pela ciência. Considerado desviante, a solução<br />

historicamente encontrada foi o afilamento como forma de contê-lo.<br />

Aqui era ruim, para morar aqui não dá, aqui é ruim<br />

[referindo-se ao hospital psiquiátrico]. A gente passa a semana<br />

toda, às vezes chega fim de semana sozinha, não tem nada<br />

aqui, é muito parado [...] era fechado, antigamente a gente não<br />

andava no pátio, não podia andar no pátio, era tudo fechado<br />

assim no pátio, não podia sair do pátio (Yasmin).<br />

O relato anterior é de uma pessoa egressa de hospital psiquiátrico,<br />

sujeito da pesquisa, que aqui tem o nome fictício de Yasmin 43 e<br />

atualmente, em função da implantação da Lei da Reforma Psiquiátrica e<br />

seus dispositivos, reside em sua casa. Sua fala evidencia o confinamento,<br />

a exclusão, a perda de autonomia, de liberdade, dos direitos civis, políticos<br />

e jurídicos e o poder institucionalizante exercido em hospital psiquiátrico.<br />

Segundo dados contidos em seu prontuário, Yasmin possui<br />

56 anos, teve sua primeira internação em hospital psiquiátrico na<br />

4 Nome de origem árabe, significa flor branca. Nasceu para ser feliz. Transpõe todas as barreiras.


década de 1960 e seguiu tendo internações até sua vida adulta, num<br />

total de aproximadamente 34 internações. Na década de 1990 passou<br />

a residir em uma unidade de moradia no hospital psiquiátrico,<br />

permanecendo nessa por nove anos.<br />

A longa permanência em internação em hospital psiquiátrico<br />

foi uma prática muito comum utilizada, sendo que as pessoas que por<br />

ela passaram ficaram com as marcas registradas em suas memórias<br />

para o resto da vida.<br />

No hospital psiquiátrico, o desejo de normatização é<br />

explícito, escancarado: a arquitetura, a separação entre sexos,<br />

a onipresença do regulamento, a ruptura dos laços familiares e<br />

de vizinhança, o controle rígido do tempo, as relações de poder,<br />

tudo está a serviço de reprogramação completa da existência,<br />

em virtude das exigências da ordem e da disciplina (MELMAN,<br />

2006, p. 56).<br />

Yasmin, ao contar a história de sua vida, no que diz respeito<br />

às suas internações, delineia particularidades que expressam seu<br />

sofrimento e solidão frente ao sofrimento psíquico.<br />

Eu só sei que eu comecei a baixar... eu baixava,<br />

passava uma semana em casa, daqui a pouco eu já estava de<br />

volta [referindo-se ao hospital psiquiátrico] [...] Os primeiros<br />

dias eu chorei muito, depois eu queria ir embora. Depois daí<br />

não... Eu chorei uns dois, três dias eu chorei, chamava pelo<br />

meu pai. Depois eu acabei ficando ali. Aí foi indo... passou<br />

aquela choradeira. Aí foi indo, foi indo. Comecei a participar<br />

das atividades, me levavam, me traziam. (Yasmin)<br />

Yasmin explica com detalhes como foi seu processo de<br />

institucionalização no hospital psiquiátrico e, ao descrever seus<br />

sentimentos e vivências, principalmente na expressão “foi indo, indo”,<br />

anuncia e denuncia o processo de naturalização da institucionalização.<br />

Era um tempo em que os indivíduos internados em hospital psiquiátrico<br />

não tinham a perspectiva de retornar ao convívio <strong>social</strong>. “O isolamento<br />

do sujeito doente é a peça-chave do dispositivo institucional que,<br />

além de neutralizar o recluso, estabelecendo uma relação pedagógica<br />

e disciplinadora, circunscreve uma espécie de laboratório <strong>social</strong> e<br />

sanitário” (MELMAN, 2006).<br />

A história de Yasmin esboça um passado de privação de seus<br />

direitos nos mais diversos âmbitos de sua vida, aliada à solidão e exclusão<br />

VIVÊNCIAS DESENCADEADAS PELA REFORMA PSIQUIÁTRICA...<br />

147


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

148<br />

por ela vivenciada na situação de interna em um hospital psiquiátrico.<br />

Porém, com a Reforma Psiquiátrica, Yasmin pode vivenciar o processo<br />

das portas abertas, termo aqui utilizado para designar um novo olhar<br />

dirigido à área da saúde mental e aos portadores de sofrimento psíquico.<br />

... Às portas abertas<br />

quando completou um mês daí eu estava trabalhando aqui com<br />

as coisas, aí que eu cheguei em casa assim, olhei para o chão,<br />

que eu vi uma conta ali, eu digo: meu Deus pela primeira vez<br />

eu tenho uma responsabilidade de pagar uma conta. Aí eu não<br />

sabia se eu ria ou chorava de felicidade.<br />

O relato anterior é um episódio que aconteceu na vida de Yasmin.<br />

Na ocasião fazia um mês que a mesma estava morando em uma casa<br />

fora do hospital psiquiátrico, não sendo mais moradora do mesmo. Essa<br />

fala traz a história viva do processo de sofrimento psíquico vivenciado<br />

por inúmeras pessoas que têm diante de si o estigma da loucura.<br />

Segundo registro no prontuário e na memória dos atores<br />

envolvidos nesse processo através do acompanhamento de Yasmin<br />

no hospital psiquiátrico, a mesma no final da década de 1990 vinculase<br />

a um projeto-piloto criado dentro do hospital chamado de casa de<br />

passagem, como um dispositivo da Reforma Psiquiátrica, no intuito<br />

de “preparar” os internos do hospital para morar fora dele. Nessa<br />

etapa alguns trabalhadores engajaram-se nesse movimento podendo<br />

“inventar” intervenções mais humanizadas no cuidado a pessoas que<br />

já estavam na condição de morador neste hospital, sem vínculo algum<br />

com o mundo dos extramuros.<br />

então foi um período de muito trabalho, apesar de serem poucos<br />

pacientes na época foi muito intenso, porque tudo era muito<br />

novo pra todo mundo. Ter que abrir estas portas do hospital,<br />

para botar os pacientes lá para a rua para aprender a conviver<br />

(Profissional de referência de Yasmin).<br />

com a implantação da reforma [referindo-se a Reforma<br />

Psiquiátrica] eu acho que as coisas se direcionaram para isso,<br />

de criar maior autonomia dos pacientes, a questão de voltar<br />

para casa, de alta dos pacientes. (Profissional da rede)


O <strong>Serviço</strong> Residencial Terapêutico (SRT) foi outro disparador<br />

utilizado na trajetória de Yasmin na efetivação da Reforma Psiquiátrica.<br />

A definição dos SRT deixa claro que se trata de<br />

uma modalidade institucional de saúde para a inclusão <strong>social</strong><br />

de sujeitos que, por longos anos de suas vidas, por serem<br />

portadores de um transtorno mental, foram segregados e<br />

isolados da sociedade. (DIAS, 2007, p. 163).<br />

A<strong>pós</strong> Yasmin morar no SRT por algum tempo, ela enfim<br />

conseguiu realizar seu desejo de residir em sua casa própria fora do<br />

hospital e, a partir desse momento, o hospital psiquiátrico abriu as<br />

portas para ela, uma nova vida começara agora como moradora da<br />

cidade. A partir dessa conquista, Yasmin teve como desafio recomeçar<br />

sua vida de uma maneira mais independente, longe da rigidez por ela<br />

vivenciada em suas internações psiquiátricas, sendo seu profissional<br />

de referência ator importante nesse objetivo através de anos de<br />

acompanhamento a Yasmin nas tarefas de vida diária. Yasmin passou a<br />

acessar a rede de atenção à saúde mental por meio de um Ambulatório<br />

Especializado, onde possui atendimento psiquiátrico e o Posto de<br />

Saúde de sua comunidade que atende a suas demais necessidades.<br />

Observa-se que a construção da autonomia, cidadania, liberdade e<br />

compromisso em um processo protagonista a fim de que aqueles sujeitos<br />

pudessem viver fora do hospital foi a peça-chave para retomada de suas<br />

vidas, porém as mudanças nem sempre acontecem no ritmo esperado.<br />

eu acho assim que teve uma melhora [a partir da Reforma<br />

Psiquiátrica]. Acho assim a proposta é muito boa, mas só que<br />

a implantação é mais demorada do que a gente gostaria [...]<br />

na verdade hoje em dia tem que esse investir ao contrário, não<br />

chegar até a internação. (Profissional da rede)<br />

Outra dificuldade enfrentada para a consolidação dos objetivos da<br />

Reforma Psiquiátrica é a falta de investimentos na área da saúde mental.<br />

Porque verba para doentes mentais é difícil de<br />

conseguir, a gente diz popularmente é um saco sem fundo, não<br />

aparece nunca o trabalho que a gente faz [...] já evoluiu, apesar<br />

de que agora a gente está num retrocesso, tem os avanços e os<br />

retrocessos. Nesse momento em minha opinião, é um momento<br />

de retrocesso. A saúde mental está apagada, é muito da questão<br />

da... política. É muito, tem muito a ver com a política. Muito<br />

VIVÊNCIAS DESENCADEADAS PELA REFORMA PSIQUIÁTRICA...<br />

149


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

150<br />

a ver. E neste momento politicamente não tem, não está tendo<br />

interesse e nem investimento para a saúde, muito menos mental.<br />

(Profissional do hospital psiquiátrico)<br />

Essa falta de investimentos repercute na implantação dos<br />

serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico, tornando esse processo<br />

mais lento que o desejável. Contudo, a maior dificuldade enfrentada<br />

pela sociedade e trabalhadores da área da saúde mental resume-se neste<br />

relato da profissional do hospital psiquiátrico.<br />

Eu acho que a pior parte entre nós, foi difícil, foi a abertura<br />

dos manicômios mentais, foi a questão da sexualidade e da<br />

saída de dentro dos muros [...] esses grandes manicômios que<br />

estão dentro da nossa cabeça, essa é a questão. O fechamento<br />

do manicômio inclui a nossa cabeça, nosso pensamento, uma<br />

mudança de ideologia, uma mudança de paradigma.<br />

Para as portas continuarem sendo abertas<br />

Algumas proposições advindas a partir da análise dos achados<br />

da pesquisa merecem destaque apresentando possíveis ações na área<br />

da saúde mental. Essas proposições são voltadas para todos aqueles<br />

que possuem um envolvimento no campo da saúde mental: usuários,<br />

familiares, trabalhadores, estudantes, pesquisadores e gestores.<br />

Para que as portas possam seguir sendo abertas, são elaboradas<br />

estratégias nos vários momentos da pesquisa, ou seja, na parte teórica<br />

onde se trouxeram dados históricos e atuais a partir de documentos<br />

oficiais que tratam sobre a temática de saúde e, mais especificamente,<br />

saúde mental e na pesquisa de campo, onde se depara com a realidade<br />

através da fala das pessoas.<br />

Desse modo, observou-se: a necessidade de maior investimento<br />

financeiro e político à rede de atenção à saúde mental para sua ampliação<br />

e manutenção, acelerando, assim, o que é preconizado na Lei da Reforma<br />

Psiquiátrica, ou seja, a gradual extinção dos hospitais psiquiátricos<br />

e sua substituição por outros recursos assistenciais e a necessidade<br />

da ampliação de recursos humanos nesses serviços; a constante<br />

qualificação nos serviços de saúde através da Educação Permanente<br />

com o trabalho articulado entre o sistema de saúde, em suas esferas de<br />

gestão, e as instituições formadoras e o estímulo à população a pensar


sobre o sofrimento psíquico com ações de mobilização e sensibilização<br />

no meio comunitário através de atividades como campanhas abordando<br />

a temática sobre a Política de Saúde Mental no sentido de desmistificar<br />

e desestigmatizar o sofrimento psíquico e seus tratamentos.<br />

Reflexões finais<br />

Pedras no caminho?<br />

Guardo todas, um dia vou<br />

construir um castelo.<br />

Fernando Pessoa<br />

Construir um castelo, casa, casebre, cabana ou, então, construir<br />

um espaço na sociedade enquanto cidadão, sujeito possuidor de deveres<br />

e direitos, é uma conquista importante na vida do portador de sofrimento<br />

psíquico. As pedras no caminho podem ser realmente objetos palpáveis,<br />

mas também podem ser invisíveis ao olho humano, mas que deixam<br />

marcas tanto quanto a rocha dura encontrada no caminho percorrido: o<br />

preconceito, o estigma, a exclusão, o isolamento, a frustração, o rechaço.<br />

Para que a mudança na assistência ao portador de sofrimento<br />

psíquico pudesse acontecer, foi necessário um movimento da população<br />

para que a Política de Saúde Mental ganhasse força adentrando os<br />

resistentes muros dos hospitais psiquiátricos e seus saberes instituídos<br />

e, assim, começar a quebrar as correntes e abrir as portas para um novo<br />

modelo de atenção à saúde mental.<br />

Assim, a Política Nacional de Saúde Mental pactua com os<br />

princípios do SUS, dispondo sobre a proteção e os direitos das pessoas<br />

em sofrimento psíquico e redirecionando o modelo assistencial em<br />

saúde mental, através da progressiva diminuição de leitos em hospitais<br />

psiquiátricos, até sua extinção, substituindo esse atendimento pela<br />

rede de atenção à saúde mental. Essa rede é composta por serviços<br />

localizados em meio comunitário, sendo que o caráter interdisciplinar<br />

das equipes que integram esses serviços é extremamente necessário.<br />

A realização dessa pesquisa possibilitou concluir que as ações na<br />

área da saúde mental já avançaram significativamente, deixando marcas<br />

positivas nas pessoas que dela se beneficiaram, porém precisam continuar<br />

progredindo, pois ainda não há alcance a todas as pessoas. Algumas portas<br />

VIVÊNCIAS DESENCADEADAS PELA REFORMA PSIQUIÁTRICA...<br />

151


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

152<br />

já se abriram, outra ainda não, com isso, destacaram-se as contribuições<br />

da pesquisa em forma de proposições no intuito que a Política de Saúde<br />

Mental possa continuar avançando: investimento financeiro e político,<br />

ampliação dos recursos humanos nos serviços de atenção à saúde mental,<br />

educação permanente e ações globais em saúde mental.<br />

Destarte, muito já se fez, porém há ainda um longo e importante<br />

trabalho a ser feito, que não compreende somente as ações dos gestores,<br />

mas da população como um todo e assim, de pedra em pedra recolhida<br />

no caminho, o castelo pode enfim ser construído coletivamente.


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OS FILHOS DA AIDS: CONTANDO HISTÓRIAS DE VIDA 1*<br />

Luciana Basile Silva<br />

Kelinês Gomes<br />

Maria Isabel Barros Bellini<br />

Ninguém acorda e decide trabalhar com AIDS. Isso é um<br />

processo. Algo que nos sensibiliza, mexe com nossos sentimentos,<br />

nossos princípios, e que nos faz rever conceitos. Minha aproximação<br />

com a temática aconteceu ao trabalhar no sistema penitenciário, quando<br />

me preocupava com as mulheres soropositivas que saíam no final de<br />

semana, ou que se foragiam do regime semiaberto, e consequentemente<br />

interrompiam o tratamento antirretroviral.<br />

Buscando mais conhecimento, decidi fazer a Residência Integrada<br />

em Saúde na Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul, o que me<br />

aproximou de histórias e situações que jamais imaginaria. Durante dois<br />

anos, o CTA 2 foi um espaço de grande aprendizado e uma experiência<br />

ímpar na minha vida profissional e pessoal. Esse processo de formação<br />

e trabalho nessa área mobilizou a realização de pesquisa no curso de<br />

mestrado em <strong>Serviço</strong> Social na PUCRS, nessa mesma temática.<br />

O impacto do diagnóstico, as dificuldades, os preconceitos. Lembro<br />

quando, numa tarde, um menino que aparentava uns 10 anos estava no<br />

corredor, sozinho. Depois de atender alguns pacientes, perguntei o que ele<br />

esperava. Ele me respondeu: “não sei... eu tinha consulta com a pediatra,<br />

mas ela disse que não sou mais criança... me mandaram falar com o médico,<br />

mas ele disse que não sou adulto”. O menino chamava-se Pedro. 3 Tinha 14<br />

anos, soropositivo, contaminado durante a gestação. Extremamente tímido,<br />

falou pouco. Contou-me apenas que a mãe tinha morrido, seu pai também.<br />

Perguntei se ele sabia o motivo de vir às consultas. Respondeu que não.<br />

Solicitei que retornasse, acompanhado por um familiar, e remarquei a<br />

consulta. Alguns dias depois, Pedro retornou, conforme combinamos,<br />

acompanhado pela tia. Para minha surpresa, sua tia Ana esteve reclusa na<br />

época em que eu trabalhava no presídio. Estava em liberdade condicional.<br />

1 Artigo baseado na dissertação de mestrado intitulada Os filhos da AIDS: contando histórias de vida,<br />

orientada pela professora Dra. Maria Isabel Barros Bellini, concluída em 2009.<br />

2 Centro de Testagem e Aconselhamento em HIV/AIDS.<br />

3 Nomes fictícios.


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

156<br />

Ana também é soropositiva. Tem quatro filhos e passou a cuidar dos três<br />

sobrinhos depois que a irmã morreu em consequência da AIDS. Dos irmãos<br />

e primos, Pedro era o único que tinha o vírus. Naquele dia, Ana me disse<br />

que Pedro sabia que tinha AIDS, porém nunca conversaram abertamente,<br />

pois, segundo ela, “ele não entende, é muito criança”. Isso me incomodou.<br />

Pedro não era reconhecido, nem pela família e nem pelos profissionais de<br />

saúde como adolescente.<br />

Durante muito tempo, os esforços para combater a epidemia<br />

dirigiram-se à prevenção e à sobrevida de quem já estava contaminado.<br />

Porém, algo não foi esperado: a existência de uma primeira geração<br />

de adolescentes contaminados pela transmissão vertical muda todo<br />

o curso da epidemia.<br />

Apesar de reconhecida, a transmissão do HIV ainda demonstraria<br />

todo seu impacto e atualmente algo começa a se desenhar na história. As<br />

crianças contaminadas por transmissão vertical cresceram, e ninguém,<br />

antes delas, sobreviveu para contar como é nascer e crescer com AIDS.<br />

No começo dos anos 80, os bebês infectados por transmissão vertical<br />

não tinham grandes perspectivas de vida. Aproximadamente trinta anos<br />

depois da descoberta da AIDS e 20 anos a<strong>pós</strong> o surgimento do AZT, 4<br />

o remédio pioneiro contra a doença, a primeira geração contaminada<br />

através da transmissão vertical chegou à adolescência.<br />

Esses adolescentes começam a definir sua própria identidade,<br />

ensaiam uma escolha profissional e experimentam o sexo. Nesse período<br />

de passagem, enfrentam um desafio a mais do que para a maioria<br />

dos jovens: a AIDS, ainda carregada de mitos, associada à morte, ao<br />

preconceito e ao isolamento <strong>social</strong>. Soma-se a isso o fato de que, em<br />

geral, já órfãos, lidam com os sofridos efeitos colaterais do tratamento<br />

(hoje à base de um coquetel que combina até 17 drogas de uso oral e<br />

também medicação injetável), e com o dilema de revelar ou esconder sua<br />

condição sorológica. Se foram uma incógnita para a medicina, sem saber<br />

como se desenvolveriam, e quanto tempo resistiriam, eles agora dão uma<br />

resposta para a ciência: sobreviveram e podem levar uma vida normal.<br />

Porém, “levar uma vida normal” em uma sociedade que<br />

busca a culpa do outro, que julga e condena, torna-se um desafio.<br />

A AIDS ainda é uma doença que desperta um olhar extremamente<br />

estigmatizante, ligado ao comportamento e aos princípios de cada um,<br />

4 ZIDOVUDINA, fármaco utilizado no tratamento da AIDS.


o que faz com que os adolescentes escondam sua condição sorológica<br />

como forma de proteção, buscando aceitação na sociedade, que ainda<br />

trata a AIDS com preconceito, atribuindo-lhes o status de estranhos,<br />

como salienta Bauman (2005).<br />

Para este estudo, foram utilizados dois autores: Bauman e Morin.<br />

Esses autores, apesar de abordarem visões diferenciadas, serviram para<br />

embasar meu conhecimento a respeito do fenômeno estudado. Em seus<br />

livros “ácidos”, Bauman me inquietou e também, muitas vezes, parecia<br />

escrever para mim. A cada livro, a cada página, havia a sensação de<br />

encontrar uma ferramenta para discutir e situar a pesquisa. Porém, na<br />

maioria das vezes, em seus textos, Bauman passava a ideia de que não<br />

havia possibilidade de mudança e que estamos condenados a viver em<br />

uma sociedade perversa. E é aqui que utilizo Morin para resgatar o que<br />

“não teria jeito”. Dessa forma, a complexidade não está presente neste<br />

artigo apenas como um referencial, mas como uma escolha para a vida,<br />

escolha que me auxilia a compreender os fenômenos a partir de um<br />

universo mais amplo, com diversas articulações e que rompe com um<br />

paradigma cartesiano de simplificação.<br />

Para investigar como a AIDS repercute na vida de quem nasceu<br />

com o vírus, é necessário explicitar a problemática em estudo. Assim,<br />

discorro sobre alguns aspectos acerca da AIDS, dentro da sociedade<br />

atual, e também apresento a história da transmissão vertical: via pela<br />

qual os adolescentes desta pesquisa se contaminaram.<br />

Ao se falar em AIDS, automaticamente pensamos na existência de<br />

excluídos, eleitos por uma sociedade regada de preceitos e regras, na qual<br />

quem não “se ajusta”, é visto como diferente. Conforme Baumam (1998),<br />

todas as sociedades produzem estranhos. Mas cada espécie<br />

de sociedade produz sua própria espécie de estranhos e os<br />

produz de sua própria maneira, inimitável. Se os estranhos são<br />

as pessoas que não se encaixam no mapa cognitivo, moral ou<br />

estético do mundo – em um desses mapas, em dois ou em todos<br />

os três; se eles, portanto, por sua simples presença, deixam<br />

turvo o que deve ser transparente, confuso o que deve ser uma<br />

coerente receita para a ação, e impedem a satisfação de ser<br />

totalmente satisfatória; se eles poluem a alegria com a angústia,<br />

ao mesmo tempo em que fazem atraente o fruto proibido; se,<br />

em outras palavras, eles obscurecem e tornam tênues as linhas<br />

de fronteiras que devem ser claramente vistas; se, tendo feito<br />

tudo isso, geram a incerteza, que por sua vez dá origem ao malestar<br />

de se sentir perdido – então cada sociedade produz esses<br />

estranhos (BAUMAN, 1998, p. 27).<br />

OS FILHOS DA AIDS: CONTANDO HISTÓRIAS DE VIDA<br />

157


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

158<br />

E é nesse contexto complexo, no qual a sociedade produz e<br />

reconhece como estranhos pessoas com doença mental, com deficiências,<br />

homossexuais, entre tantos outros, que discuto a AIDS: uma doença<br />

carregada de preconceitos e esteriótipos, reforçada por quem busca<br />

no outro a culpa do que “não é certo”. O surgimento da AIDS e sua<br />

associação com uma conduta sexual desviante, uso de drogas e morte,<br />

fez com que essa nova doença assumisse o papel de castigo para os<br />

transgressores de alguns valores morais.<br />

Com o passar do tempo, a epidemia alastrou-se rapidamente,<br />

atingindo outras camadas populacionais até então “livres”, como o caso<br />

de indivíduos heterossexuais com relacionamentos estáveis. Assim, viuse<br />

que a AIDS não pertence a um ou outro grupo, mas o desconhecimento,<br />

aliado ao imaginário coletivo que acompanha a síndrome, reforça<br />

inúmeros estigmas refletidos no isolamento e no anonimato que cerca<br />

muito de seus portadores. A mídia divulgou amplamente tais estereótipos,<br />

contribuindo com a incorporação no imaginário da população. Tais<br />

sentimentos foram e ainda são reforçados na sociedade em que vivemos,<br />

pois essa determina quem são os “estranhos”, quem está dentro e quem<br />

está fora, o que determina padrões e valores.<br />

Na sociedade atual, as pessoas, antes de serem sujeitos, são<br />

mercadorias (BAUMAN, 2008), o que contribui para a fragilidade<br />

dos laços humanos, o que torna as relações cada vez mais “flexíveis”<br />

(BAUMAN, 2004). Soma-se ainda o fato de que, ao darmos prioridade<br />

aos relacionamentos virtuais em “redes” – que podem ser tecidas ou<br />

desmanchadas com igual facilidade e frequentemente sem que isso envolva<br />

nenhum contato físico –, não saibamos mais manter laços a longo prazo.<br />

As relações estão mais frágeis, e passamos a descartar<br />

as pessoas com maior facilidade. E é nessa configuração que<br />

convivemos com a AIDS, que em sua caracterização inicial é uma<br />

doença contagiosa, incurável, mortal e relacionada principalmente<br />

à homossexualidade, associada a vários estigmas e preconceitos<br />

advindos das percepções das pessoas frente à morte, à contaminação<br />

e à sexualidade (PARKER, 1994).<br />

Nos últimos anos, é possível dizer que a AIDS mudou, se<br />

reconfigurou. A morte, algo dado como certo no início da epidemia,<br />

hoje é mais distante graças ao tratamento cada vez mais eficaz. E é<br />

por essa evolução, no tratamento medicamentoso, que uma geração


de crianças nascidas com HIV, na década de 80/90, hoje chega à<br />

adolescência. Em uma fase já conturbada por si só, esses adolescentes<br />

carregam um desafio a mais: a AIDS, impregnada de mitos, associada<br />

à morte e ao isolamento <strong>social</strong>.<br />

Mas o que é ter AIDS? Ou melhor: o que significa ter AIDS hoje?<br />

A AIDS não tem cura, mas tem tratamento. Quais as consequências do<br />

tratamento? Qual o perfil das pessoas que têm AIDS hoje? Os serviços<br />

de saúde estão preparados para atender esses indivíduos?<br />

Para responder a essas questões, é necessário recorrer à história.<br />

Tudo começa nos anos 80, época em que a Medicina acreditava na<br />

eficácia das vacinas e dos remédios. Aos poucos, as doenças virais<br />

e bacterianas vinham sendo vencidas pela medicina: tuberculose e<br />

hanseníase. Tais doenças fizeram inúmeras vítimas e deixaram um rastro<br />

de preconceito e sofrimento. Elas já estavam saindo da percepção das<br />

pessoas como doenças incuráveis, e entrando nos registros da história.<br />

Surge então a AIDS: e a sociedade se vê novamente diante de uma<br />

doença infectocontagiosa fatal e sem perspectivas de cura.<br />

E, em um movimento equivocado, a humanidade, no século XX,<br />

retrocede ao século XVII, e volta a discutir o destino dos infectados pelas<br />

pestes (PAIVA, 1992). Em seu livro, Paiva (1992) fala da importância,<br />

na época, de combater a lepra e o leproso,<br />

nota-se, em primeiro lugar, que o combate é fundamentalmente<br />

ao leproso enquanto portador de um mal em última instância<br />

incurável e altamente contagioso. São pessoas lazarentas que<br />

devem ser atingidas pelo plano de combate: elas devem ser<br />

retiradas do convívio do resto da população da cidade [...] é<br />

preciso impedir que a cidade pereça! (PAIVA, 1992, p. 79).<br />

Apesar dos avanços científicos, a história se repete no que diz<br />

respeito ao tratamento com o ser humano. Novamente, desta vez nos<br />

anos 80, houve uma preocupação sobre onde seriam atendidos (ou<br />

depositados?) os doentes da nova peste: a AIDS. Assim, os “estranhos”<br />

começam a ser produzidos.<br />

Podemos perceber que, apesar da AIDS já ter completado mais<br />

de 30 anos de existência, da evolução dos fármacos utilizados no seu<br />

tratamento, do conhecimento cada vez mais claro do funcionamento<br />

do vírus no organismo, o diagnóstico, até os dias atuais, ainda<br />

provoca reações similares às reações relatadas no passado, época em<br />

OS FILHOS DA AIDS: CONTANDO HISTÓRIAS DE VIDA<br />

159


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

160<br />

que descobrir ser soropositivo era uma situação que represento pelas<br />

equações: AIDS = morte e AIDS = estigma de promiscuidade.<br />

Com tais associações, é impossível desconsiderar o impacto que<br />

o diagnóstico positivo causa na vida de um indivíduo. A ideia de “doença<br />

incurável e morte” inevitavelmente se constrói no imaginário de quem se<br />

descobre portador do vírus HIV. A angústia, o desespero, a sensação de<br />

impotência e a ideia de incurabilidade, entre outras, passam a invadir o mundo<br />

subjetivo do indivíduo (FERREIRA, 2003). Sofrer o peso do preconceito<br />

de uma doença carregada de estigmas, fundamentalmente relacionados a<br />

comportamentos considerados <strong>social</strong>mente “incorretos”, é quase inevitável.<br />

A história nos aponta que os primeiros casos de AIDS, notificados<br />

no Brasil, foram de homossexuais masculinos, de bissexuais, prostitutas,<br />

travestis e drogadictos, refletindo um estereótipo de “marginalidade<br />

<strong>social</strong>”. Com o passar do tempo, outras populações foram sendo atingidas,<br />

desmistificando a questão do grupo de risco. Incluem-se, nesses grupos,<br />

mulheres contaminadas através de relações heterossexuais, permitindo<br />

o surgimento de uma nova forma de contágio: a transmissão vertical.<br />

Em função disso, em 2001, o Ministério da Saúde estabeleceu condutas<br />

profiláticas, buscando o controle das formas de transmissão. Apesar<br />

de tais iniciativas, ainda existem contaminações por meio dessas vias,<br />

ainda que em menor grau.<br />

No início da epidemia, não existiam recursos de tratamento que<br />

permitissem uma ampla sobrevida a partir da descoberta do diagnóstico.<br />

Logo, tanto os indivíduos portadores de HIV, como seus descendentes<br />

infectados não possuíam muita expectativa de vida. Atualmente, com<br />

o avanço significativo das possibilidades de tratamento, o vírus HIV<br />

passou a ser percebido como uma doença crônica, cuja expectativa<br />

de vida é igual à de indivíduos não portadores, caso estejam em<br />

acompanhamento terapêutico. Essa evolução faz com que, nos dias de<br />

hoje, crianças que se contaminaram durante a gestação, no parto ou<br />

aleitamento já estejam na adolescência, começando uma vida afetiva,<br />

indo para o mercado de trabalho. Eles têm o hoje, o amanhã e muito<br />

mais, pois não são mais identificados fisicamente como doentes. Aqui,<br />

o relato de um médico que viveu e participou da construção desse<br />

subcapítulo da história da AIDS.<br />

O trabalho com crianças expostas/infectadas pelo HIV, no princípio,<br />

foi muito difícil. Precisávamos convencer a instituição e os colegas de que


era necessário fazer algo. Por desconhecimento ou por medo, havia uma<br />

rejeição prévia à ideia. A <strong>residência</strong> de Pediatria foi a única que aceitou<br />

enfrentar o desafio, dos pediatras preceptores assumi a responsabilidade<br />

de levar adiante a ideia de formar um ambulatório para atendê-los. Eu<br />

precisava saber muito mais a respeito da doença para atender e ensinar,<br />

fiz cursos, treinamentos, no Brasil e nos Estados Unidos, e ainda assim me<br />

sentia inseguro em diversas ocasiões. Não havia informações suficientes na<br />

literatura e os medicamentos disponíveis eram formulações para adultos,<br />

além de restritos a três ou quatro drogas. Precisávamos transformar<br />

comprimidos com altas dosagens em medicação para crianças pequenas.<br />

Lidávamos constantemente com doenças oportunistas que representavam<br />

o fracasso de muitos tratamentos que instituíamos. Acompanhar a evolução<br />

da doença era bastante difícil, pois os poucos exames laboratoriais que<br />

havia demoravam alguns meses para ficarem prontos, isso depois de muita<br />

burocracia para solicitá-los. Era a época pré-coquetel, e a sobrevida dos<br />

pacientes era muito baixa. Recordo que eram muito raros os pacientes<br />

que completavam 10 anos de idade. Era muito frequente, no início, fazer<br />

o diagnóstico do HIV em uma criança e com isso fazer o diagnóstico de<br />

uma mãe também infectada. Não poucas vezes havia também a revelação<br />

de infidelidade. Eram situações muito delicadas que desencadeavam<br />

reações extremas. Exigiam toda nossa habilidade para manter a família<br />

como pacientes. Usávamos todos os recursos necessários para permitir<br />

que aquelas pessoas pudessem se organizar para poder seguir em frente e<br />

receber tratamento. Em cada caso usávamos nossa ciência, mas recebíamos<br />

de volta ensinamentos que jamais teríamos aprendido na universidade.<br />

Formaram-se vínculos que persistem até hoje. As relações de confiança<br />

e respeito que se criavam eram, seguramente, uma parte importante do<br />

tratamento. Os adolescentes que hoje permanecem em tratamento conosco<br />

representam nossa própria história frente à epidemia. A<strong>pós</strong> tantos anos de<br />

convívio desenvolveu-se paralela e reciprocamente um afeto muito grande.<br />

Tenho hoje liberdade para conversar com eles sobre quase tudo, mas isso<br />

não me torna um especialista em adolescentes. Aprendo com eles sobre<br />

muitas coisas. Tendo criado quatro filhos, hoje adultos, posso chegar bem<br />

perto. Por considerar que não era correto, aos 12 anos, por exigências<br />

burocráticas transferi-los para a clínica de adultos, recentemente criei um<br />

serviço exclusivamente para adolescentes. Localizado na Infectologia de<br />

adultos do hospital, faço o atendimento acompanhado pelos residentes,<br />

OS FILHOS DA AIDS: CONTANDO HISTÓRIAS DE VIDA<br />

161


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

162<br />

procurando tratá-los não mais como crianças. Estão aprendendo a consultar<br />

sem os cuidadores para que se tornem responsáveis por suas atitudes.<br />

Tenho observado que para eles foi muito bom continuarem a serem<br />

tratados por quem já os conhece há tanto tempo. A adolescência por si só<br />

é uma etapa difícil da vida. Muitas transformações acontecem em todas<br />

as áreas, trazendo insegurança, sentimentos contraditórios, e muitas vezes<br />

sofrimento. É preciso que sejam estimulados para o exercício da vida, da<br />

expectativa de futuro e principalmente da prática da cidadania. A grande<br />

maioria traz na memória perda de familiares, o convívio com a pobreza,<br />

situações de discriminação e o peso de carregar uma doença crônica e grave.<br />

A cumplicidade estabelecida no consultório deve servir para que acreditem<br />

que vale a pena viver e serem boas pessoas. Como serão no futuro não<br />

sei, mas espero e trabalho para isso, que entendam que podem ser felizes<br />

sabendo cuidar de si e dos outros (CARDOSO, 2009).<br />

Esse relato apresenta, de forma clara, os imensos desafios, os limites,<br />

as raras possibilidades, a ansiedade dos profissionais envolvidos diante do<br />

novo e da falta de perspectiva de cura. Sendo assim, surge a necessidade<br />

de buscar alternativas para o tratamento de uma doença grave e até pouco<br />

tempo desconhecida. Os mesmos sentimentos de insegurança e dúvidas<br />

presentes nas equipes médicas para com o tratamento dessa população<br />

foram identificados durante a pesquisa nos adolescentes em relação à<br />

convivência com a doença, que lhes é imposta assim como o medo do<br />

preconceito. A narrativa do médico mostra também, como salienta Morin<br />

(2000), que se abrir para a vida é se abrir também para as nossas vidas.<br />

A metodologia que adotei, bem como o referencial teórico,<br />

conduziu o meu olhar para a realidade que busquei desvendar. Assim,<br />

ambos passaram a ser cúmplices e não um corpo estranho a ela.<br />

Para o desenvolvimento deste estudo, utilizo a complexidade,<br />

enfocada por Edgar Morin, que dá sustentação à reflexão sobre a temática<br />

proposta. Busco uma visão multidimensional do fenômeno a ser desvendado,<br />

reunindo, agregando, sem perder o individual, o singular. Ao adentrar neste<br />

universo e avançar nos estudos, percebi que na história de vida de Morin<br />

havia semelhanças entre o autor e os adolescentes que conheci.<br />

Morin nasceu em 1921, em Paris, filho único de um casal de<br />

judeus. Seu pai, Vidal, era comerciante. Sua mãe, Luna, foi um capítulo<br />

à parte de sua vida. Luna tinha um grave problema no coração, o que<br />

lhe impedia de engravidar. Porém, o improvável aconteceu, e Luna


escondeu a gravidez de seu marido. Morin nasceu em difíceis condições,<br />

estrangulado pelo cordão umbilical:<br />

Eu nasci morto. A minha mãe tinha uma lesão no<br />

coração e qualquer gravidez corria o risco de lhe ser fatal. Assim<br />

que se viu grávida, ela ingurgitou clandestinamente produtos<br />

abortivos aos quais eu resisti. Nasci sentado, estrangulado pelo<br />

cordão umbilical, sem respiração. Foi preciso meia hora para que<br />

o doutor S., que me segurava pelos pés e me esbofeteava com<br />

toda força me arrancasse o primeiro grito (MORIN, 1997, p. 21).<br />

Os mesmos problemas de saúde persistiram, e Luna morreu<br />

quando Morin tinha apenas 10 anos de idade. Esse fato é extremamente<br />

valorizado pelo autor como algo que fez parte de sua construção como<br />

pessoa. Na época a verdade sobre a morte da mãe não é dita claramente,<br />

gerando-lhe uma esperança de retorno da mãe que nunca voltou.<br />

A morte tinha levado minha mãe em um vagão de um trem de<br />

subúrbio, e tentaram me esconder o fato, contado-me que ela<br />

tinha viajado para uma temporada na estação de águas em Vittel<br />

[...] Meu pai tinha supostamente ido acompanhar minha mãe a<br />

Vittel. Eu não estava preocupado. A morte, detectei-a dois dias<br />

depois, com dois sapatos pretos, encimados por uma calça e uma<br />

jaqueta preta tendo mais acima o rosto de meu pai, que eu via de<br />

baixo [...] A morte instalou-se imediatamente em meu ser como<br />

dor, horror e segredo. Mas escondi o que compreendera, escondi<br />

o que sentia, e continuei a escondê-lo de meu pai, de minha tia<br />

e de todos os membros da minha família (MORIN, 2006, p. 14).<br />

Com a morte da mãe e a presença da tia, que se casou com o<br />

seu pai, Morin passa a ter uma família que não desejava. Existe aqui<br />

um paralelo entre a história de vida de Morin com os adolescentes da<br />

pesquisa, explicitado na ausência dos pais, assim como a não revelação<br />

da causa da morte dos mesmos – principalmente da mãe. Alia-se a isso<br />

a vivência com uma família substituta – outros familiares, famílias<br />

adotivas, institucionalização – nem sempre desejada. Portanto, apesar<br />

de a realidade dos adolescentes dessa pesquisa ser única, as histórias<br />

de vida, com perdas e sofrimentos não são totalmente inéditas, como<br />

nos mostra as vivências de Morin.<br />

É em um contexto complexo que cada vez mais a ciência é<br />

instigada a compreender os novos desafios que nos são impostos, buscando<br />

compreender os fenômenos de maneira aberta, flexível. Para Costa (2006),<br />

OS FILHOS DA AIDS: CONTANDO HISTÓRIAS DE VIDA<br />

163


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

164<br />

os conflitos oriundos da divisão da sociedade em classes<br />

persistem, embora num contexto de maior complexidade das<br />

demandas sociais, eles convivem com temas emergentes,<br />

conforme coloca a análise da diversidade humana. Os homens<br />

não se dividem apenas em classes, mas também entre homo e<br />

heterossexuais, entre homens e mulheres, entre jovens e idosos,<br />

entre brancos, negros e amarelos. Assim, chamamos a atenção<br />

para o conjunto de demandas colocadas na sociedade atual que<br />

se articula com as demandas tradicionais dadas pela situação<br />

de exploração do trabalho pelo capital. A análise marxista é<br />

determinante para a compreensão da sociedade capitalista,<br />

porém insuficiente para analisar toda a complexidade das<br />

demandas sociais no atual contexto histórico. O mundo no<br />

século XXI é mais complexo, o número de habitantes do<br />

planeta é maior, a vida humana nunca foi tão longa, o volume<br />

de produção e a dinâmica tecnológica nunca foram tão intensos,<br />

a vida humana nunca foi tão interdependente embora o homem<br />

nunca tenha sentido tamanho isolamento.<br />

Assim como Costa (2006), Bauman (2005) também nos<br />

apresenta uma leitura da sociedade atual que ultrapassa as questões<br />

relacionadas exclusivamente à divisão de classes: a incerteza da vida<br />

cotidiana, a insegurança na cidade, a precariedade dos laços afetivos e<br />

do trabalho, a troca do durável pela possibilidade de escolhas, o excesso<br />

de informações, a exclusão não apenas pelo ângulo econômico, entre<br />

outras. Dessa forma, acreditando nos novos desafios, é que busco,<br />

nesta pesquisa, as ideias de Edgar Morin, o qual rompe com os limites<br />

deterministas e simplificados e incorpora o acaso, a probabilidade e a<br />

incerteza como parâmetros necessários à compreensão da realidade.<br />

Dos sete princípios que Morin utiliza para guiar o pensamento<br />

complexo (princípio sistêmico ou organizacional, princípio hologramático,<br />

princípio da retroatividade, princípio da recursividade, princípio da<br />

autonomia/dependência, princípio dialógico e princípio da reintrodução<br />

do sujeito cognoscente em todo conhecimento) os que nortearam a<br />

pesquisa foram o princípio da recursividade e o princípio da autoecoorganização.<br />

Assim, dentro da perspectiva da complexidade, busquei<br />

conhecer os adolescentes, não os separando do seu meio, mas sim em<br />

contextualizando-os nesse meio, considerando todos os acontecimentos e<br />

as informações que se relacionam a ele numa relação de inseparabilidade.<br />

Assim, para realizar as entrevistas, uma vez estabelecendo<br />

questões norteadoras bem definidas, não segui nenhum roteiro. Meu<br />

principal objetivo era conhecer como esses adolescentes lidam com a


AIDS e de que forma a doença está inserida em suas vidas. A escolha<br />

pela história de vida, como instrumento de pesquisa, privilegia a<br />

coleta de informações contida na vida pessoal dos entrevistados. Para<br />

essa pesquisa, foi utilizada a modalidade descrita por Meihy (2006),<br />

“relato de vida como narrativa aberta”, em que o pesquisador aborda o<br />

sujeito de modo mais aberto possível, interferindo o mínimo durante a<br />

narrativa. A<strong>pós</strong> explicar a pesquisa e obter a anuência dos adolescentes<br />

e de seus responsáveis, fiz a seguinte pergunta: “como é ter HIV e de<br />

que forma isso interfere na tua vida?”. Assim, os adolescentes ficaram<br />

livres de roteiro, o que lhes permitiu falar abertamente sobre suas vidas.<br />

As entrevistas foram longas, e, a<strong>pós</strong> realizá-las, mantive contato com os<br />

adolescentes por e-mail e cartas. E era isso que precisava: estabelecer<br />

um contato para que eles pudessem participar da construção da pesquisa.<br />

Não foram apenas entrevistas. Eles puderem acrescentar, retirar,<br />

escolher os nomes fictícios, modificar o texto e, assim, construir suas<br />

próprias histórias que se entrelaçam entre as vividas e as contadas. 54<br />

A seguir, as histórias contadas e construídas por três adolescentes<br />

que tiveram a oportunidade de falar sobre algo intocável, escondido de<br />

todos e até deles mesmos, e que mostram que direitos, na vida de quem<br />

tem AIDS, não se garantem por si só.<br />

História 1<br />

Por ter feito uma arte de criança, meu castigo foi pior<br />

do que dos outros meninos porque naquele dia a tia me contou<br />

que eu tinha AIDS – Princípio da Recursividade.<br />

A entrevista de Breno foi a primeira. Nesse dia, ele estava<br />

acompanhado da mãe adotiva e de uma tia, que ficaram aguardando na<br />

sala de espera. Informado, curioso, pergunta tudo sobre seu tratamento<br />

para a médica: quer saber o que é, como funciona, quais os efeitos.<br />

Tudo. Durante a entrevista, Breno mostrou-se um menino tímido, com<br />

uma voz suave e extremamente cativante. Parecia feliz ao falar sobre<br />

sua família e a importância dessas pessoas em sua vida. Porém, a forma<br />

como Breno descobriu sua sorologia, me chocou. Não esperava ouvir<br />

5 Durante as entrevistas, foi possível perceber que os adolescentes possuem duas histórias: as vividas – que<br />

foram as reveladas durante as entrevistas e que são suas histórias “reais” – e as histórias contadas – que são<br />

as histórias “modificadas” e “alteradas” em que o diagnóstico da AIDS não aparece.<br />

OS FILHOS DA AIDS: CONTANDO HISTÓRIAS DE VIDA<br />

165


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

166<br />

aquilo. A<strong>pós</strong> a entrevista e de me despedir dele e de seus familiares,<br />

precisei conversar com a médica que o acompanha. Tentar entender<br />

tudo aquilo, tamanha violência. A história de Breno mostra uma prática<br />

profissional desrespeitosa, desumana. Depois desse encontro, trocamos<br />

alguns e-mails e Breno me ajudou a construir sua história.<br />

Meu nome é Breno, tenho 15 anos. Estou na sétima<br />

série, quero fazer artes cênicas no futuro. Acho que vou ser um<br />

ótimo ator e fazer muito sucesso!!! Hoje tenho uma família.<br />

Bom, acho melhor começar pelo começo, né?<br />

Eu morei na FEBEM desde neném e fiquei até meus<br />

10 anos... lembro de muitas coisas de lá. Tinha uma tia que<br />

era muito legal: a tia Marina. Ela, às vezes, acobertava nossas<br />

travessuras e também nos levava na casa dela para ver filme<br />

e fazer lanche. Todo mundo gostava dela. Ela era como uma<br />

mãezona para nós! Mas uma vez a tia Marina não estava, e<br />

fizemos uma travessura. Todos os dias a gente almoçava às 11h<br />

e dormia duas horas. Às 15h a gente lanchava, e depois as tias<br />

mandavam a gente brincar. Teve um dia que encontramos no<br />

galpão da pracinha uns cinco baldes de tintas daqueles bem<br />

grande. Tivemos a ideia de brincar com a tinta. A festa com as<br />

tintas foi grande!!! O cabelo, a roupa, tudo ficou cheio de tinta,<br />

e o pior que foi bastante tinta fora. Quando descobriram, óbvio<br />

que recebemos um castigo. Ficamos três meses sem sair para<br />

passeios e por um tempo também não assistimos à TV. Por ter<br />

feito uma arte de criança, meu castigo foi pior do que dos outros<br />

meninos porque naquele dia a tia me contou que eu tinha AIDS.<br />

Não me lembro o nome dela, só lembro que ela era assistente<br />

<strong>social</strong>. Ela poderia ter me xingado, mas ela me contou como<br />

se isso fosse meu maior castigo. Eu não desconfiava de nada,<br />

quero dizer eu acho que desconfiava sim. Eu sabia que tinha<br />

alguma doença porque eu tomava muito remédio, mas não<br />

sabia que era AIDS. Eu tinha seis anos quando isso aconteceu.<br />

Com o passar do tempo, fui crescendo e entendendo mais o que<br />

era AIDS. Um dia, me deram um papelzinho dizendo o que era<br />

AIDS, como pegava, essas coisas. Cheguei na FEBEM e fiquei<br />

sentado um tempão, sozinho, tentando entender tudo aquilo.<br />

Como que eu tinha aquela doença?<br />

Eu recebi muita ajuda para entender tudo isso. Tinha<br />

uma voluntária que aparecia na FEBEM: a tia Sônia. Ela sempre<br />

aparecia para brincar comigo. O marido dela e o filho também<br />

apareciam de vez em quando. A tia Sônia tem uma amiga, que<br />

é a tia Neiva que acabou me adotando. Foi ela que me contou<br />

tudo que sei da minha vida. Foi através dela que fiquei sabendo<br />

que peguei AIDS, porque a minha mãe me amamentou. Quando<br />

eu nasci ela ainda não tinha, pegou depois. A minha mãe era<br />

prostituta, tinha 15 anos quando eu nasci. Meu pai? Meu pai


História 2<br />

poderia ser qualquer um. A minha mãe morreu quando eu ainda<br />

era neném. Naquela época não tinha tratamento para AIDS que<br />

nem tem atualmente, e a minha mãe também tinha depressão.<br />

Acabei indo parar na FEBEM. As funcionárias é que me<br />

trouxeram para fazer o tratamento aqui no hospital.<br />

Eu sempre pedia para ter uma família, na verdade<br />

esse sempre foi o meu desejo mais forte, mas ir morar na<br />

casa de uma família não foi fácil. Quando eu tinha 10 anos<br />

meu desejo tornou-se realidade. No começo foi estranho<br />

mudar de casa, ter que se acostumar e ganhar a confiança,<br />

foi mudança demais, mas eu soube lidar com essa mudança<br />

porque eu pensei bem e vi que essa mudança precisava<br />

ser feita. Hoje eu tenho uma família estruturada: pai, mãe<br />

e irmãos. Mas também tenho AIDS e não conheço mais<br />

ninguém que tenha.<br />

Na verdade, ter AIDS não atrapalha meu dia a dia.<br />

Eu consigo tomar os remédios e quando tenho que sair, levo<br />

os remédios comigo. Meus amigos já me perguntaram porque<br />

tomo remédio. Aí menti para eles. Falei que era para outra<br />

coisa. Tenho medo de sofrer preconceito, ser humilhado e<br />

debochado no colégio. Isso seria difícil de aturar. Eu já fiquei<br />

com cinco gurias, mas não contei porque não me apaixonei.<br />

Sei que não pega pelo beijo, por isso não contei e também<br />

porque não transaria com elas. Isso sim me assusta, porque eu<br />

posso passar essa doença adiante, se eu não usar camisinha.<br />

Fico pensando que tudo poderia ser diferente se eu não tivesse<br />

AIDS. Sei que quem tem AIDS também são pessoas normais.<br />

O problema é que a cura não foi encontrada, e eu gostaria de<br />

não ter essa doença.<br />

Para mim, a AIDS é normal, para os outros que<br />

não é e eu sei que vou ter que continuar esse jogo – Princípio<br />

da Recursividade.<br />

Bárbara foi a adolescente com quem mantive mais contato a<strong>pós</strong><br />

a entrevista. Nos comunicávamos pela internet e dessa forma fomos<br />

construindo a sua história. Bárbara é muito madura, faz colocações<br />

extremamente fortes. Muito falante, demonstra uma vontade enorme de<br />

viver e para isso encara o preconceito de frente.<br />

OS FILHOS DA AIDS: CONTANDO HISTÓRIAS DE VIDA<br />

167


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

168<br />

Meu nome é Bárbara. Tenho 17 anos e moro em<br />

Montes Claros, uma cidadezinha a uns 500 km daqui. Moro<br />

com meu tio, minha tia e minha avó. Terminei o colégio ano<br />

passado, mas não fiz vestibular... meu psicológico não tava<br />

legal. Sei que é difícil as pessoas entenderem, mas não tava<br />

com cabeça para isso. Quis fazer um curso de secretariado,<br />

mas meu tio me abriu os olhos: o curso é todos os dias e me<br />

trato aqui em Porto Alegre... ia acabar faltando muito.<br />

É nessas horas que lembro que tenho HIV. Quando era<br />

criança eu vinha pouco, mas conforme o tempo foi passando,<br />

as complicações aumentaram, sem falar na medicação que<br />

insiste em não fazer efeito. Aí minhas vindas para cá ficaram<br />

bem mais frequentes. Antes vinha de manhã e ia embora para<br />

minha cidade de tarde. Agora acabo ficando mais dias, porque<br />

tenho que consultar com outras especialidades. Na minha<br />

cidade não tem como eu fazer tratamento. Primeiro porque não<br />

tem condições e segundo porque tem muito preconceito. Aqui<br />

ninguém me conhece, lá é diferente. A única ginecologista que<br />

tem lá já sabe que eu tenho HIV. Fico mal com isso. Por mais<br />

que eu seja acostumada, isso me chateia.<br />

Minha família ficou sabendo que eu tenho HIV<br />

quando minha mãe descobriu que tinha também. Eu tinha uns<br />

cinco anos e ela morreu dois anos depois que soube. Naquela<br />

época não tinha tratamento como tem hoje e ela também se<br />

entregou. Minha mãe sempre deu muito valor à aparência, e<br />

a AIDS acabou com ela. Ninguém sabe quem é meu pai, isso<br />

morreu com a minha mãe. Deve ter tido um motivo para ela<br />

nunca ter contado. Não sei quem infectou quem, ou se os dois<br />

tinham AIDS, não tem foto, não tem pista, não tem nada. Eu<br />

queria que ela voltasse na terra para me contar, é meu direito,<br />

é minha história e eu queria saber.<br />

Minha vida começou a mudar quando descobri que<br />

tinha AIDS. Eu comecei a perguntar por que que eu viajava<br />

muito, por que eu tomava aqueles remédios e tal e com o passar<br />

do tempo eu comecei a sacar. Fui descobrir mesmo com uns<br />

nove ou 10 anos... no início foi meio estranho porque eu já<br />

sabia o que era, como funcionava. Teve uma vez que julguei<br />

muito mal a minha mãe. Eu gritei alto que eu odiava ela e<br />

a culpei pelo que eu tenho. Minha vó chegou a chorar. Que<br />

horror. Eu me arrependo de ter feito isso... mas foi naquele<br />

momento que bateu tristeza.<br />

Tomar a medicação sempre foi algo bem difícil.<br />

Quando criança, eu tomei o xarope de AZT. Credo, não gosto<br />

nem de lembrar. Ele queimava na boca e eu tinha que tomar<br />

água e água gelada em cima. O meu tio não aguentava nem o<br />

cheiro. Às vezes eu tava no pátio brincando e ouvia gritarem:<br />

Barbaráááá! Pronto, já sabia que era o remédio. Quando<br />

eu tinha uns 12 anos, fiz uma loucura. Sei lá, meu tio achou<br />

que eu já era responsável o suficiente e deixou os remédios<br />

sob minha responsabilidade. Eu coloquei tudo fora, para<br />

nunca mais tomar. Eu não queria mais aquilo. Nossa, foi uma<br />

loucura mesmo! Hoje eu entendo que é a medicação que me


deixa viva. Tomo qualquer coisa, independentemente do gosto.<br />

Eu avisei o doutor que mudei o horário da minha medicação<br />

para poder tomar tudo certinho. Antes eu tomava uns às 6h e<br />

às 19h, mas sempre tinha alguém para me acordar. Agora não<br />

vou acordar cedo à toa só para tomar um remédio. Aí mudei<br />

para as 11h e a meia-noite. Dia desses fui dormir na casa de<br />

uma amiga. Ela se apavorou. Eu tomo 15 comprimidos por<br />

dia. Até a injeção eu já tomei. O que mais me incomodava com<br />

a Fuseon eram os nódulos que ficavam cada vez que aplicava.<br />

Parecia que eu tinha levado uma pancada. Teve uma vez que<br />

eu fui com uma blusinha e um casaco pro colégio. Acabou<br />

esquentando e eu não me dei conta e tirei o casaco. Meus<br />

braços tavam com uns roxos e aí me perguntaram o que era.<br />

Eu disse que tinha me batido no armário de casa. Na época,<br />

eu tinha um namorado e quando ele me pegava pela cintura<br />

sentia os nódulos. Bah, era uma saia justa... tinha que ficar<br />

dizendo... aí eu me bati, eu tô com uma alergia.<br />

Sei que a medicação vai mudar de novo, e provavelmente<br />

tenha que vir mais vezes a Porto Alegre. Ainda bem que a<br />

minha dinda mora aqui, senão ia ser mais complicado. Ela é<br />

legal, gosto muito dela. Só que, às vezes, ela diz umas coisas<br />

que afugentam meus sonhos. Aprendi a ficar só com as coisas<br />

boas que ela fala. Eu tenho outros parentes aqui, mas eles não<br />

me procuram. Hoje, com 17 anos, eu descobri que eles não me<br />

procuram por preconceito, e nunca ninguém tinha me contado.<br />

Aliás, agora que cresci, fiquei sabendo de várias coisas, do<br />

preconceito da família, das coisas que eu vou ter que enfrentar e<br />

que meus tios já enfrentaram. Meu tio me disse que uma vez uma<br />

mãe fez de tudo para me tirar do colégio porque ela descobriu<br />

que eu tinha HIV, e não queria que o filho dela estudasse na<br />

mesma escola duma criança com AIDS. E, no segundo grau, eu<br />

pedi para os meus tios me colocarem no colégio Chaves, que<br />

é o melhor colégio que tem em Montes Claros. Na época eles<br />

disseram que não dava porque não aceitavam alunos do bairro<br />

que a gente morava. Há pouco, descobri que isso era mentira.<br />

O colégio não me aceitou porque já sabiam do meu problema, e<br />

meus tios não me contaram para não me machucar.<br />

Com 17 anos eu estou vendo como é a vida, tenho<br />

que começar a andar sozinha. Na minha família não me<br />

olham com pena. E isso é muito bom, porque sentir pena é a<br />

pior coisa que tem. Eu preciso de carinho, não de pena. Isso<br />

tudo foi me amadurecendo, me alimentando para encarar as<br />

coisas que eu vou ter que enfrentar... e eu sei que ainda vou<br />

passar por muitas. Sei que hoje tem uma legislação que me<br />

protege, por exemplo, não vão poder me barrar se eu passar<br />

na faculdade. Mas o preconceito sempre vai existir. Para mim,<br />

a AIDS é normal, para os outros que não é e eu sei que vou ter<br />

que continuar esse jogo.<br />

Eu tiro uma força não sei da onde e Deus me ajuda<br />

muito. Nesses 17 anos que o HIV me acompanha, aprendi que<br />

tinha que fazer uma escolha: me entregar ou viver. E eu escolhi<br />

viver. Eu tô participando de um grupo de jovens numa igreja<br />

OS FILHOS DA AIDS: CONTANDO HISTÓRIAS DE VIDA<br />

169


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

170<br />

lá perto de casa. É bem legal, eu gosto bastante. A gente faz<br />

passeios, ri, canta, ajuda uns aos outros. Às vezes, tem alguém<br />

que dá um depoimento sobre algum problema que enfrentou, ou<br />

tá enfrentando, e a gente ajuda falando coisas boas, positivas.<br />

O líder do meu grupo, que sabe que eu tenho HIV, perguntou se<br />

eu teria coragem de dar meu depoimento. Disse para ele que,<br />

se eu tivesse câncer, aí sim, mas o HIV não. É tipo... hoje tu<br />

ouve a minha história mas amanhã já sai contando. E eles vão<br />

me evitar. Não quero isso porque lá eu sou a Bárbara, não sou a<br />

guria que tem AIDS. Para eu poder contar, tenho que sentir que<br />

tem um laço de amizade, mas tem que ser um laço verdadeiro,<br />

porque se ele se rompe, vem a vingança. Há pouco tempo<br />

uma senhora mudou com a filha lá para perto de casa. Eu fiz<br />

amizade com a filha dela. Bastou para uma vizinha ir dizer:<br />

toma cuidado porque eu tenho visto a Bárbara andar muito<br />

com a tua filha, e ela tem AIDS. Aí ela mentiu, disse que já<br />

sabia porque eu tinha contado. Ela me deixou à vontade... que<br />

um dia eu contei. Elas me conheceram primeiro, por isso me<br />

aceitaram. Eu não tenho só AIDS. Eu sou muito carismática,<br />

converso, cativo as pessoas. Se tem uma meia dúzia que não vai<br />

com a minha cara, tem o dobro que vai.<br />

Com meus namorados que as coisas ficam mais<br />

complicadas, porque envolve as famílias. Os pais sempre vão<br />

se preocupar com o filho. Vão ficar com medo porque, se ele<br />

casar comigo, não vou poder dar netos. Se bem que vi na TV<br />

que uma mulher que tem AIDS teve um nenê. Com o meu último<br />

namorado, os pais dele quando descobriram o que eu tenho<br />

praticamente obrigaram ele a terminar comigo, e me esquecer.<br />

Sofri tanto que não gosto nem de lembrar. Mas isso infelizmente<br />

faz parte de um caminho que está apenas começando.<br />

Hoje estou apaixonada por outra pessoa. Quando eu<br />

conheci o Matheus, ele mexeu comigo de um jeito que não sei<br />

explicar. Tudo começou com uma amizade que aos poucos foi<br />

se tornando algo mais forte e se tornou uma paixão. O dia do<br />

nosso primeiro beijo foi inesquecível! Quando me dei conta que<br />

estava tão apaixonada, fiquei com medo. Medo de novamente<br />

passar tudo o que vivi no meu outro relacionamento. Não queria<br />

dar uma responsabilidade para um garoto de 16 anos de assumir<br />

um relacionamento com uma pessoa que tem HIV. Também<br />

não queria que nada de ruim acontecesse com ele, afinal ele<br />

é o saudável. Decidi então terminar com ele. Minhas amigas<br />

disseram para eu pensar melhor e que era melhor eu contar para<br />

ele e ver no que ia dar do que fugir. Chorei tanto nesse dia, tinha<br />

tanto medo. Não queria sofrer, mas tomei a decisão de contar e<br />

abri o jogo para ele. Comecei de um jeito fácil, contando cada<br />

etapa da minha vida. Falei que tinha perdido a minha mãe<br />

cedo, que ela tinha uma doença grave e que durante o parto ela<br />

havia me contaminado. Falei que tenho o vírus HIV, que faço<br />

tratamento desde pequena e que gostaria que ele fosse sincero<br />

comigo. Nessa hora, um momento de silêncio tomou conta da<br />

nossa conversa. Preocupada eu perguntei se ele tinha alguma<br />

coisa para me dizer. Ele disse que não sabia o que falar. Nem sei


História 3<br />

o que pensei nessa hora. Até que ele me falou que já sabia, aliás,<br />

os pais dele também já estavam sabendo.<br />

Te confesso que um medo tomou conta de mim.<br />

Imaginei: perdi o Matheus, os pais dele jamais vão permitir<br />

nosso namoro. Engoli o medo e perguntei o que eles tinham<br />

falado. Ele me respondeu que disseram apenas para ele se<br />

cuidar e que confiavam muito nele. Essas palavras foram tão<br />

importantes para mim! Nesse mesmo dia, ele me contou que<br />

o pai dele tinha sido transferido para o Pará e que ficariam<br />

pouco tempo em Montes Claros. Resolvi deixar as coisas<br />

rolarem. Foram os três meses mais felizes da minha vida. A<br />

gente conversava muito, nos divertíamos, tínhamos muita<br />

sintonia. Eu ia na casa dele, jantava lá e todos eram um amor<br />

comigo. Ele despertou em mim algo que eu nunca havia sentido<br />

antes. Comecei a sentir um desejo íntimo por ele e ele por mim.<br />

O nosso problema era que não tinha lugar onde rolar. Foi aí<br />

que me dei conta que dessa vez era mais intenso.<br />

Com ele aprendi a não temer o amor, e sim vivê-lo.<br />

Aprendi a viver mais, a não temer o amanhã, e sim encará-lo<br />

de frente. Apesar de estarmos longe, eu tenho ele dentro do meu<br />

coração. Hoje, sou mais feliz por saber que tenho um amor que<br />

me ama, respeita e me aceita. E é com ele que se Deus permitir<br />

viverei a minha eternidade.<br />

Na última vez que eu tive internada, eu vi que não<br />

precisava passar por isso, e que eu posso continuar vivendo. É só<br />

tomar os remédios direitinho – Princípio da autoeco-organização.<br />

A entrevista com Lívia foi a mais peculiar. Depois que o médico<br />

a indicou para a entrevista, foi necessário fazer contato telefônico,<br />

conversar com ela e com um de seus irmãos sobre a pesquisa e pedir a<br />

autorização para sua participação. Tudo isso porque Lívia comparece<br />

às consultas sozinha, mesmo morando em outra cidade. Num primeiro<br />

momento, cheguei a pensar ser inviável fazer a entrevista. Mas excluíla<br />

porque ela assumiu seu tratamento não era aceitável. O termo de<br />

consentimento livre e esclarecido foi enviado pelo correio, assinado pelo<br />

irmão que hoje é responsável por ela. Lívia é uma menina encantadora.<br />

Durante a entrevista, fez várias perguntas. Dúvidas sobre a forma<br />

de contágio, possibilidades de ter filhos, funcionamento do vírus no<br />

organismo. Assuntos que provavelmente estavam guardados há muito<br />

tempo. Quando falamos sobre a importância de ela não interromper o<br />

OS FILHOS DA AIDS: CONTANDO HISTÓRIAS DE VIDA<br />

171


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

172<br />

tratamento e os efeitos da Fuseon, ela me disse: “foi muito importante<br />

tu me dizer isso... toda vez que eu pensar em não tomar remédio, vou<br />

lembrar de ti. Eu achei que ia te ajudar com a tua pesquisa, mas tu não<br />

sabe o quanto tu tá me ajudando e talvez me dando mais tempo de vida”.<br />

Foi nesse momento em que percebi a importância do papel que<br />

temos enquanto pesquisadores.<br />

Meu nome é Lívia, eu tenho 16 anos. Moro em<br />

Charqueadas com meus quatro irmãos. Eu perdi meu pai<br />

quando eu tinha um ano e meio. Ele era portador do HIV e<br />

minha mãe também. Ela morreu quando eu tinha três anos. Dos<br />

seis filhos, eu sou a mais nova e a única que foi contaminada.<br />

A minha mãe escondeu de todo mundo que tinha HIV.<br />

A família foi descobrir a doença dela e do meu pai no dia em que<br />

ela morreu. Ela consultava, mas era escondido. Sei lá, acho que<br />

ela tinha medo do preconceito. A única coisa que me pergunto<br />

é: se a minha mãe se tratava, por que os médicos não fizeram<br />

alguma coisa para me proteger? Quando ela morreu, eu e um<br />

dos meus irmãos fomos morar com meus tios, lá em Esteio. Mas<br />

a gente não ficou muito tempo porque eles nos maltratavam.<br />

Acho que se eu tivesse ficado com os meus tios eu não estaria<br />

viva porque eles não se preocuparam em me levar no médico.<br />

Foi minha vó que me trouxe no médico. Comecei a me tratar com<br />

quatro anos e na época o doutor disse que eu não duraria até os<br />

sete. Aí a minha vó fez uma promessa, que se eu chegasse até os<br />

sete anos ela ia fazer uma festa para mim bem grandona. Foi<br />

bom porque eu tive duas festas, uma em casa e outra no salão.<br />

Deus tem me ajudado muito. Eu sou evangélica, e<br />

uma vez o pastor me disse que eu tava curada, que eu não tinha<br />

mais o vírus no meu corpo. Aí eu acreditei nisso e parei de<br />

tomar os remédios. Foi quando eu tive uma pneumonia e tive<br />

que ficar internada. Fiquei quase um mês internada em estado<br />

regular. Eu continuo acreditando que Deus existe, mas Ele<br />

não disse que é para eu parar de tomar. Sei que a medicação<br />

evoluiu muito e é isso que vem me mantendo viva. Mas é ruim<br />

tomar remédio. Às vezes, eu penso... daqui a pouco eu tomo.<br />

Aí vai passando, passando e acabo não tomando. Na última<br />

vez que eu tive internada eu vi que não precisava passar por<br />

isso e que eu posso continuar vivendo. É só tomar os remédios<br />

direitinho. Aí, também não incomoda ninguém da família que<br />

tem que estar vindo até aqui quando eu estou internada.<br />

Não gosto de dar trabalho para ninguém. No início,<br />

era minha vó que me trazia... aí ela foi ficando mais idosa, mais<br />

difícil para fazer certas coisas. Quando tinha que vir a Porto<br />

Alegre consultar, minha tia que mora em Canoas tinha que ir<br />

até Charqueadas me buscar e vir até aqui. Depois foi um dos<br />

meus irmãos que faltava no emprego para me trazer. Um dia<br />

enchi o saco, e disse: chega, eu já sei ir sozinha. Eu assumi meu<br />

tratamento. Aliás, tudo que eu sei eu fui descobrindo sozinha,<br />

encaixando as coisas.


Não sei como e quando eu descobri a minha doença.<br />

Quando criança eu fui muito doente, com feridas, secreções no<br />

nariz, mas não lembro o dia exato em que soube. Na verdade o<br />

HIV cresceu comigo. Acho que é por isso que tenho uma vida<br />

normal... só tenho que ter atenção em dobro para não ficar<br />

doente. Se uma pessoa normal já se cuida eu tenho que me<br />

cuidar muito mais. Se uma gripe é ruim para ti, para mim ela<br />

pode ser muito pior, pode virar uma pneumonia. Mas o HIV não<br />

me atrapalha no meu dia a dia. Eu estudo, estou no segundo<br />

ano e sou monitora num curso de informática de tarde. Adoro<br />

ir em festas. Já fiquei com alguns guris, e na hora de beijar<br />

sempre penso se tenho algum corte na boca. Eu nunca transei,<br />

mas sempre penso como vai ser. No início, com certeza, vou usar<br />

camisinha, mas depois de um tempo ele não vai mais querer usar.<br />

E aí vou ter que pensar como contar. Eu tenho medo de contar<br />

e ele me deixar por causa do HIV. Se fosse ao contrário, e eu<br />

gostasse realmente, eu continuaria o namoro. Mas isso eu sei<br />

que vai depender de cada pessoa. Talvez eu tenha sorte.<br />

Minhas amigas gostam de conversar comigo... acham<br />

que eu tenho que fazer psicologia. Eu gosto de escutar as<br />

pessoas. Do grupo eu sou a mais cabeça, mais madura. Elas<br />

têm a mesma idade que eu, mas eu sou bem diferente. Acho que<br />

é porque eu amadureci muito cedo. Nunca tive ninguém para<br />

me dizer: faz assim. Aprendi a me virar sozinha.<br />

Mesmo gostando muito das minhas amigas, nunca<br />

contei para ninguém. Não confio nas pessoas. No colégio<br />

ninguém sabe o que eu tenho. Tem umas vizinhas que moram<br />

perto de casa que sabem. O problema não é saber... é que as<br />

pessoas saem falando para todo mundo e não se dão conta<br />

que isso machuca a gente. Quando eu era criança eu lembro<br />

que uma vizinha que sabia ficava dizendo “olha lá... aquela<br />

coitadinha tem HIV”, eu era pequena mas lembro. Numa das<br />

vezes que internei, quando voltei para o colégio, uma amiga<br />

veio me dizer que todo mundo tava comentando que eu tinha<br />

AIDS e que meus pais tinham morrido disso. Aí tive que dizer<br />

que era mentira, que eles morreram num acidente de carro e<br />

que eu tinha internado porque descobriram que eu tenho um<br />

problema no coração e que por isso também eu ia começar<br />

a tomar remédios. Para sorte ou azar elas acreditaram...<br />

até ficou mais fácil agora porque posso levar a medicação<br />

quando saio com elas e tomar sem problemas.<br />

E eu já troquei a combinação dos remédios umas<br />

quatro, cinco vezes. Não posso mais bobear. Na minha família<br />

sim, todo mundo sabe e não tem preconceito. Mas tem um<br />

supercuidado que também me incomoda. Se eu sinto uma<br />

dor, todos ficam preocupados, já acham que eu não tomo os<br />

remédios direito, não deixam eu fazer certas coisas porque eu<br />

sou doente. E eu digo para eles que eu não sou uma pessoa<br />

doente, eu sou assim. Sei que é para o meu bem, mas não<br />

gosto disso. Há pouco tempo a gente ficou sabendo que meu<br />

primo também está com AIDS. Ele tem 24 anos e acho que<br />

ele pegou pela seringa porque ele usa droga injetável. Ele<br />

OS FILHOS DA AIDS: CONTANDO HISTÓRIAS DE VIDA<br />

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<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

174<br />

está preso. Acho que ele não dura muito tempo não. Nem<br />

medicação ele queria tomar. E dentro do presídio tudo é mais<br />

difícil, judiam muito dele, batem, o lugar é sujo. A minha tia<br />

disse para ele fazer um esforço e tomar os remédios. Não<br />

entendo como meu primo foi se contaminar. Hoje em dia as<br />

pessoas sabem como que pega e tem a escolha de se cuidar<br />

ou não. Foi burrice dele, já eu não fiz nada para ter HIV e<br />

sofro o mesmo preconceito. Acho que tinha que ter um lugar<br />

para atender só os adolescentes. Às vezes tenho dúvidas,<br />

tenho medo e não sei para quem perguntar. Tipo um grupo<br />

com alguém do hospital, sabe? Ia ser bom. Mas teria que ser<br />

aqui, lá na minha cidade não tem condições. Todo mundo ia<br />

ficar sabendo... e também lá não tem recurso para nada. Até<br />

a medicação eu tenho que vir retirar aqui. Mas isso não me<br />

incomoda. É até bom porque o doutor já me conhece há 11<br />

anos. Sei que é ele que tá me segurando aqui nesse hospital.<br />

Já era para eu ter ido para clínica adulta... mas eu não quero.<br />

Lá a gente vê as pessoas mal mesmo, magras, acabadas pela<br />

AIDS. Eu me sinto muito mal de ver aquelas pessoas e saber<br />

que um dia eu vou ficar daquele jeito.<br />

Aqui nesse hospital quem decide que eu tenho que<br />

passar para clínica adulta não pensa nisso, não sabe como é<br />

sofrido. Os médicos de lá nem me conhecem, não sabem da<br />

minha história. Podem até ler o que tá no prontuário, mas a<br />

minha vida eles não conhecem. Aqui é diferente, o doutor já me<br />

conhece. Mas vou ter que esperar. Não sei até quando o doutor<br />

vai conseguir me deixar aqui.<br />

A análise dos dados desta pesquisa foi baseada no referencial<br />

epistemológico, escolhido para a realização da mesma, pois, como<br />

salienta Morin (2005:57), a complexidade nos permite debruçar sobre a<br />

vida cotidiana onde ela parece, em geral, ausente. Portanto, esta análise<br />

irá para além do “bom” ou do “ruim”, do “certo” ou do “errado”,<br />

assumindo uma postura dialógica e uma percepção das histórias de<br />

vidas como sendo concorrentes, antagônicas e complementares.<br />

A<strong>pós</strong> a escuta das histórias de vida dos três adolescentes, realizei<br />

uma leitura, visando compreender como a AIDS repercute na vida de<br />

quem se contaminou por via vertical. Para tanto, foi preciso identificar a<br />

forma de organização familiar desses adolescentes, como eles convivem<br />

com o vírus HIV, e quais são suas histórias de vida. Inicialmente as<br />

entrevistas foram lidas separadamente, mas considerando o contexto<br />

como um todo – adolescência, descoberta da doença, família,<br />

relacionamentos, adesão ao tratamento e conhecimento sobre a doença,<br />

entre outros. Apoiada na história de vida desses adolescentes, passei a<br />

analisar alguns limites e possibilidades de ser adolescente e viver com


AIDS, buscando relacionar como eles vivem em sociedade e quais as<br />

estratégias utilizadas para a autoeco-organização.<br />

Para uma melhor aproximação da história de vida desses<br />

adolescentes e da teoria da complexidade, analisei alguns fragmentos<br />

de falas dos entrevistados, utilizando o princípio sistêmico em que<br />

considera impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, tanto<br />

quanto conhecer o todo sem conhecer particularmente as partes<br />

(MORIN, 2000, p. 94).<br />

Eu sempre pedia para ter uma família, na<br />

verdade esse sempre foi o meu desejo mais forte, mas ir<br />

morar na casa de uma família não foi fácil (Breno).<br />

A fala de Breno relaciona-se com um dos aspectos que busquei<br />

desvendar nesta pesquisa: conhecer a forma de organização familiar dos<br />

adolescentes que nasceram com HIV – e a influência desta organização nas<br />

demais relações estabelecidas, seja com amigos ou serviços de saúde –, uma<br />

vez que, por se tratar de uma doença altamente estigmatizante, associada<br />

à sexualidade, valores morais, religiosos, pelo caráter transmissível e<br />

à morte, a AIDS acaba acarretando amplas repercussões psicológicas,<br />

sociais, econômicas e políticas, não só no plano individual, mas também<br />

na esfera familiar (PARKER, 2004). Agregado a essas mudanças impõe-se<br />

a necessidade de hábitos em decorrência da doença: ingerir medicamentos,<br />

conviver com a ameaça do aparecimento de doenças oportunistas e<br />

da morte. Essas alterações no cotidiano requerem a adaptação às novas<br />

demandas e, consequentemente, mudam o relacionamento com a família<br />

e nela mesma. Assim, os adolescentes passam a autoeco-organizarem-se,<br />

levando em conta o dia a dia vivido, as solicitações da doença, os temores<br />

da família, as demandas escolares, o preconceito da sociedade.<br />

Até hoje, a AIDS mostrou um efeito desagregador na<br />

organização familiar, pois a contaminação de alguém, até então, estava<br />

ligada a questões como drogadição, infidelidade e outras atitudes tidas<br />

como “transgressoras” pela sociedade. Dessa forma, a pessoa que vive<br />

com HIV não é a única a sofrer as consequências: seus familiares e<br />

amigos também acabam enfrentando junto às dificuldades tais como<br />

preconceito e estigma. Nesse sentido, busco aqui o princípio recursivo<br />

em que Morin (2000) aponta que os indivíduos produzem a sociedade<br />

nas interações e pelas interações.<br />

OS FILHOS DA AIDS: CONTANDO HISTÓRIAS DE VIDA<br />

175


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

176<br />

Nas famílias, em que ocorreu transmissão vertical, podem<br />

existir dificuldades relacionadas a perdas de familiares e sentimentos<br />

de culpa e de raiva. Nas famílias dos adolescentes que nasceram com<br />

o vírus HIV encontramos, frequentemente, situações que aumentam a<br />

vulnerabilidade, principalmente a orfandade ou o desconhecimento do<br />

pai, como exemplificado nas falas a seguir:<br />

A minha mãe era prostituta, tinha 15 anos quando eu<br />

nasci. Meu pai? Meu pai poderia ser qualquer um (Breno, 15<br />

anos).<br />

Ninguém sabe quem é meu pai, isso morreu com a<br />

minha mãe (Bárbara, 17 anos).<br />

A minha mãe escondeu de todo mundo que tinha HIV.<br />

A família foi descobrir a doença dela e do meu pai no dia em<br />

que ela morreu (Lívia, 16 anos).<br />

Provavelmente, a ausência de vínculos corroboram para um<br />

sentimento indefinido em relação aos pais biológicos. O ódio é um<br />

deles, pois reconhecem os pais como responsáveis pelo drama vivido,<br />

como diz Bárbara:<br />

Teve uma vez que julguei muito mal a minha mãe.<br />

Eu gritei alto que eu odiava ela e a culpei pelo que eu tenho.<br />

Minha vó chegou a chorar (Bárbara, 17 anos).<br />

Nesse sentido, é importante entender o adolescente dentro do seu<br />

sistema familiar, pois cada família tem sua maneira auto-organizativa de<br />

resolver conflitos e o faz de acordo com sua história. Tais questões estão<br />

também relacionadas como a descoberta do diagnóstico, pois isso implica<br />

a denúncia da infecção da mãe ou de outros aspectos íntimos delicados ou<br />

estigmatizados na família (tais como traição, homossexualidade, ou uso<br />

de drogas realizado pelos pais), o que pode se tornar uma dificuldade para<br />

a aceitação do diagnóstico. Buscando a análise, a partir da complexidade,<br />

identifico o princípio dialógico como um dos pressupostos básicos vivido<br />

pelos adolescentes, em que os sentimentos amor/ódio, medo/euforia,<br />

mentira/verdade estão presentes no seu dia a dia. E não devem ser<br />

considerados como algo negativo, pelo contrário, servem para nos mostrar<br />

a complexidade e o turbilhão de sentimentos que é vivido constantemente.<br />

Nesta pesquisa, foi possível perceber diferenças, com dois padrões<br />

de revelação do diagnóstico para os adolescentes. A rotina exigida pelo


tratamento, ou seja, idas frequentes a hospitais e ingestão de medicamentos,<br />

facilitam para a criança a percepção de problemas em sua saúde. O<br />

recebimento precoce do diagnóstico permite que o indivíduo o perceba<br />

como algo que faz parte de seu crescimento, como referem Bárbara e Lívia:<br />

Minha família ficou sabendo que eu tenho HIV<br />

quando minha mãe descobriu que tinha também. Eu tinha uns<br />

cinco anos e ela morreu dois anos depois que soube. Minha<br />

vida começou a mudar quando descobri que tinha AIDS. Eu<br />

comecei a perguntar por que que eu viajava muito, por que<br />

eu tomava aqueles remédios e tal e com o passar do tempo eu<br />

comecei a sacar. Fui descobrir mesmo com uns nove ou 10<br />

anos... no início foi meio estranho porque eu já sabia o que era,<br />

como funcionava. (Bárbara, 17 anos)<br />

Não sei como e quando eu descobri a minha doença.<br />

Quando criança eu fui muito doente, com feridas, secreções no<br />

nariz, mas não lembro o dia exato em que soube. Na verdade,<br />

o HIV cresceu comigo. Acho que é por isso que tenho uma vida<br />

normal. (Lívia, 16 anos)<br />

Através da naturalização da doença, é possível identificar o principio<br />

da autoeco-organização dessas adolescentes que buscam cuidar de si.<br />

Entretanto, conforme o amadurecimento, e entendendo mais<br />

a doença, existe um processo difícil de aproximação, maturação e<br />

entendimento da contaminação, como evidenciado na fala de Breno:<br />

Com o passar do tempo, fui crescendo e entendendo<br />

mais o que era AIDS. Um dia, me deram um papelzinho dizendo<br />

o que era AIDS, como pegava, essas coisas. Cheguei na FEBEM<br />

e fiquei sentado um tempão, sozinho, tentando entender tudo<br />

aquilo. Como que eu tinha aquela doença (Breno, 15 anos).<br />

Na fala de Breno fica evidenciado que, ao saber do diagnóstico,<br />

ele passa a pensar sobre sua condição, tentando se auto-organizar.<br />

A relação da família com a AIDS, assim como outras questões,<br />

se dá de forma diferente, e embora a importância dessa organização<br />

na vida de qualquer adolescente seja fundamental, a maneira como<br />

os membros familiares encaram a infecção pelo HIV vai interferir<br />

diretamente na convivência do jovem com o vírus. Se isso ocorrer de<br />

forma natural, provavelmente o adolescente também terá uma relação<br />

mais clara com a condição sorológica. Mas, como uma família, afetada<br />

pelo estigma da doença, e que, muitas vezes já lidou com a morte em<br />

consequência da AIDS, cuida dessa geração?<br />

OS FILHOS DA AIDS: CONTANDO HISTÓRIAS DE VIDA<br />

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<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

178<br />

A resposta para essa questão está extremamente ligada<br />

às influências externas que a família sofre. Com tanta pressão e<br />

estigmatizada pela sociedade, a família pode tornar-se imunodeficiente,<br />

em um processo recursivo, uma vez que sofre um desequilíbrio interno.<br />

Como consequência, a família pode fechar-se e restringir as redes sociais,<br />

isolando-se e oprimindo-se. Por outro lado, novamente em um movimento<br />

de recursividade, essa imunodeficiência pode auxiliar os membros<br />

familiares a reestabelecerem as relações internas e se fortalecerem para<br />

enfrentar o mundo externo. Ambas as possibilidades influenciam na<br />

construção da identidade e nas relações que serão estabelecidas.<br />

Com o conhecimento do diagnóstico, surge um novo questionamento:<br />

a quem contar? A revelação de sua condição constituiu importante fonte<br />

de dificuldades para os jovens, que se mostraram divididos quanto ao que<br />

fazer com esse segredo: livrar-se do seu peso, convivendo com os riscos de<br />

possíveis rejeições, ou suportá-lo e ter de se haver com os prejuízos dessa<br />

escolha, como exemplificado na fala de Breno:<br />

Meus amigos já me perguntaram por que tomo<br />

remédio. Aí menti para eles. Falei que era para outra coisa.<br />

Tenho medo de sofrer preconceito, ser humilhado e debochado<br />

no colégio. Isso seria difícil de aturar (Breno, 15 anos).<br />

É possível relacionar a fala de Breno com o princípio da autoecoorganização,<br />

pois, ao mentir sobre os remédios, ele busca uma maneira de<br />

continuar convivendo em seu meio, sem ser reconhecido como estranho.<br />

Os adolescentes que vivem com HIV podem não conseguir<br />

estabelecer uma relação próxima com os pares, em função da dificuldade<br />

de identificação com os mesmos. Essa situação pode fazer com que os<br />

adolescentes sintam-se mais isolados. Há uma dificuldade em expor a<br />

doença para amigos e colegas, pois se envergonham de ser diferentes e de<br />

sofrerem um possível rechaço em função dessa diferença, como diz Lívia:<br />

Mesmo gostando muito das minhas amigas, nunca<br />

contei para ninguém. Não confio nas pessoas (Lívia, 16 anos).<br />

No decorrer das entrevistas pude perceber que apesar da tristeza<br />

ou certo grau de inconformismo, a conversa sobre o assunto fluiu com<br />

facilidade e oferecendo conforto e auxiliando no exercício de assumir a<br />

própria doença e tratamento. Tal situação pode ser visualizada dentro do


princípio da recursividade, uma vez que foram produzidas interações de<br />

confiança em que o adolescente se sentiu seguro para contar sua história.<br />

A relação estabelecida entre pesquisadora e entrevistados gerou um<br />

sentimento de cumplicidade que possibilitou ouvir as histórias de vida.<br />

Essa relação de cumplicidade não é exercida no dia a dia, no<br />

meio <strong>social</strong> em que vivem. Entretanto, ao estabelecer relações mais<br />

próximas, é possível ultrapassar a questão da AIDS e construir vínculos<br />

sólidos, como refere Bárbara:<br />

Elas me conheceram primeiro, por isso me aceitaram.<br />

Eu não tenho só AIDS. Eu sou muito carismática, converso,<br />

cativo as pessoas. Se tem uma meia dúzia que não vai com a<br />

minha cara, tem o dobro que vai (Bárbara, 17 anos).<br />

A ampliação da revelação para amigos é relatada, em geral,<br />

como uma experiência bastante delicada e difícil. A fala de Bárbara<br />

evidencia o princípio recursivo em que, segundo Morin (2000, p. 95),<br />

os indivíduos humanos produzem a sociedade nas interações e pelas<br />

interações. Outro trecho da mesma fala revela a inter-relação dos dois<br />

princípios – autoeco-organização e recursividade:<br />

Para eu poder contar, tenho que sentir que tem um<br />

laço de amizade, mas tem que ser um laço verdadeiro, porque<br />

se ele se rompe, vem a vingança (Bárbara, 17 anos).<br />

Com a dificuldade de contar para os amigos, os adolescentes<br />

acabam recorrendo muitas vezes, as equipes de saúde, pois uma das<br />

principais características dessa população é o vínculo construído com esses<br />

profissionais que os acompanham há muitos anos, como refere Lívia.<br />

É até bom porque o doutor já me conhece há 11 anos. Sei<br />

que é ele que tá me segurando aqui nesse hospital. Já era para eu<br />

ter ido para a clínica adulta... mas eu não quero (Lívia, 16 anos).<br />

Assim, numa relação de recursividade, médico e paciente<br />

estabelecem vínculos de onde emergem cuidados para além da doença,<br />

preservando a condição de ser adolescente, compreendendo seus medos<br />

e angústias. Essa relação também é reforçada a partir da percepção de<br />

que o tratamento vai além da ingestão de medicamentos e realização de<br />

exames, passando a existir um tratamento de qualidade e reconhecimento<br />

OS FILHOS DA AIDS: CONTANDO HISTÓRIAS DE VIDA<br />

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180<br />

do sujeito, uma vez que o médico rompe com o protocolo de idade e<br />

continua o atendimento, como fica evidenciado no trecho a seguir:<br />

Lá [referindo-se à clínica adulta] a gente vê as<br />

pessoas mal mesmo, magras, acabadas pela AIDS. Eu me sinto<br />

muito mal de ver aquelas pessoas e saber que um dia eu vou<br />

ficar daquele jeito. Aqui, nesse hospital, quem decide que eu<br />

tenho que passar para clínica adulta não pensa nisso, não sabe<br />

como é sofrido. Os médicos de lá nem me conhecem, não sabem<br />

da minha história. Podem até ler o que tá no prontuário, mas a<br />

minha vida eles não conhecem.<br />

O não reconhecimento dessa população por alguns serviços de<br />

saúde que utilizam a idade “numérica” como fator de distribuição entre<br />

os ambulatórios infantil e adulto é não levar em conta o sujeito e sua<br />

história. Ouvir esses adolescentes, perceber suas necessidades, respeitálos<br />

como sujeitos singulares, faz parte do tratamento eficaz.<br />

Adoro ir em festas. Já fiquei com alguns guris e na<br />

hora de beijar sempre penso se tenho algum corte na boca<br />

(Lívia, 16 anos).<br />

O trecho anterior evidencia a forma de autoeco-organização<br />

desses em relação à sorologia. Também é possível perceber que apesar<br />

de a adolescência se configurar como um período do desenvolvimento<br />

no qual ocorrem importantes mudanças físicas, psicológicas e sociais,<br />

caracterizando-se como um momento de transição da infância para<br />

a vida adulta (ROCHA, 2004), esses adolescentes já se mostram<br />

vigilantes em relação ao cuidar de si para cuidar do outro, no momento<br />

em que na hora de beijar não se deixam levar pela emoção e pensam que<br />

repercussão que teria na sua vida e na do outro.<br />

Frente a esse contexto, ocorrem importantes alterações<br />

emocionais, vivenciadas de forma muito peculiar para cada<br />

adolescente. São despertadas ansiedades relacionadas às perdas<br />

infantis acarretadas pela entrada no mundo adulto e pelo impulso<br />

ao amadurecimento precoce no que se refere ao se deparar com uma<br />

doença crônica e contagiosa. Apesar de ser um processo universal, a<br />

adolescência assume peculiaridades de acordo com a cultura vigente,<br />

que por sua vez influencia na sexualidade, autoestima, relacionamentos,<br />

independência dos pais.


Concomitantemente a tantas mudanças, nas estruturas sociais<br />

cada vez mais inconsistentes, os adolescentes sentem suas vidas<br />

marcadas por crescentes descontinuidades, como exemplificado na<br />

história de Bárbara, que busca em seus relacionamentos meninos mais<br />

novos como maneira de adiar o início da vida sexual.<br />

Essa vida de “inconstâncias” ainda é agravada pelo medo de sobrar<br />

e o medo de morrer. De serem vistos como estranhos, conforme Bauman,<br />

que não se encaixam na sociedade atual já descrita anteriormente.<br />

No que se refere ao medo da morte, apesar de não ser mais tão<br />

presente, ainda é lembrado em momentos de doenças e internações<br />

hospitalares sofridas por esses adolescentes, quando lidam também<br />

com outros fatores estressantes, como as exigências do tratamento, o<br />

estigma, o medo, o preconceito, as mentiras. Tudo isso aliado a um<br />

contexto em que os adolescentes estão realizando a travessia para o<br />

mundo adulto com questões que ultrapassam as esperadas para os<br />

adolescentes em geral.<br />

Segundo Blum (1992), para os adolescentes com doença crônica,<br />

como é caracterizada a AIDS, hoje em dia, esta fase pode estar associada<br />

à depressão e à rejeição de si próprio, por se sentirem diferentes das<br />

outras pessoas, tanto física como nos seus comportamentos. Porém,<br />

o que foi constatado com a pesquisa contrapõe o autor, já que os<br />

adolescentes mostram lidar de forma que a infecção, não interfira na<br />

autoestima. Vejamos o relato a seguir:<br />

Na verdade o HIV cresceu comigo. Acho que é por<br />

isso que tenho uma vida normal... só tenho que ter atenção em<br />

dobro para não ficar doente. Se uma pessoa normal já se cuida<br />

eu tenho que me cuidar muito mais (Lívia).<br />

Outro aspecto relevante refere-se à contaminação na<br />

adolescência, por outra via, na qual geralmente há um sofrimento em<br />

saber que poderia ter evitado e a ideia de morte aparece logo a<strong>pós</strong> o<br />

diagnóstico. Já os adolescentes que nasceram com o vírus convivem há<br />

quase 20 anos com o vírus e são a prova viva de que não há limite para<br />

a sobrevivência. Denota-se aqui o princípio da Recursividade, em que<br />

esses adolescentes são produtos e produtores, escolhendo o caminho<br />

da vida ao invés de esperar pela morte. A fala de Bárbara exemplifica a<br />

vontade e a possibilidade de viver:<br />

OS FILHOS DA AIDS: CONTANDO HISTÓRIAS DE VIDA<br />

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182<br />

Nesses 17 anos em que o HIV me acompanha, aprendi<br />

que tinha que fazer uma escolha: me entregar ou viver. E eu<br />

escolhi viver.<br />

Escolher viver torna-se algo essencial para esses adolescentes.<br />

Construir suas identidades, dentro de um contexto permeado pelo<br />

preconceito, é uma luta diária. Segundo Bauman (2005), a medida que<br />

as pessoas se deparam com as incertezas, as inseguranças e o medo, as<br />

identidades sociais, culturais, religiosas e sexuais acabam sofrendo um<br />

processo de transformação contínua. Ou seja, os adolescentes passam<br />

a buscar alternativas para se regenerarem e se reorganizarem – o que<br />

evidencia o princípio da autoeco-organização – de modo permanente,<br />

dentro da realidade que lhe é apresentada.<br />

No que se refere ao conhecimento de sua doença, bem como a<br />

adesão ao tratamento, esses adolescentes demonstram ter informações<br />

sobre o HIV, compreendendo suas características e seus riscos, como<br />

descrito na fala a seguir:<br />

Se uma gripe é ruim para ti, para mim ela pode ser<br />

muito pior, pode virar uma pneumonia. (Lívia).<br />

Como observado, a adesão ao tratamento significa muito mais<br />

do que tomar medicamentos ou seguir as orientações médicas, estando<br />

extremamente ligada à melhoria da qualidade de vida, e ao desejo de<br />

cuidar de si para cuidar do outro.<br />

A troca de esquema dos medicamentos também merece<br />

atenção, pois, além de significar mudança de hábitos, gera dúvidas,<br />

expectativas quanto aos possíveis efeitos da nova medicação, como<br />

refere Bárbara:<br />

Sei que a medicação vai mudar de novo e provavelmente<br />

tenha que vir mais vezes a Porto Alegre (Bárbara, 17 anos).<br />

As entrevistas destacaram também que os adolescentes já estão<br />

habituados com a rotina exigida pelo tratamento, como exemplificado:<br />

Dia desses fui dormir na casa de uma amiga. Ela se<br />

apavorou. Eu tomo 15 comprimidos por dia. Até a injeção eu já<br />

tomei (Bárbara, 17 anos).


Aqui é possível identificar o Princípio da autoeco-organização,<br />

pois a medicação, que faz parte do cotidiano de Bárbara, não é um fator<br />

impeditivo para sair ou dormir na casa de amigas, assim como dormir<br />

na casa de amigas também não é um fator impeditivo para tomar a<br />

medicação. O mesmo princípio também é identificado na fala de Breno:<br />

Na verdade ter AIDS não atrapalha meu dia a dia.<br />

Eu consigo tomar os remédios e, quando tenho que sair, levo<br />

os remédios comigo. Meus amigos já me perguntaram por que<br />

tomo remédio. Aí menti para eles. Falei que era para outra<br />

coisa (Breno, 15 anos).<br />

Saliento aqui a dialógica em que vivem constantemente esses<br />

adolescentes: ao mesmo tempo em que são responsáveis pelos seus<br />

cuidados, em alguns momentos, surge o sentimento de revolta pela<br />

responsabilidade precocemente adquirida em função da rigidez nos<br />

horários das medicações, bem como pelos efeitos colaterais algumas<br />

vezes apresentados.<br />

Tomar a medicação sempre foi algo bem difícil.<br />

Quando criança eu tomei o xarope de AZT. Credo, não gosto<br />

nem de lembrar. Ele queimava na boca e eu tinha que tomar<br />

água e água gelada em cima. O meu tio não aguentava nem o<br />

cheiro. Às vezes eu tava no pátio brincando e ouvia gritarem:<br />

Barbaráááá! Pronto, já sabia que era o remédio. O que mais<br />

me incomodava com a Fuseon eram os nódulos que ficavam<br />

cada vez que aplicava. Parecia que eu tinha levado uma<br />

pancada (Bárbara).<br />

Nesse sentido, tanto os cuidadores como as equipes de saúde<br />

devem estar integrados na tarefa de auxiliar no tratamento. Essa<br />

responsabilidade deve ser compartilhada entre os três e, assim,<br />

possibilitar que o adolescente tenha condições de se adaptar às<br />

recomendações médicas, de acordo com suas necessidades. Dentro<br />

dessa perspectiva, eles utilizam a autonomia/dependência, para se<br />

adequarem às exigências do tratamento, como apresenta Bárbara:<br />

Eu avisei o doutor que mudei o horário da minha<br />

medicação para poder tomar tudo certinho. Antes eu tomava<br />

uns às 6h e às 19h, mas sempre tinha alguém para me acordar.<br />

Agora não vou acordar cedo à toa só para tomar um remédio.<br />

Aí mudei para as 11h e a meia-noite (Bárbara).<br />

OS FILHOS DA AIDS: CONTANDO HISTÓRIAS DE VIDA<br />

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184<br />

Perceber o adolescente, através da sua muldimensionalidade, é<br />

compreendê-lo em todas as suas dimensões: psicológica, emocional,<br />

física, biológica, cultural, espiritual entre outras. Portanto, o modo de<br />

vida, a rotina, as crenças pessoais, religiosas e as transformações dessa<br />

fase precisam ser considerados durante o tratamento, pois a adesão é<br />

um processo permanente e contínuo, conforme mostra o relato de Lívia:<br />

Eu sou evangélica e uma vez o pastor me disse que eu<br />

tava curada, que eu não tinha mais o vírus no meu corpo. Aí<br />

eu acreditei nisso e parei de tomar os remédios. Foi quando eu<br />

tive uma pneumonia e tive que ficar internada. Fiquei quase um<br />

mês internada em estado regular. Eu continuo acreditando que<br />

Deus existe, mas Ele não disse que é para eu parar de tomar.<br />

(Lívia, 16 anos).<br />

O depoimento de Lívia remete ao Princípio da Recursividade,<br />

uma vez que a adolescente, mesmo tendo passado por uma situação<br />

de adoecimento por ter parado com a medicação, dá-se conta de<br />

que precisa buscar uma maneira de continuar, tendo fé, mas sem<br />

interromper seu tratamento.<br />

Nesse contexto, a problemática dos adolescentes que nasceram<br />

com o vírus, não pode ser vista e nem compreendida por meio da lógica<br />

fragmentada, predominante na concepção científica clássica, ou seja, na<br />

compartimentação dos fenômenos. Para além disso, as histórias de vida se<br />

apresentam como redes de relações, de serviços, de interações, exercendo<br />

um movimento constante de organização, desorganização e reorganização.<br />

Em meu processo de construção/desconstrução/reconstrução,<br />

percebi a importância de ter utilizado a história de vida nesta pesquisa,<br />

pois descobri o que não está nos livros e sim nas vivências e nas<br />

relações humanas.<br />

Apesar de recente, a história da AIDS causou um grande impacto,<br />

pois trabalhar com a AIDS desperta sentimentos, faz com que reavaliemos<br />

certos valores, nos mostra um outro mundo. A AIDS traz à tona o que as<br />

pessoas buscam esconder, os medos e os tabus, fazendo uma devassa na<br />

vida de quem tem o vírus. Ao longo dos últimos anos, a organização da<br />

sociedade civil e a participação das pessoas vivendo com HIV e AIDS<br />

(PVHA) têm contribuído para a redução do estigma e do preconceito.<br />

Desde então, buscam-se mudanças no modo de a sociedade encarar a<br />

doença que, por sua vez, interfere nas decisões das políticas públicas.


Porém, com tantos avanços nas políticas públicas e na ciência,<br />

algo parece não evoluir: o pensamento humano. As pessoas que<br />

vivem com HIV/AIDS ainda sofrem com o preconceito e o estigma.<br />

A AIDS ainda ‘despersonaliza’, descaracteriza o sujeito. Dessa<br />

forma, além de se preocupar com a saúde e com a possibilidade<br />

de morte, quem vive com AIDS ainda tem que se preocupar com a<br />

exclusão da sociedade e até mesmo da família, aumentando ainda<br />

mais o sofrimento.<br />

O enfrentamento da AIDS pelos adolescentes infectados<br />

por meio da transmissão vertical representa um grande desafio. As<br />

crianças se transformaram em adolescentes, e essa transformação vem<br />

acompanhada de manifestações de ordem biológica, psicológica e<br />

<strong>social</strong> peculiares na adolescência, agravadas por uma doença crônica<br />

e limitante. A adolescência é um período marcado por ambivalências,<br />

contradições, conflitos, com as regras sociais e as figuras de autoridade,<br />

um despertar para novas formas de viver e um modo de ser no mundo<br />

(BLOS, 1985; ABERASTURY, 1983). A infecção pelo HIV pode<br />

ser vista como “uma figura de autoridade”, impondo limites na vida<br />

cotidiana e nas relações sociais dos adolescentes.<br />

Nesta pesquisa, os adolescentes mostraram uma relação com a<br />

AIDS diferenciada da relação estabelecida pelos adultos. A primeira<br />

geração de adolescentes que nasceram com AIDS mostra que não há<br />

limites para a sobrevivência, fazendo com que haja uma mudança de<br />

discurso: a AIDS desvincula-se da morte a associa-se à vida.<br />

Eles mostraram também que essa sobrevivência está garantida<br />

clinicamente, devido ao avanço da medicação, pois a sobrevivência na<br />

sociedade é uma luta diária. E é aqui que revelo o principal achado desta<br />

pesquisa: para esses adolescentes, histórias vividas e histórias contadas<br />

se complementam dentro do princípio da autoeco-organização como<br />

estratégia necessária de sobrevivência.<br />

O referencial da complexidade, que norteou esta pesquisa,<br />

possibilitou conhecer as particularidades de como é viver com AIDS,<br />

além de conhecer as histórias paralelas existentes na vida dos três<br />

adolescentes participantes. Foi através do referencial que compreendi a<br />

invisibilidade, que antes para mim era algo imposto e que, ao aprofundar<br />

minhas leituras, em Morin, passei a compreendê-la como um direito de<br />

quem sofre ainda com o preconceito e a exclusão.<br />

OS FILHOS DA AIDS: CONTANDO HISTÓRIAS DE VIDA<br />

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<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

186<br />

A minha leitura dessa história mudou, e não pretendo finalizar<br />

essa discussão, e sim mostrar que existem possibilidades de realizar<br />

outras leituras, buscando novas perspectivas de compreensão do<br />

fenômeno aqui estudado.<br />

Assim, finalizando, quero compartilhar o melhor retorno que<br />

poderia ter desta pesquisa: a confiança de Bárbara, Breno e Lívia, que<br />

revelaram a mim as suas histórias – as vividas e as contadas! E, embora<br />

saiba que existem muitos outros adolescentes enfrentando os mesmos<br />

desafios, para os três participantes foi possível falar de algo escondido,<br />

e que, a partir de agora, este estudo poderá servir para <strong>social</strong>izar o que<br />

era até então desconhecido.


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Contexto, 2007.<br />

MORIN, E. Meus Demônios. Rio de Janeiro: Bertrand, 1997.<br />

OS FILHOS DA AIDS: CONTANDO HISTÓRIAS DE VIDA<br />

187


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

188<br />

_______. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand, 2000a.<br />

_______. Terra-pátria. Porto Alegre: Sulina, 2002.<br />

_______. A cabeça bem-feita. Rio de Janeiro: Bertrand, 2000.<br />

PAIVA, V. Em tempos de AIDS. São Paulo: Summus, 1992.<br />

PARKER, R. G. A construção da solidariedade: AIDS, sexualidade e política<br />

no Brasil. Rio de Janeiro: UERJ, 1994.<br />

PAULINO, M.A.S. AIDS: Os Sentidos do Risco. São Paulo: Veras Editora, 1999.<br />

ROCHA, K.B.; MOREIRA, M.C.; OLIVEIRA, V.Z. Adolescência em pacientes<br />

portadores de fibrose cística. Aletheia, 20, p.27-36. Canoas: Ulbra, 2004.<br />

ROUDINESCO, E. A família em desordem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.<br />

SPRINZ, Eduardo. Rotinas em HIV e AIDS. Porto Alegre: Artes Médicas<br />

Sul, 1999.<br />

TEIXEIRA, P.R. Políticas Públicas em AIDS. Rio de Janeiro: Jorge Zahar<br />

Editor, 1997.


SOBRE AS AUTORAS<br />

Berenice Rojas Couto – Assistente Social. Doutora em <strong>Serviço</strong> Social.<br />

Coordenadora da Área de <strong>Serviço</strong> Social e Economia Doméstica da CAPES.<br />

Professora de <strong>graduação</strong> e de <strong>pós</strong>-<strong>graduação</strong> da FSS da PUCRS. E-mail:<br />

berenice.couto@<strong>pucrs</strong>.br.<br />

Cláucia Ivete Schwerz – Assistente Social/PUCRS. Mestra em <strong>Serviço</strong><br />

Social/PUCRS; Especialização em Saúde Mental Coletiva pelo Programa<br />

de Residência Integral em Saúde/ESP-RS. Assistente Social na Fundação de<br />

Articulação e Desenvolvimento de Políticas Públicas para Pessoas Portadoras<br />

de Deficiência e de Altas Habilidades no Rio Grande do Sul (FADERS).<br />

E-mail: gau_sol@hotmail.com.<br />

Kelinês Gomes – Assistente Social. Doutora em <strong>Serviço</strong> Social/PPGSS/<br />

PUCRS. Preceptora de Residência Multiprofissional em Saúde/ULBRA.<br />

Docente da ULBRA. E-mail: kelines@portoweb.com.br.<br />

Luciana Basile Silva – Assistente Social. Especialista pelo Programa de<br />

Residência Integrada em Saúde da Escola de Saúde Pública do Rio Grande<br />

do Sul. Mestra em <strong>Serviço</strong> Social pelo PPGSS/PUCRS. E-mail: lu.basile@<br />

hotmail.com.<br />

Maíra Giovenardi – Assistente Social. Especialista em Práticas Sociais<br />

Interdisciplinares. Especialista em Saúde Coletiva com ênfase em Saúde<br />

Mental/RIS/ESP. Mestra em <strong>Serviço</strong> Social pelo PPGSS/PUCRS. E-mail:<br />

mgiovenardi@hotmail.com.<br />

Maria Isabel Barros Bellini – Assistente Social. Especialista em Saúde<br />

Mental pela Residência em Saúde Mental/SES. Mestra e Doutora em <strong>Serviço</strong><br />

Social pelo PPGSS/PUCRS. Docente do Programa de Pós-Graduação em<br />

<strong>Serviço</strong> Social (PPGSS) da Faculdade de <strong>Serviço</strong> Social (FSS), da Pontifícia<br />

Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Coordenadora do<br />

Núcleo de Estudos e Pesquisa em Trabalho, Saúde e Intersetorialidade (NETSI/<br />

PUCRS). Pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e<br />

Tecnológico (CNPq). Membro da equipe da Assessoria Técnica de Planejamento/<br />

SES. E-mails: maria.bellini@<strong>pucrs</strong>.br, maria-bellini@saude.rs.gov.br.<br />

Marisa Camargo – Assistente Social. Especialista em Atenção Básica em<br />

Saúde Coletiva pelo Centro de Saúde-Escola Murialdo (CSEM) e Escola de<br />

Saúde Pública do Rio Grande do Sul (ESP/RS). Mestra e Doutoranda pelo<br />

Programa de Pós-Graduação em <strong>Serviço</strong> Social (PPGSS) da Faculdade de<br />

<strong>Serviço</strong> Social (FSS), da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande<br />

do Sul (PUCRS). Integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Trabalho,<br />

Saúde e Intersetorialidade (NETSI/PUCRS). Bolsista da Coordenação de


<strong>Serviço</strong> Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação<br />

190<br />

Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Apoiadora técnica<br />

em pesquisa do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Saúde e Trabalho da<br />

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (NEST/UFRGS). Professora do<br />

Curso de <strong>Serviço</strong> Social do Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais<br />

(DCJS) da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do<br />

Sul (UNIJUÍ). E-mail: marisa.camargo@unijui.edu.br.<br />

Simone da Fonseca Sanghi – Assistente Social. Especialista em Saúde<br />

Coletiva pela ESP/RS, Mestra em <strong>Serviço</strong> Social pela PUCRS (PPGSS/<br />

PUCRS, no ano de 2005), Docente do Curso de <strong>Serviço</strong> Social da ULBRA,<br />

campi Gravataí e Canoas. E-mail: sisanghi@yahoo.com.br.<br />

Tatiane Moreira de Vargas – Assistente Social, Preceptora e Ex-Residente<br />

da Residência Integrada em Saúde do Grupo Hospitalar Conceição, Ênfase<br />

em Saúde da Família e Comunidade, Doutoranda em <strong>Serviço</strong> Social (PPGSS/<br />

PUCRS). E-mail: vtatiane@ghc.com.br.<br />

Thaísa Teixeira Closs – Assistente Social da Prefeitura Municipal de Porto<br />

Alegre (PMPA), Docente na Faculdade de <strong>Serviço</strong> Social da Pontifícia<br />

Universidade Católica do Rio Grande do Sul (FSS/PUCRS). Especialista<br />

em Atenção Básica/Saúde Coletiva pelo Programa de Residência Integrada<br />

da Escola de Saúde Pública do RS (RIS-ESP/RS). Mestra e doutoranda em<br />

<strong>Serviço</strong> Social pela FSS/PUCRS. E-mails: thaisacloss@hotmail.com; thaisa.<br />

closs@<strong>pucrs</strong>.br.<br />

Vanessa Maria Panozzo – Assistente Social. Doutora em <strong>Serviço</strong> Social<br />

pela PUCRS. Professora de <strong>graduação</strong> e <strong>pós</strong>-graduacão do Curso de <strong>Serviço</strong><br />

Social, da ULBRA, campus Gravataí. Preceptora do Núcleo de <strong>Serviço</strong><br />

Social da Residência Integrada em Saúde Mental Coletiva da Faculdade de<br />

Educação da Universidade do Rio Grande do Sul – FACED/UFRGS. E-mail:<br />

vanessapanozzo@yahoo.com.br.

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