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Porque Tardaram a Aparecer as Geometrias Não Euclidianas - EACH

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Anais do IX Seminário Nacional de<br />

História da Matemática<br />

Sociedade Br<strong>as</strong>ileira de<br />

História da Matemática<br />

Por Que <strong>Tardaram</strong> a <strong>Aparecer</strong> <strong>as</strong> Geometri<strong>as</strong> <strong>Não</strong>-Euclidian<strong>as</strong>?<br />

Why Did the Non-Euclidean Geometries Take Too Long to Appear?<br />

Resumo<br />

Rafael Montoito 1<br />

Devido ao modo como o currículo escolar está organizado e, também, à percepção comum que se tem, desde criança, do mundo em que<br />

vivemos, os conceitos da Geometria Euclidiana acabam ficando fortemente arraigados em nossa compreensão. Quando falamos, então, em<br />

Geometri<strong>as</strong> <strong>Não</strong>-Euclidian<strong>as</strong>, percebemos que este é um <strong>as</strong>sunto que muitos alunos e professores de Matemática desconhecem. No entanto,<br />

com relativa facilidade, encontram-se b<strong>as</strong>tantes livros, artigos ou sites que explicam <strong>as</strong> característic<strong>as</strong> e demonstram os teorem<strong>as</strong> da<br />

Geometria Hiperbólica e da Geometria Elíptica (também chamad<strong>as</strong> de Geometri<strong>as</strong> <strong>Não</strong>-Euclidian<strong>as</strong> Clássic<strong>as</strong>). Devido a isto, este trabalho<br />

não trata d<strong>as</strong> estrutur<strong>as</strong> axiomátic<strong>as</strong> dest<strong>as</strong> Geometri<strong>as</strong>: o que nos propomos com este artigo é apresentar um possível caminho que explique<br />

por que <strong>as</strong> Geometri<strong>as</strong> <strong>Não</strong>-Euclidian<strong>as</strong> tardaram tanto tempo para aparecer na História da Matemática. A partir do quinto postulado de<br />

Euclides e da estranheza do seu enunciado, vários matemáticos tentaram, ao longo dos séculos, demonstrá-lo como se fosse um teorema –<br />

apesar de abandonad<strong>as</strong> muit<strong>as</strong> vezes, algum<strong>as</strong> dest<strong>as</strong> tentativ<strong>as</strong>, juntamente com divers<strong>as</strong> mudanç<strong>as</strong> filosófic<strong>as</strong> e sociais, podem ser<br />

considerad<strong>as</strong> pist<strong>as</strong> válid<strong>as</strong> que conduziram o homem ao conhecimento de outros espaços geométricos diferentes daquele sistematizado por<br />

Euclides. Nosso objetivo com este texto é trazer ao leitor a história d<strong>as</strong> idei<strong>as</strong> matemátic<strong>as</strong> para que, acompanhando-a, ele perceba como,<br />

quando e por que foi necessário se p<strong>as</strong>sar tantos anos até que a Geometria Euclidiana perdesse sua onipresença. Ao percorrermos tantos anos<br />

de História da Matemática, abordaremos, entre outros <strong>as</strong>suntos, os conceitos e aplicações distint<strong>as</strong> que eram atribuídos à Geometria na<br />

Antiguidade, <strong>as</strong> correntes filosófic<strong>as</strong> de Descartes, Hume e Kant e como el<strong>as</strong> influenciaram na percepção do espaço geométrico, e <strong>as</strong><br />

mudanç<strong>as</strong> significativ<strong>as</strong> ocorrid<strong>as</strong> nos Séculos XVIII e XIX. Por fim, desejamos demonstrar que, a partir do momento em que se admitiu,<br />

através da Geometria Hiperbólica e da Geometria Elíptica, a existência de novos espaços, o homem segue procurando outros espaços que<br />

sustentam nov<strong>as</strong> geometri<strong>as</strong>.<br />

Palavr<strong>as</strong>-chave: Geometri<strong>as</strong> <strong>Não</strong>-Euclidian<strong>as</strong>. Aspectos Históricos. Aspectos Filosóficos. Aspectos Epistemológicos.<br />

Abstract<br />

The concepts of Euclidean Geometry get deeply-rooted to our understanding due to the way the curriculum is organized <strong>as</strong> well <strong>as</strong> the<br />

common perception one h<strong>as</strong> of the world we live, since a child. Then when talking about Non-Euclidean Geometries it is possible to notice<br />

that this is a subject which many students and Mathematics teachers do not know. However, it is relatively e<strong>as</strong>y to find many books, articles<br />

or sites that explain the characteristics and show the theorems of Hyperbolic Geometry and Elliptic Geometry (so-called Cl<strong>as</strong>sical non-<br />

Euclidean Geometries). Because of it, this work does not treat of the axiomatic structures of these Geometries: what is proposed with this<br />

article is to present a possible way that explains why the Non-Euclidean Geometries took so much time to appear in the History of<br />

Mathematics. From the fifth Euclid‟s postulate and the strangeness of his proposition several mathematicians have tried, through the<br />

centuries, to show it <strong>as</strong> a theorem – despite having been abandoned many times, some of these attempts, together with several social and<br />

philosophical changes can be considered valid tips that led to man‟s knowledge other geometrical spaces different from the one systematized<br />

1 Professor do Instituto Federal Sul-Rio-Grandense de Pelot<strong>as</strong> (IFSUL/RS) e doutorando no Programa de Pós-<br />

Graduação em Educação para a Ciência na UNESP de Bauru (SP), sob orientação do Prof. Dr. Vicente Garnica.


Anais do IX Seminário Nacional de História da Matemática 2<br />

by Euclid. The objective of this text is to introduce to the reader the history of the mathematical ide<strong>as</strong>. Once he follows it, he can notice how,<br />

when and why it w<strong>as</strong> necessary to take so many years until the Euclidean Geometry could lose its omnipresence. Going through so many<br />

years of the History of Mathematics, subjects such <strong>as</strong> the concepts and distinct applications that were attributed to Geometry in ancient times,<br />

the philosophical chains of Descartes, Hume and Kant and how they influenced the perception of geometrical space, and the meaningful<br />

changes that occurred in the XVIII and XIX centuries, will be approached. Finally, it is presented from the moment it w<strong>as</strong> admitted the<br />

existence of new spaces through the Hyperbolic Geometry and Elliptic Geometry that man will continue to look for other spaces that support<br />

new Geometries.<br />

Key-words: Non-Euclidean Geometries. Historical Aspects. Philosophical Aspects. Epistemological Aspects.<br />

Dos primórdios da Geometria até sua sistematização em Os Elementos de Euclides<br />

O matemático, sabemos, vê o mundo segundo sua perspectiva. Talvez seja necessário<br />

a nós, que nos dedicamos à Educação Matemática, variar <strong>as</strong> perspectiv<strong>as</strong>. Entretanto, não<br />

seria sensato negligenciar pontos de vista tão arraigados e historicamente construídos. Assim,<br />

em outr<strong>as</strong> palavr<strong>as</strong>, no discurso matemático, a Geometria hoje „aparece‟ tanto no mundo „real‟<br />

quanto no imaginário, naquele que não podemos ver ou experenciar pelos sentidos: não há,<br />

segundo esse discurso, um mundo desprovido de leis geométric<strong>as</strong>. No entanto, nem sempre<br />

foi <strong>as</strong>sim. Até meados do século XIX, a Geometria estava intimamente ligada ao mundo<br />

visível e ao mundo que os gregos nos ensinaram a ver e a dominar.<br />

O primeiro a pensar numa ideia que se contrapunha à Geometria Euclidiana parece ter<br />

sido Aristóteles: segundo Mlodinow (2005), ele se deu conta, na época em que todos<br />

acreditavam que a Terra era plana, mais ou menos em 2.400 a.C., que, de um navio que se<br />

af<strong>as</strong>tava, primeiro sumia o c<strong>as</strong>co e depois, lentamente, os m<strong>as</strong>tros, o que seria a primeira<br />

evidencia observada de que a Terra era curva.<br />

Desde antes de Euclides, a Geometria já dividia opiniões. Platão dizia que a Geometria<br />

era o conhecimento daquilo que existia eternamente (BRITO, 1995), b<strong>as</strong>eado na sua crença de<br />

que <strong>as</strong> figur<strong>as</strong> reais existiam apen<strong>as</strong> no mundo d<strong>as</strong> idei<strong>as</strong>. Para ele, a realidade não estava n<strong>as</strong><br />

cois<strong>as</strong> sensíveis, e só podia ser atingida por uma atividade da alma isolada do corpo, de modo<br />

que tudo aquilo que noss<strong>as</strong> sensações nos revelam não são senão sombr<strong>as</strong> da verdade. A<br />

Geometria era, <strong>as</strong>sim, uma representação da verdade. Para o filósofo, a matemática era<br />

“concebida como um conhecimento importante não pelo seu valor prático, m<strong>as</strong> pela sua<br />

capacidade de despertar o pensamento do Homem” (MIORIM, 1998, 18). Para os egípcios,<br />

não era isso o que importava. A Geometria – e a Matemática em geral – apresentava-se como<br />

uma criação humana que os auxiliava a resolver coerentemente seus problem<strong>as</strong> cotidianos. A<br />

agrimensura e a necessidade de estocagem parecem ter sido o estopim para o estudo d<strong>as</strong><br />

figur<strong>as</strong> geométric<strong>as</strong> e su<strong>as</strong> propriedades (MLODINOW, 2005).


Anais do IX Seminário Nacional de História da Matemática 3<br />

A crença vigente naquela época era de que os deuses organizavam tudo o que existia e<br />

que os homens envolviam-se nesta cadeia para harmonizá-la ou retorcê-la. Somente por volta<br />

do século VI a.C. aparecem os primeiros indícios daquilo que hoje chamamos de „a ciência<br />

grega‟ n<strong>as</strong> cidades-estado que se desenvolveram na Jônia: Mileto, Quios, Samos, Aten<strong>as</strong> etc.<br />

M<strong>as</strong> foi particularmente em Mileto que a chamada escola jônica mudou o cenário vigente,<br />

uma vez que “buscava na natureza, por meio de um esquema racional, a explicação para a<br />

origem e o funcionamento do universo, dispensando a intervenção dos deuses” (BRITO,<br />

1995, 23), o que resultou na transformação da Geometria em conhecimento dedutivo. Ao<br />

tentar encontrar respost<strong>as</strong> racionais para <strong>as</strong> questões sobre a origem e a essência do mundo, os<br />

pensadores jônicos descobriram na Matemática uma fonte muito rica de conhecimento: não<br />

naquela Matemática essencialmente prática que eles haviam conhecido em su<strong>as</strong> viagens ao<br />

Egito e à Babilônia, m<strong>as</strong> em uma „nova Matemática‟, a qual, pensavam, os ajudaria a<br />

“encontrar a ordem no caos, a ordenar <strong>as</strong> idei<strong>as</strong> em sequênci<strong>as</strong> lógic<strong>as</strong>, a encontrar princípios<br />

fundamentais, ou seja, uma Matemática racional.” (STRUIK apud MIORIM, 1998, 14)<br />

Tales, o famoso matemático grego,<br />

(...) p<strong>as</strong>sou longos períodos de tempo no Egito. Os egípcios tinham a capacidade de construir<br />

<strong>as</strong> pirâmides, m<strong>as</strong> não tinham o discernimento necessário para medir a sua altura. Tales<br />

buscou explicações teóric<strong>as</strong> para os fatos descobertos empiricamente pelos egípcios. Com tal<br />

compreensão, Tales foi capaz de deduzir técnic<strong>as</strong> geométric<strong>as</strong>, uma da outra, e de roubar a<br />

solução de um problema a partir de um outro, pois tinha extraído o princípio abstrato da<br />

aplicação prática particular. (MLODINOW, 2005, 25)<br />

Tem-se, aí, o início do método dedutivo, o qual surge também como tendência anti-<br />

ilustrativa, uma vez que era hábito traçar modelos de resolução e armar cont<strong>as</strong> na areia, m<strong>as</strong><br />

“o traçado na areia continuou a ser, por séculos e séculos, o único resolutivo dos problem<strong>as</strong><br />

geométricos” (BRITO, 1995, 27), afinal, <strong>as</strong> mudanç<strong>as</strong> não são imediat<strong>as</strong>.<br />

De acordo com a concepção da antiga sociedade escravagista grega, <strong>as</strong> atividades<br />

prátic<strong>as</strong> deviam ser realizad<strong>as</strong> pelos escravos, pois não eram dign<strong>as</strong> dos homens livres, os<br />

quais deviam engajar-se somente na contemplação teórica – a única exceção era a arquitetura,<br />

elevava ao nível de uma profissão para cidadãos, talvez porque dependesse fundamentalmente<br />

da geometria. Essa arquitetura, por sua vez, corroborava a ideia de uma matemática imutável<br />

e eterna, pois aquilo que era edificado permanecia por séculos inalterado no tempo e no<br />

espaço.


Anais do IX Seminário Nacional de História da Matemática 4<br />

Foi o matemático grego Pitágor<strong>as</strong> quem fez com que a geometria se torn<strong>as</strong>se parte da<br />

educação dos homens livres. No entanto, foram os pitagóricos, seus alunos, que envolveram a<br />

matemática num manto de mistério e introduziram a concepção de que “os conceitos<br />

matemáticos são superiores aos demais” (MIORIM, 1998, 14-15). Também foram eles que,<br />

dando ênf<strong>as</strong>e à retórica e à oratória, importaram dos filósofos eleáticos do sul da Itália a<br />

demonstração indireta, conhecida hoje como demonstração por absurdo. “Foram Parmênides<br />

e os eleáticos que, claramente, fizeram da ausência de contradição o critério de verdade de<br />

uma afirmação.” (BRITO, 1995, 28)<br />

A filosofia grega também teve grande influência na concepção de matemática que se<br />

tinha naquela época: a busca de um método racional que orden<strong>as</strong>se de forma imutável o caos,<br />

e a crença de que “<strong>as</strong> verdades geométric<strong>as</strong> eram absolut<strong>as</strong> no sentido de independerem do<br />

tempo e do ser humano, além de fornecerem explicações racionais para o funcionamento do<br />

universo” (BRITO, 1995, 30) foram intensificad<strong>as</strong> quando os gregos da Antiguidade isolaram<br />

o ponto, a linha e o ângulo, tomando-os como elementos imutáveis que geravam os demais<br />

entes geométricos. Mudar a concepção de Geometria p<strong>as</strong>sou a ser algo b<strong>as</strong>tante difícil e, até a<br />

Idade Moderna, a Geometria compreendia a matemática em geral, a <strong>as</strong>tronomia, a óptica<br />

geométrica, a estática e a teoria musical, ou seja, a Geometria dava conta do universo<br />

conhecido, e por isso resistiria por muito tempo ainda às mudanç<strong>as</strong>: primeiro seria necessário<br />

separar <strong>as</strong> partes do todo.<br />

Por volta de 430 a.C. Hipócrates de Quios desenvolveu aquele que é tido como o<br />

primeiro sistema axiomático para a Geometria. Em seguida, no século IV a.C., tem-se notícia<br />

dos trabalhos de Leon e de Theudius de Magnésia. “Todos esses autores escreveram<br />

Elementos, título dado a todos os tratados de matemática gregos” (BRITO, 1995, 33).<br />

Somente depois de tudo isso é que nos deparamos com Euclides. “A história de Euclides é<br />

uma história de revolução. É a história do axioma, do teorema, da demonstração, a história do<br />

n<strong>as</strong>cimento da própria razão” (MLODINOW, 2205, 15). Isso pode servir para nos mostrar que<br />

nada ocorre „despregado‟ do fluxo do mundo. Há idei<strong>as</strong> criativ<strong>as</strong>, há sistematizações potentes,<br />

grandes criações, m<strong>as</strong> tudo isso surge por haver – de alguma forma – um caminho<br />

pavimentado anteriormente que nos permite ess<strong>as</strong> criações, ess<strong>as</strong> criatividades, ess<strong>as</strong><br />

sistematizações. Nunca nada é puramente a origem, é sempre continuidade.<br />

Uma d<strong>as</strong> pouc<strong>as</strong> cois<strong>as</strong> que se sabe sobre a vida de Euclides é que ele escreveu pelo<br />

menos dois livros: um deles, perdido, sobre cônic<strong>as</strong>, que posteriormente formou uma b<strong>as</strong>e<br />

importante para a obra de Apolônio que, por sua vez, fez progredir <strong>as</strong> ciênci<strong>as</strong> da navegação e


Anais do IX Seminário Nacional de História da Matemática 5<br />

a <strong>as</strong>tronomia, e Os elementos. Euclides é da f<strong>as</strong>e helenística ou alexandrina da cultura grega e<br />

viveu numa Alexandria que vivia seu apogeu e que criou um espaço – algo como o que hoje<br />

chamaríamos de museu – cujo objetivo era organizar todo o conhecimento científico<br />

existente. Ao trabalhar lá, Euclides escreveu Os Elementos. Vale ressaltar que ele não<br />

escreveu toda sua obra: qu<strong>as</strong>e toda ela é composta de compilações de trabalhos de outros<br />

autores. Devido ao fato de ter sido o livro dele o único que chegou aos nossos di<strong>as</strong>, não nos é<br />

possível compará-los a outros livros do mesmo tema, m<strong>as</strong> isso não diminui de forma alguma o<br />

valor desta sua „organização‟.<br />

Euclides não reivindicou ter sido original em relação a qualquer dos teorem<strong>as</strong>. Ele viu o seu<br />

papel como o de organizador e sistematizador da geometria conforme compreendida pelos<br />

gregos. Ele foi o arquiteto do primeiro relato abrangente sobre a natureza do espaço<br />

bidimensional através do raciocínio puro, sem nenhuma referência ao mundo físico.<br />

(MLODINOW, 2005, 19-40)<br />

Euclides, através do método dedutivo, oferece ao leitor os elementos que alicerçarão<br />

toda a construção do conhecimento matemático em axiom<strong>as</strong> 2 (suposições comuns a tod<strong>as</strong> <strong>as</strong><br />

ciênci<strong>as</strong>) e postulados (suposições particulares da ciência em estudo). “O objetivo de Euclides<br />

era que o seu sistema fosse livre de suposições não reconhecid<strong>as</strong> b<strong>as</strong>ead<strong>as</strong> na intuição, em<br />

conjectur<strong>as</strong> e na inexatidão” (MLODINOW, 2005, 43). Segundo a tradução de Bicudo (2009,<br />

99) para Os elementos de Euclides, os postulados aparecem organizados como se seguem:<br />

1. Fique postulado traçar uma reta a partir de todo ponto até todo ponto.<br />

2. Também prolongar uma reta limitada, continuamente, sobre uma reta.<br />

3. E, com todo centro e distância, descrever um círculo.<br />

4. E serem iguais entre si todos os ângulos retos.<br />

5. E, c<strong>as</strong>o uma reta, caindo sobre du<strong>as</strong> ret<strong>as</strong>, faça os ângulos interiores e do mesmo lado<br />

menores do que dois retos, sendo prolongad<strong>as</strong> <strong>as</strong> du<strong>as</strong> ret<strong>as</strong>, ilimitadamente,<br />

encontrarem-se no lado no qual estão os menores do que dois retos 3 .<br />

O quinto postulado de Euclides, chamado de o postulado d<strong>as</strong> paralel<strong>as</strong>, não parece tão óbvio<br />

ou intuitivo como os demais. É invenção do próprio Euclides, não é parte do grande corpo de<br />

conhecimento que ele estava resumindo. M<strong>as</strong>, aparentemente, ele não gostava desse<br />

postulado, pois parece que evitava usá-lo sempre que possível. Os matemáticos posteriores<br />

2 Atualmente não se faz mais distinção entre axiom<strong>as</strong> e postulados.<br />

3 Muitos anos depois, o quinto postulado de Euclides ganhou um novo e equivalente enunciado, dado por<br />

Playfair (1748 – 1819), ficando do modo que o conhecemos até hoje: por um ponto P, tomado fora de uma reta<br />

l, podemos traçar uma única reta h paralela a l.


Anais do IX Seminário Nacional de História da Matemática 6<br />

também não gostaram dele, sentindo que não era suficientemente simples para um postulado,<br />

e deveria ser demonstrável com um teorema (MLODINOW, 2005, 46).<br />

A representação gráfica do quinto postulado, tal como aparece abaixo, torna sua ideia<br />

imediatamente compreensível – m<strong>as</strong> ser compreensível não b<strong>as</strong>tava para que os matemáticos<br />

acredit<strong>as</strong>sem que ele era, de fato, um postulado.<br />

Figura 1 – Representação gráfica do quinto postulado<br />

Esta é a dúvida histórica que impulsionou uma d<strong>as</strong> maiores cruzad<strong>as</strong> da matemática: o<br />

„desvelar‟ 4 d<strong>as</strong> geometri<strong>as</strong> não-euclidian<strong>as</strong>. E esta dúvida é reforçada pelo fato de o próprio<br />

Euclides tê-lo utilizado, pela primeira vez, para demonstrar o teorema de número 29. Muitos<br />

acreditaram que ele tardou tanto a usá-lo por não ter certeza quanto à sua própria natureza.<br />

Há ainda outr<strong>as</strong> crenç<strong>as</strong> da sociedade grega que parecem ter influenciado no<br />

surgimento dest<strong>as</strong> dúvid<strong>as</strong>: o ideário grego de elegância e beleza:<br />

Uma teoria axiomática é tanto mais elegante quanto menor for o seu número de axiom<strong>as</strong> e<br />

estes devem ser escolhidos com a preocupação de que sejam consistentes, suficientes e<br />

independentes. Um conjunto de axiom<strong>as</strong> é consistente se não conduzir a teorem<strong>as</strong><br />

contraditórios, isto é, a um teorema e à sua negação (...). Os axiom<strong>as</strong> dizem-se independentes<br />

quando nenhum deles pode ser demonstrado a partir dos demais. Quando se verifica que um<br />

dos axiom<strong>as</strong> pode ser demonstrado a partir dos outros, tal axioma p<strong>as</strong>sa a ser um dos teorem<strong>as</strong><br />

da teoria e, com isto, o conjunto de axiom<strong>as</strong> torna-se menor, o que é sempre desejável.<br />

(CASTRO, 2009, 303)<br />

Deixar o sistema axiomático de Euclides ainda menor e mais belo foi o mote de<br />

muitos matemáticos que desconfiaram da sua exposição, ao longo de muitos anos.<br />

As tentativ<strong>as</strong> de demonstração do quinto postulado e <strong>as</strong> mudanç<strong>as</strong> filosófic<strong>as</strong><br />

É impossível citarmos todos os que se envolveram nesta cruzada, pois em um único<br />

livro, entitulado Saggio di uma bibliografia Euclidea, Parte IV, publicado em Bolonha em<br />

1890, podemos encontrar 24 págin<strong>as</strong> de títulos de textos publicados entre 1607 e 1890, que<br />

tentaram, em vão, demonstrar o quinto postulado. Dentre os mais conhecidos ou os que maior<br />

contribuição deram para o estudo d<strong>as</strong> Geometri<strong>as</strong> <strong>Não</strong>-Euclidian<strong>as</strong> podemos citar Ptolomeu<br />

4 Optamos pelo termo „desvelar‟ para deixar claro nossa crença de que <strong>as</strong> Geometri<strong>as</strong> <strong>Não</strong>-Euclidian<strong>as</strong> sempre<br />

existiram, m<strong>as</strong> não eram percebid<strong>as</strong>, o que se contrapõe à idéia de criação ou invenção d<strong>as</strong> Geometri<strong>as</strong> <strong>Não</strong>-<br />

Euclidian<strong>as</strong>.


Anais do IX Seminário Nacional de História da Matemática 7<br />

(séc I d.C.), Proclus (410 – 485), N<strong>as</strong>ir Eddin Al Tusi (1201 – 1274), John Wallis (1616 –<br />

1703), Girolamo Saccheri (1667 – 1733), Johanna Heinrich Lambert (1728 – 1777), Adrien-<br />

Marie Legendre (1752 – 1833), Wolfang Fark<strong>as</strong> Bolyai e János Bolyai (1802 – 1860), Johann<br />

Carl Friedrich Gauss (1777 – 1855), Nicolai Lobatchevsky (1792 – 1856). Olhemos, agora,<br />

em pormenores alguns destes matemáticos e os resultados curiosos que foram descobrindo.<br />

Por muitos séculos, matemáticos tentaram provar o quinto postulado de Euclides,<br />

utilizando-se da redução ao absurdo. Eles não chegaram a contradições, apesar de muit<strong>as</strong><br />

vezes crerem que sim, o que acabou “retardando em muitos séculos o aparecimento d<strong>as</strong><br />

Geometri<strong>as</strong> <strong>Não</strong>-Euclidian<strong>as</strong>. O que estes geômetr<strong>as</strong> supunham ser contradições, na verdade<br />

eram resultados válidos ness<strong>as</strong> nov<strong>as</strong> geometri<strong>as</strong>” (COUTINHO, 2004, 27), m<strong>as</strong>, como el<strong>as</strong><br />

ainda não eram conhecid<strong>as</strong>, os esforços foram abandonados porque pareciam levar a<br />

compreensões irreais, improváveis e incorret<strong>as</strong>.<br />

O primeiro registro importante que temos é sobre o quadrilátero de um padre jesuíta,<br />

n<strong>as</strong>cido em San Remo, o qual leva o seu nome: Quadrilátero de Saccheri. Ele tentou<br />

demonstrar o quinto postulado utilizando quadriláteros que tivessem dois ângulos retos e dois<br />

lados congruentes, de modo que os outros dois ângulos poderiam ser retos, obtusos ou<br />

agudos.<br />

Figura 2 – Quadrilátero de Saccheri<br />

Fonte: TERDMAN – A geometria hiperbólica e sua consistência<br />

Parece-nos absurdo supor que os dois outros ângulos de um quadrilátero possam não<br />

ser retos 5 , m<strong>as</strong> querendo demonstrar o primeiro c<strong>as</strong>o (e, então, o postulado d<strong>as</strong> paralel<strong>as</strong>), que<br />

é o c<strong>as</strong>o da Geometria Euclidiana, Saccheri tentou demonstrar que os outros dois c<strong>as</strong>os (dos<br />

ângulos obtusos e agudos) levavam a contradições, ou seja, utilizou-se de demonstrações por<br />

absurdo. No entanto, só conseguiu resultados para o segundo c<strong>as</strong>o. “Saccheri parece ter<br />

perdido a paciência e, preferindo não acreditar no que via, decidiu refutar à força a hipótese<br />

do ângulo agudo” (GARBI, 2009, 335). Mesmo sem conseguir uma contradição para o<br />

terceiro c<strong>as</strong>o, ele conseguiu “deduzir vários resultados estranhos, m<strong>as</strong> não uma contradição<br />

(...). Embora não o reconhecesse, Saccheri descobriu a Geometria <strong>Não</strong>-Euclidiana”<br />

(TERDIMAN, 1989, 34).<br />

5 Uma demonstração acerca de os demais ângulos do quadrilátero de Saccheri serem congruentes e agudos pode<br />

ser encontrada em „Convite às geometri<strong>as</strong> não-euclidian<strong>as</strong>‟, de Lázaro Coutinho, na página 54.


Anais do IX Seminário Nacional de História da Matemática 8<br />

peculiar.<br />

Lambert tentou demonstrar o quinto postulado com um quadrilátero ainda mais<br />

Figura 3 – Quadrilátero de Lambert<br />

Fonte: TERDMAN – A geometria hiperbólica e sua consistência<br />

Com um quadrilátero que se supunha ter apen<strong>as</strong> 3 ângulos retos, o matemático<br />

deduziu muit<strong>as</strong> proposições para o c<strong>as</strong>o de o quarto ângulo ser agudo 6 e mostrou que a<br />

hipótese do ângulo agudo implicava a área do triângulo ser proporcional a su<strong>as</strong><br />

„deficiênci<strong>as</strong>‟ 7 . A partir disso, especulou que esta hipótese correspondia à Geometria sobre<br />

uma esfera de raio imaginário.<br />

Apesar de estes quadriláteros terem sido importantíssimos no processo de „desvelar‟<br />

<strong>as</strong> Geometri<strong>as</strong> <strong>Não</strong>-Euclidian<strong>as</strong>, eles foram deixados de lado por muitos anos, pois continham<br />

um quê de absurdo em sua construção. Para os que viviam naquela época, era difícil – e<br />

também desnecessário, pois a humanidade ainda não pensava em dominar o macro e o micro<br />

espaços com su<strong>as</strong> viagens para fora do planeta e para dentro do corpo humano – admitir a<br />

existência de outros espaços. “Mesmo que o nosso universo não seja euclidiano no seu todo,<br />

localmente, isto é, na nossa vizinhança imediata, comporta-se como um universo euclidiano”<br />

(COUTINHO, 2004, 27) e, por isso, até onde a visão abarcava e tudo aquilo que se precisava<br />

resolver geometricamente era totalmente satisfeito pelos resultados da Geometria Euclidiana.<br />

Para que fosse possível começar a pensar em algo diferente daquilo que os olhos<br />

humanos percebiam, foi necessário primeiro pensar em outr<strong>as</strong> correntes filosófic<strong>as</strong> e p<strong>as</strong>sar<br />

por divers<strong>as</strong> mudanç<strong>as</strong> sociais – a matemática não é somente trabalho do pensamento,<br />

realizado por um indivíduo só que se mantém longe d<strong>as</strong> idei<strong>as</strong> e dos acontecimentos que<br />

circulam pelo mundo, ela é um esforço humano, cujo desenvolvimento é influenciado por<br />

sonhos, desejos, intuições, contatos com outr<strong>as</strong> pesso<strong>as</strong> etc. M<strong>as</strong> até então a intuição não era<br />

tida como uma boa aliada da ciência, e o universo que se considerava existir era apen<strong>as</strong> aquele<br />

que se podia ver.<br />

6 Uma demonstração acerca de o quarto ângulos do quadrilátero de Lambert ser agudo pode ser encontrada em<br />

„Convite às geometri<strong>as</strong> não-euclidian<strong>as</strong>‟, de Lázaro Coutinho, na página 56.<br />

7 Segundo Terdiman (2009, 36), se o triângulo ABC é um triângulo qualquer, então 180º menos a soma dos<br />

ângulos internos do triângulo ABC é um número maior ou igual a zero. Esse número é chamado „deficiência‟ do<br />

triângulo e tem um papel muito importante na Geometria Hiperbólica. Um triângulo tem deficiência 0 (zero) se a<br />

soma d<strong>as</strong> medid<strong>as</strong> dos ângulos internos é 180º.


Anais do IX Seminário Nacional de História da Matemática 9<br />

As correntes filosófic<strong>as</strong> de maior influência no século XVII eram o Racionalismo de<br />

Descartes e o Empirismo de Bacon, e amb<strong>as</strong> se opunham às idei<strong>as</strong> que vigoravam durante o<br />

Feudalismo. “O conhecimento, na Europa, durante a Idade Média, era entendido como o<br />

caminho de reconciliação do homem com o mundo; na Idade Moderna, o conhecimento é<br />

visto como um meio de dominar a natureza, extraindo dela a riqueza material” (BRITO, 1995,<br />

73). Neste cenário, a filosofia de Descartes difundiu-se prioritariamente na França, enquanto a<br />

de Bacon difundia-se na Inglaterra.<br />

Sucintamente, o racionalismo acreditava na possibilidade de se alcançar a verdade<br />

através do pensamento, numa sistematização organizada na qual quaisquer conclusões<br />

estariam (ou deveriam estar) emb<strong>as</strong>ad<strong>as</strong> n<strong>as</strong> afirmações anteriores a el<strong>as</strong>. Para uma corrente<br />

filosófica que defendia a ordem do universo e pregava a indubitável existência de Deus,<br />

pensar a existência de quadriláteros como os de Saccheri e Lambert era algo sem sentido.<br />

Tudo aquilo que não fosse organizado, harmônico e imutável era produto d<strong>as</strong> fals<strong>as</strong> sensações<br />

gerad<strong>as</strong> pelos sentidos humanos e, portanto, deveria ser descartado. Deus havia criado tod<strong>as</strong><br />

<strong>as</strong> cois<strong>as</strong> e, portanto, o homem não podia contrapor-se a Ele e inventar novos espaços. As<br />

propriedades dedutiv<strong>as</strong> e organizad<strong>as</strong> da Geometria Euclidiana tinham no racionalismo um<br />

trunfo que <strong>as</strong> defendia e legitimava.<br />

Com relação ao empirismo, o conhecimento surgia d<strong>as</strong> experiênci<strong>as</strong> sensíveis e da<br />

indução, de modo que, empiricamente, se acreditava chegar à verdade d<strong>as</strong> cois<strong>as</strong> não pelo<br />

raciocínio, m<strong>as</strong> pela generalização do que era observável. Se, por exemplo, considerarmos<br />

que todos os retângulos vistos na natureza possuíam os quatro ângulos retos, é-nos possível<br />

compreender que os empirist<strong>as</strong> generalizariam este resultado para qualquer retângulo que<br />

pudesse ser encontrado ou concebido no mundo. Havia o universo fora do homem que o<br />

observava: novamente a Geometria Euclidiana ganha apoio da filosofia e sustenta-se na<br />

compreensão de mundo que era <strong>as</strong>similada na época.<br />

Isto começa a mudar com o Criticismo de Kant, segundo o qual a síntese<br />

(conhecimento) é realizada a partir de noss<strong>as</strong> estrutur<strong>as</strong> da razão e da sensibilidade (em<br />

termos simplificados, é possível dizer que o conhecimento se dava por um pouco de<br />

observação e um pouco de raciocínio). Pela primeira vez na história da filosofia, o sujeito<br />

p<strong>as</strong>sa a ser a fonte do conhecimento e admite-se que não há conhecimento sem ou fora dele.<br />

No Criticismo não se atinge a verdade, m<strong>as</strong> se conhece apen<strong>as</strong> o que se manifesta ao sujeito<br />

cognoscente (o que é chamado de fenômeno) e, ainda que <strong>as</strong> verdades matemátic<strong>as</strong> continuem<br />

sendo universais, garantid<strong>as</strong> pelo apriorismo, el<strong>as</strong> não se referem mais às cois<strong>as</strong> em si e só


Anais do IX Seminário Nacional de História da Matemática<br />

10<br />

existem porque existe o sujeito. Além disso, a imaginação e a intuição p<strong>as</strong>sam a ser<br />

valorizad<strong>as</strong> e o estatuto epistemológico do conhecimento matemático é separado da<br />

metafísica.<br />

Kant entrou para a história d<strong>as</strong> Geometri<strong>as</strong> <strong>Não</strong>-Euclidian<strong>as</strong> de um modo tão polêmico<br />

quanto el<strong>as</strong> própri<strong>as</strong>: por um lado, em seu livro Crítica da razão pura, publicado em 1781, o<br />

filósofo, percebendo que os geômetr<strong>as</strong> daquele tempo apelavam para o senso comum e para<br />

representações gráfic<strong>as</strong> n<strong>as</strong> su<strong>as</strong> demonstrações, acreditou que a intuição deveria substituir o<br />

rigor e declarou que o espaço euclidiano é uma “necessidade inevitável do pensamento”<br />

(KANT apud MLODINOW, 2005, 123). “Kant foi um euclidiano convicto” (COUTINHO,<br />

2004, 228) que, por outro lado, ao valorizar o papel da intuição, abriu <strong>as</strong> port<strong>as</strong> para que o<br />

próprio espaço que defendia fosse subjugado a ela. De um modo paradoxal, então, a filosofia<br />

de Kant permitiu que os matemáticos neg<strong>as</strong>sem algo em que o próprio filósofo acreditava.<br />

<strong>Não</strong> obstante o prestígio de Kant, abandonou-se a ideia de que se poderia provar o quinto<br />

postulado, privilegiando-se a intuição e a „criação‟ de novos espaços (COUTINHO, 2004).<br />

Paralelo a tudo isso havia a escola alemã e, nela, <strong>as</strong> idei<strong>as</strong> de Leibniz e Tetens<br />

defenderiam não existir universo fora da imaginação humana, e que toda a atividade poética,<br />

ou seja, criadora, inclusive a ciência, não poderia ser explicada como simples acúmulo de<br />

impressões: a imaginação estabelece um papel fundamental no ato de conhecer. O universo<br />

agora podia ser pensado (e até mesmo inventado) coerentemente. Começava-se, pelo menos, a<br />

admitir esta possibilidade.<br />

Conforme sabemos, a matemática não sofre influência somente d<strong>as</strong> form<strong>as</strong> como o<br />

pensamento se articula, m<strong>as</strong> também da sociedade em que se desenvolve. Mudanç<strong>as</strong> na<br />

sociedade podem (ainda que isso não seja determinante) influenciar mudanç<strong>as</strong> conceituais:<br />

entre o final do século XVIII e o início do século XIX, houve uma quantidade de eventos que<br />

modificaram <strong>as</strong> concepções vigentes sobre o homem, a sociedade e a ciência:<br />

O desenvolvimento do Capitalismo e os ideais da Revolução Francesa fizeram surgir, por um<br />

lado, um número cada vez maior de jovens intelectuais com o desejo de reconhecimento<br />

social e de estabilidade econômica que não queriam, no entanto, entrar para o clero; e de<br />

outro, um número de governantes desejosos em mostrarem-se ilustrados, para os quais a<br />

principal função da educação superior era a formação de funcionários públicos – advogados,<br />

mestres e médicos. A junção desses dois níveis de desejo impulsionou a educação técnica e<br />

científica, levando à criação da Escola Politécnica em 1795 e da Escola Normal Superior em<br />

1794, amb<strong>as</strong> na França, e a fundação ou a reformulação de vári<strong>as</strong> universidades, sobretudo na


Anais do IX Seminário Nacional de História da Matemática<br />

11<br />

Alemanha. O modelo de Escola Politécnica foi reproduzido em Praga, Viena, Estocolmo, São<br />

Petersburgo, Copenhagen, em toda a Alemanha e Bélgica. Os matemáticos do século XIX não<br />

se encontravam mais n<strong>as</strong> cortes reais ou nos salões da aristocracia. A sua principal ocupação<br />

não consistia mais em ser membro de uma academia culta; eram frequentemente empregados<br />

por universidades e escol<strong>as</strong> técnic<strong>as</strong> e eram professores, <strong>as</strong>sim como investigadores. A<br />

institucionalização, a partir do século XIX, da profissão de matemático n<strong>as</strong> universidades<br />

possibilitou a pesquisa dos fundamentos da matemática emancipando-a dos problem<strong>as</strong><br />

colocados pela realidade empírica. (BRITO, 1995, 82)<br />

A partir daí, o reinado da Geometria Euclidiana começa a esfacelar-se – m<strong>as</strong> não se<br />

quebra em sua validade, posto que a Geometria Euclidiana não ficou nem ultrap<strong>as</strong>sada, nem<br />

inútil, m<strong>as</strong> na sua onipresença. Finalmente, devido a tod<strong>as</strong> est<strong>as</strong> mudanç<strong>as</strong> históric<strong>as</strong>,<br />

filosófic<strong>as</strong> e epistemológic<strong>as</strong>, o homem percebe outros espaços geométricos.<br />

As Geometri<strong>as</strong> <strong>Não</strong>-Euclidian<strong>as</strong> e outros modos de se ver o mundo<br />

A Geometria Hiperbólica, publicada por János Bolyai em 1832, e a Geometria<br />

Elíptica, publicada por Georg Bernhard Riemann em 1851, são conhecid<strong>as</strong> como „Geometri<strong>as</strong><br />

<strong>Não</strong>-Euclidian<strong>as</strong> Clássic<strong>as</strong>‟. A primeira nega o quinto postulado de Euclides com relação à<br />

unicidade da reta paralela (ela afirma que, dada uma reta qualquer e um ponto fora dela, é<br />

possível determinarmos mais de uma reta paralela a ela p<strong>as</strong>sando por este ponto) e a segunda<br />

nega-o em relação à existência da reta paralela (ela afirma que, dada uma reta qualquer e um<br />

ponto fora dela, não é possível determinarmos nenhuma reta paralela a ela p<strong>as</strong>sando por este<br />

ponto). Se no início causaram enorme estranheza, est<strong>as</strong> teori<strong>as</strong> Geometri<strong>as</strong> são, hoje,<br />

indiscutíveis realidades matemátic<strong>as</strong>.<br />

Depois de tant<strong>as</strong> descobert<strong>as</strong> que foram modificando os conceitos da Geometria e o<br />

modo como o homem a percebe e se relaciona com ela, atualmente podemos dizer que,<br />

segundo a perspectiva da matemática, “<strong>as</strong> verdades da Geometria governam tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> cois<strong>as</strong><br />

que for possível intuir espacialmente, sejam reais ou produtos da nossa imaginação” (FREGE<br />

apud BRITO, 1995, 19).<br />

Cremos ser importante este „resgate‟ histórico não somente para compreendermos<br />

como surgiram <strong>as</strong> Geometri<strong>as</strong> <strong>Não</strong>-Euclidian<strong>as</strong>, m<strong>as</strong> para ressaltar que a Matemática é uma<br />

ciência que continua viva, e que pode ainda acrescentar nov<strong>as</strong> surpres<strong>as</strong> à sua própria<br />

História. Nos últimos anos, depois de Bolyai e Riemann, outr<strong>as</strong> Geometri<strong>as</strong> têm surgido,<br />

como a Geometria Projetiva, a Topologia, a Geometria do Taxista e a Geometria Fractal.<br />

Somente o tempo dirá que outr<strong>as</strong> nov<strong>as</strong> Geometri<strong>as</strong> ainda vamos conhecer.


Anais do IX Seminário Nacional de História da Matemática<br />

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Referênci<strong>as</strong><br />

BRITO, Arlete de Jesus. Geometri<strong>as</strong> não-euclidian<strong>as</strong>: um estudo histórico-pedagógico.<br />

Dissertação de Mestrado. Campin<strong>as</strong>: Universidade Estadual de Campin<strong>as</strong>, 1995.<br />

CASTRO, Karina A. de. A geometria hiperbólica como um exemplo d<strong>as</strong> geometri<strong>as</strong> não<br />

euclidian<strong>as</strong>. Disponível em:<br />

http://www.facef.br/novo/3fem/Inic%20Cientifica/Arquivos/Karina.pdf. Acesso em: 18 nov.<br />

2009.<br />

COUTINHO, Lázaro. Matemática e mistério em Baker Street. Rio de Janeiro: Editora Ciência<br />

Moderna, 2004.<br />

EUCLIDES. Os elementos. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 2009.<br />

GARBI, Gilberto Gerando. A rainha d<strong>as</strong> ciênci<strong>as</strong>. São Paulo: Editora Livraria da Física,<br />

2009.<br />

MIORIM, Maria Ângela. Introdução à história da educação matemática. São Paulo: Atual,<br />

1998.<br />

MLODINOW, Leonard. A janela de Euclides. São Paulo: Geração Editorial, 2005.<br />

TERDIMAN, Esther Wajskop. A geometria hiperbólica e sua consistência. Dissertação de<br />

Mestrado. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1989.

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