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A ressurreição de uma cidade - Fonoteca Municipal de Lisboa

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Sexta-feira<br />

16 Abril 2010<br />

www.ipsilon.pt<br />

“Berlim Alexan<strong>de</strong>rplatz”, <strong>de</strong> Alfred Döblin, em nova edição<br />

A <strong>ressurreição</strong> <strong>de</strong> <strong>uma</strong> cida<strong>de</strong><br />

David Byrne Elia Suleiman CaribouAlexandre EstrelaSonic Youth Irene Pimentel<br />

JOHN MACDOUGALL/ AFP ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO Nº 7316 DO PÚBLICO, E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE


Flash<br />

Sumário<br />

Alfred Döblin 10<br />

Berlim, Alexan<strong>de</strong>rplatz, a via<br />

dolorosa <strong>de</strong> <strong>uma</strong> capital<br />

David Byrne 14<br />

Fez um disco com Imelda<br />

Marcos e um livro a andar <strong>de</strong><br />

bicicleta<br />

Car<strong>de</strong>al Cerejeira 18<br />

Para além da caricatura,<br />

na nova biografi a <strong>de</strong> Irene<br />

Flunser Pimentel<br />

Caribou 24<br />

Mergulham num disco<br />

aquático, “Swim”<br />

Fumiyo Ikeda 30<br />

Constrói, com Tim Etchells,<br />

a memória do seu próprio<br />

corpo<br />

Luís Miguel Cintra 32<br />

Unha com carne com Gil<br />

Vicente, em “Miserere”<br />

Elia Suleiman 34<br />

Quer que sejamos todos<br />

palestinianos<br />

Ficha Técnica<br />

Directora Bárbara Reis<br />

Editor Vasco Câmara, Inês Nadais<br />

(adjunta)<br />

Conselho editorial Isabel<br />

Coutinho, Óscar Faria, Cristina<br />

Fernan<strong>de</strong>s, Vítor Belanciano<br />

Design Mark Porter, Simon<br />

Esterson, Kuchar Swara<br />

Directora <strong>de</strong> arte Sónia Matos<br />

Designers Ana Carvalho, Carla a<br />

Noronha, Mariana Soares<br />

Editor <strong>de</strong> fotografi a Miguel<br />

Ma<strong>de</strong>ira<br />

E-mail: ipsilon@publico.pt<br />

As fotografi as que Kubrick fez na Nazaré, acompanhando como repórter da “Look”<br />

um casal norte-americano em viagem pela Europa, constituem um dos núcleos da exposição<br />

que hoje se inaugura no Palazzo <strong>de</strong>lla Ragione<br />

Stanley antes <strong>de</strong> d ser KKubrick b i k<br />

n<strong>uma</strong> gran<strong>de</strong> exposição em Milão ão<br />

Tinha 17 anos, ainda não fazia<br />

filmes, mas já fotografava<br />

(<strong>de</strong>s<strong>de</strong> os 13, com <strong>uma</strong> Leica<br />

oferecida pelo pai em dia <strong>de</strong><br />

aniversário), e nisso estava “à<br />

altura <strong>de</strong> Cartier-Bresson,<br />

Walker Evans, Robert Frank,<br />

Diane Arbus ou William<br />

Eggleston”. Antes <strong>de</strong> ser<br />

Kubrick, portanto antes do<br />

cinema, Stanley teve <strong>uma</strong><br />

primeira vida na fotografia – e<br />

essa primeira vida vai ser<br />

reconstituída a partir <strong>de</strong> hoje<br />

e até 4 <strong>de</strong> Julho em Milão, no<br />

Palazzo <strong>de</strong>lla Ragione.<br />

“Stanley Kubrick Fotografo<br />

1945-1950” reúne pela<br />

primeira vez um conjunto <strong>de</strong><br />

300 imagens publicadas pelo<br />

jovem repórter ao serviço da<br />

revista “Look” – é só a ponta<br />

do icebergue, diz o comissário<br />

Rainer Crone –, alg<strong>uma</strong>s das<br />

quais em (extra! extra!)<br />

Portugal, on<strong>de</strong> Kubrick<br />

passou <strong>uma</strong> temporada<br />

acompanhando a viagem <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>scompressão <strong>de</strong> um casal<br />

americano no pós-guerra,<br />

com escala na Nazaré.<br />

Além <strong>de</strong> Portugal, há<br />

Montgomery Clift, Rocky<br />

Graziano e Betsy Furstenberg<br />

nos cinco anos <strong>de</strong> Kubrick na<br />

“Look”, mais o dixieland <strong>de</strong><br />

Nova Orleães, os miúdos <strong>de</strong><br />

rua <strong>de</strong> Nova Iorque, os órfãos<br />

<strong>de</strong> guerra do Illinois e a elite<br />

americana (porque isto era<br />

a América em ressaca,<br />

sim, mas também era a<br />

América que tinha<br />

vindo para a<br />

Europa e para o<br />

Pacífico salvar<br />

o mundo)<br />

no<br />

Blur<br />

lançam<br />

novo single no<br />

“Record Store Day”<br />

Os Blur juntaram-se em 2009 para<br />

um Verão <strong>de</strong> concertos. Graham<br />

Coxon voltou a ser o melhor amigo<br />

<strong>de</strong> Damon Albarn, todos ficaram<br />

emocionados com as centenas <strong>de</strong><br />

milhares a cantar o refrão do<br />

“Ten<strong>de</strong>r” em Glastonbury e até saiu<br />

um DVD, “No distance left to run”,<br />

para pa p ra documentar a história toda,<br />

Afi nal a história dos Blur ainda não acabou: vai<br />

haver canção nova (mas é <strong>uma</strong> excepção, dizem eles)<br />

campus da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Columbia. Kubrick (Nova<br />

Iorque, 1928-Harpen<strong>de</strong>n,<br />

1999), que publicou a sua<br />

primeira fotografia a 26 <strong>de</strong><br />

Junho <strong>de</strong> 1945 – o retrato do<br />

dono <strong>de</strong> um quiosque a ler,<br />

<strong>de</strong>vastado, a notícia da morte<br />

<strong>de</strong> Franlin D. Roosevelt -, foi o<br />

mais jovem fotógrafo <strong>de</strong><br />

sempre contratado pela<br />

“Look”. O “modus operandi<br />

da revista” foi <strong>uma</strong> escola para<br />

ele: a “Look” contava histórias<br />

por episódios e exigia dos seus<br />

repórteres um<br />

acompanhamento obsessivo, e<br />

o mais naturalista possível,<br />

dos protagonistas das<br />

reportagens. Para esse efeito,<br />

Kubrick actuava quase sempre<br />

“un<strong>de</strong>rcover”, encobrindo a<br />

câmara <strong>de</strong>baixo do casaco e<br />

disparando através <strong>de</strong> um<br />

minúsculo interruptor<br />

escondido na mão.<br />

Além <strong>de</strong> documentarem <strong>uma</strong><br />

era, diz o comissário da<br />

exposição, estas imagens<br />

“espantam pela sua<br />

surpreen<strong>de</strong>nte<br />

profundida<strong>de</strong>”, antecipando o<br />

modo engenhoso como<br />

Kubrick tiraria<br />

partido<br />

da febre britpop ao reencontro<br />

momentos antes. Apesar dos sinais<br />

<strong>de</strong> futuro, a banda foi peremptória:<br />

a história acabava mesmo ali.<br />

Sabemos Sabe agora que não é bem<br />

assim. assim Juntando-se às<br />

comemorações com<br />

do “Record Store<br />

Day”, Day celebração das lojas <strong>de</strong> discos<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes in<strong>de</strong> e da sua relevância<br />

na construção da<br />

cultura pop que será<br />

assinalada<br />

dos recursos técnicos à sua<br />

disposição para representar e<br />

interpretar a realida<strong>de</strong>. Foi <strong>de</strong><br />

resto com o seu salário <strong>de</strong><br />

repórter fotográfico que<br />

Kubrick pagou os seus cursos<br />

na escola <strong>de</strong> cinema – quando<br />

terminou o quarto, <strong>de</strong>spediuse<br />

da “Look” para ir fazer<br />

filmes. Só na década <strong>de</strong> 50<br />

terminou cinco: “Fear and<br />

Desire” (1953), “Killer’s Kiss”<br />

(1955), “Um Roubo no<br />

Hipódromo” (1956),<br />

“Horizontes <strong>de</strong> Glória” (1957)<br />

e “Spartacus” (1959).<br />

Mesmo sendo já <strong>uma</strong> amostra<br />

impressionante da produção<br />

fotográfica do cineasta, “as<br />

imagens publicadas pela Look<br />

constituem apenas <strong>uma</strong><br />

mínima parte dos cerca <strong>de</strong><br />

dois mil negativos arquivados<br />

[na Biblioteca do Congresso,<br />

em Washington, e no Museu<br />

da Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nova Iorque]”,<br />

sublinha o comissário. Crone<br />

visitou Kubrick um ano antes<br />

da sua morte, em 1998, e<br />

pediu-lhe autorização para o<br />

ressuscitar como fotógrafo:<br />

“Confesso que esperava que<br />

ele me dissesse: “À vonta<strong>de</strong>,<br />

entra: tenho negativos, provas<br />

fotográficas, todo o meu<br />

arquivo<br />

mundialmente amanhã, os Blur<br />

editarão o seu primeiro single<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2003, ano em que lançaram<br />

o último álbum, “Think Tank”.<br />

“Queremos que as lojas <strong>de</strong> discos<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes continuem – são<br />

<strong>uma</strong> parte importante da nossa<br />

cultura musical”, <strong>de</strong>clarou Damon<br />

Albarn. “É <strong>uma</strong> forma simples <strong>de</strong><br />

os Blur mostrarem o seu apoio e<br />

esperamos que as pessoas<br />

apreciem [o single].”<br />

bem guardadinho no sótão’.<br />

Mas não foi assim. Ficou muito<br />

contente com a minha<br />

intenção <strong>de</strong> resgatar essa<br />

parte da sua produção, mas<br />

não fazia a mais remota i<strong>de</strong>ia<br />

do local on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>ria<br />

encontrar-se o material, não<br />

tinha <strong>uma</strong> única impressão<br />

original e não era sequer<br />

proprietário dos direitos dos<br />

negativos”, contou ao “El<br />

País”. Precisou <strong>de</strong> 12 anos para<br />

perceber que a “Look” tinha<br />

oferecido em 1952 gran<strong>de</strong><br />

parte do arquivo Kubrick ao<br />

Museu da Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nova<br />

Iorque. Des<strong>de</strong> esse ano, nunca<br />

mais tinham sido vistos. É<br />

todo um Stanley a caminho <strong>de</strong><br />

ser Kubrick: “As fotos dos<br />

negros <strong>de</strong> Chicago, que não<br />

conseguem fazer chegar o<br />

dinheiro até ao fim do mês<br />

mas fazem ostentação<br />

comendo nos melhores<br />

restaurantes, têm por trás o<br />

mesmo olhar ambíguo e<br />

<strong>de</strong>senfadado <strong>de</strong> ‘Laranja<br />

Mecânica’ e ‘Barry<br />

Lindon’”. Inês<br />

Nadais<br />

Perante os rumores <strong>de</strong> que este<br />

seria um primeiro passo para um<br />

regresso mais prolongado a estúdio<br />

e, possivelmente, para um novo<br />

álbum, fontes próximas da banda<br />

acentuaram à imprensa britânica a<br />

improbabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tal cenário –<br />

este será nada mais do que um<br />

momento excepcional, assinalando<br />

<strong>uma</strong> data cara aos Blur.<br />

O single conhecerá edição em vinil,<br />

<strong>de</strong> mil exemplares, sendo<br />

Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 3


Flash<br />

Parceria<br />

distribuído nas lojas associadas ao<br />

Record Store Day. Para além dos<br />

Blur, comemoram a data com<br />

edições bandas como Pet Shop<br />

Boys, Hot Chip ou Babyshambles e<br />

artistas solo como Lily Allen ou Bat<br />

For Lashes.<br />

Hollywood aposta<br />

no “remake” <strong>de</strong><br />

fracassos<br />

Godzilla po<strong>de</strong> voltar a atacar<br />

brevemente, num cinema<br />

perto <strong>de</strong> si<br />

A última estratégia da indústria<br />

cinematográfica americana passa<br />

por voltar a fazer filmes que foram<br />

flops <strong>de</strong> bilheteira, na esperança <strong>de</strong><br />

os tornar bem-sucedidos. Po<strong>de</strong><br />

parecer arriscado, mas não é <strong>uma</strong><br />

i<strong>de</strong>ia nova. Citando um exemplo<br />

recente, o tão aclamado<br />

“Gladiador” (2000), <strong>de</strong> Ridley<br />

Scott, é <strong>uma</strong> reedição do pouco<br />

conhecido “The Fall of the Roman<br />

Empire” (1964). “Godzilla” já está<br />

na fila <strong>de</strong> candidatos: a segunda<br />

versão da saga, filmada em 1998,<br />

não obteve o retorno <strong>de</strong>sejado, mas<br />

o monstro po<strong>de</strong>rá voltar ao gran<strong>de</strong><br />

ecrã para redobrar as suas<br />

investidas.<br />

Leo Barraclough, um<br />

correspon<strong>de</strong>nte inglês da<br />

“Variety”, explicou ao<br />

“In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt” as motivações<br />

<strong>de</strong>ste fenómeno: “As gran<strong>de</strong>s<br />

quantias <strong>de</strong> dinheiro envolvido<br />

fazem com que o risco que os<br />

filmes <strong>de</strong> Hollywood correm seja<br />

muito elevado. Não po<strong>de</strong>m arriscar<br />

tanto como o cinema<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte”. Desta forma, “os<br />

4 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />

Os Arca<strong>de</strong> Fire estão a colaborar<br />

outra vez com o realizador Spike<br />

Jonze, agora n<strong>uma</strong> curta-metragem. m.<br />

Ainda por baptizar, o pequeno fi lme, e,<br />

para o qual têm sido recrutados<br />

actores adolescentes, está a ser<br />

preparado em segredo em Austin,<br />

no Texas. A parceria não é inédita:<br />

no ano passado, a banda canadiana a<br />

regravou a canção “Wake Up”, a<br />

canção que abria o primeiro álbum, m,<br />

“Funeral”, para o trailer do último<br />

fi lme <strong>de</strong> Jonze, “O Sítio das Coisas<br />

Selvagens”.<br />

estúdios tentam trabalhar<br />

com material que já seja<br />

conhecido”, sendo que<br />

a chave po<strong>de</strong>rá passar<br />

por “estabelecer<br />

contacto com as<br />

vivências do<br />

público”.<br />

Da lista <strong>de</strong> espera<br />

constam filmes<br />

como “The<br />

Shadow” (1994),<br />

que até contou<br />

com Alec<br />

Baldwin no<br />

papel <strong>de</strong><br />

protagonista e<br />

cuja reedição<br />

<strong>de</strong>verá ser feita<br />

pelo produtor<br />

da trilogia<br />

“Homem-<br />

Aranha”, Sam<br />

Raimi. Para<br />

inverter o<br />

insucesso <strong>de</strong> “Red<br />

Sonja” (1985), a<br />

solução escolhida<br />

passa pela atribuição<br />

do papel principal a<br />

Megan Fox. A<br />

reformulação <strong>de</strong> “The<br />

Black Hole” (1979), a<br />

resposta infrutífera da<br />

Disney à saga “Star Wars”,<br />

vai passar pela mão do director<br />

Joseph Kosinski.<br />

Peter Hook recorda<br />

Ian Curtis<br />

A 18 <strong>de</strong> Maio cumpre-se o 30º<br />

aniversário da morte <strong>de</strong> Ian Curtis,<br />

o lí<strong>de</strong>r dos Joy Division. Para<br />

marcar a data, Peter Hook, o<br />

baixista da banda cuja carreira<br />

terminou após o vocalista se ter<br />

suicidado, está a organizar um<br />

concerto-tributo no qual serão<br />

tocados todos os temas <strong>de</strong><br />

“Unknown Pleasures”, o segundo e<br />

último álbum da banda <strong>de</strong><br />

Manchester.<br />

O evento terá lugar nas instalações<br />

originais da Factory Records, a<br />

editora in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do<br />

malogrado Tony Wilson que<br />

Há <strong>uma</strong> petição para dar o nome <strong>de</strong> Ian Curtis<br />

à Epping Walk Bridge, o local on<strong>de</strong> Kevin Cummins<br />

fez a imagem mais emblemática dos Joy Division<br />

Cornelius<br />

Car<strong>de</strong>w<br />

imperdível<br />

no Porto<br />

Uma exposição e um programa<br />

paralelo excepcional:<br />

“Cornelius Car<strong>de</strong>w e a<br />

Liberda<strong>de</strong> da Escuta” chega à<br />

Culturgest-Porto, a 8 <strong>de</strong> Maio,<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter passado por<br />

Brétigny, França, e Estugarda,<br />

Alemanha. A iniciativa,<br />

comissariada por um quarteto<br />

formado por Dean Inkster, Jean-<br />

Jacques Palix, Lore Gablier e<br />

Pierre Bal-Blanc, dá conta do<br />

percurso e do legado <strong>de</strong> um dos<br />

nomes fundamentais da música<br />

produzida na segunda meta<strong>de</strong><br />

do século XX. No final dos anos<br />

1950, Car<strong>de</strong>w (1936–1981) foi<br />

responsável pela divulgação<br />

junto do público inglês <strong>de</strong><br />

diversos compositores ligados à<br />

vanguarda norte-americana,<br />

como John Cage, Morton<br />

Feldman, La Monte Young e<br />

Christian Wolff. Nessa época,<br />

escreveu porventura aquelas<br />

que são as suas obras mais<br />

ajudou<br />

ao<br />

<strong>de</strong>spontar dos<br />

Joy Division, assim<br />

como <strong>de</strong> outras bandas da<br />

cida<strong>de</strong>, dos Happy Mondays aos A<br />

Certain Ratio. Ainda não é<br />

conhecido o formato do concerto,<br />

que tanto po<strong>de</strong>rá passar por <strong>uma</strong><br />

interpretação exclusivamente<br />

instrumental ou pela presença <strong>de</strong><br />

vocalistas convidados. Não está<br />

posta <strong>de</strong> lado a hipótese <strong>de</strong> Peter<br />

Hook convidar Andy Rourke (The<br />

Smiths) e Mani (The Stone Roses),<br />

com os quais tem <strong>de</strong>senvolvido um<br />

supergrupo <strong>de</strong> baixistas que<br />

integraram o movimento<br />

Madchester.<br />

O concerto <strong>de</strong> 18 <strong>de</strong> Maio não é a<br />

única homenagem ao autor <strong>de</strong><br />

canções como “Love will tear us<br />

apart” ou “Atmosphere”. Peter<br />

Hook tem participado, um pouco<br />

por toda a Inglaterra, no programa<br />

“Evening of Unknown Pleasures”,<br />

noites <strong>de</strong> <strong>de</strong>bate e exibição <strong>de</strong><br />

filmes sobre o músico. A <strong>de</strong>correr<br />

neste momento está também <strong>uma</strong><br />

campanha para dar o nome <strong>de</strong> Ian<br />

Curtis à Epping Walk Bridge, ponte<br />

que se tornou conhecida por ser o<br />

local on<strong>de</strong> Kevin Cummins tirou a<br />

fotografia mais emblemática dos<br />

Joy Division. A petição será<br />

entregue na câmara municipal <strong>de</strong><br />

Manchester.<br />

Na Culturgest, <strong>uma</strong><br />

exposição e um<br />

programa <strong>de</strong> concertos<br />

que inclui, entre outros,<br />

Christian Wolff , Keith<br />

Rowe e Terre Thaemlitz:<br />

é “Cornelius Crew e a<br />

Liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Escuta”<br />

conhecidas: “Treatise” (1963- títulos como “Smash the social<br />

67) e “The Great Learning” contract” e publicando ainda,<br />

(1968-71), <strong>uma</strong> obra<br />

em 1974, o livro “Stockhausen<br />

experimental inspirada em serve o imperialismo.” Estes e<br />

versões <strong>de</strong> textos <strong>de</strong> Confúcio outros aspectos da vida e obra<br />

elaboradas por Ezra Pound. Em <strong>de</strong> Car<strong>de</strong>w – que morreu<br />

1966, Car<strong>de</strong>w juntou-se aos atropelado em circunstâncias<br />

AMM, grupo <strong>de</strong> improvisação ainda não totalmente claras,<br />

livre, que, entre os fundadores, segundo o seu biógrafo e amigo,<br />

conta com o guitarrista Keith o pianista John Tilbury – serão<br />

Rowe e o percussionista e revisitados, até 25 <strong>de</strong> Junho,<br />

baterista Eddie Prévost. Dois n<strong>uma</strong> sucessão impressionante<br />

anos <strong>de</strong>pois, o compositor <strong>de</strong> concertos, conferências e<br />

inglês criou ainda, com Howard performances, que incluem,<br />

Skempton e Michael Parsons, a entre outros, os nomes <strong>de</strong><br />

Scratch Orchestra. Car<strong>de</strong>w Christian Wolff, Tania Chen,<br />

voltou-se então para um Keith Rowe, Marcus<br />

projecto político <strong>de</strong> cariz Schmickler, Piotr Kurek,<br />

marxista-maoísta, em que a Rhys Chatam, Nina Canal,<br />

música participava do objectivo John Tilbury e Terre<br />

<strong>de</strong> libertação do povo,<br />

Thaemlitz.<br />

inspirando-se, para o efeito, na<br />

tradição popular inglesa e<br />

criando temas que ostentavam<br />

Imperdível.<br />

consequências: Scorsese e<br />

Von Trier po<strong>de</strong>rão vir a fazer,<br />

Quando Von Trier<br />

encontra Scorsese...<br />

juntos, <strong>uma</strong> série semi-documental,<br />

no género <strong>de</strong> “The Five<br />

Obstructions” (que abriu o Curtas<br />

Vila do Con<strong>de</strong> em 2004), filme que<br />

Aconteceu no último Festival <strong>de</strong> Jørgen Leth realizou segundo um<br />

Berlim: Martin n Scorsese, 67 anos,<br />

“receituário” do autor <strong>de</strong><br />

apresentava “Shutter Shutter Island”;<br />

“Dogville”. Mas, até<br />

que essa<br />

Lars von Trier, r, 53 anos,<br />

série seja concretizada,<br />

concreti<br />

tratava <strong>de</strong> assegurar egurar futuro<br />

sabe-se sabe-se que Scors Scorsese tem<br />

comercial para ra o filme que<br />

um u<strong>uma</strong> a agenda rech recheada. O<br />

irá rodar já a partir <strong>de</strong> Junho<br />

seu próximo film filme começa<br />

na Suécia, “Melancholia” elancholia” (<strong>de</strong><br />

a ser rodado já em e Maio,<br />

novo com Charlotte arlotte<br />

terá como título<br />

“The<br />

Gainsbourg, a protagonista <strong>de</strong><br />

Invention of Hug Hugo Cabret”,<br />

“Anti-Cristo”, num papel<br />

e será <strong>uma</strong> expe experiência<br />

inicialmente escrito para<br />

nova na ca carreira <strong>de</strong><br />

Penélope Cruz). z). Diz o<br />

Marty:<br />

<strong>uma</strong><br />

jornal “El País” s” que<br />

aventura aven<br />

o realizador<br />

<strong>de</strong>stinada <strong>de</strong> d ao<br />

dinamarquês se<br />

<strong>de</strong>slocou<br />

também a<br />

Berlim para<br />

conhecer<br />

Von Trier po<strong>de</strong>rá “dirigir”<br />

Marty tal como dirigiu<br />

o veterano Jørgen Leth em<br />

“The Five Obstructions”<br />

público pú mais<br />

jovem jo e/ou<br />

à criança<br />

que q<br />

permanece p<br />

pessoalmente e<br />

em cada um<br />

Scorsese, que<br />

<strong>de</strong> nós.<br />

admira<br />

“Silence” “Sil e<br />

incondicional-<br />

“The “Th<br />

mente há muito. ito.<br />

Irishman” Irishm são<br />

O encontro<br />

outros títulos em<br />

aconteceu, e talvez haja<br />

fila <strong>de</strong> espera. e


AGENDA CULTURAL FNAC<br />

entrada livre<br />

LANÇAMENTO<br />

O PRAZER DA LEITURA<br />

Por ocasião do Dia Mundial do Livro, a Fnac apresenta <strong>uma</strong> nova edição <strong>de</strong> O Prazer da Leitura com contos<br />

inéditos <strong>de</strong> Gonçalo M. Tavares, João Tordo, Maria do Rosário Pedreira, Miguel Real e Patrícia Portela,<br />

ilustrados por António Jorge Gonçalves.<br />

23.04. 17H00 FNAC CHIADO<br />

23.04. 18H00 FNAC STA. CATARINA<br />

23.04. 18H30 FNAC COLOMBO<br />

LANÇAMENTO<br />

ESCREVER, ESCREVER, VIVER<br />

Documentário sobre António Lobo Antunes<br />

A entrega do prémio <strong>de</strong> literatura da Feira Internacional do Livro em Guadalajara, México, é o ponto <strong>de</strong><br />

partida para <strong>uma</strong> passagem em revista da vida e obra do escritor. Apresentação por Pedro Borges, com<br />

a presença <strong>de</strong> Solveig Nordlund, Maria da Pieda<strong>de</strong> Ferreira e António Lobo Antunes.<br />

23.04. 19H00 FNAC CHIADO<br />

APRESENTAÇÃO<br />

CONVERSA COM OS MÃO MORTA<br />

Pesa<strong>de</strong>lo em Peluche<br />

A celebrar 25 anos <strong>de</strong> carreira, os Mão Morta editam o seu novo álbum <strong>de</strong> originais e vêm à Fnac para<br />

<strong>uma</strong> conversa com o público.<br />

19.04. 18H30 FNAC CHIADO<br />

19.04. 21H30 FNAC COLOMBO<br />

AO VIVO<br />

OS GOLPES<br />

Cruz Vermelha Sobre Fundo Branco<br />

Os Golpes são <strong>uma</strong> banda <strong>de</strong> rock português e vêm à Fnac apresentar o seu primeiro disco.<br />

21.04. 21H30 FNAC COLOMBO<br />

EXPOSIÇÃO<br />

UMA FOTO DE CADA VEZ<br />

Fotografias <strong>de</strong> Gonçalo Cadilhe<br />

Gonçalo Cadilhe fotografa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que iniciou a sua carreira <strong>de</strong> viajante, há quase vinte anos, mas sempre<br />

canalizou a sua energia para a produção literária. No entanto, a pequena selecção <strong>de</strong> fotografias aqui<br />

reunida não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> piscar o olho à sua produção literária.<br />

17.04. - 12.05.2010 FNAC COLOMBO<br />

Consulte a agenda cultural Fnac em<br />

Apoio:<br />

23.04. 22H00 FNAC BRAGA PARQUE<br />

24.04. 17H00 FNAC NORTESHOPPING<br />

APRESENTAÇÃO AO VIVO LANÇAMENTO EXPOSIÇÃO


ROBERT MICHAEL/ AFP<br />

Franz Biberkopf per<strong>de</strong>u<br />

o coração em Berlim, a Gran<strong>de</strong><br />

Puta. E o leitor, ainda tem o seu<br />

intacto? “Berlim Alexan<strong>de</strong>rplatz”,<br />

o romance <strong>de</strong> Alfred Döblin, agora<br />

reeditado em nova tradução, é a história<br />

<strong>de</strong> <strong>uma</strong> cida<strong>de</strong> à volta <strong>de</strong> um homem, ou<br />

<strong>de</strong> um homem nas entranhas <strong>de</strong> <strong>uma</strong> cida<strong>de</strong>.<br />

O <strong>de</strong>semprego dispara, a bolsa afunda, a extremadireita<br />

marcha. Tchingtárátá bumtárátá bum.<br />

Prà guerra vamos. Alexandra Lucas Coelho<br />

A via dolorosa <strong>de</strong><br />

6 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon


e Berlim<br />

Capa<br />

Alfred Döblin<br />

(aqui<br />

retratado pelo<br />

seu contem<br />

porâneo<br />

Ernst Ludwig<br />

Kirchner)<br />

é o fi lho <strong>de</strong><br />

um mercador<br />

ju<strong>de</strong>u, do qual<br />

herda o nariz<br />

em gancho<br />

1. O fim é só o princípio<br />

Vamos contar já o fim, mas não fujam,<br />

leitores, porque o fim é só o princípio:<br />

“Berlim Alexan<strong>de</strong>rplatz” relata o que<br />

se passou em Berlim com “um tal<br />

Franz Biberkopf” que sai da prisão,<br />

quer ser “um homem <strong>de</strong>cente” e “acaba<br />

por ser liquidado”. Logo à primeira<br />

<strong>de</strong> 591 páginas, tomai e comei, este<br />

será o corpo <strong>de</strong>le.<br />

Sabemos assim, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo, que se<br />

vai dar cabo <strong>de</strong> um homem. Mas isso<br />

é o que sempre sabemos que a vida<br />

faz, a questão é como. E é para isso<br />

que o livro cá está, neste ano <strong>de</strong> 1928:<br />

construir, construir, como o metropolitano<br />

na Alexan<strong>de</strong>rplatz, a que os<br />

berlinenses chamam Alex, como Berlim,<br />

toda ela, corpo em ebulição até<br />

às tripas.<br />

Pois não falou o autor num “estilo<br />

cinematográfico”, em que o narrador<br />

<strong>de</strong>ve construir mais do que narrar?<br />

Construir como um <strong>de</strong>us bipolar:<br />

construir a <strong>de</strong>struição.<br />

Então, aqui ten<strong>de</strong>s Franz Biberkopf,<br />

à letra algo como Chico Cabeça <strong>de</strong><br />

Castor, que foi “trabalhador dos cimentos<br />

e mais tar<strong>de</strong> do transporte <strong>de</strong><br />

mobílias, um homem ru<strong>de</strong>, gran<strong>de</strong> e<br />

disforme, <strong>de</strong> aspecto repugnante”,<br />

“quase cem quilos” <strong>de</strong> peso, “forte<br />

como <strong>uma</strong> jibóia”.<br />

Não é mau tipo, mas em fúria não<br />

vê nada. Matou a garina à pancada,<br />

quatro anos <strong>de</strong> choldra, e agora quer<br />

isso, ser <strong>de</strong>cente. E portanto mete-se<br />

num eléctrico, e a vida na terra vai<br />

começar, carris, asfalto, “prédios horríveis,<br />

as pessoas como formigas, os<br />

telhados vacilantes”.<br />

Berlim é gran<strong>de</strong>, “on<strong>de</strong> vivem mil,<br />

vive mais um”, on<strong>de</strong> era a natureza é<br />

agora a cida<strong>de</strong>, vum, vum,<br />

vummmmmmmmm, neste ano da<br />

graça <strong>de</strong> 1928. A Alemanha levou <strong>uma</strong><br />

coça na guerra, e pagou com terra,<br />

para apren<strong>de</strong>r. A esquerda julga que<br />

o inimigo está à esquerda, e entretanto<br />

a extrema-direita marcha, o <strong>de</strong>semprego<br />

dispara, a bolsa afunda.<br />

A bolsa ou a vida, o que é que julgam?,<br />

é difícil, a vidinha, sobretudo<br />

quando somos uns cabeças <strong>de</strong> castor<br />

vindos do nada. Qual Kafka, Musil,<br />

Mann, qual “bildungsroman” burguês,<br />

salões, castelos, sanatórios!<br />

Franz é o gajo que agora ven<strong>de</strong> jornais<br />

na Alex para ganhar uns tustos para<br />

o bagaço. E que jornais? O “Völkischer<br />

Beobachter” dos nacionais-socialistas,<br />

os cruz-suásticos. Não que Franz<br />

tenha algo contra os ju<strong>de</strong>us, “mas é<br />

pela or<strong>de</strong>m”, ou seja, não sabe nem<br />

quer saber.<br />

Venham o metro, o matadouro, o<br />

trânsito, o futuro, Berlim! Ardinas,<br />

taberneiros, operários, anarquistas,<br />

chuis, chulos, vadios, morfinómanos,<br />

travestis, mulheres que se matam <strong>de</strong>ixando<br />

filhos, mulheres que se matam<br />

BURSTEIN COLLECTION/ CORBIS<br />

“Não há outros<br />

romances <strong>de</strong>ste tipo.<br />

Kafka, Hesse, Mann,<br />

são outro universo,<br />

não têm nada<br />

a ver com esta<br />

mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. ‘Berlim<br />

Alexan<strong>de</strong>rplatz’<br />

é um livro solitário<br />

na sua época”<br />

João Barrento<br />

pelos filhos. “As pessoas fazem o que<br />

po<strong>de</strong>m. Têm crianças em casa, bocas<br />

esfomeadas, bicos <strong>de</strong> passarinho,<br />

clap, abre, clap, fecha, clap, abre,<br />

clap, fecha, abre, fecha, abre, fecha,<br />

abre, fecha.”<br />

Berlim, essa puta, a Gran<strong>de</strong> Puta<br />

da Babilónia, à espera que se faça sangue.<br />

2. Alfred Döblin (1878-1957)<br />

E que sabe disso o autor? Pois, muito.<br />

Tanto que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muita fantasia,<br />

<strong>de</strong> escrever sobre a China do século<br />

XVIII e sobre a Índia, olha à sua volta<br />

e o futuro está mesmo ali, proletário<br />

e ruidoso: o Leste <strong>de</strong> Berlim, Alexan<strong>de</strong>rplatz.<br />

Filho <strong>de</strong> um mercador ju<strong>de</strong>u, Alfred<br />

Döblin vive nessa Berlim <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

os <strong>de</strong>z anos. Foi lá que estudou Medicina,<br />

e <strong>de</strong>pois trabalhou como médico<br />

e psiquiatra, lendo a cida<strong>de</strong> em<br />

cada homem, sucos e ácidos, química<br />

e orgânica.<br />

Quantos Franz Biberkopf vindos do<br />

nada? Quantos Reinhold com <strong>uma</strong><br />

bigorna no peito, prontos a esmagar<br />

Biberkopfs? Quantas Miezes, anjos<br />

azuis pálidos <strong>de</strong> mais, dispostas a tudo<br />

pelo seu homem?<br />

E Döblin vai à guerra como médico,<br />

sem nunca <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> escrever, e mantém-se<br />

socialista quando a social-<strong>de</strong>mocracia<br />

alemã entra em crise, entre<br />

as guerras, nesse tempo que ficou conhecido<br />

como República <strong>de</strong> Weimar.<br />

É o tempo <strong>de</strong> “Berlim Alexan<strong>de</strong>rplatz”,<br />

publicado em 1929, tem Döblin<br />

51 anos.<br />

Hitler já mexe e em 1933 chega ao<br />

po<strong>de</strong>r. “Berlim Alexan<strong>de</strong>rplatz” é então<br />

queimado como “literatura <strong>de</strong><br />

asfalto” e “arte <strong>de</strong>generada”. Döblin<br />

exila-se em França on<strong>de</strong> escreve sobre<br />

o massacre das civilizações précolombianas.<br />

Quando os nazis chegam<br />

a França, escapa até <strong>Lisboa</strong>, que<br />

à chegada lhe parece o paraíso: “E<br />

Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 7


assim me vi encaminhado para o<br />

escaldante Portugal, um mundo rico<br />

em cor, meridional, pacífico. Des<strong>de</strong><br />

logo dissemos: Portugal é um país<br />

maravilhoso.” Uma miragem que dá<br />

a muitos, como regista Irene Pimentel<br />

no livro “Ju<strong>de</strong>us em Portugal Durante<br />

a II Guerra Mundial”, mas não tira<br />

luci<strong>de</strong>z nem humor a Döblin. Sim, o<br />

paraíso, mas, olhando melhor, roto:<br />

“Com o carro em movimento, garotos<br />

da rua saltam-lhe para cima. Pés <strong>de</strong>scalços,<br />

calças e casacos esfarrapados,<br />

ardinas. N<strong>uma</strong> das colinas po<strong>de</strong> ver-se<br />

a original estátua a um <strong>de</strong>sses rapazes.<br />

E merecem um monumento —<br />

talvez um dia lhes pu<strong>de</strong>ssem comprar<br />

também casaco e calças.” Já as varinas,<br />

andam <strong>de</strong>scalças, num odor a<br />

peixe, entre ven<strong>de</strong>dores ambulantes<br />

<strong>de</strong> frutas e legumes. Entretanto, po<strong>de</strong><br />

comprar-se tanto o “France-Soir”, a<br />

favor <strong>de</strong> Vichy, como o “France”,<br />

apoiante <strong>de</strong> De Gaulle.<br />

Mas quando arranja barco, lá vai<br />

Döblin, para Hollywood, para a MGM.<br />

E é no ano seguinte, 1941, que este<br />

filho <strong>de</strong> ju<strong>de</strong>u com o seu nariz em<br />

gancho se converte ao catolicismo.<br />

Além dos mitos mesopotâmicos e<br />

gregos,“Berlim Alexan<strong>de</strong>rplatz” está<br />

cheio <strong>de</strong> Velho Testamento, do Génesis,<br />

do Eclesiastes, dos Profetas, do<br />

Livro <strong>de</strong> Job. Mas não será já Franz<br />

mais do que o carneiro <strong>de</strong> Abraão,<br />

<strong>uma</strong> antecipação <strong>de</strong> Cristo?<br />

Certo é que terminada a II Guerra,<br />

Döblin continua a ser um homem da<br />

Europa. Volta, tenta viver em Ba<strong>de</strong>n-<br />

Ba<strong>de</strong>n e escreve. Desiste da Alemanha,<br />

vai para França e continua a<br />

escrever. Publica <strong>uma</strong> trilogia sobre<br />

o fracasso da revolução alemã <strong>de</strong>pois<br />

da I Guerra. Em 1956 adoece com Parkinson.<br />

No ano seguinte morre.<br />

3. O romance-cida<strong>de</strong><br />

Quando Döblin publicou “Berlim Alexan<strong>de</strong>rplatz”,<br />

já James Joyce tinha<br />

publicado a sua Dublin (“Ulisses”,<br />

1922) e John dos Passos tinha publicado<br />

a sua Nova Iorque (“Manhattan<br />

Transfer”, 1925).<br />

Mestres, influências, sobretudo<br />

Joyce? Döblin respon<strong>de</strong>u sempre que<br />

nem conhecia Joyce quando escreveu<br />

o primeiro quarto do livro. Depois<br />

conheceu e foi um sopro para as suas<br />

velas. Mas: “Não preciso <strong>de</strong> imitar<br />

seja quem for. A língua viva que me<br />

envolve basta-me, e o meu passado<br />

fornece-me todo o material imaginável.”<br />

O seu caldo artístico era o das vanguardas<br />

alemãs, o da montagem no<br />

cinema, o do expressionismo. E o seu<br />

temperamento era o <strong>de</strong> um insatisfeito,<br />

sempre à procura do mo<strong>de</strong>rno,<br />

aquilo que <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> o ser no momento<br />

em que é.<br />

Nesse fim dos anos 20, Döblin olha<br />

em volta e vê Berlim a fazer-se. Som,<br />

imagens, movimento, plano geral,<br />

plano <strong>de</strong> pormenor, cruzamento, justaposição.<br />

E tudo isto será matéria para a sua<br />

mesa <strong>de</strong> montagem: “travellings” e<br />

onomatopeias, <strong>de</strong>scrições médicas e<br />

8 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />

intimações legais, percursos <strong>de</strong> eléctricos<br />

e secções <strong>de</strong> firmas, listas científicas<br />

e símbolos municipais, agra<strong>de</strong>cimentos<br />

fúnebres e cartas <strong>de</strong> suicídio,<br />

canções patrióticas e fórmulas<br />

matemáticas, evocações da tragédia<br />

grega e slogans publicitários, autópsias<br />

<strong>de</strong> matadouro e volume <strong>de</strong> vendas,<br />

notícias do mundo e relatos <strong>de</strong><br />

<strong>uma</strong> digestão, faits-divers e elenco<br />

annual dos mortos — e ainda vos vou<br />

dar o estado do tempo, diz o narrador<br />

na primeira pessoa, atirando-nos para<br />

trás com aquele murro brechtiano.<br />

O que é que pensam, que estão<br />

<strong>de</strong>ntro da historieta, pá?<br />

“O princípio estilístico <strong>de</strong>ste livro<br />

é a montagem”, escreveu Walter Benjamin.<br />

“O princípio da montagem faz<br />

explodir a forma e o estilo do romance,<br />

e abre novas e épicas possibilida<strong>de</strong>.<br />

O material da montagem não é<br />

arbitrário. A montagem verda<strong>de</strong>ira<br />

baseia-se no documento. Na sua batalha<br />

fanática contra o trabalho artístico,<br />

o dadaísmo fez uso <strong>de</strong>la para se<br />

aliar à vida diária. Pela primeira vez,<br />

embora <strong>de</strong> forma experimental, proclamou<br />

a soberania do autêntico. Nos<br />

seus melhores momentos, o cinema<br />

preparou-nos para isso.”<br />

É a concepção do romance como<br />

nova forma <strong>de</strong> épico. Döblin queria<br />

construir Berlim não como Zola ou<br />

Flaubert teriam feito, mas <strong>de</strong>ixando<br />

para trás o século XIX.<br />

A propósito <strong>de</strong> Flaubert, Benjamin<br />

disse que “Berlim Alexan<strong>de</strong>rplatz”<br />

era a educação sentimental do pequeno<br />

patife: “A mais extrema, entontecedora,<br />

última e mais avançada encarnação<br />

do velho romance <strong>de</strong> formação<br />

burguês”.<br />

Tão entontecedora que on<strong>de</strong>-éque-eles-andam,<br />

os cultos, enigmáticos<br />

heróis da gran<strong>de</strong> literatura <strong>de</strong><br />

língua alemã.<br />

“Não há outros romances <strong>de</strong>ste tipo”,<br />

diz o germanista João Barrento.<br />

“Kafka, Herman Hesse, Thomas<br />

Mann, são outro universo, não têm<br />

nada a ver com esta mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.<br />

‘Berlim Alexan<strong>de</strong>rplatz’ é um livro<br />

solitário na sua época. Só <strong>de</strong>pois da<br />

II Guerra haverá alguns romances<br />

com este sopro épico. O Musil dá um<br />

apontamento <strong>de</strong>ste tipo sobre Viena<br />

logo no início <strong>de</strong> ‘Um Homem Sem<br />

Qualida<strong>de</strong>s’, mas a Viena <strong>de</strong> Musil é<br />

a <strong>de</strong> antes da I Guerra.”<br />

É ainda o século XIX.<br />

“Na I Guerra, Döblin era um expressionista.<br />

É com este livro que<br />

muda, e o livro aparece porque Berlim<br />

nos anos 20 se transforma <strong>de</strong> aglomerado<br />

<strong>de</strong> al<strong>de</strong>ias n<strong>uma</strong> gran<strong>de</strong> metrópole.<br />

Há ali um lado convulsivo<br />

que está na arte, na literatura, na história.<br />

E o que Döblin faz é transferir<br />

para Biberkopf, como um filtro, os<br />

reflexos <strong>de</strong> Berlim. É a gran<strong>de</strong> explosão<br />

da metáfora com um forte traço<br />

<strong>de</strong> inspiração americana que ele não<br />

renegava, ao contrário <strong>de</strong> outros. Döblin<br />

aceita essa experiência, a realida<strong>de</strong><br />

das novas cida<strong>de</strong>s. Mas sem ver<br />

nisso, ao contrário dos futuristas, a<br />

A fome<br />

epidémica<br />

dos anos 30,<br />

pouco antes<br />

da subida<br />

ao po<strong>de</strong>r do<br />

nacionalsocialismo,<br />

e<br />

Hitler, fi gura<br />

maior do que<br />

todo o século<br />

XX alemão<br />

(e, ainda hoje,<br />

o fantasma<br />

resi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong><br />

Berlim)<br />

máquina do fascismo.”<br />

Pelo contrário, será o genuíno antifascista,<br />

e voltado para as “pequenas<br />

pessoas”, a este ponto: “O Biberkopf,<br />

quando muito, é herói <strong>de</strong> um romance<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>formação, e não <strong>de</strong> formação,<br />

<strong>de</strong> que Thomas Mann é o gran<strong>de</strong><br />

exemplo. E também não é o herói<br />

problemático, enigmático <strong>de</strong> Kafka,<br />

que se move em mundos que nos escapam.<br />

Aqui, o mundo é completamente<br />

i<strong>de</strong>ntificável.”<br />

4. A ascensão do alto mal<br />

Vamos lá a ele, esse mundo, Alemanha,<br />

anos 20.<br />

“Não se enten<strong>de</strong> sem o modo como<br />

os alemães viveram a <strong>de</strong>rrota na I<br />

Guerra”, diz João Barrento. “A I Guerra<br />

leva a um estilhaçamento da social<strong>de</strong>mocracia,<br />

e Berlim transforma-se<br />

no microcosmos que reflecte todo o<br />

espaço alemão. Há um extremar <strong>de</strong><br />

posições que leva a confrontos entre<br />

o partido comunista e o nacionalsocialismo,<br />

com um claro enfraquecimento<br />

do meio, da social-<strong>de</strong>mocracia.<br />

O PC tinha alg<strong>uma</strong> implantação,<br />

não a suficiente, e com posições próximas<br />

do estalinismo. O que possibilita<br />

a <strong>de</strong>scrença na <strong>de</strong>mocracia e a<br />

perfeita ascensão do nazismo, que em<br />

1927-28 consegue um gran<strong>de</strong> número<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>putados, em aliança com os conservadores<br />

nacionalistas.”<br />

Ascensão essa, como sempre, impulsionada<br />

pela crise económica.<br />

“Logo em 1923, quando Hitler faz a<br />

primeira tentativa <strong>de</strong> golpe, a inflação<br />

já é altíssima. Depois, com planos<br />

americanos e ingleses estabiliza, mas<br />

em 27-28 volta a disparar. E há dois<br />

ou três milhões <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempregados.”<br />

Cá estão eles, em “Berlim Alexan<strong>de</strong>rplatz”.<br />

E os cruz-suásticos a marchar<br />

por trás, e Franz a ven<strong>de</strong>r os<br />

jornais <strong>de</strong>les, sem ver on<strong>de</strong> põe os<br />

pés, sem ver o que aí vem.<br />

“O ressentimento alemão com a<br />

<strong>de</strong>rrota na I Guerra vem ao <strong>de</strong> cima<br />

nos anos 20. O Tratado <strong>de</strong> Versalhes<br />

foi sentido como <strong>uma</strong> punhalada nas<br />

costas que levou territórios alemães<br />

a passarem para França e ao pagamento<br />

<strong>de</strong> reparações <strong>de</strong> guerra. Esse<br />

ressentimento não passou, e foi um<br />

facto no inconsciente colectivo.”<br />

Volta-se então o colectivo contra os<br />

ju<strong>de</strong>us, gran<strong>de</strong>s ou pequenos, prepon<strong>de</strong>rantes<br />

na finança ou só a contar<br />

dinheirinho, que também estão em<br />

“Berlim Alexan<strong>de</strong>rplatz”. À saída da<br />

ca<strong>de</strong>ia, Franz é ajudado por ju<strong>de</strong>us,<br />

mas quando volta para os visitar aí<br />

estão eles, a contar o dinheirinho.<br />

Não são homens, são caricaturas, menos<br />

que homens.<br />

Está tudo maduro, tudo pronto prà<br />

guerra.<br />

5. Franz alfacinha<br />

Mas que vêm a ser estas contracções,<br />

este linguajar <strong>de</strong> varinas e garinas, e<br />

afinfem-lhe uns chulos do Cais do Sodré?<br />

Pois é trabalho <strong>de</strong> tradutor, neste<br />

caso, tradutoras, duas irmãs. O convite<br />

foi feito há 18 anos pela Dom Quixote<br />

a Teresa Seruya, germanista da<br />

Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>. E como<br />

se tratava <strong>de</strong> algo muito longo, ela<br />

convidou a irmã, Sara Seruya, tradutora<br />

literária profissional, para trabalharem<br />

juntas. Demoraram “um ano<br />

e tal”. Teresa traduzia primeiro, <strong>de</strong>pois<br />

corrigiam as duas.<br />

Como é que se traduz este berlinês<br />

popular?<br />

“Não há equivalente entre dialectos”,<br />

explica Teresa Seruya. “ Um dialecto<br />

é intraduzível. Mas o que é que<br />

podia ser equivalente àquele dialecto<br />

berlinense citadino? Achámos que<br />

BETTMANN/CORBIS


GETTY IMAGES<br />

A Alexan<strong>de</strong>rplatz nesses anos 20 da República <strong>de</strong> Weimar e do progresso técnico<br />

em que a cida<strong>de</strong> construiu, construiu, construiu, euforicamente<br />

“Há muitos tipos<br />

assim hoje em dia,<br />

pequenas pessoas,<br />

vítimas das<br />

circunstâncias,<br />

sem <strong>de</strong>fesas perante<br />

a gran<strong>de</strong> cida<strong>de</strong>.<br />

Franz Biberkopf<br />

não pertence a nada<br />

nem a ninguém”<br />

Teresa Seruya<br />

“Berlim Alexan<strong>de</strong>rplatz”<br />

tem a sua primeira edição<br />

alemã em 1929, tem Döblin 51<br />

anos: ao fundo, Hitler já mexe<br />

seria um linguajar muito popular <strong>de</strong><br />

<strong>Lisboa</strong>.”<br />

A começar por centenas <strong>de</strong> contracções:<br />

qu’eu, d’andar, pr’ele,<br />

co’os.<br />

“Quando veio a revisão das primeiras<br />

provas fiquei sem pinta <strong>de</strong> sangue.<br />

Tinham corrigido tudo, tudo. Foi um<br />

momento <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> aflição. Estávamos<br />

conscientes <strong>de</strong> que íamos chocar<br />

com <strong>uma</strong> tradição das traduções em<br />

Portugal, <strong>de</strong> pôr tudo em bom português,<br />

mas conseguimos levar a nossa<br />

avante.”<br />

E como se meteram naquela pele,<br />

naquele dialecto? “Foi muito difícil.<br />

Houve, não direi trabalho <strong>de</strong> campo,<br />

mas treino do ouvido com atenção à<br />

forma como as pessoas falam. Essa<br />

parte <strong>de</strong> recriação <strong>de</strong> um tom <strong>de</strong>ve<br />

muito à minha irnã Sara. Ela tem <strong>uma</strong><br />

gran<strong>de</strong> queda, um ouvido muito apurado.”<br />

Ainda assim, as traduções envelhecem<br />

e aqui trata-se <strong>de</strong> <strong>uma</strong> reedição.<br />

“Lamentamos não termos sido consultadas<br />

para saber se queríamos rever<br />

a tradução”, diz Teresa Seruya.<br />

Posto isto, que memória tem esta<br />

tradutora, também autora do prefácio,<br />

do tal Franz com quem passou<br />

um ano há 18 anos?<br />

“No fundo é um pobre diabo, sem<br />

nenhum lastro cultural ou h<strong>uma</strong>no,<br />

que não se sabe <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vem. Um<br />

<strong>de</strong>senraizado, <strong>uma</strong> pessoa até boa,<br />

tanto que é vítima da sua atracção<br />

pelo Reinhold, esperto e mau. Em<br />

Franz Biberkopf, a noção <strong>de</strong> bem e<br />

mal não está feita. É um homem-puro<br />

instinto.”<br />

E produto da gran<strong>de</strong> cida<strong>de</strong>. “Um<br />

homem daqueles não podia <strong>de</strong>senvolver-se<br />

n<strong>uma</strong> al<strong>de</strong>ia. O anonimato,<br />

a falta <strong>de</strong> condições <strong>de</strong> habitação, <strong>de</strong><br />

relações duradouras, tudo isto faz<br />

<strong>de</strong>le um ser sem elos. Ele é quase<br />

amoral, vai sobrevivendo conforme<br />

as circunstâncias. É <strong>uma</strong> pessoa só<br />

reactiva, e portanto presa fácil daquelas<br />

forças que agem sobre ele, e que<br />

vão também ao encontro dos seus<br />

<strong>de</strong>mónios interiores, aquele mal que<br />

o levou a matar.”<br />

Teresa Seruya teve <strong>uma</strong> empatia<br />

com ele. “Há muitos tipos assim hoje<br />

em dia, pequenas pessoas, vítimas<br />

das circunstâncias, fracos e frágeis,<br />

sem <strong>de</strong>fesas perante a gran<strong>de</strong> cida<strong>de</strong>.<br />

A gran<strong>de</strong> cida<strong>de</strong> é o ambiente que<br />

proporciona esse tipo <strong>de</strong> experiência,<br />

<strong>de</strong> vida sem ligações, sem pertenças.<br />

Franz Biberkopf não pertence a nada<br />

nem a ninguém.”<br />

6. O sacrifício<br />

Até pertencer a Mieze.<br />

Sim, Franz, aquele cabeça <strong>de</strong> castor,<br />

não pertence a ninguém até pertencer<br />

a Mieze, anjo azul pálido, mas<br />

disposta a tudo para cuidar <strong>de</strong>le.<br />

E aqui, leitores, quem atira a primeira<br />

pedra? Chegados que somos a<br />

mais <strong>de</strong> 300 páginas, também disto<br />

se faz a vidinha, sim, senhor. Ou pertencem<br />

os leitores “àqueles que não<br />

per<strong>de</strong>m o coração em parte nenh<strong>uma</strong>,<br />

antes o guardam para si, o con-<br />

servam limpo e mumificam?”<br />

Pensem nisso.<br />

Franz, o madraço, per<strong>de</strong>u o<br />

coração quando já tinha perdido<br />

um braço. Cenas <strong>de</strong> filme<br />

negro, fuga <strong>de</strong> carro e borda fora.<br />

Lá está ele, aleijado, maneta,<br />

a emborcar bagaço, e entra Mieze<br />

que nem um passarinho, nem 20<br />

anos, apanhada na rusga dos chuis.<br />

Pois faz <strong>de</strong> Franz seu. Arranja um encosto,<br />

ele fica <strong>de</strong> chulo, nem <strong>de</strong>ixa<br />

que trabalhe, é o homem <strong>de</strong>la, o qu’é<br />

que pensam?<br />

Mas puta, Gran<strong>de</strong> Puta, é Berlim.<br />

E como no matadouro, quando a faca<br />

entra no touro, “o abdómen volta-se<br />

pesadamente, tomba para o lado”. E<br />

o narrador escreve: “É a Terra, a força<br />

da gravida<strong>de</strong>.” E sobre a Terra, as<br />

águas, “lúgubres sois, ó águas negras,<br />

águas terrivelmente calmas”.<br />

Babilónia espera o que é seu.<br />

Franz é o que é, mas não é bufo<br />

nem cobar<strong>de</strong>. Volta ao bando <strong>de</strong> mânfios,<br />

vai pôr a cabeça na bigorna <strong>de</strong><br />

Reinhold, o Mal. Quer provar ao<br />

forte que não é fraco, essa <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira<br />

fraqueza. E não olhem agora,<br />

mas vão ver o que é um coração<br />

espatifado.<br />

A mão do Senhor <strong>de</strong>teve<br />

Abraão quando ia sacrificar<br />

o seu filho Isaac. Se Abraão<br />

estava disposto a matar o<br />

próprio filho, era obediente<br />

o bastante. Eis o mito<br />

fundador <strong>de</strong> quantos-milhões-sobre-a-terra.<br />

Qual é, então, “o tema<br />

mais fundo” <strong>de</strong> “Berlim<br />

Alexan<strong>de</strong>rplatz”, segundo<br />

Döblin? “O sacrifício<br />

é o caminho, oferecer-se<br />

a própria pessoa em sacrifício.”<br />

Falam anjos, prédios<br />

e até aves que foram<br />

mânfios. Falam os mortos,<br />

como um <strong>de</strong>sfile diante<br />

<strong>de</strong> Franz. Quanto não sofreu<br />

Job sem saber porquê. Deus<br />

pune os maus, mas também<br />

os bons, em que ficamos?<br />

Sai a Morte. Vivo, mas escangalhado,<br />

fica o novo<br />

Franz, Franz Karl, o Ressurrecto.<br />

Arranjam-lhe um emprego<br />

<strong>de</strong> porteiro. Vai trabalhar,<br />

o ex-malandro.<br />

Escreve o narrador: “Deixa<br />

a vociferação e o sol<br />

te entrará no coração.”<br />

E mais: “Um homem<br />

não po<strong>de</strong> existir sem<br />

outros.” Quando os<br />

soldados marcham<br />

“ó-ai porquê, ó-ai<br />

porque sim, ó-ai só<br />

p’lo tchingtárátá bumtárátá<br />

bum”, prà<br />

guerra vamos. A<br />

guerra faz-se <strong>de</strong><br />

muitos homens,<br />

olé.<br />

E foi o que se<br />

viu.<br />

AFP PHOTO/ FILES<br />

O<br />

monumental<br />

James Joyce<br />

e o seu<br />

monumental<br />

“Ulisses”:<br />

mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong><br />

“Berlim<br />

Alexan<strong>de</strong>r<br />

platz”?<br />

Döblin nem<br />

conhecia<br />

Joyce<br />

quando<br />

escreveu<br />

o primeiro<br />

quarto do<br />

livro<br />

AFP<br />

Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 9


Berlim,<br />

rataplão-plão-plão,<br />

sinfonia <strong>de</strong> <strong>uma</strong> capital<br />

Os eléctricos<br />

da República <strong>de</strong> Weimar,<br />

a Torre da Televisão<br />

da ex-RDA, os bares sem<br />

moral da Alemanha<br />

reunifi cada: ao longo <strong>de</strong><br />

todo o século XX,<br />

a Alexan<strong>de</strong>rplatz<br />

foi um símbolo das<br />

metamorfoses <strong>de</strong> Berlim.<br />

O escritor<br />

José Riço Direitinho<br />

atravessa agora<br />

a turbulência <strong>de</strong>sse século<br />

com Franz Biberkopf (mais<br />

a informadora polaca,<br />

o agente russo caído em<br />

<strong>de</strong>sgraça, a turba<br />

anti-semita e Fassbin<strong>de</strong>r,<br />

pela trela da Schygulla)<br />

num texto que continua,<br />

como se fosse hoje, o<br />

romance <strong>de</strong> Alfred Döblin.<br />

10 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />

Capa<br />

A. MOROZOV/ AFP


MICHAEL KAPPELER/ AFP PHOTO DDP<br />

Um teatro <strong>de</strong> robertos em Prenzlauer Berg, <strong>uma</strong> antiga tasca que está no mapa <strong>de</strong> “Berlim Alexan<strong>de</strong>rplatz”, a Karl-Marx Alle e a esquina on<strong>de</strong><br />

Biberkopf teve <strong>uma</strong> banca <strong>de</strong> jornais: o romance <strong>de</strong> Alfred Döblin também é <strong>uma</strong> cartografia <strong>de</strong> Berlim<br />

Seguiu-te até ao prédio on<strong>de</strong> moravas. Foi fácil.<br />

Depois inventou a história dos panfletos contra o regime<br />

e as conversas com os americanos, e falou com os patrões <strong>de</strong>la lá<br />

da Stasi. E eles engavetaram-te, sem mais nem ontem. Obrigações<br />

dos amanhãs que cantam! Que a malta tem <strong>de</strong> ser mantida<br />

à ré<strong>de</strong>a curta! E tu a esforçares-te para ser um tipo <strong>de</strong>cente!<br />

Este texto conta o que durante décadas<br />

se passou em Berlim com um tal<br />

Franz Karl Biberkopf [que um dia, no<br />

Inverno <strong>de</strong> 1928-29, num outro mundo,<br />

se apropriou dos documentos <strong>de</strong><br />

Franz Biberkopf – em tudo igual a ele<br />

– falecido no Hospital Psiquiátrico <strong>de</strong><br />

Buch]. Berlim é gran<strong>de</strong>. Um frio <strong>de</strong><br />

rachar, um calor <strong>de</strong> queimar. Franz<br />

Biberkopf, antigo trabalhador dos cimentos<br />

e mais tar<strong>de</strong> do transporte <strong>de</strong><br />

mobílias, também assassino, ven<strong>de</strong>dor<br />

<strong>de</strong> quinquilharia a retalho e <strong>de</strong><br />

jornais, chulo e assaltante, está bem<br />

morto. Há um novo homem, um homem<br />

novo. Rufam os tambores, trrumm<br />

trrumm trrumm, há gritos e<br />

pólvora, barulhos, júbilo. A <strong>de</strong>cência<br />

a todos pe<strong>de</strong> sacrifícios [a uns mais<br />

do que a outros, ó Franz, a ti o anjo<br />

mau tam’ém não te tirava os olhinhos<br />

<strong>de</strong> cima, pá]. Foi preciso o teu sacrifício<br />

na pira berlinense, pois então.<br />

Isaac não podia escapar mais <strong>uma</strong> vez<br />

a Abraão. Peguem fogo aos ma<strong>de</strong>iros<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> regados com petróleo <strong>de</strong><br />

alumiar! Que se acendam as fogueiras!<br />

Imolem-se as ovelhas negras e as ranhosas<br />

nas piras sacrificiais por muito<br />

que isso vos custe! Depois da Morte<br />

há <strong>uma</strong> vida nova [Aleluia! Aleluia!],<br />

e <strong>de</strong>sta vez calhou essa prenda a este<br />

novo Franz Karl Biberkopf, que é em<br />

tudo igual ao morto, como já foi dito,<br />

até na falta do braço direito. Portanto,<br />

à saú<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste homem novo. Mas seremos<br />

nós capazes <strong>de</strong> beber o cálice<br />

sem <strong>de</strong>sconfiar <strong>de</strong>le, minhas hienas?<br />

O machado é o mesmo para todos,<br />

não nos esqueçamos. Às vezes as coisas<br />

correm <strong>de</strong> outra maneira, nem<br />

sempre se consegue o que se quer.<br />

Paciência! E este também vai querer<br />

ser um homem <strong>de</strong>cente [achas que<br />

vais ser capaz, ó Franz Karl?]. Há que<br />

dar então outra vez o retrato <strong>de</strong>ssa<br />

dor, <strong>de</strong>ssa luta, parece <strong>uma</strong> coisa sem<br />

fim, este contar.<br />

Mas antes <strong>de</strong> este texto acabar, ainda<br />

se convocará também para aqui o<br />

senhor realizador Rainer Werner Fassbin<strong>de</strong>r<br />

[ou será o Franz Karl por<br />

ele?], que se apresentará <strong>uma</strong> noite<br />

no bar “A Era do Vazio” [Lipovetsky<br />

Str., Kreuzberg, Berlin, Deutschland]<br />

em versão <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte e muito berlinense,<br />

isto é, apenas trajando as suas<br />

habituais botas <strong>de</strong> cano alto, portanto<br />

nu, no pescoço <strong>uma</strong> coleira <strong>de</strong> bicos<br />

<strong>de</strong> on<strong>de</strong> pen<strong>de</strong> <strong>uma</strong> corrente<br />

comprida puxada por <strong>uma</strong> loura rechonchuda,<br />

<strong>uma</strong> tal Hanna Schygulla,<br />

[e com licença do prezado leitor] estará<br />

ele <strong>de</strong> pila na mão e toalhinha <strong>de</strong><br />

bidé [para o que <strong>de</strong>r e vier] a a<strong>de</strong>jar<br />

no braço, à garçon canhoto, portanto.<br />

Mas lá chegaremos, para tanto as musas<br />

nos inspirem.<br />

Outra vez largado ao mundo<br />

O Inverno <strong>de</strong> 1965 estava a ser um dos<br />

mais frios <strong>de</strong> que se lembrava. Os <strong>de</strong>dos<br />

roxos, encurvados, enregelados.<br />

Parecia-lhe que nunca tivera tanto<br />

frio, nem quando dormira meses ao<br />

relento como um javali entre os ar-<br />

bustos do Tiergarten, que as árvores<br />

tinham <strong>de</strong>saparecido, também ele as<br />

ajudara a cortar em troços pequenos<br />

para fazer lenha, já lá vão quase 20<br />

anos, ainda se viam muitas bombas<br />

meio enterradas que nunca chegaram<br />

a rebentar. Chovia quando lhe abriram<br />

o portão e os dois polícias o puseram<br />

cá fora. E continuou a chover.<br />

“Vai e não tornes a pecar”, pareceulhe<br />

ouvir dizer n<strong>uma</strong> voz doce, mas<br />

não me po<strong>de</strong>m ter disto isto, é a confusão<br />

na minha cabeça. Estava diante<br />

dos muros altos cinzentos <strong>de</strong> arenito<br />

da Hohenschönhausen, a prisão, o<br />

campo <strong>de</strong> trabalho, o quartel-general<br />

da Stasi, assim tudo junto, e bem murado.<br />

A roupa que agora trazia era a<br />

mesma com que entrara, a que tinha<br />

vestida quando o foram buscar às<br />

águas-furtadas com maus modos, calças<br />

finas e casaquinho leve, só a camisa<br />

o aconchegava mais, era <strong>de</strong> flanela<br />

já muito puída. Valia-lhe também<br />

a boina <strong>de</strong> couro mal tingida <strong>de</strong> preto.<br />

E agora outra vez largado para o mundo,<br />

ó Franz Karl! Berlim é gran<strong>de</strong>.<br />

Bem sei que a culpa não foi tua, <strong>de</strong>sta<br />

vez não fizeste nada, mesmo nada.<br />

Mas guardaram-te durante três anos<br />

e mais uns mesitos, muitos dos quais<br />

no “U-Boot”, no “submarino”, no isolamento<br />

daquelas celas frias <strong>de</strong>baixo<br />

do chão. E interrogavam-te e acordavam-te<br />

e batiam-te, tinhas que falar,<br />

mas eu não sabia <strong>de</strong> quê. Agora tens<br />

que esquecer. Vá, faz-te ao mundo,<br />

tem-te nas pernas, firma-te, estás um<br />

Foi por essa altura<br />

que conheceu a turca Yasmin,<br />

rechonchuda moça berlinense,<br />

e se mudou com ela para<br />

o Kreuzberg, o bairro turco,<br />

para o meio dos artistas, das<br />

lojas <strong>de</strong> falafel e shoarma,<br />

da roupinha em segunda mão,<br />

e <strong>de</strong> alguns bares mais<br />

ou menos licenciosos<br />

“Ninguém está<br />

admirado <strong>de</strong> tudo<br />

estar a correr tão<br />

em paz? Perguntem<br />

baixinho, com<br />

o cigarro <strong>de</strong>scaído<br />

ao canto da boca,<br />

mas o que é que está<br />

para acontecer nesta<br />

Berlim do Reich?<br />

Essas coisas por vezes<br />

sentem-se no ar,<br />

como vindas do fundo<br />

da terra. Com o céu<br />

e o inferno não se<br />

fazem pactos eternos”<br />

FABRIZIO BENSCH/ REUTERS<br />

bocado escangalhado da porrada e<br />

escanzelado das 14 horas <strong>de</strong> trabalho<br />

por dia, carregar pedras <strong>de</strong>scarregar<br />

pedras, abrir buracos fechar buracos,<br />

e tudo só com um braço, o esquerdo,<br />

porque a prótese é disfuncional, mas<br />

há que evitar fazer a vida mais difícil<br />

do que ela é. Agora tens que esquecer<br />

para que o veneno não te afogue a<br />

cabeça, bem sabes que isso po<strong>de</strong> ser<br />

o pior. Berlim é gran<strong>de</strong>.<br />

O <strong>de</strong>speito é sempre um curto caminho<br />

para a vingança. Foi a Lina,<br />

aquela polaca gorducha, foi ela que<br />

inventou a história que te meteu <strong>de</strong>ntro.<br />

Ao fim <strong>de</strong> tantos anos, <strong>de</strong>u-lhe<br />

para ser informadora, não custa nada,<br />

a boca que ela abre para contar da<br />

vida dos outros é a mesma que eles<br />

lhe atafulham <strong>de</strong> comida, e ainda lhe<br />

dão mais uns trocos para se embonecar.<br />

Tu não a conheces, nem ela a ti,<br />

mas ela conhecia o morto, muitas foram<br />

as noites dormidas juntos, e dias<br />

passados, e até tiveram juntos <strong>uma</strong><br />

banca <strong>de</strong> jornais na esquina da Invali<strong>de</strong>nstrasse<br />

com a Chausseestrasse,<br />

vê lá tu! Ela topou-te na estação <strong>de</strong><br />

metro da Alexan<strong>de</strong>rplatz e pensou,<br />

olha, aqui vai o meu Franz Biberkopf,<br />

o cabeça-<strong>de</strong>-castor, o bo<strong>de</strong> feio que<br />

me encornou com meia Berlim [a dor<br />

<strong>de</strong> corno leva sempre a muitos exageros,<br />

esta é <strong>uma</strong> verda<strong>de</strong> muito experimentada],<br />

e finge que não me<br />

conhece! Ela não sabe que esse morreu,<br />

o Franz, e que tu és o novo homem,<br />

o homem novo, o Franz Karl.<br />

Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 11


E do céu caíram então muitas bombas, pum pum pum, e o chão se fez fogo e o ar se fez fumo,<br />

e o chão se fez fumo e o ar se fez fogo, foi assim, ficou o mundo do avesso, tudo conforme à guerra,<br />

portanto (...). ‘E não ficará pedra sobre pedra!’, pareceu ouvir-se ainda. Havia, no entanto,<br />

ainda alg<strong>uma</strong>s fachadas <strong>de</strong> prédios, que os interiores estavam <strong>de</strong>rruídos. Foi no tempo em que havia<br />

que fazer a cama [o mesmo será dizer, enrolar o lombo sujo e purulento] entre os arbustos, como os<br />

javardos, pois então, que os tempos não estavam para h<strong>uma</strong>nos, assim parecia<br />

E seguiu-te até ao prédio on<strong>de</strong> moravas.<br />

Foi fácil. Depois inventou a história<br />

dos panfletos contra o regime e<br />

as conversas com os americanos, e<br />

falou com os patrões <strong>de</strong>la lá da Stasi.<br />

E eles engavetaram-te, sem mais nem<br />

ontem. Obrigações dos amanhãs que<br />

cantam! Que a malta tem que ser mantida<br />

à ré<strong>de</strong>a curta! E tu a esforçares-te<br />

para ser um tipo <strong>de</strong>cente! A vida é<br />

gran<strong>de</strong>. Mas Berlim é maior. Nunca<br />

<strong>de</strong>sistimos.<br />

Devagar, muito <strong>de</strong>vagar, ele põe os<br />

pés a caminho da Lan<strong>de</strong>sberger Allee.<br />

Agora tem <strong>de</strong> se meter pela cida<strong>de</strong><br />

a<strong>de</strong>ntro, não po<strong>de</strong> voltar para trás.<br />

Olha as fachadas e os telhados. Os prédios<br />

são tristes e sombrios. Ainda é<br />

manhã cedo, ele tem todo o dia pela<br />

frente. Mas não sabe para quê [nã sabes<br />

para quê, hã?]. Há poucas pessoas<br />

na rua, aqui não são como formigas,<br />

pelo menos a esta hora ainda não.<br />

Passam poucos carros. Está outra vez<br />

“livre”, que é como quem diz po<strong>de</strong><br />

mover-se por parte da cida<strong>de</strong>, que<br />

agora é “duas”. Ir até <strong>de</strong> on<strong>de</strong> avista<br />

o muro alto e ver os prédios que se<br />

levantam do outro lado, por cima do<br />

arame farpado. Ou não ir a lado nenhum,<br />

e <strong>de</strong>ixar-se ficar abrigado a<br />

emborcar cerveja. Ele vai <strong>de</strong>vagar pela<br />

Lan<strong>de</strong>sberger Allee até ao cruzamento,<br />

à esquerda [prédios cinzentos<br />

todos iguais no meio <strong>de</strong> baldios], com<br />

a Petersburger Strasse, e <strong>de</strong>pois continua<br />

por aí até à recente Frankfurter<br />

Tor [o estilo soviético lembra-nos bem<br />

a dimensão do pó que somos face a<br />

quem manda, coisa que se <strong>de</strong>ve sempre<br />

agra<strong>de</strong>cer], on<strong>de</strong> começa a comprida<br />

Karl-Marx-Allee. Arrasta-se. Os<br />

pés já vão há muito molhados, shlooop<br />

shlooop. Há um vento frio a soprar<br />

através da chuva que o repassa até os<br />

ossos [por um dia assim não esperavas<br />

tu, pá, ó Franz Karl, quando matutavas<br />

fechado no “submarino” e te<br />

parecia que lá fora era tudo Sol e passarinhos<br />

azuis a chilrear e flores pequeninas<br />

brancas e amarelas a cobrirem<br />

<strong>de</strong> alegria o mundo!].<br />

Agora está <strong>de</strong>sempregado. Lembrase<br />

disso quando sente a fome a subirlhe<br />

aos gorgomilos. Deita a língua<br />

para fora da boca para beber alg<strong>uma</strong>s<br />

gotas <strong>de</strong> chuva. Leva a mão esquerda<br />

enfiada no bolso das calças, a prótese<br />

do braço ao <strong>de</strong>penduro, a gola fina<br />

do casaco levantada, os <strong>de</strong>dos tocam<br />

<strong>uma</strong>s poucas <strong>de</strong> moedas, é tudo o que<br />

lhe sobra. Não sei como me vou amanhar!<br />

[apropriares-te do alheio está<br />

excluído, ouviste?] Amigos, disso já<br />

não <strong>de</strong>ve haver, e se ainda os houver<br />

<strong>de</strong>vem borrar-se <strong>de</strong> medo quando me<br />

virem, não lhes vá acontecer o mesmo<br />

[como diz que é o seu nome? nã, nã<br />

me lembro, está a fazer confusão, vaite<br />

embora, ó Franz Karl, <strong>de</strong>sculpa lá,<br />

tenho aqui os miúdos para criar, passa<br />

bem! E porta batida diante das ventas,<br />

pois então]. Meia dúzia <strong>de</strong> passos<br />

atrás segue-o um homem, vai este<br />

12 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />

BETTMANN/CORBIS<br />

melhor agasalhado, casacão preto<br />

comprido e gorro russo na cabeça.<br />

Os passos são também lentos, como<br />

se não quisesse diminuir a distância<br />

que separa os dois. Assim vão. Franz<br />

Karl a espiá-lo pelo canto do olho.<br />

“Kamara<strong>de</strong>, tenho <strong>uma</strong> garrafinha <strong>de</strong><br />

boa vodca e tiras <strong>de</strong> pele <strong>de</strong> salmão<br />

salgada … e também alg<strong>uma</strong>s <strong>de</strong> arenque,<br />

tudo por <strong>uma</strong>s poucas moedas!”<br />

Põem-se os dois ao lado um do outro.<br />

Fazem a troca sem pararem. Ali ao<br />

fundo é já a Alexan<strong>de</strong>rplatz, que bem<br />

se vêem as gruas. O russo evapora-se<br />

<strong>de</strong>pois num <strong>de</strong>scampado, levantou<br />

voo com as abas do casacão a a<strong>de</strong>jarem<br />

sob o cinzento céu <strong>de</strong> Berlim.<br />

Sumiu-se, como só os agentes russos<br />

caídos em <strong>de</strong>sgraça sabem fazer.<br />

Franz Karl abriga-se mais tar<strong>de</strong> num<br />

cantinho da estação dos comboios,<br />

do lado que dá para a ponte do caminho-<strong>de</strong>-ferro<br />

e <strong>de</strong> on<strong>de</strong> se avista aquele<br />

edifício avermelhado que <strong>uma</strong>s<br />

vezes faz <strong>de</strong> tribunal outra <strong>de</strong> câmara<br />

municipal. Pela primeira vez em três<br />

anos e tal sente o álcool manhoso a<br />

queimar-lhe <strong>de</strong>vagar a goela, que<br />

bom, que bom, e o sal grosso a <strong>de</strong>rreter-se-lhe<br />

<strong>de</strong>vagar sobre a língua e<br />

a colar-se-lhe ao interior das bochechas.<br />

O mundo é feito <strong>de</strong> açúcar e<br />

esterco! Como é que vais sair <strong>de</strong>sta,<br />

ó Frank Karl?<br />

«A era das ditaduras<br />

Dos teus primeiros anos em Berlim já<br />

nem te lembras bem. Melhor assim.<br />

É preciso sermos sempre capazes <strong>de</strong><br />

olhar os olhos uns dos outros sem<br />

pestanejar e com recolhimento pela<br />

dor alheia, mesmo que tenhamos sido<br />

nós a provocá-la. Para isso temos por<br />

vezes que saber esquecer. Não foram<br />

aqueles tempos edificantes para muitos<br />

homens na cida<strong>de</strong>?. E disse então<br />

o profeta [qual <strong>de</strong>les, Jeremias?]: “Salvemos<br />

Berlim! [Babilónia?]” Mas Berlim<br />

não quis ser salva. “Abandonai-a,<br />

ó vós que acreditais em tudo o que<br />

ouvis da boca dos homens, e que cada<br />

um <strong>de</strong> vós seja conduzido ao seu<br />

miserável <strong>de</strong>stino! A fuga ou o patíbulo,<br />

a vossa escolha não é gran<strong>de</strong>.”<br />

Ou que se <strong>de</strong>ixe então ficar, para ver<br />

o que aí virá. Dias apocalípticos. E do<br />

céu caíram então muitas bombas,<br />

pum pum pum, e o chão se fez fogo<br />

e o ar se fez fumo, e o chão se fez fumo<br />

e o ar se fez fogo, foi assim, ficou<br />

o mundo do avesso, tudo conforme<br />

à guerra, portanto. “Que as bombas<br />

se abatam sobre os berlinenses!”, disse<br />

ainda o profeta [Jeremias ou Franz<br />

Karl?], mas já estava muito cansado<br />

e <strong>de</strong>siludido, arrastando-se andrajoso<br />

pelo pó das ruas esburacadas da cida<strong>de</strong><br />

parecendo não dizer já coisa<br />

com coisa, ou pelo menos muita coisa<br />

não dizia ele. “E não ficará pedra<br />

sobre pedra!”, pareceu ouvir-se ainda.<br />

Havia, no entanto, ainda alg<strong>uma</strong>s<br />

fachadas <strong>de</strong> prédios, que os interiores<br />

estavam <strong>de</strong>rruídos. Mas isso foi muito<br />

tempo <strong>de</strong>pois do que agora se vai<br />

contar. Foi no tempo em que havia<br />

“Muita água correu<br />

no rio Spree. O mundo<br />

alterou-se, mudou.<br />

E agora, o que<br />

fazemos com ele?<br />

O país do Biberkopf<br />

já não existe. A União<br />

Soviética, i<strong>de</strong>m i<strong>de</strong>m<br />

aspas aspas. O muro<br />

sobre o qual o nosso<br />

homem olhava, bem<br />

<strong>de</strong> longe, não fosse<br />

alg<strong>uma</strong> bala<br />

per<strong>de</strong>r-se, foi<br />

<strong>de</strong>struído”<br />

Saiu o nosso Franz da<br />

tasca, e [foi] apanhar ar para<br />

a Oranienburger Strasse, on<strong>de</strong><br />

ficavam muitas lojas <strong>de</strong><br />

retalhistas ju<strong>de</strong>us e a sinagoga.<br />

Saía gente das ruelas brandindo<br />

paus e gritando frases contra os<br />

ju<strong>de</strong>us. Aproveita para molhar<br />

a sopa, mostrar que ainda tens<br />

braço. Assim se per<strong>de</strong> um<br />

homem que caminha sozinho<br />

com outros. Pequenas<br />

e cintilantes estrelas <strong>de</strong> David<br />

giravam-lhe sobre a cabeça<br />

que fazer a cama [o mesmo será dizer,<br />

enrolar o lombo sujo e purulento]<br />

entre os arbustos, como os javardos,<br />

pois então, que os tempos não estavam<br />

para h<strong>uma</strong>nos, assim parecia. A<br />

história tem que continuar, olhar para<br />

trás atrasa os viandantes.<br />

Franz Karl Biberkopf, à semelhança<br />

do morto, é um homem ru<strong>de</strong>, gran<strong>de</strong><br />

e quase disforme, com um aspecto<br />

que ao princípio sempre repugna<br />

uns quantos, ainda por cima com<br />

aquela prótese a que ele não se habitua<br />

e por vezes ali lhe anda ao <strong>de</strong>penduro<br />

do coto logo abaixo do ombro.<br />

Mas as pessoas <strong>de</strong>pois afeiçoam-se ao<br />

nosso homem. Há gente para tudo.<br />

Berlim é gran<strong>de</strong>.<br />

Em Novembro <strong>de</strong> 1938, era este<br />

nosso Franz Karl ajudante <strong>de</strong> porteiro<br />

e guarda n<strong>uma</strong> fábrica metalúrgica,<br />

para isso talvez tivesse ajudado o<br />

volume do seu corpanzil. [Nas horas<br />

livres foi várias vezes tentado pelo<br />

comércio <strong>de</strong> moças, mas sempre resistiu,<br />

não lhe parecia coisa <strong>de</strong> homem<br />

<strong>de</strong>cente.] À cautela, trazia ele<br />

quase sempre um bastão enfiado pela<br />

perna esquerda das calças a<strong>de</strong>ntro,<br />

que o mundo andava por esses anos<br />

muito perigoso, o <strong>de</strong>semprego e tal,<br />

e um homem nunca sabe quando tem<br />

que ajeitar o cabresto a alg<strong>uma</strong> besta<br />

tresmalhada que venha com os cornos<br />

alevantados em direcção a ele.<br />

Agora vocês vão ver o nosso Franz<br />

Karl n<strong>uma</strong> infeliz dança <strong>de</strong> São Vito<br />

enfeitada por bastão a rodar pendu-<br />

BETTMANN/CORBIS


As ruas <strong>de</strong> Berlim como Biberkopf<br />

nunca as viu: Potsdamer Platz, Alexan<strong>de</strong>rplatz<br />

e Rosenthaler Strasse<br />

rado do braço esquerdo, mas não vai<br />

estar sozinho [um homem que se andava<br />

a esforçar tanto por ser <strong>de</strong>cente,<br />

dá-lhe <strong>de</strong> repente para isto! On<strong>de</strong> é<br />

que foste buscar tanta força co’um<br />

braço só, ó Franz Karl, não me queres<br />

tu dizer?]. Vai parecer doido, que não<br />

bate bem da pinha!<br />

Ninguém está admirado <strong>de</strong> tudo<br />

estar a correr tão em paz? Perguntem<br />

baixinho, com o cigarro <strong>de</strong>scaído ao<br />

canto da boca, mas o que é que está<br />

para acontecer nesta Berlim do Reich?<br />

Estas coisas por vezes sentem-se no<br />

ar, como vindas do fundo da terra.<br />

Com o céu e o inferno não se fazem<br />

pactos eternos.<br />

Como sempre fazia ao começo da<br />

noite, apeava-se o nosso Franz Karl<br />

do eléctrico ali a meio da Alexan<strong>de</strong>rplatz.<br />

Depois entrava sempre n<strong>uma</strong><br />

tasca <strong>uma</strong>s boas <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> passos<br />

adiante, já na Münzstrasse, já a caminho<br />

<strong>de</strong> casa, para se empanturrar <strong>de</strong><br />

couve branca avinagrada e <strong>de</strong> uns fiapos<br />

<strong>de</strong> carne salgada e f<strong>uma</strong>da, ainda<br />

rosadinha; sempre o mesmo; e tudo<br />

rematado por uns bons copázios <strong>de</strong><br />

branco e um cheirinho <strong>de</strong> aguar<strong>de</strong>nte<br />

<strong>de</strong> abrunhos para temperar. Parecia<br />

aquilo um sagrado ritual. Nessa<br />

noite [Kristallnacht, a noite dos vidros]<br />

<strong>de</strong> 9 para 10 <strong>de</strong> Novembro <strong>de</strong><br />

1938, saiu o nosso Franz Karl Biberkopf<br />

da tasca, <strong>de</strong> barriga atafulhada e<br />

olhar meio toldado, e quis o <strong>de</strong>stino<br />

que ele em vez <strong>de</strong> ter continuado caminho<br />

pela Rosenthaler Strasse [co-<br />

mo sempre fazia, rumo à humil<strong>de</strong><br />

mansarda na Brunnenstrasse, vejam<br />

lá vocês o <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> um homem<br />

entregue a si próprio!], fizesse nessa<br />

malfadada noite um <strong>de</strong>svio e fosse<br />

apanhar ar para a Oranienburger<br />

Strasse, on<strong>de</strong>, como todos sabem,<br />

ficavam muitas lojas <strong>de</strong> retalhistas<br />

ju<strong>de</strong>us e a sinagoga. [A notícia da<br />

morte <strong>de</strong> um diplomata do Reich em<br />

Paris por um jovem ju<strong>de</strong>u polaco, havia<br />

dois dias, andava a ser soprada <strong>de</strong><br />

janela em janela.] A turba agigantavase<br />

pela rua. Saía gente das ruelas<br />

brandindo paus e gritando frases contra<br />

os ju<strong>de</strong>us. Tinham começado a<br />

atirar pedras a janelas <strong>de</strong> casas e a<br />

montras, a forçar portas. Devagar,<br />

<strong>de</strong>vagarinho, escureceu o mundo na<br />

cabeça do nosso Franz Karl, ao mesmo<br />

tempo que lhe parecia reconhecer<br />

gente das SA trajada à paisana. Todos<br />

gritavam. O barulho dos vidros a partir<br />

misturava-se na cabeça do nosso<br />

homem com os gritos <strong>de</strong> <strong>de</strong>cência,<br />

plim plim, <strong>de</strong>cência, plim plim, <strong>de</strong>cência,<br />

que lhe parecia ouvir vindos<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro. Não vais fazer agora <strong>de</strong><br />

cobar<strong>de</strong>, vais? Aproveita para molhares<br />

a sopa, mostrar que ainda tens<br />

braço. O cacete saiu-lhe das calças,<br />

agigantou-se-lhe na mão, rodopiou<br />

três vezes e começou a bater como<br />

um en<strong>de</strong>moninhado, com o seu corpanzil<br />

trôpego abrindo caminho pelas<br />

lojas às escuras. Vinha abaixo e ia acima,<br />

à vez. E para os lados. Assim se<br />

per<strong>de</strong> um homem que caminha sozi-<br />

ETIENNE GEORGE/SYGMA/ CORBIS<br />

nho com outros. Pequenas e cintilantes<br />

estrelas <strong>de</strong> David giravam-lhe sobre<br />

a cabeça, diz quem viu.<br />

Depois foi durante muito tempo o<br />

cumprir da profecia [mas <strong>de</strong> quem?<br />

“Jawohl, mein Führer!”]. Tudo está<br />

cons<strong>uma</strong>do. “Consummatum est”.<br />

Anos <strong>de</strong>pois, 1947: notícias do doutor<br />

Alfred Döblin, médico berlinense,<br />

que teve consultório aberto na Frankfurter<br />

Allee: 15 anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter saído<br />

da cida<strong>de</strong>, o escritor Döblin voltou<br />

a Berlim, e à sua Alexan<strong>de</strong>rplatz: “Tudo<br />

foi reduzido a silêncio”, escreveu.<br />

O mundo é feito <strong>de</strong> açúcar e esterco!,<br />

já o sabemos.<br />

Mais anotações do senhor Döblin,<br />

agora <strong>de</strong> passagem por <strong>Lisboa</strong> [1940]<br />

a caminho do exílio, em “Viagem ao<br />

Destino” [ASA, 1996]: “<strong>Lisboa</strong> pratica<br />

a espécie mais horrível <strong>de</strong> escarro, o<br />

escarro anatómico. Que começa por<br />

um aclarar da garganta, um expectorar,<br />

um acumular nas partes superiores<br />

da cavida<strong>de</strong> nasal, após o que se<br />

<strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia o trabalho propriamente<br />

dito (…). Há que ter cautela quando<br />

ocorre a <strong>de</strong>scarga propriamente dita.”<br />

A era do vazio<br />

Os dias passam. Os meses. Os anos.<br />

As décadas. A memória <strong>de</strong> <strong>uma</strong> cida-<br />

E lá foram vestidos a preceito, (...) ele <strong>de</strong> botas <strong>de</strong> cano alto<br />

e barbicha mal tratada. ‘Ich bin Fassbin<strong>de</strong>r’. Pôs a coleira <strong>de</strong> bicos,<br />

e lá entrou, <strong>de</strong> botas altas, nu e puxado à trela pela Schygulla rechonchuda<br />

e <strong>de</strong> olhos turcos. E ali se <strong>de</strong>ixou estar toda a noite, com<br />

a pila na mão esquerda e à espera das chapadas da Schygulla<br />

<strong>de</strong> faz-se disso. A dos homens nem<br />

tanto, mas isso é outro assunto.<br />

Os leitores ainda estão preocupados<br />

com o tal Franz Karl Biberkopf?<br />

Estará vivo ou já enterrado,<br />

hã?, suas hienas! Tantas décadas<br />

são passadas sobre a data em<br />

que a Stasi o largou outra vez ao mundo<br />

[como se terá ele <strong>de</strong>senvencilhado<br />

sem dinheiro e sem trabalho?]. Muita<br />

água correu no rio Spree. O mundo<br />

alterou-se, mudou-se. E agora o que<br />

fazemos com ele? O país do Biberkopf<br />

já não existe [DDR, disse mesmo<br />

DDR?]. A União Soviética, i<strong>de</strong>m i<strong>de</strong>m<br />

aspas aspas. O muro sobre o qual o<br />

nosso homem olhava, bem <strong>de</strong> longe,<br />

não fosse alg<strong>uma</strong> bala per<strong>de</strong>r-se, foi<br />

<strong>de</strong>struído. A linha U2 do metro vai <strong>de</strong><br />

Ruhleben a Pankow, sem fronteiras<br />

[parece mentira, ó Franz Karl, hã?, e<br />

há muitas mais!]. Wittenbergplatz,<br />

Kurfürsten.strasse, Gleisdreieck, Potsdamer<br />

Platz, Mohrenstrasse, Stadmitte,<br />

e a continuar pela Alexan<strong>de</strong>rplatz,<br />

Rosa-Luxemburg-Platz, até Pankow<br />

[tu acreditas nisto, ó homem?]. Vais<br />

da Alexan<strong>de</strong>rplatz às compras ao Ka-<br />

DeWe em menos <strong>de</strong> 20 minutinhos,<br />

sem nunca saíres da carruagem, não<br />

é <strong>uma</strong> maravilha?<br />

Descansem, prezados leitores, que<br />

o Franz Karl ainda consta, sendo bem<br />

certo que já não tem ida<strong>de</strong> alg<strong>uma</strong><br />

[nem isso interessa, se não a história<br />

do homem há muito que estava<br />

acabada!] Gente da<br />

laia <strong>de</strong>le consegue pôr-se<br />

sempre <strong>de</strong> pé, firmar-se<br />

nas pernas, não olhar para trás e seguir<br />

em frente. Parece um mandamento.<br />

É verda<strong>de</strong> que andou um bocado<br />

ao Deus dará aí pelos começos<br />

da década <strong>de</strong> 90 [mas não andou sempre,<br />

esse badameco?], mas <strong>de</strong>pois<br />

arribou, as coisas compuseram-se.<br />

Por essa altura, teve que se <strong>de</strong>dicar<br />

ao comércio <strong>de</strong> moças, lançar mão<br />

ao que havia, fiz isso para as ajudar,<br />

coitadas, que me chegavam aqui, vindas<br />

sabe-se lá don<strong>de</strong>, com <strong>uma</strong> mãozinha<br />

à frente e outra atrás, o verniz<br />

a escamar nas unhas, cheias <strong>de</strong> família<br />

para sustentar lá nas estepes russas<br />

e sei lá mais on<strong>de</strong>. Pois sim. Fez algum<br />

dinheiro com o negócio, apesar <strong>de</strong><br />

ter estado pouco tempo no “import/<br />

export”, que a polícia não lhe dava<br />

sossego, e a rapaziada da máfia russa<br />

era muito exigente, e ele não estava<br />

para andar <strong>de</strong>sassossegado, que já<br />

tinha passado por muito [e a <strong>de</strong>cência,<br />

porra, ó Franz Karl?]. Mas afeiçoou-se<br />

a alg<strong>uma</strong>s <strong>de</strong>las, essa é que é<br />

a verda<strong>de</strong>, sou um homem <strong>de</strong> bom<br />

coração, e saíram-lhe da mão bem<br />

tratadinhas, rosadinhas e contentes.<br />

E com dinheirama para mandarem à<br />

famelga, lá para o meio das estepes.<br />

Uns mimos.<br />

Teve morada durante uns anos em<br />

Prenzlauer Berg [durante o tempo em<br />

que teve um teatro <strong>de</strong> robertos na<br />

Sophienstrasse, nem sabia porquê,<br />

veio-lhe aquilo parar às mãos], até<br />

que as famílias bem comportadas lhe<br />

vieram estragar aquele regalo <strong>de</strong> bairro.<br />

Ainda pensei transladar-me para<br />

as ruas à volta da Alexan<strong>de</strong>rplatz, mas<br />

aquilo já não é o que era [olha, nem<br />

tu!]. Foi por essa altura que conheceu<br />

a turca Yasmin, rechonchuda moça<br />

berlinense, e se mudou com ela para<br />

o Kreuzberg, o bairro turco, para o<br />

meio dos artistas, das lojas <strong>de</strong> falafel<br />

e shoarma, <strong>de</strong> roupinha em segunda<br />

mão, e <strong>de</strong> alguns bares mais ou menos<br />

licenciosos [será preciso estar-te sempre<br />

a lembrar da <strong>de</strong>cência, ó Frank<br />

Karl?]. Foi Yasmin quem lhe mostrou<br />

esses lugares que ele nem sabia existirem,<br />

muito diferentes daqueles que<br />

frequentara toda a vida.<br />

Ainda ontem, por exemplo, fez aparição<br />

num <strong>de</strong>sses lugares, o bar “A<br />

Era do Vazio”, frequentado por hedonistas<br />

sado-masoquistas, mas não<br />

só [bem sei que há lá <strong>de</strong> tudo! Não<br />

precisas enumerar!] E lá foram vestidos<br />

a preceito, ela toda coiros e látex,<br />

botas com muitas presilhas e salto <strong>de</strong><br />

agulha transparente, capa preta a<br />

a<strong>de</strong>jar dos ombros, presa com um<br />

lacinho ao redor do pescoço, e pingalim<br />

na mão [e a cabeleira loura para<br />

parecer a Hanna Schygulla, isso<br />

não contas?]. Ele <strong>de</strong> botas <strong>de</strong> cano<br />

alto e barbicha mal tratada. “Ich bin<br />

Fassbin<strong>de</strong>r”, disse Franz Karl ao porteiro.<br />

“Entre, senhor realizador!” Depois<br />

arrumou as roupas num cacifo,<br />

pôs a coleira <strong>de</strong> bicos, e lá entrou, <strong>de</strong><br />

botas altas, nu e puxado à trela pela<br />

Schygulla reconchuda e <strong>de</strong> olhos turcos.<br />

Foi só junto ao balcão que ajeitou<br />

a prótese do braço direito, repuxando<br />

fivelas e correias, e <strong>de</strong> on<strong>de</strong> pendurou<br />

<strong>uma</strong> toalhinha branca <strong>de</strong> bidé, à garçon,<br />

para o que <strong>de</strong>r e vier. E ali se<br />

<strong>de</strong>ixou estar toda a noite [com licença<br />

dos caros leitores, que não estão<br />

aqui para ler ordinarices], com a pila<br />

na mão esquerda e à espera das chapadas<br />

e das chibatadas da Schygulla,<br />

que entretanto lá ia <strong>de</strong>rramando, aqui<br />

e ali, cera <strong>de</strong> velas no peito <strong>de</strong> quem<br />

lhe pedia.<br />

Agora Franz Karl Biberkopf vai retirar-se,<br />

com vossa licença, e ler um<br />

livro que acabou <strong>de</strong> comprar n<strong>uma</strong><br />

livraria da Kurfürstendamm. “Berlim<br />

Alexan<strong>de</strong>rplatz”, <strong>de</strong> um tal Alfred<br />

Döblin, <strong>de</strong> quem ele nunca ouviu falar.<br />

Os jornais <strong>de</strong> 6 <strong>de</strong> Abril <strong>de</strong> 2010.<br />

Terça-feira. “Berliner Kurier”, “B.Z.”,<br />

“Berliner Zeitung”, “Berliner Morgenpost”.<br />

“Homem escon<strong>de</strong> cadáver <strong>de</strong><br />

mulher <strong>de</strong>ntro do frigorífico”. “Os<br />

Ver<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Berlim exigem: perseguir<br />

os que não apanham as fezes caninas”.<br />

“Os berlinenses <strong>de</strong>safiam a Apple”.<br />

“Berlim preocupada com a construção<br />

<strong>de</strong> centrais nucleares polacas”.<br />

“A maior barreira <strong>de</strong> corais do mundo<br />

está ameaçada.” Temperatura máxima:<br />

14º. Previsão meteorológica: céu<br />

pouco nublado. Berlim continua.<br />

Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 13


ENRIC VIVES-RUBIO<br />

Há um livro, “Diários <strong>de</strong> Bicicleta”,<br />

e um disco a meias com Fatboy Slim,<br />

“Here Lies Love“, sobre a vida <strong>de</strong><br />

Imelda Marcos. De David Byrne habituámo-nos<br />

a esperar o inesperado.<br />

Mas <strong>de</strong>sta vez foi longe. Ou não. Porque<br />

se existe algo que <strong>de</strong>fine o músico,<br />

o fotógrafo, o escritor, o realizador<br />

ou o artista é essa capacida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> se abrir ao mundo e partilhar o<br />

seu conhecimento das mais diversas<br />

formas – com perplexida<strong>de</strong> ou ironia,<br />

mas sempre com curiosida<strong>de</strong>.<br />

Em Novembro, Byrne e a companheira,<br />

a artista Cindy Sherman,<br />

estiveram no júri do Estoril Film Festival.<br />

Foi ali que falámos com ele.<br />

Já <strong>de</strong>u o seu passeio matinal <strong>de</strong><br />

bicicleta?<br />

Sim, mas foi um pequeno passeio,<br />

apenas para <strong>de</strong>sentorpecer as pernas.<br />

Dei <strong>uma</strong> gran<strong>de</strong> volta, até Sintra.<br />

Não sou militante da bicicleta.<br />

Não é nada disso. Essencialmente<br />

gosto <strong>de</strong> andar <strong>de</strong> bicicleta porque<br />

é prático e agradável. Mas não tenho<br />

tido muito tempo, entre ver filmes<br />

e dar entrevistas.<br />

A percepção dos lugares<br />

transforma-se circulando <strong>de</strong><br />

bicicleta. Isso agrada-lhe?<br />

Sim. Para coisas mais práticas e quotidianas<br />

é preferível a bicicleta a andar<br />

a pé. Se temos que apanhar um<br />

táxi ou um autocarro a viagem transforma-se<br />

n<strong>uma</strong> outra coisa: per<strong>de</strong> a<br />

dimensão h<strong>uma</strong>na, bairrista. De bicicleta,<br />

parece que nunca saímos do<br />

nosso bairro.<br />

O livro chama-se “Diários <strong>de</strong><br />

Bicicleta”, mas não é sobre<br />

14 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />

“Se temos que<br />

apanhar um táxi<br />

a viagem per<strong>de</strong><br />

a dimensão h<strong>uma</strong>na,<br />

bairrista. De bicicleta,<br />

parece que nunca<br />

saímos do nosso<br />

bairro”<br />

ciclismo. É sobre a forma como<br />

olha para as cida<strong>de</strong>s.<br />

É verda<strong>de</strong>. Mas só tive essa percepção<br />

quando comecei a compilar todos os<br />

textos que tinha reunido. A princípio<br />

era apenas um diário que mantive<br />

durante 15 anos. Quando andava em<br />

digressão, levava sempre <strong>uma</strong> bicicleta<br />

e acabava por explorar as cida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong>ssa forma. O mesmo acontece em<br />

Nova Iorque on<strong>de</strong> utilizo quase diariamente<br />

a bicicleta, mesmo à noite<br />

quando vou a <strong>uma</strong> inauguração ou a<br />

um concerto. Mas o diário foi sendo<br />

actualizado, essencialmente, durante<br />

as viagens. Quando olhei retrospectivamente<br />

para a maior parte dos textos<br />

percebi que o ciclismo lúdico po<strong>de</strong>ria<br />

servir <strong>de</strong> elemento <strong>de</strong> ligação <strong>de</strong>ssas<br />

reflexões sobre as cida<strong>de</strong>s. Alg<strong>uma</strong>s<br />

estão carregadas <strong>de</strong> história. Outras<br />

são lugares imersos em cenas musicais.<br />

Noutras é a arte contemporânea<br />

que é efervescente. Cada cida<strong>de</strong> tem<br />

a sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e comecei a interrogar-me<br />

sobre os seus erros e também<br />

o que as faz funcionar <strong>de</strong> forma sau-<br />

Em comparação com as cida<strong>de</strong>s a<br />

estão mais preparadas p


americanas, as cida<strong>de</strong>s na Europa<br />

para o futuro<br />

dável.<br />

E o que é que faz <strong>uma</strong> cida<strong>de</strong><br />

funcionar?<br />

É <strong>uma</strong> questão difícil... [risos]. Não<br />

creio que exista <strong>uma</strong> resposta. Diria<br />

que em comparação com as cida<strong>de</strong>s<br />

americanas, as cida<strong>de</strong>s na Europa estão<br />

mais preparadas para o futuro.<br />

Têm centros históricos <strong>de</strong>nsos, compactos<br />

do ponto <strong>de</strong> vista populacional.<br />

Urbanisticamente também me<br />

parecem pensadas <strong>de</strong> forma mais dinâmica<br />

e h<strong>uma</strong>na, com bairros on<strong>de</strong><br />

se po<strong>de</strong> circular a pé ou <strong>de</strong> bicicleta.<br />

As cida<strong>de</strong>s são sítios on<strong>de</strong> se trocam<br />

i<strong>de</strong>ias, mas on<strong>de</strong> nos po<strong>de</strong>mos permitir<br />

falhar também. São locais on<strong>de</strong><br />

po<strong>de</strong>mos escolher ser quem somos.<br />

Por exemplo, <strong>uma</strong> cida<strong>de</strong> como Berlim<br />

parece funcionar bem. É daquelas<br />

cida<strong>de</strong>s on<strong>de</strong> as transformações operadas<br />

melhoraram a cida<strong>de</strong>, não a<br />

aviltaram, o que não é muito comum.<br />

É <strong>uma</strong> gran<strong>de</strong> cida<strong>de</strong>, mas possui <strong>uma</strong><br />

escala h<strong>uma</strong>na. É surpreen<strong>de</strong>nte como<br />

funciona muito bem.<br />

Qual é a cida<strong>de</strong> i<strong>de</strong>al para um<br />

ciclista?<br />

Também não existe um mo<strong>de</strong>lo. Se<br />

existirem ciclovias para bicicletas,<br />

isso é excelente. É importante que os<br />

condutores <strong>de</strong> carros saibam interagir<br />

com os ciclistas. Roma, por exemplo,<br />

é <strong>uma</strong> cida<strong>de</strong> caótica em termos <strong>de</strong><br />

circulação automóvel, mas magnífica<br />

para andar <strong>de</strong> bicicleta. Nova Iorque,<br />

nos anos 80 e 90, era completamente<br />

anti-bicicletas. Depois, aos poucos,<br />

o panorama foi mudando.<br />

O clima é importante também. Uma<br />

temperatura constante faz com que<br />

exista mais disponibilida<strong>de</strong> para pe-<br />

dalar. <strong>Lisboa</strong> tem isso.<br />

Mas <strong>Lisboa</strong>, topograficamente, é<br />

<strong>uma</strong> cida<strong>de</strong> difícil.<br />

Não sinto isso, pelo menos no centro,<br />

on<strong>de</strong> parece ser <strong>uma</strong> cida<strong>de</strong> amigável<br />

para quem quer ir para o emprego a<br />

pé ou <strong>de</strong> bicicleta. Talvez a bicicleta<br />

não faça parte, ainda, da rotina das<br />

pessoas, mas tenho dúvidas que o<br />

problema seja o relevo aci<strong>de</strong>ntado. É<br />

antes <strong>uma</strong> questão civilizacional. De<br />

aposta na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida <strong>de</strong> cada<br />

um.<br />

Muitas cida<strong>de</strong>s americanas não têm<br />

altos e baixos pronunciados, mas temos<br />

outros problemas mais graves. É<br />

<strong>uma</strong> socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> auto-estradas, totalmente<br />

pensada para os carros. Os<br />

carros são maravilhosos, mas pareceme<br />

que dominam as cida<strong>de</strong>s há <strong>de</strong>masiado<br />

tempo.<br />

Há quem <strong>de</strong>fenda que a<br />

<strong>de</strong>rrapagem do preço do<br />

petróleo e a crise financeira<br />

global apenas vieram mostrar<br />

que o estilo <strong>de</strong> vida oci<strong>de</strong>ntal<br />

terá que mudar radicalmente.<br />

Revê-se nessas teorias?<br />

Totalmente. E isso vai acontecer mais<br />

rapidamente do que esperamos. Nos<br />

EUA estamos finalmente a discutir<br />

com serieda<strong>de</strong> o problema dos subúrbios,<br />

inteiramente imaginados para<br />

o carro. Temos que nos aproximar<br />

uns dos outros. Os carros e os subúrbios<br />

afastam.<br />

N<strong>uma</strong> das passagens do livro<br />

transcreve um passeio <strong>de</strong><br />

bicicleta por Detroit e o que nos<br />

<strong>de</strong>volve é <strong>de</strong>solador.<br />

Detroit é um exemplo extremo, aquele<br />

<strong>de</strong> que todas as pessoas falam: é<br />

Livros<br />

É na rua que está a<br />

inspiração<br />

Observador da vida contemporânea,<br />

David Byrne revela-nos o seu olhar apaixonado sobre a<br />

vida das cida<strong>de</strong>s no livro “Diários <strong>de</strong> Bicicleta”.<br />

Ao mesmo tempo que lança o álbum “Here Love Lies”,<br />

na companhia <strong>de</strong> Fatboy Slim. Vítor Belanciano<br />

Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 15


JOÃO HENRIQUES<br />

a “cida<strong>de</strong>-fantasma”. Mas neste<br />

momento existem outras cida<strong>de</strong>s bem<br />

mais bizarras. Os subúrbios têm qualquer<br />

coisa <strong>de</strong> mórbido. Em Phoenix<br />

ou em alg<strong>uma</strong>s cida<strong>de</strong>s da Flórida,<br />

on<strong>de</strong> a especulação imobiliária foi<br />

conduzida ao extremo, vemos famílias<br />

inteiras endividadas a regressarem<br />

às cida<strong>de</strong>s. O sonho da casa no<br />

subúrbio, com jardim e carro estacionado<br />

à frente, está a ruir. O centro <strong>de</strong><br />

Detroit, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> 20 anos, po<strong>de</strong>rá<br />

ser <strong>uma</strong> quinta gigante, o que não é<br />

mau <strong>de</strong> todo... [risos]. Mas muitas outras<br />

cida<strong>de</strong>s americanas serão “cida<strong>de</strong>s-fantasmas”<br />

em 20 anos.<br />

A música, a arte e a cultura<br />

em geral estão intimamente<br />

ligadas ao <strong>de</strong>senvolvimento e<br />

dinâmica das cida<strong>de</strong>s. Em Nova<br />

Iorque, nos anos 70, quando os<br />

Talking Heads surgiram, falavase<br />

imenso <strong>de</strong> Manhattan. Agora<br />

parece ser Brooklyn, o bairro<br />

on<strong>de</strong> tudo parece acontecer nas<br />

artes e na música.<br />

Sim. Passo o tempo a assistir a concertos<br />

ou performances em Brooklyn.<br />

Os restaurantes também são óptimos.<br />

Mas a maior parte das galerias estão<br />

a mudar-se para Manhattan, <strong>de</strong> maneira<br />

que vamos recuperar o encanto<br />

perdido outra vez... [risos]. Essas dinâmicas<br />

são interessantes, claro, dinamizam<br />

a vida da cida<strong>de</strong>. Brooklyn<br />

já está a ficar caro, por isso, muito<br />

rapidamente outro local nascerá para<br />

albergar artistas, músicos e boémios.<br />

Não é nenhum drama. É um processo<br />

normal.<br />

As cida<strong>de</strong>s são mais<br />

reconhecidas por essas<br />

16 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />

“É na rua que está<br />

a inspiração.<br />

Olhar para as<br />

pessoas, os gestos,<br />

o que dizem, tentar<br />

percebê-las”<br />

“cenas”, que irrompem com<br />

espontaneida<strong>de</strong>, do que pela<br />

cultura mais institucionalizada,<br />

não lhe parece?<br />

Absolutamente. Não é pelo facto <strong>de</strong><br />

<strong>uma</strong> cida<strong>de</strong> ter <strong>uma</strong> Ópera, <strong>uma</strong> orquestra<br />

sinfónica ou <strong>uma</strong> série <strong>de</strong><br />

monumentos que nos vamos lembrar<br />

<strong>de</strong>la. Mas se tiver <strong>uma</strong> “cena” artística<br />

vibrante e <strong>uma</strong> vida cultural que<br />

estimule, isso fará a diferença. Não só<br />

para as pessoas que vivem nesse local,<br />

como para quem vem <strong>de</strong> fora. Não<br />

basta construir apartamentos e estradas.<br />

É preciso criar estímulos criativos.<br />

E nisso a cultura é fundamental.<br />

É necessário que as cida<strong>de</strong>s sejam locais<br />

on<strong>de</strong> apetece viver, on<strong>de</strong> nos sintamos<br />

inspirados, on<strong>de</strong> tenhamos a<br />

experiência <strong>de</strong> criar, sejamos artistas<br />

ou homens <strong>de</strong> negócios.<br />

Quando chega a <strong>uma</strong> cida<strong>de</strong> tem<br />

objectivos, <strong>uma</strong> lista <strong>de</strong> coisas do<br />

que quer fazer e dos locais que<br />

<strong>de</strong>seja visitar, ou <strong>de</strong>ixa-se ir?<br />

Gosto <strong>de</strong> me per<strong>de</strong>r, mas não muito...<br />

[risos]. Gosto da vida orgânica, no<br />

sentido em que privilegio os cafés, as<br />

pequenas lojas e os mercados. É a<br />

partir daí que apreendo um pouco da<br />

pulsação da cida<strong>de</strong>, falando com as<br />

pessoas. É na rua que está a inspiração.<br />

Olhar para as pessoas, os gestos,<br />

o que dizem, tentar percebê-las.<br />

No livro, diz que <strong>uma</strong> das<br />

suas cida<strong>de</strong>s preferidas é<br />

Nova Orleães. Outra é Nova<br />

Iorque. Duas metrópoles que<br />

passaram, nos últimos anos, por<br />

acontecimentos tra<strong>uma</strong>tizantes.<br />

Já superaram?<br />

Não arrisco <strong>uma</strong> resposta <strong>de</strong>finitiva,<br />

mas diria que o facto <strong>de</strong> serem cida<strong>de</strong>s<br />

com <strong>uma</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> bem <strong>de</strong>finida,<br />

ajudou-as a superar as dificulda<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> forma mais rápida. A maior<br />

parte das cida<strong>de</strong>s americanas são imitações<br />

<strong>uma</strong>s das outras. Essas duas<br />

não. Portland e São Francisco também<br />

possuem i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Há um temperamento<br />

nas pessoas e nos lugares<br />

muito forte. Há <strong>uma</strong> estrutura. Qualquer<br />

coisa que lhes permite reerguer,<br />

mesmo nos momentos mais complicados.<br />

E são também cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> música.<br />

Fala com alg<strong>uma</strong> veneração<br />

da Europa. Nasceu na Escócia,<br />

mas cresceu nos EUA. Sente-se<br />

europeu?<br />

Não sei. Gosto dos EUA, mas também<br />

gosto <strong>de</strong> manter distância. Às vezes<br />

sinto-me um pouco estrangeiro. N<strong>uma</strong><br />

série <strong>de</strong> áreas – transportes, saú<strong>de</strong>,<br />

cultura, urbanismo – os europeus<br />

tomaram <strong>uma</strong> série <strong>de</strong> medidas que<br />

gostava que os americanos seguissem.<br />

Os europeus são mais maduros, nes-<br />

se sentido.<br />

Falando agora <strong>de</strong> música.<br />

Alg<strong>uma</strong>s das bandas mais<br />

relevantes dos últimos anos,<br />

como Arca<strong>de</strong> Fire, Dirty<br />

Projectors ou Vampire Weekend,<br />

citam os Talking Heads como<br />

gran<strong>de</strong> influência. Como reage a<br />

essa veneração?<br />

É surpreen<strong>de</strong>nte. Durante muitos<br />

anos, talvez parte da década <strong>de</strong> 90 e<br />

princípio dos anos 00, ninguém ligou<br />

muito aos Talking Heads. Enfim, estas<br />

coisas nem sempre têm <strong>uma</strong> lógica<br />

precisa, mas pensei que a termos alg<strong>uma</strong><br />

influência sobre o futuro da<br />

música popular isso já teria acontecido.<br />

Acontecer agora é lisonjeador,<br />

mas também muito inesperado.<br />

O facto <strong>de</strong> terem criado <strong>uma</strong><br />

música simultaneamente<br />

meditativa e física, que ia<br />

recolher referências às mais<br />

diversas partes do mundo, terá<br />

algo a ver com isso?<br />

Talvez. Não sei muito bem. O problema<br />

é quando essas vagas <strong>de</strong> inspiração<br />

apenas se alimentam da nostalgia.<br />

Não tenho paciência para isso. No caso<br />

dos grupos que mencionou não é<br />

isso que se passa, são dos grupos que<br />

sigo com atenção. Mas neles os<br />

Talking Heads são apenas <strong>uma</strong> influência<br />

no meio <strong>de</strong> outras.<br />

Imagino que já tenham sido<br />

aliciados para um regresso?<br />

Sim, mas é algo que não me interessa.<br />

Os meus discos não ven<strong>de</strong>m tanto<br />

como os dos Talking Heads, mas não<br />

é por aí. Criativamente estou noutro<br />

ponto e é isso que me interessa.<br />

Acabou um projecto com Fatboy<br />

Não é por <strong>uma</strong> cida<strong>de</strong> ter <strong>uma</strong><br />

Ópera que nos vamos lembrar <strong>de</strong>la<br />

Slim sobre a vida <strong>de</strong> Imelda<br />

Marcos. Como é que se foi meter<br />

nisso?<br />

Diz bem... [risos]. É um projecto meio<br />

louco, que <strong>de</strong>morou muito mais do<br />

que o previsto, <strong>uma</strong> espécie <strong>de</strong> “disco-ópera”<br />

com mais <strong>de</strong> vinte convidados,<br />

como St. Vincent, Róisin Murphy,<br />

Sharon Jones, Tori Amos, Santigold<br />

ou Natalie Merchant.<br />

Qual foi o critério na escolha <strong>de</strong><br />

todas essas cantoras?<br />

Alg<strong>uma</strong>s são simplesmente amigas,<br />

as outras eram cantoras <strong>de</strong> que gostava<br />

e que encaixavam em <strong>de</strong>terminadas<br />

canções.<br />

Essencialmente é um disco <strong>de</strong> música<br />

<strong>de</strong> dança, com alg<strong>uma</strong> exuberância<br />

pelo meio. É um disco emocional<br />

e dramático, como a própria Imelda<br />

Marcos... [risos]. É possível que venha<br />

a ser apresentado um musical em Nova<br />

Iorque, n<strong>uma</strong> pequena sala, mas<br />

ainda não é certo.<br />

Digamos que Fatboy Slim não é<br />

propriamente Brian Eno...<br />

Muita gente diz o mesmo. Mas isso<br />

também é interessante. O método <strong>de</strong><br />

trabalho não foi muito diferente daquele<br />

que utilizaria com Brian Eno.<br />

No fim <strong>de</strong> contas, trata-se <strong>de</strong> trocar<br />

ficheiros musicais durante meses, recorrendo<br />

a “samples” e “loops”, até<br />

criarmos <strong>uma</strong> canção. O que importa<br />

é a i<strong>de</strong>ia que se quer transmitir e em<br />

função <strong>de</strong>la escolhem-se os sons e as<br />

vozes e, nesse processo <strong>de</strong> negociação,<br />

foi óptimo trabalhar com alguém<br />

como Fatboy Slim.<br />

Ver crítica <strong>de</strong> livros págs. 46 e segs. e<br />

crítica <strong>de</strong> discos págs. 53 e segs


No 12º aniversário do 28 <strong>de</strong> Maio, em<br />

1938, Carneiro Pacheco, o ministro da<br />

Educação Nacional <strong>de</strong> Salazar, organizou<br />

em <strong>Lisboa</strong> um <strong>de</strong>sfile da recémcriada<br />

Mocida<strong>de</strong> Portuguesa. Como<br />

mandavam as regras, enviou um convite<br />

ao Car<strong>de</strong>al Patriarca <strong>de</strong> então,<br />

Manuel Gonçalves Cerejeira. Dificilmente<br />

a carta que recebeu na volta<br />

do correio podia ser mais violenta.<br />

O chefe da Igreja <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>, e figura<br />

maior da Igreja portuguesa, não só<br />

lhe comunicou que não estaria presente,<br />

como o verberou por ter convidado<br />

para a cerimónia <strong>uma</strong> <strong>de</strong>legação<br />

da Juventu<strong>de</strong> Hitleriana. Isso,<br />

escreveu Cerejeira, era “não só ofensivo<br />

e perigoso para a consciência<br />

católica portuguesa, mas também<br />

pouco digno da altivez nacional, sabido<br />

o inferior conceito que os alemães<br />

têm <strong>de</strong> nós, filhos (segundo eles)<br />

d<strong>uma</strong> raça inferior e negrói<strong>de</strong>”.<br />

Em 1938, n<strong>uma</strong> altura em que o regime<br />

vivia <strong>uma</strong> fase dourada e, aqui<br />

ao lado, em Espanha, os alemães ainda<br />

combatiam ao lado das tropas <strong>de</strong><br />

Franco contra a República, poucos<br />

portugueses teriam condições e coragem<br />

para escrever <strong>uma</strong> carta daquelas,<br />

e nenhum outro o po<strong>de</strong>ria<br />

fazer sem correr o risco <strong>de</strong> ser preso.<br />

Mas Cerejeira era <strong>uma</strong> excepção. Não<br />

era apenas o “príncipe da Igreja portuguesa”,<br />

era também o velho companheiro<br />

<strong>de</strong> Salazar, o amigo que conhecera<br />

em Coimbra no já longínquo<br />

Livros<br />

18 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />

ano <strong>de</strong> 1911, ambos atraídos pela militância<br />

católica.<br />

Primeiro como estudantes, <strong>de</strong>pois<br />

como professores, ambos vivendo, a<br />

partir <strong>de</strong> 1914, no Convento dos Grilos,<br />

Salazar e Cerejeira eram mais do<br />

que amigos e cúmplices: um no Estado,<br />

outro da Igreja, haviam conseguido<br />

tornar-se nas suas figuras dominantes.<br />

O que estava a acontecer em<br />

1938, nove anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Cerejeira<br />

se ter tornado Car<strong>de</strong>al Patriarca e seis<br />

após Salazar se ter tornado, por fim,<br />

presi<strong>de</strong>nte do Conselho <strong>de</strong> Ministros,<br />

entre aqueles dois homens que tudo<br />

parecia unir?<br />

“O choque entre Cerejeira e Carneiro<br />

Pacheco a propósito da criação da<br />

Mocida<strong>de</strong> Portuguesa correspon<strong>de</strong>u<br />

à maior crise que o Car<strong>de</strong>al teve com<br />

o Estado Novo”, consi<strong>de</strong>ra Irene Flunser<br />

Pimentel, autora da biografia “Car<strong>de</strong>al<br />

Cerejeira – O Príncipe da Igreja”.<br />

Nada lhe agradava nesse projecto,<br />

pois “via no movimento algo <strong>de</strong> muito<br />

parecido com o nazismo” e combateu<br />

ferozmente a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong>, para a<br />

constituir, se dissolver o escutismo<br />

católico. Mas o que o incomodou mesmo<br />

foi essa vinda a Portugal <strong>de</strong> elementos<br />

da Juventu<strong>de</strong> Hitleriana. Na<br />

época a Mocida<strong>de</strong> Portuguesa era dirigida<br />

por Nobre Gue<strong>de</strong>s, um germanófilo<br />

que <strong>de</strong>pois ocuparia o lugar <strong>de</strong><br />

embaixador em Berlim, pois Marcello<br />

Caetano, anglófilo, só lhe suce<strong>de</strong>ria<br />

em 1940. E, sobre o regime nazi, Ce-<br />

rejeira nunca teve dúvidas: tratava-se<br />

<strong>de</strong> um totalitarismo pagão quase ao<br />

nível do totalitarismo comunista. De<br />

resto, nesse mesmo ano <strong>de</strong> 1938 faria<br />

um discurso ao clero do Patriarcado<br />

on<strong>de</strong> con<strong>de</strong>nou o totalitarismo por<br />

querer absorver “toda a activida<strong>de</strong><br />

do indivíduo” e se referiu, em particular,<br />

ao nazismo, acusando-o <strong>de</strong> reclamar<br />

para si próprio a condição <strong>de</strong><br />

divino e <strong>de</strong> preten<strong>de</strong>r substituir a<br />

“concepção cristã pela ‘Weltanschauung<br />

racista’”.<br />

“A forma como <strong>de</strong>fine o totalitarismo<br />

é <strong>uma</strong> forma mo<strong>de</strong>rna”, diz-nos<br />

Irene Pimentel. “Tão mo<strong>de</strong>rna que<br />

cheguei a pensar referir no livro as<br />

suas semelhanças com os escritos <strong>de</strong><br />

Hanna Arendt dos anos 50. Só que<br />

aquilo foi feito em 1938”.<br />

A difícil Concordata <strong>de</strong> 1940<br />

Mas se a crise <strong>de</strong> 1938 – que coinci<strong>de</strong><br />

também com momentos difíceis na<br />

negociação da Concordata entre o Estado<br />

português e o Vaticano, que só<br />

seria aprovada em 1940 – terá sido<br />

<strong>uma</strong> das mais agudas na relação entre<br />

Cerejeira e o Estado Novo, não foi a<br />

única e revela um Car<strong>de</strong>al bem diferente<br />

do que a historiadora imaginara<br />

antes <strong>de</strong> iniciar a sua investigação.<br />

“Eu tinha <strong>uma</strong> imagem mais simplista,<br />

a preto e branco, pensava que<br />

a Igreja tinha servido o regime e que<br />

o regime se tinha servido <strong>de</strong>la, ponto”,<br />

conta-nos. “Pensava que Salazar<br />

era unha e carne com Cerejeira <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

Coimbra, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o tempo em tinham<br />

vivido no Convento dos Grilos, e não<br />

imaginava que tivessem tido divergências”.<br />

Mas tiveram. Não só por serem diferentes<br />

– a Cerejeira nem enquanto<br />

novo se conhece inclinação para um<br />

namorico, a Salazar conhecem-se alg<strong>uma</strong>s<br />

relações com mulheres, se<br />

bem que menos vivazes do que hoje<br />

se quer fazer crer; Cerejeira viajou<br />

pelo mundo e gostava <strong>de</strong> andar <strong>de</strong><br />

avião (foi o primeiro Car<strong>de</strong>al a utilizar<br />

esse meio <strong>de</strong> transporte para ir a Roma<br />

participar num conclave para<br />

eleger o Papa), Salazar só se <strong>de</strong>slocou<br />

a Espanha e <strong>uma</strong> só viagem <strong>de</strong> avião<br />

levou-o a não querer repetir a experiência<br />

–, mas por prosseguirem agendas<br />

diferentes.<br />

“Cerejeira <strong>de</strong>fendia, antes do mais,<br />

a sua Igreja, e <strong>de</strong>fendia o regime na<br />

medida em que consi<strong>de</strong>rava que o<br />

Estado Novo a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ria melhor,<br />

sobretudo <strong>de</strong>pois do que se passara<br />

no período republicano”, explica a<br />

autora. “Um bom exemplo disso foram<br />

as dificulda<strong>de</strong>s na negociação da<br />

Concordata.”<br />

Na verda<strong>de</strong>, apesar da i<strong>de</strong>ia feita<br />

<strong>de</strong> que a Concordata <strong>de</strong> 1940 representou<br />

<strong>uma</strong> rendição do Estado português<br />

perante a Santa Sé, Salazar<br />

esteve longe <strong>de</strong> ser generoso. Tanto<br />

na substância dos princípios como<br />

na prática dos benefícios. A Concor-<br />

Quando Irene Pimentel começou a estudar a vida do Car<strong>de</strong>al Cerejeira tinha <strong>de</strong>le<br />

<strong>uma</strong> i<strong>de</strong>ia pré-concebida: <strong>uma</strong> alma gémea <strong>de</strong> Salazar e a outra face <strong>de</strong> <strong>uma</strong> moeda<br />

em que Estado Novo e Igreja Católica formavam um todo. Mas <strong>de</strong>scobriu um<br />

homem mais complexo, mais dividido. E que teve <strong>uma</strong> relação muitas vezes tensa<br />

com o seu amigo <strong>de</strong> Coimbra. José Manuel Fernan<strong>de</strong>s<br />

data acertou o contencioso relativo<br />

aos bens da Igreja que tinham sido<br />

expropriados pelo Liberalismo e pela<br />

República, mas o presi<strong>de</strong>nte do<br />

Conselho que construíra o seu mito<br />

em torno do rigor nas contas públicas<br />

ficou muito aquém do que lhe pediam.<br />

Da mesma forma a Concordata<br />

não colocava o Estado a pagar os salários<br />

aos membros do clero, como<br />

sucedia – e ainda suce<strong>de</strong> – noutros<br />

estados europeus, ficando o Clero,<br />

como notaria o influente filósofo católico<br />

Jacques Maritain, con<strong>de</strong>nado<br />

a “<strong>uma</strong> gloriosa pobreza”. Por fim,<br />

Salazar não ce<strong>de</strong>u à exigência da Igreja<br />

<strong>de</strong> que fosse possível realizar casamentos<br />

religiosos sem efeitos civis,<br />

mas admitiu a indissolubilida<strong>de</strong> dos<br />

matrimónios católicos.<br />

“Também houve muita discussão<br />

sobre o divórcio, nomeadamente sobre<br />

este ser possível nos casamentos<br />

não religiosos, mas ainda hoje não<br />

conhecemos todos os documentos<br />

para fazer <strong>uma</strong> avaliação final”, acrescenta<br />

a historiadora.<br />

Mesmo assim, <strong>de</strong>vido à convergência<br />

<strong>de</strong> interesses entre <strong>Lisboa</strong> e o Vaticano<br />

no que toca à acção missionária<br />

nas colónias portuguesas, foi assinado<br />

ao mesmo tempo um Acordo<br />

Missionário que serviu bem os interesses<br />

das partes.<br />

O essencial, nota Irene Pimentel, é<br />

que tanto Salazar como Cerejeira<br />

acreditavam “na separa-<br />

O Car<strong>de</strong>al<br />

um casamento<br />

DR<br />

Cerejeira<br />

<strong>de</strong>fendia o<br />

regime na<br />

medida em<br />

que<br />

consi<strong>de</strong>rava<br />

que o Estado<br />

Novo<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ria<br />

melhor a sua<br />

Igreja,<br />

sobretudo<br />

<strong>de</strong>pois do que<br />

se passara no<br />

período<br />

republicano


ção Igreja-Estado”, que o último consi<strong>de</strong>rava<br />

mesmo a “trave-mestra” da<br />

civilização europeia. De resto, esta<br />

i<strong>de</strong>ia da separação era recorrente em<br />

Cerejeira, que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> novo proferia<br />

conferências e escrevera ensaios sobre<br />

o tema. O que nem é estranho, se<br />

consi<strong>de</strong>rarmos que, para os católicos<br />

que enfrentaram o jacobinismo republicano,<br />

a Lei da Separação <strong>de</strong> Afonso<br />

Costa representava não <strong>uma</strong> real separação,<br />

mas <strong>uma</strong> espécie <strong>de</strong> nacionalização<br />

da Igreja, cujas organizações<br />

locais eram apropriadas pelos<br />

militantes republicanos. A investigação<br />

mais recente tem mostrado que<br />

a forma escolhida pela Igreja para resistir<br />

a Afonso Costa se traduziu, na<br />

prática, pela real separação entre as<br />

órbitas temporais e espirituais, <strong>uma</strong><br />

vez que se a Igreja <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> beneficiar<br />

<strong>de</strong> quaisquer privilégios, também<br />

recusou a tutela estatal.<br />

As <strong>de</strong>sconfi anças <strong>de</strong> Salazar<br />

Irene Pimentel situa o momento <strong>de</strong><br />

viragem nas relações entre Cerejeira<br />

e Salazar em 1932, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> este<br />

ter chegado a presi<strong>de</strong>nte do Conselho<br />

após muitos anos a trabalhar,<br />

como ministro das Finanças, à or<strong>de</strong>m<br />

<strong>de</strong> sucessivos chefes <strong>de</strong><br />

Governo oriundos do republicanismo<br />

conservador. No<br />

momento da consagração <strong>de</strong><br />

Salazar o velho amigo <strong>de</strong> Coimbra<br />

quis lembrar que ele “era o enviado<br />

“Eu pensava que a<br />

Igreja tinha servido o<br />

regime e que o regime<br />

se tinha servido <strong>de</strong>la,<br />

ponto. Pensava que<br />

Salazar era unha<br />

e carne com Cerejeira,<br />

não imaginava<br />

que tivessem tido<br />

divergências”<br />

Irene Pimentel<br />

<strong>de</strong> Deus” e que chegara on<strong>de</strong> chegara<br />

“graças ao apoio da Igreja Católica”.<br />

O professor <strong>de</strong> Santa Comba reagiu<br />

<strong>de</strong> forma seca, afirmando que estava<br />

on<strong>de</strong> estava “por nomeação do Presi<strong>de</strong>nte<br />

da República”.<br />

“O que em 1932 Salazar diz a Cerejeira<br />

é que quem manda no Estado é<br />

ele, e quem manda na Igreja é o Car<strong>de</strong>al,<br />

mas que a partir <strong>de</strong>sse momento<br />

os seus caminhos se separavam”,<br />

sublinha Pimentel. “É certo que a<br />

principal fonte pela qual conhecemos<br />

este momento <strong>de</strong> tensão é [a biografia<br />

<strong>de</strong> Salazar escrita por] Franco Nogueira,<br />

mas trata-se <strong>de</strong> <strong>uma</strong> fonte credível.<br />

Para além <strong>de</strong> que este relato é coerente<br />

com o que se passou <strong>de</strong>pois entre<br />

a Igreja e o regime”.<br />

Na verda<strong>de</strong> Salazar – que Irene Pimentel<br />

suspeita ter-se afastado do catolicismo<br />

no final da vida, tal como<br />

terá sucedido com Marcello Caetano<br />

– nunca subordina a sua agenda política<br />

aos <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> Cerejeira. Talvez o<br />

exemplo mais eloquente da falta <strong>de</strong><br />

colaboração do Estado Novo num projecto<br />

que o Car<strong>de</strong>al Patriarca alimentava<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre tenha sido a <strong>de</strong>mora<br />

na criação da Universida<strong>de</strong> Católica.<br />

O bispo <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong> formulou esse <strong>de</strong>sejo<br />

ainda nos anos 20, nunca <strong>de</strong>ixou<br />

<strong>de</strong> se bater pela concretização <strong>de</strong>sse<br />

sonho <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que ascen<strong>de</strong>u a Car<strong>de</strong>al,<br />

mas só o veria concretizado no ocaso<br />

da vida, no final dos anos 60.<br />

Para o prelado a criação da Univer-<br />

sida<strong>de</strong> foi sempre peça central na sua<br />

visão sobre <strong>uma</strong> <strong>de</strong>sejada recristianização<br />

da socieda<strong>de</strong> portuguesa,<br />

que nunca dissociou da existência <strong>de</strong><br />

<strong>uma</strong> elite católica culta e influente.<br />

A construção do Seminário dos Olivais,<br />

em que se empenhou a fundo,<br />

era outra das pedras sobre as quais<br />

queria reerguer <strong>uma</strong> Igreja <strong>de</strong> novo<br />

po<strong>de</strong>rosa.<br />

Ora, Salazar sempre <strong>de</strong>sconfiou do<br />

projecto universitário <strong>de</strong> Cerejeira,<br />

e este sempre teve <strong>de</strong> explicar que<br />

não pretendia entrar em concorrência<br />

com a Universida<strong>de</strong> pública. Mais:<br />

o arranque das faculda<strong>de</strong>s que não<br />

se <strong>de</strong>dicavam à Teologia e à Filosofia<br />

– como a <strong>de</strong> Economia – só acabaria<br />

por ocorrer <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> entregar a D.<br />

António Ribeiro o seu lugar como<br />

Car<strong>de</strong>al Patriarca.<br />

“Para Cerejeira a abertura dos primeiros<br />

núcleos da Universida<strong>de</strong> terá<br />

mesmo constituído <strong>uma</strong> das poucas<br />

coisas boas do seu final <strong>de</strong> mandato”,<br />

concretiza Irene Pimentel. “Abriu em<br />

1968, um dos anos em que mais <strong>de</strong>sgostos<br />

teve ao sentir que tudo corria<br />

mal à sua volta na Igreja portuguesa,<br />

sobretudo ao sentir que já não tinha<br />

mão na sua evolução”.<br />

Face à Pi<strong>de</strong> e aos católicos<br />

progressistas<br />

Manuel Cerejeira, apesar do seu brilho<br />

como Académico e até da mo<strong>de</strong>r-<br />

nida<strong>de</strong> <strong>de</strong> muitas das suas opiniões e<br />

tomadas <strong>de</strong> posição – a ele se <strong>de</strong>ve a<br />

consagração dos artistas mo<strong>de</strong>rnistas<br />

como edificadores <strong>de</strong> Igrejas, patronato<br />

que muitos problemas lhe criou<br />

aquando da construção, ainda na década<br />

<strong>de</strong> 30, da Igreja <strong>de</strong> Nossa Senhora<br />

<strong>de</strong> Fátima, em <strong>Lisboa</strong> –, era um<br />

homem do seu tempo. E isto quer dizer<br />

que era um católico fortemente<br />

marcado pelas experiências traumáticas<br />

da I República e da emergência<br />

do comunismo na Rússia. Por isso era<br />

não só anticomunista como tinha com<br />

a Maçonaria <strong>uma</strong> relação obsessiva.<br />

Curiosamente ao contrário do que<br />

suce<strong>de</strong>u com Salazar, <strong>de</strong> quem quase<br />

não se encontram frases contra a Maçonaria.<br />

Irene Pimentel consi<strong>de</strong>ra que isso<br />

talvez se <strong>de</strong>va ao facto <strong>de</strong>, “enquanto<br />

Cerejeira era <strong>de</strong> <strong>uma</strong> linha anti-maçónica,<br />

católica, integrista, Salazar,<br />

como político, teve <strong>de</strong> lidar com vários<br />

amigos influentes, como Bissaya<br />

Barreto, que eram maçons e que ele<br />

queria que entrassem, como entraram,<br />

para a União Nacional”.<br />

Em contrapartida, tal não significou<br />

que o Car<strong>de</strong>al apoiasse incondicionalmente<br />

a política <strong>de</strong> repressão do regime.<br />

É certo que enquanto a Pi<strong>de</strong><br />

perseguia os comunistas, Cerejeira<br />

quase compreendia, mas foram numerosas<br />

as situações em que pediu<br />

explicações ou interce<strong>de</strong>u pela sorte<br />

<strong>de</strong> presos políticos. Em 1958, <strong>de</strong>-<br />

e o Estado Novo:<br />

difícil<br />

DR


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apresentarem este anúncio na bilheteira do Cinema São Jorge,<br />

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20 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />

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Apesar do seu<br />

brilho como<br />

Académico e<br />

até da<br />

mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> muitas das<br />

suas opiniões,<br />

era um homem<br />

do seu tempo:<br />

um católico<br />

marcado pelas<br />

experiências<br />

traumáticas<br />

da I República<br />

e da<br />

emergência<br />

do comunismo<br />

na Rússia<br />

DANIEL ROCHA<br />

DR<br />

pois <strong>de</strong> ter sido alertado para um<br />

caso <strong>de</strong> “suicídio” na se<strong>de</strong> da polícia<br />

política – a mulher do embaixador do<br />

Brasil viu um preso a cair <strong>de</strong> <strong>uma</strong> janela<br />

– pediu explicações ao director<br />

da Pi<strong>de</strong> e, <strong>de</strong>pois, em carta ao ministro<br />

do Interior Trigo <strong>de</strong> Negreiros,<br />

escreveu que só esperava que não se<br />

fizessem coisas que fossem contra os<br />

“princípios cristãos”.<br />

Isso é, no entanto, muito pouco para<br />

conseguir controlar <strong>uma</strong> Igreja<br />

que, a partir dos anos 50, vê nascer<br />

nas organizações que o próprio Car<strong>de</strong>al<br />

apadrinhara um catolicismo progressista<br />

que esta con<strong>de</strong>nava. Isso<br />

suce<strong>de</strong>rá nas juventu<strong>de</strong>s católicas –<br />

on<strong>de</strong> é notável o progressivo afastamento<br />

<strong>de</strong> João Benard da Costa, alguém<br />

em quem muito apostara –, no<br />

“seu” Seminário dos Olivais, on<strong>de</strong><br />

acaba por substituir o director mas<br />

on<strong>de</strong> não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ter longas discussões<br />

com figuras como Luis Moita, à<br />

altura ainda sacerdote, ou mesmo na<br />

paróquia <strong>de</strong> Belém on<strong>de</strong> entra em<br />

choque com o padre Felicida<strong>de</strong> Alves,<br />

um intelectual que ele próprio promovera<br />

e estimava.<br />

Mas se ainda hoje alguns dos que o<br />

conheceram e, <strong>de</strong>pois, saíram da Igreja<br />

lhe reconhecem algum valor – “é<br />

curioso falar hoje com muitos católicos<br />

<strong>de</strong> esquerda <strong>de</strong> então, mesmo<br />

com alguns que chegaram a ser padres,<br />

e verificar que eles não são muito<br />

críticos <strong>de</strong> Cerejeira, antes têm<br />

<strong>de</strong>le <strong>uma</strong> visão mais matizada”, adianta<br />

Irene Pimentel –, noutros casos as<br />

feridas abertas sangraram abundantemente.<br />

Talvez o caso mais evi<strong>de</strong>nte<br />

tivesse sido o do Bispo do Porto. D.<br />

António Ferreira Gomes, que nunca<br />

perdoou a Cerejeira a sua ambiguida<strong>de</strong><br />

quando entrou em conflito com<br />

“A forma como<br />

[Cerejeira] <strong>de</strong>fine<br />

o totalitarismo é <strong>uma</strong><br />

forma mo<strong>de</strong>rna.<br />

Tão mo<strong>de</strong>rna<br />

que cheguei a pensar<br />

referir no livro<br />

as suas semelhanças<br />

com os escritos<br />

<strong>de</strong> Hanna Arendt dos<br />

anos 50. Só que<br />

aquilo foi feito<br />

em 1938”<br />

Irene Pimentel<br />

Salazar. Mais tar<strong>de</strong> viria mesmo a<br />

acusá-lo <strong>de</strong> cumplicida<strong>de</strong>s com o regime<br />

que, segundo a historiadora, o<br />

Car<strong>de</strong>al <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong> nunca teve.<br />

“O Bispo do Porto refere-se-lhe,<br />

<strong>de</strong>pois da crise, <strong>de</strong> <strong>uma</strong> forma quase<br />

insolente, provocatória, e nem sequer<br />

é rigorosa. Não é verda<strong>de</strong>, por exemplo,<br />

que a Pi<strong>de</strong> fosse todos os dias ao<br />

Paço <strong>de</strong> Santana, on<strong>de</strong> era o Patriarcado,<br />

para recolher informações. Cerejeira<br />

não só ficou muito magoado<br />

com essas acusações como lhe respon<strong>de</strong>u,<br />

sublinhado que nunca fazia<br />

perguntas ao po<strong>de</strong>r político, e muito<br />

menos à Pi<strong>de</strong>, sobre a Igreja e as pessoas<br />

da Igreja. O que é verda<strong>de</strong>”.<br />

A sua relação com o regime era<br />

mais complexa, e por isso<br />

mais difícil. “Ele foi sempre muito<br />

pru<strong>de</strong>nte – excessivamente pru<strong>de</strong>nte<br />

– e nunca atravessou o Rubicão ao<br />

ponto <strong>de</strong> se colocar n<strong>uma</strong> situação <strong>de</strong><br />

confronto com o regime”, explica a<br />

autora. Porquê? Porque, no fundo,<br />

acreditava que, <strong>de</strong>pois da República,<br />

o Estado Novo servia, em última análise,<br />

e apesar das fricções, os interesses<br />

da “sua” Igreja.<br />

E os interesses da “sua” Igreja sempre<br />

se sobrepuseram a tudo o mais<br />

na sua longa e influente vida.<br />

Ver crítica <strong>de</strong> livros págs. 46 e segs.


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“Até que aconteceu o inesperado. E<br />

tudo isto <strong>de</strong>u <strong>uma</strong> volta. Em meio minuto,<br />

a minha vida mudou. Exactamente.<br />

Certo dia, no Hotel Praia-Mar.<br />

Em Carcavelos.” António Santos a escrever<br />

no conforto da sua casa, em<br />

<strong>Lisboa</strong>. A espreitar o rio ao fundo, da<br />

janela. Concentrado, quieto, a luz coada<br />

do can<strong>de</strong>eiro iluminando as folhas<br />

do ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> capa dura.<br />

“(...)Apesar da barulheira, ainda assim<br />

ouvi bem o toque do telefone colocado<br />

lá <strong>de</strong>ntro, daquela espécie <strong>de</strong><br />

mesa <strong>de</strong> apoio à cama. Já não era sem<br />

tempo. Devia ser do room service a<br />

confirmarem as tostas <strong>de</strong> rosbife.<br />

Porta aberta, água escorrendo-me<br />

pela cabeça, gritei-lhe: ‘Ana atenda<br />

aí, por favor (...)’”<br />

É o quarto livro <strong>de</strong>ste ex-jornalista:<br />

“Deixei-te o Sorriso em Casa” (Oficina<br />

do Livro). “Há <strong>uma</strong> espécie <strong>de</strong> resmungo<br />

contra os jornalistas que escrevem<br />

livros. Mas os jornalistas têm<br />

todas as armas e técnicas para o fazer”,<br />

diz.<br />

É “sobre a vida” que escreve. Que<br />

no romance mudou em meio minuto<br />

e que, na realida<strong>de</strong>, também já mudou,<br />

muitas vezes, para ele.<br />

António Santos, 64 anos, natural<br />

<strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>. Apresentou a Informação<br />

2 e o Jornal das Nove, noticiários <strong>de</strong><br />

referência do segundo canal da RTP.<br />

Criou e apresentou o Jornalinho, premiado<br />

telejornal para crianças. E na<br />

Rádio Comercial, o programa “As Noites<br />

Longas do FM Estéreo”, “histórias<br />

com disco ao meio”.<br />

Vinte e um anos <strong>de</strong> jornalismo passados,<br />

aceita o convite do ex-primeiro<br />

ministro António Guterres para dirigir<br />

o seu gabinete <strong>de</strong> imprensa. E ali permanece<br />

durante sete anos, a conhecer<br />

“o po<strong>de</strong>r por <strong>de</strong>ntro”.<br />

Quando Guterres se <strong>de</strong>mite, Santos<br />

não regressa ao jornalismo, por <strong>uma</strong><br />

questão <strong>de</strong> princípio. Resolve <strong>de</strong>dicarse<br />

a fundo ao que sempre o moveu: a<br />

escrita. “Tinha já muita coisa na gaveta”,<br />

conta. Mas só quando cessou<br />

funções no Governo <strong>de</strong> Guterres, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong><br />

publicar. “Os Sapos Vivos estão<br />

pela Hora da Morte” (Gótica/Difel),<br />

em 2003, “O Pescador <strong>de</strong> Girassóis”<br />

(Presença), em 2007.<br />

“Deixei-te o Sorriso em Casa” <strong>de</strong>-<br />

Livros<br />

“Há <strong>uma</strong> espécie <strong>de</strong> resm<br />

os jornalistas que escre<br />

22 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />

“Deixei-te o Sorriso em Casa”, livro sobre o amor e a vida, é o quarto da autoria do antigo j<br />

Jornal das Nove. Paula Torres <strong>de</strong> Carvalho<br />

morou dois anos a escrever. “A i<strong>de</strong>ia<br />

começou a inquietar-me mal acabei<br />

o romance anterior”, conta. Quando<br />

<strong>de</strong>u com um par <strong>de</strong> namorados <strong>de</strong><br />

mão dada, junto ao rio. “Daí cheguei<br />

a outros encantamentos ingénuos,<br />

meio impossíveis, como as colecções<br />

que só os namorados po<strong>de</strong>m fazer:<br />

<strong>de</strong> sorrisos, por exemplo”. Juntoulhes<br />

“<strong>uma</strong> espécie <strong>de</strong> âncora, o factor<br />

tempo”. Porque todos nós “<strong>de</strong>sejaríamos<br />

conseguir parar o tempo para<br />

lhe po<strong>de</strong>rmos escapar por um segundo<br />

que fosse”, explica.<br />

As estantes cheias <strong>de</strong> livros e <strong>de</strong><br />

CDs, o sofá vermelhão, a música ao<br />

fundo. Ele gosta “<strong>de</strong>ste conforto para<br />

escrever”.<br />

“Ela aten<strong>de</strong>u.<br />

Só que não era do room service.<br />

Era a minha mentira chegando sem<br />

aviso.<br />

Percebi isso mal saí do chuveiro e entrei<br />

no quarto <strong>de</strong> toalha enrolada à<br />

cintura (...) Havia nela <strong>uma</strong> enorme<br />

tristeza quando me fixou (...) Não<br />

Nuno, não era do room service. Era<br />

a Isabel. (...)<br />

E eu perdido:<br />

- C’um caraças, ‘tou lixado! – e não<br />

me saíu mais nada cá <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro,<br />

além <strong>de</strong> repetir vezes sem conta, pelo<br />

tempo fora, <strong>de</strong> olhos fechados, mãos<br />

na cabeça , cabeça em baixo, <strong>uma</strong><br />

lágrima triste a correr, c’um caraças,<br />

‘tou lixado!”<br />

Longe fica o tempo em que António<br />

Santos entrou nos serviços <strong>de</strong> noticiário<br />

da Rádio Renascença, e como<br />

locutor, “por ter falhado redondamente<br />

o exame <strong>de</strong> aptidão a arquitectura”.<br />

Foi lá que começou a fazer jornalismo<br />

com “a maior re<strong>de</strong> <strong>de</strong> correspon<strong>de</strong>ntes<br />

do país: os párocos”. Foi<br />

lá que conheceu António Guterres a<br />

fazer “comentários brilhantes sobre<br />

economia recheada <strong>de</strong> política”. Mas<br />

não foi lá, mas na Rádio Comercial,<br />

muitos anos <strong>de</strong>pois, em 1982, que o<br />

seu nome ficou ligado à Rádio com o<br />

programa As Noites Longas do FM<br />

Estéreo que lhe valeu um prémio pela<br />

melhor apresentação <strong>de</strong> rádio e um<br />

“sete <strong>de</strong> Ouro” pela melhor autoria,<br />

realização e apresentação <strong>de</strong> Rádio.<br />

Só <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> regressar da tropa,<br />

feita em Moçambique, concorreu à<br />

RTP, em 1972. Era no tempo <strong>de</strong> Fialho<br />

Gouveia e <strong>de</strong> Manoel Caetano. E, <strong>de</strong>pois,<br />

da Maria Elisa, <strong>de</strong> Fernando<br />

Balsinha. “Fiz um estágio rigorosíssimo,<br />

estavam sempre em cima <strong>de</strong> nós<br />

a corrigir-nos”, coisa rara, hoje, nas<br />

redacções. “E é por isso que assistimos,<br />

<strong>de</strong> manhã, em certas rádios, a<br />

noticiar as intempéries na Ma<strong>de</strong>ira<br />

ou o terramoto no Chile, aos gritos...<br />

Não se po<strong>de</strong> falar aos gritos <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />

coisa que já causou gritos <strong>de</strong> coração<br />

e <strong>de</strong> alma a milhares <strong>de</strong> pessoas...<br />

não”.<br />

Sinal dos Tempos? “Só se for aqui”,<br />

critica. “Vemos a TVE, a CBS News,<br />

a NBC, ninguém relata <strong>uma</strong> catástrofe<br />

aos gritos; por motivos óbvios”.<br />

É a favor <strong>de</strong> um jornalismo livre,<br />

responsável, rigoroso e isento, embora<br />

consi<strong>de</strong>re que a isenção total<br />

não existe. “Existe é o <strong>de</strong>ver profissional<br />

<strong>de</strong> tentar fazer isso, todos os<br />

dias”. Reconhece: “Não somos completamente<br />

isentos e o jornalismo<br />

não po<strong>de</strong> ser <strong>uma</strong> coisa inócua nem<br />

acéptica”.<br />

E embora afirme que a “liberda<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> expressão não está em causa em<br />

Portugal”, admite que a “apetência<br />

<strong>de</strong> dominar a informação sempre<br />

existiu”. Notando que “há vários tipos<br />

<strong>de</strong> interesses” e que estes “não são só<br />

políticos ou governamentais”, mas<br />

também económicos, empresariais<br />

ou sindicais, salienta que “todos os<br />

governos gostam que os órgãos <strong>de</strong><br />

comunicação social noticiem as coisas<br />

boas e não as más. Não po<strong>de</strong>m é, no<br />

dia em que as notícias são <strong>de</strong>sagradáveis,<br />

calar o mensageiro”. A esse propósito<br />

dá a sua opinião sobre a polémica<br />

acerca da suspensão do Jornal<br />

Nacional da TVI. “O mais inteligente<br />

seria <strong>de</strong>ixar o jornal no ar. Mas o controlo<br />

não é mudar pivots. É feito <strong>de</strong><br />

outra maneira...”, nota.<br />

Diz que “nunca” se sentiu controlado.<br />

“Quase <strong>de</strong>sligava o telefone aos<br />

assessores. Quando me diziam: ‘Convém<br />

fazer <strong>uma</strong> reportagem em tal<br />

sítio’ eu perguntava: Convém a<br />

quem?”<br />

Ironia do <strong>de</strong>stino: quando António<br />

Guterres foi eleito primeiro ministro,<br />

convidou-o para dirigir o gabinete <strong>de</strong><br />

imprensa. “Disse-lhe três vezes que<br />

não”. Mas acabou por aceitar. Achava<br />

que Guterres “tinha um projecto bom<br />

ENRIC VIVES-RUBIO


mungo contra<br />

evem livros...”<br />

jornalista que foi <strong>uma</strong> das “caras” da Informação 2 e do<br />

“O po<strong>de</strong>r po<strong>de</strong><br />

tranformar<br />

as pessoas nuns<br />

palhaços emproados,<br />

tipo pavões ou po<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>spojá-los dos seus<br />

hábitos...e eu quanto<br />

mais<br />

<strong>de</strong>slumbramento via<br />

ao meu lado [dirigiu<br />

o gabinete<br />

<strong>de</strong> imprensa do então<br />

primeiro-ministro<br />

António Guterres],<br />

mais ascético me<br />

tornava”<br />

Garcia Márquez, Calvino,<br />

Yourcenar, Ian McEwan, Joyce e<br />

Cardoso Pires, Sophia <strong>de</strong> Mello<br />

Breyner e Rimbaud - os que o<br />

vão influenciando<br />

para o país e <strong>uma</strong> equipa fabulosa”.<br />

E acreditava “na frescura que levou<br />

ao Palácio <strong>de</strong> Belém”. Disse a um colega,<br />

Solano <strong>de</strong> Almeida, “vou aceitar,<br />

que isto é capaz <strong>de</strong> ser giro. Mas com<br />

<strong>uma</strong> promessa: não volto ao jornalismo”.<br />

Não se “sentiria bem” a voltar a<br />

fazer um telejornal “e as pessoas em<br />

casa: ‘olha o gajo, esteve sete anos<br />

com o Guterres e agora está ali armado<br />

em isento? Bastava um espectador<br />

ter essa suspeita”, diz.<br />

Teve então a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ver<br />

“o po<strong>de</strong>r por <strong>de</strong>ntro”. “Fascinante”,<br />

<strong>de</strong>fine. “O po<strong>de</strong>r po<strong>de</strong> tranformar as<br />

pessoas nuns palhaços emproados,<br />

tipo pavões ou po<strong>de</strong> <strong>de</strong>spojá-los dos<br />

seus hábitos...e eu quanto mais <strong>de</strong>slumbramento<br />

via ao meu lado, mais<br />

ascético me tornava”. Elogia o escrúpulo<br />

<strong>de</strong> Guterres, como daquela vez<br />

que, finda <strong>uma</strong> cimeira oficial, <strong>de</strong>cidiu<br />

viajar para participar num congresso<br />

do Partido Trabalhista britânico,<br />

em Brighton. “E então era ver o<br />

António Guterres, o saco do fato, o<br />

trolley, o António Santos, o saco do<br />

fato...Isto revela o caracter <strong>de</strong> Guterres<br />

e o caracter é <strong>de</strong>cisivo.”<br />

Não voltou ao jornalismo. E pôs-se<br />

a escrever livros. “Se não escrevesse<br />

<strong>de</strong>sidratava-se-me a alma. Vou renascendo<br />

quando escrevo, mas também<br />

me vou sentindo morrer alg<strong>uma</strong>s<br />

vezes...” Escreve sobre “sauda<strong>de</strong>s,<br />

apetites, sítios, gentes, sonhos”. É<br />

“sobre a vida” que escreve, diz, lembrando<br />

García Márques. “Po<strong>de</strong>-se<br />

escapar a escrever sobre tudo. Menos<br />

a <strong>uma</strong> coisa: aquilo que viveste.” Márquez,<br />

que inclui entre os escritores<br />

que mais o vão influenciando, junto<br />

a Calvino, Yourcenar e Ian McEwan,<br />

Joyce e Cardoso Pires, Sophia <strong>de</strong><br />

Mello Breyner e Rimbaud. “Na estante,<br />

metendo-me em respeito, tirandome<br />

as peneiras”, frisa.<br />

“Porra <strong>de</strong> vida, pensei. Apenas pensei.<br />

Vinha triste e magra, correcta e seca(...)<br />

Estão aí todos os sorrisos da<br />

nossa vida, incluindo o meu. Estão<br />

todos menos um: o teu. Esse não consegui<br />

encontrar(...) terás <strong>de</strong> o procurar<br />

tu, se o quiseres <strong>de</strong>volta – e, dito<br />

isto, saíu disparada <strong>de</strong> regresso ao<br />

hotel. Passou a ponte e, no alto da<br />

calçada, <strong>de</strong>sapareceu (...)”.<br />

apoio<br />

organização<br />

JORGE SALAVISA DIRECTOR ARTÍSTICO SLTM<br />

SÃO LUIZ /ABR~1O<br />

8ª FESTA<br />

DO JAZZ DO<br />

SAO LUIZ<br />

A FESTA DO JAZZ<br />

PORTUGUÊS<br />

16, 17, 18 ABR<br />

SEXTA, SÁBADO<br />

E DOMINGO<br />

SALA PRINCIPAL<br />

JARDIM DE INVERNO<br />

TEATRO-ESTÚDIO MÁRIO VIEGAS<br />

SPOT SÃO LUIZ<br />

DIRECÇÃO ARTÍSTICA:<br />

CARLOS MARTINS<br />

PRODUÇÃO EXECUTIVA:<br />

LUÍS HILÁRIO<br />

ORGANIZAÇÃO:<br />

SLTM / SONS DA LUSOFONIA<br />

WWW.TEATROSAOLUIZ.PT<br />

M/3<br />

na vida artística e cultural<br />

<strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong> e do país e a<br />

generosida<strong>de</strong> e altruísmo<br />

que emanaram do fundador,<br />

Luiz Villas-Boas, são razões<br />

mais do que suficientes para<br />

esta homenagem ao Hot<br />

[Clube <strong>de</strong> Portugal] na Festa.<br />

Carlos Martins Director Artístico da Festa do Jazz<br />

silva!<strong>de</strong>signers (...) a influência que teve<br />

SÃO LUIZ TEATRO MUNICIPAL<br />

RUA ANTÓNIO MARIA CARDOSO, 38; 1200-027 LISBOA<br />

GERAL@TEATROSAOLUIZ.PT / T: 213 257 640<br />

BILHETEIRA DAS 13H ÀS 20H<br />

T: 213 257 650<br />

BILHETEIRA@TEATROSAOLUIZ.PT<br />

Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 23


Aqui há três anos a vida <strong>de</strong> Dan Snaith<br />

<strong>de</strong>u <strong>uma</strong> volta. O seu disco “Andorra”,<br />

o segundo sob o nome Caribou,<br />

criou um inesperado brado.<br />

Tratava-se <strong>de</strong> electrónica lúdica, um<br />

jogo <strong>de</strong> “flippers” cósmico que, contrariando<br />

a imagem da música electrónica<br />

como coisa futurista e maquinal,<br />

estava banhado na luz solar com<br />

que i<strong>de</strong>ntificamos alguns dos ícones<br />

dos anos 60.<br />

Era um disco <strong>de</strong> pop electrónica<br />

retro-futurista. Era um robô com camisas<br />

havaianas e bronzeado que bebia<br />

óleo por copos <strong>de</strong> daiquiri. E era,<br />

também e apesar do sucesso, um risco<br />

para Snaith: ficar etiquetado para<br />

sempre, nunca mais se libertar do rótulo<br />

<strong>de</strong> músico que faz electrónica<br />

para quem não gosta <strong>de</strong> electrónica.<br />

“Eu sabia que as pessoas iam i<strong>de</strong>ntificar<br />

o som <strong>de</strong> ‘Andorra’ comigo para<br />

sempre”, diz Dan Snaith, quando<br />

lhe perguntamos se, <strong>de</strong>pois do êxito<br />

<strong>de</strong>sse disco, teve receio <strong>de</strong> ficar preso<br />

a <strong>uma</strong> fórmula. “Eu sabia que iam dizer:<br />

‘Ah, Caribou é o tipo que gosta <strong>de</strong><br />

electrónica e dos anos 60.’”<br />

Esse tipo <strong>de</strong> comentários não o <strong>de</strong>ixam<br />

muito satisfeito. Consi<strong>de</strong>ra-os<br />

não só “tremendamente chatos” como<br />

“bastante redutores”. Resume as<br />

coisas nos mesmos termos que os<br />

concorrentes do Big Brother usavam<br />

quando falavam com Teresa Guilherme:<br />

“Eu não sou só isso.”<br />

Como é que um som é líquido?<br />

É verda<strong>de</strong>, como “Swim”, o novo disco,<br />

o prova. Não só Snaith não é só<br />

isso como “os próprios anos 60 não<br />

foram assim tão solares”. Esta história<br />

é velha: “Cria-se <strong>uma</strong> narrativa à<br />

volta <strong>de</strong> <strong>uma</strong> época e essa narrativa<br />

sobrepõe-se à realida<strong>de</strong>.” Em termos<br />

orwellianos: “Associa-se <strong>uma</strong> época<br />

a um ‘slogan’.” Mas quando se olha<br />

para lá do “slogan” a realida<strong>de</strong> preganos<br />

partidas. “O que é a música dos<br />

anos 60?”, atira. “A música que encontro<br />

nos anos 60 era muito variada.<br />

Os Silver Apples não soam ao Coltrane<br />

e os 13th Floor Elevator não soam<br />

aos Beach Boys.”<br />

Quando <strong>de</strong>u pela armadilha, reagiu<br />

como os miúdos que se sentem injustiçados:<br />

“Fiquei cheio <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

fazer um disco que fosse o oposto [<strong>de</strong><br />

‘Andorra’].” Queria que fosse difícil<br />

i<strong>de</strong>ntificá-lo com <strong>uma</strong> estética. Que<br />

não pu<strong>de</strong>ssem dizer “Caribou soa aos<br />

anos 60”. Caribou não soa aos anos<br />

60, soa a um rapaz <strong>de</strong> 6 anos.<br />

“Swim” é <strong>uma</strong> tentativa <strong>de</strong> “fazer<br />

música <strong>de</strong> dança que fosse fluida, que<br />

24 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />

parecesse água”. Um tipo ouve esta<br />

<strong>de</strong>finição do outro lado da linha do<br />

telefone e dá por si a fazer <strong>de</strong> advogado<br />

do diabo: “Como é que um som<br />

é líquido?”<br />

É neste ponto que Dan Snaith começa<br />

a revelar-se <strong>uma</strong> personagem<br />

curiosa e contraditória: ao mesmo<br />

tempo um eremita e um conversador<br />

entusiasmado, um pensador da música<br />

e um emocionado dos sons, um<br />

“geek” da quinquilharia electrónica<br />

e um antimatemático.<br />

Conversa sobre tudo, seja o som da<br />

sua torra<strong>de</strong>ira ou a frequência <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />

nota, com o entusiasmo <strong>de</strong> <strong>uma</strong> criança<br />

<strong>de</strong> cinco anos que acabou <strong>de</strong> passar<br />

<strong>de</strong> nível na sua consola. Tem teorias<br />

sobre isto e aquilo, discorre sobre a<br />

história da música, vai buscar imagens<br />

inusitadas para se explicar.<br />

Conversar com este homem é um<br />

prazer porque não há nele um miligrama<br />

<strong>de</strong> pose. Quando lhe perguntamos<br />

“Como é que um som é líquido?”,<br />

mal passou um segundo e ele<br />

já tem múltiplas explicações na ponta<br />

da língua.<br />

Teoria um: “Se for um som <strong>de</strong> sintetizador,<br />

ou qualquer outro, é preciso<br />

que flua <strong>de</strong> um ouvido para outro,<br />

que o ‘pitch’ suba e <strong>de</strong>sça.”<br />

Teoria dois: “O som tem <strong>de</strong> parecer<br />

<strong>uma</strong> onda. Tem <strong>de</strong> ser o oposto <strong>de</strong><br />

um som fixo, ou <strong>de</strong> um som metálico.<br />

O que eu queria era isso: o oposto <strong>de</strong><br />

um som fixo e metálico.”<br />

Teoria três: “Na maior parte dos<br />

casos, a música <strong>de</strong> dança é feita <strong>de</strong><br />

‘samples’ e ‘loops’, portanto <strong>de</strong> repetição.<br />

Eu quero que os elementos que<br />

se repetem não se repitam. Quero que<br />

esteja sempre tudo a evoluir, como<br />

<strong>uma</strong> corrente a contornar os seixos<br />

no fundo da água.”<br />

Teoria quatro: “Se atirarmos pedras<br />

ao mesmo tempo para a água, vemos<br />

que se forma um padrão complexo a<br />

partir da intersecção <strong>de</strong> simples ondas<br />

concêntricas.”<br />

Podíamos continuar, mas isto é suficiente<br />

para se traçar <strong>uma</strong> imagem<br />

da mente hiperactiva do rapaz. Confessa<br />

que “Swim” “é o primeiro disco<br />

para o qual tinha um conceito” e isso<br />

levou-o a “criar regras”: por exemplo,<br />

“se um som oscila para a frente e para<br />

trás a <strong>uma</strong> velocida<strong>de</strong>, outro som<br />

tinha <strong>de</strong> oscilar a outra velocida<strong>de</strong>”.<br />

Dá outros exemplos, uns mais imagéticos,<br />

outros mais teóricos, e <strong>de</strong>pois,<br />

qual adolescente que nota que<br />

está a falar sozinho há minutos, tem<br />

um acesso <strong>de</strong> autoconsciência: “Isto<br />

não quer dizer que eu tenha <strong>uma</strong><br />

aproximação matemática à música.”<br />

(É difícil não gostar <strong>de</strong>ste rapaz.)<br />

Façamos aqui um interlúdio para<br />

rápidas explicações: Snaith consegue<br />

mesmo fazer <strong>de</strong> “Swim” um disco<br />

aquático, no sentido em que Robert<br />

Wyatt (em “Rock Bottom”) ou Matt<br />

Elliott (“The Mess We Ma<strong>de</strong>”) fizeram<br />

discos aquáticos. E sem dúvida que<br />

a solarida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “Andorra” surge aqui<br />

dirimida. Mas não se pense que<br />

“Swim” é um disco com a carga ontológica<br />

daqueles atrás mencionados,<br />

ou que é apenas <strong>uma</strong> experiência<br />

quase matemática. Snaith é um tipo<br />

lúdico, o que torna a sua música, por<br />

mais experimental que seja, prazenteira,<br />

mas também não é um analista<br />

laboratorial.<br />

“Pensar matematicamente como<br />

funciona a música é <strong>uma</strong> mentira. É<br />

reducionismo”, atira. “É interessante<br />

saber a que frequência está <strong>uma</strong> nota,<br />

mas isso não quer dizer que se saiba<br />

como é que ela resulta emocionalmente<br />

ao ouvido das pessoas.” O que<br />

encanta Snaith na música, tanto enquanto<br />

ouvinte como praticante, “é<br />

o que fica no espaço entre o que sabemos<br />

e o que não sabemos cientificamente<br />

da música”.<br />

Diz ter prazer nas suas incapacida<strong>de</strong>s<br />

e no <strong>de</strong>sconhecido que surge sempre<br />

que quer fazer <strong>uma</strong> faixa. “Adoro<br />

quando não sabemos exactamente<br />

como algo funciona mas temos <strong>uma</strong><br />

iluminação <strong>de</strong> como fazer. Temos um<br />

instinto. Se soubéssemos exactamente<br />

como fazer as coisas”, diz, n<strong>uma</strong><br />

imagem assaz feliz, “se soubéssemos<br />

como reproduzir exactamente a música<br />

que está na nossa cabeça, não<br />

havia interesse nenhum em fazê-la”.<br />

O tipo que gostava <strong>de</strong> falhar<br />

Não saber por completo o que está a<br />

fazer po<strong>de</strong> dar muito prazer ao senhor<br />

Caribou mas também dá muito trabalho.<br />

A título <strong>de</strong> exemplo mencione-se<br />

o número <strong>de</strong> faixas que fez para este<br />

disco: 600. Leram bem: 600.<br />

Um número <strong>de</strong>stes transmite a imagem<br />

<strong>de</strong> um eremita zangado com a<br />

vida, a procurar ultrapassar as suas<br />

limitações técnicas. Mas Snaith, pese<br />

embora aceitando ser eremita e perfeccionista,<br />

rejeita conotações negativas<br />

da solidão que este processo<br />

implica.<br />

“Eu fiz 600 faixas, é verda<strong>de</strong>, mas<br />

quero que fique claro que não as fiz<br />

propositadamente para este disco.<br />

Simplesmente, todos os dias acordo<br />

e apetece-me fazer canções. Acho que<br />

“Adoro quando não<br />

sabemos exactamente<br />

como algo funciona<br />

mas temos <strong>uma</strong><br />

iluminação <strong>de</strong> como<br />

fazer. Temos um<br />

instinto.<br />

Se soubéssemos como<br />

reproduzir<br />

exactamente<br />

a música que está<br />

na nossa cabeça,<br />

não havia interesse<br />

nenhum em fazê-la”<br />

se ninguém me editasse os discos eu<br />

fazia-as na mesma.”<br />

Resumindo: não é <strong>uma</strong> fábrica, é<br />

um miúdo excitado.<br />

“O ponto <strong>de</strong> partida po<strong>de</strong> ser qualquer<br />

coisa. Um instrumento ou um<br />

som <strong>de</strong> outro disco. Tenho instrumentos,<br />

‘samplers’, ‘laptop’, <strong>uma</strong><br />

data <strong>de</strong> coisas diferentes. Posso começar<br />

por qualquer lado, posso começar<br />

com <strong>uma</strong> simples brinca<strong>de</strong>ira<br />

<strong>de</strong> mudar digitalmente um som. Num<br />

dia acordo com um som <strong>de</strong> guitarra<br />

e produzo-o <strong>de</strong> modo a que não soe<br />

a <strong>uma</strong> guitarra. Noutro, canto por<br />

cima <strong>de</strong> <strong>uma</strong>s notas <strong>de</strong> piano e <strong>de</strong>pois<br />

retiro o piano. Posso ficar a experimentar<br />

gravar o som da minha torra<strong>de</strong>ira<br />

e tentar perceber como é que<br />

esse som po<strong>de</strong> encaixar n<strong>uma</strong> faixa.”<br />

(Vá lá que, dado o tema do disco, não<br />

lhe <strong>de</strong>u para enfiar a torra<strong>de</strong>ira na<br />

água da banheira.)<br />

Pelo que entre torra<strong>de</strong>iras, portas,<br />

tachos e panelas, instrumentos electrificados<br />

e acústicos, entre parafernália<br />

computacional e tralha avulsa,<br />

mal acorda Snaith tem muitos brinquedos<br />

ao seu dispor. Pelo que, mais<br />

que um plano bem traçado que tem<br />

<strong>de</strong> levar a cabo, ele tem milhares <strong>de</strong><br />

peças <strong>de</strong> Lego que vai encaixando e<br />

que espera que “por milagre” batam<br />

Mergulhar,<br />

mergulhar<br />

certo com a i<strong>de</strong>ia inicial: fazer o Lego<br />

soar a mergulho.<br />

Snaith tem verda<strong>de</strong>iro gosto em<br />

ficar à conversa sobre as possibilida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> criar sons musicais novos a<br />

partir <strong>de</strong> sons a que estamos habituados,<br />

seja <strong>uma</strong> guitarra ou <strong>uma</strong> torra<strong>de</strong>ira.<br />

Repete que <strong>uma</strong> das coisa<br />

que o fascinam é “como fazer um novo<br />

som”. Também sobre isto tem teorias:<br />

“Um dos talentos que se tem<br />

<strong>de</strong> ter é o <strong>de</strong> reconhecer a potencialida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> um elemento. Pegar n<strong>uma</strong><br />

caixa <strong>de</strong> ritmo e puxá-la para a frente<br />

na mistura e assim criar um novo<br />

género. Uma coisa tão simples quanto<br />

isto.”<br />

Esse lado <strong>de</strong> constante teorização<br />

é outro dos aspectos fascinantes <strong>de</strong>ste<br />

rapaz gran<strong>de</strong> para quem tudo são<br />

peças <strong>de</strong> puzzle que encaixam <strong>uma</strong>s<br />

nas outras por (faz questão <strong>de</strong> dizer)<br />

mera sorte. De “reconhecer a potencialida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> um novo elemento” salta<br />

para <strong>uma</strong> teoria da história da música<br />

que se po<strong>de</strong> resumir assim: “As gran<strong>de</strong>s<br />

mudanças na música têm a ver<br />

com tecnologia.” Não tem a mínima<br />

dúvida disso – no que está absolutamente<br />

correcto – e até dá exemplos:<br />

“Isto começa logo com o Bach a compor<br />

para piano forte.” (No que está<br />

errado: há exemplos anteriores.)<br />

Mas a graça disto é a distância que<br />

vai entre o seu lado <strong>de</strong> miúdo perdido<br />

n<strong>uma</strong> loja <strong>de</strong> brinquedos e o seu lado<br />

teórico. “Para mim e para todos os outros<br />

músicos o importante é encontrar<br />

um equilíbrio entre lidar com a tecnologia<br />

e comunicar <strong>uma</strong> emoção.”<br />

Tem “a impressão <strong>de</strong> que o que [faz]<br />

fica a milhas <strong>de</strong> distância da música”<br />

com que sonha. “Muita da minha música<br />

é o resultado <strong>de</strong> não conseguir<br />

fazer o que estava na minha cabeça”,<br />

diz. Mas se a i<strong>de</strong>ia é, e repete incessantemente,<br />

“transmitir algo emocionalmente<br />

relevante” para o ouvinte,<br />

então está tudo OK: em “Swim” consegue-o<br />

<strong>de</strong> novo. Algo mais sombrio<br />

que “Andorra”, menos harmónico,<br />

mais esguio e hipnótico.<br />

Algo que não lembra <strong>uma</strong> adolescência<br />

hedonista nem os anos 60,<br />

mas também não é perigoso como<br />

um mergulho <strong>de</strong> <strong>uma</strong> escarpa com<br />

rochas à espera um metro abaixo da<br />

linha <strong>de</strong> água. Algo que é antes tão<br />

simples e complexo como o cruzamento<br />

das ondinhas provocadas por<br />

várias pedras atiradas para a água.<br />

Pensando bem, não é um disco retro.<br />

É a infância do futuro.<br />

Ver crítica <strong>de</strong> discos págs. 53 e segs.<br />

“Swim”, <strong>de</strong> Caribou, é música para dançar na água. Não tem piranhas escondidas, mas tem<br />

peixes esquisitos. João Bonifácio


Música<br />

Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 25


A juventu<strong>de</strong> sónica<br />

já tem 50 anos<br />

Trinta anos <strong>de</strong>pois do nascimento dos Sonic Youth, o rock per<strong>de</strong>u a inocência, em Nova Iorque ainda<br />

acontecem coisas inesperadas e os autores <strong>de</strong> “Daydream Nation” são artistas multidisciplinares.<br />

Conversa com Lee Ranaldo antes do regresso da banda a Portugal. Jorge Marmeleira<br />

Música<br />

Do outro lado do telefone, algures<br />

nos EUA, Lee Ranaldo continua um<br />

senhor afável, diplomático nas repostas<br />

e pouco dado a polémicas. Um<br />

homem prático não muito distante<br />

daquele que há 30 anos negociava<br />

“cachets” com os promotores dos<br />

concertos e fazia as contas, enquanto<br />

os restantes Sonic Youth se entretinham<br />

a tagarelar sobre a pop <strong>de</strong><br />

Madonna, o cinema <strong>de</strong> Godard e o<br />

hardcore dos Minor Threat.<br />

Não que esse franco pragmatismo<br />

ofusque o entusiasmo e a energia do<br />

guitarrista. Não. Vai estar com Turston,<br />

Kim, Steve (e Mark Ibold) quinta<br />

e sexta-feira (dias 22 e 23), respectivamente,<br />

nos coliseus <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong> e do<br />

Porto, e na quarta-feira (dia 21) juntase<br />

a Rafael Total para um concerto<br />

<strong>de</strong> música improvisada na Galeria Zé<br />

dos Bois.<br />

Dito <strong>de</strong> outro modo, Lee Ranaldo<br />

continua, como quase todos os seus<br />

companheiros da banda, aberto a<br />

outras formas. “Acho que isso sempre<br />

aconteceu connosco e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início”,<br />

concorda. “Movemo-nos entre<br />

as canções pop e coisas mais experimentais.<br />

Ou entre a música e outras<br />

áreas. É um processo natural e multidisciplinar.<br />

Agora, por exemplo,<br />

fizemos <strong>uma</strong> banda sonora sem canções<br />

ou vozes para um filme francês<br />

[“Simon Werner a disparu”, <strong>de</strong> Fabice<br />

Gobert]”. Serão os Sonic Youth,<br />

afinal, artistas no sentido mais amplo<br />

do termo como sugeriu, em 2009 ao<br />

Ípsilon, o artista e músico português<br />

João Paulo Feliciano?<br />

“Sim, creio que sim. Ele tem razão.<br />

Somos artistas que usamos os instrumentos<br />

musicais para criar e esten<strong>de</strong>r<br />

<strong>uma</strong> plataforma, um espaço <strong>de</strong><br />

criação a que chamaria arte”.<br />

Esta é <strong>uma</strong> condição que <strong>de</strong>ve ser<br />

entendida à luz e às sombras da Nova<br />

Iorque dos finais dos anos 70 e início<br />

dos anos 80. “Foi esse o lugar que<br />

nos formou. On<strong>de</strong> encontrámos o<br />

punk, a new wave e a no-wave, os<br />

artistas e a cena do loft jazz. Somos<br />

o que somos e fazemos o que fazemos<br />

porque viemos <strong>de</strong> lá”.<br />

Se a banda – queremos acreditar<br />

– não mudou, já Nova Iorque é outra<br />

cida<strong>de</strong>, talvez menos afeita às epifanias<br />

que inspiraram o próprio Rana-<br />

26 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />

do. Ou não? “Sim, talvez. Tornou-se<br />

mais segura, mas não per<strong>de</strong>u vibração.<br />

Já ouviu falar do filme ‘Daddy<br />

Longlegs’ [<strong>de</strong> Benny Safdie e Josh Safdie]?<br />

Sei que vai estar aí num festival<br />

<strong>de</strong> cinema [o Indie<strong>Lisboa</strong>]. Faço um<br />

‘cameo’ [participação especial], mas<br />

os meus dois filhos [Sage and Frey]<br />

são actores principiais. Sabe como<br />

foram escolhidos para o ‘casting’?<br />

Um dos realizadores viu-os na rua.<br />

Nova Iorque ainda é sítio on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>m<br />

acontecer coisas assim e o filme<br />

captura isso muito bem”.<br />

Ainda no universo da arte, a pergunta<br />

inevitável: porquê “Sensational<br />

Fix”, a exposição itinerante que<br />

termina a 2 <strong>de</strong> Maio no Centre of Art<br />

Dos <strong>de</strong> Mayo, em Madrid? “Foi um<br />

convite do curador [Groenenboom<br />

Roland] e <strong>uma</strong> oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> contar<br />

a nossa vida multidisciplinar, <strong>de</strong><br />

mostrar e lembrar os nossos elos,<br />

aquilo que fomos incluindo ao longo<br />

do tempo”. Nesse sentido – é justo<br />

reconhecê-lo – ninguém se compara<br />

aos Sonic Youth. Nem os seus eventuais<br />

antecessores. “Os Velvet Un<strong>de</strong>rground<br />

foram sempre um grupo<br />

insular, virado para si mesmo. A única<br />

ligação que tinham ao mundo era<br />

Andy Warhol. Nós não precisamos<br />

<strong>de</strong> um Andy Warhol. Fazemos esse<br />

trabalho”.<br />

O fantasma dos cinquenta<br />

Um dos acontecimentos na biografia<br />

recente da banda foi o contrato com<br />

a veterana editora indie Matador, dirigida<br />

por Gerard Cosloy, velho amigo<br />

e fã dos anos 80 (lançou nos EUA<br />

alguns dos primeiros discos dos Sonic<br />

Youth). A saída da Universal significou,<br />

pois, algo <strong>de</strong> simbólico: um regresso.<br />

“Vinte anos <strong>de</strong>pois, voltamos<br />

a estar junto <strong>de</strong> pessoas que nos aju-<br />

“Quando começamos,<br />

o rock tinha trinta<br />

anos, restava-lhe<br />

vitalida<strong>de</strong> e energia.<br />

Hoje está mais velho,<br />

menos inocente e<br />

surpreen<strong>de</strong>nte.<br />

Continua a ser<br />

relevante como<br />

experiência<br />

individual, mas já<br />

não atinge as massas”<br />

Lee Ranaldo<br />

Lee Ranaldo toca com os outros<br />

Sonic Youth, dias 22 e 23,<br />

nos coliseus <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong> e do<br />

Porto; na quarta-feira (dia 21)<br />

junta-se a Rafael Total para um<br />

concerto <strong>de</strong> música improvisa<br />

da na Galeria Zé dos Bois,<br />

em <strong>Lisboa</strong><br />

daram a começar, que estiveram connosco<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o princípio e que estão,<br />

novamente, dispostas a acompanharnos.<br />

Mais do que <strong>uma</strong> reacção à falência<br />

do mo<strong>de</strong>lo das gran<strong>de</strong>s editoras,<br />

é um regresso real. Voltamos ao<br />

lugar <strong>de</strong> on<strong>de</strong> partimos”.<br />

O indie-rock americano é ainda<br />

esse lugar, mas o que lhe resta hoje<br />

quando nos EUA (até apetece chorar)<br />

é cada vez mais um género barroco,<br />

bufão, excessivamente anglófono<br />

(com os Radiohead a li<strong>de</strong>rar a invasão)<br />

e que esqueceu as raízes do punk<br />

e do hardcore? O guitarrista esquivase.<br />

“Não sei. As pessoas continuam<br />

como no passado a gostar <strong>de</strong> música<br />

pop, <strong>de</strong> canções <strong>de</strong> melodias. Mas o<br />

‘un<strong>de</strong>rground’ continua aí, escondido,<br />

a mexer-se algures. Po<strong>de</strong> é já não<br />

estar interessado no rock”.<br />

Po<strong>de</strong>? “Quando começamos, a música<br />

rock tinha trinta anos, era jovem,<br />

restava-lhe vitalida<strong>de</strong> e energia. Hoje<br />

é provável que as tenha perdido. Está<br />

mais velho, menos inocente e surpreen<strong>de</strong>nte.<br />

Continua a ser relevante<br />

como experiência individual, mas<br />

já não atinge as massas. Os Nirvana<br />

foram os últimos que fizeram isso”.<br />

Vai a caminho do museu, das interpretações<br />

<strong>de</strong> discos “clássicos” e velhos<br />

êxitos como fazem o jazz e blues?<br />

“Sim, temo que sim”.<br />

Um dos projectos que espera confirmação<br />

é a edição <strong>de</strong> um DVD <strong>de</strong>dicado<br />

a “Daydream Nation” (1988)<br />

que documenta os concertos <strong>de</strong> 2007,<br />

em que banda tocou o duplo LP na<br />

íntegra, e traz um muito curioso e<br />

inédito brin<strong>de</strong>: imagens da digressão<br />

<strong>de</strong> apresentação do disco em 1988.<br />

Esperem, se coisa for para a frente,<br />

ver <strong>uma</strong> Kim Gordon a fazer “headbanging”<br />

e a empurrar “stage-divers”<br />

e os corpos <strong>de</strong> Thuston Moore e Ranaldo<br />

a emularem, pés no chão e guitarra<br />

tesa nos braços, as silhuetas <strong>de</strong><br />

Greg Ginn e Johnny Ramone.<br />

Voltamos a 2010. Os Sonic Youth<br />

tem cinquenta anos e o fantasma dos<br />

Rolling Stones do “un<strong>de</strong>rground” já<br />

assobia atrás da porta. “Espero que<br />

não. Ainda tocamos com a mesma<br />

velocida<strong>de</strong>. Não há nada como confirmar<br />

ao vivo”. Nós confiamos e iremos<br />

confirmar. Afinal a banda <strong>de</strong> Lee<br />

Ranaldo chama-se Sonic Youth.


Música<br />

Sensational e<br />

Spectre<br />

conheceramse<br />

há 15 anos:<br />

são dois extraterrestres<br />

com<br />

<strong>uma</strong> ligação,<br />

garantem,<br />

“telepática”<br />

Quando Sensational e Spectre (Skiz<br />

Fernando) se conheceram no estúdio<br />

<strong>de</strong> Bill Laswell, algures no início da<br />

década <strong>de</strong> 1990, falaram pouco. Sensational,<br />

cujo nome <strong>de</strong> “rapper” era<br />

então Torture, terá dito a Skiz: “Tens<br />

chunk [erva]?”. Poucos minutos <strong>de</strong>pois,<br />

sem muito mais palavras, estava<br />

a improvisar sobre <strong>uma</strong> batida <strong>de</strong><br />

Skiz. Encontravam-se dois dos personagens<br />

mais interessantes do hip-hop<br />

mo<strong>de</strong>rno, autores <strong>de</strong> “Acid & Bass”,<br />

um dos melhores discos do género<br />

lançados no ano passado.<br />

“Somos talentos natos. Quando assim<br />

é, não tens nada a planear: fazes<br />

o que tens a fazer, sabes o que o outro<br />

quer”, diz Sensational ao Ípsilon. A<br />

relação dos dois – quase “telepática”,<br />

nota Skiz - continua a dar frutos. O<br />

disco, lançado pela Wordsound, editora<br />

<strong>de</strong> Skiz, foi feito em cerca <strong>de</strong> seis<br />

meses. “Enviava-lhe coisas pela Internet.<br />

Quando nos encontrávamos em<br />

Nova Iorque, fumávamos uns charros<br />

e começávamos a gravar. Não falamos,<br />

não vamos beber uns copos –<br />

partimos logo para a música. A ligação<br />

é profunda a esse nível. É tudo o que<br />

posso dizer”, resume Spectre.<br />

Mal viu Sensational, Spectre soube<br />

que tinha encontrado <strong>uma</strong> pessoa especial.<br />

“Pareceu-me logo <strong>uma</strong> personagem<br />

estranha, um extraterrestre.<br />

Tenho um bom radar para <strong>de</strong>tectar<br />

os extraterrestres que vivem entre nós<br />

– talvez por eu ser um <strong>de</strong>les”, conta.<br />

A relação entre Spectre, a viver em<br />

Baltimore, e Sensational, que se mudou<br />

<strong>de</strong> Nova Iorque para Nova Jérsia,<br />

tem uns 15 anos, mas só agora a dupla,<br />

que actua hoje na Galeria Zé dos<br />

Bois, em <strong>Lisboa</strong>, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ontem ter<br />

passado pelo Plano B, no Porto, lança<br />

um disco. Valeu a pena esperar:<br />

“Acid & Bass” é um portento <strong>de</strong> hiphop,<br />

ao mesmo tempo experimental<br />

(ao ponto <strong>de</strong> ter posto Sensational na<br />

capa da revista “Wire”) e clássico.<br />

Spectre assina as batidas (o “bass”);<br />

Sensational fica-se pela voz (o “acid”,<br />

com um “flow” totalmente livre, alimentado<br />

a erva).<br />

Stockhausen como “beat”<br />

Ainda como Torture, Sensational participou<br />

no terceiro disco dos Jungle<br />

Brothers, cujas sessões iniciais abriram<br />

novos caminhos na arte do hiphop<br />

- havia ruído, tempos para lá do<br />

comum e rimas fora dos lugares ditados<br />

pelas convenções do género. A<br />

Warner, editora da banda, rejeitou o<br />

material.<br />

Já como Sensational, o MC e produtor<br />

fez “Loa<strong>de</strong>d With Power” (1997),<br />

composto com um “sampler” rudimentar<br />

e “headphones” a servir <strong>de</strong><br />

microfone. Gravado num quatro pistas,<br />

o disco soa, ainda hoje, à frente<br />

do seu tempo – ou melhor, sem tempo<br />

<strong>de</strong>finido -, com visões negras, bizarras<br />

e enf<strong>uma</strong>radas dos cantos mais estranhos<br />

do hip-hop e do dub.<br />

Spectre, produtor habituado a outros<br />

meios técnicos, ficou estupefacto<br />

e lançou o disco na sua editora, a Wordsound,<br />

criada em 1994. “É lendário.<br />

“Em Nova Iorque,<br />

todos os tipos que<br />

conheces na rua são<br />

‘rappers’, todos<br />

têm um CD para<br />

ven<strong>de</strong>r. O Sensational<br />

era diferente <strong>de</strong> todos.<br />

Chamei ao primeiro<br />

álbum o punk rock<br />

do hip-hop”<br />

Spectre<br />

Há pessoas que hoje tentam chegar a<br />

esse som”, afirma. “Vi filmes <strong>de</strong> Lee<br />

‘Scratch’ Perry no Black Ark com o seu<br />

quatro pistas. Quando vi o Sensational<br />

pela primeira vez no meu estúdio, foi<br />

como se fosse transportado para a Jamaica,<br />

para o estúdio <strong>de</strong> Lee Perry. Ele<br />

[Sensational] era muito novo – quem o<br />

ensinou a fazer isto? Eram coisas que<br />

só alguém muito criativo e avançado<br />

musicalmente podia compreen<strong>de</strong>r”.<br />

“Loa<strong>de</strong>d With Power” valeu a Sensational<br />

o respeito em círculos mais<br />

experimentais do hip-hop e <strong>de</strong> gente<br />

como o poliglota musical Bill Laswell,<br />

mas também o escárnio <strong>de</strong> parte da<br />

comunida<strong>de</strong> hip-hop. Ele respon<strong>de</strong>lhes<br />

com indiferença: “Estava a fazer<br />

o que sentia, a criar sobre o que se<br />

estava a passar comigo, no meu universo,<br />

não me queria enquadrar noutro”.<br />

“Riem-se <strong>de</strong>le porque é um ‘freak’.<br />

Mas ele não está preocupado”,<br />

confirma Spectre. “Em Nova Iorque,<br />

todos os tipos que conheces na rua<br />

são ‘rappers’, todos têm um CD para<br />

ven<strong>de</strong>r. O Sensational era diferente<br />

<strong>de</strong> todos. Chamei ao primeiro álbum<br />

o punk rock do hip-hop”.<br />

Sensational também ven<strong>de</strong> os seus<br />

discos na rua. Fá-lo por sobrevivência,<br />

para “pagar as contas”. E sabe do<br />

que fala. Houve <strong>uma</strong> altura em que<br />

viveu na rua porque se fartou <strong>de</strong> pagar<br />

contas. Não sabe ao certo quando<br />

foi (há <strong>uma</strong> “névoa” na sua memória),<br />

mas durou “alguns anos”. “No início<br />

achei interessante, mas pouco <strong>de</strong>pois<br />

percebi: ‘isto não é fixe’”, conta. A<br />

situação agravar-se-ia com um problema<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> “crack”.<br />

Não precisou <strong>de</strong> reabilitação: “Diz-se<br />

que não se po<strong>de</strong> mudar ninguém que<br />

não queira mudar. Foi o que aconteceu<br />

comigo”.<br />

Sensational quis mudar e está agora<br />

na mó <strong>de</strong> cima. Em “Acid & Bass”,<br />

surge com <strong>uma</strong> confiança notável e<br />

<strong>uma</strong> produção que realça os méritos<br />

do seu talento como MC – os discos a<br />

solo, que ele próprio produz, são mais<br />

difíceis <strong>de</strong> digerir. “Ainda tenho um<br />

estado mental enevoado, mas já há<br />

mais clarida<strong>de</strong> no que digo. Já é um<br />

nevoeiro mais claro”, diz. Spectre é<br />

o culpado: “Quando trabalho com um<br />

MC, quero que as pessoas percebam<br />

as letras, quero o melhor som. Conheço<br />

o Sensational tão bem que sei exactamente<br />

<strong>de</strong> que batidas ele gosta. Fica<br />

confiante e oferece <strong>uma</strong> boa performance.<br />

Os nossos estilos complementam-se”.<br />

Exemplo máximo <strong>de</strong> um músico<br />

que vive conscientemente à margem,<br />

Sensational opera segundo as regras<br />

que dita para si mesmo. Tem tanto <strong>de</strong><br />

MC confiante, o tipo <strong>de</strong> MC que repete<br />

o seu nome em quase todos os temas<br />

<strong>de</strong> “Acid & Bass”, como <strong>de</strong> Sun<br />

Ra <strong>de</strong> rua. “Conheço a minha magia,<br />

sei o que se passa comigo, no universo,<br />

noutras dimensões”, afirma. A<br />

biografia do “rapper” é tão especial<br />

que inclui <strong>uma</strong> sessão, absolutamente<br />

lendária, no estúdio <strong>de</strong> Bill Laswell,<br />

em que se pôs a rimar em cima <strong>de</strong><br />

<strong>uma</strong> peça <strong>de</strong> Stockhausen.<br />

Spectre também é dono <strong>de</strong> um percurso<br />

único. “Há álbuns que editei<br />

[na Wordsound] em 1997 e que as<br />

pessoas <strong>de</strong>viam ouvir hoje porque<br />

estavam à frente do seu tempo”, diz.<br />

“Tentamos ser diferentes. Hoje, a<br />

música rap é basicamente música<br />

pop, muito comercial, formulaica”.<br />

“Acid & Bass” não é nada disso, muito<br />

pelo contrário.<br />

Ver agenda <strong>de</strong> concertos págs. 57 e segs.<br />

Os extraterrestres<br />

estão no meio <strong>de</strong> nós<br />

Fizeram um dos melhores discos <strong>de</strong> hip-hop do ano passado.<br />

Sensational e Spectre actuam hoje na ZDB, em <strong>Lisboa</strong>. Pedro Rios


Boleros iluminados<br />

Depois do cancro, já vencido, que lhe inspirou “Vida Tóxica” em 2007, Luz Casal atira-se apaixona-<br />

c cido, que lhe inspirou “Vida Vida Tóxica Tóxica” em 2007, Luz Casal atira-se atira se apai apaixo<br />

damente a boleros clássicos, iicos,<br />

com Eumir Deodato ao comando dos arranjos.<br />

“La Pasión” é <strong>uma</strong> viagem m no tempo com invólucro <strong>de</strong> luxo. Nuno Pacheco Pachecoo<br />

Boleros? É verda<strong>de</strong>, Luz Casal nunca<br />

tinha gravado um disco assim, assumidamente<br />

“retro”. Mas a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong><br />

fazê-lo radica no facto <strong>de</strong> em 1991 ter<br />

interpretado um velho bolero <strong>de</strong><br />

Agustín Lara, “Piensa en mí”, para<br />

Almodóvar, no filme “Saltos Altos”.<br />

Em <strong>Lisboa</strong>, a espanhola (nascida na<br />

Galiza, a 11 <strong>de</strong> Novembro <strong>de</strong> 1958) diz<br />

que assim foi. “Este disco é <strong>uma</strong> consequência<br />

<strong>de</strong> ter interpretado ‘Piensa<br />

en mí’. Sem isso, acho que nunca teria<br />

a tentação <strong>de</strong> gravá-lo. Mas o mais<br />

importante para mim, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tê-lo<br />

feito, é ter ficado com <strong>uma</strong> maior<br />

abertura para compreen<strong>de</strong>r as músicas<br />

populares, não só a pop <strong>de</strong> raiz<br />

anglo-saxónica mas as que estão mais<br />

próximas da nossa cultura.” Não só:<br />

“Foi também <strong>uma</strong> <strong>de</strong>scoberta, <strong>uma</strong><br />

surpresa para mim. A partir daí <strong>de</strong>ixei<br />

<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar o bolero <strong>uma</strong> coisa antiga<br />

para pensar nele como actual.<br />

Porque são canções que falam <strong>de</strong> coisas<br />

intemporais, coisas que, <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />

maneira ou <strong>de</strong> outra, não mudam.”<br />

“La Pasión”, o disco, foi gravado<br />

também <strong>de</strong> forma apaixonante: “Imaginei-me<br />

nos anos 40, 50, tentei imaginar<br />

como essas canções foram compostas<br />

e cantadas, por mulheres e<br />

por homens, com essa paixão.” Uma<br />

coisa visceral: Luz exemplifica com<br />

<strong>uma</strong> imagem carniceira, a faca que<br />

abre os presuntos, <strong>de</strong> cima a baixo,<br />

o canto como um rasgar da pele mostrando<br />

o sangue que lá <strong>de</strong>ntro pulsa.<br />

Uma metáfora eloquente. Neste caso,<br />

com um invólucro <strong>de</strong> luxo: gravado<br />

para o selo Blue Note (<strong>uma</strong> estreia,<br />

para Luz, ao 14º disco), tem arranjos<br />

<strong>de</strong> Eumir Deodato, músico brasileiro<br />

radicado nos EUA que trabalhou com<br />

Vinicius, Sinatra e Björk, entre outros,<br />

e produção <strong>de</strong> Renaud Létang,<br />

francês que já firmou créditos em<br />

trabalhos <strong>de</strong> Manu Chao, Peaches,<br />

Jane Birkin ou Seu Jorge. Além disso,<br />

tem um grupo <strong>de</strong> <strong>de</strong>z músicos que<br />

criaram para o disco <strong>uma</strong> ambiência<br />

notável.<br />

“Eumir, para mim, é um músico<br />

extraordinário”, diz Luz. “Não posso<br />

evitar pensar em ‘Assim falava Zaratustra’,<br />

no final dos anos 70 [Eumir<br />

fez <strong>uma</strong> versão que ficaria célebre ao<br />

ser utilizada no filme “Bem Vindo Mr.<br />

Chance”, <strong>de</strong> Hal Ashby, 1979]. E <strong>de</strong>pois<br />

todo o trabalho que ele fez com<br />

múltiplos músicos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os ‘crooners’<br />

clássicos como Sinatra até aos<br />

mais mo<strong>de</strong>rnos, como Björk.” Encontraram-se<br />

pela primeira vez em Paris,<br />

houve empatia imediata e no estúdio,<br />

28 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />

“Imaginei-me nos<br />

anos 40, 50, tentei<br />

imaginar como essas<br />

canções foram<br />

compostas<br />

e cantadas,<br />

por mulheres<br />

e por homens, com<br />

essa paixão”<br />

com o produtor, duutor,<br />

chegaram a um objectivo:<br />

“Reflectir fl flectir o ambiente das canções<br />

tal como mmo<br />

foram feitas, não fazer<br />

<strong>uma</strong> coisa diferente. di diiferente.<br />

if Esse EEsse era para nós<br />

ó<br />

o maior <strong>de</strong>safio. es safio. E para mim era o<br />

mais interessante.” es ssante.” Eumir voltou a<br />

sua casa, aos oos<br />

EUA, e foi mandando<br />

i<strong>de</strong>ias. Luz escolhia os boleros, ele<br />

sugeria os arranjos. aarranjos.<br />

Em dois dias e<br />

meio, fizeram-se am m-se as gravações em Los<br />

Angeles. Mais<br />

tar<strong>de</strong>, em Londres,<br />

introduziram-se aam-se<br />

as cordas. Só em<br />

“três ou quatro attro<br />

canções” a voz foi gravada<br />

em Paris. arris.<br />

O cancro e outras feridas<br />

Das canções es s gravadas, Luz Casal conhecia<br />

“Historia sttoria<br />

<strong>de</strong> un amor”, “Alma<br />

mía” e pouco cco<br />

mais. As restantes procurou-as<br />

na a internet, em interpretações<br />

<strong>de</strong> época, pooca,<br />

<strong>de</strong> Tonia la Negra,<br />

Al<strong>de</strong>mar Dutra uutra<br />

e muitos outros. “Outras<br />

chegaram-me aam-me<br />

através <strong>de</strong> amigos<br />

que sabiam que qque<br />

eu estava a preparar<br />

este projecto.” too.”<br />

Uma surpresa, para<br />

ela. “Total. aal.<br />

Porque todas têm<br />

boas melodias”. iaas”.<br />

Mas também<br />

pelo apelo visceral vvisceral<br />

<strong>de</strong> cada<br />

<strong>uma</strong>. “Porque rq que quando<br />

cantamos ccanções<br />

canções relacionadas<br />

co com om os sentimentos,<br />

sempre mmpre<br />

nos passa<br />

algo por r <strong>de</strong>ntro, não<br />

fica à flor da a pele. Mas tive<br />

cuidado para ar ra não exagerar,<br />

porque ssenão<br />

senão ficaria<br />

<strong>uma</strong> caricatura, tu ura, não se- seria<br />

verda<strong>de</strong>. . Na música<br />

po<strong>de</strong>mos estar st tar à beira<br />

da lágrima a mas se a<br />

lágrima cai i isso não<br />

é bom, é como oomo<br />

um<br />

‘overacting’. ’ . É preciso<br />

calma a edistância para acantar <strong>uma</strong> canção nnção<br />

sentindo-a mas mmas<br />

não fazendo ndo<br />

<strong>de</strong>la <strong>uma</strong> feri- eeri<br />

da. Porque uue<br />

sangra.”<br />

Música<br />

Gravado para a Blue Note, o<br />

disco tem arranjos <strong>de</strong> Eumir<br />

Deodato (Vinicius, Sinatra e<br />

Björk, entre outros) e produção<br />

<strong>de</strong> Renaud Létang, francês que<br />

já firmou créditos com Manu<br />

Chao, Peaches, Jane Birkin<br />

ou Seu Jorge<br />

Antes <strong>de</strong> “La Pasión”, Luz<br />

Casal gravou um disco que<br />

resultou <strong>de</strong> <strong>uma</strong> ferida. Em<br />

Janeiro <strong>de</strong> 2007 foi-lhe diagnosticado<br />

cancro da mama,<br />

foi operada e recuperou<br />

quase num ápice.<br />

Poucos dias <strong>de</strong>pois da<br />

operação chegou até a cantar<br />

escassas canções em<br />

<strong>Lisboa</strong>, num espectáculo<br />

<strong>de</strong> benemerência. Depois<br />

veio a quimioterapia, a radioterapia,<br />

o cabelo curto<br />

e um disco chamado “Vida<br />

Tóxica” (2007), on<strong>de</strong> havia<br />

temas como “Se feliz”,<br />

“Cara y cruz”, “Lo mejor<br />

<strong>de</strong> lo peor” ou “Bajo tu<br />

abrazo”, parceria <strong>de</strong>la<br />

com Rui Veloso.<br />

No percurso imediato<br />

pós-cancro, esse disco foi<br />

<strong>uma</strong> libertação. “Mais do<br />

que isso, foi <strong>uma</strong> forma <strong>de</strong><br />

me agarrar à minha vida<br />

sem a doença. Foi <strong>uma</strong> forma<br />

<strong>de</strong> dizer: mesmo sem cabelo,<br />

continuo como antes.<br />

Não podia fazer concertos mas<br />

continuava na música.” Mas em<br />

2008 voltou aos palcos. “Recomecei<br />

no lugar on<strong>de</strong> tive <strong>de</strong> cancelar<br />

um concerto por causa da<br />

doença, em Elda, Alicante. A operação<br />

foi a 16 <strong>de</strong> Janeiro e o concerto<br />

<strong>de</strong> Elda era a 18, por isso<br />

não me foi possível lá estar.<br />

Cantei em <strong>Lisboa</strong> a 21, já<br />

operada, sem mexer o<br />

braço direito. Todos<br />

me saudavam batendo<br />

no braço.<br />

Diziam ‘olá’ e<br />

eu ‘ai’”...<br />

“La Pasión”<br />

é um outro regresso.<br />

Já circula<br />

pelos palcos há<br />

meses, anda agora<br />

pela Grécia, França,<br />

Alemanha e Bélgica<br />

e, embora sem datas,<br />

talvez venha a Portugal,<br />

on<strong>de</strong> o disco acaba<br />

<strong>de</strong> chegar às lojas.<br />

“É muita gente, somos<br />

catorze músicos<br />

em palco. Por isso<br />

não é muito fácil garantir<br />

concertos. Mas<br />

faremos tudo para<br />

apresentar o disco<br />

em Portugal.”


MECENAS CICLO PIANO MECENAS ORQUESTRA<br />

NACIONAL DO PORTO<br />

MECENAS CASA DA MÚSICA APOIO INSTITUCIONAL MECENAS PRINCIPAL CASA DA MÚSICA<br />

SEJA UM DOS PRIMEIROS A APRESENTAR HOJE ESTE JORNAL COMPLETO NA CASA DA MÚSICA E GANHE UM CONVITE DUPLO<br />

PARA O CONCERTO DO CORO CASA DA MÚSICA, DIA 25 DE ABRIL. OFERTA LIMITADA AOS PRIMEIROS 10 LEITORES.<br />

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SÃO<br />

LUIZ<br />

ABR~1O<br />

2O ABR<br />

José Salgueiro<br />

e José Peixoto<br />

participação especial <strong>de</strong><br />

Maria Berasarte<br />

TERÇA ÀS 21H00<br />

SALA PRINCIPAL M/3<br />

APOIOS<br />

SÃO LUIZ TEATRO MUNICIPAL<br />

BILHETEIRA DAS 13H ÀS 20H<br />

RUA ANTÓNIO MARIA CARDOSO, 38; 1200-027 LISBOA T: 213 257 650; BILHETEIRA@TEATROSAOLUIZ.PT<br />

GERAL@TEATROSAOLUIZ.PT / T: 213 257 640<br />

BILHETES À VENDA NA TICKETLINE E NOS LOCAIS HABITUAIS<br />

direcção artística Cesário Costa<br />

METROPOLITANA<br />

T E M P O R A D A 2 0 0 9 | 2 0 1 0<br />

A GLÓRIA DO BARROCO<br />

João Moreira e Milagros Castro solistas<br />

Reinaldo Guerreiro direcção musical<br />

Brass Ensemble da Metropolitana<br />

obras <strong>de</strong><br />

Jeremiah Clarke | Antonio Vivaldi | Johann Sebastian Bach |<br />

George Fri<strong>de</strong>ric Han<strong>de</strong>l | Derek Bourgeois |<br />

SEXTA-FEIRA 16, 21H00<br />

AUDITÓRIO DA REITORIA DA UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA<br />

(CAMPUS DE CAMPOLIDE)<br />

DOMINGO 18, 16H30<br />

AUDITÓRIO MAESTRO MANUEL MARIA BALTAZAR (AMAL)<br />

LOURINHÃ


Fumiyo Ikeda, nascida em Osaka ( Japão),<br />

tem um corpo que conhecemos<br />

<strong>de</strong> cor. Há muitos anos que o vemos<br />

a transformar-se nas mãos <strong>de</strong> Anne<br />

Teresa <strong>de</strong> Keersmaeker, com quem<br />

trabalhou pela primeira vez em “Rosas<br />

danst Rosas” (1983), inaugurando<br />

aí <strong>uma</strong> relação para a vida com a companhia<br />

flamenga, da qual entretanto<br />

saiu e voltou a entrar. Vimo-la no elenco<br />

<strong>de</strong> “D’un soir un jour” (2006),<br />

apresentado em Setembro <strong>de</strong> 2007<br />

no Centro Cultural <strong>de</strong> Belém, mas<br />

também como co-criadora, com Alain<br />

Platel e Benjamin Verdonk, <strong>de</strong> “Nine<br />

Finger”, que passou pelo Maria Matos<br />

em 2008, durante o Alkantara Festival<br />

(foi <strong>uma</strong> das peças <strong>de</strong>sse ano para o<br />

Ípsilon).<br />

Tim Etchells, que nasceu n<strong>uma</strong> ilha<br />

do outro lado do mundo, no Reino<br />

Unido, tem <strong>uma</strong> maneira <strong>de</strong> usar o<br />

texto que nos <strong>de</strong>ixa sem chão. Encenador<br />

e dramaturgo, é o rosto mais<br />

visível da companhia <strong>de</strong> teatro Forced<br />

Entertainment, criada em 1984 (já os<br />

vimos várias vezes em Portugal:<br />

“Spectacular”, <strong>de</strong> 2008, que esteve<br />

no Trama, em Serralves, em Novembro<br />

passado; “The World in Pictures”,<br />

<strong>de</strong> 2006, e “Exquisite Pain”, <strong>de</strong> 2005,<br />

que vieram ao Alkantara Festival em<br />

2006, foram as vindas mais recentes),<br />

mas também autor em nome individual,<br />

como ficou provado em “That<br />

Night Follows Day”, que a Culturgest<br />

mostrou em 2008 e que volta a Serralves<br />

a 15 <strong>de</strong> Maio.<br />

Um e outro, Ikeda e Etchells, en-<br />

30 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />

contraram-se no ano passado em cima<br />

do mesmo palco para fazer <strong>uma</strong><br />

coisa aos pedaços, “In Pieces”, que<br />

esteve ontem em Faro e chega a <strong>Lisboa</strong><br />

(Culturgest) na segunda e a Viseu<br />

(Teatro Viriato) na sexta. É ele a escrever<br />

para ela, ela a respon<strong>de</strong>r-lhe<br />

por gestos, ele a olhar para ela e a<br />

<strong>de</strong>ixá-la ir (e a ir com ela, incapaz <strong>de</strong><br />

acrescentar mais <strong>uma</strong> palavra), ela a<br />

<strong>de</strong>ixar-se levar por palavras que não<br />

lhe pertenciam e a encontrar outras<br />

a partir dos movimentos fragmentados<br />

e das memórias <strong>de</strong> outros gestos,<br />

<strong>de</strong> outras peças, <strong>de</strong> outras i<strong>de</strong>ias que<br />

fazemos <strong>de</strong>la, do seu corpo e dos movimentos<br />

que ele produz.<br />

No início havia <strong>uma</strong> frase <strong>de</strong> Kafka,<br />

“A book should be an axe to chop open<br />

the frozen sea insi<strong>de</strong> us” (“Um livro o<br />

<strong>de</strong>via ser o machado que quebra a o mar<br />

gelado em nós”), <strong>de</strong>ixada n<strong>uma</strong> a ca carta arta<br />

a Oskar Pollak <strong>de</strong> 27 January <strong>de</strong> e 1904. 19904.<br />

Etchells pegou apenas nas imagens maggens<br />

fortes - machado, quebra, gelado, o, mmar,<br />

mar,<br />

nós – e escreveu um e-mail a Ikeda, Ikeeda,<br />

que <strong>de</strong>pois as enfrentou. O resultado, ultaado,<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> meses <strong>de</strong> encontros breves, brevves,<br />

é a porta <strong>de</strong> entrada para um pro procescesso <strong>de</strong> rememoração <strong>de</strong> um corpo o id i<strong>de</strong>n<strong>de</strong>ntificável mas distante. No limite, e, é um<br />

retrato <strong>de</strong> Fumyo Ikeda sem informa- forrma<br />

ção factual. Um exercício sobre como commo<br />

se constrói, a cru, <strong>uma</strong> memória. ria. .<br />

Catálogo <strong>de</strong> memórias<br />

Na peça, um belo solo <strong>de</strong> Ikeda num<br />

m<br />

palco vazio, ela está a olhar para a nós nóós<br />

e a nós a olhar para a cabeça <strong>de</strong>la<br />

a à<br />

A bailarina Fumiyo Ikeda e o<br />

encenador Tim Etchells juntaram-se<br />

para <strong>uma</strong> peça que se constrói aos<br />

poucos, pedaço a pedaço. “In Pieces”<br />

é um jogo <strong>de</strong> espelhos que amplia,<br />

ilu<strong>de</strong> e refl ecte. Depois <strong>de</strong> ontem<br />

ter estado em Faro, chega a <strong>Lisboa</strong><br />

na segunda e a Viseu na sexta. Tiago<br />

Bartolomeu Costa<br />

“Vejo-a [Fumiyo<br />

Ikeda] a dançar há 25<br />

anos. Tenho <strong>uma</strong><br />

história com ela.<br />

Sempre que a vejo<br />

fazer qualquer coisa<br />

ecoam nesses<br />

movimentos outras<br />

coisas vivas,<br />

há fantasmas que<br />

a rondam”<br />

Tim Etchells<br />

velocida<strong>de</strong> dos textos <strong>de</strong> Etchells: <strong>uma</strong><br />

cabeça que às vezes parece perdida,<br />

outras vezes está bem à nossa frente.<br />

Essas palavras que serviram <strong>de</strong> ponto<br />

<strong>de</strong> partida foram substituídas por outras<br />

n<strong>uma</strong> espécie <strong>de</strong> “catálogo <strong>de</strong> memorias”,<br />

diz-nos a intérprete. Sobre<br />

quem é então este solo, se um solo é,<br />

quase sempre, sobre quem o faz? Ikeda<br />

revela que não é completamente<br />

sobre ela. “Não conto muito <strong>de</strong> mim.<br />

Eu estou ali mas não sou eu. Ou melhor,<br />

não é sobre mim”. O texto, composto<br />

por essas palavras iniciais e pelo<br />

que <strong>de</strong>las surgiu, constrói <strong>uma</strong> biografia<br />

ficcional, por vezes até imperceptível<br />

(as histórias que ela conta em japonês<br />

são histórias pessoais que Tim<br />

Etchells também não conhece), mas<br />

nunca u casubsttu substitui o<br />

movimento, nem diz<br />

mais do que ele. É um ponto <strong>de</strong> vista<br />

so sobre um umm<br />

corpo, co da mesma for-<br />

ma m que quee<br />

um movimento é um<br />

ponto <strong>de</strong> d<strong>de</strong><br />

vista sobre <strong>uma</strong> coreografia.<br />

reograafia<br />

“Eu estou ali a fazer<br />

coisas, coisaas,<br />

80 por cento <strong>de</strong>las<br />

im improvisadas, mpro e, muitas<br />

vezes, veezes<br />

sou surpreendida<br />

pelo pe elo que estou a fazer”.<br />

Quando Qu começou a<br />

trabalhar traaba<br />

na peça, Ikeda<br />

estava esttav<br />

muito colada às<br />

palavras pallav<br />

e a <strong>uma</strong> partitu-<br />

ra <strong>de</strong> d<strong>de</strong><br />

Ligeti, que acabou<br />

por p funcionar como um<br />

outro outr o ruído <strong>de</strong> fundo,<br />

com coom<br />

a mesma importância<br />

tâânc<br />

que os sons produzidos<br />

duz d pelo corpo.<br />

Fumiyo Ikeda<br />

reconstrói-se<br />

à nossa frente<br />

“Talvez, mas não conscientemente,<br />

eu chegue ao texto da mesma forma<br />

que chego ao movimento. A minha<br />

consciência vai para os braços, para<br />

as pernas... é como se tivesse <strong>uma</strong><br />

câmara a filmar e a câmara mudasse<br />

<strong>de</strong> posição. Mudo <strong>de</strong> posição e altero<br />

o ponto <strong>de</strong> vista.”<br />

É assim para ela e para os espectadores,<br />

que do corpo que reconhecem<br />

<strong>de</strong>vem partir para um outro espaço,<br />

menos concreto, mais perto <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />

sombra, quase fantasma. É aí que<br />

quer chegar Tim Etchells quando lhe<br />

perguntamos como lidou com o corpo<br />

<strong>de</strong>la. Do outro lado da linha do<br />

telefone há um longo silêncio, tão longo<br />

que se torna incómodo. A resposta<br />

começa nervosa, como se tivesse<br />

sido apanhado em falso. “Vejo-a a<br />

dançar há 25 anos. Tenho <strong>uma</strong> história<br />

com ela. Sempre que a vejo a fazer<br />

qualquer coisa ecoam nesses movimentos<br />

outras coisas vivas, há fantasmas<br />

que a rondam”.<br />

“Uso a linguagem”, continua o encenador<br />

que se assume muito mais<br />

discreto nesta peça a dois, “para fazer<br />

fluir i<strong>de</strong>ias, tonalida<strong>de</strong>s, pensamentos.<br />

O texto, aqui, não é senão um<br />

canal, nunca po<strong>de</strong>ria ser tão forte<br />

[quanto o movimento]”. No fim da<br />

resposta, Tim Etchells regressa à nossa<br />

pergunta: “Gosto <strong>de</strong>la porque é<br />

fluida, po<strong>de</strong>-se ver durante muito<br />

tempo, o significado nunca é certo. É<br />

como <strong>uma</strong> temperatura que muda<br />

muito rapidamente, que nos <strong>de</strong>ixa<br />

num espaço ambíguo”.


“In Pieces” tem essa abertura característica<br />

dos textos <strong>de</strong> Etchells,<br />

<strong>de</strong>ixando as interpretações, e as consequências<br />

<strong>de</strong>ssas interpretações,<br />

para quem está <strong>de</strong> fora. Há momentos<br />

que facilitam a i<strong>de</strong>ntificação, como<br />

quando Fumyo Ikeda lista datas e números<br />

relacionando-os com espectáculos,<br />

coisas que viu e que até nos<br />

po<strong>de</strong>m ter acontecido a nós. Pe<strong>de</strong>-nos<br />

um número ao acaso e <strong>de</strong>le parte para<br />

<strong>uma</strong> memória que <strong>de</strong>pois partilha.<br />

Uma memória que passa a ser nossa,<br />

como é nosso o significado <strong>de</strong> um movimento<br />

público.<br />

Uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> “in progress”<br />

Ikeda, que entra em cena como se a<br />

cena não existisse, olha-nos confiante<br />

<strong>de</strong> que o movimento com que vai<br />

preencher o espaço não é a única<br />

forma <strong>de</strong> comunicação entre quem<br />

faz e quem vê. Está “muito focada<br />

na mudança física, no potencial mutante<br />

da fisicalida<strong>de</strong>”, diz Tim<br />

Etchells. “In Pieces” é um objecto<br />

sobre a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> construído a partir<br />

da flui<strong>de</strong>z coreográfica e do potencial<br />

simbólico dos movimentos,<br />

não <strong>uma</strong> fixação <strong>de</strong>ssa i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>.<br />

“Quis que o texto mantivesse essa<br />

dimensão porosa e angulosa, que<br />

fosse um meio <strong>de</strong> abertura <strong>de</strong>, e para,<br />

diferentes partes da performance.<br />

Que mostrasse quem é que está<br />

à nossa frente mas que apenas i<strong>de</strong>alizasse<br />

possibilida<strong>de</strong>s. O texto abre<br />

essas possibilida<strong>de</strong>s narrativas mas<br />

nunca as conclui e, para mim, o mo-<br />

vimento <strong>de</strong>la também é assim: <strong>de</strong><br />

um momento para o outro preciso<br />

e duro, <strong>de</strong>pois fluido e dissolvente”,<br />

conta-nos.<br />

“Não estou interessada em explicar<br />

nada. Se eu percebi e as pessoas perceberam,<br />

o que percebemos não tem<br />

<strong>de</strong> ser a mesma coisa. Tento não me<br />

fixar em nada e dou espaço para que<br />

a partilha <strong>de</strong> memórias exista”, diznos<br />

<strong>uma</strong> intérprete generosa, que diz<br />

ter imenso prazer em fazer esta peça<br />

porque encontra nela <strong>uma</strong> leveza que<br />

lhe permite contar histórias mesmo<br />

que estas não sejam perceptíveis.<br />

“Partilhamos sempre”, diz.<br />

“A arte não é um processo explicativo”,<br />

acrescenta Etchells. “Não nos<br />

sentamos para ver <strong>uma</strong> peça com o<br />

objectivo <strong>de</strong> sermos instruídos sobre<br />

alg<strong>uma</strong> coisa. Ser-se espectador não<br />

é ser passivo. Ser-se espectador é estar<br />

num local on<strong>de</strong> se estão a passar<br />

coisas às quais atribuímos significados.<br />

E a liberda<strong>de</strong> criativa está na<br />

existência <strong>de</strong> diferentes possibilida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> interpretação”.<br />

Também Ikeda acha que o movimento<br />

que produz, porque o corpo<br />

<strong>de</strong>la não é “um corpo anónimo e limpo”,<br />

precisa <strong>de</strong> caminhar para outras<br />

soluções que não as imediatas. E, por<br />

isso, “In Pieces” é também um trabalho<br />

sobre a exploração do corpo “enquanto<br />

arquivo em permanente construção”.<br />

Ver agenda <strong>de</strong> espectáculos págs. 50 e<br />

segs.<br />

No limite, “In<br />

Pieces” é um<br />

retrato <strong>de</strong><br />

Fumiyo Ikeda<br />

sem<br />

informação<br />

factual: a<br />

reconstrução<br />

da memória<br />

que <strong>de</strong>la têm<br />

um<br />

observador<br />

participante,<br />

Tim Etchells,<br />

que foi o<br />

encenador<br />

<strong>de</strong>ste<br />

espectáculo, e,<br />

mais à<br />

distância, o<br />

próprio<br />

público<br />

Dança<br />

01 MAIO<br />

SÁBADO 22:00 SALA SUGGIA | € 15<br />

WORLD<br />

“ATRÁS DOS TEMPOS VÊM TEMPOS”<br />

Fausto voz e guitarra<br />

João Maló guitarra<br />

Filipe Raposo piano<br />

Enzo d’Averza teclados e acor<strong>de</strong>ão<br />

João Ferreira percussões<br />

Vítor Milhanas baixo<br />

João Mário Santos bateria<br />

A estreia na Casa da Música <strong>de</strong> um dos autores<br />

fundamentais da Música Popular Portuguesa<br />

encerra o Festival Música e Revolução.<br />

Um concerto com composições que atravessam<br />

toda a sua carreira, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o período mais<br />

quente da música <strong>de</strong> intervenção, nos anos 70,<br />

até ao último álbum editado, tado, A Ópera Mágica<br />

do Cantor Maldito.<br />

MECENAS CASA DA MÚSICA<br />

APOIO INSTITUCIONAL MECENAS PRINCIPAL CASA DA MÚSICA<br />

SEJA UM DOS PRIMEIROS A APRESENTAR HOJE ESTE JORNAL COMPLETO NA CASA DA MÚSICA E GANHE UM CONVITE<br />

DUPLO PARA ESTE CONCERTO. OFERTA LIMITADA AOS PRIMEIROS 10 LEITORES.<br />

24 ABRIL<br />

SÁBADO 23:00 SALA 2 | € 5<br />

WORLD<br />

1ª PARTE<br />

Tiago Pereira Fireworks*<br />

2ª PARTE<br />

NBC A força das palavras*<br />

Em estreia absoluta para a Casa<br />

da Música, o novo projecto <strong>de</strong><br />

Tiago Pereira mistura técnicas<br />

<strong>de</strong> documentário com ví<strong>de</strong>o e<br />

áudio manipulados em tempo<br />

real. O realizador e visualista<br />

recolheu aspectos da paisagem<br />

sonora da Revolução <strong>de</strong> Abril,<br />

actualizando as suas repercussões<br />

nas gerações seguintes.<br />

Depois da esplêndida actuação com<br />

a Orquestra Nacional do Porto, em<br />

2009, NBC regressa à Casa da Música<br />

para celebrar o 25 <strong>de</strong> Abril com o seu<br />

rap eloquente e a sua voz melódica.<br />

* Estreia mundial; encomenda da Casa da Música<br />

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Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 31<br />

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MARGARIDA DIAS<br />

Para encenar o “Auto da Alma”, <strong>de</strong><br />

Gil Vicente, que estreou ontem no<br />

Teatro Nacional D. Maria II em <strong>Lisboa</strong><br />

(até Junho), Luís Miguel Cintra imaginou<br />

um lugar fechado, <strong>de</strong> alienação<br />

e tortura, sem portas nem janelas.<br />

Podia ser <strong>uma</strong> prisão, um reformatório.<br />

Ou um lugar completamente diferente<br />

– <strong>uma</strong> estação <strong>de</strong> comboios,<br />

<strong>uma</strong> sala <strong>de</strong> espera <strong>de</strong> um consultório,<br />

<strong>de</strong> um escritório <strong>de</strong> advogado –<br />

porque tinha também <strong>de</strong> haver cruzamento<br />

entre pessoas estranhas<br />

entre si. Seria sempre um lugar com<br />

<strong>uma</strong> forte carga e alg<strong>uma</strong> loucura.<br />

Porque a peça, diz Luís Miguel Cintra,<br />

transmite “<strong>uma</strong> visão do cristianismo<br />

muito cruel e muito triste” e “<strong>uma</strong><br />

violência i<strong>de</strong>ológica” que choca.<br />

“Todo o auto é sobre o pecado, a<br />

mortificação do ser h<strong>uma</strong>no, o caminho<br />

para a salvação através da confissão”,<br />

completa.<br />

Com o tempo e os ensaios, encenador<br />

e actores chegaram à i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />

sala com essa carga, sob um foco <strong>de</strong><br />

luzes que, <strong>de</strong> tão brancas, criam um<br />

cenário irreal. Um espaço que podia<br />

ser entre o céu e a terra, a vida e a<br />

morte. E acabou por ser, como imaginaram<br />

os protagonistas, <strong>uma</strong> sala<br />

<strong>de</strong> hospital, que se <strong>de</strong>sdobra n<strong>uma</strong><br />

sala estranha, com <strong>uma</strong> cozinha.<br />

Uma cozinha, porque a acção ao<br />

longo <strong>de</strong> <strong>uma</strong> peça sem história se<br />

limita a fornecer <strong>uma</strong> refeição simbólica<br />

à personagem simbólica da Alma,<br />

no culminar da sua viagem até à Pousada<br />

das Almas. Aí a Igreja fornece-lhe<br />

essa refeição, que é na realida<strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />

tortura.<br />

No primeiro momento, a partir do<br />

qual vai iniciar essa “viagem moral e<br />

espiritual”, a Alma está num estado<br />

<strong>de</strong> pureza e inocência, quase infantil,<br />

sem consciência da culpa da doutrina<br />

cristã. Nesse caminho “atravessa o<br />

percurso h<strong>uma</strong>no até à pureza original,<br />

até ao ponto <strong>de</strong> on<strong>de</strong> partiu, e<br />

para isso é ajudada pelo Anjo e pela<br />

Igreja”, explica o encenador.<br />

Entre o princípio e o fim, troca as<br />

suas vestes <strong>de</strong> Alma por um fato e sapatos<br />

<strong>de</strong> mulher, experimenta a alegria,<br />

a vaida<strong>de</strong>, a tentação, o prazer.<br />

Neste jogo, que é também martírio,<br />

juntam-se à actriz Rita Blanco (Alma)<br />

os outros actores do elenco do Teatro<br />

da Cornucópia – José Airosa, João<br />

Grosso, Vítor <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, Luís Lima<br />

Barreto, Sofia Marques, Ricardo Aibéo,<br />

Dinis Gomes, Duarte Guimarães<br />

e José Manuel Men<strong>de</strong>s.<br />

Nova transcendência<br />

Cada figura se move <strong>de</strong> acordo com<br />

o papel que se imagina para eles pela<br />

roupa que vestem – o padre, a enfermeira-chefe,<br />

o velho, os soldados, o<br />

sedutor, o empregado. Mas nenh<strong>uma</strong><br />

é apresentada por esta categoria na<br />

32 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />

peça, antes como corpos que encerram<br />

um estado <strong>de</strong> espírito ou <strong>uma</strong><br />

personalida<strong>de</strong>. Assim “um homem<br />

muito firme nas suas convicções”<br />

(João Grosso) que, na distribuição dos<br />

textos, ficava com as partes i<strong>de</strong>ntificadas<br />

com um discurso da Igreja, surge<br />

como padre.<br />

Ou “um homem muito humil<strong>de</strong>”<br />

(Luís Lima Barreto) é na realida<strong>de</strong> um<br />

homem <strong>de</strong> sobretudo e chapéu que<br />

tranquiliza a Alma na sua aproximação<br />

a um estado quase h<strong>uma</strong>no. (“Gozai<br />

dos bens da terra”, diz-lhe.)<br />

“Uma mulher, vigilante” (Sofia Marques)<br />

é a figura que mais se aproxima<br />

da personagem da Santa Madre Igreja,<br />

aqui vestida <strong>de</strong> enfermeira, incumbida<br />

por Deus <strong>de</strong> proteger a Alma da<br />

tentação, mas o que faz é controlar a<br />

sua consciência.<br />

No início, em cada movimento da<br />

Alma, todos param para a fitar, como<br />

<strong>uma</strong> presa. “A alma é <strong>uma</strong> figura que<br />

coexiste com as outras mas que é diferente<br />

<strong>de</strong> todas elas.” Sacrificada,<br />

martirizada. “O que se faz àquela figura<br />

<strong>de</strong> alma é <strong>uma</strong> lavagem <strong>de</strong> cérebro,<br />

<strong>uma</strong> sessão <strong>de</strong> tortura. Quer o<br />

Diabo, quer o Anjo, quer a Igreja, são<br />

vozes que ro<strong>de</strong>iam a Alma no sentido<br />

<strong>de</strong> a obrigar a afastar-se <strong>de</strong> tudo o que<br />

é sensorial e da sua personalida<strong>de</strong>,<br />

Em cada movimento da Alma,<br />

todos param para a fi tar, como <strong>uma</strong> presa<br />

<strong>de</strong> se aniquilar, com o objectivo <strong>de</strong>,<br />

através <strong>de</strong> <strong>uma</strong> i<strong>de</strong>ntificação com o<br />

percurso <strong>de</strong> Cristo para a cruz, conseguir<br />

a salvação.”<br />

Não sem angústia e dor. Nesse percurso,<br />

a Alma, até então <strong>de</strong>sprovida<br />

<strong>de</strong> consciência <strong>de</strong> culpa, rapidamente<br />

se confronta com o seu peso. “Estou<br />

mais morta que a morte. Sou pecadora.<br />

Perdi o meu inocente ser e<br />

sou danada. Socorrei-me que a mão<br />

<strong>de</strong> Satanás me tocou”, lança em <strong>de</strong>sespero.<br />

Deus misericordioso<br />

Por momentos <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser aquela<br />

“página em branco” imaginada pelo<br />

encenador como metáfora para o espaço<br />

<strong>de</strong> possível reinvenção do cristianismo.<br />

Cintra refere-se aos textos<br />

<strong>de</strong> Gil Vicente como “material poético<br />

extremamente livre, porque incompleto”<br />

e que “oferece espaço à<br />

invenção”. E por isso quando escolheu<br />

este texto (encomenda da Rainha<br />

D. Leonor para as cerimónias da Semana<br />

Santa <strong>de</strong> 1518), em resposta a<br />

um convite <strong>de</strong> Diogo Infante para encenar<br />

um texto da dramaturgia clássica<br />

portuguesa no TNDMII, Cintra<br />

quis “construir um espectáculo que<br />

pedisse <strong>uma</strong> nova visão <strong>de</strong> transcendência<br />

da vida que não é a da tradição<br />

Teatro<br />

Cintra quis “construir<br />

um espectáculo<br />

que pedisse <strong>uma</strong><br />

nova visão <strong>de</strong><br />

transcendência da<br />

vida que não é a da<br />

tradição cristã que<br />

herdámos”<br />

cristã que herdámos”.<br />

E juntou ao “Auto da Alma” partes<br />

soltas <strong>de</strong> outras peças <strong>de</strong> Gil Vicente,<br />

como o “Auto da Lusitânia” e outros<br />

textos, como a glosa do salmo bíblico<br />

“Miserere mei Deus”, invocador da<br />

misericórdia divina, ou a carta <strong>de</strong> D.<br />

João III on<strong>de</strong> conta como tentou convencer<br />

os fra<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Santarém <strong>de</strong> que<br />

o terramoto <strong>de</strong> 1531 não fora castigo<br />

<strong>de</strong> Deus. O encenador quis mostrar<br />

<strong>uma</strong> religião relacionada com a generosida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Deus e a sua misericórdia<br />

que, no fundo, correspon<strong>de</strong> à “religiosida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Gil Vicente” na maioria<br />

das suas obras.<br />

“Esta peça é o contrário disso”. É<br />

um texto “exclusivamente religioso”<br />

que <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser representado <strong>de</strong>pois<br />

do 25 <strong>de</strong> Abril, foi esquecido,<br />

apesar <strong>de</strong> ter feito parte do reportório<br />

do D. Maria II em 1965 com a actriz<br />

Maria Lalan<strong>de</strong> no papel <strong>de</strong> Alma e<br />

cenários <strong>de</strong> Amada Negreiros, mas<br />

posto em cena no São Carlos.<br />

Esta é “<strong>uma</strong> peça simbólica pura”,<br />

conclui. No culminar do caminho da<br />

Alma, a mesa posta com as personagens<br />

à sua volta lembra a última ceia<br />

<strong>de</strong> Cristo mas é “<strong>uma</strong> mesa <strong>de</strong> ceia<br />

tornada profana”. Sinal <strong>de</strong> que aqui<br />

se procura <strong>uma</strong> nova espiritualida<strong>de</strong>.<br />

Alma<br />

martirizada<br />

Depois do 25 <strong>de</strong> Abril, o “Auto da Alma” <strong>de</strong> Gil Vicente <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser representado e ensinado<br />

nas escolas. Obra religiosa, é reinventada n<strong>uma</strong> encenação <strong>de</strong> Luís Miguel Cintra com os<br />

actores da Cornucópia. À procura <strong>de</strong> <strong>uma</strong> nova transcendência. Ana Dias Cor<strong>de</strong>iro


PEDRO CUNHA<br />

D. Quixote<br />

está velho<br />

e mudou<br />

<strong>de</strong> sexo<br />

Uma ópera com músicas roubadas mostra Dulcineia, a rapariga do cavaleiro da triste fi gura, à<br />

procura do homem i<strong>de</strong>al. “Quixote”, a nova produção <strong>de</strong> O Bando, está em cena no Teatro da<br />

Trinda<strong>de</strong>, em <strong>Lisboa</strong>. Clara Campanilho Barradas<br />

D. Quixote é Dulcineia. E Dulcineia é<br />

D. Quixote. Sancho Pança fica em casa<br />

a cuidar dos filhos. Teresa Pança é<br />

o braço direito <strong>de</strong> Dulcineia. D. Quixote<br />

foi do Cervantes, e <strong>de</strong>pois do Ju<strong>de</strong>u,<br />

António José da Silva. Agora, nas<br />

mãos do Bando, é <strong>uma</strong> ópera bufa.<br />

Confuso? Então explicamos: O<br />

Bando estreou ontem, no Teatro da<br />

Trinda<strong>de</strong>, em <strong>Lisboa</strong>, “Quixote”, a<br />

sua muito particular versão <strong>de</strong> “Vida<br />

do Gran<strong>de</strong> D. Quixote <strong>de</strong> la Mancha e<br />

do Gordo Sancho Pança”, que António<br />

José da Silva, o Ju<strong>de</strong>u, escreveu<br />

para marionetas. Natural do Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro, on<strong>de</strong> nasceu, em 1705, n<strong>uma</strong><br />

família <strong>de</strong> cristãos-novos, António José<br />

da Silva viu-se obrigado a mudarse<br />

para <strong>Lisboa</strong> <strong>de</strong>vido à perseguição<br />

pela Inquisição. Aí estudou Direito e<br />

escreveu várias peças, com as quais<br />

obteve gran<strong>de</strong> sucesso e respeito;<br />

entre elas, esta “Vida do Gran<strong>de</strong> D.<br />

Quixote...”, paródia ao livro escrito<br />

pelo espanhol Miguel <strong>de</strong> Cervantes<br />

em 1605. “O Quixote <strong>de</strong> Cervantes é<br />

<strong>uma</strong> versão erudita, profunda, e este<br />

é aparentemente superfi cial, ligeiro.<br />

A obra <strong>de</strong> Cervantes é mais provocadora,<br />

mesmo a nível político e social.<br />

O Ju<strong>de</strong>u tenta divulgar a obra, para a<br />

tornar mais popular”, diz João Brites,<br />

director da companhia e encenador<br />

da peça, que fi ca no Trinda<strong>de</strong> até 13<br />

<strong>de</strong> Junho.<br />

Foi Cucha Carvalheiro, directora<br />

do Teatro da Trinda<strong>de</strong>, quem propôs<br />

o texto do Ju<strong>de</strong>u ao Bando. O <strong>de</strong>safi o<br />

do grupo foi trabalhar a actualida<strong>de</strong><br />

da mensagem. “Difícil é montar <strong>uma</strong><br />

coisa em que nós estamos implicados.<br />

Não é só montar <strong>uma</strong> obra do<br />

Ju<strong>de</strong>u, ainda que ele seja <strong>uma</strong> fi gura<br />

paradigmática da nossa História. É<br />

mais: o que é que eu quero fazer com<br />

isto, o que é que eu quero dizer com<br />

isto?”, sublinha o encenador.<br />

E qual é, então, a actualida<strong>de</strong> do<br />

texto? “[Tendo em conta] a minha ida<strong>de</strong>,<br />

o meu tempo, a minha refl exão, a<br />

minha passagem, a minha experiência,<br />

acho que foi a<strong>de</strong>quado trabalhar<br />

este texto no sentido <strong>de</strong> problematizar<br />

a velhice. Pensamos que o Quixote<br />

só combate com moinhos <strong>de</strong> vento,<br />

mas não é bem assim. O Quixote, na<br />

“O Quixote (...)<br />

também é um gesto<br />

social e político, a<br />

negação <strong>de</strong> <strong>uma</strong> certa<br />

realida<strong>de</strong> à procura<br />

<strong>de</strong> um mundo<br />

diferente”<br />

João Brites<br />

versão original, foge <strong>de</strong> casa. Está na<br />

cama, está doente. É daqueles velhinhos<br />

como o meu avô, que fugiam <strong>de</strong><br />

casa e <strong>de</strong>pois andava a família toda<br />

atrás <strong>de</strong>le”. O que é que leva um velhinho<br />

a fugir <strong>de</strong> casa? “Uma pulsão<br />

<strong>de</strong> vida”, respon<strong>de</strong> João Brites. “É a<br />

procura da transgressão, <strong>de</strong> fazer coisas<br />

que não se po<strong>de</strong>m fazer. É <strong>uma</strong><br />

conquista da sabedoria mas também<br />

o assumir do <strong>de</strong>sejo, a utopia. Interessava-me<br />

aproveitar a obra do Ju<strong>de</strong>u<br />

para parodiar estas coisas. Por trás<br />

<strong>de</strong>ste lado ligeiro e superfi cial po<strong>de</strong><br />

haver <strong>uma</strong> profundida<strong>de</strong> que chega<br />

a ser comovente”, continua Brites.<br />

Mais: “O Quixote tem essas pulsões<br />

mais primitivas mas também é um<br />

gesto social e político, a negação <strong>de</strong><br />

<strong>uma</strong> certa realida<strong>de</strong> à procura <strong>de</strong> um<br />

mundo diferente”.<br />

Para servir a paródia, a direcção<br />

artística do grupo <strong>de</strong>cidiu apostar<br />

n<strong>uma</strong> mudança <strong>de</strong> género. “Está<br />

tudo ao contrário, portanto”, avisa<br />

João Brites. “O Ju<strong>de</strong>u parodiou o<br />

Cervantes, a gente parodia o Ju<strong>de</strong>u”.<br />

Assim, as características intelectuais<br />

que Cervantes atribuiu a D. Quixote<br />

são transpostas, no texto do Bando,<br />

para Dulcineia, que quer correr o<br />

mundo à procura do seu D. Quixote<br />

i<strong>de</strong>al. O mesmo acontece com Sancho<br />

Pança, que agora é Teresa Pança,<br />

e com todas as outras personagens.<br />

Esta mudança <strong>de</strong> género faz sentido,<br />

porque “a procura da utopia, hoje, é<br />

<strong>uma</strong> coisa absolutamente feminina”.<br />

Somos <strong>uma</strong> nova mulher. É essa mulher<br />

que vai pelo mundo fora à procura<br />

<strong>de</strong> um homem para partilhar a<br />

vida e o sonho”, explica Teresa Lima,<br />

que apoiou na dramaturgia.<br />

Ópera, música pimba<br />

e roubalheira<br />

O cenário <strong>de</strong> “Quixote” é austero, lacónico,<br />

sem cor. Há ca<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> rodas,<br />

muletas e andarilhos. Os actores estão<br />

<strong>de</strong> branco. São marionetas nas mãos<br />

dos cantores, vestidos <strong>de</strong> negro, num<br />

plano elevado em relação ao palco.<br />

Tal como no velho teatro <strong>de</strong> marionetas<br />

do tempo do Ju<strong>de</strong>u, os cantores<br />

coor<strong>de</strong>nam as cenas.<br />

“Queríamos contrariar as expectativas”,<br />

diz Rui Francisco, o cenógrafo,<br />

“com um cenário que à partida<br />

não correspon<strong>de</strong>sse à i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong><br />

paródia. Que fosse provocatório pela<br />

austerida<strong>de</strong>. É <strong>uma</strong> estrutura muito<br />

elementar, baseada num único movimento<br />

<strong>de</strong> rotação, que permite criar<br />

<strong>uma</strong> infi nida<strong>de</strong> <strong>de</strong> espaços. Todo o<br />

cenário partiu <strong>de</strong> <strong>uma</strong> experiência<br />

métrica <strong>de</strong> Le Corbusier [arquitecto,<br />

1887-1965]”.<br />

“Quixote” é <strong>uma</strong> ópera bufa. Com<br />

música propositadamente composta<br />

para esta produção, é inteiramente<br />

cantada por dois cantores, que fazem<br />

as vozes <strong>de</strong> cada <strong>uma</strong> das personagens.<br />

Como não há assim tantas vozes<br />

diferentes, é o carácter da música que<br />

<strong>de</strong>fi ne cada personagem. “Escrevi a<br />

música a partir <strong>de</strong>stas condicionantes”,<br />

diz Jorge Salgueiro, o director<br />

musical. “Também tinha a motivação<br />

<strong>de</strong> pisar o risco. E fi -lo. Utilizei<br />

géneros que são consi<strong>de</strong>rados menores,<br />

como a música pimba, a música<br />

para publicida<strong>de</strong> ou a música para<br />

telemóveis. Nenhum artista é verda<strong>de</strong>iramente<br />

revolucionário. Eu <strong>de</strong>ixei<br />

<strong>de</strong> ter a pretensão <strong>de</strong> querer inovar<br />

e roubei mesmo músicas”. A quem?<br />

“Bom, isso já faz parte do jogo. Eu<br />

roubei; agora <strong>de</strong>scubram <strong>de</strong> on<strong>de</strong> é<br />

que foi. Aliás, pensei que cada espectador<br />

podia preencher <strong>uma</strong> fi cha à<br />

saída e quem acertasse em mais roubos<br />

ganhava um prémio. Ainda não<br />

tive tempo para fazer essa fi cha, mas<br />

talvez faça”.<br />

Saímos da sala acompanhados pela<br />

frase que resume todo o espectáculo:<br />

“Em memória <strong>de</strong> todos aqueles que,<br />

Teatro<br />

impedidos pela força bruta, não atingiram<br />

os prazeres da velhice”.<br />

Como o próprio Ju<strong>de</strong>u, que morreu<br />

na fogueira aos 34 anos.<br />

Ver agenda <strong>de</strong> espectáculos págs. 50 e<br />

segs.<br />

Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 33


Há sete anos, um balão vermelho com<br />

o rosto <strong>de</strong> Yasser Arafat atravessava<br />

um posto <strong>de</strong> controlo israelita, confundindo<br />

e <strong>de</strong>safiando as tropas presentes.<br />

O homem que lançou este<br />

balão <strong>de</strong> um carro estacionado faz<br />

hoje salto à vara sobre a barreira <strong>de</strong><br />

betão que Israel montou para isolar<br />

a Margem Oci<strong>de</strong>ntal.<br />

Elia Suleiman, 49 anos, palestiniano<br />

nascido na Nazaré israelita, realizador,<br />

argumentista e actor, criou sensação<br />

com “Intervenção Divina” (2002), que<br />

revelou às audiências internacionais<br />

um dos mais singulares olhares do cinema<br />

contemporâneo. Um olhar que<br />

leva mais longe em “O Tempo que Resta”<br />

(2009), esta semana nas salas portuguesas,<br />

um ano <strong>de</strong>pois da sua passagem<br />

a concurso pelo festival <strong>de</strong><br />

Cannes; um olhar formalista e ao mesmo<br />

tempo espontâneo, <strong>de</strong> <strong>uma</strong> precisão<br />

<strong>de</strong> relojoaria e <strong>de</strong> um humor<br />

seco e absurdista que parecem ter<br />

mais a ver com Jacques Tati ou Buster<br />

Keaton do que com a maior parte do<br />

cinema que se faz hoje.<br />

Ao telefone <strong>de</strong> Paris, Elia Suleiman<br />

nega terminantemente a influência<br />

<strong>de</strong>sses mestres, apesar <strong>de</strong> até concordar<br />

com a comparação. “Nunca fui<br />

gran<strong>de</strong>mente cinéfilo, e nunca estu<strong>de</strong>i<br />

história do cinema nem tenho um<br />

passado académico. Entrei no cinema<br />

Somos todos pal<br />

Sete anos <strong>de</strong>pois da sensação <strong>de</strong> “Intervenção Divina”, Elia Suleiman regressa com o seu terceiro<br />

como a emoção e a imagem são a chave do seu humor formalista e como o que ele quer é<br />

34 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />

pela porta das traseiras... Assim,<br />

quando comecei a filmar, vinha <strong>de</strong><br />

um ‘background’ perfeitamente puro,<br />

um pouco como um realizador dos<br />

tempos do cinema mudo. Talvez um<br />

<strong>de</strong>stes dias chegue ao sonoro...”, diz<br />

entre risos.<br />

O gran<strong>de</strong> silêncio<br />

A referência aos tempos do mudo não<br />

é casual, como sabe quem viu “Intervenção<br />

Divina” (e o seu pre<strong>de</strong>cessor<br />

“Crónica <strong>de</strong> um Desaparecimento”,<br />

1996, nunca exibido comercialmente<br />

entre nós) e como se po<strong>de</strong>rá confirmar<br />

em “O Tempo que Resta”. O cinema<br />

<strong>de</strong> Suleiman compõe-se <strong>de</strong><br />

episódios que observam e registam<br />

pormenores banais do quotidiano,<br />

on<strong>de</strong> o humor nasce da precisão coreografada<br />

dos movimentos que<br />

acontecem <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um plano fixo<br />

(como o vai-vém <strong>de</strong> <strong>uma</strong> maca que é<br />

disputada por <strong>uma</strong> equipa <strong>de</strong> médicos<br />

e <strong>uma</strong> equipa <strong>de</strong> soldados num<br />

corredor <strong>de</strong> um hospital) e abdica do<br />

diálogo para se concentrar n<strong>uma</strong> informação<br />

puramente audiovisual,<br />

transmitida através da imagem e do<br />

trabalho <strong>de</strong> som.<br />

Suleiman explica que, para ele, “a<br />

palavra <strong>de</strong>ve sempre ficar morta no<br />

guião. O guião não passa <strong>de</strong> um pequeno<br />

manual, um guia, mesmo<br />

quando explica muito <strong>de</strong>talhadamente<br />

o que procuramos fazer – quando<br />

chego ao momento <strong>de</strong> o traduzir em<br />

imagens, parto <strong>de</strong> um ponto diferente,<br />

ou recomeço do zero. Aquilo <strong>de</strong><br />

que sentimos a falta nos meus filmes<br />

– se é que a sentimos... - é do diálogo,<br />

do blá-blá-blá. Mesmo quando estou<br />

a escrever o guião, consigo ver que há<br />

ali palavras a mais, e torna-se um <strong>de</strong>-<br />

safio porque estou a tentar dizer o<br />

máximo <strong>de</strong> coisas possíveis através<br />

do movimento, da expressão cinemática.<br />

Quando <strong>uma</strong> personagem pergunta<br />

‘como estás?’ e outra respon<strong>de</strong><br />

‘bem, obrigado’, não ficámos a saber<br />

nada! É falsa informação. Prefiro eliminar<br />

o diálogo para criar um espaço<br />

livre, para o espectador interpretar e<br />

julgar por si próprio o que as personagens<br />

estão a sentir. Há sempre muita<br />

coisa a acontecer no écrã. Há muito<br />

para ouvir nos meus filmes, e muito<br />

para ver, mas não necessariamente<br />

muito para saber. É <strong>uma</strong> questão <strong>de</strong><br />

emoção, <strong>de</strong> criar <strong>uma</strong> intimida<strong>de</strong>,<br />

<strong>uma</strong> proximida<strong>de</strong> entre o filme e o<br />

espectador.”<br />

A teoria da resistência<br />

“O Tempo que Resta”, terceira longa<br />

<strong>de</strong> Suleiman, completa com “Crónica<br />

Elia Suleiman, 49 anos, palestiniano<br />

nascido na Nazaré israelita, realizador, argumentista e actor<br />

<strong>de</strong> um Desaparecimento” e “Intervenção<br />

Divina” <strong>uma</strong> trilogia ambientada<br />

na Nazaré natal do realizador e que<br />

encena elementos da sua própria vivência.<br />

O novo filme é, no entanto, o<br />

mais “convencionalmente” narrativo<br />

dos três, ao mesmo tempo que mergulha<br />

mais fundo na própria vivência<br />

pessoal da família Suleiman, inspirando-se<br />

n<strong>uma</strong> série <strong>de</strong> diários que o pai<br />

do realizador <strong>de</strong>ixou escritos a pedido<br />

do filho.<br />

A reconstituição histórica po<strong>de</strong> não<br />

ser o forte <strong>de</strong> Suleiman (vários críticos<br />

apontam-na como o ponto fraco <strong>de</strong><br />

“O Tempo que Resta”), mas nunca foi<br />

essa a intenção do cineasta: “Nunca<br />

ergui o historicismo a facto, mesmo<br />

quando filmo um momento histórico.<br />

Nunca alego que foi isto que aconteceu<br />

realmente; apresento-o apenas<br />

como <strong>uma</strong> maneira poética <strong>de</strong> subli-


nhar <strong>uma</strong> possibilida<strong>de</strong>, o que terá<br />

acontecido, o que po<strong>de</strong>ria ter acontecido<br />

naquele momento.”<br />

Se o seu cinema é um cinema naturalmente<br />

pessoal (porque contado na<br />

primeira pessoa), Suleiman opta por<br />

colocar a questão em termos do modo<br />

como cria os seus filmes, a partir<br />

<strong>de</strong> <strong>uma</strong> emoção e <strong>de</strong> <strong>uma</strong> imagem.<br />

“É com <strong>uma</strong> sensação que tudo começa.<br />

Nunca sei <strong>de</strong> on<strong>de</strong> é que <strong>uma</strong><br />

imagem surge, mas sei que aquilo que<br />

sinto mais sinceramente ocorre quando<br />

instalo a câmara num local, quando<br />

reconheço um momento que vivi<br />

e percebo que o estou a tentar metamorfosear<br />

n<strong>uma</strong> dimensão estética.<br />

Sei que preciso absolutamente <strong>de</strong> encontrar<br />

o local on<strong>de</strong> a câmara estaria<br />

a fim <strong>de</strong> capturar aquilo que sinto e<br />

que quero exprimir.”<br />

E que, esclarece veementemente,<br />

não é especificamente palestiniano<br />

ao mesmo tempo que é profundamente<br />

palestiniano. “Não creio que<br />

nos possamos <strong>de</strong>sviar do facto da condição<br />

h<strong>uma</strong>na ser <strong>uma</strong> condição h<strong>uma</strong>na,<br />

e da experiência h<strong>uma</strong>na não<br />

po<strong>de</strong>r necessariamente ser segregada.<br />

Creio que um bom filme é um bom<br />

filme in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> ter sido<br />

feito sob ocupação israelita ou qualquer<br />

outro tipo <strong>de</strong> ocupação noutro<br />

ponto qualquer do mundo. Talvez<br />

essa i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> palestiniana nos tenha<br />

sido forçada por os palestinanos<br />

terem sido ocupados, exilados, expulsos...<br />

Mas não creio que a força ou a<br />

ocupação israelita sejam assim tão<br />

diferentes <strong>de</strong> outra ocupação qualquer.<br />

As pessoas que a vivem também<br />

têm a sua vida quotidiana, a sua intimida<strong>de</strong>,<br />

o seu riso... O riso não é especificamente<br />

palestiniano. O meu<br />

“A ocupação israelita<br />

não é assim tão<br />

diferente <strong>de</strong> outra<br />

ocupação qualquer.<br />

As pessoas que a<br />

vivem também têm<br />

o seu quotidiano, o<br />

seu riso... O riso não<br />

é especificamente<br />

palestiniano.<br />

O meu cinema é tão<br />

palestiniano,<br />

e tão intimamente<br />

palestiniano, que<br />

é universal”<br />

lestinianos<br />

fi lme. Ao telefone <strong>de</strong> Paris, o “Buster Keaton palestiniano” explica<br />

que sejamos todos palestinianos. Jorge Mourinha<br />

cinema é tão palestiniano, e tão intimamente<br />

palestiniano, que é universal.<br />

E a inversa po<strong>de</strong> também ser verda<strong>de</strong>:<br />

é um cinema universal, logo é<br />

palestiniano. Quem faz cinema, ao<br />

confinar o seu cinema a ser sobre alg<strong>uma</strong><br />

coisa, por <strong>de</strong>feito vai estar a<br />

falhar-se a si próprio, a falhar o espectador<br />

que vem ver o filme. Evi<strong>de</strong>ntemente,<br />

a responsabilida<strong>de</strong> e o <strong>de</strong>sejo<br />

<strong>de</strong> um cineasta é fazer qualquer espectador<br />

ter <strong>uma</strong> intimida<strong>de</strong> e <strong>uma</strong><br />

partilha com a imagem que está a<br />

ver...”<br />

A questão é, então, <strong>uma</strong> questão<br />

<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação, como o cineasta explica<br />

nos termos abstractos e teóricos<br />

que são <strong>uma</strong> constante do seu discurso.<br />

“Creio que existe aqui <strong>uma</strong> espécie<br />

<strong>de</strong> experiência metafísica – penetramos<br />

naquilo que há <strong>de</strong> mais íntimo e,<br />

ao fazê-lo, estamos a entrar num processo<br />

<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação. Po<strong>de</strong>mos dizer<br />

que metaforicamente, ‘O Tempo que<br />

Resta’ é palestiniano no modo como<br />

olha para a minha mãe, mas não são<br />

só os palestinianos que têm mães. Se<br />

você reconhece muito da sua própria<br />

mãe no filme, isso quer dizer que você<br />

também é palestiniano, que tudo<br />

isto é um processo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação...<br />

E se não existir essa i<strong>de</strong>ntificação por<br />

parte do espectador, o filme torna-se<br />

num falhanço, não consegue atravessar<br />

o ‘posto <strong>de</strong> controle’”.<br />

É essa necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> comunicar,<br />

esse <strong>de</strong>ver moral para com o espectador,<br />

que leva Suleiman a insistir e,<br />

nas suas palavras, resistir. “Por esta<br />

altura já sei que as pessoas que gostam<br />

dos meus filmes estão à espera<br />

<strong>de</strong> verem algo <strong>de</strong> novo. Sinto <strong>uma</strong> responsabilida<strong>de</strong><br />

moral para com o espectador<br />

<strong>de</strong> lhe dar a possibilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> revisitar o filme, não apenas <strong>de</strong> o<br />

ver <strong>uma</strong> ou duas ou três vezes mas <strong>de</strong><br />

o levar a pensar: ‘o que mais ali havia<br />

que eu não vi?’ ou ‘o que haverá ali<br />

mais que me leve a querer voltar a<br />

vê-lo?’. Sinto que é necessário para<br />

mim fazer um filme que esteja tão<br />

carregado que pareça termos realizado<br />

muitos filmes num só... E sinto um<br />

<strong>de</strong>ver <strong>de</strong> continuar a lutar para fazer<br />

os meus filmes. ”<br />

A palavra é, mesmo, luta: “O Tempo<br />

que Resta” dista sete anos <strong>de</strong> “Intervenção<br />

Divina” em parte <strong>de</strong>vido a<br />

problemas <strong>de</strong> financiamento (agravados<br />

pela morte do produtor francês<br />

Humbert Balsan, a quem o filme é<br />

<strong>de</strong>dicado). “Foi um filme difícil <strong>de</strong> financiar,<br />

mais difícil <strong>de</strong> montar que a<br />

minha primeira curta, e caiu por terra<br />

um bom par <strong>de</strong> vezes antes <strong>de</strong> conseguir<br />

levá-lo a bom porto. Dos sete<br />

anos, quatro foram ocupados com o<br />

guião e o próprio filme; os outros três<br />

foram preenchidos com momentos<br />

<strong>de</strong>sesperados e <strong>de</strong>primentes, a visitar<br />

pessoas que não conhecia mas que<br />

tinham a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> me ajudar<br />

a salvar o filme. Nem sei como é que<br />

se consegue continuar a trabalhar assim...<br />

Mesmo apesar do cinema ter<br />

sido sempre difícil <strong>de</strong> montar, penso<br />

que as coisas têm vindo a tornar-se<br />

progressivamente mais difíceis. E<br />

quanto mais teimosos somos e quanto<br />

mais duro se torna, maior é o <strong>de</strong>safio.”<br />

Não que Suleiman pretenda <strong>de</strong>sistir:<br />

“Só faço um filme quando sinto a<br />

necessida<strong>de</strong> absoluta <strong>de</strong> o fazer. E não<br />

estou n<strong>uma</strong> posição em que consiga<br />

dizer que não quero fazer mais filmes<br />

e me quero <strong>de</strong>dicar à escrita: tenho o<br />

impulso <strong>de</strong> alguém que quer criar<br />

imagens, e esse impulso é tão forte,<br />

tão presente, que tenho <strong>de</strong> o seguir...”<br />

Ver crítica <strong>de</strong> filmes págs. 60 e segs<br />

Cinema<br />

Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 35


REUTERS/PRUDENCE CUMING ASSOCIATES/HANDOUT/FILE<br />

Exposições<br />

Damien Hirst fez das suas caveiras o ícone<br />

<strong>de</strong>fi nitivo (e também a mercadoria <strong>de</strong>fi nitiva)<br />

da arte contemporânea: “Diamond Skull”<br />

é a obra mais cara <strong>de</strong> um artista vivo, tendo<br />

sido vendido por 100 milhões <strong>de</strong> dólares<br />

36 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />

A morte é a g<br />

à Damien Hirst”, a e<br />

Das tatuagens às t-shirts estampadas<br />

com caveiras, passando pelos filmes<br />

animados com esqueletos e respectivas<br />

noivas, nunca a morte foi tão popular<br />

como no início do século XXI.<br />

O mundo das artes visuais não é indiferente<br />

a este autêntico “boom” da<br />

iconografia macabra, sobretudo quando<br />

o renascimento das “Vaida<strong>de</strong>s”<br />

(Vanitas) se <strong>de</strong>staca como <strong>uma</strong> das<br />

tendências mais marcantes da produção<br />

contemporânea. O que já é inédito<br />

- mesmo se constitui outra vertente<br />

do mesmo fenómeno -, é a morte<br />

ser promovida a estrela <strong>de</strong> museu,<br />

naquela que é <strong>uma</strong> das mais concorridas<br />

exposições da presente temporada<br />

parisiense. Chama-se “C’est La<br />

Vie! Vanités <strong>de</strong> Caravage à Damien<br />

Hirst” e reúne, até 28<br />

<strong>de</strong> Junho no Museu<br />

Maillol, 160 obras


O triunfo da morte<br />

a gran<strong>de</strong> estrela da arte contemporânea e o pretexto para “C’est La Vie! Vanités <strong>de</strong> Caravage<br />

a extraordinária exposição que agora lhe <strong>de</strong>dica o Museu Maillol, em Paris. O fi m, parecem dizer-<br />

-nos todas estas caveiras, é já agora. Luís Maio, em Paris<br />

<strong>de</strong> pintura, escultura, fotografia, ví<strong>de</strong>o<br />

e ourivesaria.<br />

Apostando justamente no vai-e-vem<br />

constante entre obras emblemáticas<br />

do Barroco, período em que as Vanitas<br />

(representações da morte <strong>de</strong>stinadas<br />

a lembrar a efemerida<strong>de</strong> da<br />

condição h<strong>uma</strong>na) atingiram o seu<br />

primeiro apogeu, e o furor mais subversivo<br />

da contemporaneida<strong>de</strong>, a exposição<br />

do Museu Maillol constrói um<br />

jogo <strong>de</strong> referências que oferece um<br />

con<strong>de</strong>nsado das metamorfoses da<br />

i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> morte através da história da<br />

arte oci<strong>de</strong>ntal.<br />

De Pompeia a Andy Warhol<br />

A peça mais antiga em exibição vai<br />

mais atrás: um pequeno mosaico policromado<br />

originário da Pompeia,<br />

datado do primeiro século da nossa<br />

era, representa <strong>uma</strong> caveira emoldurada<br />

por hábitos <strong>de</strong> rico e <strong>de</strong> pobre,<br />

a roda da fortuna e um esquadro que<br />

simboliza a justa medida. Uma alegoria<br />

moral que reconduz ao lema<br />

dos estóicos, “Memento mori” (“lembra-te<br />

que vais morrer”), ou ao “Carpe<br />

diem” (“colhe o dia”, “aproveita<br />

o momento”) dos epicuristas. O mosaico<br />

<strong>de</strong> Pompeia prova o relevo que<br />

o tema das Vaida<strong>de</strong>s ganhou na cultura<br />

greco-latina, mas é também<br />

exemplar único na exposição. Talvez<br />

porque as gran<strong>de</strong>s culturas da Antiguida<strong>de</strong><br />

só ocasional e sempre mo<strong>de</strong>radamente<br />

flirtaram com o imaginário<br />

da morte.<br />

Foi preciso esperar pela conquista<br />

cristã do Oci<strong>de</strong>nte para assistir ao<br />

triunfo da iconografia macabra. Compreensível,<br />

<strong>de</strong> resto, n<strong>uma</strong> religião<br />

centrada no resgate dos pecados da<br />

H<strong>uma</strong>nida<strong>de</strong> pela encarnação, morte<br />

e <strong>ressurreição</strong> do filho <strong>de</strong> Deus. Na<br />

iconografia cristã, a caveira é assim<br />

tanto um lembrete da finitu<strong>de</strong> da vida<br />

terrena como <strong>uma</strong> promessa <strong>de</strong> vida<br />

eterna. A peste negra, as guerras e<br />

todo o sortido <strong>de</strong> calamida<strong>de</strong>s que<br />

mergulharam a Ida<strong>de</strong> Média no obscurantismo<br />

explicam, por sua vez, a<br />

popularida<strong>de</strong> que então ganharam<br />

temas como as Danças Macabras e o<br />

Triunfo da Morte.<br />

Os esqueletos começaram a aparecer<br />

pintados nas costas dos retratos<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>funtos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> finais do século XV.<br />

Mas as Vaida<strong>de</strong>s propriamente ditas<br />

são produtos da Reforma protestante<br />

e da Contra-Reforma católica, ou seja,<br />

resultaram <strong>de</strong> <strong>uma</strong> época em que as<br />

imagens foram o centro <strong>de</strong> um aceso<br />

<strong>de</strong>bate que moveu e dividiu todo o<br />

universo cristão. A esfera católica privilegiou<br />

a imagem da caveira como<br />

pretexto <strong>de</strong> reflexão, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que colocada<br />

nas mãos <strong>de</strong> santos penitentes.<br />

Como Maria Madalena, a pecadora<br />

arrependida representada na presente<br />

exposição pela soberba “Melancolia”<br />

<strong>de</strong> Domenico Fetti, ou São Francisco,<br />

o santo que cortejou o êxtase,<br />

ilustrado por <strong>uma</strong> notável sequência<br />

<strong>de</strong> pinturas <strong>de</strong> Caravaggio, Zurbarán<br />

e La Tour.<br />

Adversos à figuração <strong>de</strong> personagens<br />

sagradas, os artistas protestantes<br />

do Norte da Europa marcaram a diferença<br />

<strong>de</strong>senvolvendo as Vaida<strong>de</strong>s como<br />

Naturezas Mortas, então um género<br />

pictórico florescente nos Países<br />

Baixos. Estas imagens <strong>de</strong> morte, a que<br />

os holan<strong>de</strong>ses chamaram “stilleven”,<br />

começaram por ser produzidas em<br />

Leida, no início do século XVII. Depressa<br />

se popularizaram, abrindo um<br />

novo ciclo <strong>de</strong> invocação da morte<br />

através <strong>de</strong> composições simbólicas<br />

centradas em caveiras pintadas até<br />

Marina Abramovic passeia vestida <strong>de</strong> preto com um<br />

esqueleto branco às costas em “Carrying The Skeleton I”,<br />

<strong>de</strong> 2008<br />

aos mais ínfimos <strong>de</strong>talhes anatómicos<br />

e ro<strong>de</strong>adas <strong>de</strong> objectos invocando a<br />

passagem do tempo e a efemerida<strong>de</strong><br />

da vida h<strong>uma</strong>na (ampulhetas, flores<br />

murchas, velas apagadas).<br />

Esta <strong>de</strong>coração, <strong>de</strong> início bastante<br />

austera, foi ganhando maior opulência<br />

à medida que crescia a fortuna<br />

colonial holan<strong>de</strong>sa. Veio a integrar<br />

objectos simbolizando o po<strong>de</strong>r (coroas,<br />

ceptros), os prazeres (jogos, cachimbos),<br />

mas também o saber (os<br />

livros) e a própria arte (pincéis, tintas,<br />

cavaletes). As “stilleven” rapidamente<br />

se difundiram em toda a Europa,<br />

vindo a mesclar-se com a iconografia<br />

católica e inclusive imaginários mais<br />

herméticos. Uma tendência bem ilustrada<br />

na exposição do Museu Maillol<br />

pela enigmática “Vanitas” <strong>de</strong> Simon<br />

Renard <strong>de</strong> Saint-André (1650) com o<br />

seu crânio estilizado, tombado sobre<br />

instrumentos e pautas <strong>de</strong> música.<br />

Caveiras e esqueletos foram certamente<br />

reemergindo na iconografia<br />

das sucessivas correntes artísticas<br />

mo<strong>de</strong>rnas, do Romantismo à Nova<br />

Objectivida<strong>de</strong>, passando pelo Dadaísmo<br />

e pelo Expressionismo. A verda<strong>de</strong>,<br />

porém, é que, <strong>de</strong>pois do Barroco,<br />

as Vaida<strong>de</strong>s per<strong>de</strong>ram esplendor e<br />

foram sendo esvaziadas <strong>de</strong> sentido,<br />

acompanhando o movimento <strong>de</strong> secularização<br />

da arte. Isto até Andy Warhol<br />

<strong>de</strong>clarar, em 1976, que “A morte<br />

po<strong>de</strong> realmente fazer <strong>de</strong> si <strong>uma</strong> estrela”<br />

e dar início a <strong>uma</strong> série <strong>de</strong> “Skulls”<br />

<strong>de</strong> poses fotogénicas e cores flashantes,<br />

mas também <strong>de</strong> <strong>uma</strong> frieza ácida<br />

irredutível.<br />

O fi m é agora<br />

“C’est La Vie” ocupa o parisiense Museu<br />

Maillol ao mesmo tempo que a<br />

primeira parte da exposição “A Pers-<br />

“A morte po<strong>de</strong> realmente fazer <strong>de</strong> si <strong>uma</strong> estrela”,<br />

<strong>de</strong>clarou Warhol em 1976, dando início às cores<br />

flashantes da série “Skulls”<br />

A exposição do Museu<br />

Maillol constrói<br />

um jogo <strong>de</strong><br />

referências que<br />

oferece um<br />

con<strong>de</strong>nsado das<br />

metamorfoses da<br />

i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> morte através<br />

da história da arte<br />

oci<strong>de</strong>ntal<br />

pectiva Das Coisas. A Natureza-Morta<br />

na Europa”, relativa aos séculos XVII<br />

e XVIII, <strong>de</strong>corre na Fundação Gulbenkian,<br />

em <strong>Lisboa</strong>. Embora fruto do<br />

acaso, a sincronia das duas exposições<br />

sugere <strong>uma</strong> complementarida<strong>de</strong>,<br />

acentuada pela inclusão <strong>de</strong> um pequeno<br />

núcleo <strong>de</strong> Vanitas no evento lisboeta.<br />

Isto dito, não é menos evi<strong>de</strong>nte o<br />

que as separa, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo porque nem<br />

todas as Vanitas são Naturezas Mortas.<br />

Mas on<strong>de</strong> as duas exposições contrastam<br />

realmente é em termos <strong>de</strong> itinerário:<br />

se “A Perspectiva das Coisas”<br />

segue um guião cronológico, que se<br />

inicia no século XVII, já “C’est La Vie”<br />

coloca um claro enfoque na actualida<strong>de</strong>,<br />

para <strong>de</strong>pois percorrer a história<br />

em sentido inverso.<br />

Em Paris começa-se, portanto, pelo<br />

fim – o que aten<strong>de</strong>ndo ao tema, não<br />

po<strong>de</strong>ria revelar-se mais a<strong>de</strong>quado.<br />

Também se percebe <strong>de</strong> imediato a<br />

ambição <strong>de</strong> bilheteira: cintilam (literalmente),<br />

nesta selecção <strong>de</strong> Vanitas<br />

contemporâneas, alguns dos artistas<br />

mais cotados da actualida<strong>de</strong>. A estrela<br />

oficial da exposição é, aliás, “Diamond<br />

Skull” (2007) serigrafia <strong>de</strong> um<br />

crânio em platina engastado <strong>de</strong> 8601<br />

diamantes, assinada por Damien<br />

Hirst. Consi<strong>de</strong>rada um dos primeiros<br />

ícones do século XXI, bateu todos os<br />

recor<strong>de</strong>s: é a obra mais cara <strong>de</strong> um<br />

artista vivo (foi vendida por 100 milhões<br />

<strong>de</strong> dólares).<br />

Em termos <strong>de</strong> popularida<strong>de</strong>, pelo<br />

menos, “Diamond Skull” tem um sério<br />

concorrente na exposição: “C.B.<br />

1” (2009), um gigantesco crânio<br />

emoldurado por um trem <strong>de</strong> cozinha<br />

em inox, da autoria Subodh Gupta,<br />

indiano em ascensão meteórica no<br />

actual mercado da arte. São esculturas<br />

muito diferentes, sem dúvida,<br />

Basquiat invoca as tradições vudu para as incorporar<br />

na sua linguagem urbana, em “Do Not Revenge”<br />

(1982): morreria <strong>de</strong> overdose, seis anos <strong>de</strong>pois<br />

Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 37


as <strong>de</strong> Hirst e Gupta, mas partilham<br />

a estratégia <strong>de</strong> causar sensação. Entre<br />

o choque e o paradoxo, ambas<br />

po<strong>de</strong>m ser lidas ao mesmo tempo<br />

como con<strong>de</strong>nação e celebração <strong>de</strong><br />

um tempo que é o nosso, o tempo<br />

em que a morte se <strong>de</strong>ssacralizou e<br />

virou espectáculo.<br />

Convivem, <strong>de</strong> resto, com <strong>uma</strong> mão<br />

cheia <strong>de</strong> obras provocadoras e insólitas,<br />

que questionam a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> morte<br />

nas socieda<strong>de</strong>s contemporâneas,<br />

enquanto recriam n<strong>uma</strong> miría<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

sentidos a tradição das Vaida<strong>de</strong>s. Basquiat<br />

cruza imaginário vudu e os graffti<br />

urbanos em “Do Not Revenge”<br />

(1982), Annette Messager usa luvas<br />

pretas e lápis <strong>de</strong> cor para cortejar os<br />

pesa<strong>de</strong>los da infância <strong>de</strong> “Gants-tête”<br />

(1999), enquanto Yan Pei-Mag se autoretrata<br />

a partir <strong>de</strong> um “scanning” do<br />

seu próprio “Crâne” (2004), Dimitri<br />

Tsykalov esculpe caveiras em frutas<br />

e mais materiais perecíveis e Marina<br />

Abramovic passeia vestida <strong>de</strong> preto<br />

com um esqueleto branco às costas<br />

em “Carrying The Skeleton I”<br />

(2008).<br />

Estratégias <strong>de</strong> colisão<br />

Contemplada a prodigiosa multiplicida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> matérias plásticas e <strong>de</strong><br />

mensagens que hoje se conjugam em<br />

imagens <strong>de</strong> morte, o visitante é convidado<br />

a subir aos pisos superiores<br />

do antigo hotel parisiense, para as<br />

confrontar com Vaida<strong>de</strong>s típicas do<br />

O catolicismo colocou a caveira nas mãos <strong>de</strong> santos<br />

penitentes, como esta Maria Madalena da<br />

“Melancolia” (circa 1620) <strong>de</strong> Domenico Fetti<br />

38 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />

Barroco e da Mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. O percurso<br />

está longe, porém <strong>de</strong> ser linear: o<br />

exercício <strong>de</strong> confronto é literalmente<br />

forçado pela inserção <strong>de</strong> obras actuais<br />

entre sequências do passado. É o<br />

caso por excelência do “Gabinete <strong>de</strong><br />

Arrepios”, on<strong>de</strong> o imaginário <strong>de</strong> <strong>de</strong>senho<br />

animado mórbido dos irmãos<br />

Chapman se vem intrometer entre<br />

Vaida<strong>de</strong>s barrocas com assinaturas<br />

<strong>de</strong> Ligozzi, Martinelli e um anónimo<br />

francês do século XVII, que reflecte<br />

sobre a futilida<strong>de</strong> do saber. Ou ainda<br />

da pequena sala que faz dialogar ludicamente<br />

o teatro <strong>de</strong> sombras <strong>de</strong><br />

Christian Boltanski e um <strong>de</strong>senho <strong>de</strong><br />

Basquiat, em plena secção dos clássicos.<br />

“C’est La Vie” é, portanto, <strong>uma</strong> exposição<br />

sobre um tema original, apresentado<br />

<strong>de</strong> forma pouco ou nada<br />

ortodoxa. Daí também a exibição <strong>de</strong><br />

um conjunto <strong>de</strong> artigos que raramente<br />

figuram em exposições convencionais.<br />

Ainda no piso térreo, logo à saída<br />

da arte contemporânea, está<br />

montado um Gabinete <strong>de</strong> Curiosida<strong>de</strong>s<br />

que mistura objectos <strong>de</strong> várias<br />

épocas, subordinados ao tema da<br />

morte. Entre ossadas barrocas em<br />

cera e projecções ví<strong>de</strong>o <strong>de</strong> interrogações<br />

existenciais, exibem-se <strong>uma</strong> colecção<br />

<strong>de</strong> bengalas com cabeças <strong>de</strong><br />

caveira e um conjunto <strong>de</strong> anamorfoses,<br />

imagens que distorcidas produzem<br />

esqueletos.<br />

A secção dos clássicos é rematada<br />

por <strong>uma</strong> selecção <strong>de</strong> jóias, entre as<br />

quais se <strong>de</strong>stacam as criações da casa<br />

veneziana Codognato, fundada em<br />

1866. São brincos, colares e outros<br />

pen<strong>de</strong>ntes, feericamente <strong>de</strong>corados<br />

com cabeças <strong>de</strong> morte, sumptuosas<br />

Joías-Vanitas reminiscentes do gosto<br />

barroco. Mais acima ainda, na secção<br />

<strong>de</strong> fotografias e esculturas contemporâneas,<br />

todas as atenções se concentram<br />

na excepcional colecção <strong>de</strong> anéis<br />

reunidos ao longo <strong>de</strong> toda <strong>uma</strong> vida<br />

pelo galerista Yves Gastou. Vai dos<br />

anéis eclesiásticos Memento Mori às<br />

estilizadas criações dos mais prestigiados<br />

ourives da actualida<strong>de</strong>, passando<br />

pelos anéis dos Hell’s Angels,<br />

que transformaram as caveiras em<br />

signo <strong>de</strong> violência e <strong>de</strong> contestação<br />

social.<br />

Arte da vida<br />

e arte da morte<br />

É <strong>uma</strong> exposição fantástica, certamente<br />

um dos maiores êxitos <strong>de</strong> bilheteira<br />

do Museu Maillol, que está<br />

longe <strong>de</strong> ser dos mais visitados em<br />

Paris. Claro que os visitantes sabem<br />

ao que vão, mas não é menos evi<strong>de</strong>nte<br />

o choque estampado em muitos<br />

rostos, sobretudo frente ao <strong>de</strong>spudor<br />

das danças macabras da arte contemporânea.<br />

Há, <strong>de</strong> resto, um factor adicional<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>stabilização que é a própria<br />

colecção permanente.<br />

O Museu Maillol resulta da teimo-<br />

Este pequeno mosaico <strong>de</strong> Pompeia (século I d.C.) é a<br />

peça mais antiga da exposição, provando o relevo<br />

que as Vaida<strong>de</strong>s ganharam na cultura greco-latina<br />

Obras como<br />

o “Diamond Skull”<br />

<strong>de</strong> Damien Hirst<br />

ou “C. B. 1”, <strong>de</strong> Subodh<br />

Gupta, po<strong>de</strong>m<br />

ser lidas ao mesmo<br />

tempo como<br />

con<strong>de</strong>nação<br />

e celebração <strong>de</strong> um<br />

tempo que é o nosso,<br />

o tempo em que<br />

a morte se<br />

<strong>de</strong>ssacralizou e virou<br />

espectáculo<br />

sia <strong>de</strong> Dina Vierny, musa do pintor<br />

e escultor Aristi<strong>de</strong> Maillol (1861-1941),<br />

que durante 30 anos lutou para que<br />

o legado <strong>de</strong>ste ganhasse um espaço<br />

<strong>de</strong> exposição permanente. Na verda<strong>de</strong>,<br />

mesmo com “C’est La Vie” a<br />

correr, o artista francês continua exposto<br />

no “seu” museu. É <strong>uma</strong> vizinhança<br />

algo insólita, que produz um<br />

seguro abalo nos visitantes, <strong>uma</strong> vez<br />

que o tema favorito <strong>de</strong> Maillol eram<br />

raparigas roliças e sensuais, a sua<br />

arte constituindo o género <strong>de</strong> louvor<br />

aos prazeres da vida que as Vaida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong>veriam contrariar. Ao consultar o<br />

folheto da exposição <strong>de</strong>scobrimos,<br />

porém, que este confronto é igualmente<br />

intencional, recomendandose<br />

até ao visitante que transite entre<br />

Maillol e as Vanitas, que é como<br />

quem diz, entre a arte da vida e arte<br />

da morte.<br />

Um faits-divers, só para rematar:<br />

no passado dia 7 <strong>de</strong> Março, o francês<br />

Pascal Guérinau <strong>de</strong>cidiu pendurar<br />

com pioneses <strong>uma</strong> das suas telas no<br />

Museu Maillol. O artista ficou por ali<br />

para ver o efeito e jura que muita gente<br />

se mostrou <strong>de</strong>leitada. Não foi, porém,<br />

o que aconteceu com Olivier<br />

Lorquin, director do museu, que além<br />

<strong>de</strong> ficar furioso com a falha do sistema<br />

<strong>de</strong> segurança, classificou a obra <strong>de</strong><br />

Guérinau <strong>de</strong> “verda<strong>de</strong>ira merda”. O<br />

género <strong>de</strong> inci<strong>de</strong>nte, claro, que só<br />

contribuiu para chamar mais gente<br />

ao Maillol.<br />

São Franciso, o santo que cortejou o êxtase, é ilustrado<br />

por <strong>uma</strong> notável sequência <strong>de</strong> pinturas que incluem este<br />

Zurbarán <strong>de</strong> 1639


Direcção Artística Daniel Cardoso<br />

apresenta<br />

CAOS<br />

// DE 20 A 23 DE ABRIL<br />

ESPECTÁCULO DIA 23 DE ABRIL | 21h00<br />

ACTUAÇÕES DIÁRIAS DE 20 A 22 DE ABRIL | 13h00<br />

/// ENTRADA LIVRE LIMITADA À LOTAÇÃO DA SALA<br />

Programação e produção<br />

// MORADA<br />

Praça Marquês <strong>de</strong> Pombal<br />

nº3, 1250-161 <strong>Lisboa</strong><br />

// TELEFONE<br />

21 359 73 58<br />

// HORÁRIO<br />

Segunda a Sexta<br />

das 9h às 21h<br />

// EMAIL<br />

besarte.financa@bes.pt<br />

<br />

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SÃO<br />

LUIZ<br />

ABR/MAI ~1O<br />

Shopping & Fucking<br />

Prémio da Crítica<br />

2007 da Associação<br />

Portuguesa <strong>de</strong><br />

Críticos <strong>de</strong> Teatro<br />

Fo<strong>de</strong>r e Ir<br />

às Compras<br />

está <strong>de</strong> volta,<br />

<strong>de</strong>pois do sucesso<br />

em 2007.<br />

No São Luiz.<br />

29 Abril a 15 Maio na Sala Principal.<br />

Quarta a sábado às 21h e domingo às 17h30.<br />

A reposição do espectáculo é <strong>uma</strong> co-produção SLTM – Primeiros Sintomas<br />

SÃO LUIZ TEATRO MUNICIPAL<br />

BILHETEIRA DAS 13H ÀS 20H<br />

RUA ANTÓNIO MARIA CARDOSO, 38; 1200-027 LISBOA T: 213 257 650; BILHETEIRA@TEATROSAOLUIZ.PT<br />

GERAL@TEATROSAOLUIZ.PT / T: 213 257 640<br />

BILHETES À VENDA NA TICKETLINE E NOS LOCAIS HABITUAIS<br />

WWW.TEATROSAOLUIZ.PT


“Viagem ao Meio”, a exposição <strong>de</strong><br />

Alexandre Estrela na Galeria Zé dos<br />

Bois (ZDB), em <strong>Lisboa</strong>, é – o título<br />

insinua-o – o resultado <strong>de</strong> <strong>uma</strong> série<br />

<strong>de</strong> pesquisas e trabalhos <strong>de</strong> campo.<br />

Nada <strong>de</strong> documentos ou abordagens<br />

documentais. Produzido pela ZDB e<br />

iniciado há dois anos em diversas residências,<br />

o projecto assinala a continuação<br />

<strong>de</strong> <strong>uma</strong> obra e <strong>de</strong> “temas” que<br />

nela que se repetem: a percepção como<br />

criadora <strong>de</strong> equívocos e encantamentos;<br />

a natureza concreta das imagens<br />

ou as proprieda<strong>de</strong>s escultóricas<br />

da imagem em movimento. Acontece<br />

que, <strong>de</strong>sta vez, Estrela saiu do atelier.<br />

Partiu em viagem.<br />

O primeiro <strong>de</strong>stino foi a Ilha <strong>de</strong> S.<br />

Miguel nos Açores. Aqui <strong>de</strong>finiram-se<br />

os eixos da investigação e <strong>uma</strong> primeira<br />

abordagem à peça que <strong>de</strong>u o<br />

nome a esta individual. Seguiu-se <strong>uma</strong><br />

residência na República Checa, no<br />

âmbito da qual se apresentaram novos<br />

trabalhos na Meet Factory em<br />

Praga, e <strong>uma</strong> viagem a Timor. O trabalho<br />

<strong>de</strong> campo concluiu-se com novo<br />

regresso a São Miguel e <strong>uma</strong> estadia<br />

<strong>de</strong> 15 dias n<strong>uma</strong> cabana nas imediações<br />

do vulcão da Lagoa das Setes<br />

Cida<strong>de</strong>s, na ilha açoriana.<br />

Alg<strong>uma</strong>s referências teóricas/literárias<br />

balizaram o princípio da expedição.<br />

A primeira esteve no livro “Keep<br />

the River on Your Right”, <strong>de</strong> Tobias<br />

Schneebaum, pintor americano que<br />

nos anos 60 abandonou Nova Iorque<br />

para viver com tribos peruanas, partilhando<br />

dos seus costumes.<br />

A intenção <strong>de</strong> Estrela era encontrar<br />

na natureza um novo sistema, <strong>uma</strong><br />

nova maneira <strong>de</strong> pensar; n<strong>uma</strong> comparação<br />

imaginativa, reunir o gesto<br />

dos pintores da Escola <strong>de</strong> Barbizon<br />

(sair do atelier) ao olhar <strong>de</strong> Terrence<br />

Malick em “A Barreira Invisível”. Entretanto,<br />

apareceu “Songlines” <strong>de</strong><br />

Bruce Chatwin (“O Canto Nómada”,<br />

na edição da Quetzal), livro on<strong>de</strong> o<br />

A percepção e<br />

os sentidos:<br />

em “Hydra” os<br />

níveis do<br />

espectro<br />

sonoro<br />

ganham<br />

movimento<br />

por meio <strong>de</strong><br />

<strong>uma</strong> animação<br />

40 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />

viajante e autor inglês revela que na<br />

cultura aborígene a linguagem começou<br />

n<strong>uma</strong> canção e que são as canções<br />

que dão existência ao mundo –<br />

cada paisagem, cada rocha é <strong>uma</strong><br />

canção. Na socieda<strong>de</strong> timorense, baseada<br />

na transmissão <strong>de</strong> conhecimento<br />

por via oral, Estrela encontrou tradições<br />

próximas: as indicações dos<br />

percursos pe<strong>de</strong>stres são transmitidas<br />

pelos seus pares através <strong>de</strong> paisagens<br />

cantadas e as palavras ritmadas promovem<br />

visualmente a existência física<br />

das coisas. Entretanto, o que seria<br />

um exercício na paisagem transformou-se<br />

n<strong>uma</strong> imersão da paisagem.<br />

Conta: “Depois <strong>de</strong> um périplo pela<br />

montanha e as casas sagradas timorenses,<br />

<strong>de</strong>scobri que os populações<br />

consi<strong>de</strong>ram as suas al<strong>de</strong>ias o centro<br />

do mundo, que para elas Timor é o<br />

centro da h<strong>uma</strong>nida<strong>de</strong>. E essa i<strong>de</strong>ia<br />

geocêntrica interessou-me muito”.<br />

De regresso aos Açores, influenciado<br />

por esta cosmogonia, no seguimento<br />

da “repérage” realizada antes,<br />

Estrela (com o curador Natxo Checa)<br />

voltou à Lagoa para concluir “Viagem<br />

ao Meio”. O lugar escolhido foi o Túnel<br />

das Sete Cida<strong>de</strong>s, um canal construído<br />

nos anos 30 para drenar as<br />

águas da lagoa e que perfura as pare<strong>de</strong>s<br />

do vulcão (que tem a maior cratera<br />

do Atlântico). As diferenças térmicas,<br />

a luz, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> meio/centro,<br />

bem como <strong>de</strong> viagem <strong>de</strong>terminaram<br />

o processo. O artista, o curador e assistentes<br />

pegaram num quilómetro e<br />

setecentos metros <strong>de</strong> filme, <strong>de</strong>senrolaram<br />

a bobina do centro para <strong>uma</strong><br />

das pontas e <strong>de</strong>pois voltaram a enrolar.<br />

Em simultâneo com a exposição<br />

da fita, toda a travessia foi registada<br />

em ví<strong>de</strong>o, pelo que os dois suportes<br />

acabam por se cruzar e sobrepor. Vemos<br />

a fita escura, queimada, antes <strong>de</strong><br />

ganhar alvura (protegida pelo escuro<br />

do túnel), enquanto a imagem do ví<strong>de</strong>o<br />

vai caindo num negro cerrado.<br />

“Interessou-me a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> profanação.<br />

Do vulcão e do meio fílmico. Temos<br />

ali um ecrã que recebe a imagem <strong>de</strong><br />

dois meios. A do ví<strong>de</strong>o vai n<strong>uma</strong> direcção<br />

e continua. A do filme, porque<br />

a fita só foi esticada até ao meio, volta<br />

para trás. O que une tudo é o som”.<br />

“Viagem ao meio” tem um lado cerimonial.<br />

Obriga o espectador a fazer<br />

a travessia, a seguir o filme e a película.<br />

Solicita disponibilida<strong>de</strong>, como as<br />

apresentações <strong>de</strong> cinema e ví<strong>de</strong>o experimental<br />

<strong>de</strong> Oporto, projecto que<br />

Estrela dirige há três anos (perto do<br />

Miradouro <strong>de</strong> Santa Catarina, em <strong>Lisboa</strong>).<br />

Esqueçam os “screenings” e<br />

outras massificações do ví<strong>de</strong>o. “As<br />

coisas para serem vistas precisam <strong>de</strong><br />

espaço, <strong>de</strong> contexto e a bancada [que<br />

faz parte da peça “Viagem ao Meio”]<br />

é aí fundamental. Põe-te ao lado, perspectiva-te<br />

o espaço, coloca-te <strong>de</strong> frente<br />

para os dispositivos. Vês a criação<br />

<strong>de</strong> <strong>uma</strong> imagem única, em tempo real,<br />

dada por dois sistemas”.<br />

O encontro com as imagens<br />

Se em “Viagem ao Meio” o espectador<br />

é colocado diante da contaminação<br />

do filme pelo ví<strong>de</strong>o (os dois cruzamse,<br />

sobrepõem-se) e o centro (do túnel<br />

do vulcão) é um centro performativo<br />

(afinal seguimos o filme, a película até<br />

ao interior), em “Le Moiret”, obra<br />

produzida durante <strong>uma</strong> residência na<br />

Bretanha, a imagem <strong>de</strong>sdobra-se para<br />

criar um centro espacial. Um pequeno<br />

ví<strong>de</strong>o projecta, sobre um vidro,<br />

sombras <strong>de</strong> folhas agitadas pelo vento<br />

e a imagem materializa-se (ganha<br />

estrutura física) num canto da pare<strong>de</strong>.<br />

O efeito óptico é “precioso”, táctil e<br />

abriga, segundo Estrela, um novelo<br />

<strong>de</strong> interrogações: “O que é o centro<br />

da imagem? É o centro convencional<br />

da imagem da representação? É o centro<br />

da imagem do ecrã? O centro da<br />

matéria que compõe esse ecrã? Essa<br />

era reflexão que me interessava”. E o<br />

“Interessa-me<br />

trabalhar<br />

a fisicalida<strong>de</strong><br />

da imagem,<br />

a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>uma</strong> imagem ser<br />

concreta, existir, <strong>de</strong><br />

ter atributos físicos”<br />

som, que lugar tem na estrutura <strong>de</strong>ssa<br />

imagem? “Anima as folhas. Oferece<br />

<strong>uma</strong> percepção do vento. Com este<br />

trabalho procurava filmar o que não<br />

é filmável”<br />

A reflexão sobre as proprieda<strong>de</strong>s<br />

físicas das imagens (em movimento)<br />

renova-se na prática <strong>de</strong>ste artista.<br />

“Sim, interessa-me trabalhar a fisicalida<strong>de</strong><br />

da imagem, a possibilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>uma</strong> imagem ser concreta, existir,<br />

<strong>de</strong> ter atributos físicos”. “Flauta”,<br />

através <strong>de</strong> um processo estereoscópico,<br />

cria essa percepção. Duas imagens<br />

alternadas parecem produzir o som<br />

grave do vento que se escuta através<br />

<strong>de</strong> um buraco feito no ecrã. Mas o<br />

efeito é ilusório, assim como o lado<br />

físico da imagem.<br />

Tal como as possibilida<strong>de</strong>s da escultura,<br />

as potencialida<strong>de</strong>s da percepção<br />

continuam a fascinar Estrela. Vejam<br />

“A teia”, plano fixo <strong>de</strong> <strong>uma</strong> teia<br />

pendurada num bambu. Ou será um<br />

falso plano fixo? Ou <strong>uma</strong> imagem em<br />

movimento encontrada em Timor?<br />

“Entendo percepção como o mediador<br />

entre o sujeito e a realida<strong>de</strong> e<br />

interessa-me trabalhá-la não com conceitos,<br />

mas com intuição perceptivas”,<br />

esclarece. “A imagem não <strong>de</strong>ixa<br />

<strong>de</strong> ser <strong>uma</strong> ressonância, vibra a <strong>uma</strong><br />

<strong>de</strong>terminada frequência. Se entrares<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ssa frequência, se a quebrares<br />

e mo<strong>de</strong>lares, po<strong>de</strong> acontecer um<br />

efeito encantatório. Mas não me interessa<br />

a mecânica da visão, e sim a<br />

natureza concreta da memória e da<br />

imagem”.<br />

Alexandre Estrela partiu em<br />

Um fi lme on<strong>de</strong> a fi ta se cruza com o ví<strong>de</strong>o. Um plano fi xo movido pela luz e a sombra. Sons que a<br />

produzir sons. Em “Viagem Ao Meio”, Alexandre Estrela continua a abalar a experiência


Como nomear, então, a imagem da<br />

teia? Uma imagem “encontrada”? E<br />

nesse caso, não estaremos já distantes<br />

da estratégia <strong>de</strong> apropriação que marcou<br />

obras seminais como “Cross sharing<br />

(2000) e “Banned in the Uk”<br />

(2000) ou, já na última década, “Intermission”<br />

(2006)?<br />

“A apropriação <strong>de</strong> imagens foi<br />

transferida para a apropriação do<br />

acaso, mas continuo a encontrar-me<br />

com imagens que já existem. Como<br />

acontece no ‘Songlines’ do Chatwin.<br />

E continuo num processo laboratorial.<br />

Procuro nelas <strong>uma</strong> espécie <strong>de</strong><br />

revelação interna. Isolo-as e ponhoas<br />

em cultura. Tanto num sistema<br />

celular como num sistema cultural”.<br />

Este tem sido o método e o fazer <strong>de</strong><br />

Estrela. Tempo para recordar “Cross<br />

sharing”: “O que fiz foi buscar dois<br />

filmes [“Soylent Green”, <strong>de</strong> Richard<br />

Fleischer, e “Far from the Madding<br />

Crowd”, <strong>de</strong> John Schlesinger] que partilham<br />

o mesmo plano [um plano <strong>de</strong><br />

ovelhas num prado, adquirido num<br />

banco <strong>de</strong> imagens], e uni-os. Juntei-os<br />

nesse plano que é <strong>uma</strong> imagem <strong>de</strong><br />

produção e, ao mesmo tempo, um<br />

plano central nas narrativas. O que<br />

acontece no “Cross sharing” é a união<br />

por meio <strong>de</strong> metanarrativas. Aproprio-me<br />

da apropriação, pois essa<br />

imagem não pertencia originalmente<br />

aos dois filmes”.<br />

Ver crítica <strong>de</strong> exposições págs. 44 e segs<br />

Exposições<br />

“Le Moiret”:<br />

um ví<strong>de</strong>o<br />

projecta,<br />

sobre um<br />

vidro,<br />

sombras <strong>de</strong><br />

folhas<br />

agitadas pelo<br />

vento e a<br />

imagem<br />

materializa-se<br />

viagem<br />

animam imagens. Imagens que parecem<br />

a das imagens. José Marmeleira<br />

25 ABRIL<br />

DOMINGO 18:00 SALA SUGGIA | € 10<br />

70º ANIVERSÁRIO DO NASCIMENTO DE JORGE PEIXINHO<br />

Baldur Brönnimann dir. musical<br />

Angel Gimeno violino<br />

Vítor Pereira clarinete baixo<br />

Luís Rodrigues barítono<br />

Alexandra Moura soprano<br />

Luciano Berio Sequenza VIII<br />

para violino<br />

Luigi Nono Canti per 13<br />

Jorge Peixinho Meta-Formoses,<br />

concerto para clarinete baixo<br />

Jorge Peixinho Viagem da Natural l<br />

Invenção<br />

Jorge Peixinho procurou no mestre<br />

italiano Luigi Nono ensinamentos<br />

que lhe abrissem novas perspectivas<br />

da composição. Cinquenta anos<br />

<strong>de</strong>pois, as suas obras encontram-se<br />

num mesmo programa vanguardista,<br />

ao lado <strong>de</strong> Berio, dando a conhecer<br />

a última década criativa do “pai da<br />

vanguarda portuguesa”.<br />

MECENAS CASA DA MÚSICA<br />

APOIO INSTITUCIONAL MECENAS PRINCIPAL CASA DA MÚSICA<br />

SEJA UM DOS PRIMEIROS A APRESENTAR HOJE ESTE JORNAL COMPLETO NA CASA DA MÚSICA E GANHE UM CONVITE<br />

DUPLO PARA ESTE CONCERTO. OFERTA LIMITADA AOS PRIMEIROS 10 LEITORES.<br />

www.casadamusica.com | www.casadamusica.tv | T 220 120 220<br />

Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 41


Como nomear, então, a imagem da<br />

teia? Uma imagem “encontrada”? E<br />

nesse caso, não estaremos já distantes<br />

da estratégia <strong>de</strong> apropriação que marcou<br />

obras seminais como “Cross sharing<br />

(2000) e “Banned in the Uk”<br />

(2000) ou, já na última década, “Intermission”<br />

(2006)?<br />

“A apropriação <strong>de</strong> imagens foi<br />

transferida para a apropriação do<br />

acaso, mas continuo a encontrar-me<br />

com imagens que já existem. Como<br />

acontece no ‘Songlines’ do Chatwin.<br />

E continuo num processo laboratorial.<br />

Procuro nelas <strong>uma</strong> espécie <strong>de</strong><br />

revelação interna. Isolo-as e ponhoas<br />

em cultura. Tanto num sistema<br />

celular como num sistema cultural”.<br />

Este tem sido o método e o fazer <strong>de</strong><br />

Estrela. Tempo para recordar “Cross<br />

sharing”: “O que fiz foi buscar dois<br />

filmes [“Soylent Green”, <strong>de</strong> Richard<br />

Fleischer, e “Far from the Madding<br />

Crowd”, <strong>de</strong> John Schlesinger] que partilham<br />

o mesmo plano [um plano <strong>de</strong><br />

ovelhas num prado, adquirido num<br />

banco <strong>de</strong> imagens], e uni-os. Juntei-os<br />

nesse plano que é <strong>uma</strong> imagem <strong>de</strong><br />

produção e, ao mesmo tempo, um<br />

plano central nas narrativas. O que<br />

acontece no “Cross sharing” é a união<br />

por meio <strong>de</strong> metanarrativas. Aproprio-me<br />

da apropriação, pois essa<br />

imagem não pertencia originalmente<br />

aos dois filmes”.<br />

Ver crítica <strong>de</strong> exposições págs. 44 e segs<br />

Exposições<br />

“Le Moiret”:<br />

um ví<strong>de</strong>o<br />

projecta,<br />

sobre um<br />

vidro,<br />

sombras <strong>de</strong><br />

folhas<br />

agitadas pelo<br />

vento e a<br />

imagem<br />

materializa-se<br />

viagem<br />

animam imagens. Imagens que parecem<br />

a das imagens. José Marmeleira<br />

25 ABRIL<br />

DOMINGO 18:00 SALA SUGGIA | € 10<br />

70º ANIVERSÁRIO DO NASCIMENTO DE JORGE PEIXINHO<br />

Baldur Brönnimann dir. musical<br />

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Vítor Pereira clarinete baixo<br />

Luís Rodrigues barítono<br />

Alexandra Moura soprano<br />

Luciano Berio Sequenza VIII<br />

para violino<br />

Luigi Nono Canti per 13<br />

Jorge Peixinho Meta-Formoses,<br />

concerto para clarinete baixo<br />

Jorge Peixinho Viagem da Natural l<br />

Invenção<br />

Jorge Peixinho procurou no mestre<br />

italiano Luigi Nono ensinamentos<br />

que lhe abrissem novas perspectivas<br />

da composição. Cinquenta anos<br />

<strong>de</strong>pois, as suas obras encontram-se<br />

num mesmo programa vanguardista,<br />

ao lado <strong>de</strong> Berio, dando a conhecer<br />

a última década criativa do “pai da<br />

vanguarda portuguesa”.<br />

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Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 41


Elia Suleiman resiste (em<br />

silêncio) ) Pág. g 60<br />

m/18<br />

Campanha<br />

4º Aniversário<br />

Clube In com<br />

prémios fantásticos.<br />

Ian<br />

McEwan<br />

“Solar” é um retrato<br />

genialmente corrosivo<br />

– e realista – do<br />

nosso tempo: reduz<br />

alegremente os agentes<br />

da ciência e do po<strong>de</strong>r<br />

político ao grau zero<br />

da competência e da<br />

importância Pág. 53<br />

Bako Dagnon a melhor<br />

cantora africana da actualida<strong>de</strong><br />

Pág. 53<br />

Alexis Kossenko<br />

a versatilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um flautista<br />

Pág. 56<br />

Concerto<br />

<strong>de</strong> Amália Hoje<br />

19 <strong>de</strong> Abril 22h30<br />

segunda-feira<br />

Dee Dee Bridgewater<br />

homenagem exuberante a Billie<br />

Holiday Pág. 56<br />

ENRIC VIVES-RUBIO


Exposições<br />

44 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />

São Miguel, nos Açores, e Timor foram lugares fundamentais<br />

no processo <strong>de</strong> construção <strong>de</strong>sta “Viagem ao Meio”<br />

As novas<br />

imagens i d<strong>de</strong><br />

Alexandre<br />

Estrela<br />

Consequência <strong>de</strong> residências<br />

e digressões, “Viagem ao<br />

Meio reitera a obra <strong>de</strong>ste<br />

artista como <strong>uma</strong> das<br />

mais provocantes da arte<br />

contemporânea. José<br />

Marmeleira<br />

Viagem ao Meio<br />

De Alexandre Estrela.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Galeria Zé dos Bois. Rua da Barroca, 59.<br />

Tel.: 213430205. Até 29/05. 4ª a Sáb. das 15h às<br />

23h.<br />

Ví<strong>de</strong>o, Outros.<br />

mmmmm<br />

Alexandre Estrela (1971, <strong>Lisboa</strong>) é<br />

um daqueles (raros) artistas que<br />

empurram, que põem a arte<br />

(enquanto conceito e enquanto<br />

experiência) em movimento. Há 14<br />

anos que <strong>de</strong>safia a percepção do<br />

espectador com efeitos visuais,<br />

frequências sonoras,<br />

metanarrativas, tensões no espaço,<br />

sincronias e sinestesias. Sempre a<br />

partir <strong>de</strong> um processo laboratorial,<br />

minucioso (po<strong>de</strong>ríamos dizer paracientífico)<br />

que exige um contexto e<br />

um tempo para acontecer como<br />

obra.<br />

Originada por câmaras e<br />

projectores, pequenas animações ou<br />

ensaios, a imagem em movimento<br />

representa a matéria <strong>de</strong>ssa obra.<br />

Com as suas vibrações, as suas<br />

ressonâncias; quase física, por vezes<br />

encantatória. Pronta a ganhar corpo,<br />

por vezes a ser escultura. Esse lado<br />

encantatório (“mágico”?) não <strong>de</strong>ve<br />

ser confundido com um simples<br />

truque dirigido ao espectador. Para<br />

o artista, a ilusão é <strong>uma</strong> forma <strong>de</strong><br />

pensar a memória e a natureza física<br />

das imagens.<br />

Patente na Galeria Zé dois Bois,<br />

“Viagem ao Meio”, a nova exposição<br />

<strong>de</strong> Alexandre Estrela, continua no<br />

trilho <strong>de</strong>stas questões. O projecto<br />

aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />

Alexandre Ale Estrela continua a<br />

proporcionar-nos pro<br />

novos encontros<br />

com as imagens. O que é mesmo que<br />

dizer: diz encontros com novas<br />

imagens. im<br />

Ajustes A <strong>de</strong><br />

contas c<br />

Modos Mo <strong>de</strong> lidar com a<br />

história his na pintura <strong>de</strong> Tiago<br />

Baptista. Ba Luísa Soares <strong>de</strong><br />

Oliveira Ol<br />

nasceu no seguimento <strong>de</strong><br />

um trabalho <strong>de</strong> campo que se esten<strong>de</strong>u a várias residências<br />

internacionais e nacionais, com a<br />

há objecto físico,<br />

apenas um buraco sincronizado com<br />

um som preexistente que abala a<br />

Um U dia <strong>de</strong>stes<br />

De Tiago Baptista.<br />

produção da ZDB e a curadoria <strong>de</strong><br />

Natxo Checa. A ilha <strong>de</strong> São Miguel,<br />

nos Açores, e Timor foram os<br />

principais pólos do processo. No<br />

materialida<strong>de</strong> da imagem. Este<br />

tremor que se faz aos sentidos po<strong>de</strong><br />

nascer <strong>de</strong> um simples plano<br />

“encontrado”, como em “A teia”. É<br />

<strong>Lisboa</strong>. Galeria 3+1 Arte Contemporânea. R.<br />

António Maria Cardoso, 31. Tel.: 210170765. Até<br />

17/04. 3ª a Sáb. das 14h às 20h.<br />

Pintura.<br />

contacto com as paisagens e as<br />

culturas locais, o artista <strong>de</strong>scobriu<br />

isso mesmo: <strong>uma</strong> pequena teia <strong>de</strong><br />

aranha num bambu, sobre um fundo<br />

mmmmn<br />

espaços e conceitos que serviram <strong>de</strong> <strong>de</strong> cimento riscado. Parece <strong>uma</strong> Tiago Baptista (n. 1986) ganhou<br />

princípios às suas obras. Referimo- montagem, <strong>uma</strong> manipulação, mas é recentemente o prémio <strong>de</strong> pintura<br />

nos, por exemplo, às i<strong>de</strong>ias do tão-somente <strong>uma</strong> imagem tornada Fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> e, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> alg<strong>uma</strong>s<br />

“meio” ou <strong>de</strong> centro: o meio ou o concreta pelo efeito do sol e das apresentações colectivas, tem agora<br />

processo artístico, o centro como nuvens. E um dos mais belos (nada a sua primeira individual em <strong>Lisboa</strong>,<br />

centro da imagem ou <strong>de</strong> <strong>uma</strong> nos impe<strong>de</strong> <strong>de</strong> usar este adjectivo) na galeria 3+1. Trata-se <strong>de</strong> pintura,<br />

cosmogonia.<br />

trabalhos <strong>de</strong> Alexandre Estrela. Um como sempre tem sucedido <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />

O trabalho central <strong>de</strong> “Viagem ao espanto semelhante dá-se com “Le início do seu trabalho. Pela primeira<br />

Meio” é exactamente a peça<br />

Moiret”. O meio e os materiais são vez, no entanto, é possível<br />

homónima, realizada no túnel do frugais (projecção e um vidro confrontar lado a lado, ou frente a<br />

vulcão das Sete Cida<strong>de</strong>s: um filme preparado disposto num canto da frente, um conjunto coerente <strong>de</strong><br />

que é também um percurso.<br />

sala), mas criam <strong>uma</strong> ilusão óptica e obras. E isto é importante quando a<br />

Explicamos: <strong>uma</strong> bobine <strong>de</strong> 16mm um conflito <strong>de</strong> tramas que o som – opção, marcada <strong>de</strong> um modo quase<br />

foi <strong>de</strong>senrolada do centro do túnel “feito” escultura – vem animar. A <strong>de</strong>safiador, é pela figuração e pelo<br />

até ao exterior, tendo ficado<br />

imagem ganha volume e centro. impulso narrativo. Não é possível<br />

queimada pela luz antes <strong>de</strong> voltar a A intervenção no espaço<br />

encarar esta pintura<br />

ser enrolada. Eis, digamos assim, a expositivo, como “Putting Fear in its indiferentemente, quer se consi<strong>de</strong>re<br />

primeira “narrativa”, <strong>uma</strong><br />

Place”, no Espaço Chiado 8, também a temática, quer as características<br />

“narrativa” revelada sem câmara: se manifesta na criação <strong>de</strong> um estilísticas: pintura colorida, por<br />

assim que a projecção começa, corredor. Não apenas <strong>uma</strong><br />

vezes a roçar o “mau gosto”, e temas<br />

vemos o preto da fita passar a orientação do espectador, mas provocatórios que nos remetem<br />

branco, imaculado, porque<br />

também dos sons que chegam <strong>de</strong> para um passado não muito distante,<br />

protegido pelo escuro. A<br />

“Hidra”, peça na qual o artista, a ou para a apropriação e a <strong>de</strong>struição<br />

acompanhar este movimento, e na partir <strong>de</strong> teste <strong>de</strong> hidrodinâmica e dos ícones maiores do classicismo.<br />

mesma direcção, vislumbramos por meio <strong>de</strong> animação, converte os Uma das pinturas principais da<br />

outra viagem, esta do princípio ao diferentes níveis do espectro sonoro exposição mostra um grupo <strong>de</strong><br />

fim do túnel e registada pelo ví<strong>de</strong>o. em linhas em movimento. Em s<strong>uma</strong>: quatro jovens dos quais um (o pintor<br />

No ecrã sobrepõem-se e distanciamse<br />

as duas: com o ví<strong>de</strong>o vemos a luz Tiago Baptista está longe da pintura da limpeza<br />

gravada na entrada a sumir-se num<br />

ponto (a saída), enquanto no filme<br />

acontece o oposto. Este chega<br />

mesmo a diluir o negro do túnel, tal<br />

é a alvura da fita virgem. Peça que<br />

sobrepõe, junta e cruza diferentes<br />

processos <strong>de</strong> criação da imagem<br />

(reparem na posição da bancada<br />

confrontando-nos com esse “fazer”),<br />

“Viagem ao Meio” é também <strong>uma</strong><br />

experiência performativa. O ví<strong>de</strong>o<br />

“documenta” a passagem no túnel e,<br />

afinal, estamos <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />

câmara escura.<br />

Em “Flauta”, o aparato é menor,<br />

mas o efeito não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser bizarro<br />

e complexo. Pressentem-se as<br />

semelhanças formais com “The<br />

overt statuette” (2008), muito por<br />

causa do processo usado: a<br />

estereoscopia a partir <strong>de</strong> duas<br />

imagens. Neste trabalho, porém, não<br />

asséptica que se apresenta em tanta exposição


Bienal<br />

em auto-retrato) grava na pedra a<br />

inscrição “re<strong>de</strong>nção era morrermos<br />

todos queimados”, enquanto os<br />

<strong>de</strong>mais olham com ar mais ou<br />

menos pensativo o trabalho <strong>de</strong><br />

escultura. Pelo chão, cavaleiros,<br />

aviões e outros objectos <strong>de</strong> pedra,<br />

indicativos <strong>de</strong> <strong>uma</strong> possível<br />

catástrofe anunciada. A pose <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />

das personagens, a paisagem e a<br />

acção realizada recordam um dos<br />

célebres quadros <strong>de</strong> Poussin <strong>de</strong><br />

iconografia ainda hoje misteriosa,<br />

‘Et in Arcadia ego’: um grupo <strong>de</strong><br />

quatro pastores que lê a inscrição do<br />

título num túmulo antiquizante. O<br />

quadro tem sido intepretado <strong>de</strong><br />

várias maneiras, inclusive como <strong>uma</strong><br />

espécie <strong>de</strong> memória da condição<br />

mortal a que <strong>de</strong>uses, heróis e<br />

homens estão sujeitos. Ao comentar<br />

com a maior radicalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que é<br />

capaz o quadro, ao substituir-se até<br />

ao próprio Poussin, Tiago Baptista,<br />

por um lado, coloca-se na linhagem<br />

oci<strong>de</strong>ntal da pintura; mas, por<br />

outro, consi<strong>de</strong>ra com <strong>de</strong>sencanto e<br />

ironia o seu próprio lugar na<br />

contemporaneida<strong>de</strong>.<br />

Outras pinturas <strong>de</strong>senvolvem esta<br />

temática: um jovem vestindo a farda<br />

da Mocida<strong>de</strong> Portuguesa insere-se<br />

n<strong>uma</strong> paisagem em fogo, e um<br />

homem (o retrato do pai do artista)<br />

cabisbaixo junto a um porco<br />

remetem para <strong>uma</strong> queda que se<br />

materializa, noutros quadros, em<br />

fornalhas <strong>de</strong> livros ou incêndios <strong>de</strong><br />

edifícios industriais. Noutras obras,<br />

<strong>de</strong> tamanho menor, é a violência do<br />

texto religioso que é tratada: cabeças<br />

<strong>de</strong> cor<strong>de</strong>iro, um pão com <strong>uma</strong> faca<br />

enterrada. E sempre, em toda a<br />

exposição, a mesma técnica<br />

violentamente colorida, o mesmo<br />

<strong>de</strong>senho minucioso a lembrar, por<br />

exemplo, a ilustração ou a banda<br />

<strong>de</strong>senhada.<br />

Ao lidar com o passado da<br />

pintura, o passado pessoal ou a<br />

história recente do seu país, que<br />

Tiago Baptista não conheceu por<br />

força das circunstâncias, esta<br />

pintura aproxima-se <strong>de</strong> um tom<br />

apocalíptico, melancólico e mesmo<br />

um pouco romântico que possui<br />

tradições fortes em Portugal.<br />

Pensamos sobretudo em poesia, em<br />

algum Cesariny – porque aqui<br />

também existe ironia socrática, no<br />

sentido do estabelecimento da<br />

distância necessária ao pensamento<br />

-, no primeiro Almada, e sobretudo<br />

no <strong>de</strong>vaneio pelas ruas <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong> do<br />

Bernardo Soares do “Livro do<br />

Desassossego”. Muito longe está esta<br />

pintura da limpeza asséptica e<br />

irrepreensível que se apresenta em<br />

tanta exposição. Muito longe está ela<br />

da norma mo<strong>de</strong>rnista que afastava<br />

irremediavelmente pintura e<br />

literatura. É <strong>uma</strong> pintura que<br />

incomoda, que voluntariamente se<br />

afasta dos padrões estabelecidos<br />

para o gosto e para a arte<br />

contemporânea para tentar criar<br />

algo <strong>de</strong> novo. Merece, por isso, ser<br />

seguida com atenção e cuidado.<br />

A VII Bienal<br />

Ibero-Americana<br />

<strong>de</strong> Arquitectura<br />

e Urbanismo, que<br />

este ano se realiza<br />

em Me<strong>de</strong>llín, na<br />

Colômbia, entre<br />

11 e 17 <strong>de</strong> Outubro,<br />

seleccionou <strong>de</strong>z obras<br />

portuguesas para a<br />

categoria “Panorama Ibero-<br />

Agenda<br />

Inauguram<br />

On The Grid<br />

De Frank Breuer.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Espaço Round The Corner - Porta 9F/9G. R.<br />

Nova da Trinda<strong>de</strong> - Teatro da Trinda<strong>de</strong>. Tel.:<br />

213420000. Até 20/04. 2ª, 3ª, Sáb. e Dom. das 16h<br />

às 20h. Inaugura 16/4 ás 21h.<br />

Fotografia.<br />

Caminhos para Além do<br />

Regresso<br />

De Graça Pereira Coutinho.<br />

Guimarães. Galeria Gomes Alves 1. R. Gravador<br />

Molarinho, 11. Tel.: 253515408. Até 12/05. 3ª a Sáb.<br />

das 10h30 às 19h. Inaugura 16/4 às 22h.<br />

Outros.<br />

Em Nenhum Lugar<br />

De André Silva.<br />

Porto. Galeria Arthobler. R. Miguel Bombarda, 624.<br />

Tel.: 226084448. De 17/04 a 17/05. 3ª a Sáb. das 15h<br />

às 19h30.<br />

Pintura, Desenho, Instalação,<br />

Escultura.<br />

Linguagem e<br />

Experiência -<br />

Obras da Colecção<br />

da Caixa Geral <strong>de</strong><br />

Depósitos<br />

De Alberto Carneiro,<br />

Joaquim Rodrigo,<br />

Nikias Skapinakis,<br />

Lour<strong>de</strong>s Castro, entre<br />

outros.<br />

Oeiras. CC Palácio do Egipto.<br />

R. Álvaro António dos Santos.<br />

Tel.: 915439065. De 17/04 a<br />

20/06. 3ª a Dom. e Feriados<br />

das 11h30 às 18h (última 6ª do<br />

mês encerra às 0h).<br />

Fotografia, Outros.<br />

João Penalva<br />

na Chiado 8<br />

G.D Parada/Sussex By The Sea -<br />

Duncan Whitley<br />

De Duncan Whitley.<br />

Porto. Museu <strong>de</strong> Serralves. R. Dom João <strong>de</strong> Castro,<br />

210. Tel.: 226156500. De 17/04 a 16/05. 3ª a 6ª das<br />

10h às 17h. Sáb., Dom. e Feriados das 10h às 20h.<br />

Instalação, Som. Ciclo “Documentese!<br />

Sentidos do Reconhecimento”.<br />

World Press Cartoon<br />

Sintra. Museu <strong>de</strong> Arte Mo<strong>de</strong>rna Colecção Berardo.<br />

Av. Heliodoro Salgado. Tel.: 219248170. De 17/04 a<br />

04/07. 3ª a Dom. das 10h às 18h.<br />

Cartoon.<br />

Retrospectiva - Leal da Câmara<br />

Sintra. Museu <strong>de</strong> Arte Mo<strong>de</strong>rna Colecção Berardo.<br />

Av. Heliodoro Salgado. Tel.: 219248170. De 17/04 a<br />

31/10. 3ª a Dom. das 10h às 18h.<br />

Pintura, Desenho, Outros.<br />

The Passage To The Mind’s<br />

Antipo<strong>de</strong>s<br />

De João Ó.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Paulo Amaro Contemporary Art. R. Capitão<br />

Leitão, 14. Tel.: 214544450. Até 29/05. 3ª a Sáb. das<br />

11h às 19h30. Inaugura 17/4 às 17h.<br />

Fotografia, Instalação.<br />

Memória do Campo <strong>de</strong><br />

Concentração do Tarrafal<br />

Vila Franca <strong>de</strong> Xira. Museu do Neo-Realismo. R.<br />

Alves Redol, 45. Tel.: 263285626. Até 29/08. 3ª a 6ª<br />

das 10h às 19h. Sáb. das 12h às 19h. Dom. das 11h às<br />

18h. Inaugura 17/4 às 18h.<br />

Americano:<br />

MUDE (Ricardo<br />

Carvalho + Joana Vilhena<br />

Arquitectos); Centro<br />

Sócio-Cultural Laranjeiro<br />

Documental, Outros.<br />

Paula Rego - Obra Gráfica<br />

Castelo Branco. 102-100 Galeria <strong>de</strong> Arte. R. <strong>de</strong> Sta<br />

Maria, 100. Tel.: 933180211. Até 19/06. 3ª a 6ª das 15h<br />

às 19h. Sáb. das 10h30 às 19h. Inaugura 17/4 às 18h.<br />

Obra gráfica.<br />

The Absent Space<br />

De José María Yturral<strong>de</strong>.<br />

Braga. Galeria Mário Sequeira - Parada <strong>de</strong> Tibães.<br />

Qta da Igreja (Parada <strong>de</strong> Tibães). Tel.: 253602550.<br />

Até 29/05. 2ª a 6ª das 13h às 19h. Sáb. das 15h às 19h.<br />

Inaugura 17/4 às 18h.<br />

Pintura.<br />

Soft Theraphy<br />

De Santiago Villanueva.<br />

Braga. Galeria Mário Sequeira - Parada <strong>de</strong> Tibães.<br />

Qta da Igreja (Parada <strong>de</strong> Tibães). Tel.: 253602550.<br />

Até 29/05. 2ª a 6ª das 13h às 19h. Sáb. das 15h às 19h.<br />

Inaugura 17/4 às 18h.<br />

Escultura, Outros.<br />

Artelogia (Ap-Artes/Ciência)<br />

De Nuno Maya, Carole Purnelle.<br />

Algés. Centro <strong>de</strong> Arte Manuel <strong>de</strong> Brito - Palácio dos<br />

Anjos. Al. Hermano Patrone. Tel.: 214111400. De<br />

20/04 a 16/05. 3ª a Dom. das 11h30 às 18h.<br />

Instalação, Ví<strong>de</strong>o, Outros.<br />

Continuam<br />

A Matéria Negra da Luz dos<br />

Media<br />

De Dara Birnbaum.<br />

Porto. Museu <strong>de</strong> Serralves. R. Dom João <strong>de</strong> Castro,<br />

210. Tel.: 226156500. Até 04/07. 3ª a 6ª das 10h às<br />

17h. Sáb., Dom. e Feriados das 10h às<br />

20h.<br />

Ví<strong>de</strong>o, Outros.<br />

Pavlina e o Dr.<br />

Erlenmayer<br />

De João Penalva.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Chiado 8 Arte<br />

Contemporânea. Lg. do Chiado, 8.<br />

Tel.: 213237346. 2ª a 6ª das 12h às<br />

20h. Inaugura hoje às 22h.<br />

Um Percurso, Dois<br />

Sentidos - A Colecção<br />

do MNAC-MC, da<br />

actualida<strong>de</strong> a 1850.<br />

De Columbano Bordalo Pinheiro, José<br />

Malhoa, Ama<strong>de</strong>o <strong>de</strong> Souza-Cardoso,<br />

entre outros.<br />

<strong>Lisboa</strong>. MNAC - Museu do Chiado. R. Serpa Pinto, 4.<br />

T. 213432148. Até 6/6. 3ª a dom. das 10h às 18h.<br />

Pintura, Outros.<br />

Outros Olhares<br />

De Columbano Bordalo Pinheiro,<br />

Julião Sarmento.<br />

<strong>Lisboa</strong>. MNAC - Museu do Chiado. R. Serpa Pinto, 4.<br />

T. 213432148. Até 18/5. 3ª a dom. das 10h às 18h.<br />

Pintura, Outros.<br />

Khora<br />

De Alberto Carneiro, Rui Chafes.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Fundação Carmona e Costa. Ed <strong>de</strong> Espanha-<br />

R. Soeiro Pereira Gomes L1 - 6º A/C/D. Tel.:<br />

217803003. Até 21/05. 4ª a Sáb. das 15h às 20h.<br />

Desenho, Escultura, Outros.<br />

Lour<strong>de</strong>s Castro e Manuel Zimbro:<br />

A Luz da Sombra<br />

Porto. Museu <strong>de</strong> Serralves. R. Dom João <strong>de</strong> Castro,<br />

210. Tel.: 226156500. Até 13/06. 3ª a 6ª das 10h às<br />

17h. Sáb., Dom. e Feriados das 10h às 22h.<br />

Escultura, Outros.<br />

Sem Re<strong>de</strong><br />

De Joana Vasconcelos.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Museu Colecção Berardo. Pç. do Império -<br />

CCB. Tel.: 213612878. Até 18/05. Sáb. das 10h às 22h.<br />

2ª a 6ª, Dom. e Feriados das 10h às 19h.<br />

Instalação, Outros.<br />

Auto-Retratos do Mundo:<br />

Annemarie Schwarzenbach<br />

(Pedro Men<strong>de</strong>s<br />

Arquitectos); La<br />

Casa <strong>de</strong> Libro<br />

(Olga Sanina<br />

e Marcelo<br />

Dantas Arquitectos);<br />

Casa no Alto da Ajuda<br />

(Extrastudio); Superfície<br />

Comercial MiniPreço (José<br />

Fernan<strong>de</strong>s Gonçalves);<br />

Espaço Público do Cacém<br />

(1908-1942)<br />

<strong>Lisboa</strong>. Museu Colecção Berardo. Pç. do Império -<br />

CCB. Tel.: 213612878. Até 25/04. Sáb. das 10h às 22h.<br />

2ª a 6ª e Dom. das 10h às 19h.<br />

Fotografia.<br />

Judith Barry<br />

<strong>Lisboa</strong>. Museu Colecção Berardo. Pç. do Império -<br />

CCB. Tel.: 213612878. Até 25/04. Sáb. das 10h às 22h.<br />

2ª a 6ª e Dom. das 10h às 19h.<br />

Ví<strong>de</strong>o, Instalação, Outros.<br />

Robert Longo<br />

<strong>Lisboa</strong>. Museu Colecção Berardo. Pç. do Império -<br />

CCB. Tel.: 213612878. Até 25/04. Sáb. das 10h às 22h.<br />

2ª a 6ª e Dom. das 10h às 19h.<br />

Desenho, Outros.<br />

A Perspectiva Das Coisas. A<br />

Natureza-Morta Na Europa,<br />

Séculos XVII-XVII<br />

De Juan Zurbarán, Rembrandt van<br />

Rijn, Francisco <strong>de</strong> Goya, entre outros.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Fundação e Museu Calouste Gulbenkian. Av.<br />

<strong>de</strong> Berna, 45A. Tel.: 217823700. Até 02/05. 3ª a Dom.<br />

das 10h às 18h.<br />

Pintura.<br />

Sachenhausen: Um Domingo<br />

De Jorge Leal.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Museu da Electricida<strong>de</strong>. Av. Brasília - Ed.<br />

Central Tejo. Tel.: 210028120. Até 23/05. 3ª a Dom.<br />

(Risco); Arquivo <strong>Municipal</strong><br />

<strong>de</strong> Loures (Fernando<br />

Martins e João Manuel<br />

Santa Rita); Casa Cork<br />

(Arquitectos Anónimos);<br />

Estação Biológica do<br />

Gardunho (Ventura<br />

Trinda<strong>de</strong> Arquitectos)<br />

e Café + Estrutura <strong>de</strong><br />

Sombreamento, Sacavém<br />

(ateliemob).<br />

das 10h às 18h.<br />

Pintura.<br />

Térmico<br />

De Gabriela Albergaria.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Museu da Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>. Campo Gran<strong>de</strong>, 245.<br />

Tel.: 217513200. Até 13/06. 3ª a Dom. das 10h às 18h.<br />

Desenho, Escultura.<br />

Mystic Diver<br />

De Catarina Dias.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Museu da Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong> - Pavilhão Preto.<br />

Campo Gran<strong>de</strong>, 245. Tel.: 217513200. Até 13/06. 3ª a<br />

Dom. das 10h às 18h.<br />

Desenho, Performance, Objectos,<br />

Outros.<br />

O Ofício <strong>de</strong> Viver<br />

De Daniel Blaufuks.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Carlos Carvalho - Arte Contemporânea. R. Joly<br />

Braga Santos, Lote F - r/c. Tel.: 217261831. Até 15/05. 2ª<br />

a 6ª das 10h30 às 19h30. Sáb. das 12h às 19h30.<br />

Fotografia, Ví<strong>de</strong>o.<br />

Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 45


Livros<br />

Ian McEwan sabe que, por trás<br />

<strong>de</strong> cada história <strong>de</strong> sucesso,<br />

existe um tecido <strong>de</strong> mentiras,<br />

<strong>de</strong> fraquezas e <strong>de</strong> corrupção<br />

moral e material<br />

Ficção<br />

Perturbações<br />

climáticas<br />

McEwan reduz alegremente<br />

os agentes da ciência e<br />

do po<strong>de</strong>r político ao grau<br />

zero da competência e da<br />

importância. Um retrato<br />

do nosso tempo. Helena<br />

Vasconcelos<br />

Solar<br />

Ian McEwan<br />

(Trad. Ana Falcão Bastos)<br />

Ed. Gradiva<br />

mmmmm<br />

O que aconteceria se nos<br />

libertássemos da tirania do petróleo<br />

– tal como os nossos pais, no século século<br />

XX, XX X , dispensaram o carvão que<br />

alimentara al a imentara a Revolução<br />

Industrial In I dustrial – e, num gigantesco<br />

passo pa p sso civilizacional,<br />

puséssemos pu p séssemos <strong>de</strong> lado lado os<br />

co ccombustíveis mbustíveis fósseis?<br />

Vi VViveríamos veríamos num<br />

mu mmundo ndo melhor,<br />

me mmenos nos <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<br />

do ddos s interesses<br />

ec eeconómicos, onómicos, das<br />

po ppolíticas líticas e das<br />

id ii<strong>de</strong>ologias eologias se a<br />

ga ggasolina, solina, o gás<br />

na nnatural tural e o<br />

pl pplutónio utónio<br />

passassem à<br />

categoria <strong>de</strong><br />

especímenes<br />

<strong>de</strong> museu e<br />

fossem<br />

substituídas<br />

pela energia<br />

solar, bem<br />

mais barata,<br />

“<strong>de</strong>mocrática”<br />

e acessível a<br />

todos?<br />

É a partir<br />

<strong>de</strong>ste<br />

pressuposto que<br />

Ian McEwan constrói<br />

o seu último romance,<br />

centrando a acção na<br />

fi ffigura gura <strong>de</strong> Michael Beard, um<br />

notável físico, gran<strong>de</strong><br />

conhecedor das energias<br />

alternativas, <strong>de</strong>tentor <strong>de</strong> um<br />

Prémio Nobel mas que, no<br />

primeiro capítulo do livro,<br />

passado em 2000, já<br />

com com 53 anos, se<br />

encontra em<br />

<strong>de</strong>cadência,<br />

“diminuído,<br />

anedónico,<br />

monotemático,<br />

<strong>de</strong>vastado”, a<br />

braços com um<br />

casamento em<br />

colapso e um total<br />

<strong>de</strong>sinteresse pelo<br />

trabalho. Nos<br />

tempos recuados<br />

em que fora feliz... “Beard passara<br />

<strong>uma</strong> tar<strong>de</strong> a ler a história das<br />

turbinas eólicas. Nessa fase da sua<br />

vida achava que a física era<br />

relativamente simples...” (pág. 44),<br />

<strong>uma</strong> disciplina cheia <strong>de</strong> “beleza<br />

pura”, com as suas equações<br />

atractivas e compreensíveis. No<br />

entanto, essa recordação contrasta<br />

violentamente com a sua situação<br />

actual, a <strong>de</strong> um homem corrompido<br />

pelo sistema, acomodado, com<br />

vários quilos a mais e <strong>uma</strong> calvície<br />

galopante (<strong>uma</strong> espécie <strong>de</strong><br />

Tweedle<strong>de</strong>e/Tweedledum), cuja<br />

existência se resume a usufruir dos<br />

di divi<strong>de</strong>ndos da glória passada.<br />

Em plena época Blair, que<br />

en entusiasticamente tentou fazer da<br />

Gr Grã-Bretanha um país competitivo<br />

no<br />

campo científico, Beard é<br />

co convidado a dirigir um<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>partamento generosamente<br />

fin financiado, on<strong>de</strong> a criativida<strong>de</strong> é<br />

pa palavra <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m, mas que<br />

ra rapidamente se agiganta n<strong>uma</strong><br />

co complexida<strong>de</strong> esmagadora, só dá<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>spesa e se torna, para ele, um<br />

lu lugar penoso, cheio <strong>de</strong> jovens<br />

en enérgicos e cheios <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias, como é<br />

o<br />

caso do cansativo e genial Tom<br />

Al Aldous. Na realida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o Nobel<br />

qu que Beard não faz nada para além <strong>de</strong><br />

se<br />

arrastar por seminários, palestras,<br />

co conferências e entregas <strong>de</strong> prémios.<br />

Pa Para fugir à humilhação da sua<br />

sit situação matrimonial aceita um<br />

co convite para <strong>uma</strong> expedição ao<br />

Ár Árctico com um grupo <strong>de</strong> artistas,<br />

“p “para ver <strong>de</strong> perto as alterações<br />

cli climáticas”. A viagem, com todas as<br />

su suas peripécias – a mais sarcástica<br />

da das contradições é a contribuição<br />

do dos presentes para o aquecimento<br />

gl global com as suas motas <strong>de</strong> gelo e<br />

os<br />

seus abrigos hiper-aquecidos –<br />

tra transforma-se num emaranhado <strong>de</strong><br />

sit situações embaraçosas e serve para<br />

ilu ilustrar a incapacida<strong>de</strong> do ser<br />

hu h<strong>uma</strong>no para mudar <strong>de</strong> hábitos e<br />

ar arriscar, para além da referência<br />

iró irónica à tendência, muito em voga e<br />

ut utilizada pelo próprio autor, para<br />

fu fundir arte com ciência.<br />

Assim, quando Beard se <strong>de</strong>para<br />

co com <strong>uma</strong> oportunida<strong>de</strong> – que surge<br />

sin sinistra e aci<strong>de</strong>ntalmente como é<br />

pr próprio das tramas <strong>de</strong> McEwan –<br />

pa para <strong>de</strong>senvolver um projecto no<br />

ár árido e soalheiro Novo México,<br />

ag agarra-a sem entusiasmo mas com a<br />

ce certeza <strong>de</strong> que se trata da sua única<br />

hi hipótese <strong>de</strong> sobrevivência. De<br />

ci cientista a burocrata, <strong>de</strong> amante<br />

fo fogoso a marido traído, <strong>de</strong> cidadão<br />

ex exemplar a criminoso, cheio da sua<br />

pr própria importância e incapaz <strong>de</strong><br />

al alterar vícios e rotinas, representa a<br />

pe personagem típica da farsa, com a<br />

aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />

sua pose hedonista e pusilânime.<br />

“Solar” tem mais dois capítulos,<br />

um passado em 2005 e outro em<br />

2009, n<strong>uma</strong> progressão no tempo<br />

que acompanha, a nível global, a<br />

alteração <strong>de</strong> políticas e os avanços e<br />

recuos em relação ao uso e<br />

comercialização <strong>de</strong> energias<br />

alternativas e, a nível pessoal, o<br />

envelhecimento <strong>de</strong> Beard. O<br />

académico que não resiste ao plágio,<br />

o “gran<strong>de</strong>” homem que continua a<br />

perseguir mulheres, que vomita a<br />

seguir a <strong>uma</strong> conferência sobre as<br />

energias limpas, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> <strong>de</strong>vorar<br />

nove sanduíches <strong>de</strong> salmão, é o<br />

símbolo da cultura, da ciência, da<br />

abundância – <strong>de</strong> conhecimento, <strong>de</strong><br />

bens materiais, <strong>de</strong> sexo, <strong>de</strong> conforto<br />

– e da entropia inerente a <strong>uma</strong><br />

socieda<strong>de</strong> que se distancia cada vez<br />

mais da realida<strong>de</strong>.<br />

McEwan fez <strong>uma</strong> viagem ao<br />

Árctico em 2005 com um grupo <strong>de</strong><br />

artistas e cientistas e, segundo o seu<br />

testemunho, divertiu-se muito.<br />

Quando, em 2007, foi convidado a<br />

participar num seminário em<br />

Potsdam <strong>de</strong>dicado às alterações<br />

climáticas, on<strong>de</strong> se encontravam<br />

vários Prémios Nobel, a i<strong>de</strong>ia para<br />

este livro ganhou consistência. “Fui<br />

cativado pela gran<strong>de</strong>za dos<br />

“nobelizados”. Ver tantos ao mesmo<br />

tempo, todos terrivelmente<br />

inteligentes e grandiosos, lendas<br />

vivas aos seus próprios olhos, foi<br />

qualquer coisa, <strong>de</strong>clarou o autor<br />

com a sua peculiar ironia que <strong>de</strong>ve<br />

muito a Juvenal, a Montaigne e<br />

principalmente a Flaubert que<br />

<strong>de</strong>finiu bem esses homens – porque<br />

são normalmente homens –<br />

pomposos que “querem sempre<br />

chegar a conclusões <strong>de</strong>finitivas” e se<br />

esforçam por mostrar <strong>uma</strong> fachada<br />

<strong>de</strong> segurança, saber e elevação.<br />

McEwan, em “Solar”, cria um<br />

universo sem personagens<br />

simpáticas – mesmo a melíflua<br />

Melissa tem algo <strong>de</strong> repugnante – e<br />

não se coíbe <strong>de</strong> exibir os seus<br />

conhecimentos científicos, enquanto<br />

reduz alegremente os agentes da<br />

ciência e do po<strong>de</strong>r político e<br />

administrativo ao grau zero da<br />

competência e da importância.<br />

(Umberto Eco estabeleceu a<br />

diferença entre o imbecil, o cretino e<br />

o estúpido e, em “Solar” há bons<br />

exemplos das três categorias.) No<br />

entanto, Beard tem direito a um<br />

certo tipo <strong>de</strong> “re<strong>de</strong>nção”, embora<br />

esta se revele por caminhos muito<br />

ínvios e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> vários tropeços,<br />

erros e humilhações. O autor sabe<br />

que, por trás <strong>de</strong> cada história <strong>de</strong><br />

sucesso, existe um tecido <strong>de</strong><br />

mentiras, <strong>de</strong> fraquezas e <strong>de</strong><br />

corrupção moral e material, o peso<br />

das ansieda<strong>de</strong>s domésticas, o tédio,<br />

as maleitas gastrointestinais e a<br />

pressão inerente à manutenção <strong>de</strong><br />

<strong>uma</strong> <strong>de</strong>terminada imagem e <strong>de</strong> um<br />

certo estatuto. Selvagem, ultrajante,<br />

pessimista e sarcástico, McEwan<br />

dá-nos um retrato genialmente<br />

corrosivo – e realista – do nosso<br />

tempo, num romance subversivo em<br />

que a tragédia e a sátira – citando<br />

Dostoievski – “estão sempre <strong>de</strong><br />

acordo e recebem o nome <strong>de</strong><br />

verda<strong>de</strong>, quando consi<strong>de</strong>radas ao<br />

mesmo tempo.”<br />

Em busca<br />

do tempo<br />

amoroso<br />

Trabalhada ao longo <strong>de</strong> <strong>de</strong>z<br />

anos, “Cossacos” é a obraprima<br />

da juventu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lev<br />

Tolstói. Rui Catalão<br />

Cossacos – Novela do Cáucaso<br />

Lev Tolstói<br />

Relógio d’Água<br />

mmmmm<br />

O Cáucaso está para<br />

a literatura russa do<br />

séc. XIX como o<br />

western para o<br />

imaginário<br />

cinematográfico<br />

norte-americano.<br />

Com os seus<br />

tártaros,<br />

tchetchenos e kirguizes-kaissakes no<br />

lugar <strong>de</strong> apaches e sioux, ali se trava<br />

o eterno conflito h<strong>uma</strong>no entre os<br />

imperativos da natureza e os da<br />

civilização; entre a intuição e a<br />

razão; entre a verda<strong>de</strong> (digamos<br />

assim) das emoções e a consciência<br />

das suas implicações; entre encarnar<br />

a vida como ela é e lutar por outra<br />

dimensão que permita sobreviver ao<br />

sem-sentido da morte.<br />

Trabalhada ao longo <strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos<br />

(1852-62), “Cossacos” é a obra-prima<br />

da juventu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lev Tolstói. Tinha<br />

34 anos quando a terminou. O título o<br />

<strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong>sta “novela do<br />

Cáucaso” foi durante vários anos “O O<br />

fugitivo”. Da mesma maneira que o<br />

discurso contemporâneo vive<br />

obcecado com a relação entre o realalficcionado e a ficção-baseada-emfactos-reais,<br />

Tolstói (tal como Eça <strong>de</strong><br />

Queiroz) operava no dilema<br />

romantismo-realismo. A<br />

transferência do protagonismo <strong>de</strong><br />

Olénin, a sua “romântica”<br />

personagem, para o povo que haverá rá<br />

<strong>de</strong> conhecer durante a sua aventura a<br />

caucasiana, opera <strong>uma</strong> espantosa<br />

transição entre géneros literários.<br />

Olénin é um jovem militar <strong>de</strong><br />

origem fidalga “que já <strong>de</strong>sbaratara<br />

meta<strong>de</strong> da sua fortuna e que, aos<br />

vinte e quatro anos, ainda não tinha a<br />

escolhido qualquer carreira”. O seu u<br />

objectivo maior é <strong>de</strong>scobrir o amor, ,<br />

que <strong>de</strong>sconhece, à excepção do<br />

“amor por si próprio, um amor<br />

ardoroso, cheio <strong>de</strong> esperanças, um<br />

amor jovem por tudo o que era<br />

bom na sua alma (nesse momento,<br />

parecia-lhe que tudo nele era


om), que o fazia chorar e<br />

murmurar palavras <strong>de</strong>sconexas.”<br />

Olénin troca a boémia moscovita<br />

por <strong>uma</strong> comissão no Cáucaso, para<br />

on<strong>de</strong> vai em busca do mito <strong>de</strong> si<br />

mesmo. A pergunta “que importa<br />

que apenas cresçam as ervas?”<br />

ensombra-o. Apenas reconhece<br />

dignida<strong>de</strong> e beleza em coisas<br />

con<strong>de</strong>nadas à extinção. Ele intui que<br />

a vida é um escorredouro em<br />

direcção ao <strong>de</strong>saparecimento e<br />

esquecimento.<br />

Tolstói transforma a sensibilida<strong>de</strong><br />

introspectiva da sua personagem<br />

num instrumento <strong>de</strong> observação<br />

daquilo que preten<strong>de</strong> possuir.<br />

Olénin mo<strong>de</strong>la o seu carácter<br />

comparando os moscovitas e o seu<br />

modo <strong>de</strong> vida, que <strong>de</strong>spreza, com a<br />

ru<strong>de</strong>za dos cossacos. À medida que<br />

cresce a sua admiração pela<br />

paisagem e seus habitantes, a<br />

personagem <strong>de</strong> Olénin transita para<br />

<strong>uma</strong> consciência observadora que se<br />

torna a narração do livro e<br />

finalmente a sua voz.<br />

Através <strong>de</strong> Olénin, Tolstói esculpese<br />

a si mesmo enquanto dimensão<br />

estética. O jovem militar em<br />

campanha no Cáucaso transformase,<br />

durante o processo <strong>de</strong> trabalho<br />

em “Cossacos”, num gran<strong>de</strong> artista.<br />

A ficção <strong>de</strong>screve as mesmas<br />

impressões e intuições que<br />

confusamente o levaram a escrever:<br />

“Olénin, porém, tinha <strong>uma</strong><br />

consciência <strong>de</strong>masiado forte <strong>de</strong> que<br />

trazia em si esse todo po<strong>de</strong>roso <strong>de</strong>us<br />

da juventu<strong>de</strong>, essa capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se<br />

impregnar <strong>de</strong> um só <strong>de</strong>sejo, <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />

só i<strong>de</strong>ia, essa faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejar e<br />

cumprir, <strong>de</strong> se atirar <strong>de</strong> cabeça para<br />

um abismo sem fundo, sem saber<br />

para quê, em prol <strong>de</strong> quê.”<br />

Tolstói pega nos temas caros ao<br />

“bildungsroman”, ao romance <strong>de</strong><br />

formação, e <strong>de</strong>senvolve com eles<br />

<strong>uma</strong> estética, com técnicas e<br />

processos narrativos próprios: a<br />

passagem da juventu<strong>de</strong><br />

para a ida<strong>de</strong> adulta, o<br />

choque entre o mundo<br />

(interior) dos<br />

conceitos e o<br />

estado (exterior)<br />

das coisas, é<br />

traduzido num<br />

fluxo <strong>de</strong> transições<br />

que imprimem <strong>uma</strong><br />

sensação<br />

constante<br />

“Cossacos” é a obra-prima<br />

da juventu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lev Tolstói<br />

<strong>de</strong> movimento.<br />

“Cossacos” não se fixa em<br />

personagens, lugares,<br />

acontecimentos ou i<strong>de</strong>ias, roda à sua<br />

volta num bailado. Cada cena<br />

suspen<strong>de</strong>-se para dar lugar à<br />

próxima, sem <strong>de</strong>ixar <strong>uma</strong> impressão<br />

<strong>de</strong> corte ou salto. O autor insiste em<br />

<strong>de</strong>screver cenas ao crepúsculo ou<br />

antes da aurora: quando os<br />

camponeses regressam do campo ou<br />

os soldados abandonam a al<strong>de</strong>ia;<br />

quando o trabalho é trocado pelo<br />

convívio; quando o <strong>de</strong>spertar dá<br />

lugar à partida; quando um tiro no<br />

escuro antece<strong>de</strong> a revelação do<br />

cadáver. Poética e estrutura<br />

correspon<strong>de</strong>m-se: as transições em<br />

Tolstói são <strong>uma</strong> arte <strong>de</strong> apagar<br />

contrastes e contornos. As fronteiras<br />

são ilusórias, o eu e o outro fun<strong>de</strong>mse,<br />

está-se entre algo e alg<strong>uma</strong> coisa.<br />

O próprio enfoque amoroso<br />

transita <strong>de</strong> acordo com a disposição<br />

espacial das personagens<br />

envolvidas: a união <strong>de</strong> Mariana com<br />

Lukachka começa por ser <strong>uma</strong><br />

conversa entre as suas mães (n<strong>uma</strong><br />

<strong>de</strong>sopilante cena nocturna em que<br />

as mulheres correm <strong>de</strong> porta em<br />

porta com mechas em chamas – ou,<br />

para usar a tradução proposta, com<br />

“trapos ar<strong>de</strong>ntes”); torna-se n<strong>uma</strong><br />

indiscrição <strong>de</strong> um companheiro <strong>de</strong><br />

Lukachka, a quem revela que a sua<br />

amante dorme com outro,<br />

aconselhando-o a pedir namoro a<br />

Mariana (Lukachka, assobiando,<br />

“tirou a faca e cortou <strong>uma</strong> jovem<br />

árvore lisa. – Vai ser <strong>uma</strong> rica vareta<br />

– disse fustigando o ar com a vara”);<br />

e vira triângulo amoroso n<strong>uma</strong> cena<br />

nocturna em que Lukachka e<br />

Mariana (“batendo com a vergasta”)<br />

se beijam pela primeira vez, com<br />

Olénin, que arrendou a casa aos pais<br />

<strong>de</strong> Mariana, a escutá-los no quintal.<br />

A vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> amar leva Olénin à<br />

caça! Primeiro na companhia do<br />

velho asselvajado Erochka (a<br />

composição <strong>de</strong>sta personagem é<br />

<strong>uma</strong> obra-prima <strong>de</strong>ntro da obraprima<br />

que é o livro: quanto mais ele<br />

se diverte e embebeda, mais nos<br />

apercebemos do efeito <strong>de</strong>vastador<br />

que a perda da juventu<strong>de</strong> exerceu<br />

nele), com quem <strong>de</strong>scobre a cama<br />

<strong>de</strong> um veado a que escuta a fuga,<br />

sem po<strong>de</strong>r vê-lo! Depois na cena<br />

solitária <strong>de</strong> caça em que se apercebe<br />

que os mosquitos não o<br />

importunam! Dedica-se então ao<br />

jovem cossaco Lukachka e oferecelhe<br />

um cavalo! E quando fala do seu<br />

<strong>de</strong>sinteresse por mulheres a um<br />

amigo vindo <strong>de</strong> Moscovo, não se<br />

apercebe que pela primeira vez ama,<br />

castamente! A atracção por Mariana,<br />

por sua vez, verte num platónico<br />

amor paisagístico: “Todos os dias<br />

estão à minha frente os longínquos<br />

montes nevados e esta mulher<br />

majestosa e feliz.”<br />

Quando a história se fixa na<br />

disputa <strong>de</strong> Olénin e Lukachka por<br />

Mariana, passado e futuro são<br />

varridos do livro. Até final paira um<br />

tempo presente absoluto, em que<br />

Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 47


Livros<br />

Tolstói tacteia a textura da<br />

felicida<strong>de</strong> amorosa: as palavras ditas<br />

entre amantes <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> dizer o que<br />

querem, as confissões soam cómicas<br />

(“Porque não havia <strong>de</strong> gostar, não és<br />

zarolho!”), prazer e dor copulam:<br />

“Sentia dor porque ela continuava<br />

calma como sempre a falar com ele.<br />

Parecia que a nova situação não a<br />

emocionava minimamente. Dava a<br />

sensação <strong>de</strong> que não acreditava nele<br />

e não pensava no futuro. Parecia-lhe<br />

que ela o amava apenas no momento<br />

corrente, que para ela não havia um<br />

futuro com ele.”<br />

Quando Olénin se apercebe da<br />

felicida<strong>de</strong>, já aconteceu;<br />

opostamente, no início do livro<br />

estava ainda por acontecer. Entre<br />

esses dois tempos, acontece o<br />

movimento da solidão: “Fomos<br />

companheiros, estivemos um ano<br />

inteiro juntos, e agora levanta-se e<br />

vai-se embora. Gosto <strong>de</strong> ti, tenho<br />

pena <strong>de</strong> ti! És um <strong>de</strong>sgraçado,<br />

sempre sozinho. Mal-amado, é isso<br />

que tu és! Às vezes não durmo a<br />

pensar em ti”, diz-lhe o velho<br />

Erochka na hora da <strong>de</strong>spedida: “É<br />

difícil meu irmão, Viver n<strong>uma</strong> terra<br />

alheia! Assim és tu.” O amor é a<br />

construção da felicida<strong>de</strong> e a<br />

felicida<strong>de</strong> está no presente. O tempo<br />

amoroso, ou a permanência no<br />

presente, está-lhe vedado: “Olénin<br />

olhou para trás. O tio Erochka estava<br />

a falar com Marianka, pelos vistos<br />

sobre os seus próprios assuntos, e<br />

nem o velho nem a rapariga olhavam<br />

para ele.”<br />

Nota final para o casal <strong>de</strong><br />

tradutores Nina e Filipe Guerra: a<br />

sua fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> à literatura russa fálos<br />

às vezes serem licenciosos com a<br />

língua portuguesa, como o verbo<br />

“pan<strong>de</strong>gar” ou os adjectivos a<br />

saltitarem do seu lugar<br />

(“esfarrapadas mulheres nogai”;<br />

“todo po<strong>de</strong>roso <strong>de</strong>us”). Traduzir 150<br />

páginas <strong>de</strong> beleza imaculada <strong>de</strong>ve<br />

tentá-los a semelhantes pecados.<br />

A vida <strong>de</strong><br />

Elvira<br />

A <strong>Lisboa</strong> da Regeneração,<br />

ficcionada em narrativa<br />

clássica, com discurso<br />

a<strong>de</strong>quado ao tempo e às<br />

personagens. Eduardo Pitta<br />

Os Dias da Febre<br />

João Pedro Marques<br />

Porto Editora<br />

mmmmn<br />

Num país com elevados índices <strong>de</strong><br />

iliteracia, como é o nosso, não<br />

admira que a literatura seja<br />

sacralizada. Não viria daí gran<strong>de</strong> mal<br />

não fosse a persistência <strong>de</strong><br />

equívocos e preconceitos nocivos.<br />

Um <strong>de</strong>les respeita ao romance<br />

48 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />

Com “Os Dias da Febre”, João Pedro Marques, um especialista<br />

em História <strong>de</strong> África, arrisca a literatura <strong>de</strong> fi cção<br />

histórico. As pessoas<br />

do “Meio” falam do<br />

romance histórico<br />

como quem fala <strong>de</strong><br />

peúgas sujas. Se o<br />

autor acumular com<br />

a activida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

historiador, a<br />

heresia é completa.<br />

Veja-se como continua a ser referido<br />

“Glória” (2001), <strong>de</strong> Vasco Pulido<br />

Valente. Isso traduz <strong>uma</strong> sólida<br />

ignorância do que se passa no vasto<br />

mundo. Contudo, a levianda<strong>de</strong> não<br />

inibirá ninguém <strong>de</strong> tecer loas a “Wolf<br />

Hall”, o romance <strong>de</strong> Hilary Mantel<br />

sobre a vida <strong>de</strong> Thomas Cromwell,<br />

que recebeu o Man Booker Prize <strong>de</strong><br />

2009. E quem diz este diz outros.<br />

Vem isto a propósito do romance<br />

<strong>de</strong> estreia <strong>de</strong> João Pedro Marques (n.<br />

1949), investigador do Instituto <strong>de</strong><br />

Investigação Científica Tropical,<br />

docente e especialista em História<br />

<strong>de</strong> África, com obra publicada nessa<br />

área. A título <strong>de</strong> exemplo, “Os Sons<br />

do Silêncio” (1999), sobre a abolição<br />

do tráfico <strong>de</strong> escravos, livro que<br />

entrou em 2006 para o catálogo da<br />

Berghahn Books <strong>de</strong> Nova Iorque e<br />

Oxford: “The Sounds of Silence.<br />

Nineteenth-century Portugal and the<br />

Abolition of the Slave Tra<strong>de</strong>”.<br />

Com “Os Dias da Febre”, João<br />

Pedro Marques arrisca a literatura<br />

<strong>de</strong> ficção. Trata-se <strong>de</strong> um romance<br />

com acção localizada na <strong>Lisboa</strong> dos<br />

anos da Regeneração (1851-68),<br />

época em que estavam por extinguir<br />

os miasmas da epi<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> febre<br />

amarela que tivera o seu apogeu<br />

durante a Guerra Peninsular. O<br />

Fontismo trouxera progresso, mas<br />

<strong>Lisboa</strong> era ainda <strong>uma</strong> enxovia.<br />

Descendo a Calçada <strong>de</strong> Santana,<br />

no trajecto <strong>de</strong> casa para o teatro,<br />

Elvira e Carlos atravessam um<br />

território <strong>de</strong> <strong>de</strong>sapossados: “O<br />

contacto com o mundo sórdido dos<br />

<strong>de</strong>sfavorecidos era, ali, inevitável e<br />

<strong>de</strong>sconfortavelmente próximo,<br />

apesar <strong>de</strong> as cortinas da carruagem<br />

irem corridas. Os zarolhos, os<br />

amputados, as bocas sem <strong>de</strong>ntes, os<br />

cabelos sem pentes, as caras<br />

engelhadas <strong>de</strong> rugas ou sulcadas por<br />

cicatrizes, <strong>de</strong>sfilavam a dois <strong>de</strong>dos<br />

da sua janela...” O casal cumpre as<br />

obrigações sociais à revelia <strong>de</strong> vida<br />

conjugal. Nascido quando Massena<br />

acampava nas Linhas <strong>de</strong> Torres,<br />

estudante <strong>de</strong> leis em Coimbra,<br />

Cavaleiro da Casa Real, antigo<br />

Governador Civil <strong>de</strong> Santarém e<br />

Leiria, membro da Câmara dos<br />

Deputados <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1848, Carlos Cabral<br />

fez <strong>de</strong> Elvira Sabrosa, filha <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />

antiga amante, mais do que sua<br />

mulher, um símbolo <strong>de</strong> afirmação.<br />

É impressivo o modo como o<br />

autor ilumina os costumes da<br />

socieda<strong>de</strong> lisboeta <strong>de</strong> então: o<br />

mo<strong>de</strong>rado arrivismo <strong>de</strong> Carlos<br />

Cabral, que foi capaz <strong>de</strong> equilibrarse<br />

nos avanços e recuos da causa<br />

liberal; a cultura <strong>de</strong> usura que fazia<br />

as gran<strong>de</strong>s fortunas; os africanistas;<br />

os “brasileiros”; o tráfico <strong>de</strong><br />

escravos; a importância <strong>de</strong> Jane<br />

Austen na educação das “meninas”;<br />

o sobressalto da febre amarela, que<br />

levou à criação <strong>de</strong> hospitais<br />

especiais; os crimes <strong>de</strong> honra; os<br />

salões da boa socieda<strong>de</strong>; a vida<br />

política no tempo <strong>de</strong> Rodrigo da<br />

Fonseca; as “cocottes” com casa<br />

posta, etc. Sobre tudo isto, João<br />

Pedro Marques discorre com<br />

apreciável <strong>de</strong>senvoltura, isentandose<br />

<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rações i<strong>de</strong>ológicas ou<br />

juízos <strong>de</strong> valor.<br />

Mais que o discreto “ménage à<br />

trois” que Elvira e Robert Huntley<br />

autorizam, “Os Dias da Febre” (e<br />

febre, aqui, releva menos da<br />

infecção viral que da pulsão dos<br />

humores) ilustram outro jogo a três:<br />

o <strong>de</strong> Carlos dormindo com Branca<br />

Lobo <strong>de</strong> Sabrosa, <strong>de</strong> olho posto na<br />

filha (Elvira) pré-adolescente.<br />

O discurso nunca é “forçado”,<br />

surgindo a<strong>de</strong>quado ao tempo e às<br />

personagens, sem malabarismo<br />

sintático. Com epicentro no Campo<br />

<strong>de</strong> Santana, a história reparte-se por<br />

capítulos com enfoque nos<br />

principais protagonistas (Carlos,<br />

Elvira, Pedro, Robert Huntley) e em<br />

acontecimentos concretos (a citada<br />

epi<strong>de</strong>mia, o roubo das jóias, o duelo<br />

fatal, o assassinato <strong>de</strong> Carlos). O<br />

recurso ao “flashback” estabelece o<br />

fio condutor da ca<strong>de</strong>ia mnemónica.<br />

A narrativa segue o padrão clássico,<br />

expondo com clareza as várias fases<br />

da intriga. A <strong>de</strong>scrição das<br />

“inibições” sexuais <strong>de</strong> Carlos,<br />

homem que tira prazer da violência<br />

exercida contra mulheres <strong>de</strong><br />

condição social inferior, é feita sem<br />

qualquer espécie <strong>de</strong> psicologismo.<br />

João Pedro Marques atém-se aos<br />

factos, que narra com a naturalida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> um coevo. Breves notas <strong>de</strong><br />

rodapé situam o tempo histórico da<br />

vida <strong>de</strong> Carlos e Elvira.<br />

Em s<strong>uma</strong>, <strong>uma</strong> estreia auspiciosa.<br />

Ensaio<br />

A pedalar<br />

com David<br />

Byrne<br />

Visões impressionistas <strong>de</strong><br />

Byrne, <strong>de</strong>ambulando pelas<br />

cida<strong>de</strong>s. Vítor Belanciano<br />

David Byrne<br />

Diários <strong>de</strong> Bicicleta<br />

Ed. Quetzal<br />

mmmmn<br />

Espaço<br />

Público<br />

Não ponham <strong>de</strong> lado as bicicletas,<br />

mas este não é um livro sobre<br />

ciclismo. As bicicletas são apenas o<br />

ponto <strong>de</strong> partida. O pretexto. A<br />

tentativa <strong>de</strong> atribuir unida<strong>de</strong> às<br />

visões impressionistas <strong>de</strong> Byrne,<br />

<strong>de</strong>ambulando pelas cida<strong>de</strong>s (Berlim,<br />

aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />

Este espaço vai ser<br />

seu. Que fi lme, peça <strong>de</strong><br />

teatro, livro, exposição,<br />

disco, álbum, canção,<br />

concerto, DVD viu e<br />

gostou tanto que lhe<br />

apeteceu escrever<br />

Istambul, Buenos<br />

Aires, Manila,<br />

Sidney ou Londres),<br />

observando o que<br />

faz <strong>de</strong>las locais<br />

on<strong>de</strong> apetece estar<br />

ou <strong>de</strong> on<strong>de</strong> apetece<br />

fugir e não voltar.<br />

A bicicleta aqui é<br />

instrumento <strong>de</strong> comodida<strong>de</strong>, janela<br />

que o conecta com a vida das ruas<br />

– mais rápida do que andar a pé,<br />

mais lenta do que o comboio, maior<br />

do que <strong>uma</strong> pessoa –, mas também<br />

agente <strong>de</strong> motivação política,<br />

assumindo-se como um dos<br />

elementos alternativos a um mo<strong>de</strong>lo<br />

<strong>de</strong> metrópole, à beira da ruptura,<br />

que continua a pensar o<br />

planeamento urbano para a<br />

circulação automóvel, como se as<br />

cida<strong>de</strong>s não estivessem asfixiadas<br />

<strong>de</strong>les e os combustíveis fósseis à<br />

beira do esgotamento, pelo menos à<br />

escala, ritmo e maneira como são<br />

consumidos hoje.<br />

Urbanismo, arquitectura, arte,<br />

música, viagens, política, moda,<br />

alimentação ou religião são temas<br />

recorrentes, abordados como notas<br />

<strong>de</strong> um diário on<strong>de</strong> não tenta impor<br />

juízos <strong>de</strong>terministas, apenas reflectir<br />

e interrogar, <strong>de</strong> forma h<strong>uma</strong>nista,<br />

curiosa e com humor, alg<strong>uma</strong>s das<br />

questões que cruzam a existência<br />

das socieda<strong>de</strong>s contemporâneas.<br />

Em Istambul, São Francisco,<br />

Londres ou Buenos Aires foca-se<br />

mais nos encontros com músicos ou<br />

artistas que vai <strong>de</strong>scobrindo. Em<br />

cida<strong>de</strong>s como Detroit ou Pittsburgh<br />

reflecte sobre a sua história e a<br />

paisagem urbana, normalmente<br />

<strong>de</strong>soladoras. As cida<strong>de</strong>s que<br />

parecem fascinar Byrne são <strong>de</strong>nsas e<br />

compactas nos centros históricos,<br />

possuem <strong>uma</strong> escala h<strong>uma</strong>na <strong>de</strong><br />

construção, são vibrantes<br />

culturalmente e excelentes para<br />

andar <strong>de</strong> bicicleta. Nem sempre é<br />

fácil acompanhar a pedalada <strong>de</strong><br />

Byrne, <strong>de</strong>ambulando <strong>de</strong> tema em<br />

tema, mas é quase sempre<br />

estimulante.<br />

sobre ele, concordando<br />

ou não concordando<br />

com o que escrevemos?<br />

Envie-nos <strong>uma</strong> nota até<br />

500 caracteres para<br />

ipsilon@publico.pt. E<br />

nós <strong>de</strong>pois publicamos.<br />

Biografia<br />

Vitórias e<br />

<strong>de</strong>rrotas <strong>de</strong><br />

um Príncipe<br />

da Igreja<br />

Um Car<strong>de</strong>al Cerejeira<br />

mais complexo do que a<br />

caricatura que fazem <strong>de</strong>le.<br />

José Manuel Fernan<strong>de</strong>s<br />

Car<strong>de</strong>al Cerejeira – O Príncipe da<br />

Igreja<br />

Irene Flunser Pimentel<br />

A Esfera dos Livros<br />

mmmnn<br />

A historiadora<br />

começa por avisar<br />

que esta é <strong>uma</strong><br />

biografia política, e<br />

faz bem. Quer pela<br />

rarida<strong>de</strong> das fontes<br />

documentais, quer<br />

pela discrição dos<br />

que, ainda vivos, o<br />

conheceram melhor, seria sempre<br />

arriscada outra opção. Até porque<br />

esta já é suficientemente rica ao<br />

revelar-nos um Car<strong>de</strong>al Cerejeira<br />

muito mais complexo do que o<br />

retrato caricatural que muitos ainda<br />

fazem <strong>de</strong>le. A própria Irene Flunser<br />

Pimentel escreve que, quando<br />

começou a estudar a vida da mais<br />

importante figura da Igreja<br />

Portuguesa no século XX – para<br />

escrever o texto da fotobiografia,<br />

organizada por Joaquim Vieira, <strong>de</strong><br />

Manuel Gonçalves Cerejeira e que foi<br />

editada pelo Círculo <strong>de</strong> Leitores em<br />

2002 –, a sua visão estava “marcada<br />

pelo enviesamento, através <strong>de</strong><br />

lugares-comuns e mitos”.<br />

Agora, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> o estudar, e <strong>de</strong><br />

naturalmente “ganhar empatia” com<br />

a personagem cuja via foi<br />

percorrendo, a autora<br />

revela-nos<br />

alguém com maior <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> <strong>de</strong>n<br />

h<strong>uma</strong>na e, sobretudo,<br />

com<br />

“contradições, complexida<strong>de</strong> comple e<br />

riqueza”.<br />

Esta biografia, que ssegue<br />

um<br />

plano plano quase estritamente<br />

estritamen<br />

cronológico, acompanha acompan a vida do<br />

menino que nasceu a 229<br />

<strong>de</strong><br />

Novembro <strong>de</strong> 1988 em Santa<br />

Martinha do Lousado,<br />

Famalicão, e<br />

morreu morreu com 88 anos, a 1 <strong>de</strong> Agosto<br />

<strong>de</strong> 1977, na Casa <strong>de</strong> Ret Retiros Bom<br />

Pastor, na Buraca, em L<strong>Lisboa</strong>.<br />

Entre<br />

1929, 1929, , quando qu q ando se tornou<br />

Car<strong>de</strong>al<br />

Pa Patr Patriarca tr tria ia i rca <strong>de</strong> Lisbo <strong>Lisboa</strong> com 41<br />

anos anos, os o , e 1971, ano an em que<br />

resi resignou, si sign gn g ou, foi a figura<br />

domi dominante mi m nante da Igreja<br />

estimulante. naturalmente ganhar<br />

Port Portuguesa rt r ug u ues e o<br />

Nem sempre é fácil acompanhar prin principal in i ci c pa responsável<br />

a pedalada <strong>de</strong> Byrne, <strong>de</strong>ambulando quer quer e pela pe sua<br />

<strong>de</strong> tema em tema, mas é estimulante prof profunda o un


Isabel<br />

Coutinho<br />

Ciberescritas<br />

APipi das Meias Altas tinha nove anos e vivia<br />

sozinha n<strong>uma</strong> casa com jardim que se<br />

chamava Villa Villekulla. Não tinha mãe nem<br />

pai e por isso podia fi car <strong>de</strong> pé até tar<strong>de</strong><br />

porque ninguém a obrigava a ir para a cama.<br />

E ninguém a obrigava a tomar óleo <strong>de</strong> fígado <strong>de</strong> bacalhau<br />

quando o que ela queria era comer caramelos. Claro que,<br />

no passado, a Pipi das Meias Altas tivera um pai e <strong>uma</strong><br />

mãe. A mãe morreu e o pai, um capitão do mar,<br />

<strong>de</strong>sapareceu num dia <strong>de</strong> tempesta<strong>de</strong>. Mas a fi lha<br />

acreditava que o pai pirata iria voltar. Até lá tinha a<br />

companhia <strong>de</strong> um macaquinho, que andava sempre no<br />

seu ombro, o senhor Nilsson, e <strong>de</strong> um cavalo. Além dos<br />

dois amigos, Tommy e Annika.<br />

Esta menina <strong>de</strong> cabelos ruivos, duas tranças espetadas<br />

e <strong>uma</strong> meia <strong>de</strong> cada cor, era <strong>uma</strong> rapariga in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<br />

que sabia usar pistolas, fazer panquecas, tinha o seu<br />

fundo <strong>de</strong> maneio e era forte. Nasceu na cabeça da<br />

escritora sueca mais popular <strong>de</strong> literatura infantil,<br />

Astrid Lindgren, e encorajou gerações <strong>de</strong> raparigas a<br />

divertirem-se e a acreditarem em si próprias.<br />

Astrid Lindgren já tinha mais <strong>de</strong> trinta anos quando<br />

escreveu o primeiro manuscrito sobre esta rapariga<br />

fora do vulgar. Tinha 38 anos quando viu o primeiro<br />

livro ser publicado, em 1945. Ao que se sabe foi a fi lha<br />

Karin que lhe serviu <strong>de</strong> inspiração para Pipi das Meias<br />

Altas. Karin fi cou doente com pneumonia e a mãe<br />

contava-lhe histórias. Uma noite, em 1941, Karin pediu<br />

<strong>uma</strong> história sobre a Pipi. Como a personagem tinha um<br />

nome estranho, a história também <strong>de</strong>via ser amalucada<br />

e Lindgren inventou <strong>uma</strong> rapariga que <strong>de</strong>safi ava as<br />

convenções. É isto que conta a sua biógrafa Eva-Maria<br />

Metcalf.<br />

Naquela época a escritora estava interessada nas<br />

discussões sobre a psicologia e a educação das crianças.<br />

Isso levou-a a criar <strong>uma</strong><br />

A Pipi das Meias Altas<br />

mudou a vida <strong>de</strong><br />

muitas raparigas.<br />

Também a minha.<br />

Decidi que quando<br />

fosse gran<strong>de</strong> queria ser<br />

pirata<br />

Astrid Lindgren<br />

http:<br />

/www.astridlindgren.se/en<br />

http:<br />

/www.swe<strong>de</strong>n.<br />

se/eng/Home/<br />

Lifestyle/Culture/<br />

Literature/Astridlindgren/<br />

Sauda<strong>de</strong>s da Pipi<br />

forma <strong>de</strong> contar as histórias<br />

diferente: tinha em conta o<br />

ponto <strong>de</strong> vista da criança.<br />

Metcalf conta que Karin,<br />

a fi lha <strong>de</strong> Astrid, gostou<br />

tanto que pedia à mãe que<br />

lhe contasse cada vez mais<br />

histórias da Pipi e ela passou<br />

a ser a heroína do que se<br />

contavam à noite lá em<br />

casa. Até que um dia, Astrid<br />

escorregou no gelo, magoouse<br />

na anca e teve que fi car<br />

na cama. A fi lha fazia <strong>de</strong>z<br />

anos e ela teve a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> passar ao papel as histórias da<br />

Pipi. Fez um livro, caseiro, para oferecer à fi lha. Conta<br />

Eva-Maria Metcalf na biografi a sobre a escritora ritora que <strong>uma</strong><br />

análise <strong>de</strong>ste manuscrito mostrou que a primeira imeira versão<br />

da Pipi, com <strong>de</strong>senhos feitos pela autora, respeitava espeitava<br />

ainda menos os adultos e as fi guras <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> orida<strong>de</strong> do que<br />

a versão publicada quatro anos <strong>de</strong>pois. A publicação não<br />

foi fácil, <strong>uma</strong> editora recusou mesmo publicá-lo. icá-lo. A crítica<br />

dividiu-se: para uns era <strong>uma</strong> coisa revolucionária, ionária, para<br />

outros medíocre. O “site” ofi cial da escritora ra tem <strong>uma</strong><br />

cronologia, muitas fotografi as, capas dos livros vros e <strong>uma</strong><br />

biografi a.<br />

Para alguns a Pipi das Meias Altas teve tanta anta infl uência<br />

como “O Segundo Sexo”, <strong>de</strong> Simone <strong>de</strong> Beauvoir. auvoir. Mudou<br />

a vida <strong>de</strong> muitas raparigas. Também mudou u a minha.<br />

Decidi que quando fosse gran<strong>de</strong> queria ser r pirata.<br />

isabel.coutinho@publico.pt<br />

(Ciberescritas já é um blogue http://blogs.<br />

publico.pt/ciberescritas)<br />

transformação, quer pela sua<br />

relação íntima, mas nem sempre<br />

pacífica, com o regime saído do<br />

golpe <strong>de</strong> Estado <strong>de</strong> 28 <strong>de</strong> Maio <strong>de</strong><br />

1926.<br />

O mais interessante nesta obra é<br />

ela precisamente permitir-nos<br />

perceber como existem muitos e<br />

diferentes graus <strong>de</strong> cinzento nessa<br />

relação entre o Estado e a Igreja e,<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>la, na relação entre dois<br />

homens que se conheceram em<br />

Coimbra, aí se tornaram amigos e,<br />

vindos para <strong>Lisboa</strong>, tomaram em<br />

mãos os <strong>de</strong>stinos do <strong>de</strong>sse Estado e<br />

<strong>de</strong>ssa Igreja: Salazar e Cerejeira [ver<br />

texto nesta edição]. Para o fazer<br />

Irene Pimentel não se limita a<br />

<strong>de</strong>screver os passos da vida pública<br />

e religiosa do Car<strong>de</strong>al, antes os<br />

enquadra quer na evolução da<br />

política portuguesa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os anos<br />

conturbados da I República,<br />

<strong>de</strong>cisivos para a formação i<strong>de</strong>ológica<br />

<strong>de</strong> Cerejeira, até quase ao final do<br />

Estado Novo, quando o bispo <strong>de</strong><br />

<strong>Lisboa</strong> passa a ter <strong>de</strong> lidar com o<br />

sucessor <strong>de</strong> Salazar, quer na<br />

evolução da própria Igreja. O que<br />

também ajuda a perceber a<br />

complexida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>uma</strong> personagem<br />

que, como lí<strong>de</strong>r da Igreja, teve <strong>de</strong><br />

lidar com um Salazar cuja ascensão<br />

ao po<strong>de</strong>r também não foi tão linear e<br />

fácil como a mitologia a retrata, e<br />

com <strong>uma</strong> Igreja portuguesa que lhe<br />

foi, progressivamente, escapando ao<br />

controlo.<br />

Depois <strong>de</strong> ler esta biografia não é<br />

possível continuar a reduzir a figura<br />

do Car<strong>de</strong>al Cerejeira à caricatura do<br />

religioso antiquado que se limitou a<br />

colocar a Igreja Portuguesa ao<br />

serviço do seu amigo Salazar. Mas<br />

também ainda não é nela que se<br />

esclarecem alguns <strong>de</strong>talhes da<br />

relação entre Estado português, a<br />

Igreja em Portugal e o Vaticano, até<br />

porque parte dos arquivos ainda<br />

estão fechados. Para que a figura do<br />

menino do Minho que chega a<br />

doutor <strong>de</strong> Coimbra e, <strong>de</strong>pois, a<br />

Príncipe da Igreja, ficasse mais<br />

<strong>de</strong>nso e rico faltam também<br />

episódios que, sem entrar na vida<br />

privada, ajudassem a colorir um<br />

pouco mais a sua imagem e nos<br />

ajudassem a perceber melhor como<br />

era, h<strong>uma</strong>namente,<br />

Cerejeira.<br />

Uma nota<br />

final para<br />

o registo registo<br />

o que Gastão Cruz também interroga<br />

é a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> a poesia ser forma<br />

<strong>de</strong> vida, <strong>uma</strong> vida com <strong>uma</strong> forma<br />

e a fluência<br />

da escrita,<br />

que não<br />

prejudicando<br />

a leitura<br />

também não<br />

alcançam o registo<br />

envolvente que<br />

encontramos, por exemplo, nos<br />

historiadores ingleses que escrevem<br />

para o gran<strong>de</strong> público. E este “Car<strong>de</strong>al<br />

Cerejeira – O Príncipe da Igreja” e <strong>uma</strong><br />

obra que, sem falhas académicas,<br />

procura sem complexos chegar ao<br />

gran<strong>de</strong> público. O que se saúda.<br />

Poesia<br />

Forma <strong>de</strong><br />

vida<br />

A poesia como vida ou<br />

recuperação da vida que nos<br />

foge. Pedro Mexia<br />

Escarpas<br />

Gastão Cruz<br />

Assírio & Alvim<br />

mmmmn<br />

Hematoma,<br />

escassez, crateras,<br />

agora escarpas, os<br />

títulos <strong>de</strong> Gastão<br />

Cruz são muitas<br />

vezes violentos ou<br />

inóspitos, tal como<br />

a sua poética, que<br />

nunca se quis<br />

agradável. “Escarpas” é a<br />

continuação natural <strong>de</strong> “A Moeda do<br />

Tempo” (2006), que tratava das<br />

repercussões da passagem dos anos.<br />

Enquanto a colectânea anterior<br />

tinha um acentuado cunho familiar,<br />

aqui a chave é amorosa, ou então<br />

abstractizante.<br />

No que ao corpo diz respeito,<br />

temos apenas datas soltas (“1973”),<br />

lugares nomeados (“junto ao<br />

Harrods”) e um perpétuo e fugaz<br />

Agosto. O poeta retoma as<br />

esplêndidas elegias vitais do italiano<br />

Sandro Penna, recordando recordan uns<br />

rapazes em velozes bicicletas b que<br />

eram “o <strong>de</strong>senho ddo<br />

<strong>de</strong>sejo”.<br />

Os poemas <strong>de</strong> “Escarpas” “E são<br />

sobre pessoas reais r ou<br />

imaginárias, ou já<br />

imaginadas imaginad <strong>de</strong> tanto<br />

tempo que passou.<br />

A cada momento o<br />

sujeito sujeito poético<br />

regressa, regress o livro é<br />

feito <strong>de</strong><br />

regressos,<br />

mas o que q é que<br />

encontra encontra, se é que<br />

encontra al alg<strong>uma</strong> coisa?<br />

A i<strong>de</strong>ia das ppessoas<br />

entretanto<br />

perdidas.<br />

Pessoas que<br />

talvez já fossem<br />

só <strong>uma</strong> i<strong>de</strong>ia.<br />

Lampejos <strong>de</strong><br />

encontros irrepetíveis<br />

mas que foram <strong>uma</strong><br />

“finita eternida<strong>de</strong>”. A essência <strong>de</strong><br />

<strong>uma</strong> ausência.<br />

Dizer que “Escarpas” é sobre o<br />

motivo do “tempus fugit” não chega.<br />

Pois o que Gastão Cruz também<br />

interroga é a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> a<br />

poesia ser forma <strong>de</strong> vida, <strong>uma</strong> vida<br />

com <strong>uma</strong> forma. A palavra “vida” é<br />

constante, quase sempre associada à<br />

i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> sentido. O tempo é a<br />

matéria <strong>de</strong> que somos feitos, e nós a<br />

substância do tempo, diz o poeta,<br />

mas o que fazer com essa certeza?<br />

Procurar um sentido, ou fragmentos<br />

<strong>de</strong> sentido. Fazer perguntas sobre o<br />

sentido, eis a poesia.<br />

As imagens do mar algarvio<br />

funcionam como essa gran<strong>de</strong><br />

pergunta incessante, essa máquina<br />

do mundo vasta, escura, enigmática.<br />

A mágoa do visível e do invisível<br />

(material) é matéria emocional,<br />

claro, mas segundo Gastão é<br />

também assunto da razão. É a razão,<br />

transformada em emoção gramatical<br />

e sintáctica, que faz com que seja<br />

possível representar o mundo.<br />

Inclusive o mundo perdido.<br />

Os vivos já não estão vivos, os<br />

antigamente próximos vivem<br />

distantes, a ida<strong>de</strong> que nunca<br />

imaginámos é agora a nossa, a<br />

memória revive mas também<br />

<strong>de</strong>forma, e os mais novos têm <strong>uma</strong><br />

nova relação com o tempo, embora<br />

o tempo não tenha <strong>uma</strong> nova relação<br />

com eles. O que resta ao poeta? A<br />

vida e o sentido. Não a vida dos<br />

factos, mas a vida da imaginação.<br />

Não o sentido das frases, mas o<br />

sentido dos factos.<br />

É por isso que são convocados<br />

tantos cantores e pianistas, gente<br />

que transforma a música em cenas<br />

vivas, que faz do som um sentido, e<br />

<strong>de</strong>sse sentido faz um som. É esse<br />

cuidado que permite um poema<br />

como o inicial: “Tantos vieram para<br />

quem estar vivo<br />

foi ouro em que seu ferro<br />

converteram; / pelo dia chamados<br />

tantos eram / que como lençol negro<br />

a luz cobriam, // obscura multidão<br />

tal o vazio / lugar universal que<br />

biliões / <strong>de</strong> anos-luz levaria a<br />

percorrer, / nuvens <strong>de</strong> aves<br />

morrendo em sucessivo // quebrar<br />

do tempo nas escarpas gastas / da<br />

passagem; mas como atravessar / o<br />

vazio sem tempo, aquele que há-<strong>de</strong><br />

// ser o tempo <strong>de</strong> todos? Tantos<br />

vieram / mudar seu ferro em erro, é<br />

<strong>de</strong> viver / e morrer que se trata,<br />

ferro em ferro” (pág. 9). Ferro ou<br />

erro? Se houvesse resposta, não<br />

havia poesia.<br />

Irene Pimentel revela-nos um Car<strong>de</strong>al Cerejeira<br />

mais complexo do que o retrato caricatural que muitos<br />

ainda fazem <strong>de</strong>le<br />

Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 49


Teatro/Dança<br />

50 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />

Dois irmãos e um funeral: é assim que a história<br />

<strong>de</strong> “7:AM” começa, também po<strong>de</strong> ser assim que<br />

a história da Palmilha Dentada acaba<br />

Teatro<br />

A morte<br />

do artista<br />

Po<strong>de</strong> ser o último<br />

espectáculo da Palmilha<br />

Dentada, mas os últimos<br />

são os primeiros. “7: AM”<br />

é o <strong>de</strong>spertador a tocar, e<br />

<strong>uma</strong> companhia <strong>de</strong> teatro<br />

a acordar para a morte.<br />

É a vida. Inês Nadais<br />

7: AM<br />

De Ricardo Alves e Salgueirinho<br />

Maia. Pela Palmilha Dentada.<br />

Encenação <strong>de</strong> Ricardo Alves. Com<br />

Ivo Bastos e Rodrigo Santos.<br />

Porto. Teatro Sá da Ban<strong>de</strong>ira - Sala-Estúdio Latino.<br />

Rua Sá da Ban<strong>de</strong>ira, 108. Até 9/05. 4ª a Dom. às<br />

21h46. Tel.: 915000464. 4,99€ a 9,99€.<br />

O <strong>de</strong>spertador toca às 7h da manhã e<br />

po<strong>de</strong> ser o fim <strong>de</strong> <strong>uma</strong> bela amiza<strong>de</strong>:<br />

mais do que <strong>uma</strong> companhia <strong>de</strong><br />

teatro não subsidiada a acordar para<br />

a vida, e para o facto <strong>de</strong> um dia, mais<br />

cedo ou mais tar<strong>de</strong>, alguém ter <strong>de</strong><br />

pagar as contas, “7: AM” é <strong>uma</strong><br />

companhia <strong>de</strong> teatro não subsidiada<br />

a acordar para a morte. Se isto for<br />

mesmo o funeral da Palmilha<br />

Dentada, vamos bater em latas: eles<br />

viveram <strong>de</strong>pressa, mas <strong>de</strong>ixam um<br />

cadáver bem bonito.<br />

Mesmo que não seja<br />

efectivamente a morte da Palmilha<br />

Dentada, o novo espectáculo que a<br />

companhia estreou há <strong>uma</strong> semana<br />

na Sala-Estúdio Latino do Teatro Sá<br />

da Ban<strong>de</strong>ira, no Porto, é pelo menos<br />

a morte <strong>de</strong> <strong>uma</strong> certa i<strong>de</strong>ia que<br />

fazíamos da Palmilha: não saímos<br />

daqui agarrados à barriga <strong>de</strong> tanto<br />

rir, saímos daqui agarrados à barriga<br />

<strong>de</strong> tanto chorar. “Temos tido as<br />

reacções mais diversas. Há pessoas<br />

que vêem aqui <strong>uma</strong> metáfora do<br />

controlo do Estado, que realmente é<br />

<strong>uma</strong> coisa que estava na minha<br />

cabeça quando escrevi o texto, e há<br />

pessoas que nos perguntam, quase<br />

agressivamente, porque é que não<br />

fizemos um espectáculo como os<br />

outros. Mas se virmos bem nenhum<br />

dos espectáculos da Palmilha é<br />

‘como os outros’. Para mim é fácil<br />

reconhecer aqui a Palmilha, embora<br />

este seja <strong>de</strong> facto um objecto um<br />

bocado estranho. A verda<strong>de</strong> é que<br />

nós sempre fizemos espectáculos<br />

amargurados: o ‘Norma’, ‘A Cida<strong>de</strong><br />

dos que Partem’, mesmo a<br />

‘Armadilha para Condóminos’”,<br />

sublinha Ricardo Alves, autor e<br />

encenador do texto. A diferença aqui<br />

é que a Palmilha foi por “um humor<br />

menos óbvio, mais visual, mais<br />

<strong>de</strong>sacelerado, mais poético”, e que a<br />

quarta pare<strong>de</strong> é por <strong>uma</strong> vez<br />

completamente rígida, quebrando a<br />

comunicação directa com o público<br />

que sempre foi marca registada da<br />

companhia. “Era um risco, mas o<br />

aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />

teatro também serve para isso.<br />

Sempre nos perguntámos como é<br />

que o nosso público reagiria se<br />

fizéssemos um espectáculo não<br />

cómico”, continua. Era agora ou<br />

nunca.<br />

Em “7: AM” há <strong>uma</strong> morte, dois<br />

irmãos sem futuro e pior do que isso<br />

sem passado, e um poema em voz<br />

off, fantasmagórico, sobre a morte<br />

do artista. “É um espectáculo sobre<br />

lugares sombrios, sobre coisas<br />

sérias, a partir da história <strong>de</strong> dois<br />

irmãos que esperam a chegada do<br />

médico-legista que há-<strong>de</strong> passar a<br />

certidão <strong>de</strong> óbito da mãe para<br />

po<strong>de</strong>rem fazer o funeral”. O funeral<br />

da mãe, ou o funeral da Palmilha?<br />

“Estamos indiscutivelmente a<br />

pensar se vale a pena continuar a<br />

fazer teatro neste país e nesta<br />

cida<strong>de</strong>, e isso passa no espectáculo.<br />

Depois <strong>de</strong> tantos anos a trabalhar<br />

sem as condições mínimas, e a<br />

começar do zero espectáculo após<br />

espectáculo, temos <strong>de</strong> estar<br />

cansados”, respon<strong>de</strong> Ricardo Alves.<br />

A experiência <strong>de</strong> “7: AM”,<br />

simbolicamente coproduzido com<br />

1008 espectadores do país todo que<br />

assinaram um contrato e se<br />

comprometeram a comprar dois<br />

bilhetes, foi “óptima” mas não é o<br />

tipo <strong>de</strong> coisa que se possa fazer toda<br />

a vida adulta.<br />

Se isto que 1008 pessoas (e não o<br />

Estado) pagaram para ver tiver sido<br />

o último espectáculo da Palmilha<br />

Dentada, mas que pena. O artista era<br />

mesmo um bom artista.<br />

A epifania<br />

<strong>de</strong> Dinis<br />

O que é que retemos quando<br />

o que ouvimos são só<br />

palavras? “Parole, Parole,<br />

Parole...”, o novo espectáculo<br />

<strong>de</strong> Dinis Machado no<br />

Negócio, é um trabalho<br />

sobre imagens mentais.<br />

Cláudia Silva<br />

Parole, Parole, Parole...<br />

De Dinis Machado. Com Ana Rocha,<br />

Dinis Machado, Inês Vaz e Jorge<br />

Gonçalves.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Negócio/ZDB. R. <strong>de</strong> O Século, 9, porta 5. Até<br />

18/04. 4ª a Dom. às 21h30. Tel.: 213430205. 5€ a<br />

7,5€.<br />

Há dois anos, o encenador e actor<br />

Dinis Machado andava na rua, e<br />

quando <strong>de</strong>u por si, estava a observar<br />

um grupo <strong>de</strong> surdos-mudos a falarem<br />

uns com outros. Por não ter<br />

instrumentos para <strong>de</strong>cifrar aquela<br />

linguagem gestual, criou na sua<br />

cabeça <strong>uma</strong> “imagem metafórica”<br />

daquela comunicação. Foi quase um<br />

“distanciamento brechtiano”, no<br />

sentido em que o gesto mais comum<br />

do quotidiano pô<strong>de</strong> ali ser visto como<br />

absurdo. Na altura, Dinis estava a ler<br />

alguns textos sobre a função fáctica<br />

da comunicação, elemento que


Agenda<br />

Teatro<br />

Estreiam<br />

A Rainha da Beleza <strong>de</strong> Leenane<br />

De Martin McDonagh. Pelo Teatro<br />

Meridional. Encenação <strong>de</strong> Nuria<br />

Mencía. Com Almeno Gonçalves,<br />

Elisa <strong>Lisboa</strong>, José Mata, Natália<br />

Luíza.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Teatro Meridional. Rua do Açúcar 64 - Beco<br />

da Mitra. De 22/04 a 30/05. 4ª a Sáb. às 21h45.<br />

Dom. às 17h. Tel.: 218689245. 5€ a 10€.<br />

Troilo e Créssida<br />

De Shakespeare. Por Companhia <strong>de</strong><br />

Teatro <strong>de</strong> Almada, ACTA, CTB -<br />

Companhia <strong>de</strong> Teatro <strong>de</strong> Braga.<br />

Encenação <strong>de</strong> Michel Kullemann.<br />

Com André Silva, Luís Vicente,<br />

Mário Spencer, Rogério Boane,<br />

Solange Sá, Tânia Silva.<br />

Almada. Teatro <strong>Municipal</strong> <strong>de</strong> Almada - Sala<br />

Principal. Av. Professor Egas Moniz. De 22/04 a<br />

16/05. 4ª a Sáb. às 21h30. Dom. às 16h. Tel.:<br />

212739360. 6€ a 13€.<br />

A Fábrica<br />

De Pär Lagerkvist. Encenação <strong>de</strong><br />

Miguel Fonseca. Com Ana Gil, João<br />

Duarte Costa, Jorge Completo,<br />

Marisa Russo, Nuno Fernan<strong>de</strong>s.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Teatro da Trinda<strong>de</strong> - Sala-Estúdio. Largo<br />

da Trinda<strong>de</strong>, 7 A. De 22/04 a 09/05. 4ª a Sáb. às<br />

21h45. Dom. às 17h30. Tel.: 213420000. 10€.<br />

Continuam<br />

Miserere<br />

A partir <strong>de</strong> Gil Vicente. Pelo Teatro<br />

da Cornucópia. Encenação <strong>de</strong> Luis<br />

Miguel Cintra. Com Dinis Gomes,<br />

Duarte Guimarães, João Grosso, José<br />

Airosa, José Manuel Men<strong>de</strong>s, Luís<br />

Lima Barreto, Luis Miguel Cintra,<br />

Ricardo Aibéo, Rita Blanco, Sofia<br />

Marques, Vítor <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Teatro Nacional D. Maria II - Sala Garrett. Pç.<br />

D. Pedro IV. Até 23/05. 4ª a Sáb. às 21h30. Dom. às<br />

16h. Tel.: 213250835. 7,5€ a 16€.<br />

Ver texto na pág. 32.<br />

Quixote - Ópera Bufa<br />

A partir <strong>de</strong> António José da Silva. Pelo<br />

Bando. Encenação <strong>de</strong> João Brites.<br />

Com Bruno Huca, Catarina Félix,<br />

Félix Lozano, Joana Bergano, Joana<br />

Manaças, Pedro Ramos, Sara Belo,<br />

Sandra Rosado, Susana Blaser.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Teatro da Trinda<strong>de</strong> - Sala Principal. Largo da<br />

Trinda<strong>de</strong>, 7 A. De 15/04 a 13/06. 4ª a Sáb. às 20h30.<br />

Dom. às 16h30. Tel.: 213420000. 10€.<br />

Ver texto na pág. 33.<br />

José. Rubem. Fonseca<br />

A partir <strong>de</strong> Rubem Fonseca. Por CTB<br />

– Companhia <strong>de</strong> Teatro <strong>de</strong> Braga e<br />

Escola da Noite. Encenação <strong>de</strong><br />

António Augusto Barros. Com Allex<br />

Miranda, António Jorge, Carlos Feio,<br />

Igor Lebreaud, Lina Nóbrega, Maria<br />

João Robalo, Mário Montenegro,<br />

Miguel Magalhães, Rogério Boane,<br />

Sílvia Brito, Solange Sá.<br />

Coimbra. Teatro da Cerca <strong>de</strong> S. Bernardo. Pátio da<br />

Inquisição. Até 30/04. 3ª a Sáb. às 21h30. Tel.:<br />

239702630.<br />

Alguém Olhará Por Mim<br />

De Frank McGuinness. Pelo Ensemble<br />

- Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Actores. Encenação <strong>de</strong><br />

Carlos Pimenta. Com Jorge Pinto,<br />

Alberto Magassela, Pedro Galiza.<br />

Porto. Mosteiro <strong>de</strong> São Bento da Vitória. R. S. Bento<br />

da Vitória. Até 24/04. 3ª a Dom. às 21h30. Tel.:<br />

222007283. 7,5€ a 15€.<br />

Antígona<br />

De Sófocles. Encenação <strong>de</strong> Nuno<br />

Carinhas. Com Alexandra Gabriel,<br />

António Durães, Emília Silvestre, João<br />

Castro, Jorge Mota, José Eduardo<br />

Silva, Lígia Roque, Maria do Céu<br />

Ribeiro, Paulo Freixinho, Pedro<br />

Almendra.<br />

Porto. Teatro Nacional São João. Pç. Batalha. Até<br />

23/04. 4ª a Sáb. às 21h30. Dom. às 16h. Tel.:<br />

223401910. 3,75€ a 16€.<br />

Vila Cacimba<br />

De Mia Couto. Pelo Trigo Limpo<br />

Teatro ACERT. Encenação <strong>de</strong> Pompeu<br />

José. Com Ilda Teixeira, José Rosa,<br />

Pompeu José, Raquel Costa, Sandra<br />

Twitter<br />

A companhia <strong>de</strong><br />

teatro londrina Royal<br />

Shakespeare Company<br />

vai representar a peça<br />

“Romeu e Julieta”, <strong>de</strong><br />

William Shakespeare,<br />

no Twitter. Segundo o<br />

“Times”, um elenco <strong>de</strong> seis<br />

Santos, Zito Marques.<br />

<strong>Lisboa</strong>. A Barraca - Teatro Cinearte. Lg Santos, 2.<br />

De 16/04 a 18/04. 6ª e Sáb. às 22h. Dom. às 17h.<br />

Tel.: 213965360.<br />

Mulher Mundo<br />

De Patrícia Portela. Encenação <strong>de</strong><br />

Rafaela Santos, Leonor Keil. Com<br />

Rafaela Santos.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Teatro Taborda. Costa do Castelo, 75. De<br />

16/04 a 18/04. 6ª a Dom. às 21h30. Tel.: 218854190.<br />

Tuning<br />

De Rodrigo Francisco. Pela<br />

Companhia <strong>de</strong> Teatro <strong>de</strong> Almada.<br />

Encenação <strong>de</strong> Joaquim Benite. Com<br />

Pedro Walter, João Farraia, Rui<br />

Dionísio, Teresa Mónica e Paulo<br />

Guerreiro.<br />

Almada. Teatro <strong>Municipal</strong> <strong>de</strong> Almada - Sala<br />

Experimental. Av. Professor Egas Moniz. Até 02/05.<br />

4ª a Sáb. às 21h30. Dom. às 16h. Tel.: 212739360.<br />

5€ a 11€.<br />

Die Maiers - Episódio I<br />

De Sabine Maier, Yogi Mohr.<br />

Encenação <strong>de</strong> Yogi Mohr. Com<br />

Sabine Maier, Yogi Mohr, Luca<br />

Maier, Branca Maier, August Maier.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Chapitô - Tenda. R. Costa do Castelo, 1/7.<br />

Até 18/04. 5ª a Dom. às 22h. Tel.: 218855550. 8€ a<br />

12€.<br />

Uma Família Portuguesa<br />

De Filomena Oliveira, Miguel Real.<br />

Pelo Teatro Aberto. Encenação <strong>de</strong><br />

Cristina Carvalhal. Com Bruno<br />

Simões, Carlos Malvarez, João Maria<br />

Pinto, Luísa Salgueiro, Teresa Faria.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Teatro Aberto - Sala Vermelha. Pç.<br />

jovens actores vai, nas<br />

próximas cinco semanas,<br />

utilizar os seus telemóveis<br />

para escrever as <strong>de</strong>ixas<br />

das personagens em<br />

apenas 140 caracteres.<br />

“Such Tweet Sorrow” é<br />

o nome da iniciativa. O<br />

público po<strong>de</strong> comentar,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que não revele<br />

partes essenciais da<br />

história. A peça po<strong>de</strong> ser<br />

seguida em @Such_Tweet.<br />

www.ipsilon.pt<br />

Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 51


52 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />

Teatro<br />

Agenda<br />

Espanha. Até 31/12. 4ª a Sáb. às 21h30. Dom. às<br />

16h. Tel.: 213880089. 7,50€ a 15€.<br />

Num Dia Igual aos Outros<br />

De John Kolvenbach. Encenação <strong>de</strong><br />

Marco Martins. Com Nuno Lopes,<br />

Gonçalo Waddington.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Teatro Nacional D. Maria II - Sala-Estúdio.<br />

Pç. D. Pedro IV. Até 18/04. 4ª a Sáb. às 21h45. Dom.<br />

às 16h15. Tel.: 213250835. 6€ a 12€.<br />

Dança<br />

Continuam<br />

Performance<br />

In Pieces<br />

De Tim Etchells. Com Fumiyo Ikeda.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Teatro <strong>Municipal</strong> Maria<br />

Matos - Sala Principal. Av. Frei<br />

Miguel Contreiras, 52. De 19/04 a<br />

21/04. 2ª a 4ª às 21h30. Tel.:<br />

218438801. 5€ a 15€.<br />

Torres Novas. Teatro Virgínia - Sala Principal.<br />

A epifania que Dinis Machado teve na rua, ao olhar para um grupo<br />

<strong>de</strong> surdos-mudos, é transposta agora para “Parole, Parole, Parole...”<br />

também impulsionou a sua<br />

atenção pela linguagem gestual.<br />

A epifania <strong>de</strong>sse dia foi agora<br />

transposta para “Parole, Parole,<br />

Parole…”, peça que estrou<br />

anteontem e fica em cena até<br />

domingo, no Negócio, espaço da<br />

ZDB, em <strong>Lisboa</strong>. O espectáculo viaja<br />

<strong>de</strong>pois até ao Núcleo <strong>de</strong><br />

Experimentação Coreográfica, no<br />

Porto, nos dias 1 e 2 <strong>de</strong> Maio.<br />

Dinis, que passou quase um mês<br />

em residência no Negócio, quis<br />

trazer para o palco esta experiência<br />

<strong>de</strong> receber a linguagem como<br />

imagem. A pergunta que ele fez a si<br />

próprio, e que agora faz ao público<br />

é: Com que é que as pessoas ficam<br />

<strong>de</strong> <strong>uma</strong> cena, num espectáculo,<br />

quando a mensagem não é<br />

comunicada directamente? Com<br />

<strong>uma</strong> imagem? Uma memória?<br />

É exactamente por isso que nesta<br />

peça se ouvem muitas línguas<br />

diferentes, a começar pelo título, em<br />

aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />

Até ao fi m do mês, as terçasfeiras<br />

são dias <strong>de</strong> performance<br />

na Sala-Estúdio Latino do<br />

Teatro Sá da Ban<strong>de</strong>ira, no Porto.<br />

O colectivo <strong>de</strong> programação<br />

Variação da Cultura reservou o<br />

horário das 21h30, <strong>uma</strong> vez por<br />

semana, para um ciclo <strong>de</strong>cidado<br />

à experimentação, com a<br />

coor<strong>de</strong>nação dos criadores e<br />

intérpretes António Júlio e Vera<br />

Santos. A próxima terça, dia 20,<br />

Largo São José Lopes dos Santos. Dia 17/04. Sáb. às<br />

21h30. Tel.: 249839309. 5€.<br />

Ver texto na pág. 30 e segs.<br />

Pororoca<br />

De Lia Rodrigues. Com Amália Lima,<br />

Allyson Amaral, Ana Paula Kamozaki,<br />

Leonardo Nunes, Clarissa Rego,<br />

Carolina Campos, Thais Galliac,<br />

Volmir Cor<strong>de</strong>iro, Priscilla Maia,<br />

Calixto Neto, Lídia Laranjeira.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Culturgest - Gran<strong>de</strong> Auditório.<br />

Rua Arco do Cego - Edifício da CGD.<br />

De 16/04 a 17/04. 6ª e Sáb. às 21h30.<br />

Tel.: 217905155. 5€ a 18€.<br />

Orfeu e Eurídice<br />

De Marie Chouinard.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Centro Cultural <strong>de</strong> Belém - Gran<strong>de</strong> Auditório.<br />

Praça do Império. Até 16/04. 5ª e 6ª às 21h. Tel.:<br />

213612400. 5€ a 25€.<br />

At Once<br />

De Deborah Hay. Com Ana Mira,<br />

italiano, que significa “palavras,<br />

palavras, palavras”. “Inicialmente,<br />

quando pensei no espectáculo, a<br />

i<strong>de</strong>ia era que ninguém percebesse<br />

todos os textos [da peça]”, conta<br />

Dinis. À medida que a peça vai<br />

avançando, percebe-se que não é tão<br />

importante enten<strong>de</strong>r, porque que “o<br />

discurso não está naquilo que está a<br />

ser dito, mas na própria máquina [da<br />

peça]”, explica.<br />

Assim, em “Parole…”, po<strong>de</strong>mos<br />

ver a princípio quatro actores a<br />

dançar em palco, vestidos <strong>de</strong> branco<br />

da cabeça aos pés e com os rostos<br />

tapados por <strong>uma</strong> máscara <strong>de</strong><br />

esgrima. Parece o futuro, até que, na<br />

cena seguinte, há um casal à mesa,<br />

tomando um farto e <strong>de</strong>morado<br />

pequeno-almoço, com o mesmo<br />

figurino. Comem cereais, bebem chá<br />

e lêem jornais e revistas. Uma<br />

banalida<strong>de</strong>. De vez em quando<br />

trocam alg<strong>uma</strong>s palavras. Po<strong>de</strong>mos<br />

ver as personagens e suas sombras<br />

será preenchida por João Costa,<br />

com “Simon 06 07 08 09”. e<br />

Rita Osório, com “(sem título)”.<br />

No dia 27, Loreto Martinez<br />

Troncoso apresenta “La ferme<br />

(solilóquio <strong>de</strong> um insone)”<br />

e Filipe Antunes Moreira<br />

“Recomeçar do princípio”. Os<br />

bilhetes custam cinco euros e<br />

as sessões não terminam antes<br />

<strong>de</strong> <strong>uma</strong> conversa aberta com o<br />

público.<br />

Margarida Bettencourt.<br />

Aveiro. Teatro Aveirense - Sala Principal. Pç.<br />

República. Dia 22/04. 5ª às 21h45. Tel.: 234400922.<br />

8€.<br />

Mapacorpo<br />

De Amélia Bentes, Lia Rodrigues.<br />

Com Amélia Bentes, Leonor Keil.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Centro Cultural <strong>de</strong> Belém - Pequeno<br />

Auditório. Praça do Império. Dia 17/04. Sáb. às 21h.<br />

Dom. às 17h. Tel.: 213612400. 10€ a 15€.<br />

enormes na pare<strong>de</strong>, num jogo<br />

possível graças ao ví<strong>de</strong>o em directo e<br />

à projecção. Temos a sensação <strong>de</strong><br />

que esta cena se vai prolongar. O<br />

tempo não passa. Outras duas<br />

personagens entrarão em cena, <strong>uma</strong><br />

rapariga vestida <strong>de</strong> branco com <strong>uma</strong><br />

máscara e um rapaz vestido com um<br />

smoking branco e um arco com dois<br />

cornos. Não sabemos muito bem<br />

quem são eles, <strong>de</strong>scobrimos mais<br />

tar<strong>de</strong> que também é um casal. O<br />

espaço cénico é construído,<br />

<strong>de</strong>struído e reconstruído em palco,<br />

com fita-cola.<br />

Esta re<strong>de</strong>, diz Dinis, é o quotidiano:<br />

a repetição, a acumulação do tempo<br />

e as <strong>de</strong>cisões que tomamos no dia-adia,<br />

como o trabalho e a pessoa com<br />

a qual partilhamos a vida. Mas isto é o<br />

que o encenador nos explica, porque<br />

nem tudo se percebe. Saímos do<br />

espectáculo, afinal, sem muitas<br />

“parole” na cabeça, apenas com<br />

alg<strong>uma</strong>s imagens.<br />

VERA MARMELO


Discos<br />

Pop<br />

Autorida<strong>de</strong><br />

incendiária<br />

Segundo álbum incendiário<br />

da voz revelação do Mali. É a<br />

melhor cantora africana da<br />

actualida<strong>de</strong>. Luís Maio<br />

Bako Dagnon<br />

Sidiba<br />

Discograph, distri. Massala<br />

mmmmm<br />

Começa quase<br />

sempre com uns<br />

acor<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

guitarra, brandos<br />

e <strong>de</strong>licados, que<br />

embalam o<br />

ouvinte num<br />

meigo torpor. A voz vem <strong>de</strong>pois<br />

conjugar a mesma doçura, mas<br />

<strong>de</strong>pressa ganha asas, levando os<br />

instrumentos atrás em crescendos<br />

sucessivos. São como avalanches em<br />

catadupa, cada <strong>uma</strong> mais veemente<br />

e luminosa que a prece<strong>de</strong>nte. É<br />

assim “Sidiba”, o majestoso segundo<br />

álbum internacional daquela que é a<br />

melhor cantora africana do nosso<br />

tempo, mas ainda <strong>uma</strong> ilustre<br />

<strong>de</strong>sconhecida fora dos circuitos <strong>de</strong><br />

especialistas. Bako Dagnon (1953-)<br />

vem da região <strong>de</strong> Biriko, Mali, e<br />

orgulha-se <strong>de</strong> ser <strong>uma</strong> das últimas<br />

jeliya, a linhagem <strong>de</strong> cantoras griot<br />

da lendária tradição Mandiga. Na<br />

verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>scen<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>uma</strong> família<br />

<strong>de</strong> nobres griot, que remonta à<br />

fundação do império Mali, em<br />

meados do século XIII.<br />

Começou a cantar em miúda,<br />

vindo <strong>de</strong>pois - como manda o<br />

costume agora em vias <strong>de</strong> extinção –<br />

a estudar com os velhos guardiões<br />

<strong>de</strong>ssa cultura<br />

predominantemente oral. A sua<br />

carreira conheceu, entretanto,<br />

<strong>uma</strong> série <strong>de</strong> falsas partidas,<br />

que tornaram Bako menos<br />

conhecida pelos seus dotes<br />

artísticos do que pela sua<br />

extraordinária erudição.<br />

Tornou-se <strong>uma</strong> figura<br />

tutelar – aquela que nomes<br />

bem mais célebres, como<br />

Ali Farka Touré, Kandia<br />

Kouyate ou Ibrahima Sylla, se<br />

habituaram a consultar em<br />

matéria <strong>de</strong> erudição Mandiga.<br />

Acabou por ser Sylla, um dos<br />

mais <strong>de</strong>stacados produtores<br />

africanos da actualida<strong>de</strong>, que a<br />

convenceu a gravar “Titali”, o<br />

seu primeiro álbum<br />

internacional, lançado em<br />

finais 2006.<br />

Bako Dagnon: a melhor<br />

cantora africana<br />

do nosso tempo<br />

“Sidiba” não<br />

muda gran<strong>de</strong><br />

coisa,<br />

antes<br />

cuida <strong>de</strong> esclarecer as premissas que<br />

nortearam a estreia. Ou seja, é<br />

também um disco gravado entre<br />

Bamako e Paris, que cruza um<br />

ensemble <strong>de</strong> músicos acústicos do<br />

Mali, sobretudo nas cordas e nas<br />

percussões, com guitarristas e<br />

produtores francesas. Evitando<br />

truques <strong>de</strong> produção e<br />

exibicionismos fátuos, tem o mérito<br />

<strong>de</strong> actualizar o reportório <strong>de</strong><br />

colheita secular e funcionar como<br />

veículo perfeito para o espectáculo<br />

que é cada <strong>de</strong>sempenho vocal <strong>de</strong><br />

Bako.<br />

É <strong>uma</strong> voz rugosa e granulada,<br />

que não faz nada para soar mais<br />

domesticada. Denota, em<br />

contrapartida, um fôlego interior e<br />

um virtuosismo prodigiosos, que<br />

com a ida<strong>de</strong> parecem ganhar ainda<br />

mais intensida<strong>de</strong> e poesia. Claro que<br />

ela canta tudo em mandiga e quem<br />

editou o disco nem se <strong>de</strong>u ao<br />

trabalho <strong>de</strong> traduzir as palavras para<br />

<strong>uma</strong> língua oci<strong>de</strong>ntal. Não faz mal<br />

quando se está em presença <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />

<strong>de</strong>ssas vozes raras com real<br />

capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> comunicação<br />

universal.<br />

A essência<br />

dos<br />

Pavement<br />

Uma viagem <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>slumbramento.<br />

Mário Lopes<br />

Pavement<br />

Quarantine The Past<br />

Domino; distri. E<strong>de</strong>l<br />

mmmmn<br />

Uma compilação<br />

dos Pavement,<br />

tivesse as canções<br />

que tivesse,<br />

provocaria<br />

sempre<br />

<strong>de</strong>scontentamento<br />

em alguém. Tendo em conta o grau<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>voção gerado pela banda <strong>de</strong><br />

Stephen Malkmus, haveria sempre<br />

canções em falta (as nossas) para<br />

(nossa) muito justificável indignação.<br />

Isso, <strong>de</strong> resto, é prova do quanto<br />

estamos perante algo especial:<br />

foram “geeks” <strong>de</strong>salinhados do<br />

rock’n’roll que transformaram os<br />

“maluquinhos” que os ouviam em<br />

seres incomparavelmente cool – e<br />

estes, como sabemos, preocupam-se<br />

com pormenores como alinhamento<br />

<strong>de</strong> compilações.<br />

Mas da mesma forma que, nos<br />

anos 1990, o canto balbuciado <strong>de</strong><br />

Malkmus e as suas letras <strong>de</strong> refinado<br />

“nonsense”, aquela música que<br />

jogava com Lou Reed e os Sonic<br />

Youth, com os Byrds, o psica<strong>de</strong>lismo<br />

e o punk, reunidos num corpo que<br />

aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito aMaumMe<br />

BommmmmmExcelente<br />

Novo No<br />

dis disco<br />

A dupla Chemical<br />

Brothers vai lançar<br />

novo disco com oito<br />

novos temas e o mesmo<br />

número <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>os.<br />

Como se <strong>de</strong> um DJ set se<br />

tratasse, “Further” não<br />

se distinguia da multidão pelos olhos<br />

esbugalhados caminhando em<br />

sentido contrário à turba <strong>de</strong> Pixies e<br />

“grungers”; da mesma forma,<br />

dizíamos então, que os Pavement se<br />

conta com interrupções<br />

entre faixas. A data<br />

<strong>de</strong> lançamento do<br />

sucessor <strong>de</strong> “We<br />

Are The Night” está<br />

prevista para 7 <strong>de</strong><br />

Junho.<br />

Pavement: foram “geeks” <strong>de</strong>salinhados<br />

do rock’n’roll que transformaram os “maluquinhos”<br />

que os ouviam em seres incomparavelmente cool<br />

tornaram o culto mais cultivado dos<br />

anos 1990 pelo som on<strong>de</strong> se<br />

simulava <strong>de</strong>sleixo (as canções<br />

pareciam brotar sem esforço e sem<br />

ensaio) para se atingir algo maior<br />

Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 53


54 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />

Discos<br />

PAULO PIMENTA/ PÚBLICO<br />

(as canções senhores, que<br />

canções), também agora<br />

“Quarantine The Past”, compilação<br />

que coinci<strong>de</strong> com o regresso aos<br />

palcos, serve para <strong>uma</strong> viagem <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>slumbramento. Não é necessário<br />

nada <strong>de</strong> perfeito, não é necessário<br />

um comité <strong>de</strong> sábios que <strong>de</strong>fina a<br />

nata do cancioneiro.<br />

“Quarantine The Past” não tem<br />

alinhamento cronológico. Salta <strong>de</strong><br />

“Crooked Rain, Crooked Rain” para<br />

os primeiros EPs, só inclui <strong>uma</strong><br />

canção <strong>de</strong> “Terror Twikight” (“Spit<br />

on a stranger”) e atira para o<br />

alinhamento “Unseen power of the<br />

picket fence”, da compilação “No<br />

Alternative”, só porque é divertido<br />

ouvir a <strong>de</strong>lirante versão alternativa<br />

da história dos REM nela inventada.<br />

Temos a frase imortal <strong>de</strong> “Cut your<br />

hair” (“I’m just a boy with a new<br />

haircut”), temos a perfeita “Shady<br />

lane”, temos os jogos <strong>de</strong> guitarra<br />

surpreen<strong>de</strong>ntes, empolgantes, as<br />

estruturas gargalhando perante a<br />

convenção e o equilíbrio no fio da<br />

navalha entre melodia escorreita e<br />

caos sónico.<br />

“Quarantine The Past” são 23<br />

canções organizadas <strong>de</strong> acordo com<br />

o espírito da banda – nada <strong>de</strong> óbvio,<br />

nada daquilo que “<strong>de</strong>veria ser”. A<br />

essência dos Pavement, aquilo nos<br />

atraiu para eles, está aqui. Tudo o<br />

resto são pormenores pouco<br />

relevantes.<br />

Ribeiro manso<br />

Caribou<br />

Swim<br />

Merge; distri. Popstock<br />

mmmmn<br />

Novo<br />

disco<br />

De que é que<br />

falamos quando<br />

falamos <strong>de</strong> água<br />

na música pop?<br />

De Robert Wyatt,<br />

ou, mais<br />

propriamente, <strong>de</strong><br />

“Rock Bottom”, prodigiosa obraprima<br />

do músico inglês em que<br />

Os Mind da Gap<br />

estão <strong>de</strong> volta para,<br />

quatro anos <strong>de</strong>pois,<br />

apresentarem novo<br />

álbum <strong>de</strong> originais.<br />

“A Essência”<br />

instrumentos e voz parecem um<br />

todo, um fluído composto <strong>de</strong> vagas<br />

que nos afogam, sufocam e<br />

finalmente atiram <strong>de</strong> volto à areia.<br />

Lembramos “Rock Bottom” porque<br />

“Swim”, o novo álbum <strong>de</strong> Caribou,<br />

é, supostamente, um disco para ser<br />

ouvido como se <strong>de</strong> água se tratasse –<br />

ou seja, Caribou queria o oposto da<br />

solarida<strong>de</strong> que o tornou conhecido,<br />

queria um disco que se afastasse da<br />

“canção”. Por isso fez nove faixas<br />

longas e cheias <strong>de</strong> partes diferentes,<br />

em que sons concretos se unem a<br />

instrumentos com frequências<br />

alteradas, criando <strong>uma</strong> espécie <strong>de</strong><br />

house progressiva, cheia <strong>de</strong> curvas e<br />

contra-curvas. No entanto, a<br />

primeira canção, “O<strong>de</strong>ssa”, está<br />

muito longe <strong>de</strong> ser “água”: com um<br />

beat bem <strong>de</strong>marcado, refrão em<br />

ascensão e um mínimo <strong>de</strong> blips em<br />

fundo, é, a todos os títulos, um<br />

tremendo single pop. A partir daí a<br />

coisa vai <strong>de</strong> facto aguando: “Sun”<br />

assenta n<strong>uma</strong> toalha <strong>de</strong><br />

sintetizadores repetitivos antes <strong>de</strong><br />

ser apopalhada por um beat<br />

langoroso, “Kaili” traz <strong>de</strong> novo<br />

sintetizadores e linhas <strong>de</strong> baixo<br />

sintetizadas que evocam danças<br />

submarinas, e na tremenda “Bowls”,<br />

entre <strong>uma</strong> linha <strong>de</strong> baixo<br />

sorumbática e flautas sombrias,<br />

atinge-se finalmente aquela sensação<br />

<strong>de</strong> afundamento que só Wyatt<br />

alcançou.<br />

Mas Caribou não tem a<br />

visceralida<strong>de</strong> do músico inglês, pelo<br />

que, mesmo <strong>de</strong>scartando as<br />

referências à década <strong>de</strong> 60 que<br />

fizeram <strong>de</strong> “Andorra” um sucesso,<br />

lhe é difícil fugir a certa <strong>uma</strong><br />

vertigem pop. O que quer dizer que<br />

mesmo estando cheio <strong>de</strong><br />

experiências com as heranças da<br />

electrónica, do breakbeat ao velho<br />

4/4 da house, da samplagem ao<br />

ruído, “Swim” não é um disco <strong>de</strong><br />

água no sentido <strong>de</strong> afundamento<br />

mas sim no <strong>de</strong> ribeiro manso em dia<br />

<strong>de</strong> sol: aprazível, com seixos<br />

redondos e as ocasionais sombras<br />

on<strong>de</strong> se escon<strong>de</strong>m peixes estranhos<br />

<strong>de</strong>rivado da poluição. Mas é sempre<br />

o belo a dominar este regueirão.<br />

“Swim” é para ser ouvido como se <strong>de</strong> água<br />

se tratasse – Caribou queria o oposto da<br />

solarida<strong>de</strong> que o tornou conhecido,<br />

queria um disco que se afastasse da “canção”<br />

conta com 11 temas<br />

conduzidos pelas<br />

palavras dos MC Ace e<br />

Presto e pelas batidas<br />

propostas por Serial.<br />

Chega às lojas a 26.<br />

Difi cilmente os Black Rebel Motorcycle Club<br />

serão melhores que o que aqui ouvimos<br />

Uma questão<br />

<strong>de</strong> crença<br />

Black Rebel Motorcycle Club<br />

Beat The Devil’s Tattoo<br />

Abstract Dragon; distri. Nuevos<br />

Medios<br />

mmmnn<br />

Temos as<br />

guitarras<br />

acústicas, com<br />

pan<strong>de</strong>ireta a<br />

chocalhar e bota<br />

batendo no chão<br />

como percussão.<br />

Temos os blues, portanto. Temos o<br />

baixo a ressoar pelo corpo e os ecos<br />

<strong>de</strong> fuzzs e wah wahs das guitarras,<br />

temos as vozes que surgem do fim<br />

do túnel enquanto a massa sonora<br />

nos suga para qualquer que seja o<br />

lugar diabólico <strong>de</strong> on<strong>de</strong> veio. Temos,<br />

assim sendo, o rock’n’roll como<br />

matéria inflamável e o shoegaze<br />

como peyote cultivado em<br />

electricida<strong>de</strong>.<br />

Os Black Rebel Motorcycle Club<br />

estão <strong>de</strong> volta, meses <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um<br />

óptimo CD/DVD ao vivo, e este<br />

quinto álbum, “Beat the <strong>de</strong>vil’s<br />

tattoo”, não provocará sobressaltos.<br />

É o pior que <strong>de</strong>le po<strong>de</strong>mos dizer.<br />

Porque os Black Rebel Motorcycle<br />

Club, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que lançaram aquele<br />

famoso berro <strong>de</strong> “whatever<br />

happened to my rock’n’roll?”, só<br />

fazem fazem sentido s se a sua música<br />

espolet espoletar algo: a proverbial explosão<br />

hormo hormonal, o inevitável <strong>de</strong>lírio<br />

psicotr psicotrópico, a sensação que não<br />

aconte aconteceu nada ao rock’n’roll e aqui<br />

está esta est canção para o provar.<br />

“Bea “Beat tthe <strong>de</strong>vil’s tattoo” até é um<br />

dos me melhores álbuns do trio. Tem os<br />

inferno infernos blues em que mergulharam<br />

em “Ho “Howl” (a canção título, a<br />

primei primeira, dirige-nos na rota certa) e<br />

as <strong>de</strong>scargas <strong>de</strong>sc eléctricas<br />

encant encantatórias, ponto <strong>de</strong> encontro<br />

entre perdição p Velvetiana e retórica<br />

gótica ( (a sulista americana, não a<br />

dos Sisters Sis of Mercy). É um<br />

concen concentrado daquilo que fizeram<br />

nos seus seu dois álbuns que realmente<br />

interes interessam: o primeiro, homónimo,<br />

e o sup supracitado “Howl”.<br />

Entr Entre “witches tongues” e “I don’t<br />

wanna<br />

feel love again”, com os


flashes e néons tremeluzentes que a<br />

música suscita, sentimos que tudo<br />

está bem no melhor dos mundos<br />

que os Black Rebel Motorcycle Club<br />

inventaram para nós. Mas ao<br />

contrário do berro primordial, ao<br />

contrário do recente “Live”, o<br />

zumbido provocado por esta música<br />

<strong>de</strong> excessos não se prolonga como<br />

anteriormente. Essa a tragédia <strong>de</strong><br />

“Beat the <strong>de</strong>vil’s tattoo”.<br />

Dificilmente os Black Rebel<br />

Motorcycle Club serão melhores que<br />

o que aqui ouvimos, mas já não<br />

acreditamos como gostaríamos nas<br />

oh tão libertadoras feitiçarias que<br />

lançam sobre nós. M.L.<br />

Música <strong>de</strong> fundo<br />

Ruby Suns<br />

Fight Softly<br />

Memphis Industries; distri. Popstock<br />

mmmnn<br />

Lembram-se dos<br />

Ruby Suns <strong>de</strong> “Oh<br />

Mojave” e “Kenya<br />

dig it?”, pessoal <strong>de</strong><br />

bronzeado<br />

neozelandês,<br />

caribenho e norte<br />

americano? Pois então esqueçam. Ou<br />

melhor, seguindo os procedimentos<br />

<strong>de</strong> Ryan McPhun, o homem que se<br />

escon<strong>de</strong> por trás do nome Ruby Suns,<br />

reformulem. A sua música continua<br />

incrivelmente solar, continua eivada<br />

da inocência infantil possível num<br />

corpo adulto. Mas isso, chegados a<br />

Como música<br />

<strong>de</strong> fundo é perfeito...<br />

“Fight Softly”, é a única coisa que<br />

continua a ser. O orgânico <strong>de</strong>u lugar<br />

ao digital e a pop globalizada<br />

transformou-se em mais um nome a<br />

juntar à vaga chillwave ou hypnagogic<br />

pop ou lá como se classificam as<br />

nostalgias new-age dos óptimos<br />

Ducktails, do recente Toro Y Moi e do<br />

assim p’ró aborrecido Neon Indian.<br />

A doce melancolia dos Ruby Suns<br />

é agora servida por sugestões <strong>de</strong><br />

vibrafones caribenhos e<br />

sintetizadores extraídos do electro<br />

pop dos anos 80, por um par <strong>de</strong><br />

linhas <strong>de</strong> voz atirados aos céus para<br />

recordar Brian Wilson e, <strong>de</strong> forma<br />

omnipresente, pela visão <strong>de</strong> um Paul<br />

Simon entregue às <strong>de</strong>lícias <strong>de</strong> um<br />

chill out em final <strong>de</strong> tar<strong>de</strong> regado a<br />

Martini dry. Essa po<strong>de</strong> ser <strong>uma</strong> visão<br />

bonita. É o que acontece, por<br />

exemplo, em “How kids fail”,<br />

porque aí McPhun consegue pegar<br />

n<strong>uma</strong> i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> som e transformá-la<br />

em canção. Mas tal po<strong>de</strong> também<br />

conduzir a cenários com o seu quê<br />

<strong>de</strong> assustador: percebemo-lo<br />

quando damos por nós a trautear<br />

“Never give you up”, atentado ao<br />

bom gosto perpetrado por Rick<br />

Astley nos idos <strong>de</strong> 80, sobre a<br />

melodia <strong>de</strong> “Mingus and Pike”.<br />

Porém, o coração <strong>de</strong> “Fight softly”<br />

não está em nenhum dos dois<br />

extremos. Fica a caminho <strong>de</strong><br />

qualquer coisa, como se se tratasse<br />

<strong>de</strong> um conceito <strong>de</strong> som que Ryan<br />

McPhun não domina complemente<br />

– o álbum está recheado <strong>de</strong> bons<br />

esboços <strong>de</strong> canções que nunca se<br />

chegam a concretizar.<br />

Claro que a intenção <strong>de</strong> McPhun<br />

po<strong>de</strong> ter sido transformar a<br />

exuberância do passado em algo<br />

mais discreto. Se assim foi, missão<br />

cumprida. Como música <strong>de</strong> fundo,<br />

i<strong>de</strong>al para criar um ambiente<br />

agradável e não incomodar muito<br />

quem a ouve, “Fight softly” é<br />

perfeito. M.L.<br />

O novo “new age”<br />

Magina<br />

Nazca Lines<br />

Edição <strong>de</strong> autor<br />

mmmnn<br />

Pedro Magina faz música corajosa<br />

Pedro Magina<br />

mostra em “Nazca<br />

Lines” a música<br />

que cose em casa<br />

quando não está<br />

com André Abel,<br />

o seu camarada no duo<br />

Aquaparque, um dos mais<br />

excitantes projectos portugueses<br />

dos últimos anos. Neste disco <strong>de</strong><br />

estreia a solo, Magina mostra o<br />

seu interesse pelas melodias <strong>de</strong><br />

teclados, que nos Aquaparque<br />

se diluíam em “samples”,<br />

batidas e vozes. O resultado é <strong>uma</strong><br />

música mais <strong>de</strong>spida, que lembra<br />

compositores “new age” como Jean<br />

Michael Jarre e Vangelis e até o “easy<br />

listening” <strong>de</strong> Richard Clay<strong>de</strong>rman.<br />

Não se assustem: esses campos, que,<br />

noutros casos, resvalam para o gosto<br />

duvidoso, são reabilitados por<br />

Magina, que <strong>de</strong>les retira a beleza<br />

melódica e emocional e a imersão<br />

psicadélica, dispensando as<br />

megalomanias orquestrais ou a<br />

estética papel <strong>de</strong> pare<strong>de</strong>.<br />

Conceptualmente, os três temas<br />

<strong>de</strong> “Nazca Lines” alinham-se com o<br />

que gente como Oneohtrix Point<br />

Never e James Ferraro têm vindo a<br />

fazer: trazer a “new age” e outros<br />

territórios banidos para a<br />

contemporaneida<strong>de</strong>, cruzando-os<br />

com a música <strong>de</strong> sintetizadores<br />

alemã dos anos 1970, sob <strong>uma</strong><br />

perspectiva <strong>de</strong>vedora do “noise” do<br />

início <strong>de</strong>ste década.<br />

“The Love There That’s Sleeping”<br />

lembra a qualida<strong>de</strong> épica <strong>de</strong><br />

“Chariots of Fire”, <strong>de</strong> Vangelis, sem<br />

medo <strong>de</strong> soar piroso – não soa.<br />

“Heads Across the Sky” tem aquela<br />

beleza pura, não filtrada, das peças<br />

<strong>de</strong> órgão interpretadas n<strong>uma</strong><br />

audição escolar, poluída (para nosso<br />

bem) pelo ruído da gravação e<br />

alguns efeitos dissonantes. Em<br />

“She’s Behind Me”, as linhas <strong>de</strong><br />

teclado, a lembrar os floreados <strong>de</strong><br />

Edgar Froese (Tangerine Dream),<br />

perduram graças ao eco.<br />

É um disco que reflecte o seu<br />

processo <strong>de</strong> fabrico, assumidamente<br />

caseiro, e que é beneficiado pela<br />

gravação mo<strong>de</strong>sta (o ruído, sempre<br />

presente, é <strong>uma</strong> textura extra). Tal<br />

como com os Aquaparque, a solo,<br />

Pedro Magina faz música corajosa,<br />

100 por cento genuína e, não raras<br />

vezes, bela. Pedro Rios<br />

David Byrne & Fatboy Slim<br />

Here Lies Love<br />

Nonesuch, distri. Warner<br />

mmmnn<br />

É um disco<br />

estranho. Em<br />

primeiro lugar,<br />

pelos<br />

protagonistas.<br />

David Byrne<br />

Esperava-se que extravagante Imelda pu<strong>de</strong>sse<br />

inspirar um pouco mais <strong>de</strong> fantasia a Byrne e Fatboy Slim<br />

JOÃO HENRIQUES<br />

aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />

e Fatboy Slim po<strong>de</strong>m gostar <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sconstruções e bricolagens<br />

sonoras, mas dir-se-ia que os pontos<br />

<strong>de</strong> contacto se esgotam aí. Em<br />

segundo, por ser <strong>uma</strong> obra<br />

conceptual, narrativa sónica sobre a<br />

vida, amores e obsessões <strong>de</strong> Imelda<br />

Marcos, primeira-dama das Filipinas<br />

durante o regime <strong>de</strong> Ferdinando<br />

Marcos. Ao que parece, Imelda tem o<br />

<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ver gravado na sua lápi<strong>de</strong> a<br />

frase “Here lies love”, daí o nome do<br />

álbum. Por último, é <strong>uma</strong> obra<br />

faraónica, dividida em quatro actos e<br />

dois CDs, na qual participam cerca<br />

<strong>de</strong> 22 vocalistas convidados (Roisin<br />

Murphy, Santigold, Sharon Jones,<br />

Camille, Cindy Lauper, Alice Russell<br />

ou Tori Amos). E o que resulta? Um<br />

disco mediano, que se divi<strong>de</strong> entre<br />

canções pop electrónicas e outras<br />

on<strong>de</strong> o espírito latino e o balanço<br />

tropical se fazem sentir. Há, claro,<br />

gran<strong>de</strong>s intérpretes, mas dir-se-ia<br />

que a produção, na tentativa <strong>de</strong> unir<br />

as pontas soltas, acabou por anular a<br />

singularida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada <strong>uma</strong>. Não<br />

existe nenh<strong>uma</strong> canção que<br />

sobressaia. Nenh<strong>uma</strong> é medíocre, é<br />

© CLEMENTINA CABRAL<br />

verda<strong>de</strong>. Mas também nenh<strong>uma</strong> tem<br />

o efeito <strong>de</strong> surpreen<strong>de</strong>r, a<br />

sonorida<strong>de</strong> revela-se apenas<br />

cómoda. Esperava-se que<br />

extravagante Imelda pu<strong>de</strong>sse<br />

inspirar um pouco mais <strong>de</strong> fantasia.<br />

V.B.<br />

Two Door Cinema<br />

Tourist History<br />

Kitsuné, distri. PopStock<br />

mmmnn<br />

Não irão mudar o<br />

mundo, com <strong>uma</strong><br />

sonorida<strong>de</strong> já<br />

ensaiada por<br />

muitas outras<br />

bandas ao longo<br />

dos últimos anos<br />

(súmula <strong>de</strong> guitarras à Franz<br />

Ferdinand com balanço rítmico<br />

próximo dos franceses Phoenix), mas<br />

os irlan<strong>de</strong>ses Two Door Cinema<br />

transmitem <strong>uma</strong> frescura que poucas<br />

das bandas <strong>de</strong> hoje que se agarraram<br />

ao legado do pós-punk dos anos 80 já<br />

conseguem transmitir. São putos,<br />

JORGE SALGUEIRO<br />

4ª a sáb às 20h30<br />

dom às 16h30 | M/6<br />

A FÁBRICA<br />

baseado em O Segredo do Céu <strong>de</strong> PÄR LAGERKVIST<br />

encenação Miguel Fonseca co-produção TEATRO AGITA<br />

ESTREIA 22 ABR sala estúdio | 4ª a sáb 21h45 | dom 17h30 | M/12<br />

HAVIA UM MENINO QUE ERA PESSOA<br />

Poemas para a Infância <strong>de</strong> FERNANDO PESSOA<br />

encenação Lucinda Loureiro | com José Figueiredo Martins<br />

sáb e dom 15h para toda a família | M/6<br />

para escolas durante a semana | sob marcação<br />

Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 55


Discos<br />

Two Door Cinema:<br />

<strong>uma</strong> vivacida<strong>de</strong> contagiante<br />

<strong>de</strong>scarados, e não o tentam<br />

escon<strong>de</strong>r, o que é óptimo. Não têm<br />

gran<strong>de</strong>s conceitos para oferecer,<br />

apenas <strong>uma</strong> vivacida<strong>de</strong> que em<br />

alg<strong>uma</strong>s canções (“Do you want it<br />

all?”, “This is the life” ou “I can talk”)<br />

se revela contagiante. Ouvido do<br />

princípio ao fim, é um daqueles<br />

discos que acusa a repetição <strong>de</strong><br />

fórmulas <strong>de</strong> canção para canção, mas<br />

nos momentos mais inspirados a<br />

mistura <strong>de</strong> guitarras angulares e<br />

movimentos rítmicos dançáveis<br />

consegue operar pequenos milagres<br />

em canções pop <strong>de</strong>scomprometidas<br />

e hedonistas. V.B.<br />

Mão Morta<br />

Pesa<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> Peluche<br />

Universal<br />

mmnnn<br />

Depois da<br />

megalomania<br />

“Maldoror”, os<br />

Mão Morta<br />

anunciaram um<br />

“back to basics”.<br />

Fizeram um objecto estranho, que os<br />

mostra <strong>de</strong>spersonalizados e em que<br />

<strong>de</strong>masiados temas sofrem <strong>de</strong> falta <strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>ias, recorrendo à cartilha <strong>de</strong><br />

clichés do rock. “Teoria da<br />

Conspiração” lembra o punkindustrial<br />

vitaminado dos Lard e tem<br />

um refrão que podia ser dos Cramps<br />

– é um bom momento rock, mas tem<br />

pouco <strong>de</strong> Mão Morta. Em “Como um<br />

Vampiro”, Fernando Ribeiro, dos<br />

Moonspell, tenta emprestar negrume<br />

ao refrão teatral, mas o resultado é<br />

dispensável. É nos temas menos<br />

acelerados que “Pesa<strong>de</strong>lo <strong>de</strong><br />

Peluche” oferece algum brilho.<br />

Exemplo: a muito “ballardiana”<br />

“Metalcarne”, com <strong>uma</strong> linha <strong>de</strong><br />

baixo quase “electro” e invasões <strong>de</strong><br />

electrónica. A pérola é <strong>de</strong>ixada para<br />

o fim. “Tiago Capitão” é guiada<br />

por um piano solene em<br />

primeiro plano. Há <strong>uma</strong><br />

guitarra distorcida a<br />

crepitar ao fundo e<br />

Adolfo Luxúria Canibal a<br />

inventar <strong>uma</strong> ladainha.<br />

Pena que seja um dos<br />

poucos momentos em<br />

que este é mais do que<br />

Pouco para <strong>uma</strong> banda com<br />

muitos momentos brilhantes<br />

em 25 anos <strong>de</strong> carreira<br />

56 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />

HUGO DELGADO/ PUBLICO<br />

um disco razoável. O que é pouco<br />

para <strong>uma</strong> banda com muitos<br />

momentos brilhantes em 25 anos <strong>de</strong><br />

carreira. Pedro Rios<br />

Clássica<br />

As múltiplas<br />

faces <strong>de</strong><br />

Alexis<br />

Kossenko<br />

Com o seu grupo Arte <strong>de</strong>i<br />

Suonatori e como convidado<br />

da Holland Baroque Society,<br />

o flautista reafirma a sua<br />

versatilida<strong>de</strong> artística.<br />

Cristina Fernan<strong>de</strong>s<br />

Carl Philipp<br />

Emanuel Bach<br />

Concerti a flauto<br />

traverso obligato<br />

– II<br />

Arte <strong>de</strong>i Suonatori<br />

Alexis Kossenko<br />

(flauta traverso e<br />

direcção)<br />

Alpha 146<br />

mmmmn<br />

Holland<br />

Baroque Society<br />

meets Alexis<br />

Kossenko<br />

Telemann<br />

– Ouverture e<br />

Concerti<br />

Channel Classics<br />

CCS SA 28409<br />

mmmmn<br />

Aos 33 anos, Alexis Kossenko é um<br />

dos mais importantes flautistas do<br />

panorama internacional.<br />

Instrumentista versátil, domina a<br />

flauta em todas as suas formas<br />

históricas — da mo<strong>de</strong>rna flauta<br />

transversal aos mo<strong>de</strong>los barrocos e<br />

renascentistas, passando pela flauta<br />

<strong>de</strong> bisel — e tem-se distinguido como<br />

maestro e musicólogo. O primeiro CD<br />

com Concertos para Flauta <strong>de</strong> Carl<br />

Philipp Emanuel Bach (1714-1788) que<br />

gravou para a Alpha com o seu<br />

grupo Arte <strong>de</strong>i Suonatori obteve<br />

um merecido sucesso,<br />

repetindo-se neste segundo<br />

volume a qualida<strong>de</strong> técnica<br />

e a inspiração artística.<br />

Desta vez foram<br />

registados os Concertos<br />

em Lá menor (Wq. 166), Ré<br />

Maior (Wq. 13) e Lá Maior<br />

(Wq. 168). Este último é mais<br />

conhecido na sua versão para<br />

violoncelo,<br />

principalmente <strong>de</strong>vido<br />

ao genial “Largo con<br />

sordini”. Se esta página resulta muito<br />

bem com a sonorida<strong>de</strong> melancólica<br />

do violoncelo, Kossenko consegue<br />

recriar na flauta essa ambiência <strong>de</strong><br />

profunda tristeza, na qual o<br />

instrumento parece suspirar <strong>de</strong><br />

forma pungente. A música <strong>de</strong> C.P.E.<br />

Bach é <strong>de</strong> <strong>uma</strong> gran<strong>de</strong> originalida<strong>de</strong>,<br />

oscilando entre a elegância do estilo<br />

galante e as emoções carregadas e<br />

audácias da Empfindsamkeit (estilo<br />

da sensibilida<strong>de</strong>). O grupo Arte <strong>de</strong>i<br />

Suonatori realça com niti<strong>de</strong>z as suas<br />

cores, planos sonoros, harmonias e<br />

texturas inesperadas e Alexis<br />

Kossenko dá-nos <strong>uma</strong> lição <strong>de</strong><br />

subtileza, mas também <strong>de</strong><br />

virtuosismo, bem patente logo <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

o início no empolgante “Allegro<br />

assai” do Concerto em Lá menor.<br />

Igualmente bem sucedida é a<br />

colaboração <strong>de</strong> Kossenko com a<br />

Holland Baroque Society num<br />

recente CD da Channel Classics<br />

<strong>de</strong>dicado George Philipp Telemann<br />

(1681-1767), que por acaso era<br />

padrinho <strong>de</strong> C.P.E. Bach. Nele<br />

brilham também outros solistas<br />

como é o caso <strong>de</strong> Alfredo Bernardini<br />

(oboé), Jane Gower (fagote) ou Judith<br />

Olofsson (violoncelo) num<br />

interessante programa composto<br />

pela Ouverture em Mi menor<br />

(abertura seguida <strong>de</strong> danças em estilo<br />

francês) e por quatro Concertos: Ré<br />

Maior para duas flautas traverso,<br />

violino e violoncelo; Fá Maior, para<br />

flauta <strong>de</strong> bisel e fagote; Si bemol<br />

Maior para duas flautas traverso,<br />

oboé e violino; e Sol maior, para duas<br />

flautas traverso e fagote. A varieda<strong>de</strong><br />

tímbrica dos concertinos permite<br />

soluções musicais sempre diversas,<br />

que testemunham a fecunda<br />

imaginação <strong>de</strong> Telemann, e é objecto<br />

<strong>de</strong> um equilibrado diálogo entre<br />

todos os instrumentistas, pautado<br />

pelo rigor técnico e estilístico.<br />

Jazz<br />

Happy Billie<br />

Homenagem exuberante<br />

a Billie Holiday por Dee<br />

Dee Bridgewater, num<br />

registo que se afasta da<br />

espiritualida<strong>de</strong> sofrida da<br />

cantora. Rodrigo Amado<br />

Dee Dee Bridgewater<br />

Eleanora Fagan<br />

Emarcy, dist. Universal<br />

mmmmn<br />

Aviso inicial:<br />

quem procurar a<br />

espiritualida<strong>de</strong>,<br />

profundida<strong>de</strong> e<br />

sofrimento da<br />

música <strong>de</strong> Billie<br />

Holiday po<strong>de</strong><br />

aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />

Alexis Kossenko é um dos mais importantes<br />

fl autistas da actualida<strong>de</strong><br />

Dee Dee Bridgewater<br />

passar ao lado <strong>de</strong>ste registo. Em<br />

“Eleanora Fagan”, tributo da diva<br />

Dee Dee Bridgewater à genialida<strong>de</strong>,<br />

intensida<strong>de</strong> e coragem <strong>de</strong> Holiday,<br />

entra-se num universo <strong>de</strong> alegria,<br />

on<strong>de</strong> os versos são cantados com<br />

<strong>uma</strong> exuberância vocal que constitui<br />

o oposto à postura da homenageada.<br />

Nem mesmo na versão lenta <strong>de</strong><br />

“Strange Fruit”, <strong>uma</strong> das mais<br />

dramáticas canções <strong>de</strong> Holiday,<br />

Bridgewater consegue disfarçar <strong>uma</strong><br />

irreprimível alegria <strong>de</strong> viver que<br />

marca toda a sua música. Esta<br />

enorme contradição não evita, no<br />

entanto, que “Eleanora Fagan” seja<br />

um excelente álbum <strong>de</strong> jazz vocal.<br />

N<strong>uma</strong> gravação surpreen<strong>de</strong>ntemente<br />

menos produzida (no bom sentido)<br />

do que anteriores registos seus,<br />

Bridgewater ro<strong>de</strong>ia-se <strong>de</strong> um grupo<br />

notável – Edsel Gomez no piano<br />

(também responsável pelos arranjos),<br />

James Carter no saxofone e clarinete,<br />

Christian McBri<strong>de</strong> no contrabaixo e<br />

Lewis Nash na bateria – que,<br />

influenciados pelo fogo da cantora,<br />

fazem a festa, tocando também eles<br />

com <strong>uma</strong> exuberância rítmica e<br />

harmónica pouco habitual. O mote é<br />

dado na abertura do álbum, com<br />

“Lady sings the blues”, interpretada<br />

em andamento rápido, saltitante e<br />

impregnado <strong>de</strong> cores rhythm & blues.<br />

James Carter mostra <strong>de</strong> imediato que<br />

é a escolha certa para acompanhar<br />

Bridgewater nesta incursão porque<br />

ele é também pouco dado a tristezas<br />

ou gran<strong>de</strong>s subtilezas. Ao longo <strong>de</strong><br />

todo o disco, o swing é hard e os<br />

improvisos marcados pelo excesso e<br />

por <strong>uma</strong> enorme alegria musical,<br />

com <strong>de</strong>staque para a excelência<br />

instrumental <strong>de</strong> McBri<strong>de</strong>. Nos temas,<br />

todos eles clássicos do songbook <strong>de</strong><br />

Holiday, <strong>de</strong>staque para “Good<br />

morning heartache”, com um<br />

belíssimo solo <strong>de</strong> clarinete baixo,<br />

“Miss Brown to you”, drive rítmico<br />

imparável comandado pela bateria<br />

<strong>de</strong> Nash, e “Mother’s son-in-law”,<br />

dueto vibrante <strong>de</strong> voz e contrabaixo.<br />

Um registo on<strong>de</strong> Bridgewater faz<br />

recordar a gran<strong>de</strong> Ella<br />

Fitzgerald, mais do que<br />

Eleanora Fagan...também<br />

conhecida por Billie<br />

Holiday.<br />

Sem pressas<br />

A apresentação <strong>de</strong> um novo<br />

valor do saxofone.<br />

Nuno Catarino<br />

Gonçalo Prazeres<br />

Depois <strong>de</strong> Alg<strong>uma</strong> Coisa”<br />

Ed. Autor<br />

mmmnn<br />

Um disco <strong>de</strong>stes é<br />

sempre <strong>uma</strong> boa<br />

notícia para o<br />

panorama jazz<br />

nacional. Para<br />

muitos - a quem o<br />

nome <strong>de</strong> Gonçalo Prazeres seja ainda<br />

<strong>de</strong>sconhecido - <strong>de</strong>svenda um<br />

saxofonista <strong>de</strong> alto nível, músico <strong>de</strong><br />

boas i<strong>de</strong>ias, que sabe impor a sua<br />

personalida<strong>de</strong>, que dá importância à<br />

composição (todos os temas são<br />

originais). Prazeres conta aqui com o<br />

importante apoio <strong>de</strong> um grupo bem<br />

seleccionado: na guitarra está Nuno<br />

Costa, sóbrio mas preciso (que<br />

também lançou um óptimo disco <strong>de</strong><br />

estreia); no contrabaixo está o<br />

polivalente argentino-quaseportuguês<br />

Demian Cabaud; e na<br />

bateria fica Luís Can<strong>de</strong>ias, seguro<br />

ritmicamente. A presença do lusocanadiano<br />

Jeffery Davis acrescenta,<br />

com o seu vibrafone, alg<strong>uma</strong> cor ao<br />

som base do quarteto - confirme-se o<br />

tema “Exactissimamente”. As<br />

composições originais, vinculadas à<br />

tradição, nem sempre estão ao<br />

mesmo nível, mas funcionam como<br />

veículo para a expansivida<strong>de</strong> dos<br />

músicos, nomeadamente do sax alto<br />

<strong>de</strong> Prazeres, que exibe o seu fraseado<br />

sólido e vai procurando soluções,<br />

com resultados variáveis. A faixa que<br />

encerra o disco, a melancólica<br />

“Pouca Coisa”, <strong>de</strong>safia o ouvinte<br />

através do seu tempo lento: esta<br />

música é para ser<br />

consumida sem<br />

pressas.<br />

Gonçalo Prazeres: <strong>uma</strong><br />

boa notícia para o jazz<br />

PAULO PIMENTA/ PÚBLICO


Concertos<br />

Júlio Resen<strong>de</strong> International Quartet<br />

Jazz<br />

Festa!<br />

Na sua oitava edição, a Festa<br />

do Jazz homenageia o Hot<br />

Clube e afi rma-se, <strong>de</strong> novo,<br />

como o gran<strong>de</strong> balanço<br />

anual do jazz nacional.<br />

Rodrigo Amado<br />

Festa do Jazz<br />

<strong>Lisboa</strong>. Teatro <strong>Municipal</strong> <strong>de</strong> São Luiz. R. Antº Maria<br />

Cardoso, 38-58. Hoje, das 19h às 2h; amanhã e<br />

Dom., das 16h às 2h. Tel.: 213257650. 15€ a 30€.<br />

Com direcção artística <strong>de</strong> Carlos<br />

Martins, produção executiva <strong>de</strong> Luís<br />

Hilário e a energia criadora <strong>de</strong> Jorge<br />

Salavisa, a Festa do Jazz do São Luiz<br />

reafirma a ambiciosa vocação <strong>de</strong><br />

constituir o gran<strong>de</strong> balanço anual do<br />

jazz nacional, algo que tem<br />

conquistado por mérito próprio ao<br />

longo <strong>de</strong> sete festivas edições. O<br />

cenário é sempre o mesmo: casa<br />

cheia no São Luiz com um público<br />

formado por espectadores habituais,<br />

curiosos, alunos e a quase totalida<strong>de</strong><br />

dos jazzmen (e jazzgirls) nacionais;<br />

ambiente informal <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> alegria<br />

que parece contagiar tudo e todos;<br />

<strong>uma</strong> sucessão estonteante <strong>de</strong><br />

concertos a acontecer em diversos<br />

espaços, muitos <strong>de</strong>les memoráveis.<br />

Este ano, a festa começa com um<br />

espectáculo <strong>de</strong> homenagem ao Hot<br />

Clube - recordando o seu<br />

encerramento no final do ano<br />

passado, <strong>de</strong>vido a um incêndio – em<br />

que participam nomes tão diversos<br />

como Bernardo Sassetti, Camané,<br />

João Paulo, José Duarte, São José<br />

Lapa, Inês Laginha, Paulo Curado,<br />

João Lucas, Tiago Bettencourt e Vera<br />

Mantero, entre muitos outros. N<strong>uma</strong><br />

programação em que o gran<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>staque vai para a cerimónia <strong>de</strong><br />

apresentação dos combos das<br />

escolas jazz j <strong>de</strong> todo o país, p evento<br />

que constitui a alma da<br />

festa, têm ainda<br />

lugar concertos do<br />

Septeto do Hot<br />

Clube Clube <strong>de</strong><br />

Portugal, Portugal, da<br />

Saxofínia<br />

(ensemble <strong>de</strong><br />

saxofones) saxofones)<br />

com a Banda<br />

da Armada, do<br />

Bernardo<br />

Sassetti Trio, do<br />

Júlio Resen<strong>de</strong><br />

International<br />

Quartet, dos<br />

Tetterapa<strong>de</strong>qu, <strong>de</strong><br />

Carlos Bica &<br />

Matéria Prima, da<br />

Orquestra Jazz<br />

<strong>de</strong> Lagos<br />

e <strong>de</strong> um quarteto formado por<br />

André Fernan<strong>de</strong>s, Peter Ren<strong>de</strong>, Matt<br />

Pavolka e Jorge Rossy, entre muitos<br />

outros projectos, incluindo os<br />

“internacionais” Demian Cabaud e<br />

Bill McHenry. Uma programação<br />

alargada e variada cuja única<br />

limitação é <strong>uma</strong> fraca integração <strong>de</strong><br />

projectos ligados às áreas mais<br />

experimentais do jazz, componente<br />

essencial a <strong>uma</strong> completa e<br />

equilibrada visão do panorama jazz<br />

nacional.<br />

Pop<br />

Guitarra sem<br />

mapa<br />

O ex-guitarrista dos Harry<br />

Pussy entregou-se à guitarra<br />

acústica e fez um disco<br />

único. Apresenta-o hoje<br />

e amanhã, no Porto e em<br />

<strong>Lisboa</strong>. Pedro Rios<br />

Bill Orcutt<br />

Porto. Culturgest. Avenida dos Aliados, 104 - Edifício<br />

da CGD. Hoje, às 22h. Tel.: 222098116. 5€.<br />

<strong>Lisboa</strong>. MNAC - Museu do Chiado. Rua Serpa Pinto,<br />

4. Amanhã, às 22h. Tel.: 213432148. 7€.<br />

Aterrou em 2009 como um cometa:<br />

“A New Way To Pay Old Debts”,<br />

disco do norte-americano Bill<br />

Orcutt, não furou além dos círculos<br />

mais marginais, mas merecia outra<br />

sorte. Talvez não seja, porém, esse o<br />

seu <strong>de</strong>stino - é difícil, rugoso, feroz,<br />

características que não associamos<br />

imediatamente à guitarra acústica.<br />

Não andaremos longe da verda<strong>de</strong> se<br />

dissermos que há muito tempo que<br />

o instrumento não conhecia um<br />

disco assim. E não estamos sozinhos<br />

nesse elogio.<br />

Orcutt, que actua hoje e amanhã<br />

no Porto e em <strong>Lisboa</strong>,<br />

respectivamente, não é um novato.<br />

Andou nos Harry Pussy, banda<br />

fundamental do noise rock dos anos<br />

90, inspiração <strong>de</strong> meio<br />

“un<strong>de</strong>rground” norte-americano<br />

actual, dos Magik Markers a Chris<br />

Corsano. Depois <strong>de</strong> <strong>uma</strong> década écada <strong>de</strong><br />

silêncio, eis o seu primeiro o disco a<br />

solo. É um álbum sem gaveta eta na<br />

história da guitarra: po<strong>de</strong>m-se m-se<br />

referir a abordagem abstracta acta<br />

e intuitiva <strong>de</strong> Derek Bailey, , as<br />

“ragas” <strong>de</strong> John Fahey e,<br />

claro, os Harry Pussy<br />

<strong>de</strong>scarnados <strong>de</strong><br />

electricida<strong>de</strong>, mas são<br />

meras referências n<strong>uma</strong><br />

música sem mapa, nem<br />

escola.<br />

Gravado num quarto<br />

<strong>de</strong> um apartamento com<br />

meios primitivos (há<br />

autocarros e barulhos da<br />

rua a irromperem pelas<br />

peças), o álbum revela<br />

Bill Orcutt: é difícil, rugoso,<br />

feroz, características que não<br />

associamos à guitarra acústica<br />

um guitarrista totalmente<br />

expressivo, mesmo violento na sua<br />

relação com o instrumento, <strong>uma</strong><br />

velha guitarra que comprou em<br />

miúdo ligada a um amplificador<br />

encontrado na rua na década <strong>de</strong> 80.<br />

À guitarra, Orcutt retirou duas das<br />

seis cordas – técnica que já aplica<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1985 -, obtendo um som cru,<br />

sem adornos. “Se a música que estou<br />

a tocar soa <strong>de</strong> forma intensa, não é<br />

porque esteja a tentar tocar<br />

‘hardcore’”, disse ao “site” Foxy<br />

Digitalis. “É porque é isso que está<br />

<strong>de</strong>ntro da minha cabeça”.<br />

Nas margens com<br />

os Times New Viking<br />

Crystal Antlers + Times New<br />

Viking<br />

Porto. Plano B. R. Cândido dos Reis, 30. 3ª, 20, às<br />

22h. Tel.: 222012500. 10€ a 12€.<br />

Times New Viking + Lee Ranaldo<br />

& Rafael Toral<br />

<strong>Lisboa</strong>. Galeria Zé dos Bois. Rua da Barroca, 59 -<br />

Bairro Alto. 4ª, 21, às 22h. Tel.: 213430205. 10€.<br />

Os americanos Times New Viking<br />

são românticos no sentido em que<br />

acreditam que percorrer o mundo a<br />

tocar rock’n’roll em pequenas salas<br />

po<strong>de</strong> transformar o que quer que<br />

seja. A sua música reflecte esse<br />

romantismo: por baixo da carapaça<br />

<strong>de</strong> ruído agreste<br />

existem das<br />

melhores<br />

canções que<br />

ouvimos nos<br />

últimos<br />

anos.<br />

Times New Viking: são românticos, acreditam que<br />

percorrer o mundo a tocar rock’n’roll em pequenas<br />

salas po<strong>de</strong> transformar o que quer que seja<br />

“Born Again Revisited”, o álbum<br />

que apresentam no Porto (Plano B,<br />

terça) e em <strong>Lisboa</strong> (Galeria Zé dos<br />

Bois, quarta), foi o momento em que<br />

equilibraram <strong>de</strong>finitivamente a<br />

inteligibilida<strong>de</strong> com o apreço pela<br />

estética “lo-fi”. Definem-se como<br />

“artistas posando como músicos” e a<br />

sua linguagem está agora<br />

plenamente <strong>de</strong>finida. As teclas como<br />

zumbido contínuo (óptima<br />

assombração), as guitarras, coladas<br />

à bateria na mistura, funcionando<br />

como arma rítmica, e as vozes <strong>de</strong><br />

Jared Phillips, Beth Murphy e Adam<br />

Elliott reunidas para oferecer algo <strong>de</strong><br />

harmonioso à ferocida<strong>de</strong> da música.<br />

Habitualmente alinhados na vaga<br />

“lo fi” que, via No Age ou Wavves,<br />

vem alastrando nos EUA, os Times<br />

New Viking não <strong>de</strong>vem ficar “reféns”<br />

<strong>de</strong>sse cenário. A sua música<br />

transborda. São únicos e têm<br />

canções como “No time no hope” ou<br />

“Move to California” para o provar.<br />

Caminham pelas margens que<br />

interessam e os concertos serão <strong>uma</strong><br />

oportunida<strong>de</strong> única para<br />

experimentar o que <strong>de</strong> mais fértil e<br />

vibrante existe actualmente no<br />

rock’n’roll.<br />

A acompanhá-los estarão, no<br />

Porto, os também americanos<br />

Crystal Antlers, visão século XXI <strong>de</strong><br />

um “prog-rock” que correu bem, e,<br />

em <strong>Lisboa</strong>, Lee Ranaldo, guitarrista<br />

dos Sonic Youth que aproveita a<br />

passagem da sua banda por Portugal<br />

para actuar na Zé dos Bois em duo<br />

com o velho conhecido Rafael Toral.<br />

Mário Lopes<br />

The Horrors à flor<br />

da pele<br />

Crystal Castles + The Horrors<br />

<strong>Lisboa</strong>. Coliseu dos Recreios. R. Portas St. Antão, 96.<br />

Amanhã, às 21h. Tel.: 213240580. 25€.<br />

Ao princípio, os The Horrors eram<br />

<strong>uma</strong> daquelas bandas rock<br />

caracteristicamente britânicas,<br />

juvenis, empertigadas, algo<br />

irritantes. Depois, a pouco e pouco,<br />

foi-se percebendo que nem tudo era<br />

afectação, também existia<br />

substância. O segundo álbum,<br />

“Primary Colours“, Colours editado no ano<br />

passado, cons constituiu a prova<br />

<strong>de</strong>finitiva. HHoje,<br />

ao lado dos<br />

These New<br />

Puritans, Wild<br />

Beasts ou TThe<br />

xx, constituem<br />

a certeza <strong>de</strong><br />

que o rock não<br />

ortodoxo ortodo feito em<br />

Inglaterra Ingl possui<br />

grupos gr que vale a<br />

pena p seguir com<br />

atenção. Quem os<br />

viu ao vivo, no ano<br />

passado, em<br />

Pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Coura,<br />

pô<strong>de</strong> p verificá-lo<br />

n<strong>uma</strong> nu prestação<br />

excelente, excelen apesar <strong>de</strong> a<br />

maior parte p do público<br />

não os conhecer. Como<br />

as outras outr bandas


Concertos<br />

britânicas citadas, não ilu<strong>de</strong>m as<br />

suas referências – pós-punk, rock<br />

alemão dos anos 70 ou electrónicas<br />

– mas transcen<strong>de</strong>m-nas n<strong>uma</strong><br />

música simultaneamente nebulosa e<br />

celebradora, radora, quase sempre à flor da<br />

pele, impulsionada pela<br />

voz grave rave do<br />

gigante te<br />

Faris<br />

Badwan. wan. Já<br />

os<br />

The Horrors: quase sempre à fl or da pele<br />

Tradução<br />

PAULO EDUARDO CARVALHO<br />

Encenação<br />

NURIA MENCÍA<br />

Interpretação<br />

ALMENO GONÇALVES,<br />

ELISA LISBOA,<br />

JOSÉ MATA,<br />

NATÁLIA LUÍZA<br />

58 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />

Digressão<br />

canadianos Crystal Castles, que<br />

dividirão o protagonismo da noite<br />

com os ingleses, alimentam-se <strong>de</strong><br />

ritmos electrónicos, ruídos, vozes<br />

que parecem isentas <strong>de</strong> vida e<br />

alg<strong>uma</strong>s a gu as noções oções <strong>de</strong> canção ca ção clássica cássca que não recusam linhas<br />

experimentais. Promete.<br />

Vítor Belanciano<br />

Os Blasted<br />

Mechanism vão<br />

actuar no Festival val<br />

Glastonbury.<br />

A subida a um<br />

dos palcos mais<br />

conceituados do o<br />

mundo está marcada para<br />

27 <strong>de</strong> Junho, a noite que<br />

Clássica<br />

Ton<br />

Koopman, o<br />

“bachiano”<br />

compulsivo<br />

O maestro e cravista<br />

holandês e a Orquestra<br />

Barroca <strong>de</strong> Amesterdão<br />

interpretam na Gulbenkian<br />

alg<strong>uma</strong>s das mais<br />

fascinantes obras <strong>de</strong> Bach.<br />

Cristina Fernan<strong>de</strong>s<br />

The Amsterdam Baroque<br />

Orchestra<br />

Direcção Musical <strong>de</strong> Ton Koopman.<br />

Com Tini Mathot (cravo).<br />

<strong>Lisboa</strong>. Fundação e Museu Calouste Gulbenkian -<br />

Gran<strong>de</strong> Auditório. Avenida <strong>de</strong> Berna, 45A. Dom., 18,<br />

às 19h. Tel.: 217823700. 20€ a 40€.<br />

Ciclo <strong>de</strong> Música Antiga. Obras <strong>de</strong><br />

Bach.<br />

A “Oferenda Musical”, genial<br />

colectânea <strong>de</strong> peças criada por J. S.<br />

Bach a partir <strong>de</strong> um tema musical<br />

fornecido por Fre<strong>de</strong>rico II da Prússia,<br />

e o exuberante Concerto para Dois<br />

Cravos, em Dó Maior, BWV 1061,<br />

preenchem o aliciante programa que<br />

Ton Koopman e a Orquestra Barroca<br />

<strong>de</strong> Amesterdão apresentam domingo,<br />

às 19h, na Gulbenkian.<br />

Consi<strong>de</strong>rado um<br />

dos maiores<br />

Ton Koopman: um dos<br />

maiores expecialistas no<br />

reportório barroco<br />

en encerra<br />

o evento<br />

britânico. Ainda por<br />

terras <strong>de</strong> Sua Majesta<strong>de</strong>, a<br />

banda <strong>de</strong> Valdjiu também<br />

especialistas no âmbito do repertório<br />

barroco, Ton Koopman tem-se<br />

<strong>de</strong>dicado a explorar a obra <strong>de</strong> Bach<br />

<strong>de</strong> <strong>uma</strong> forma quase complulsiva,<br />

quer na sua activida<strong>de</strong> como cravista<br />

e organista, quer como maestro e<br />

musicólogo. Para além <strong>de</strong> ter gravado<br />

<strong>uma</strong> parte significativa das peças<br />

para cravo e da obra <strong>de</strong> câmara do<br />

gran<strong>de</strong> compositor alemão, registou,<br />

por exemplo, as principais peças<br />

orquestrais com a Orquestra Barroca<br />

<strong>de</strong> Amesterdão, a integral da<br />

produção organística e as gran<strong>de</strong>s<br />

obras corais. Entre 1994 e 2004<br />

realizou também o colossal projecto<br />

da gravação integral das cantatas<br />

sacras e profanas, constituindo assim<br />

<strong>uma</strong> excelente alternativa às integrais<br />

<strong>de</strong> Harnoncourt/Leonhardt, Helmut<br />

Rilling, John Eliot Gardiner e Masaaki<br />

Suzuki.<br />

A hipotética reconstrução da<br />

“Paixão segundo São Marcos”, que os<br />

Concertos Em Órbita/Portugal<br />

Telecom <strong>de</strong>ram a conhecer em<br />

Portugal no ano 2000, conta-se entre<br />

outras das suas gran<strong>de</strong>s aventuras<br />

“bachianas”. Mas se esta gerou<br />

gran<strong>de</strong> controvérsia, pelo menos no<br />

que diz respeito à pertinência da<br />

proposta e ao resultado final, no<br />

domínio do d mínio estritamente interpretativo<br />

a acção <strong>de</strong> Koopman é bem mais<br />

consensual. À parte ligeiras<br />

oscilações <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> que<br />

po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> um<br />

processo tão ambicioso<br />

tem t presença<br />

assegurada<br />

no festival <strong>de</strong><br />

Beather<strong>de</strong>r Be<br />

(a 2 <strong>de</strong><br />

Julho), Julho) <strong>de</strong> on<strong>de</strong> segue<br />

para a República Checa,<br />

on<strong>de</strong> aactuará<br />

no Rock for<br />

People, em Praga (4 <strong>de</strong><br />

Julho).<br />

O Quarteto Keller no Ciclo <strong>de</strong> Música <strong>de</strong> Câmara da Gulbenkian<br />

quanto intensivo <strong>de</strong> gravações,<br />

Koopman é indiscutivelmente um<br />

dos gran<strong>de</strong>s intérpretes do nosso<br />

tempo num repertório que se<br />

esten<strong>de</strong> dos alvores do barroco até<br />

Mozart, (apoiado num sólido estudo<br />

científico das fontes históricas) e <strong>uma</strong><br />

das mais eloquentes “vozes” da<br />

música <strong>de</strong> Bach.<br />

Húngaros e<br />

companhia pelo<br />

Quarteto Keller<br />

Quarteto Keller<br />

Com Dénés Várjon (piano), Szabolcs<br />

Zempleni (trompa).<br />

<strong>Lisboa</strong>. Fundação e Museu Calouste Gulbenkian -<br />

Auditório 2. Avenida <strong>de</strong> Berna, 45A. 3ª, 20, às 19h.<br />

Tel.: 217823700. 10€ a 20€.<br />

Ciclo <strong>de</strong> Música <strong>de</strong> Câmara. Obras<br />

<strong>de</strong> Ligeti, Bartók, Beethoven.<br />

O Quarteto Keller, o pianista Dénés<br />

Várjon e o trompista Szabolcs<br />

Zempleni protagonizam na próxima<br />

terça-feira, às 19h, um dos programas<br />

mais interessantes e coerentes do<br />

Ciclo <strong>de</strong> Música <strong>de</strong> Câmara da<br />

Gulbenkian, quer pela selecção <strong>de</strong><br />

compositores e obras interpretadas,<br />

quer pelo facto <strong>de</strong> não se cingir a<br />

composições <strong>de</strong>stinadas a <strong>uma</strong><br />

formação instrumental única. A<br />

música <strong>de</strong> György Ligeti domina o<br />

alinhamento proposto através <strong>de</strong><br />

diversas combinações tímbricas,<br />

incluindo os Quartetos <strong>de</strong> Cordas nº 1<br />

e nº2, a “Música Ricercata”, o Estudo<br />

para Piano nº4 (“Fanfares”) e o Trio<br />

para Violino, Trompa e Piano, que o<br />

compositor húngaro compôs como<br />

um tributo a Brahms, autor <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />

peça com a mesma instrumentação.<br />

Com a excepção da Gran<strong>de</strong> Fuga para<br />

Quarteto <strong>de</strong> Cordas op. 133, <strong>de</strong><br />

Beethoven, o programa centra-se nos<br />

compositores húngaros e romenos,<br />

contemplando também os 44 Duos<br />

para dois violinos Sz. 98, <strong>de</strong> Bela<br />

Bartók, e a Sonata para Violino e<br />

Piano op. 25 (“Dans le caractère<br />

populaire ro<strong>uma</strong>in”), <strong>de</strong> Georges<br />

Enesco. Efectivamente, este tem sido<br />

um repertório <strong>de</strong> eleição no percurso<br />

artístico do Quarteto Keller, fundado<br />

em 1987 no Conservatório <strong>de</strong> Música<br />

Franz Liszt, em Budapeste, e<br />

actualmente <strong>de</strong>tentor <strong>de</strong> um elevado<br />

estatuto no panorama musical<br />

internacional. C.F.


agenda<br />

sexta 16<br />

Mika + Virgem Suta<br />

<strong>Lisboa</strong>. Praça <strong>de</strong> Touros do Campo Pequeno.<br />

Campo Pequeno, às 22h. Tel.: 217820575. 30€ a 35€.<br />

David Fonseca<br />

Porto. Coliseu do Porto. R. Passos Manuel, 137, às<br />

21h30. Tel.: 223394947. 23€ a 27€.<br />

Sensational + Spectre + Black<br />

Chameleon<br />

<strong>Lisboa</strong>. Galeria Zé dos Bois. Rua da Barroca, 59 -<br />

Bairro Alto, às 23h. Tel.: 213430205. 8€.<br />

B Fachada + Carminho + Pedro<br />

Abrunhosa + Tiago Santos<br />

<strong>Lisboa</strong>. MusicBox. R. Nova do Carvalho, 24 - Cais do<br />

Sodré, às 23h. Tel.: 213430107. 10€.<br />

Mário Laginha e Orquestra<br />

Gulbenkian<br />

Direcção Musical <strong>de</strong> Cesário Costa.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Fundação e Museu Calouste Gulbenkian<br />

- Gran<strong>de</strong> Auditório. Avenida <strong>de</strong> Berna, 45A, às 11h e<br />

19h. Tel.: 217823700. 6€.<br />

James Hillard & Luke Howard +<br />

Mark Seven + Leonaldo <strong>de</strong><br />

Almeida + Mário Valente<br />

<strong>Lisboa</strong>. Lux Frágil. Av. Infante D. Henrique,<br />

Armazém A, às 23h00. Tel.: 218820890. Consumo<br />

mínimo.<br />

Foge Foge Bandido<br />

Torres Vedras. Teatro-Cine. Av. Tenente Valadim,<br />

19, às 21h30. Tel.: 261338131. 5€.<br />

Manel Cruz, o ex-Ornatos Violeta<br />

dotado <strong>de</strong> <strong>uma</strong> veia lírica ímpar,<br />

lançou-se a solo. Foge Foge Bandido<br />

é o nome do projecto com que se<br />

apresenta.<br />

Alasdair Roberts<br />

Guimarães. Centro Cultural Vila Flor. Avenida D.<br />

Afonso Henriques, 701, às 00h00.<br />

Tel.: 253424700. 4€.<br />

Terre Thaemlitz<br />

Porto. Museu <strong>de</strong> Serralves. Rua Dom João <strong>de</strong> Castro,<br />

210, às 22h00. Tel.: 226156500. 7,5€ (sujeito a<br />

<strong>de</strong>sconto). No auditório.<br />

Concerto-conferência “Rosary<br />

Novena for Gen<strong>de</strong>r Transitioning”.<br />

Ciclo Documente-se! 2010.<br />

Espectáculo em inglês.<br />

Terre Thaemlitz, ex-DJ <strong>de</strong> clubes<br />

transexuais nova-iorquinos, regressa<br />

a Portugal para <strong>uma</strong> série <strong>de</strong><br />

actuações: <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> passar pelo<br />

Festival <strong>Lisboa</strong>, Capital, República,<br />

Popular, dia 15 <strong>de</strong> Abril, vai a<br />

Serralves, dias 16 e 18, participar no<br />

ciclo “Documente-se!”.<br />

Carlos Zíngaro + Axel Dörner +<br />

Norbert Möslang<br />

<strong>Lisboa</strong>. Culturgest. Rua Arco do Cego - Edifício da<br />

CGD, às 21h30. Tel.: 217905155. 5€. No Pequeno<br />

Auditório.<br />

Ciclo<br />

Metasonic Metasonic III<br />

- Música<br />

Sonic Youth:<br />

palavras<br />

para quê?<br />

Manuel Paulo & Nancy Vieira<br />

Carnaxi<strong>de</strong>. Auditório <strong>Municipal</strong> Ruy <strong>de</strong> Carvalho.<br />

Centro Cívico <strong>de</strong> Carnaxi<strong>de</strong> - R. 25 <strong>de</strong> Abril, lote 5, às<br />

21h30. Tel.: 214170109. 5€.<br />

Sonorida<strong>de</strong>s 2010. Apresentação <strong>de</strong><br />

“Pássaro Cego”.<br />

Rodrigo Leão & Cinema<br />

Ensemble<br />

Castro Ver<strong>de</strong>. Cine-Teatro <strong>Municipal</strong> <strong>de</strong> Castro<br />

Ver<strong>de</strong>. R. Alexandre Herculano, às 21h30. Tel.:<br />

286328193. 5€.<br />

sábado 17<br />

Joana Amendoeira<br />

Porto. Coliseu do Porto. R. Passos Manuel, 137, às<br />

21h30. Tel.: 223394947. 10€ a 25€ (sujeito a<br />

<strong>de</strong>sconto).<br />

Os Quais + Brigada Victor Jara +<br />

Vitorino + Miguel Quintão<br />

<strong>Lisboa</strong>. MusicBox. R. Nova do Carvalho, 24 - Cais do<br />

Sodré, às 23h00. Tel.: 213430107. 10€.<br />

Martin Grubinger e Orquestra<br />

Nacional do Porto<br />

Porto. Casa da Música. Pç. Mouzinho <strong>de</strong><br />

Albuquerque, às 18h00. Tel.: 220120220. 16€.<br />

Jantar-concerto: 30€. Na Sala Suggia.<br />

Christian Muthspiel Trio<br />

Porto. Casa da Música. Pç. Mouzinho <strong>de</strong><br />

Albuquerque, às 22h00. Tel.: 220120220. 10€.<br />

Jantar-concerto: 22€. Na Sala 2.<br />

Áustria 2010.<br />

The Legendary<br />

Tigerman<br />

Vila Nova <strong>de</strong> Famalicão. Casa das Artes <strong>de</strong> Vila Nova<br />

<strong>de</strong> Famalicão. Pq. <strong>de</strong> Sinçães, às 21h30. Tel.:<br />

252371297. 10€. No Gran<strong>de</strong> Auditório.<br />

Apresentação <strong>de</strong> “Femina”. M/3.<br />

The Weatherman<br />

Vila Nova <strong>de</strong> Famalicão. Casa das Artes <strong>de</strong> Vila Nova<br />

<strong>de</strong> Famalicão. Pq. <strong>de</strong> Sinçães, às 23h00. Tel.:<br />

252371297. 5€.<br />

Foge Foge Bandido<br />

Guarda. Teatro <strong>Municipal</strong> da Guarda. Rua Batalha<br />

Reis, 12, às 21h30. Tel.: 271205241. 7,5€. No Gran<strong>de</strong><br />

Auditório.<br />

David Maranha<br />

Leiria. Teatro Miguel Franco (Centro Cultural <strong>de</strong><br />

Leiria). Largo Santana, às 22h00. Tel.: 244860480.<br />

4,5€ (sujeito a <strong>de</strong>sconto).<br />

Rodrigo Leão & Cinema<br />

Ensemble<br />

Guimarães. Centro Cultural Vila Flor. Avenida D.<br />

Afonso Henriques, 701, às 22h00. Tel.: 253424700.<br />

20€ (sujeito a <strong>de</strong>sconto).<br />

José Mário Branco<br />

Santarém. Teatro <strong>Municipal</strong> Sá da Ban<strong>de</strong>ira. R. João<br />

Afonso, 7/9, às 21h30. Tel.: 243309460. 5€.<br />

Sérgio Godinho<br />

Póvoa <strong>de</strong> Varzim. Casino da Póvoa. Ed. do Casino,<br />

às 20h30. Tel.: 252690888. 50€ (jantar-buffet +<br />

espectáculo).<br />

Divino So Sospiro<br />

Olhão. Auditório Auditór <strong>Municipal</strong> <strong>de</strong> Olhão. Av. Dr.<br />

Francisco Sá CCarneiro,<br />

lote B3 r/c, às 21h30. Tel.:<br />

289710170. 10€ a 12€.<br />

Luigi Arc Archetti<br />

+ Bo Wiget Wige<br />

<strong>Lisboa</strong>. Culturg Culturgest. Rua Arco do Cego - Edifício da<br />

CGD, às 21h30. 21h30 Tel.: 217905155. 5€.<br />

domingo d 18<br />

Mika no Campo Pequeno<br />

Jonathan J Ayerst<br />

Porto. P Casa da Música. Pç. Mouzinho<br />

<strong>de</strong> Albuquerque, às 12h00. Tel.:<br />

220120220. Entrada livre.<br />

Alasdair Roberts<br />

<strong>Lisboa</strong>. L Espaço Nimas. Av. 5 Outubro,<br />

42B, 42 às 21h30. Tel.: 213574362. 8€.<br />

António Zambujo<br />

Porto. Casa da Música. Pç. Mouzinho <strong>de</strong><br />

Albuquerque, às 21h30. Tel.: 220120220. 15€. Na<br />

Sala 2. Apresentação <strong>de</strong> “Guia”. Com os convidados<br />

Os Azeitonas.<br />

Terre Thaemlitz<br />

Porto. Museu <strong>de</strong> Serralves. Rua Dom João <strong>de</strong> Castro,<br />

210, às 21h30. Tel.: 226156500. 7,5€ (sujeito a<br />

<strong>de</strong>sconto).<br />

No auditório. Concerto-conferência<br />

“Traffic With The Devil”. Ciclo<br />

Documente-se! 2010. Espectáculo em<br />

inglês.<br />

Terre Thaemlitz, ex-DJ <strong>de</strong> clubes<br />

transexuais nova-iorquinos, regressa<br />

a Portugal para <strong>uma</strong> série <strong>de</strong><br />

actuações: <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> passar pelo<br />

Festival <strong>Lisboa</strong>, Capital, República,<br />

Popular, dia 15 <strong>de</strong> Abril, vai a<br />

Serralves, dias 16 e 18, participar no<br />

ciclo “Documente-se!”.<br />

terça 20<br />

Carmen Souza<br />

<strong>Lisboa</strong>. Museu do Oriente. Av. Brasília - Edifício<br />

Pedro Álvares Cabral - Doca <strong>de</strong> Alcântara Norte, às<br />

21h30. Tel.: 213585200. 15€. No auditório.<br />

Apresentação <strong>de</strong> “Protegid”.<br />

Mouth Of The Architect<br />

<strong>Lisboa</strong>. MusicBox. R. Nova do Carvalho, 24 - Cais do<br />

Sodré, às 22h00 (portas abrem às 21h30). Tel.:<br />

213430107. 12€.<br />

Motion Trio<br />

Com Rodrigo Amado (saxofone),<br />

Miguel Mira (violoncelo), Gabriel<br />

Ferrandini (bateria).<br />

Viseu. Teatro Viriato. Lg. Mouzinho Albuquerque, às<br />

22h00. Tel.: 232480110. 3,5€ (consumo mínimo).<br />

Café-concerto. M/12.<br />

Sonic Youth<br />

<strong>Lisboa</strong>. Coliseu dos Recreios. R. Portas St. Antão, 96,<br />

às 21h00 (portas abrem às 20h). Tel.: 213240580.<br />

26€ a 30€. Camarotes: 130€ a 180€.<br />

Apresentação <strong>de</strong> “The Eternal”. M/6.<br />

Coro e Orquestra Gulbenkian<br />

Com Miriam Gordon-Stuart<br />

(soprano), Ana Maria Pinto<br />

(soprano), Toby Spence (tenor),<br />

Hugo Oliveira (barítono). Maestro:<br />

Fernando Eldoro.<br />

<strong>Lisboa</strong>. Fundação e Museu Calouste Gulbenkian.<br />

Avenida <strong>de</strong> Berna, 45A. 5ª às 21h00, 6ª às 19h00.<br />

Tel.: 217823700. 15€ a 30€. No Gran<strong>de</strong> Auditório.<br />

Obras <strong>de</strong> Britten e Men<strong>de</strong>lssohn-<br />

Bartholdy.<br />

Trio<br />

Com Stefania Donzelli (soprano),<br />

Edoardo De Angelis (violino), Anna<br />

Barbero Beerwald (piano).<br />

Porto. Ateneu Comercial do Porto. R. Passos<br />

Manuel, 44, às 19h00. Tel.: 222005007. Entrada<br />

livre.<br />

Homenagem<br />

a Giovanni<br />

Battista<br />

Pergolesi.<br />

Legendary<br />

Tigerman em<br />

Famalicão<br />

Fumiyo Ikeda &<br />

Tim Etchells<br />

in pieces<br />

19 a 21 Abril 21h30 M/12<br />

apresentações no âmbito da re<strong>de</strong> co-financiado por<br />

www.teatromariamatos.pt<br />

dança<br />

música<br />

Felix Kubin +<br />

Pia Burnette<br />

& Felix Kubin<br />

24 Abril 22h00 M/6<br />

menores<br />

30 anos<br />

5€<br />

Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 59


Cinema<br />

série ípsilon II<br />

Sexta-feira,<br />

dia 23 <strong>de</strong> Abril,<br />

o DVD “Europa”,<br />

<strong>de</strong> Lars Von Trier<br />

Todas as sextas,<br />

por €1,95.<br />

20<br />

anos<br />

60 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />

“Thirst”: exuberante sangria esta para personagens assombradas<br />

por <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> vingança e encontrando a re<strong>de</strong>nção em lagos<br />

<strong>de</strong> sacrifício<br />

Estreiam<br />

Cenas da<br />

vida conjugal<br />

dos vampiros<br />

Um “épico intimista” (e<br />

erótico) que seguimos <strong>de</strong><br />

forma aci<strong>de</strong>ntada - como<br />

sempre com Park Chanwook.<br />

Vasco Câmara<br />

Thirst - Este é o meu sangue...<br />

Thirst/Bakjwi<br />

De Park Chan-wook,<br />

com Song Kang-ho, Kim Ok-vin. M/16<br />

MMMnn<br />

<strong>Lisboa</strong>: CinemaCity Campo Pequeno Praça <strong>de</strong><br />

Touros: Sala 7: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª<br />

13h55, 16h30, 19h, 21h50, 00h20; Me<strong>de</strong>ia<br />

Monumental: Sala 2: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª<br />

3ª 4ª 13h30, 16h05, 18h40, 21h30, 24h; UCI<br />

Cinemas - El Corte Inglés: Sala 1: 5ª 6ª Sábado 2ª<br />

3ª 4ª 15h, 18h, 21h30, 00h15 Domingo 11h30, 15h,<br />

18h, 21h30, 00h15;<br />

Porto: Arrábida 20: Sala 7: 5ª 6ª Sábado Domingo<br />

2ª 3ª 4ª 15h05, 18h10, 21h25, 00h30;<br />

Exuberante sangria, esta, para as<br />

personagens, assombradas por<br />

<strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> vingança e encontrando a<br />

re<strong>de</strong>nção em lagos <strong>de</strong> sacrifício, do<br />

coreano Park Chan-wook. Chama-se,<br />

aliás, o filme “Thirst: este é o meu<br />

sangue”. Junta a vibração mais<br />

iconoclasta e masculina <strong>de</strong> “Old<br />

Boy” (2003) e a se<strong>de</strong> <strong>de</strong> romanesco<br />

que encontramos num filme, mais<br />

feminino, se quisermos: o<br />

melodrama “Lady Vengeance”<br />

(2005).<br />

Mostra um padre em missão<br />

científica e h<strong>uma</strong>nitária em África,<br />

para testar <strong>uma</strong> nova vacina contra<br />

um vírus mortal. É infectado e...<br />

mutação... vampiro.<br />

Aquele que queria salvar os<br />

homens vê-se então obrigado a<br />

atirar-se ao pescoço <strong>de</strong>les - e <strong>de</strong>la, a<br />

frustrada dona <strong>de</strong> casa que vai<br />

excitar em si um “amour fou”.<br />

O que se passa aqui? Cenas da vida<br />

conjugal <strong>de</strong> um casal <strong>de</strong> vampiros:<br />

ele torturado pelas dúvidas (entre<br />

dois pecados, o <strong>de</strong> matar os homens<br />

e o <strong>de</strong> atentar contra a sua própria<br />

vida - o suicídio é pecado -, o que<br />

fazer?), ela <strong>de</strong>spertando para a<br />

sexualida<strong>de</strong>. Dissemos “Cenas da<br />

Vida Conjugal”? De Ingmar Bergman<br />

<strong>de</strong>vemos passar, então, a Oshima e<br />

ao “Império dos Sentidos” (do filme<br />

<strong>de</strong> vampiros).<br />

O que se passa aqui? Um filme<br />

aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />

intimista e erótico filmado como um<br />

épico. Que seguimos <strong>de</strong> forma<br />

aci<strong>de</strong>ntada, como sempre nos filmes<br />

<strong>de</strong> Park Chan-wook, que são feitos<br />

<strong>de</strong> vários filmes e géneros. Nunca é<br />

seguro que consigamos habitar com<br />

a mesma euforia todos esses<br />

“aci<strong>de</strong>ntes” - balançamos, somos<br />

atirados contra a pare<strong>de</strong>, cansamonos...<br />

Mas a viagem total agarra-nos.<br />

“Thirst: este é o meu sangue” é um<br />

filme que se recompõe, aliás,<br />

quando se olha retrospectivamente<br />

e se sossega: personagens, décores,<br />

guarda-roupa estiveram ali, afinal, a<br />

fazer parte do próprio “corpo” <strong>de</strong>sta<br />

experiência mutante. On<strong>de</strong> tudo se<br />

extinguiu e logo <strong>de</strong> seguida<br />

<strong>de</strong>sabrochou <strong>de</strong> acordo com as<br />

várias vidas e mortes das<br />

personagens...<br />

Retrato do artista<br />

árabe enquanto<br />

zombie<br />

O Tempo que Resta<br />

The Time That Remains<br />

De Elia Suleiman,<br />

com Ali Suliman, Elia Suleiman, Saleh<br />

Bakri.<br />

MMnnn<br />

<strong>Lisboa</strong>: Me<strong>de</strong>ia Monumental: Sala 1: 5ª 6ª Sábado<br />

Domingo 2ª 3ª 4ª 14h15, 16h45, 19h15, 21h45,<br />

00h15<br />

“O Tempo que Resta” tem um<br />

subtítulo, eventualmente mais<br />

luminoso (e menos enigmático): “a<br />

crónica <strong>de</strong> um presente ausente”.<br />

Esse presente (no entanto) ausente,<br />

ou esse ausente (ainda assim)<br />

presente, não é outro que não o<br />

próprio Elia Suleiman. Suleiman<br />

habita esta revisão memorialista e<br />

tragicómica da história <strong>de</strong> Israel (ou<br />

dos árabes <strong>de</strong> Israel, ou dos árabes<br />

em Israel) entre 1948 e a época<br />

contemporânea (o muro <strong>de</strong><br />

protecção, <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira alusão) em<br />

estado <strong>de</strong> “auto-zombificação”,<br />

testemunha atónita e silenciosa –<br />

quando aparece em carne e osso,<br />

para interpretar (no período que<br />

correspon<strong>de</strong> ao seu regresso do<br />

exílio) o papel do Suleiman adulto, a<br />

sua cara <strong>de</strong> palhaço triste (Buster<br />

Keaton, obviamente, é um mo<strong>de</strong>lo)<br />

torna fácil reparar que ele não diz<br />

<strong>uma</strong> única palavra. E <strong>de</strong>pois, tornase<br />

ainda mais fácil lembrar que<br />

mesmo os seus duplos da infância e<br />

da adolescência também não tinham<br />

aberto a boca para falar. Não <strong>de</strong>ixa<br />

<strong>de</strong> ser <strong>uma</strong> questão do filme: falar,<br />

para dizer o quê?<br />

Suleiman – como já tínhamos visto<br />

em “Intervenção Divina”, e talvez<br />

mais claramente no seu segmento<br />

do filme <strong>de</strong> conjunto “A Cada um o<br />

Seu Cinema” – tem <strong>uma</strong> dúvida para<br />

com os clássicos do burlesco,<br />

Keaton, Chaplin, também um pouco<br />

<strong>de</strong> Tati no apreço pelo “gag”<br />

minimalista (e diríamos: também o<br />

Sr Hulot era, antes do mais, <strong>uma</strong><br />

testemunha silenciosa). Mas na<br />

aliança entre o memorialismo <strong>de</strong> “O<br />

Tempo que Resta”, construído sobre<br />

passagens do diário do pai <strong>de</strong><br />

Suleiman e recordações do próprio<br />

cineasta, e a sua re-encenação da<br />

História como sucessão <strong>de</strong> rábulas, o<br />

ramo “familiar” <strong>de</strong> Suleiman liga-se<br />

mais directamente ao <strong>de</strong> cineastas<br />

como Fe<strong>de</strong>rico Fellini ou Otar<br />

Iosseliani: “O Tempo que Resta” tem<br />

um bocadinho <strong>de</strong> “Amarcord” (as<br />

memórias <strong>de</strong> infância n<strong>uma</strong><br />

articulação “incompleta” com o<br />

contexto histórico) e um bocadinho<br />

<strong>de</strong> um filme como “Brigands” (o<br />

filme em que Iosseliani con<strong>de</strong>nsou<br />

séculos <strong>de</strong> tragédias georgianas num<br />

enca<strong>de</strong>ado <strong>de</strong> peripécias burlescas).<br />

Há cenas que podiam vir <strong>de</strong> um<br />

filme (o coro <strong>de</strong> miúdos, árabes e<br />

ju<strong>de</strong>us pressupõe-se, a entoarem<br />

hinos a Israel, mais a projecção <strong>de</strong><br />

“Spartacus” com <strong>uma</strong> professora<br />

perfeitamente “castradora”) e <strong>de</strong><br />

outro (logo a abrir, o soldado que em<br />

1948 não sabe se há <strong>de</strong> ir para leste<br />

ou oeste, norte ou sul, e mais tar<strong>de</strong> o<br />

gag do rapaz árabe e do tanque <strong>de</strong><br />

guerra, cenas tão iosselianianas<br />

como as outras são fellinianas). Mais<br />

problemático é o fio alegórico que<br />

vem unir a diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sta<br />

narração fragmentada, a sensação<br />

<strong>de</strong> que em <strong>de</strong>masiados momentos<br />

Suleiman troca a espontaneida<strong>de</strong> do<br />

que está a acontecer pela carga<br />

(pesada) do que é suposto ver-se no<br />

lugar do que está a acontecer – pela<br />

“metáfora”, em s<strong>uma</strong>. Esta espécie<br />

<strong>de</strong> apelo à “interpretação” torna-se<br />

cansativa, simples ocultação do<br />

“sentido” mais do que sua<br />

problematização. Quando o


Sexta, 16<br />

12 Homens em Fúria<br />

Twelve Angry Men<br />

De Sidney Lumet 15h30 - Sala Félix Ribeiro<br />

At Long Last Love<br />

De Peter Bogdanovich 19h - Sala Félix<br />

Ribeiro<br />

O Adversário<br />

L’ Adversaire<br />

De Nicole Garcia 19h30 - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />

Gerry<br />

De Gus Van Sant 21h30 - Sala Félix Ribeiro<br />

Daisy Miller - Uma Mulher às<br />

Direitas<br />

Daisy Miller<br />

De Peter Bogdanovich 22h - Sala Luís <strong>de</strong><br />

Pina<br />

Sábado, 17<br />

O Solteirão e a Pequena<br />

The Bachelor and the Bobby-<br />

Soxer<br />

De Irving Reis 15h30 - Sala Félix Ribeiro<br />

Suleiman adulto aparece para<br />

transformar o filme n<strong>uma</strong> história <strong>de</strong><br />

fantasmas, a coisa compõe-se: a<br />

in<strong>de</strong>cifrabilida<strong>de</strong> do seu olhar<br />

transmite-se às cenas, que <strong>de</strong><br />

“metafóricas” passam a<br />

“exemplares” (como a dos<br />

miúdos árabes na discoteca, surdos<br />

às intimações dos soldados).<br />

Preferimos esta tristeza<br />

contemplativa, mas talvez<br />

chegue <strong>de</strong>masiado tar<strong>de</strong>,<br />

n<strong>uma</strong> altura em que, ao filme,<br />

pouco tempo resta.<br />

Luís Miguel Oliveira<br />

As estrelas do público<br />

Jorge<br />

Mourinha<br />

Luís M.<br />

Oliveira<br />

Mário<br />

J. Torres<br />

Vasco<br />

Câmara<br />

Alice no País das Maravilhas mmnnn mmmmn mmmmn mmnnn<br />

Ervas Daninhas nnnnn mmmnn mmmmm mmmmn<br />

GreenZone: Combate pela Verda<strong>de</strong> nnnnn nnnnn mmnnn nnnnn<br />

Pare, Escute e Olhe nnnnn mnnnn mmnnn mnnnn<br />

Parnassus - O Homem que Queria Enganar o Diabo mmmnn nnnnn nnnnn mnnnn<br />

Ruínas mmmmn mmmmn mmmmn mmmnn<br />

O Tempo que Resta mmmnn mmnnn nnnnn mmnnn<br />

Um Lugar para Viver nnnnn nnnnn mmmnn nnnnn<br />

Um Sonho Possível nnnnn nnnnn mmnnn nnnnn<br />

Thirst nnnnn nnnnn nnnnn mmmnn<br />

Cinemateca Portuguesa R. Barata Salgueiro, 39 <strong>Lisboa</strong>. Tel. 213596200<br />

Heróis Esquecidos<br />

The Roaring Twenties<br />

De Raoul Walsh 19h - Sala Félix Ribeiro<br />

La Lutte Pour La Vie<br />

De Ferdinand Zecca 19h30 - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />

Madame <strong>de</strong>...<br />

De Max Ophüls 21h30 - Sala Félix Ribeiro<br />

O Animal <strong>de</strong> Aço<br />

Der Stahltier<br />

De Willy Zielke 22h - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />

Segunda, 19<br />

Os Alegres Namorados<br />

Continuam<br />

“O Tempo que Resta”: a re-encenação da História<br />

como sucessão <strong>de</strong> rábulas<br />

Green Zone: Combate pela<br />

Verda<strong>de</strong><br />

Green Zone<br />

De Paul Greengrass,<br />

com Matt Damon, Jason Isaacs, Greg<br />

Kinnear. M/16<br />

MMnnn<br />

<strong>Lisboa</strong>: Castello Lopes - Cascais Villa: Sala 4: 5ª 2ª<br />

3ª 4ª 15h40, 18h30, 21h30 6ª 15h40, 18h30, 21h30,<br />

24h Sábado 12h50, 15h40, 18h30, 21h30, 24h<br />

Domingo 12h50, 15h40, 18h30, 21h30; CinemaCity<br />

Alegro Alfragi<strong>de</strong>: Sala 7: 5ª 6ª Sábado Domingo<br />

Summer Holiday<br />

De Rouben Mamoulian 15h30 - Sala Félix<br />

Ribeiro<br />

Ser Ou Não Ser<br />

To Be Or Not To Be<br />

De Ernst Lubitsch 19h - Sala Félix Ribeiro<br />

At Long Last Love<br />

De Peter Bogdanovich 19h30 - Sala Luís <strong>de</strong><br />

Pina<br />

Os Inadaptados<br />

The Misfi ts<br />

De John Huston 21h30 - Sala Félix Ribeiro<br />

Eika Katappa<br />

De Werner Schroeter 22h - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />

Terça, 20<br />

O Expresso Bagdad-Istambul<br />

Background to Danger<br />

De Raoul Walsh 15h30 - Sala Félix Ribeiro<br />

Matar ou não Matar<br />

In a Lonely Place<br />

De Nicholas Ray 19h - Sala Félix Ribeiro<br />

O Tesouro <strong>de</strong> Arne<br />

Herr Arnes Pengar<br />

2ª 3ª 4ª 13h50, 16h15, 18h40, 21h50,<br />

00h10; CinemaCity Campo Pequeno Praça <strong>de</strong><br />

Touros: Sala 6: 5ª 6ª 2ª 3ª 4ª 14h10, 16h25,<br />

18h50, 22h05, 00h30 Sábado Domingo 11h55,<br />

14h10, 16h25, 18h50, 22h05, 00h30; Me<strong>de</strong>ia<br />

Saldanha Resi<strong>de</strong>nce: Sala 8: 5ª 6ª Sábado<br />

Domingo 2ª 3ª 4ª 14h, 16h30, 19h, 21h30, 24h; UCI<br />

Cinemas - El Corte Inglés: Sala 13: 5ª 6ª Sábado 2ª<br />

3ª 4ª 14h, 16h35, 19h05, 22h, 00h25 Domingo<br />

11h30, 14h, 16h35, 19h05, 22h, 00h25; ZON<br />

Lusomundo Alvaláxia: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª<br />

3ª 4ª 13h40, 16h15, 18h50, 21h30, 00h15; ZON<br />

Lusomundo Amoreiras: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª<br />

3ª 4ª 13h, 15h50, 18h30, 21h20, 24h; ZON<br />

Lusomundo CascaiShopping: 5ª 6ª Sábado<br />

Domingo 2ª 3ª 4ª 12h50, 18h15, 23h50; ZON<br />

Lusomundo Colombo: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª<br />

3ª 4ª 12h50, 15h35, 18h15, 21h05, 23h45; ZON<br />

Lusomundo Dolce Vita Miraflores: 5ª Domingo 2ª<br />

3ª 4ª 15h10, 18h10, 21h10 6ª Sábado 15h10, 18h10,<br />

21h10, 00h10; ZON Lusomundo Oeiras Parque: 5ª<br />

6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h, 15h45, 18h25,<br />

21h20, 24h; ZON Lusomundo Almada Fórum: 5ª 6ª<br />

Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h20, 16h10, 18h50,<br />

21h35, 00h15; ZON Lusomundo Fórum Montijo: 5ª<br />

6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 15h50, 21h25;<br />

Porto: Arrábida 20: Sala 11: 5ª 6ª Sábado<br />

Domingo 2ª 14h05, 16h45, 19h20, 22h, 00h35 3ª 4ª<br />

16h45, 19h20, 22h, 00h35; ZON Lusomundo Dolce<br />

Vita Porto: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª<br />

13h30, 16h20, 19h10, 21h50, 00h35; ZON<br />

Lusomundo Marshopping: 5ª 6ª Sábado Domingo<br />

2ª 3ª 4ª 13h40, 16h10, 18h50, 21h30, 00h10; ZON<br />

Lusomundo Parque Nascente: 5ª 6ª 2ª 3ª 4ª<br />

12h50, 15h30, 18h20, 21h20, 00h10 Sábado<br />

Domingo 21h20, 00h10;<br />

Sem que se saiba muito bem explicar<br />

porquê, Matt Damon permanece<br />

<strong>uma</strong> das gran<strong>de</strong>s estrelas do cinema<br />

americano e “Green Zone”, mais<br />

<strong>uma</strong> variação sobre a Guerra no<br />

Iraque, agora cruzada com <strong>uma</strong><br />

espécie <strong>de</strong> infindável “thriller”<br />

político, a trazer sauda<strong>de</strong>s dos filmes<br />

<strong>de</strong> espionagem (investigação parece<br />

ser neste momento o termo na<br />

moda) e a causar alg<strong>uma</strong>s pequenas<br />

<strong>de</strong>silusões, funciona como um<br />

veículo (ainda há veículos para as<br />

estrelas?) por medida. Novida<strong>de</strong>s<br />

não há muitas, a acção não abunda:<br />

tudo está no sítio certo, as<br />

conclusões são as esperadas, o herói<br />

limita-se a <strong>de</strong>scobrir o que já<br />

De Mauritz Stiller 19h30 - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />

Alvos<br />

Targets<br />

De Peter Bogdanovich 21h30 (em<br />

complemento, a curta “Esercizio di Lingua, <strong>de</strong> David<br />

Barros) - Sala Félix Ribeiro<br />

O Vento<br />

The Wind<br />

De Victor Sjöström 22h - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />

Quarta, 21<br />

Rua Sem Lei<br />

A Lawless Street<br />

De Joseph H. Lewis 15h30 - Sala Félix Ribeiro<br />

Uma História <strong>de</strong> Violência<br />

A History of Violence<br />

De David Cronenberg 19h - Sala Félix<br />

Ribeiro<br />

Alguns Dias na Vida <strong>de</strong> Oblomov<br />

Neskolko dnej iz zhizni I.I.<br />

Oblomova<br />

De Nikita Mikhalkov 19h30 - Sala Luís <strong>de</strong><br />

Pina<br />

La Cicatrice Intérieure<br />

Gerry, <strong>de</strong> Gus Van Sant<br />

De Philippe Garrel 21h30 (em complemento, a<br />

curta “Simon <strong>de</strong>l Disierto”, <strong>de</strong> Luis Buñuel) - Sala<br />

Félix Ribeiro<br />

O Padre e a Moça<br />

De Joaquim Pedro <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> 22h (em<br />

complemento, a curta “Brasília: Contradições <strong>de</strong><br />

<strong>uma</strong> Cida<strong>de</strong> Nova”, <strong>de</strong> Joaquim Andra<strong>de</strong>) - Sala Luís<br />

<strong>de</strong> Pina<br />

Quinta, 22<br />

O Preço do Silêncio<br />

The Liberation of L. B. Jones<br />

De William Wyler 15h30 - Sala Félix Ribeiro<br />

Cruel Vitória<br />

Bitter Victory<br />

De Nicholas Ray 19h - Sala Félix Ribeiro<br />

Parada<br />

Para<strong>de</strong><br />

De Jacques Tati 19h30 - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />

Song of Love<br />

De Clarence Brown 21h30 - Sala Félix Ribeiro<br />

Alvos<br />

Targets<br />

De Peter Bogdanovich 22h - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />

Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 61


Cinema<br />

“Greenzone”: novida<strong>de</strong>s não há muitas<br />

todos sabíamos. Resta um filme<br />

cumpridor, arr<strong>uma</strong>dinho, bem<br />

estruturado. As armas secretas <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>struição <strong>de</strong> Saddam Hussein não<br />

existiam, a imaginação criativa<br />

também não e a energia <strong>de</strong> Damon<br />

fica à espera <strong>de</strong> melhores dias, sem<br />

que possamos realmente afirmar<br />

que se per<strong>de</strong>u tudo. Nem sim, nem<br />

não, nem antes pelo contrário.<br />

Mário Jorge Torres<br />

As Ervas Daninhas<br />

Les herbes folles<br />

62 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />

De Alain Resnais,<br />

com André Dussollier, Sabine Azéma,<br />

Emmanuelle Devos, Anne Consigny.<br />

M/12<br />

MMMnn<br />

<strong>Lisboa</strong>: Me<strong>de</strong>ia Fonte Nova: Sala 2: 5ª 6ª 2ª 3ª 4ª<br />

14h10, 16h30, 19h, 21h30 Sábado Domingo 16h30,<br />

19h, 21h30; Me<strong>de</strong>ia King: Sala 1: 5ª Domingo 3ª 4ª<br />

13h40, 15h45, 17h50, 19h55, 22h 6ª Sábado 2ª<br />

13h40, 15h45, 17h50, 19h55, 22h, 00h30;<br />

Porto: Me<strong>de</strong>ia Cida<strong>de</strong> do Porto: Sala 1: 5ª 6ª<br />

Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 14h30, 17h, 19h30, 22h;<br />

Jogo perigoso, o <strong>de</strong> Alain Resnais:<br />

“As Ervas Daninhas”: gran<strong>de</strong> “cocktail”, engenhoso e brilhante,<br />

mas também um nadinha auto-<strong>de</strong>strutivo<br />

como se, a<strong>de</strong>pto da narração<br />

labiríntica e/ou folhetinesca (<strong>de</strong><br />

“Hiroxima” aos “Corações”, isto<br />

sempre esteve nele), enfrentasse<br />

frontalmente (para os “<strong>de</strong>sviar”,<br />

para os “subverter”, para os<br />

“homenagear” – as expressões, no<br />

caso, equivalem-se) os gran<strong>de</strong>s<br />

mo<strong>de</strong>los contemporâneos <strong>de</strong>sse tipo<br />

<strong>de</strong> construção narrativa – as séries<br />

americanas, <strong>de</strong> que Resnais tantas<br />

vezes se tem dito a<strong>de</strong>pto. A novida<strong>de</strong><br />

das “Ervas Daninhas” é que <strong>de</strong>sta<br />

vez se acrescenta ou parece<br />

acrescentar (<strong>de</strong>senfreadamente) um<br />

confronto com estereótipos visuais<br />

– aquela fotografia cheia <strong>de</strong> filtros,<br />

aquela imagem mais do que “limpa”,<br />

“asséptica”, aqueles ralentis (por<br />

exemplo, a mala <strong>de</strong> Sabine Azéma a<br />

voar) que parecem respon<strong>de</strong>r a <strong>uma</strong><br />

imagem publicitária. Gran<strong>de</strong><br />

“cocktail”, portanto: engenhoso e<br />

brilhante, mas também um nadinha<br />

auto-<strong>de</strong>strutivo (à força <strong>de</strong> irrisão<br />

em nome próprio), sem a “gravitas”<br />

<strong>de</strong> “Corações”. L.M.O.<br />

Pare, Escute e Olhe<br />

De Jorge Pelicano,<br />

com . M/12<br />

Mnnnn<br />

<strong>Lisboa</strong>: CinemaCity Classic Alvala<strong>de</strong>: Sala 4: 5ª<br />

Domingo 2ª 3ª 4ª 13h30, 15h40, 17h40, 19h40,<br />

21h40 6ª Sábado 13h30, 15h40, 17h40, 19h40,<br />

21h40, 00h10; ZON Lusomundo Amoreiras: 5ª 6ª<br />

Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 12h50, 17h50, 23h20;<br />

Porto: ZON Lusomundo Parque Nascente: 5ª 6ª<br />

Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h15, 15h50, 19h,<br />

21h50;<br />

Reportagem gentil e bem<br />

intencionada, inofensiva até no seu<br />

<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> <strong>uma</strong> “irreverência” muito<br />

submetida aos códigos do humor<br />

televisivo mais em voga. Se tem os<br />

seus fãs – como se tem visto – arrisca<br />

tornar-se em “cause célèbre” (enfim,<br />

“semi-célèbre”) da discussão sobre<br />

as fronteiras entre a reportagem<br />

televisiva e o documentário<br />

cinematográfico (discussão espúria,<br />

dizem alguns: o tanas, é justamente<br />

a discussão que importa ter). Em<br />

todo o caso, essa é aqui <strong>uma</strong> questão<br />

central: ou não é a “atenção” do<br />

filme (<strong>uma</strong> atenção cuja sincerida<strong>de</strong><br />

aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />

“Pare, Escute e Olhe”: convencional (e algo<br />

folclórico) ponto <strong>de</strong> vista televisivo?<br />

não se questiona) ao Tua, às pessoas<br />

do Tua, <strong>uma</strong> atenção que nunca se<br />

sobrepõe a <strong>uma</strong> “distância” (nós/<br />

Cineclubes para mais informações consultar www.fpcc.pt<br />

Cine-Teatro S. Pedro<br />

Largo S. Pedro- Abrantes<br />

Afterschool<br />

De António Campos 21/4, 21h30<br />

Cinema Teixeira<br />

<strong>de</strong> Pascoaes<br />

Centro Comercial Santa Luzia - Amarante<br />

Taking Woodstock + Arena<br />

De Ang Lee + João Salaviza 16/4, 21h30<br />

Cinema Ver<strong>de</strong> Viana<br />

Praça 1º <strong>de</strong> Maio, Centro Comercial - Viana do<br />

Castelo<br />

Bright Star - Estrela Cintilante<br />

De Jane Campion 22/4, 21h45<br />

Auditório Soror<br />

Mariana<br />

Pátio do Salema, 3ª – Évora<br />

A Estrada<br />

De John Hillcoat 21/4, 21h30<br />

Teatro Cinema Fafe<br />

Rua Monsenhor Vieira <strong>de</strong> Castro - Fafe<br />

Ágora<br />

De James Cameron 9 e 10/4, 22h e 11/4,<br />

15h30 21h30 - Sala Manoel <strong>de</strong> Oliveira<br />

Auditório do IPJ (Faro)<br />

Rua da PSP - Faro<br />

Moon - O outro lado da lua<br />

De Duncan Jones 19/4, 21h30<br />

Centro Cultural Vila<br />

Flor<br />

Av. D. Afonso Henriques, 701 - Guimarães<br />

Nas Nuvens<br />

De Jason Reitman 18/4, 21h45 - Pequeno<br />

Auditório<br />

Morrer Como um Homem<br />

De João Pedro Rodrigues 22/4, 21h45h -<br />

Pequeno Auditório<br />

eles) herdada dum convencional (e<br />

algo folclórico) ponto <strong>de</strong> vista<br />

televisivo? L.M.O.<br />

Teatro Faialense<br />

Alameda Barão <strong>de</strong> Roches, 31 – Faial (Açores)<br />

Bright Star - Estrela Cintilante<br />

De Jane Campion 20/4, 21h30<br />

Casa das Artes <strong>de</strong> Vila<br />

Nova <strong>de</strong> Famalicão<br />

Parque <strong>de</strong> Sinçães – Famalicão<br />

O Laço Branco<br />

De Michael Haneke 22/4, 21h30h - Pequeno<br />

Auditório<br />

Cinemas Ria Shoping<br />

Estrada Nacional 125, 100 - Olhão<br />

Bombón: El Perro<br />

De Carlos Sorin 20/4, 21h30<br />

Capela Românica<br />

<strong>de</strong> Cedofeita<br />

Rua Passos Manuel, 137 - Porto<br />

Auto <strong>de</strong> Florípes<br />

De Lopes Fernan<strong>de</strong>s 17/4, 21h30<br />

Teatro Sá da Ban<strong>de</strong>ira<br />

Rua João Afonso - Santarém<br />

Cartas a Uma Ditadura<br />

De Inês <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros, 2006, M/12<br />

21/4, 21h30<br />

Cine-Teatro António<br />

Pinheiro<br />

R. Guilherme Gomes Fernan<strong>de</strong>s, 5 - Tavira<br />

Tudo Po<strong>de</strong> Dar Certo<br />

De Woody Allen 18/4, 21h30<br />

Uma Outra Educação<br />

De Lone Scherfig 22/4, 21h30<br />

Teatro <strong>Municipal</strong><br />

<strong>de</strong> Vila do Con<strong>de</strong><br />

Av. João Canavarro - Vila do Con<strong>de</strong><br />

O Laço Branco<br />

De Michael Haneke, 2009,M/16 18/4-<br />

16h00 e 21h45<br />

Auditório do IPJ<br />

(Viseu)<br />

R. Dr. Aresti<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sousa Men<strong>de</strong>s, 33 - Viseu<br />

Sobre a Água - Compilação <strong>de</strong> 3<br />

curtas<br />

De Rodrigo Areias; André Gil Mata; F.<br />

J. Ossang 20/4, 21h45


DVD<br />

Cinema<br />

França<br />

confi <strong>de</strong>ncial<br />

Uma fábula menor <strong>de</strong> Ozon<br />

sobre um bebé proletário<br />

voador e <strong>uma</strong> engenhosa<br />

adaptação por Honoré <strong>de</strong><br />

um romance clássico aos<br />

liceus contemporâneos<br />

– ou dois fi lmes que<br />

mereciam mais do que<br />

sair directamente em DVD.<br />

Jorge Mourinha<br />

A Bela Junie<br />

La Belle<br />

Personne<br />

<strong>de</strong> Christophe<br />

Honoré, com Léa<br />

Seydoux, Louis<br />

Garrel, Grégoire<br />

Leprince-Ringuet<br />

Clap Filmes<br />

mmmmn<br />

Sem Extras<br />

Ricky<br />

<strong>de</strong> François Ozon,<br />

com Alexandra<br />

Lamy, Sergi Lopez,<br />

Mélusine Mayance<br />

Clap Filmes<br />

mmnnn<br />

Sem Extras<br />

Há qualquer coisa <strong>de</strong> triste – e, <strong>de</strong><br />

caminho, <strong>de</strong> profundamente<br />

preocupante – quando a exibição<br />

portuguesa não consegue abrir<br />

espaço para estrear em sala<br />

cineastas que a distribuição apoiou<br />

durante anos ou filmes que<br />

mereceriam ser mostrados em vez<br />

<strong>de</strong> muitos dos objectos que entopem<br />

os écrãs. No caso: dois cineastas<br />

franceses cuja j obra tem sido<br />

sistematicamente dis distribuída<br />

em Portugal – até eestes<br />

dois<br />

filmes que não viram vir<br />

exibição comercial comercia (para<br />

lá <strong>de</strong> passagens pelo pe<br />

Indie<strong>Lisboa</strong> 2009) 200<br />

terem posto<br />

“Ricky”: um fi lme que confundiu todos<br />

aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente Excelente<br />

um “travão” nesse<br />

acompanhamento.<br />

Christophe Honoré tornou-se<br />

n<strong>uma</strong> pequena coqueluche com o<br />

duplo KO <strong>de</strong> “Em Paris” (2006) e “As<br />

Canções <strong>de</strong> Amor” (2007), François rançois<br />

Ozon teve um sucesso assinalável lável<br />

com “8 Mulheres” (2001) e é dos<br />

raros franceses contemporâneos neos<br />

cuja obra chegou quase toda às<br />

nossas salas (e “Le Refuge”, o filme<br />

que rodou a seguir a “Ricky”, , já está<br />

agendado para estreia). No<br />

entanto, nem “A Bela Junie” nem<br />

“Ricky” encontraram o caminho nho<br />

das nossas salas, por razões que<br />

ficarão inexplicadas.<br />

Admissivelmente, “Ricky” é<br />

um Ozon menor, que aliás<br />

confundiu a crítica e os<br />

observadores <strong>de</strong>vido à sua<br />

aparente esquizofrenia<br />

estilística. A história do bebé<br />

nascido a um casal operário<br />

<strong>de</strong> Amiens que literalmente<br />

começa a ganhar asas, e do<br />

modo como essa bizarria<br />

afecta a dinâmica familiar, é<br />

<strong>uma</strong> estranha confluência <strong>de</strong> drama<br />

familiar, “problem picture”, sátira<br />

social, fábula negra e conto <strong>de</strong> fadas<br />

surreal rodada com a frieza<br />

observacional que parece ser típica<br />

do realizador. É um exercício<br />

intrigante que explora um dos temas<br />

centrais da obra do realizador (as<br />

fraquezas e forças dos laços<br />

familiares) e remete para os seus<br />

primeiros e mais provocadores<br />

filmes (“Sitcom”, 1997, em<br />

particular), concentrando em hora e<br />

meia a sua atracção camaleónica por<br />

explorar e experimentar géneros e<br />

estilos. Mas, se Ozon consegue<br />

reconstituir na perfeição o ambiente<br />

<strong>de</strong> mal-estar que esta adaptação<br />

livre <strong>de</strong> um conto da escritora Rose<br />

Tremain exige, nunca consegue fixar<br />

um tom único que o salve da<br />

estranheza irredutível. Não é<br />

improvável que fosse essa a vonta<strong>de</strong><br />

do cineasta, mas “Ricky” é um<br />

“passo atrás” para longe do<br />

território emocional dos anteriores<br />

“O Tempo que Resta” (2005) e<br />

“Angel – Encanto e Sedução” (2007),<br />

como quem regressa a <strong>uma</strong> zona <strong>de</strong><br />

conforto para lamber feridas antes<br />

<strong>de</strong> partir em novas direcções.<br />

Já “A Bela Junie” é um outro<br />

animal – rodado para televisão, nele<br />

Christophe Honoré prossegue a<br />

exploração sôfrega e urgente <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />

irreverência e <strong>de</strong> <strong>uma</strong> liberda<strong>de</strong><br />

formais herdadas da Nouvelle<br />

Vague, mas aqui lastrada pela<br />

gravida<strong>de</strong> física da narrativa <strong>de</strong><br />

amores <strong>de</strong>sencontrados que lhe está<br />

na base. Essa base é “A Princesa <strong>de</strong><br />

Clèves”, o clássico da literatura<br />

francesa que Madame <strong>de</strong> Lafayette<br />

escreveu no século XVII (e que<br />

inspirou “A Carta” a Manoel <strong>de</strong><br />

Oliveira), cuja história <strong>de</strong> <strong>uma</strong> jovem<br />

her<strong>de</strong>ira que sobe à corte real é aqui<br />

engenhosamente adaptada a um<br />

filme <strong>de</strong> liceu contemporâneo: a<br />

princesa <strong>de</strong> Clèves é aqui <strong>uma</strong> nova<br />

Duas “coqueluches” do cinema francês,<br />

Christophe Honoré e François Ozon<br />

aluna num liceu parisiense, o seu<br />

marido <strong>de</strong> conveniência um colega<br />

tímido que se per<strong>de</strong> <strong>de</strong> amores por<br />

ela, o sedutor que a tenta conquistar<br />

o professor <strong>de</strong> italiano. Rodando<br />

com a sua habitual<br />

companhia<br />

<strong>de</strong> actores (Louis<br />

Garrel, Grégoire<br />

Leprince-<br />

Ringuet, Clotil<strong>de</strong><br />

Hesme) e indo<br />

buscar bu b scar<br />

Com “A Bela Junie”<br />

Honoré prossegue<br />

a exploração sôfrega<br />

<strong>de</strong> <strong>uma</strong> irreverência<br />

herdada da<br />

Nouvelle Vague<br />

para o papel principal a presença<br />

magnética <strong>de</strong> Léa Seydoux, Honoré<br />

acerta na mouche ao igualar a<br />

serieda<strong>de</strong> dos jogos corteses <strong>de</strong><br />

sedução ao romantismo hiperemocional<br />

emocional das pai paixões <strong>de</strong> liceu<br />

(sublinhado pela oomnipresença<br />

na<br />

banda-sonora da mmelancolia<br />

<strong>de</strong>licada <strong>de</strong> Nick Ni Drake). E a<br />

trama do rom romance empresta ao<br />

filme a soli<strong>de</strong>z solid estrutural que<br />

os anterior anteriores punham<br />

propositadamente propositad <strong>de</strong> parte,<br />

confirmando confirm Christophe<br />

Honoré Hono como um dos<br />

mais interessantes<br />

cineastas cinea franceses do<br />

momento mom e fazendo <strong>de</strong><br />

“A Bela Be Junie” um<br />

belíssimo belís filme que<br />

teria merecido outra<br />

atenção. aten<br />

Em E ambos os casos,<br />

as cópias c e as<br />

traduções trad são <strong>de</strong> boa<br />

qualida<strong>de</strong>, qua sem extras<br />

<strong>de</strong> espécie e nenh<strong>uma</strong>.<br />

Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 63

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