A ressurreição de uma cidade - Fonoteca Municipal de Lisboa
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Sexta-feira<br />
16 Abril 2010<br />
www.ipsilon.pt<br />
“Berlim Alexan<strong>de</strong>rplatz”, <strong>de</strong> Alfred Döblin, em nova edição<br />
A <strong>ressurreição</strong> <strong>de</strong> <strong>uma</strong> cida<strong>de</strong><br />
David Byrne Elia Suleiman CaribouAlexandre EstrelaSonic Youth Irene Pimentel<br />
JOHN MACDOUGALL/ AFP ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO Nº 7316 DO PÚBLICO, E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE
Flash<br />
Sumário<br />
Alfred Döblin 10<br />
Berlim, Alexan<strong>de</strong>rplatz, a via<br />
dolorosa <strong>de</strong> <strong>uma</strong> capital<br />
David Byrne 14<br />
Fez um disco com Imelda<br />
Marcos e um livro a andar <strong>de</strong><br />
bicicleta<br />
Car<strong>de</strong>al Cerejeira 18<br />
Para além da caricatura,<br />
na nova biografi a <strong>de</strong> Irene<br />
Flunser Pimentel<br />
Caribou 24<br />
Mergulham num disco<br />
aquático, “Swim”<br />
Fumiyo Ikeda 30<br />
Constrói, com Tim Etchells,<br />
a memória do seu próprio<br />
corpo<br />
Luís Miguel Cintra 32<br />
Unha com carne com Gil<br />
Vicente, em “Miserere”<br />
Elia Suleiman 34<br />
Quer que sejamos todos<br />
palestinianos<br />
Ficha Técnica<br />
Directora Bárbara Reis<br />
Editor Vasco Câmara, Inês Nadais<br />
(adjunta)<br />
Conselho editorial Isabel<br />
Coutinho, Óscar Faria, Cristina<br />
Fernan<strong>de</strong>s, Vítor Belanciano<br />
Design Mark Porter, Simon<br />
Esterson, Kuchar Swara<br />
Directora <strong>de</strong> arte Sónia Matos<br />
Designers Ana Carvalho, Carla a<br />
Noronha, Mariana Soares<br />
Editor <strong>de</strong> fotografi a Miguel<br />
Ma<strong>de</strong>ira<br />
E-mail: ipsilon@publico.pt<br />
As fotografi as que Kubrick fez na Nazaré, acompanhando como repórter da “Look”<br />
um casal norte-americano em viagem pela Europa, constituem um dos núcleos da exposição<br />
que hoje se inaugura no Palazzo <strong>de</strong>lla Ragione<br />
Stanley antes <strong>de</strong> d ser KKubrick b i k<br />
n<strong>uma</strong> gran<strong>de</strong> exposição em Milão ão<br />
Tinha 17 anos, ainda não fazia<br />
filmes, mas já fotografava<br />
(<strong>de</strong>s<strong>de</strong> os 13, com <strong>uma</strong> Leica<br />
oferecida pelo pai em dia <strong>de</strong><br />
aniversário), e nisso estava “à<br />
altura <strong>de</strong> Cartier-Bresson,<br />
Walker Evans, Robert Frank,<br />
Diane Arbus ou William<br />
Eggleston”. Antes <strong>de</strong> ser<br />
Kubrick, portanto antes do<br />
cinema, Stanley teve <strong>uma</strong><br />
primeira vida na fotografia – e<br />
essa primeira vida vai ser<br />
reconstituída a partir <strong>de</strong> hoje<br />
e até 4 <strong>de</strong> Julho em Milão, no<br />
Palazzo <strong>de</strong>lla Ragione.<br />
“Stanley Kubrick Fotografo<br />
1945-1950” reúne pela<br />
primeira vez um conjunto <strong>de</strong><br />
300 imagens publicadas pelo<br />
jovem repórter ao serviço da<br />
revista “Look” – é só a ponta<br />
do icebergue, diz o comissário<br />
Rainer Crone –, alg<strong>uma</strong>s das<br />
quais em (extra! extra!)<br />
Portugal, on<strong>de</strong> Kubrick<br />
passou <strong>uma</strong> temporada<br />
acompanhando a viagem <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>scompressão <strong>de</strong> um casal<br />
americano no pós-guerra,<br />
com escala na Nazaré.<br />
Além <strong>de</strong> Portugal, há<br />
Montgomery Clift, Rocky<br />
Graziano e Betsy Furstenberg<br />
nos cinco anos <strong>de</strong> Kubrick na<br />
“Look”, mais o dixieland <strong>de</strong><br />
Nova Orleães, os miúdos <strong>de</strong><br />
rua <strong>de</strong> Nova Iorque, os órfãos<br />
<strong>de</strong> guerra do Illinois e a elite<br />
americana (porque isto era<br />
a América em ressaca,<br />
sim, mas também era a<br />
América que tinha<br />
vindo para a<br />
Europa e para o<br />
Pacífico salvar<br />
o mundo)<br />
no<br />
Blur<br />
lançam<br />
novo single no<br />
“Record Store Day”<br />
Os Blur juntaram-se em 2009 para<br />
um Verão <strong>de</strong> concertos. Graham<br />
Coxon voltou a ser o melhor amigo<br />
<strong>de</strong> Damon Albarn, todos ficaram<br />
emocionados com as centenas <strong>de</strong><br />
milhares a cantar o refrão do<br />
“Ten<strong>de</strong>r” em Glastonbury e até saiu<br />
um DVD, “No distance left to run”,<br />
para pa p ra documentar a história toda,<br />
Afi nal a história dos Blur ainda não acabou: vai<br />
haver canção nova (mas é <strong>uma</strong> excepção, dizem eles)<br />
campus da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Columbia. Kubrick (Nova<br />
Iorque, 1928-Harpen<strong>de</strong>n,<br />
1999), que publicou a sua<br />
primeira fotografia a 26 <strong>de</strong><br />
Junho <strong>de</strong> 1945 – o retrato do<br />
dono <strong>de</strong> um quiosque a ler,<br />
<strong>de</strong>vastado, a notícia da morte<br />
<strong>de</strong> Franlin D. Roosevelt -, foi o<br />
mais jovem fotógrafo <strong>de</strong><br />
sempre contratado pela<br />
“Look”. O “modus operandi<br />
da revista” foi <strong>uma</strong> escola para<br />
ele: a “Look” contava histórias<br />
por episódios e exigia dos seus<br />
repórteres um<br />
acompanhamento obsessivo, e<br />
o mais naturalista possível,<br />
dos protagonistas das<br />
reportagens. Para esse efeito,<br />
Kubrick actuava quase sempre<br />
“un<strong>de</strong>rcover”, encobrindo a<br />
câmara <strong>de</strong>baixo do casaco e<br />
disparando através <strong>de</strong> um<br />
minúsculo interruptor<br />
escondido na mão.<br />
Além <strong>de</strong> documentarem <strong>uma</strong><br />
era, diz o comissário da<br />
exposição, estas imagens<br />
“espantam pela sua<br />
surpreen<strong>de</strong>nte<br />
profundida<strong>de</strong>”, antecipando o<br />
modo engenhoso como<br />
Kubrick tiraria<br />
partido<br />
da febre britpop ao reencontro<br />
momentos antes. Apesar dos sinais<br />
<strong>de</strong> futuro, a banda foi peremptória:<br />
a história acabava mesmo ali.<br />
Sabemos Sabe agora que não é bem<br />
assim. assim Juntando-se às<br />
comemorações com<br />
do “Record Store<br />
Day”, Day celebração das lojas <strong>de</strong> discos<br />
in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes in<strong>de</strong> e da sua relevância<br />
na construção da<br />
cultura pop que será<br />
assinalada<br />
dos recursos técnicos à sua<br />
disposição para representar e<br />
interpretar a realida<strong>de</strong>. Foi <strong>de</strong><br />
resto com o seu salário <strong>de</strong><br />
repórter fotográfico que<br />
Kubrick pagou os seus cursos<br />
na escola <strong>de</strong> cinema – quando<br />
terminou o quarto, <strong>de</strong>spediuse<br />
da “Look” para ir fazer<br />
filmes. Só na década <strong>de</strong> 50<br />
terminou cinco: “Fear and<br />
Desire” (1953), “Killer’s Kiss”<br />
(1955), “Um Roubo no<br />
Hipódromo” (1956),<br />
“Horizontes <strong>de</strong> Glória” (1957)<br />
e “Spartacus” (1959).<br />
Mesmo sendo já <strong>uma</strong> amostra<br />
impressionante da produção<br />
fotográfica do cineasta, “as<br />
imagens publicadas pela Look<br />
constituem apenas <strong>uma</strong><br />
mínima parte dos cerca <strong>de</strong><br />
dois mil negativos arquivados<br />
[na Biblioteca do Congresso,<br />
em Washington, e no Museu<br />
da Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nova Iorque]”,<br />
sublinha o comissário. Crone<br />
visitou Kubrick um ano antes<br />
da sua morte, em 1998, e<br />
pediu-lhe autorização para o<br />
ressuscitar como fotógrafo:<br />
“Confesso que esperava que<br />
ele me dissesse: “À vonta<strong>de</strong>,<br />
entra: tenho negativos, provas<br />
fotográficas, todo o meu<br />
arquivo<br />
mundialmente amanhã, os Blur<br />
editarão o seu primeiro single<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2003, ano em que lançaram<br />
o último álbum, “Think Tank”.<br />
“Queremos que as lojas <strong>de</strong> discos<br />
in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes continuem – são<br />
<strong>uma</strong> parte importante da nossa<br />
cultura musical”, <strong>de</strong>clarou Damon<br />
Albarn. “É <strong>uma</strong> forma simples <strong>de</strong><br />
os Blur mostrarem o seu apoio e<br />
esperamos que as pessoas<br />
apreciem [o single].”<br />
bem guardadinho no sótão’.<br />
Mas não foi assim. Ficou muito<br />
contente com a minha<br />
intenção <strong>de</strong> resgatar essa<br />
parte da sua produção, mas<br />
não fazia a mais remota i<strong>de</strong>ia<br />
do local on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>ria<br />
encontrar-se o material, não<br />
tinha <strong>uma</strong> única impressão<br />
original e não era sequer<br />
proprietário dos direitos dos<br />
negativos”, contou ao “El<br />
País”. Precisou <strong>de</strong> 12 anos para<br />
perceber que a “Look” tinha<br />
oferecido em 1952 gran<strong>de</strong><br />
parte do arquivo Kubrick ao<br />
Museu da Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nova<br />
Iorque. Des<strong>de</strong> esse ano, nunca<br />
mais tinham sido vistos. É<br />
todo um Stanley a caminho <strong>de</strong><br />
ser Kubrick: “As fotos dos<br />
negros <strong>de</strong> Chicago, que não<br />
conseguem fazer chegar o<br />
dinheiro até ao fim do mês<br />
mas fazem ostentação<br />
comendo nos melhores<br />
restaurantes, têm por trás o<br />
mesmo olhar ambíguo e<br />
<strong>de</strong>senfadado <strong>de</strong> ‘Laranja<br />
Mecânica’ e ‘Barry<br />
Lindon’”. Inês<br />
Nadais<br />
Perante os rumores <strong>de</strong> que este<br />
seria um primeiro passo para um<br />
regresso mais prolongado a estúdio<br />
e, possivelmente, para um novo<br />
álbum, fontes próximas da banda<br />
acentuaram à imprensa britânica a<br />
improbabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tal cenário –<br />
este será nada mais do que um<br />
momento excepcional, assinalando<br />
<strong>uma</strong> data cara aos Blur.<br />
O single conhecerá edição em vinil,<br />
<strong>de</strong> mil exemplares, sendo<br />
Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 3
Flash<br />
Parceria<br />
distribuído nas lojas associadas ao<br />
Record Store Day. Para além dos<br />
Blur, comemoram a data com<br />
edições bandas como Pet Shop<br />
Boys, Hot Chip ou Babyshambles e<br />
artistas solo como Lily Allen ou Bat<br />
For Lashes.<br />
Hollywood aposta<br />
no “remake” <strong>de</strong><br />
fracassos<br />
Godzilla po<strong>de</strong> voltar a atacar<br />
brevemente, num cinema<br />
perto <strong>de</strong> si<br />
A última estratégia da indústria<br />
cinematográfica americana passa<br />
por voltar a fazer filmes que foram<br />
flops <strong>de</strong> bilheteira, na esperança <strong>de</strong><br />
os tornar bem-sucedidos. Po<strong>de</strong><br />
parecer arriscado, mas não é <strong>uma</strong><br />
i<strong>de</strong>ia nova. Citando um exemplo<br />
recente, o tão aclamado<br />
“Gladiador” (2000), <strong>de</strong> Ridley<br />
Scott, é <strong>uma</strong> reedição do pouco<br />
conhecido “The Fall of the Roman<br />
Empire” (1964). “Godzilla” já está<br />
na fila <strong>de</strong> candidatos: a segunda<br />
versão da saga, filmada em 1998,<br />
não obteve o retorno <strong>de</strong>sejado, mas<br />
o monstro po<strong>de</strong>rá voltar ao gran<strong>de</strong><br />
ecrã para redobrar as suas<br />
investidas.<br />
Leo Barraclough, um<br />
correspon<strong>de</strong>nte inglês da<br />
“Variety”, explicou ao<br />
“In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt” as motivações<br />
<strong>de</strong>ste fenómeno: “As gran<strong>de</strong>s<br />
quantias <strong>de</strong> dinheiro envolvido<br />
fazem com que o risco que os<br />
filmes <strong>de</strong> Hollywood correm seja<br />
muito elevado. Não po<strong>de</strong>m arriscar<br />
tanto como o cinema<br />
in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte”. Desta forma, “os<br />
4 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />
Os Arca<strong>de</strong> Fire estão a colaborar<br />
outra vez com o realizador Spike<br />
Jonze, agora n<strong>uma</strong> curta-metragem. m.<br />
Ainda por baptizar, o pequeno fi lme, e,<br />
para o qual têm sido recrutados<br />
actores adolescentes, está a ser<br />
preparado em segredo em Austin,<br />
no Texas. A parceria não é inédita:<br />
no ano passado, a banda canadiana a<br />
regravou a canção “Wake Up”, a<br />
canção que abria o primeiro álbum, m,<br />
“Funeral”, para o trailer do último<br />
fi lme <strong>de</strong> Jonze, “O Sítio das Coisas<br />
Selvagens”.<br />
estúdios tentam trabalhar<br />
com material que já seja<br />
conhecido”, sendo que<br />
a chave po<strong>de</strong>rá passar<br />
por “estabelecer<br />
contacto com as<br />
vivências do<br />
público”.<br />
Da lista <strong>de</strong> espera<br />
constam filmes<br />
como “The<br />
Shadow” (1994),<br />
que até contou<br />
com Alec<br />
Baldwin no<br />
papel <strong>de</strong><br />
protagonista e<br />
cuja reedição<br />
<strong>de</strong>verá ser feita<br />
pelo produtor<br />
da trilogia<br />
“Homem-<br />
Aranha”, Sam<br />
Raimi. Para<br />
inverter o<br />
insucesso <strong>de</strong> “Red<br />
Sonja” (1985), a<br />
solução escolhida<br />
passa pela atribuição<br />
do papel principal a<br />
Megan Fox. A<br />
reformulação <strong>de</strong> “The<br />
Black Hole” (1979), a<br />
resposta infrutífera da<br />
Disney à saga “Star Wars”,<br />
vai passar pela mão do director<br />
Joseph Kosinski.<br />
Peter Hook recorda<br />
Ian Curtis<br />
A 18 <strong>de</strong> Maio cumpre-se o 30º<br />
aniversário da morte <strong>de</strong> Ian Curtis,<br />
o lí<strong>de</strong>r dos Joy Division. Para<br />
marcar a data, Peter Hook, o<br />
baixista da banda cuja carreira<br />
terminou após o vocalista se ter<br />
suicidado, está a organizar um<br />
concerto-tributo no qual serão<br />
tocados todos os temas <strong>de</strong><br />
“Unknown Pleasures”, o segundo e<br />
último álbum da banda <strong>de</strong><br />
Manchester.<br />
O evento terá lugar nas instalações<br />
originais da Factory Records, a<br />
editora in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do<br />
malogrado Tony Wilson que<br />
Há <strong>uma</strong> petição para dar o nome <strong>de</strong> Ian Curtis<br />
à Epping Walk Bridge, o local on<strong>de</strong> Kevin Cummins<br />
fez a imagem mais emblemática dos Joy Division<br />
Cornelius<br />
Car<strong>de</strong>w<br />
imperdível<br />
no Porto<br />
Uma exposição e um programa<br />
paralelo excepcional:<br />
“Cornelius Car<strong>de</strong>w e a<br />
Liberda<strong>de</strong> da Escuta” chega à<br />
Culturgest-Porto, a 8 <strong>de</strong> Maio,<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter passado por<br />
Brétigny, França, e Estugarda,<br />
Alemanha. A iniciativa,<br />
comissariada por um quarteto<br />
formado por Dean Inkster, Jean-<br />
Jacques Palix, Lore Gablier e<br />
Pierre Bal-Blanc, dá conta do<br />
percurso e do legado <strong>de</strong> um dos<br />
nomes fundamentais da música<br />
produzida na segunda meta<strong>de</strong><br />
do século XX. No final dos anos<br />
1950, Car<strong>de</strong>w (1936–1981) foi<br />
responsável pela divulgação<br />
junto do público inglês <strong>de</strong><br />
diversos compositores ligados à<br />
vanguarda norte-americana,<br />
como John Cage, Morton<br />
Feldman, La Monte Young e<br />
Christian Wolff. Nessa época,<br />
escreveu porventura aquelas<br />
que são as suas obras mais<br />
ajudou<br />
ao<br />
<strong>de</strong>spontar dos<br />
Joy Division, assim<br />
como <strong>de</strong> outras bandas da<br />
cida<strong>de</strong>, dos Happy Mondays aos A<br />
Certain Ratio. Ainda não é<br />
conhecido o formato do concerto,<br />
que tanto po<strong>de</strong>rá passar por <strong>uma</strong><br />
interpretação exclusivamente<br />
instrumental ou pela presença <strong>de</strong><br />
vocalistas convidados. Não está<br />
posta <strong>de</strong> lado a hipótese <strong>de</strong> Peter<br />
Hook convidar Andy Rourke (The<br />
Smiths) e Mani (The Stone Roses),<br />
com os quais tem <strong>de</strong>senvolvido um<br />
supergrupo <strong>de</strong> baixistas que<br />
integraram o movimento<br />
Madchester.<br />
O concerto <strong>de</strong> 18 <strong>de</strong> Maio não é a<br />
única homenagem ao autor <strong>de</strong><br />
canções como “Love will tear us<br />
apart” ou “Atmosphere”. Peter<br />
Hook tem participado, um pouco<br />
por toda a Inglaterra, no programa<br />
“Evening of Unknown Pleasures”,<br />
noites <strong>de</strong> <strong>de</strong>bate e exibição <strong>de</strong><br />
filmes sobre o músico. A <strong>de</strong>correr<br />
neste momento está também <strong>uma</strong><br />
campanha para dar o nome <strong>de</strong> Ian<br />
Curtis à Epping Walk Bridge, ponte<br />
que se tornou conhecida por ser o<br />
local on<strong>de</strong> Kevin Cummins tirou a<br />
fotografia mais emblemática dos<br />
Joy Division. A petição será<br />
entregue na câmara municipal <strong>de</strong><br />
Manchester.<br />
Na Culturgest, <strong>uma</strong><br />
exposição e um<br />
programa <strong>de</strong> concertos<br />
que inclui, entre outros,<br />
Christian Wolff , Keith<br />
Rowe e Terre Thaemlitz:<br />
é “Cornelius Crew e a<br />
Liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Escuta”<br />
conhecidas: “Treatise” (1963- títulos como “Smash the social<br />
67) e “The Great Learning” contract” e publicando ainda,<br />
(1968-71), <strong>uma</strong> obra<br />
em 1974, o livro “Stockhausen<br />
experimental inspirada em serve o imperialismo.” Estes e<br />
versões <strong>de</strong> textos <strong>de</strong> Confúcio outros aspectos da vida e obra<br />
elaboradas por Ezra Pound. Em <strong>de</strong> Car<strong>de</strong>w – que morreu<br />
1966, Car<strong>de</strong>w juntou-se aos atropelado em circunstâncias<br />
AMM, grupo <strong>de</strong> improvisação ainda não totalmente claras,<br />
livre, que, entre os fundadores, segundo o seu biógrafo e amigo,<br />
conta com o guitarrista Keith o pianista John Tilbury – serão<br />
Rowe e o percussionista e revisitados, até 25 <strong>de</strong> Junho,<br />
baterista Eddie Prévost. Dois n<strong>uma</strong> sucessão impressionante<br />
anos <strong>de</strong>pois, o compositor <strong>de</strong> concertos, conferências e<br />
inglês criou ainda, com Howard performances, que incluem,<br />
Skempton e Michael Parsons, a entre outros, os nomes <strong>de</strong><br />
Scratch Orchestra. Car<strong>de</strong>w Christian Wolff, Tania Chen,<br />
voltou-se então para um Keith Rowe, Marcus<br />
projecto político <strong>de</strong> cariz Schmickler, Piotr Kurek,<br />
marxista-maoísta, em que a Rhys Chatam, Nina Canal,<br />
música participava do objectivo John Tilbury e Terre<br />
<strong>de</strong> libertação do povo,<br />
Thaemlitz.<br />
inspirando-se, para o efeito, na<br />
tradição popular inglesa e<br />
criando temas que ostentavam<br />
Imperdível.<br />
consequências: Scorsese e<br />
Von Trier po<strong>de</strong>rão vir a fazer,<br />
Quando Von Trier<br />
encontra Scorsese...<br />
juntos, <strong>uma</strong> série semi-documental,<br />
no género <strong>de</strong> “The Five<br />
Obstructions” (que abriu o Curtas<br />
Vila do Con<strong>de</strong> em 2004), filme que<br />
Aconteceu no último Festival <strong>de</strong> Jørgen Leth realizou segundo um<br />
Berlim: Martin n Scorsese, 67 anos,<br />
“receituário” do autor <strong>de</strong><br />
apresentava “Shutter Shutter Island”;<br />
“Dogville”. Mas, até<br />
que essa<br />
Lars von Trier, r, 53 anos,<br />
série seja concretizada,<br />
concreti<br />
tratava <strong>de</strong> assegurar egurar futuro<br />
sabe-se sabe-se que Scors Scorsese tem<br />
comercial para ra o filme que<br />
um u<strong>uma</strong> a agenda rech recheada. O<br />
irá rodar já a partir <strong>de</strong> Junho<br />
seu próximo film filme começa<br />
na Suécia, “Melancholia” elancholia” (<strong>de</strong><br />
a ser rodado já em e Maio,<br />
novo com Charlotte arlotte<br />
terá como título<br />
“The<br />
Gainsbourg, a protagonista <strong>de</strong><br />
Invention of Hug Hugo Cabret”,<br />
“Anti-Cristo”, num papel<br />
e será <strong>uma</strong> expe experiência<br />
inicialmente escrito para<br />
nova na ca carreira <strong>de</strong><br />
Penélope Cruz). z). Diz o<br />
Marty:<br />
<strong>uma</strong><br />
jornal “El País” s” que<br />
aventura aven<br />
o realizador<br />
<strong>de</strong>stinada <strong>de</strong> d ao<br />
dinamarquês se<br />
<strong>de</strong>slocou<br />
também a<br />
Berlim para<br />
conhecer<br />
Von Trier po<strong>de</strong>rá “dirigir”<br />
Marty tal como dirigiu<br />
o veterano Jørgen Leth em<br />
“The Five Obstructions”<br />
público pú mais<br />
jovem jo e/ou<br />
à criança<br />
que q<br />
permanece p<br />
pessoalmente e<br />
em cada um<br />
Scorsese, que<br />
<strong>de</strong> nós.<br />
admira<br />
“Silence” “Sil e<br />
incondicional-<br />
“The “Th<br />
mente há muito. ito.<br />
Irishman” Irishm são<br />
O encontro<br />
outros títulos em<br />
aconteceu, e talvez haja<br />
fila <strong>de</strong> espera. e
AGENDA CULTURAL FNAC<br />
entrada livre<br />
LANÇAMENTO<br />
O PRAZER DA LEITURA<br />
Por ocasião do Dia Mundial do Livro, a Fnac apresenta <strong>uma</strong> nova edição <strong>de</strong> O Prazer da Leitura com contos<br />
inéditos <strong>de</strong> Gonçalo M. Tavares, João Tordo, Maria do Rosário Pedreira, Miguel Real e Patrícia Portela,<br />
ilustrados por António Jorge Gonçalves.<br />
23.04. 17H00 FNAC CHIADO<br />
23.04. 18H00 FNAC STA. CATARINA<br />
23.04. 18H30 FNAC COLOMBO<br />
LANÇAMENTO<br />
ESCREVER, ESCREVER, VIVER<br />
Documentário sobre António Lobo Antunes<br />
A entrega do prémio <strong>de</strong> literatura da Feira Internacional do Livro em Guadalajara, México, é o ponto <strong>de</strong><br />
partida para <strong>uma</strong> passagem em revista da vida e obra do escritor. Apresentação por Pedro Borges, com<br />
a presença <strong>de</strong> Solveig Nordlund, Maria da Pieda<strong>de</strong> Ferreira e António Lobo Antunes.<br />
23.04. 19H00 FNAC CHIADO<br />
APRESENTAÇÃO<br />
CONVERSA COM OS MÃO MORTA<br />
Pesa<strong>de</strong>lo em Peluche<br />
A celebrar 25 anos <strong>de</strong> carreira, os Mão Morta editam o seu novo álbum <strong>de</strong> originais e vêm à Fnac para<br />
<strong>uma</strong> conversa com o público.<br />
19.04. 18H30 FNAC CHIADO<br />
19.04. 21H30 FNAC COLOMBO<br />
AO VIVO<br />
OS GOLPES<br />
Cruz Vermelha Sobre Fundo Branco<br />
Os Golpes são <strong>uma</strong> banda <strong>de</strong> rock português e vêm à Fnac apresentar o seu primeiro disco.<br />
21.04. 21H30 FNAC COLOMBO<br />
EXPOSIÇÃO<br />
UMA FOTO DE CADA VEZ<br />
Fotografias <strong>de</strong> Gonçalo Cadilhe<br />
Gonçalo Cadilhe fotografa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que iniciou a sua carreira <strong>de</strong> viajante, há quase vinte anos, mas sempre<br />
canalizou a sua energia para a produção literária. No entanto, a pequena selecção <strong>de</strong> fotografias aqui<br />
reunida não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> piscar o olho à sua produção literária.<br />
17.04. - 12.05.2010 FNAC COLOMBO<br />
Consulte a agenda cultural Fnac em<br />
Apoio:<br />
23.04. 22H00 FNAC BRAGA PARQUE<br />
24.04. 17H00 FNAC NORTESHOPPING<br />
APRESENTAÇÃO AO VIVO LANÇAMENTO EXPOSIÇÃO
ROBERT MICHAEL/ AFP<br />
Franz Biberkopf per<strong>de</strong>u<br />
o coração em Berlim, a Gran<strong>de</strong><br />
Puta. E o leitor, ainda tem o seu<br />
intacto? “Berlim Alexan<strong>de</strong>rplatz”,<br />
o romance <strong>de</strong> Alfred Döblin, agora<br />
reeditado em nova tradução, é a história<br />
<strong>de</strong> <strong>uma</strong> cida<strong>de</strong> à volta <strong>de</strong> um homem, ou<br />
<strong>de</strong> um homem nas entranhas <strong>de</strong> <strong>uma</strong> cida<strong>de</strong>.<br />
O <strong>de</strong>semprego dispara, a bolsa afunda, a extremadireita<br />
marcha. Tchingtárátá bumtárátá bum.<br />
Prà guerra vamos. Alexandra Lucas Coelho<br />
A via dolorosa <strong>de</strong><br />
6 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon
e Berlim<br />
Capa<br />
Alfred Döblin<br />
(aqui<br />
retratado pelo<br />
seu contem<br />
porâneo<br />
Ernst Ludwig<br />
Kirchner)<br />
é o fi lho <strong>de</strong><br />
um mercador<br />
ju<strong>de</strong>u, do qual<br />
herda o nariz<br />
em gancho<br />
1. O fim é só o princípio<br />
Vamos contar já o fim, mas não fujam,<br />
leitores, porque o fim é só o princípio:<br />
“Berlim Alexan<strong>de</strong>rplatz” relata o que<br />
se passou em Berlim com “um tal<br />
Franz Biberkopf” que sai da prisão,<br />
quer ser “um homem <strong>de</strong>cente” e “acaba<br />
por ser liquidado”. Logo à primeira<br />
<strong>de</strong> 591 páginas, tomai e comei, este<br />
será o corpo <strong>de</strong>le.<br />
Sabemos assim, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo, que se<br />
vai dar cabo <strong>de</strong> um homem. Mas isso<br />
é o que sempre sabemos que a vida<br />
faz, a questão é como. E é para isso<br />
que o livro cá está, neste ano <strong>de</strong> 1928:<br />
construir, construir, como o metropolitano<br />
na Alexan<strong>de</strong>rplatz, a que os<br />
berlinenses chamam Alex, como Berlim,<br />
toda ela, corpo em ebulição até<br />
às tripas.<br />
Pois não falou o autor num “estilo<br />
cinematográfico”, em que o narrador<br />
<strong>de</strong>ve construir mais do que narrar?<br />
Construir como um <strong>de</strong>us bipolar:<br />
construir a <strong>de</strong>struição.<br />
Então, aqui ten<strong>de</strong>s Franz Biberkopf,<br />
à letra algo como Chico Cabeça <strong>de</strong><br />
Castor, que foi “trabalhador dos cimentos<br />
e mais tar<strong>de</strong> do transporte <strong>de</strong><br />
mobílias, um homem ru<strong>de</strong>, gran<strong>de</strong> e<br />
disforme, <strong>de</strong> aspecto repugnante”,<br />
“quase cem quilos” <strong>de</strong> peso, “forte<br />
como <strong>uma</strong> jibóia”.<br />
Não é mau tipo, mas em fúria não<br />
vê nada. Matou a garina à pancada,<br />
quatro anos <strong>de</strong> choldra, e agora quer<br />
isso, ser <strong>de</strong>cente. E portanto mete-se<br />
num eléctrico, e a vida na terra vai<br />
começar, carris, asfalto, “prédios horríveis,<br />
as pessoas como formigas, os<br />
telhados vacilantes”.<br />
Berlim é gran<strong>de</strong>, “on<strong>de</strong> vivem mil,<br />
vive mais um”, on<strong>de</strong> era a natureza é<br />
agora a cida<strong>de</strong>, vum, vum,<br />
vummmmmmmmm, neste ano da<br />
graça <strong>de</strong> 1928. A Alemanha levou <strong>uma</strong><br />
coça na guerra, e pagou com terra,<br />
para apren<strong>de</strong>r. A esquerda julga que<br />
o inimigo está à esquerda, e entretanto<br />
a extrema-direita marcha, o <strong>de</strong>semprego<br />
dispara, a bolsa afunda.<br />
A bolsa ou a vida, o que é que julgam?,<br />
é difícil, a vidinha, sobretudo<br />
quando somos uns cabeças <strong>de</strong> castor<br />
vindos do nada. Qual Kafka, Musil,<br />
Mann, qual “bildungsroman” burguês,<br />
salões, castelos, sanatórios!<br />
Franz é o gajo que agora ven<strong>de</strong> jornais<br />
na Alex para ganhar uns tustos para<br />
o bagaço. E que jornais? O “Völkischer<br />
Beobachter” dos nacionais-socialistas,<br />
os cruz-suásticos. Não que Franz<br />
tenha algo contra os ju<strong>de</strong>us, “mas é<br />
pela or<strong>de</strong>m”, ou seja, não sabe nem<br />
quer saber.<br />
Venham o metro, o matadouro, o<br />
trânsito, o futuro, Berlim! Ardinas,<br />
taberneiros, operários, anarquistas,<br />
chuis, chulos, vadios, morfinómanos,<br />
travestis, mulheres que se matam <strong>de</strong>ixando<br />
filhos, mulheres que se matam<br />
BURSTEIN COLLECTION/ CORBIS<br />
“Não há outros<br />
romances <strong>de</strong>ste tipo.<br />
Kafka, Hesse, Mann,<br />
são outro universo,<br />
não têm nada<br />
a ver com esta<br />
mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. ‘Berlim<br />
Alexan<strong>de</strong>rplatz’<br />
é um livro solitário<br />
na sua época”<br />
João Barrento<br />
pelos filhos. “As pessoas fazem o que<br />
po<strong>de</strong>m. Têm crianças em casa, bocas<br />
esfomeadas, bicos <strong>de</strong> passarinho,<br />
clap, abre, clap, fecha, clap, abre,<br />
clap, fecha, abre, fecha, abre, fecha,<br />
abre, fecha.”<br />
Berlim, essa puta, a Gran<strong>de</strong> Puta<br />
da Babilónia, à espera que se faça sangue.<br />
2. Alfred Döblin (1878-1957)<br />
E que sabe disso o autor? Pois, muito.<br />
Tanto que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muita fantasia,<br />
<strong>de</strong> escrever sobre a China do século<br />
XVIII e sobre a Índia, olha à sua volta<br />
e o futuro está mesmo ali, proletário<br />
e ruidoso: o Leste <strong>de</strong> Berlim, Alexan<strong>de</strong>rplatz.<br />
Filho <strong>de</strong> um mercador ju<strong>de</strong>u, Alfred<br />
Döblin vive nessa Berlim <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
os <strong>de</strong>z anos. Foi lá que estudou Medicina,<br />
e <strong>de</strong>pois trabalhou como médico<br />
e psiquiatra, lendo a cida<strong>de</strong> em<br />
cada homem, sucos e ácidos, química<br />
e orgânica.<br />
Quantos Franz Biberkopf vindos do<br />
nada? Quantos Reinhold com <strong>uma</strong><br />
bigorna no peito, prontos a esmagar<br />
Biberkopfs? Quantas Miezes, anjos<br />
azuis pálidos <strong>de</strong> mais, dispostas a tudo<br />
pelo seu homem?<br />
E Döblin vai à guerra como médico,<br />
sem nunca <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> escrever, e mantém-se<br />
socialista quando a social-<strong>de</strong>mocracia<br />
alemã entra em crise, entre<br />
as guerras, nesse tempo que ficou conhecido<br />
como República <strong>de</strong> Weimar.<br />
É o tempo <strong>de</strong> “Berlim Alexan<strong>de</strong>rplatz”,<br />
publicado em 1929, tem Döblin<br />
51 anos.<br />
Hitler já mexe e em 1933 chega ao<br />
po<strong>de</strong>r. “Berlim Alexan<strong>de</strong>rplatz” é então<br />
queimado como “literatura <strong>de</strong><br />
asfalto” e “arte <strong>de</strong>generada”. Döblin<br />
exila-se em França on<strong>de</strong> escreve sobre<br />
o massacre das civilizações précolombianas.<br />
Quando os nazis chegam<br />
a França, escapa até <strong>Lisboa</strong>, que<br />
à chegada lhe parece o paraíso: “E<br />
Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 7
assim me vi encaminhado para o<br />
escaldante Portugal, um mundo rico<br />
em cor, meridional, pacífico. Des<strong>de</strong><br />
logo dissemos: Portugal é um país<br />
maravilhoso.” Uma miragem que dá<br />
a muitos, como regista Irene Pimentel<br />
no livro “Ju<strong>de</strong>us em Portugal Durante<br />
a II Guerra Mundial”, mas não tira<br />
luci<strong>de</strong>z nem humor a Döblin. Sim, o<br />
paraíso, mas, olhando melhor, roto:<br />
“Com o carro em movimento, garotos<br />
da rua saltam-lhe para cima. Pés <strong>de</strong>scalços,<br />
calças e casacos esfarrapados,<br />
ardinas. N<strong>uma</strong> das colinas po<strong>de</strong> ver-se<br />
a original estátua a um <strong>de</strong>sses rapazes.<br />
E merecem um monumento —<br />
talvez um dia lhes pu<strong>de</strong>ssem comprar<br />
também casaco e calças.” Já as varinas,<br />
andam <strong>de</strong>scalças, num odor a<br />
peixe, entre ven<strong>de</strong>dores ambulantes<br />
<strong>de</strong> frutas e legumes. Entretanto, po<strong>de</strong><br />
comprar-se tanto o “France-Soir”, a<br />
favor <strong>de</strong> Vichy, como o “France”,<br />
apoiante <strong>de</strong> De Gaulle.<br />
Mas quando arranja barco, lá vai<br />
Döblin, para Hollywood, para a MGM.<br />
E é no ano seguinte, 1941, que este<br />
filho <strong>de</strong> ju<strong>de</strong>u com o seu nariz em<br />
gancho se converte ao catolicismo.<br />
Além dos mitos mesopotâmicos e<br />
gregos,“Berlim Alexan<strong>de</strong>rplatz” está<br />
cheio <strong>de</strong> Velho Testamento, do Génesis,<br />
do Eclesiastes, dos Profetas, do<br />
Livro <strong>de</strong> Job. Mas não será já Franz<br />
mais do que o carneiro <strong>de</strong> Abraão,<br />
<strong>uma</strong> antecipação <strong>de</strong> Cristo?<br />
Certo é que terminada a II Guerra,<br />
Döblin continua a ser um homem da<br />
Europa. Volta, tenta viver em Ba<strong>de</strong>n-<br />
Ba<strong>de</strong>n e escreve. Desiste da Alemanha,<br />
vai para França e continua a<br />
escrever. Publica <strong>uma</strong> trilogia sobre<br />
o fracasso da revolução alemã <strong>de</strong>pois<br />
da I Guerra. Em 1956 adoece com Parkinson.<br />
No ano seguinte morre.<br />
3. O romance-cida<strong>de</strong><br />
Quando Döblin publicou “Berlim Alexan<strong>de</strong>rplatz”,<br />
já James Joyce tinha<br />
publicado a sua Dublin (“Ulisses”,<br />
1922) e John dos Passos tinha publicado<br />
a sua Nova Iorque (“Manhattan<br />
Transfer”, 1925).<br />
Mestres, influências, sobretudo<br />
Joyce? Döblin respon<strong>de</strong>u sempre que<br />
nem conhecia Joyce quando escreveu<br />
o primeiro quarto do livro. Depois<br />
conheceu e foi um sopro para as suas<br />
velas. Mas: “Não preciso <strong>de</strong> imitar<br />
seja quem for. A língua viva que me<br />
envolve basta-me, e o meu passado<br />
fornece-me todo o material imaginável.”<br />
O seu caldo artístico era o das vanguardas<br />
alemãs, o da montagem no<br />
cinema, o do expressionismo. E o seu<br />
temperamento era o <strong>de</strong> um insatisfeito,<br />
sempre à procura do mo<strong>de</strong>rno,<br />
aquilo que <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> o ser no momento<br />
em que é.<br />
Nesse fim dos anos 20, Döblin olha<br />
em volta e vê Berlim a fazer-se. Som,<br />
imagens, movimento, plano geral,<br />
plano <strong>de</strong> pormenor, cruzamento, justaposição.<br />
E tudo isto será matéria para a sua<br />
mesa <strong>de</strong> montagem: “travellings” e<br />
onomatopeias, <strong>de</strong>scrições médicas e<br />
8 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />
intimações legais, percursos <strong>de</strong> eléctricos<br />
e secções <strong>de</strong> firmas, listas científicas<br />
e símbolos municipais, agra<strong>de</strong>cimentos<br />
fúnebres e cartas <strong>de</strong> suicídio,<br />
canções patrióticas e fórmulas<br />
matemáticas, evocações da tragédia<br />
grega e slogans publicitários, autópsias<br />
<strong>de</strong> matadouro e volume <strong>de</strong> vendas,<br />
notícias do mundo e relatos <strong>de</strong><br />
<strong>uma</strong> digestão, faits-divers e elenco<br />
annual dos mortos — e ainda vos vou<br />
dar o estado do tempo, diz o narrador<br />
na primeira pessoa, atirando-nos para<br />
trás com aquele murro brechtiano.<br />
O que é que pensam, que estão<br />
<strong>de</strong>ntro da historieta, pá?<br />
“O princípio estilístico <strong>de</strong>ste livro<br />
é a montagem”, escreveu Walter Benjamin.<br />
“O princípio da montagem faz<br />
explodir a forma e o estilo do romance,<br />
e abre novas e épicas possibilida<strong>de</strong>.<br />
O material da montagem não é<br />
arbitrário. A montagem verda<strong>de</strong>ira<br />
baseia-se no documento. Na sua batalha<br />
fanática contra o trabalho artístico,<br />
o dadaísmo fez uso <strong>de</strong>la para se<br />
aliar à vida diária. Pela primeira vez,<br />
embora <strong>de</strong> forma experimental, proclamou<br />
a soberania do autêntico. Nos<br />
seus melhores momentos, o cinema<br />
preparou-nos para isso.”<br />
É a concepção do romance como<br />
nova forma <strong>de</strong> épico. Döblin queria<br />
construir Berlim não como Zola ou<br />
Flaubert teriam feito, mas <strong>de</strong>ixando<br />
para trás o século XIX.<br />
A propósito <strong>de</strong> Flaubert, Benjamin<br />
disse que “Berlim Alexan<strong>de</strong>rplatz”<br />
era a educação sentimental do pequeno<br />
patife: “A mais extrema, entontecedora,<br />
última e mais avançada encarnação<br />
do velho romance <strong>de</strong> formação<br />
burguês”.<br />
Tão entontecedora que on<strong>de</strong>-éque-eles-andam,<br />
os cultos, enigmáticos<br />
heróis da gran<strong>de</strong> literatura <strong>de</strong><br />
língua alemã.<br />
“Não há outros romances <strong>de</strong>ste tipo”,<br />
diz o germanista João Barrento.<br />
“Kafka, Herman Hesse, Thomas<br />
Mann, são outro universo, não têm<br />
nada a ver com esta mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.<br />
‘Berlim Alexan<strong>de</strong>rplatz’ é um livro<br />
solitário na sua época. Só <strong>de</strong>pois da<br />
II Guerra haverá alguns romances<br />
com este sopro épico. O Musil dá um<br />
apontamento <strong>de</strong>ste tipo sobre Viena<br />
logo no início <strong>de</strong> ‘Um Homem Sem<br />
Qualida<strong>de</strong>s’, mas a Viena <strong>de</strong> Musil é<br />
a <strong>de</strong> antes da I Guerra.”<br />
É ainda o século XIX.<br />
“Na I Guerra, Döblin era um expressionista.<br />
É com este livro que<br />
muda, e o livro aparece porque Berlim<br />
nos anos 20 se transforma <strong>de</strong> aglomerado<br />
<strong>de</strong> al<strong>de</strong>ias n<strong>uma</strong> gran<strong>de</strong> metrópole.<br />
Há ali um lado convulsivo<br />
que está na arte, na literatura, na história.<br />
E o que Döblin faz é transferir<br />
para Biberkopf, como um filtro, os<br />
reflexos <strong>de</strong> Berlim. É a gran<strong>de</strong> explosão<br />
da metáfora com um forte traço<br />
<strong>de</strong> inspiração americana que ele não<br />
renegava, ao contrário <strong>de</strong> outros. Döblin<br />
aceita essa experiência, a realida<strong>de</strong><br />
das novas cida<strong>de</strong>s. Mas sem ver<br />
nisso, ao contrário dos futuristas, a<br />
A fome<br />
epidémica<br />
dos anos 30,<br />
pouco antes<br />
da subida<br />
ao po<strong>de</strong>r do<br />
nacionalsocialismo,<br />
e<br />
Hitler, fi gura<br />
maior do que<br />
todo o século<br />
XX alemão<br />
(e, ainda hoje,<br />
o fantasma<br />
resi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong><br />
Berlim)<br />
máquina do fascismo.”<br />
Pelo contrário, será o genuíno antifascista,<br />
e voltado para as “pequenas<br />
pessoas”, a este ponto: “O Biberkopf,<br />
quando muito, é herói <strong>de</strong> um romance<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>formação, e não <strong>de</strong> formação,<br />
<strong>de</strong> que Thomas Mann é o gran<strong>de</strong><br />
exemplo. E também não é o herói<br />
problemático, enigmático <strong>de</strong> Kafka,<br />
que se move em mundos que nos escapam.<br />
Aqui, o mundo é completamente<br />
i<strong>de</strong>ntificável.”<br />
4. A ascensão do alto mal<br />
Vamos lá a ele, esse mundo, Alemanha,<br />
anos 20.<br />
“Não se enten<strong>de</strong> sem o modo como<br />
os alemães viveram a <strong>de</strong>rrota na I<br />
Guerra”, diz João Barrento. “A I Guerra<br />
leva a um estilhaçamento da social<strong>de</strong>mocracia,<br />
e Berlim transforma-se<br />
no microcosmos que reflecte todo o<br />
espaço alemão. Há um extremar <strong>de</strong><br />
posições que leva a confrontos entre<br />
o partido comunista e o nacionalsocialismo,<br />
com um claro enfraquecimento<br />
do meio, da social-<strong>de</strong>mocracia.<br />
O PC tinha alg<strong>uma</strong> implantação,<br />
não a suficiente, e com posições próximas<br />
do estalinismo. O que possibilita<br />
a <strong>de</strong>scrença na <strong>de</strong>mocracia e a<br />
perfeita ascensão do nazismo, que em<br />
1927-28 consegue um gran<strong>de</strong> número<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>putados, em aliança com os conservadores<br />
nacionalistas.”<br />
Ascensão essa, como sempre, impulsionada<br />
pela crise económica.<br />
“Logo em 1923, quando Hitler faz a<br />
primeira tentativa <strong>de</strong> golpe, a inflação<br />
já é altíssima. Depois, com planos<br />
americanos e ingleses estabiliza, mas<br />
em 27-28 volta a disparar. E há dois<br />
ou três milhões <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempregados.”<br />
Cá estão eles, em “Berlim Alexan<strong>de</strong>rplatz”.<br />
E os cruz-suásticos a marchar<br />
por trás, e Franz a ven<strong>de</strong>r os<br />
jornais <strong>de</strong>les, sem ver on<strong>de</strong> põe os<br />
pés, sem ver o que aí vem.<br />
“O ressentimento alemão com a<br />
<strong>de</strong>rrota na I Guerra vem ao <strong>de</strong> cima<br />
nos anos 20. O Tratado <strong>de</strong> Versalhes<br />
foi sentido como <strong>uma</strong> punhalada nas<br />
costas que levou territórios alemães<br />
a passarem para França e ao pagamento<br />
<strong>de</strong> reparações <strong>de</strong> guerra. Esse<br />
ressentimento não passou, e foi um<br />
facto no inconsciente colectivo.”<br />
Volta-se então o colectivo contra os<br />
ju<strong>de</strong>us, gran<strong>de</strong>s ou pequenos, prepon<strong>de</strong>rantes<br />
na finança ou só a contar<br />
dinheirinho, que também estão em<br />
“Berlim Alexan<strong>de</strong>rplatz”. À saída da<br />
ca<strong>de</strong>ia, Franz é ajudado por ju<strong>de</strong>us,<br />
mas quando volta para os visitar aí<br />
estão eles, a contar o dinheirinho.<br />
Não são homens, são caricaturas, menos<br />
que homens.<br />
Está tudo maduro, tudo pronto prà<br />
guerra.<br />
5. Franz alfacinha<br />
Mas que vêm a ser estas contracções,<br />
este linguajar <strong>de</strong> varinas e garinas, e<br />
afinfem-lhe uns chulos do Cais do Sodré?<br />
Pois é trabalho <strong>de</strong> tradutor, neste<br />
caso, tradutoras, duas irmãs. O convite<br />
foi feito há 18 anos pela Dom Quixote<br />
a Teresa Seruya, germanista da<br />
Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>. E como<br />
se tratava <strong>de</strong> algo muito longo, ela<br />
convidou a irmã, Sara Seruya, tradutora<br />
literária profissional, para trabalharem<br />
juntas. Demoraram “um ano<br />
e tal”. Teresa traduzia primeiro, <strong>de</strong>pois<br />
corrigiam as duas.<br />
Como é que se traduz este berlinês<br />
popular?<br />
“Não há equivalente entre dialectos”,<br />
explica Teresa Seruya. “ Um dialecto<br />
é intraduzível. Mas o que é que<br />
podia ser equivalente àquele dialecto<br />
berlinense citadino? Achámos que<br />
BETTMANN/CORBIS
GETTY IMAGES<br />
A Alexan<strong>de</strong>rplatz nesses anos 20 da República <strong>de</strong> Weimar e do progresso técnico<br />
em que a cida<strong>de</strong> construiu, construiu, construiu, euforicamente<br />
“Há muitos tipos<br />
assim hoje em dia,<br />
pequenas pessoas,<br />
vítimas das<br />
circunstâncias,<br />
sem <strong>de</strong>fesas perante<br />
a gran<strong>de</strong> cida<strong>de</strong>.<br />
Franz Biberkopf<br />
não pertence a nada<br />
nem a ninguém”<br />
Teresa Seruya<br />
“Berlim Alexan<strong>de</strong>rplatz”<br />
tem a sua primeira edição<br />
alemã em 1929, tem Döblin 51<br />
anos: ao fundo, Hitler já mexe<br />
seria um linguajar muito popular <strong>de</strong><br />
<strong>Lisboa</strong>.”<br />
A começar por centenas <strong>de</strong> contracções:<br />
qu’eu, d’andar, pr’ele,<br />
co’os.<br />
“Quando veio a revisão das primeiras<br />
provas fiquei sem pinta <strong>de</strong> sangue.<br />
Tinham corrigido tudo, tudo. Foi um<br />
momento <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> aflição. Estávamos<br />
conscientes <strong>de</strong> que íamos chocar<br />
com <strong>uma</strong> tradição das traduções em<br />
Portugal, <strong>de</strong> pôr tudo em bom português,<br />
mas conseguimos levar a nossa<br />
avante.”<br />
E como se meteram naquela pele,<br />
naquele dialecto? “Foi muito difícil.<br />
Houve, não direi trabalho <strong>de</strong> campo,<br />
mas treino do ouvido com atenção à<br />
forma como as pessoas falam. Essa<br />
parte <strong>de</strong> recriação <strong>de</strong> um tom <strong>de</strong>ve<br />
muito à minha irnã Sara. Ela tem <strong>uma</strong><br />
gran<strong>de</strong> queda, um ouvido muito apurado.”<br />
Ainda assim, as traduções envelhecem<br />
e aqui trata-se <strong>de</strong> <strong>uma</strong> reedição.<br />
“Lamentamos não termos sido consultadas<br />
para saber se queríamos rever<br />
a tradução”, diz Teresa Seruya.<br />
Posto isto, que memória tem esta<br />
tradutora, também autora do prefácio,<br />
do tal Franz com quem passou<br />
um ano há 18 anos?<br />
“No fundo é um pobre diabo, sem<br />
nenhum lastro cultural ou h<strong>uma</strong>no,<br />
que não se sabe <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vem. Um<br />
<strong>de</strong>senraizado, <strong>uma</strong> pessoa até boa,<br />
tanto que é vítima da sua atracção<br />
pelo Reinhold, esperto e mau. Em<br />
Franz Biberkopf, a noção <strong>de</strong> bem e<br />
mal não está feita. É um homem-puro<br />
instinto.”<br />
E produto da gran<strong>de</strong> cida<strong>de</strong>. “Um<br />
homem daqueles não podia <strong>de</strong>senvolver-se<br />
n<strong>uma</strong> al<strong>de</strong>ia. O anonimato,<br />
a falta <strong>de</strong> condições <strong>de</strong> habitação, <strong>de</strong><br />
relações duradouras, tudo isto faz<br />
<strong>de</strong>le um ser sem elos. Ele é quase<br />
amoral, vai sobrevivendo conforme<br />
as circunstâncias. É <strong>uma</strong> pessoa só<br />
reactiva, e portanto presa fácil daquelas<br />
forças que agem sobre ele, e que<br />
vão também ao encontro dos seus<br />
<strong>de</strong>mónios interiores, aquele mal que<br />
o levou a matar.”<br />
Teresa Seruya teve <strong>uma</strong> empatia<br />
com ele. “Há muitos tipos assim hoje<br />
em dia, pequenas pessoas, vítimas<br />
das circunstâncias, fracos e frágeis,<br />
sem <strong>de</strong>fesas perante a gran<strong>de</strong> cida<strong>de</strong>.<br />
A gran<strong>de</strong> cida<strong>de</strong> é o ambiente que<br />
proporciona esse tipo <strong>de</strong> experiência,<br />
<strong>de</strong> vida sem ligações, sem pertenças.<br />
Franz Biberkopf não pertence a nada<br />
nem a ninguém.”<br />
6. O sacrifício<br />
Até pertencer a Mieze.<br />
Sim, Franz, aquele cabeça <strong>de</strong> castor,<br />
não pertence a ninguém até pertencer<br />
a Mieze, anjo azul pálido, mas<br />
disposta a tudo para cuidar <strong>de</strong>le.<br />
E aqui, leitores, quem atira a primeira<br />
pedra? Chegados que somos a<br />
mais <strong>de</strong> 300 páginas, também disto<br />
se faz a vidinha, sim, senhor. Ou pertencem<br />
os leitores “àqueles que não<br />
per<strong>de</strong>m o coração em parte nenh<strong>uma</strong>,<br />
antes o guardam para si, o con-<br />
servam limpo e mumificam?”<br />
Pensem nisso.<br />
Franz, o madraço, per<strong>de</strong>u o<br />
coração quando já tinha perdido<br />
um braço. Cenas <strong>de</strong> filme<br />
negro, fuga <strong>de</strong> carro e borda fora.<br />
Lá está ele, aleijado, maneta,<br />
a emborcar bagaço, e entra Mieze<br />
que nem um passarinho, nem 20<br />
anos, apanhada na rusga dos chuis.<br />
Pois faz <strong>de</strong> Franz seu. Arranja um encosto,<br />
ele fica <strong>de</strong> chulo, nem <strong>de</strong>ixa<br />
que trabalhe, é o homem <strong>de</strong>la, o qu’é<br />
que pensam?<br />
Mas puta, Gran<strong>de</strong> Puta, é Berlim.<br />
E como no matadouro, quando a faca<br />
entra no touro, “o abdómen volta-se<br />
pesadamente, tomba para o lado”. E<br />
o narrador escreve: “É a Terra, a força<br />
da gravida<strong>de</strong>.” E sobre a Terra, as<br />
águas, “lúgubres sois, ó águas negras,<br />
águas terrivelmente calmas”.<br />
Babilónia espera o que é seu.<br />
Franz é o que é, mas não é bufo<br />
nem cobar<strong>de</strong>. Volta ao bando <strong>de</strong> mânfios,<br />
vai pôr a cabeça na bigorna <strong>de</strong><br />
Reinhold, o Mal. Quer provar ao<br />
forte que não é fraco, essa <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira<br />
fraqueza. E não olhem agora,<br />
mas vão ver o que é um coração<br />
espatifado.<br />
A mão do Senhor <strong>de</strong>teve<br />
Abraão quando ia sacrificar<br />
o seu filho Isaac. Se Abraão<br />
estava disposto a matar o<br />
próprio filho, era obediente<br />
o bastante. Eis o mito<br />
fundador <strong>de</strong> quantos-milhões-sobre-a-terra.<br />
Qual é, então, “o tema<br />
mais fundo” <strong>de</strong> “Berlim<br />
Alexan<strong>de</strong>rplatz”, segundo<br />
Döblin? “O sacrifício<br />
é o caminho, oferecer-se<br />
a própria pessoa em sacrifício.”<br />
Falam anjos, prédios<br />
e até aves que foram<br />
mânfios. Falam os mortos,<br />
como um <strong>de</strong>sfile diante<br />
<strong>de</strong> Franz. Quanto não sofreu<br />
Job sem saber porquê. Deus<br />
pune os maus, mas também<br />
os bons, em que ficamos?<br />
Sai a Morte. Vivo, mas escangalhado,<br />
fica o novo<br />
Franz, Franz Karl, o Ressurrecto.<br />
Arranjam-lhe um emprego<br />
<strong>de</strong> porteiro. Vai trabalhar,<br />
o ex-malandro.<br />
Escreve o narrador: “Deixa<br />
a vociferação e o sol<br />
te entrará no coração.”<br />
E mais: “Um homem<br />
não po<strong>de</strong> existir sem<br />
outros.” Quando os<br />
soldados marcham<br />
“ó-ai porquê, ó-ai<br />
porque sim, ó-ai só<br />
p’lo tchingtárátá bumtárátá<br />
bum”, prà<br />
guerra vamos. A<br />
guerra faz-se <strong>de</strong><br />
muitos homens,<br />
olé.<br />
E foi o que se<br />
viu.<br />
AFP PHOTO/ FILES<br />
O<br />
monumental<br />
James Joyce<br />
e o seu<br />
monumental<br />
“Ulisses”:<br />
mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong><br />
“Berlim<br />
Alexan<strong>de</strong>r<br />
platz”?<br />
Döblin nem<br />
conhecia<br />
Joyce<br />
quando<br />
escreveu<br />
o primeiro<br />
quarto do<br />
livro<br />
AFP<br />
Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 9
Berlim,<br />
rataplão-plão-plão,<br />
sinfonia <strong>de</strong> <strong>uma</strong> capital<br />
Os eléctricos<br />
da República <strong>de</strong> Weimar,<br />
a Torre da Televisão<br />
da ex-RDA, os bares sem<br />
moral da Alemanha<br />
reunifi cada: ao longo <strong>de</strong><br />
todo o século XX,<br />
a Alexan<strong>de</strong>rplatz<br />
foi um símbolo das<br />
metamorfoses <strong>de</strong> Berlim.<br />
O escritor<br />
José Riço Direitinho<br />
atravessa agora<br />
a turbulência <strong>de</strong>sse século<br />
com Franz Biberkopf (mais<br />
a informadora polaca,<br />
o agente russo caído em<br />
<strong>de</strong>sgraça, a turba<br />
anti-semita e Fassbin<strong>de</strong>r,<br />
pela trela da Schygulla)<br />
num texto que continua,<br />
como se fosse hoje, o<br />
romance <strong>de</strong> Alfred Döblin.<br />
10 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />
Capa<br />
A. MOROZOV/ AFP
MICHAEL KAPPELER/ AFP PHOTO DDP<br />
Um teatro <strong>de</strong> robertos em Prenzlauer Berg, <strong>uma</strong> antiga tasca que está no mapa <strong>de</strong> “Berlim Alexan<strong>de</strong>rplatz”, a Karl-Marx Alle e a esquina on<strong>de</strong><br />
Biberkopf teve <strong>uma</strong> banca <strong>de</strong> jornais: o romance <strong>de</strong> Alfred Döblin também é <strong>uma</strong> cartografia <strong>de</strong> Berlim<br />
Seguiu-te até ao prédio on<strong>de</strong> moravas. Foi fácil.<br />
Depois inventou a história dos panfletos contra o regime<br />
e as conversas com os americanos, e falou com os patrões <strong>de</strong>la lá<br />
da Stasi. E eles engavetaram-te, sem mais nem ontem. Obrigações<br />
dos amanhãs que cantam! Que a malta tem <strong>de</strong> ser mantida<br />
à ré<strong>de</strong>a curta! E tu a esforçares-te para ser um tipo <strong>de</strong>cente!<br />
Este texto conta o que durante décadas<br />
se passou em Berlim com um tal<br />
Franz Karl Biberkopf [que um dia, no<br />
Inverno <strong>de</strong> 1928-29, num outro mundo,<br />
se apropriou dos documentos <strong>de</strong><br />
Franz Biberkopf – em tudo igual a ele<br />
– falecido no Hospital Psiquiátrico <strong>de</strong><br />
Buch]. Berlim é gran<strong>de</strong>. Um frio <strong>de</strong><br />
rachar, um calor <strong>de</strong> queimar. Franz<br />
Biberkopf, antigo trabalhador dos cimentos<br />
e mais tar<strong>de</strong> do transporte <strong>de</strong><br />
mobílias, também assassino, ven<strong>de</strong>dor<br />
<strong>de</strong> quinquilharia a retalho e <strong>de</strong><br />
jornais, chulo e assaltante, está bem<br />
morto. Há um novo homem, um homem<br />
novo. Rufam os tambores, trrumm<br />
trrumm trrumm, há gritos e<br />
pólvora, barulhos, júbilo. A <strong>de</strong>cência<br />
a todos pe<strong>de</strong> sacrifícios [a uns mais<br />
do que a outros, ó Franz, a ti o anjo<br />
mau tam’ém não te tirava os olhinhos<br />
<strong>de</strong> cima, pá]. Foi preciso o teu sacrifício<br />
na pira berlinense, pois então.<br />
Isaac não podia escapar mais <strong>uma</strong> vez<br />
a Abraão. Peguem fogo aos ma<strong>de</strong>iros<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> regados com petróleo <strong>de</strong><br />
alumiar! Que se acendam as fogueiras!<br />
Imolem-se as ovelhas negras e as ranhosas<br />
nas piras sacrificiais por muito<br />
que isso vos custe! Depois da Morte<br />
há <strong>uma</strong> vida nova [Aleluia! Aleluia!],<br />
e <strong>de</strong>sta vez calhou essa prenda a este<br />
novo Franz Karl Biberkopf, que é em<br />
tudo igual ao morto, como já foi dito,<br />
até na falta do braço direito. Portanto,<br />
à saú<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste homem novo. Mas seremos<br />
nós capazes <strong>de</strong> beber o cálice<br />
sem <strong>de</strong>sconfiar <strong>de</strong>le, minhas hienas?<br />
O machado é o mesmo para todos,<br />
não nos esqueçamos. Às vezes as coisas<br />
correm <strong>de</strong> outra maneira, nem<br />
sempre se consegue o que se quer.<br />
Paciência! E este também vai querer<br />
ser um homem <strong>de</strong>cente [achas que<br />
vais ser capaz, ó Franz Karl?]. Há que<br />
dar então outra vez o retrato <strong>de</strong>ssa<br />
dor, <strong>de</strong>ssa luta, parece <strong>uma</strong> coisa sem<br />
fim, este contar.<br />
Mas antes <strong>de</strong> este texto acabar, ainda<br />
se convocará também para aqui o<br />
senhor realizador Rainer Werner Fassbin<strong>de</strong>r<br />
[ou será o Franz Karl por<br />
ele?], que se apresentará <strong>uma</strong> noite<br />
no bar “A Era do Vazio” [Lipovetsky<br />
Str., Kreuzberg, Berlin, Deutschland]<br />
em versão <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte e muito berlinense,<br />
isto é, apenas trajando as suas<br />
habituais botas <strong>de</strong> cano alto, portanto<br />
nu, no pescoço <strong>uma</strong> coleira <strong>de</strong> bicos<br />
<strong>de</strong> on<strong>de</strong> pen<strong>de</strong> <strong>uma</strong> corrente<br />
comprida puxada por <strong>uma</strong> loura rechonchuda,<br />
<strong>uma</strong> tal Hanna Schygulla,<br />
[e com licença do prezado leitor] estará<br />
ele <strong>de</strong> pila na mão e toalhinha <strong>de</strong><br />
bidé [para o que <strong>de</strong>r e vier] a a<strong>de</strong>jar<br />
no braço, à garçon canhoto, portanto.<br />
Mas lá chegaremos, para tanto as musas<br />
nos inspirem.<br />
Outra vez largado ao mundo<br />
O Inverno <strong>de</strong> 1965 estava a ser um dos<br />
mais frios <strong>de</strong> que se lembrava. Os <strong>de</strong>dos<br />
roxos, encurvados, enregelados.<br />
Parecia-lhe que nunca tivera tanto<br />
frio, nem quando dormira meses ao<br />
relento como um javali entre os ar-<br />
bustos do Tiergarten, que as árvores<br />
tinham <strong>de</strong>saparecido, também ele as<br />
ajudara a cortar em troços pequenos<br />
para fazer lenha, já lá vão quase 20<br />
anos, ainda se viam muitas bombas<br />
meio enterradas que nunca chegaram<br />
a rebentar. Chovia quando lhe abriram<br />
o portão e os dois polícias o puseram<br />
cá fora. E continuou a chover.<br />
“Vai e não tornes a pecar”, pareceulhe<br />
ouvir dizer n<strong>uma</strong> voz doce, mas<br />
não me po<strong>de</strong>m ter disto isto, é a confusão<br />
na minha cabeça. Estava diante<br />
dos muros altos cinzentos <strong>de</strong> arenito<br />
da Hohenschönhausen, a prisão, o<br />
campo <strong>de</strong> trabalho, o quartel-general<br />
da Stasi, assim tudo junto, e bem murado.<br />
A roupa que agora trazia era a<br />
mesma com que entrara, a que tinha<br />
vestida quando o foram buscar às<br />
águas-furtadas com maus modos, calças<br />
finas e casaquinho leve, só a camisa<br />
o aconchegava mais, era <strong>de</strong> flanela<br />
já muito puída. Valia-lhe também<br />
a boina <strong>de</strong> couro mal tingida <strong>de</strong> preto.<br />
E agora outra vez largado para o mundo,<br />
ó Franz Karl! Berlim é gran<strong>de</strong>.<br />
Bem sei que a culpa não foi tua, <strong>de</strong>sta<br />
vez não fizeste nada, mesmo nada.<br />
Mas guardaram-te durante três anos<br />
e mais uns mesitos, muitos dos quais<br />
no “U-Boot”, no “submarino”, no isolamento<br />
daquelas celas frias <strong>de</strong>baixo<br />
do chão. E interrogavam-te e acordavam-te<br />
e batiam-te, tinhas que falar,<br />
mas eu não sabia <strong>de</strong> quê. Agora tens<br />
que esquecer. Vá, faz-te ao mundo,<br />
tem-te nas pernas, firma-te, estás um<br />
Foi por essa altura<br />
que conheceu a turca Yasmin,<br />
rechonchuda moça berlinense,<br />
e se mudou com ela para<br />
o Kreuzberg, o bairro turco,<br />
para o meio dos artistas, das<br />
lojas <strong>de</strong> falafel e shoarma,<br />
da roupinha em segunda mão,<br />
e <strong>de</strong> alguns bares mais<br />
ou menos licenciosos<br />
“Ninguém está<br />
admirado <strong>de</strong> tudo<br />
estar a correr tão<br />
em paz? Perguntem<br />
baixinho, com<br />
o cigarro <strong>de</strong>scaído<br />
ao canto da boca,<br />
mas o que é que está<br />
para acontecer nesta<br />
Berlim do Reich?<br />
Essas coisas por vezes<br />
sentem-se no ar,<br />
como vindas do fundo<br />
da terra. Com o céu<br />
e o inferno não se<br />
fazem pactos eternos”<br />
FABRIZIO BENSCH/ REUTERS<br />
bocado escangalhado da porrada e<br />
escanzelado das 14 horas <strong>de</strong> trabalho<br />
por dia, carregar pedras <strong>de</strong>scarregar<br />
pedras, abrir buracos fechar buracos,<br />
e tudo só com um braço, o esquerdo,<br />
porque a prótese é disfuncional, mas<br />
há que evitar fazer a vida mais difícil<br />
do que ela é. Agora tens que esquecer<br />
para que o veneno não te afogue a<br />
cabeça, bem sabes que isso po<strong>de</strong> ser<br />
o pior. Berlim é gran<strong>de</strong>.<br />
O <strong>de</strong>speito é sempre um curto caminho<br />
para a vingança. Foi a Lina,<br />
aquela polaca gorducha, foi ela que<br />
inventou a história que te meteu <strong>de</strong>ntro.<br />
Ao fim <strong>de</strong> tantos anos, <strong>de</strong>u-lhe<br />
para ser informadora, não custa nada,<br />
a boca que ela abre para contar da<br />
vida dos outros é a mesma que eles<br />
lhe atafulham <strong>de</strong> comida, e ainda lhe<br />
dão mais uns trocos para se embonecar.<br />
Tu não a conheces, nem ela a ti,<br />
mas ela conhecia o morto, muitas foram<br />
as noites dormidas juntos, e dias<br />
passados, e até tiveram juntos <strong>uma</strong><br />
banca <strong>de</strong> jornais na esquina da Invali<strong>de</strong>nstrasse<br />
com a Chausseestrasse,<br />
vê lá tu! Ela topou-te na estação <strong>de</strong><br />
metro da Alexan<strong>de</strong>rplatz e pensou,<br />
olha, aqui vai o meu Franz Biberkopf,<br />
o cabeça-<strong>de</strong>-castor, o bo<strong>de</strong> feio que<br />
me encornou com meia Berlim [a dor<br />
<strong>de</strong> corno leva sempre a muitos exageros,<br />
esta é <strong>uma</strong> verda<strong>de</strong> muito experimentada],<br />
e finge que não me<br />
conhece! Ela não sabe que esse morreu,<br />
o Franz, e que tu és o novo homem,<br />
o homem novo, o Franz Karl.<br />
Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 11
E do céu caíram então muitas bombas, pum pum pum, e o chão se fez fogo e o ar se fez fumo,<br />
e o chão se fez fumo e o ar se fez fogo, foi assim, ficou o mundo do avesso, tudo conforme à guerra,<br />
portanto (...). ‘E não ficará pedra sobre pedra!’, pareceu ouvir-se ainda. Havia, no entanto,<br />
ainda alg<strong>uma</strong>s fachadas <strong>de</strong> prédios, que os interiores estavam <strong>de</strong>rruídos. Foi no tempo em que havia<br />
que fazer a cama [o mesmo será dizer, enrolar o lombo sujo e purulento] entre os arbustos, como os<br />
javardos, pois então, que os tempos não estavam para h<strong>uma</strong>nos, assim parecia<br />
E seguiu-te até ao prédio on<strong>de</strong> moravas.<br />
Foi fácil. Depois inventou a história<br />
dos panfletos contra o regime e<br />
as conversas com os americanos, e<br />
falou com os patrões <strong>de</strong>la lá da Stasi.<br />
E eles engavetaram-te, sem mais nem<br />
ontem. Obrigações dos amanhãs que<br />
cantam! Que a malta tem que ser mantida<br />
à ré<strong>de</strong>a curta! E tu a esforçares-te<br />
para ser um tipo <strong>de</strong>cente! A vida é<br />
gran<strong>de</strong>. Mas Berlim é maior. Nunca<br />
<strong>de</strong>sistimos.<br />
Devagar, muito <strong>de</strong>vagar, ele põe os<br />
pés a caminho da Lan<strong>de</strong>sberger Allee.<br />
Agora tem <strong>de</strong> se meter pela cida<strong>de</strong><br />
a<strong>de</strong>ntro, não po<strong>de</strong> voltar para trás.<br />
Olha as fachadas e os telhados. Os prédios<br />
são tristes e sombrios. Ainda é<br />
manhã cedo, ele tem todo o dia pela<br />
frente. Mas não sabe para quê [nã sabes<br />
para quê, hã?]. Há poucas pessoas<br />
na rua, aqui não são como formigas,<br />
pelo menos a esta hora ainda não.<br />
Passam poucos carros. Está outra vez<br />
“livre”, que é como quem diz po<strong>de</strong><br />
mover-se por parte da cida<strong>de</strong>, que<br />
agora é “duas”. Ir até <strong>de</strong> on<strong>de</strong> avista<br />
o muro alto e ver os prédios que se<br />
levantam do outro lado, por cima do<br />
arame farpado. Ou não ir a lado nenhum,<br />
e <strong>de</strong>ixar-se ficar abrigado a<br />
emborcar cerveja. Ele vai <strong>de</strong>vagar pela<br />
Lan<strong>de</strong>sberger Allee até ao cruzamento,<br />
à esquerda [prédios cinzentos<br />
todos iguais no meio <strong>de</strong> baldios], com<br />
a Petersburger Strasse, e <strong>de</strong>pois continua<br />
por aí até à recente Frankfurter<br />
Tor [o estilo soviético lembra-nos bem<br />
a dimensão do pó que somos face a<br />
quem manda, coisa que se <strong>de</strong>ve sempre<br />
agra<strong>de</strong>cer], on<strong>de</strong> começa a comprida<br />
Karl-Marx-Allee. Arrasta-se. Os<br />
pés já vão há muito molhados, shlooop<br />
shlooop. Há um vento frio a soprar<br />
através da chuva que o repassa até os<br />
ossos [por um dia assim não esperavas<br />
tu, pá, ó Franz Karl, quando matutavas<br />
fechado no “submarino” e te<br />
parecia que lá fora era tudo Sol e passarinhos<br />
azuis a chilrear e flores pequeninas<br />
brancas e amarelas a cobrirem<br />
<strong>de</strong> alegria o mundo!].<br />
Agora está <strong>de</strong>sempregado. Lembrase<br />
disso quando sente a fome a subirlhe<br />
aos gorgomilos. Deita a língua<br />
para fora da boca para beber alg<strong>uma</strong>s<br />
gotas <strong>de</strong> chuva. Leva a mão esquerda<br />
enfiada no bolso das calças, a prótese<br />
do braço ao <strong>de</strong>penduro, a gola fina<br />
do casaco levantada, os <strong>de</strong>dos tocam<br />
<strong>uma</strong>s poucas <strong>de</strong> moedas, é tudo o que<br />
lhe sobra. Não sei como me vou amanhar!<br />
[apropriares-te do alheio está<br />
excluído, ouviste?] Amigos, disso já<br />
não <strong>de</strong>ve haver, e se ainda os houver<br />
<strong>de</strong>vem borrar-se <strong>de</strong> medo quando me<br />
virem, não lhes vá acontecer o mesmo<br />
[como diz que é o seu nome? nã, nã<br />
me lembro, está a fazer confusão, vaite<br />
embora, ó Franz Karl, <strong>de</strong>sculpa lá,<br />
tenho aqui os miúdos para criar, passa<br />
bem! E porta batida diante das ventas,<br />
pois então]. Meia dúzia <strong>de</strong> passos<br />
atrás segue-o um homem, vai este<br />
12 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />
BETTMANN/CORBIS<br />
melhor agasalhado, casacão preto<br />
comprido e gorro russo na cabeça.<br />
Os passos são também lentos, como<br />
se não quisesse diminuir a distância<br />
que separa os dois. Assim vão. Franz<br />
Karl a espiá-lo pelo canto do olho.<br />
“Kamara<strong>de</strong>, tenho <strong>uma</strong> garrafinha <strong>de</strong><br />
boa vodca e tiras <strong>de</strong> pele <strong>de</strong> salmão<br />
salgada … e também alg<strong>uma</strong>s <strong>de</strong> arenque,<br />
tudo por <strong>uma</strong>s poucas moedas!”<br />
Põem-se os dois ao lado um do outro.<br />
Fazem a troca sem pararem. Ali ao<br />
fundo é já a Alexan<strong>de</strong>rplatz, que bem<br />
se vêem as gruas. O russo evapora-se<br />
<strong>de</strong>pois num <strong>de</strong>scampado, levantou<br />
voo com as abas do casacão a a<strong>de</strong>jarem<br />
sob o cinzento céu <strong>de</strong> Berlim.<br />
Sumiu-se, como só os agentes russos<br />
caídos em <strong>de</strong>sgraça sabem fazer.<br />
Franz Karl abriga-se mais tar<strong>de</strong> num<br />
cantinho da estação dos comboios,<br />
do lado que dá para a ponte do caminho-<strong>de</strong>-ferro<br />
e <strong>de</strong> on<strong>de</strong> se avista aquele<br />
edifício avermelhado que <strong>uma</strong>s<br />
vezes faz <strong>de</strong> tribunal outra <strong>de</strong> câmara<br />
municipal. Pela primeira vez em três<br />
anos e tal sente o álcool manhoso a<br />
queimar-lhe <strong>de</strong>vagar a goela, que<br />
bom, que bom, e o sal grosso a <strong>de</strong>rreter-se-lhe<br />
<strong>de</strong>vagar sobre a língua e<br />
a colar-se-lhe ao interior das bochechas.<br />
O mundo é feito <strong>de</strong> açúcar e<br />
esterco! Como é que vais sair <strong>de</strong>sta,<br />
ó Frank Karl?<br />
«A era das ditaduras<br />
Dos teus primeiros anos em Berlim já<br />
nem te lembras bem. Melhor assim.<br />
É preciso sermos sempre capazes <strong>de</strong><br />
olhar os olhos uns dos outros sem<br />
pestanejar e com recolhimento pela<br />
dor alheia, mesmo que tenhamos sido<br />
nós a provocá-la. Para isso temos por<br />
vezes que saber esquecer. Não foram<br />
aqueles tempos edificantes para muitos<br />
homens na cida<strong>de</strong>?. E disse então<br />
o profeta [qual <strong>de</strong>les, Jeremias?]: “Salvemos<br />
Berlim! [Babilónia?]” Mas Berlim<br />
não quis ser salva. “Abandonai-a,<br />
ó vós que acreditais em tudo o que<br />
ouvis da boca dos homens, e que cada<br />
um <strong>de</strong> vós seja conduzido ao seu<br />
miserável <strong>de</strong>stino! A fuga ou o patíbulo,<br />
a vossa escolha não é gran<strong>de</strong>.”<br />
Ou que se <strong>de</strong>ixe então ficar, para ver<br />
o que aí virá. Dias apocalípticos. E do<br />
céu caíram então muitas bombas,<br />
pum pum pum, e o chão se fez fogo<br />
e o ar se fez fumo, e o chão se fez fumo<br />
e o ar se fez fogo, foi assim, ficou<br />
o mundo do avesso, tudo conforme<br />
à guerra, portanto. “Que as bombas<br />
se abatam sobre os berlinenses!”, disse<br />
ainda o profeta [Jeremias ou Franz<br />
Karl?], mas já estava muito cansado<br />
e <strong>de</strong>siludido, arrastando-se andrajoso<br />
pelo pó das ruas esburacadas da cida<strong>de</strong><br />
parecendo não dizer já coisa<br />
com coisa, ou pelo menos muita coisa<br />
não dizia ele. “E não ficará pedra<br />
sobre pedra!”, pareceu ouvir-se ainda.<br />
Havia, no entanto, ainda alg<strong>uma</strong>s<br />
fachadas <strong>de</strong> prédios, que os interiores<br />
estavam <strong>de</strong>rruídos. Mas isso foi muito<br />
tempo <strong>de</strong>pois do que agora se vai<br />
contar. Foi no tempo em que havia<br />
“Muita água correu<br />
no rio Spree. O mundo<br />
alterou-se, mudou.<br />
E agora, o que<br />
fazemos com ele?<br />
O país do Biberkopf<br />
já não existe. A União<br />
Soviética, i<strong>de</strong>m i<strong>de</strong>m<br />
aspas aspas. O muro<br />
sobre o qual o nosso<br />
homem olhava, bem<br />
<strong>de</strong> longe, não fosse<br />
alg<strong>uma</strong> bala<br />
per<strong>de</strong>r-se, foi<br />
<strong>de</strong>struído”<br />
Saiu o nosso Franz da<br />
tasca, e [foi] apanhar ar para<br />
a Oranienburger Strasse, on<strong>de</strong><br />
ficavam muitas lojas <strong>de</strong><br />
retalhistas ju<strong>de</strong>us e a sinagoga.<br />
Saía gente das ruelas brandindo<br />
paus e gritando frases contra os<br />
ju<strong>de</strong>us. Aproveita para molhar<br />
a sopa, mostrar que ainda tens<br />
braço. Assim se per<strong>de</strong> um<br />
homem que caminha sozinho<br />
com outros. Pequenas<br />
e cintilantes estrelas <strong>de</strong> David<br />
giravam-lhe sobre a cabeça<br />
que fazer a cama [o mesmo será dizer,<br />
enrolar o lombo sujo e purulento]<br />
entre os arbustos, como os javardos,<br />
pois então, que os tempos não estavam<br />
para h<strong>uma</strong>nos, assim parecia. A<br />
história tem que continuar, olhar para<br />
trás atrasa os viandantes.<br />
Franz Karl Biberkopf, à semelhança<br />
do morto, é um homem ru<strong>de</strong>, gran<strong>de</strong><br />
e quase disforme, com um aspecto<br />
que ao princípio sempre repugna<br />
uns quantos, ainda por cima com<br />
aquela prótese a que ele não se habitua<br />
e por vezes ali lhe anda ao <strong>de</strong>penduro<br />
do coto logo abaixo do ombro.<br />
Mas as pessoas <strong>de</strong>pois afeiçoam-se ao<br />
nosso homem. Há gente para tudo.<br />
Berlim é gran<strong>de</strong>.<br />
Em Novembro <strong>de</strong> 1938, era este<br />
nosso Franz Karl ajudante <strong>de</strong> porteiro<br />
e guarda n<strong>uma</strong> fábrica metalúrgica,<br />
para isso talvez tivesse ajudado o<br />
volume do seu corpanzil. [Nas horas<br />
livres foi várias vezes tentado pelo<br />
comércio <strong>de</strong> moças, mas sempre resistiu,<br />
não lhe parecia coisa <strong>de</strong> homem<br />
<strong>de</strong>cente.] À cautela, trazia ele<br />
quase sempre um bastão enfiado pela<br />
perna esquerda das calças a<strong>de</strong>ntro,<br />
que o mundo andava por esses anos<br />
muito perigoso, o <strong>de</strong>semprego e tal,<br />
e um homem nunca sabe quando tem<br />
que ajeitar o cabresto a alg<strong>uma</strong> besta<br />
tresmalhada que venha com os cornos<br />
alevantados em direcção a ele.<br />
Agora vocês vão ver o nosso Franz<br />
Karl n<strong>uma</strong> infeliz dança <strong>de</strong> São Vito<br />
enfeitada por bastão a rodar pendu-<br />
BETTMANN/CORBIS
As ruas <strong>de</strong> Berlim como Biberkopf<br />
nunca as viu: Potsdamer Platz, Alexan<strong>de</strong>rplatz<br />
e Rosenthaler Strasse<br />
rado do braço esquerdo, mas não vai<br />
estar sozinho [um homem que se andava<br />
a esforçar tanto por ser <strong>de</strong>cente,<br />
dá-lhe <strong>de</strong> repente para isto! On<strong>de</strong> é<br />
que foste buscar tanta força co’um<br />
braço só, ó Franz Karl, não me queres<br />
tu dizer?]. Vai parecer doido, que não<br />
bate bem da pinha!<br />
Ninguém está admirado <strong>de</strong> tudo<br />
estar a correr tão em paz? Perguntem<br />
baixinho, com o cigarro <strong>de</strong>scaído ao<br />
canto da boca, mas o que é que está<br />
para acontecer nesta Berlim do Reich?<br />
Estas coisas por vezes sentem-se no<br />
ar, como vindas do fundo da terra.<br />
Com o céu e o inferno não se fazem<br />
pactos eternos.<br />
Como sempre fazia ao começo da<br />
noite, apeava-se o nosso Franz Karl<br />
do eléctrico ali a meio da Alexan<strong>de</strong>rplatz.<br />
Depois entrava sempre n<strong>uma</strong><br />
tasca <strong>uma</strong>s boas <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> passos<br />
adiante, já na Münzstrasse, já a caminho<br />
<strong>de</strong> casa, para se empanturrar <strong>de</strong><br />
couve branca avinagrada e <strong>de</strong> uns fiapos<br />
<strong>de</strong> carne salgada e f<strong>uma</strong>da, ainda<br />
rosadinha; sempre o mesmo; e tudo<br />
rematado por uns bons copázios <strong>de</strong><br />
branco e um cheirinho <strong>de</strong> aguar<strong>de</strong>nte<br />
<strong>de</strong> abrunhos para temperar. Parecia<br />
aquilo um sagrado ritual. Nessa<br />
noite [Kristallnacht, a noite dos vidros]<br />
<strong>de</strong> 9 para 10 <strong>de</strong> Novembro <strong>de</strong><br />
1938, saiu o nosso Franz Karl Biberkopf<br />
da tasca, <strong>de</strong> barriga atafulhada e<br />
olhar meio toldado, e quis o <strong>de</strong>stino<br />
que ele em vez <strong>de</strong> ter continuado caminho<br />
pela Rosenthaler Strasse [co-<br />
mo sempre fazia, rumo à humil<strong>de</strong><br />
mansarda na Brunnenstrasse, vejam<br />
lá vocês o <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> um homem<br />
entregue a si próprio!], fizesse nessa<br />
malfadada noite um <strong>de</strong>svio e fosse<br />
apanhar ar para a Oranienburger<br />
Strasse, on<strong>de</strong>, como todos sabem,<br />
ficavam muitas lojas <strong>de</strong> retalhistas<br />
ju<strong>de</strong>us e a sinagoga. [A notícia da<br />
morte <strong>de</strong> um diplomata do Reich em<br />
Paris por um jovem ju<strong>de</strong>u polaco, havia<br />
dois dias, andava a ser soprada <strong>de</strong><br />
janela em janela.] A turba agigantavase<br />
pela rua. Saía gente das ruelas<br />
brandindo paus e gritando frases contra<br />
os ju<strong>de</strong>us. Tinham começado a<br />
atirar pedras a janelas <strong>de</strong> casas e a<br />
montras, a forçar portas. Devagar,<br />
<strong>de</strong>vagarinho, escureceu o mundo na<br />
cabeça do nosso Franz Karl, ao mesmo<br />
tempo que lhe parecia reconhecer<br />
gente das SA trajada à paisana. Todos<br />
gritavam. O barulho dos vidros a partir<br />
misturava-se na cabeça do nosso<br />
homem com os gritos <strong>de</strong> <strong>de</strong>cência,<br />
plim plim, <strong>de</strong>cência, plim plim, <strong>de</strong>cência,<br />
que lhe parecia ouvir vindos<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro. Não vais fazer agora <strong>de</strong><br />
cobar<strong>de</strong>, vais? Aproveita para molhares<br />
a sopa, mostrar que ainda tens<br />
braço. O cacete saiu-lhe das calças,<br />
agigantou-se-lhe na mão, rodopiou<br />
três vezes e começou a bater como<br />
um en<strong>de</strong>moninhado, com o seu corpanzil<br />
trôpego abrindo caminho pelas<br />
lojas às escuras. Vinha abaixo e ia acima,<br />
à vez. E para os lados. Assim se<br />
per<strong>de</strong> um homem que caminha sozi-<br />
ETIENNE GEORGE/SYGMA/ CORBIS<br />
nho com outros. Pequenas e cintilantes<br />
estrelas <strong>de</strong> David giravam-lhe sobre<br />
a cabeça, diz quem viu.<br />
Depois foi durante muito tempo o<br />
cumprir da profecia [mas <strong>de</strong> quem?<br />
“Jawohl, mein Führer!”]. Tudo está<br />
cons<strong>uma</strong>do. “Consummatum est”.<br />
Anos <strong>de</strong>pois, 1947: notícias do doutor<br />
Alfred Döblin, médico berlinense,<br />
que teve consultório aberto na Frankfurter<br />
Allee: 15 anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter saído<br />
da cida<strong>de</strong>, o escritor Döblin voltou<br />
a Berlim, e à sua Alexan<strong>de</strong>rplatz: “Tudo<br />
foi reduzido a silêncio”, escreveu.<br />
O mundo é feito <strong>de</strong> açúcar e esterco!,<br />
já o sabemos.<br />
Mais anotações do senhor Döblin,<br />
agora <strong>de</strong> passagem por <strong>Lisboa</strong> [1940]<br />
a caminho do exílio, em “Viagem ao<br />
Destino” [ASA, 1996]: “<strong>Lisboa</strong> pratica<br />
a espécie mais horrível <strong>de</strong> escarro, o<br />
escarro anatómico. Que começa por<br />
um aclarar da garganta, um expectorar,<br />
um acumular nas partes superiores<br />
da cavida<strong>de</strong> nasal, após o que se<br />
<strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia o trabalho propriamente<br />
dito (…). Há que ter cautela quando<br />
ocorre a <strong>de</strong>scarga propriamente dita.”<br />
A era do vazio<br />
Os dias passam. Os meses. Os anos.<br />
As décadas. A memória <strong>de</strong> <strong>uma</strong> cida-<br />
E lá foram vestidos a preceito, (...) ele <strong>de</strong> botas <strong>de</strong> cano alto<br />
e barbicha mal tratada. ‘Ich bin Fassbin<strong>de</strong>r’. Pôs a coleira <strong>de</strong> bicos,<br />
e lá entrou, <strong>de</strong> botas altas, nu e puxado à trela pela Schygulla rechonchuda<br />
e <strong>de</strong> olhos turcos. E ali se <strong>de</strong>ixou estar toda a noite, com<br />
a pila na mão esquerda e à espera das chapadas da Schygulla<br />
<strong>de</strong> faz-se disso. A dos homens nem<br />
tanto, mas isso é outro assunto.<br />
Os leitores ainda estão preocupados<br />
com o tal Franz Karl Biberkopf?<br />
Estará vivo ou já enterrado,<br />
hã?, suas hienas! Tantas décadas<br />
são passadas sobre a data em<br />
que a Stasi o largou outra vez ao mundo<br />
[como se terá ele <strong>de</strong>senvencilhado<br />
sem dinheiro e sem trabalho?]. Muita<br />
água correu no rio Spree. O mundo<br />
alterou-se, mudou-se. E agora o que<br />
fazemos com ele? O país do Biberkopf<br />
já não existe [DDR, disse mesmo<br />
DDR?]. A União Soviética, i<strong>de</strong>m i<strong>de</strong>m<br />
aspas aspas. O muro sobre o qual o<br />
nosso homem olhava, bem <strong>de</strong> longe,<br />
não fosse alg<strong>uma</strong> bala per<strong>de</strong>r-se, foi<br />
<strong>de</strong>struído. A linha U2 do metro vai <strong>de</strong><br />
Ruhleben a Pankow, sem fronteiras<br />
[parece mentira, ó Franz Karl, hã?, e<br />
há muitas mais!]. Wittenbergplatz,<br />
Kurfürsten.strasse, Gleisdreieck, Potsdamer<br />
Platz, Mohrenstrasse, Stadmitte,<br />
e a continuar pela Alexan<strong>de</strong>rplatz,<br />
Rosa-Luxemburg-Platz, até Pankow<br />
[tu acreditas nisto, ó homem?]. Vais<br />
da Alexan<strong>de</strong>rplatz às compras ao Ka-<br />
DeWe em menos <strong>de</strong> 20 minutinhos,<br />
sem nunca saíres da carruagem, não<br />
é <strong>uma</strong> maravilha?<br />
Descansem, prezados leitores, que<br />
o Franz Karl ainda consta, sendo bem<br />
certo que já não tem ida<strong>de</strong> alg<strong>uma</strong><br />
[nem isso interessa, se não a história<br />
do homem há muito que estava<br />
acabada!] Gente da<br />
laia <strong>de</strong>le consegue pôr-se<br />
sempre <strong>de</strong> pé, firmar-se<br />
nas pernas, não olhar para trás e seguir<br />
em frente. Parece um mandamento.<br />
É verda<strong>de</strong> que andou um bocado<br />
ao Deus dará aí pelos começos<br />
da década <strong>de</strong> 90 [mas não andou sempre,<br />
esse badameco?], mas <strong>de</strong>pois<br />
arribou, as coisas compuseram-se.<br />
Por essa altura, teve que se <strong>de</strong>dicar<br />
ao comércio <strong>de</strong> moças, lançar mão<br />
ao que havia, fiz isso para as ajudar,<br />
coitadas, que me chegavam aqui, vindas<br />
sabe-se lá don<strong>de</strong>, com <strong>uma</strong> mãozinha<br />
à frente e outra atrás, o verniz<br />
a escamar nas unhas, cheias <strong>de</strong> família<br />
para sustentar lá nas estepes russas<br />
e sei lá mais on<strong>de</strong>. Pois sim. Fez algum<br />
dinheiro com o negócio, apesar <strong>de</strong><br />
ter estado pouco tempo no “import/<br />
export”, que a polícia não lhe dava<br />
sossego, e a rapaziada da máfia russa<br />
era muito exigente, e ele não estava<br />
para andar <strong>de</strong>sassossegado, que já<br />
tinha passado por muito [e a <strong>de</strong>cência,<br />
porra, ó Franz Karl?]. Mas afeiçoou-se<br />
a alg<strong>uma</strong>s <strong>de</strong>las, essa é que é<br />
a verda<strong>de</strong>, sou um homem <strong>de</strong> bom<br />
coração, e saíram-lhe da mão bem<br />
tratadinhas, rosadinhas e contentes.<br />
E com dinheirama para mandarem à<br />
famelga, lá para o meio das estepes.<br />
Uns mimos.<br />
Teve morada durante uns anos em<br />
Prenzlauer Berg [durante o tempo em<br />
que teve um teatro <strong>de</strong> robertos na<br />
Sophienstrasse, nem sabia porquê,<br />
veio-lhe aquilo parar às mãos], até<br />
que as famílias bem comportadas lhe<br />
vieram estragar aquele regalo <strong>de</strong> bairro.<br />
Ainda pensei transladar-me para<br />
as ruas à volta da Alexan<strong>de</strong>rplatz, mas<br />
aquilo já não é o que era [olha, nem<br />
tu!]. Foi por essa altura que conheceu<br />
a turca Yasmin, rechonchuda moça<br />
berlinense, e se mudou com ela para<br />
o Kreuzberg, o bairro turco, para o<br />
meio dos artistas, das lojas <strong>de</strong> falafel<br />
e shoarma, <strong>de</strong> roupinha em segunda<br />
mão, e <strong>de</strong> alguns bares mais ou menos<br />
licenciosos [será preciso estar-te sempre<br />
a lembrar da <strong>de</strong>cência, ó Frank<br />
Karl?]. Foi Yasmin quem lhe mostrou<br />
esses lugares que ele nem sabia existirem,<br />
muito diferentes daqueles que<br />
frequentara toda a vida.<br />
Ainda ontem, por exemplo, fez aparição<br />
num <strong>de</strong>sses lugares, o bar “A<br />
Era do Vazio”, frequentado por hedonistas<br />
sado-masoquistas, mas não<br />
só [bem sei que há lá <strong>de</strong> tudo! Não<br />
precisas enumerar!] E lá foram vestidos<br />
a preceito, ela toda coiros e látex,<br />
botas com muitas presilhas e salto <strong>de</strong><br />
agulha transparente, capa preta a<br />
a<strong>de</strong>jar dos ombros, presa com um<br />
lacinho ao redor do pescoço, e pingalim<br />
na mão [e a cabeleira loura para<br />
parecer a Hanna Schygulla, isso<br />
não contas?]. Ele <strong>de</strong> botas <strong>de</strong> cano<br />
alto e barbicha mal tratada. “Ich bin<br />
Fassbin<strong>de</strong>r”, disse Franz Karl ao porteiro.<br />
“Entre, senhor realizador!” Depois<br />
arrumou as roupas num cacifo,<br />
pôs a coleira <strong>de</strong> bicos, e lá entrou, <strong>de</strong><br />
botas altas, nu e puxado à trela pela<br />
Schygulla reconchuda e <strong>de</strong> olhos turcos.<br />
Foi só junto ao balcão que ajeitou<br />
a prótese do braço direito, repuxando<br />
fivelas e correias, e <strong>de</strong> on<strong>de</strong> pendurou<br />
<strong>uma</strong> toalhinha branca <strong>de</strong> bidé, à garçon,<br />
para o que <strong>de</strong>r e vier. E ali se<br />
<strong>de</strong>ixou estar toda a noite [com licença<br />
dos caros leitores, que não estão<br />
aqui para ler ordinarices], com a pila<br />
na mão esquerda e à espera das chapadas<br />
e das chibatadas da Schygulla,<br />
que entretanto lá ia <strong>de</strong>rramando, aqui<br />
e ali, cera <strong>de</strong> velas no peito <strong>de</strong> quem<br />
lhe pedia.<br />
Agora Franz Karl Biberkopf vai retirar-se,<br />
com vossa licença, e ler um<br />
livro que acabou <strong>de</strong> comprar n<strong>uma</strong><br />
livraria da Kurfürstendamm. “Berlim<br />
Alexan<strong>de</strong>rplatz”, <strong>de</strong> um tal Alfred<br />
Döblin, <strong>de</strong> quem ele nunca ouviu falar.<br />
Os jornais <strong>de</strong> 6 <strong>de</strong> Abril <strong>de</strong> 2010.<br />
Terça-feira. “Berliner Kurier”, “B.Z.”,<br />
“Berliner Zeitung”, “Berliner Morgenpost”.<br />
“Homem escon<strong>de</strong> cadáver <strong>de</strong><br />
mulher <strong>de</strong>ntro do frigorífico”. “Os<br />
Ver<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Berlim exigem: perseguir<br />
os que não apanham as fezes caninas”.<br />
“Os berlinenses <strong>de</strong>safiam a Apple”.<br />
“Berlim preocupada com a construção<br />
<strong>de</strong> centrais nucleares polacas”.<br />
“A maior barreira <strong>de</strong> corais do mundo<br />
está ameaçada.” Temperatura máxima:<br />
14º. Previsão meteorológica: céu<br />
pouco nublado. Berlim continua.<br />
Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 13
ENRIC VIVES-RUBIO<br />
Há um livro, “Diários <strong>de</strong> Bicicleta”,<br />
e um disco a meias com Fatboy Slim,<br />
“Here Lies Love“, sobre a vida <strong>de</strong><br />
Imelda Marcos. De David Byrne habituámo-nos<br />
a esperar o inesperado.<br />
Mas <strong>de</strong>sta vez foi longe. Ou não. Porque<br />
se existe algo que <strong>de</strong>fine o músico,<br />
o fotógrafo, o escritor, o realizador<br />
ou o artista é essa capacida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> se abrir ao mundo e partilhar o<br />
seu conhecimento das mais diversas<br />
formas – com perplexida<strong>de</strong> ou ironia,<br />
mas sempre com curiosida<strong>de</strong>.<br />
Em Novembro, Byrne e a companheira,<br />
a artista Cindy Sherman,<br />
estiveram no júri do Estoril Film Festival.<br />
Foi ali que falámos com ele.<br />
Já <strong>de</strong>u o seu passeio matinal <strong>de</strong><br />
bicicleta?<br />
Sim, mas foi um pequeno passeio,<br />
apenas para <strong>de</strong>sentorpecer as pernas.<br />
Dei <strong>uma</strong> gran<strong>de</strong> volta, até Sintra.<br />
Não sou militante da bicicleta.<br />
Não é nada disso. Essencialmente<br />
gosto <strong>de</strong> andar <strong>de</strong> bicicleta porque<br />
é prático e agradável. Mas não tenho<br />
tido muito tempo, entre ver filmes<br />
e dar entrevistas.<br />
A percepção dos lugares<br />
transforma-se circulando <strong>de</strong><br />
bicicleta. Isso agrada-lhe?<br />
Sim. Para coisas mais práticas e quotidianas<br />
é preferível a bicicleta a andar<br />
a pé. Se temos que apanhar um<br />
táxi ou um autocarro a viagem transforma-se<br />
n<strong>uma</strong> outra coisa: per<strong>de</strong> a<br />
dimensão h<strong>uma</strong>na, bairrista. De bicicleta,<br />
parece que nunca saímos do<br />
nosso bairro.<br />
O livro chama-se “Diários <strong>de</strong><br />
Bicicleta”, mas não é sobre<br />
14 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />
“Se temos que<br />
apanhar um táxi<br />
a viagem per<strong>de</strong><br />
a dimensão h<strong>uma</strong>na,<br />
bairrista. De bicicleta,<br />
parece que nunca<br />
saímos do nosso<br />
bairro”<br />
ciclismo. É sobre a forma como<br />
olha para as cida<strong>de</strong>s.<br />
É verda<strong>de</strong>. Mas só tive essa percepção<br />
quando comecei a compilar todos os<br />
textos que tinha reunido. A princípio<br />
era apenas um diário que mantive<br />
durante 15 anos. Quando andava em<br />
digressão, levava sempre <strong>uma</strong> bicicleta<br />
e acabava por explorar as cida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong>ssa forma. O mesmo acontece em<br />
Nova Iorque on<strong>de</strong> utilizo quase diariamente<br />
a bicicleta, mesmo à noite<br />
quando vou a <strong>uma</strong> inauguração ou a<br />
um concerto. Mas o diário foi sendo<br />
actualizado, essencialmente, durante<br />
as viagens. Quando olhei retrospectivamente<br />
para a maior parte dos textos<br />
percebi que o ciclismo lúdico po<strong>de</strong>ria<br />
servir <strong>de</strong> elemento <strong>de</strong> ligação <strong>de</strong>ssas<br />
reflexões sobre as cida<strong>de</strong>s. Alg<strong>uma</strong>s<br />
estão carregadas <strong>de</strong> história. Outras<br />
são lugares imersos em cenas musicais.<br />
Noutras é a arte contemporânea<br />
que é efervescente. Cada cida<strong>de</strong> tem<br />
a sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e comecei a interrogar-me<br />
sobre os seus erros e também<br />
o que as faz funcionar <strong>de</strong> forma sau-<br />
Em comparação com as cida<strong>de</strong>s a<br />
estão mais preparadas p
americanas, as cida<strong>de</strong>s na Europa<br />
para o futuro<br />
dável.<br />
E o que é que faz <strong>uma</strong> cida<strong>de</strong><br />
funcionar?<br />
É <strong>uma</strong> questão difícil... [risos]. Não<br />
creio que exista <strong>uma</strong> resposta. Diria<br />
que em comparação com as cida<strong>de</strong>s<br />
americanas, as cida<strong>de</strong>s na Europa estão<br />
mais preparadas para o futuro.<br />
Têm centros históricos <strong>de</strong>nsos, compactos<br />
do ponto <strong>de</strong> vista populacional.<br />
Urbanisticamente também me<br />
parecem pensadas <strong>de</strong> forma mais dinâmica<br />
e h<strong>uma</strong>na, com bairros on<strong>de</strong><br />
se po<strong>de</strong> circular a pé ou <strong>de</strong> bicicleta.<br />
As cida<strong>de</strong>s são sítios on<strong>de</strong> se trocam<br />
i<strong>de</strong>ias, mas on<strong>de</strong> nos po<strong>de</strong>mos permitir<br />
falhar também. São locais on<strong>de</strong><br />
po<strong>de</strong>mos escolher ser quem somos.<br />
Por exemplo, <strong>uma</strong> cida<strong>de</strong> como Berlim<br />
parece funcionar bem. É daquelas<br />
cida<strong>de</strong>s on<strong>de</strong> as transformações operadas<br />
melhoraram a cida<strong>de</strong>, não a<br />
aviltaram, o que não é muito comum.<br />
É <strong>uma</strong> gran<strong>de</strong> cida<strong>de</strong>, mas possui <strong>uma</strong><br />
escala h<strong>uma</strong>na. É surpreen<strong>de</strong>nte como<br />
funciona muito bem.<br />
Qual é a cida<strong>de</strong> i<strong>de</strong>al para um<br />
ciclista?<br />
Também não existe um mo<strong>de</strong>lo. Se<br />
existirem ciclovias para bicicletas,<br />
isso é excelente. É importante que os<br />
condutores <strong>de</strong> carros saibam interagir<br />
com os ciclistas. Roma, por exemplo,<br />
é <strong>uma</strong> cida<strong>de</strong> caótica em termos <strong>de</strong><br />
circulação automóvel, mas magnífica<br />
para andar <strong>de</strong> bicicleta. Nova Iorque,<br />
nos anos 80 e 90, era completamente<br />
anti-bicicletas. Depois, aos poucos,<br />
o panorama foi mudando.<br />
O clima é importante também. Uma<br />
temperatura constante faz com que<br />
exista mais disponibilida<strong>de</strong> para pe-<br />
dalar. <strong>Lisboa</strong> tem isso.<br />
Mas <strong>Lisboa</strong>, topograficamente, é<br />
<strong>uma</strong> cida<strong>de</strong> difícil.<br />
Não sinto isso, pelo menos no centro,<br />
on<strong>de</strong> parece ser <strong>uma</strong> cida<strong>de</strong> amigável<br />
para quem quer ir para o emprego a<br />
pé ou <strong>de</strong> bicicleta. Talvez a bicicleta<br />
não faça parte, ainda, da rotina das<br />
pessoas, mas tenho dúvidas que o<br />
problema seja o relevo aci<strong>de</strong>ntado. É<br />
antes <strong>uma</strong> questão civilizacional. De<br />
aposta na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida <strong>de</strong> cada<br />
um.<br />
Muitas cida<strong>de</strong>s americanas não têm<br />
altos e baixos pronunciados, mas temos<br />
outros problemas mais graves. É<br />
<strong>uma</strong> socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> auto-estradas, totalmente<br />
pensada para os carros. Os<br />
carros são maravilhosos, mas pareceme<br />
que dominam as cida<strong>de</strong>s há <strong>de</strong>masiado<br />
tempo.<br />
Há quem <strong>de</strong>fenda que a<br />
<strong>de</strong>rrapagem do preço do<br />
petróleo e a crise financeira<br />
global apenas vieram mostrar<br />
que o estilo <strong>de</strong> vida oci<strong>de</strong>ntal<br />
terá que mudar radicalmente.<br />
Revê-se nessas teorias?<br />
Totalmente. E isso vai acontecer mais<br />
rapidamente do que esperamos. Nos<br />
EUA estamos finalmente a discutir<br />
com serieda<strong>de</strong> o problema dos subúrbios,<br />
inteiramente imaginados para<br />
o carro. Temos que nos aproximar<br />
uns dos outros. Os carros e os subúrbios<br />
afastam.<br />
N<strong>uma</strong> das passagens do livro<br />
transcreve um passeio <strong>de</strong><br />
bicicleta por Detroit e o que nos<br />
<strong>de</strong>volve é <strong>de</strong>solador.<br />
Detroit é um exemplo extremo, aquele<br />
<strong>de</strong> que todas as pessoas falam: é<br />
Livros<br />
É na rua que está a<br />
inspiração<br />
Observador da vida contemporânea,<br />
David Byrne revela-nos o seu olhar apaixonado sobre a<br />
vida das cida<strong>de</strong>s no livro “Diários <strong>de</strong> Bicicleta”.<br />
Ao mesmo tempo que lança o álbum “Here Love Lies”,<br />
na companhia <strong>de</strong> Fatboy Slim. Vítor Belanciano<br />
Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 15
JOÃO HENRIQUES<br />
a “cida<strong>de</strong>-fantasma”. Mas neste<br />
momento existem outras cida<strong>de</strong>s bem<br />
mais bizarras. Os subúrbios têm qualquer<br />
coisa <strong>de</strong> mórbido. Em Phoenix<br />
ou em alg<strong>uma</strong>s cida<strong>de</strong>s da Flórida,<br />
on<strong>de</strong> a especulação imobiliária foi<br />
conduzida ao extremo, vemos famílias<br />
inteiras endividadas a regressarem<br />
às cida<strong>de</strong>s. O sonho da casa no<br />
subúrbio, com jardim e carro estacionado<br />
à frente, está a ruir. O centro <strong>de</strong><br />
Detroit, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> 20 anos, po<strong>de</strong>rá<br />
ser <strong>uma</strong> quinta gigante, o que não é<br />
mau <strong>de</strong> todo... [risos]. Mas muitas outras<br />
cida<strong>de</strong>s americanas serão “cida<strong>de</strong>s-fantasmas”<br />
em 20 anos.<br />
A música, a arte e a cultura<br />
em geral estão intimamente<br />
ligadas ao <strong>de</strong>senvolvimento e<br />
dinâmica das cida<strong>de</strong>s. Em Nova<br />
Iorque, nos anos 70, quando os<br />
Talking Heads surgiram, falavase<br />
imenso <strong>de</strong> Manhattan. Agora<br />
parece ser Brooklyn, o bairro<br />
on<strong>de</strong> tudo parece acontecer nas<br />
artes e na música.<br />
Sim. Passo o tempo a assistir a concertos<br />
ou performances em Brooklyn.<br />
Os restaurantes também são óptimos.<br />
Mas a maior parte das galerias estão<br />
a mudar-se para Manhattan, <strong>de</strong> maneira<br />
que vamos recuperar o encanto<br />
perdido outra vez... [risos]. Essas dinâmicas<br />
são interessantes, claro, dinamizam<br />
a vida da cida<strong>de</strong>. Brooklyn<br />
já está a ficar caro, por isso, muito<br />
rapidamente outro local nascerá para<br />
albergar artistas, músicos e boémios.<br />
Não é nenhum drama. É um processo<br />
normal.<br />
As cida<strong>de</strong>s são mais<br />
reconhecidas por essas<br />
16 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />
“É na rua que está<br />
a inspiração.<br />
Olhar para as<br />
pessoas, os gestos,<br />
o que dizem, tentar<br />
percebê-las”<br />
“cenas”, que irrompem com<br />
espontaneida<strong>de</strong>, do que pela<br />
cultura mais institucionalizada,<br />
não lhe parece?<br />
Absolutamente. Não é pelo facto <strong>de</strong><br />
<strong>uma</strong> cida<strong>de</strong> ter <strong>uma</strong> Ópera, <strong>uma</strong> orquestra<br />
sinfónica ou <strong>uma</strong> série <strong>de</strong><br />
monumentos que nos vamos lembrar<br />
<strong>de</strong>la. Mas se tiver <strong>uma</strong> “cena” artística<br />
vibrante e <strong>uma</strong> vida cultural que<br />
estimule, isso fará a diferença. Não só<br />
para as pessoas que vivem nesse local,<br />
como para quem vem <strong>de</strong> fora. Não<br />
basta construir apartamentos e estradas.<br />
É preciso criar estímulos criativos.<br />
E nisso a cultura é fundamental.<br />
É necessário que as cida<strong>de</strong>s sejam locais<br />
on<strong>de</strong> apetece viver, on<strong>de</strong> nos sintamos<br />
inspirados, on<strong>de</strong> tenhamos a<br />
experiência <strong>de</strong> criar, sejamos artistas<br />
ou homens <strong>de</strong> negócios.<br />
Quando chega a <strong>uma</strong> cida<strong>de</strong> tem<br />
objectivos, <strong>uma</strong> lista <strong>de</strong> coisas do<br />
que quer fazer e dos locais que<br />
<strong>de</strong>seja visitar, ou <strong>de</strong>ixa-se ir?<br />
Gosto <strong>de</strong> me per<strong>de</strong>r, mas não muito...<br />
[risos]. Gosto da vida orgânica, no<br />
sentido em que privilegio os cafés, as<br />
pequenas lojas e os mercados. É a<br />
partir daí que apreendo um pouco da<br />
pulsação da cida<strong>de</strong>, falando com as<br />
pessoas. É na rua que está a inspiração.<br />
Olhar para as pessoas, os gestos,<br />
o que dizem, tentar percebê-las.<br />
No livro, diz que <strong>uma</strong> das<br />
suas cida<strong>de</strong>s preferidas é<br />
Nova Orleães. Outra é Nova<br />
Iorque. Duas metrópoles que<br />
passaram, nos últimos anos, por<br />
acontecimentos tra<strong>uma</strong>tizantes.<br />
Já superaram?<br />
Não arrisco <strong>uma</strong> resposta <strong>de</strong>finitiva,<br />
mas diria que o facto <strong>de</strong> serem cida<strong>de</strong>s<br />
com <strong>uma</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> bem <strong>de</strong>finida,<br />
ajudou-as a superar as dificulda<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> forma mais rápida. A maior<br />
parte das cida<strong>de</strong>s americanas são imitações<br />
<strong>uma</strong>s das outras. Essas duas<br />
não. Portland e São Francisco também<br />
possuem i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Há um temperamento<br />
nas pessoas e nos lugares<br />
muito forte. Há <strong>uma</strong> estrutura. Qualquer<br />
coisa que lhes permite reerguer,<br />
mesmo nos momentos mais complicados.<br />
E são também cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> música.<br />
Fala com alg<strong>uma</strong> veneração<br />
da Europa. Nasceu na Escócia,<br />
mas cresceu nos EUA. Sente-se<br />
europeu?<br />
Não sei. Gosto dos EUA, mas também<br />
gosto <strong>de</strong> manter distância. Às vezes<br />
sinto-me um pouco estrangeiro. N<strong>uma</strong><br />
série <strong>de</strong> áreas – transportes, saú<strong>de</strong>,<br />
cultura, urbanismo – os europeus<br />
tomaram <strong>uma</strong> série <strong>de</strong> medidas que<br />
gostava que os americanos seguissem.<br />
Os europeus são mais maduros, nes-<br />
se sentido.<br />
Falando agora <strong>de</strong> música.<br />
Alg<strong>uma</strong>s das bandas mais<br />
relevantes dos últimos anos,<br />
como Arca<strong>de</strong> Fire, Dirty<br />
Projectors ou Vampire Weekend,<br />
citam os Talking Heads como<br />
gran<strong>de</strong> influência. Como reage a<br />
essa veneração?<br />
É surpreen<strong>de</strong>nte. Durante muitos<br />
anos, talvez parte da década <strong>de</strong> 90 e<br />
princípio dos anos 00, ninguém ligou<br />
muito aos Talking Heads. Enfim, estas<br />
coisas nem sempre têm <strong>uma</strong> lógica<br />
precisa, mas pensei que a termos alg<strong>uma</strong><br />
influência sobre o futuro da<br />
música popular isso já teria acontecido.<br />
Acontecer agora é lisonjeador,<br />
mas também muito inesperado.<br />
O facto <strong>de</strong> terem criado <strong>uma</strong><br />
música simultaneamente<br />
meditativa e física, que ia<br />
recolher referências às mais<br />
diversas partes do mundo, terá<br />
algo a ver com isso?<br />
Talvez. Não sei muito bem. O problema<br />
é quando essas vagas <strong>de</strong> inspiração<br />
apenas se alimentam da nostalgia.<br />
Não tenho paciência para isso. No caso<br />
dos grupos que mencionou não é<br />
isso que se passa, são dos grupos que<br />
sigo com atenção. Mas neles os<br />
Talking Heads são apenas <strong>uma</strong> influência<br />
no meio <strong>de</strong> outras.<br />
Imagino que já tenham sido<br />
aliciados para um regresso?<br />
Sim, mas é algo que não me interessa.<br />
Os meus discos não ven<strong>de</strong>m tanto<br />
como os dos Talking Heads, mas não<br />
é por aí. Criativamente estou noutro<br />
ponto e é isso que me interessa.<br />
Acabou um projecto com Fatboy<br />
Não é por <strong>uma</strong> cida<strong>de</strong> ter <strong>uma</strong><br />
Ópera que nos vamos lembrar <strong>de</strong>la<br />
Slim sobre a vida <strong>de</strong> Imelda<br />
Marcos. Como é que se foi meter<br />
nisso?<br />
Diz bem... [risos]. É um projecto meio<br />
louco, que <strong>de</strong>morou muito mais do<br />
que o previsto, <strong>uma</strong> espécie <strong>de</strong> “disco-ópera”<br />
com mais <strong>de</strong> vinte convidados,<br />
como St. Vincent, Róisin Murphy,<br />
Sharon Jones, Tori Amos, Santigold<br />
ou Natalie Merchant.<br />
Qual foi o critério na escolha <strong>de</strong><br />
todas essas cantoras?<br />
Alg<strong>uma</strong>s são simplesmente amigas,<br />
as outras eram cantoras <strong>de</strong> que gostava<br />
e que encaixavam em <strong>de</strong>terminadas<br />
canções.<br />
Essencialmente é um disco <strong>de</strong> música<br />
<strong>de</strong> dança, com alg<strong>uma</strong> exuberância<br />
pelo meio. É um disco emocional<br />
e dramático, como a própria Imelda<br />
Marcos... [risos]. É possível que venha<br />
a ser apresentado um musical em Nova<br />
Iorque, n<strong>uma</strong> pequena sala, mas<br />
ainda não é certo.<br />
Digamos que Fatboy Slim não é<br />
propriamente Brian Eno...<br />
Muita gente diz o mesmo. Mas isso<br />
também é interessante. O método <strong>de</strong><br />
trabalho não foi muito diferente daquele<br />
que utilizaria com Brian Eno.<br />
No fim <strong>de</strong> contas, trata-se <strong>de</strong> trocar<br />
ficheiros musicais durante meses, recorrendo<br />
a “samples” e “loops”, até<br />
criarmos <strong>uma</strong> canção. O que importa<br />
é a i<strong>de</strong>ia que se quer transmitir e em<br />
função <strong>de</strong>la escolhem-se os sons e as<br />
vozes e, nesse processo <strong>de</strong> negociação,<br />
foi óptimo trabalhar com alguém<br />
como Fatboy Slim.<br />
Ver crítica <strong>de</strong> livros págs. 46 e segs. e<br />
crítica <strong>de</strong> discos págs. 53 e segs
No 12º aniversário do 28 <strong>de</strong> Maio, em<br />
1938, Carneiro Pacheco, o ministro da<br />
Educação Nacional <strong>de</strong> Salazar, organizou<br />
em <strong>Lisboa</strong> um <strong>de</strong>sfile da recémcriada<br />
Mocida<strong>de</strong> Portuguesa. Como<br />
mandavam as regras, enviou um convite<br />
ao Car<strong>de</strong>al Patriarca <strong>de</strong> então,<br />
Manuel Gonçalves Cerejeira. Dificilmente<br />
a carta que recebeu na volta<br />
do correio podia ser mais violenta.<br />
O chefe da Igreja <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>, e figura<br />
maior da Igreja portuguesa, não só<br />
lhe comunicou que não estaria presente,<br />
como o verberou por ter convidado<br />
para a cerimónia <strong>uma</strong> <strong>de</strong>legação<br />
da Juventu<strong>de</strong> Hitleriana. Isso,<br />
escreveu Cerejeira, era “não só ofensivo<br />
e perigoso para a consciência<br />
católica portuguesa, mas também<br />
pouco digno da altivez nacional, sabido<br />
o inferior conceito que os alemães<br />
têm <strong>de</strong> nós, filhos (segundo eles)<br />
d<strong>uma</strong> raça inferior e negrói<strong>de</strong>”.<br />
Em 1938, n<strong>uma</strong> altura em que o regime<br />
vivia <strong>uma</strong> fase dourada e, aqui<br />
ao lado, em Espanha, os alemães ainda<br />
combatiam ao lado das tropas <strong>de</strong><br />
Franco contra a República, poucos<br />
portugueses teriam condições e coragem<br />
para escrever <strong>uma</strong> carta daquelas,<br />
e nenhum outro o po<strong>de</strong>ria<br />
fazer sem correr o risco <strong>de</strong> ser preso.<br />
Mas Cerejeira era <strong>uma</strong> excepção. Não<br />
era apenas o “príncipe da Igreja portuguesa”,<br />
era também o velho companheiro<br />
<strong>de</strong> Salazar, o amigo que conhecera<br />
em Coimbra no já longínquo<br />
Livros<br />
18 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />
ano <strong>de</strong> 1911, ambos atraídos pela militância<br />
católica.<br />
Primeiro como estudantes, <strong>de</strong>pois<br />
como professores, ambos vivendo, a<br />
partir <strong>de</strong> 1914, no Convento dos Grilos,<br />
Salazar e Cerejeira eram mais do<br />
que amigos e cúmplices: um no Estado,<br />
outro da Igreja, haviam conseguido<br />
tornar-se nas suas figuras dominantes.<br />
O que estava a acontecer em<br />
1938, nove anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Cerejeira<br />
se ter tornado Car<strong>de</strong>al Patriarca e seis<br />
após Salazar se ter tornado, por fim,<br />
presi<strong>de</strong>nte do Conselho <strong>de</strong> Ministros,<br />
entre aqueles dois homens que tudo<br />
parecia unir?<br />
“O choque entre Cerejeira e Carneiro<br />
Pacheco a propósito da criação da<br />
Mocida<strong>de</strong> Portuguesa correspon<strong>de</strong>u<br />
à maior crise que o Car<strong>de</strong>al teve com<br />
o Estado Novo”, consi<strong>de</strong>ra Irene Flunser<br />
Pimentel, autora da biografia “Car<strong>de</strong>al<br />
Cerejeira – O Príncipe da Igreja”.<br />
Nada lhe agradava nesse projecto,<br />
pois “via no movimento algo <strong>de</strong> muito<br />
parecido com o nazismo” e combateu<br />
ferozmente a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong>, para a<br />
constituir, se dissolver o escutismo<br />
católico. Mas o que o incomodou mesmo<br />
foi essa vinda a Portugal <strong>de</strong> elementos<br />
da Juventu<strong>de</strong> Hitleriana. Na<br />
época a Mocida<strong>de</strong> Portuguesa era dirigida<br />
por Nobre Gue<strong>de</strong>s, um germanófilo<br />
que <strong>de</strong>pois ocuparia o lugar <strong>de</strong><br />
embaixador em Berlim, pois Marcello<br />
Caetano, anglófilo, só lhe suce<strong>de</strong>ria<br />
em 1940. E, sobre o regime nazi, Ce-<br />
rejeira nunca teve dúvidas: tratava-se<br />
<strong>de</strong> um totalitarismo pagão quase ao<br />
nível do totalitarismo comunista. De<br />
resto, nesse mesmo ano <strong>de</strong> 1938 faria<br />
um discurso ao clero do Patriarcado<br />
on<strong>de</strong> con<strong>de</strong>nou o totalitarismo por<br />
querer absorver “toda a activida<strong>de</strong><br />
do indivíduo” e se referiu, em particular,<br />
ao nazismo, acusando-o <strong>de</strong> reclamar<br />
para si próprio a condição <strong>de</strong><br />
divino e <strong>de</strong> preten<strong>de</strong>r substituir a<br />
“concepção cristã pela ‘Weltanschauung<br />
racista’”.<br />
“A forma como <strong>de</strong>fine o totalitarismo<br />
é <strong>uma</strong> forma mo<strong>de</strong>rna”, diz-nos<br />
Irene Pimentel. “Tão mo<strong>de</strong>rna que<br />
cheguei a pensar referir no livro as<br />
suas semelhanças com os escritos <strong>de</strong><br />
Hanna Arendt dos anos 50. Só que<br />
aquilo foi feito em 1938”.<br />
A difícil Concordata <strong>de</strong> 1940<br />
Mas se a crise <strong>de</strong> 1938 – que coinci<strong>de</strong><br />
também com momentos difíceis na<br />
negociação da Concordata entre o Estado<br />
português e o Vaticano, que só<br />
seria aprovada em 1940 – terá sido<br />
<strong>uma</strong> das mais agudas na relação entre<br />
Cerejeira e o Estado Novo, não foi a<br />
única e revela um Car<strong>de</strong>al bem diferente<br />
do que a historiadora imaginara<br />
antes <strong>de</strong> iniciar a sua investigação.<br />
“Eu tinha <strong>uma</strong> imagem mais simplista,<br />
a preto e branco, pensava que<br />
a Igreja tinha servido o regime e que<br />
o regime se tinha servido <strong>de</strong>la, ponto”,<br />
conta-nos. “Pensava que Salazar<br />
era unha e carne com Cerejeira <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
Coimbra, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o tempo em tinham<br />
vivido no Convento dos Grilos, e não<br />
imaginava que tivessem tido divergências”.<br />
Mas tiveram. Não só por serem diferentes<br />
– a Cerejeira nem enquanto<br />
novo se conhece inclinação para um<br />
namorico, a Salazar conhecem-se alg<strong>uma</strong>s<br />
relações com mulheres, se<br />
bem que menos vivazes do que hoje<br />
se quer fazer crer; Cerejeira viajou<br />
pelo mundo e gostava <strong>de</strong> andar <strong>de</strong><br />
avião (foi o primeiro Car<strong>de</strong>al a utilizar<br />
esse meio <strong>de</strong> transporte para ir a Roma<br />
participar num conclave para<br />
eleger o Papa), Salazar só se <strong>de</strong>slocou<br />
a Espanha e <strong>uma</strong> só viagem <strong>de</strong> avião<br />
levou-o a não querer repetir a experiência<br />
–, mas por prosseguirem agendas<br />
diferentes.<br />
“Cerejeira <strong>de</strong>fendia, antes do mais,<br />
a sua Igreja, e <strong>de</strong>fendia o regime na<br />
medida em que consi<strong>de</strong>rava que o<br />
Estado Novo a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ria melhor,<br />
sobretudo <strong>de</strong>pois do que se passara<br />
no período republicano”, explica a<br />
autora. “Um bom exemplo disso foram<br />
as dificulda<strong>de</strong>s na negociação da<br />
Concordata.”<br />
Na verda<strong>de</strong>, apesar da i<strong>de</strong>ia feita<br />
<strong>de</strong> que a Concordata <strong>de</strong> 1940 representou<br />
<strong>uma</strong> rendição do Estado português<br />
perante a Santa Sé, Salazar<br />
esteve longe <strong>de</strong> ser generoso. Tanto<br />
na substância dos princípios como<br />
na prática dos benefícios. A Concor-<br />
Quando Irene Pimentel começou a estudar a vida do Car<strong>de</strong>al Cerejeira tinha <strong>de</strong>le<br />
<strong>uma</strong> i<strong>de</strong>ia pré-concebida: <strong>uma</strong> alma gémea <strong>de</strong> Salazar e a outra face <strong>de</strong> <strong>uma</strong> moeda<br />
em que Estado Novo e Igreja Católica formavam um todo. Mas <strong>de</strong>scobriu um<br />
homem mais complexo, mais dividido. E que teve <strong>uma</strong> relação muitas vezes tensa<br />
com o seu amigo <strong>de</strong> Coimbra. José Manuel Fernan<strong>de</strong>s<br />
data acertou o contencioso relativo<br />
aos bens da Igreja que tinham sido<br />
expropriados pelo Liberalismo e pela<br />
República, mas o presi<strong>de</strong>nte do<br />
Conselho que construíra o seu mito<br />
em torno do rigor nas contas públicas<br />
ficou muito aquém do que lhe pediam.<br />
Da mesma forma a Concordata<br />
não colocava o Estado a pagar os salários<br />
aos membros do clero, como<br />
sucedia – e ainda suce<strong>de</strong> – noutros<br />
estados europeus, ficando o Clero,<br />
como notaria o influente filósofo católico<br />
Jacques Maritain, con<strong>de</strong>nado<br />
a “<strong>uma</strong> gloriosa pobreza”. Por fim,<br />
Salazar não ce<strong>de</strong>u à exigência da Igreja<br />
<strong>de</strong> que fosse possível realizar casamentos<br />
religiosos sem efeitos civis,<br />
mas admitiu a indissolubilida<strong>de</strong> dos<br />
matrimónios católicos.<br />
“Também houve muita discussão<br />
sobre o divórcio, nomeadamente sobre<br />
este ser possível nos casamentos<br />
não religiosos, mas ainda hoje não<br />
conhecemos todos os documentos<br />
para fazer <strong>uma</strong> avaliação final”, acrescenta<br />
a historiadora.<br />
Mesmo assim, <strong>de</strong>vido à convergência<br />
<strong>de</strong> interesses entre <strong>Lisboa</strong> e o Vaticano<br />
no que toca à acção missionária<br />
nas colónias portuguesas, foi assinado<br />
ao mesmo tempo um Acordo<br />
Missionário que serviu bem os interesses<br />
das partes.<br />
O essencial, nota Irene Pimentel, é<br />
que tanto Salazar como Cerejeira<br />
acreditavam “na separa-<br />
O Car<strong>de</strong>al<br />
um casamento<br />
DR<br />
Cerejeira<br />
<strong>de</strong>fendia o<br />
regime na<br />
medida em<br />
que<br />
consi<strong>de</strong>rava<br />
que o Estado<br />
Novo<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ria<br />
melhor a sua<br />
Igreja,<br />
sobretudo<br />
<strong>de</strong>pois do que<br />
se passara no<br />
período<br />
republicano
ção Igreja-Estado”, que o último consi<strong>de</strong>rava<br />
mesmo a “trave-mestra” da<br />
civilização europeia. De resto, esta<br />
i<strong>de</strong>ia da separação era recorrente em<br />
Cerejeira, que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> novo proferia<br />
conferências e escrevera ensaios sobre<br />
o tema. O que nem é estranho, se<br />
consi<strong>de</strong>rarmos que, para os católicos<br />
que enfrentaram o jacobinismo republicano,<br />
a Lei da Separação <strong>de</strong> Afonso<br />
Costa representava não <strong>uma</strong> real separação,<br />
mas <strong>uma</strong> espécie <strong>de</strong> nacionalização<br />
da Igreja, cujas organizações<br />
locais eram apropriadas pelos<br />
militantes republicanos. A investigação<br />
mais recente tem mostrado que<br />
a forma escolhida pela Igreja para resistir<br />
a Afonso Costa se traduziu, na<br />
prática, pela real separação entre as<br />
órbitas temporais e espirituais, <strong>uma</strong><br />
vez que se a Igreja <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> beneficiar<br />
<strong>de</strong> quaisquer privilégios, também<br />
recusou a tutela estatal.<br />
As <strong>de</strong>sconfi anças <strong>de</strong> Salazar<br />
Irene Pimentel situa o momento <strong>de</strong><br />
viragem nas relações entre Cerejeira<br />
e Salazar em 1932, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> este<br />
ter chegado a presi<strong>de</strong>nte do Conselho<br />
após muitos anos a trabalhar,<br />
como ministro das Finanças, à or<strong>de</strong>m<br />
<strong>de</strong> sucessivos chefes <strong>de</strong><br />
Governo oriundos do republicanismo<br />
conservador. No<br />
momento da consagração <strong>de</strong><br />
Salazar o velho amigo <strong>de</strong> Coimbra<br />
quis lembrar que ele “era o enviado<br />
“Eu pensava que a<br />
Igreja tinha servido o<br />
regime e que o regime<br />
se tinha servido <strong>de</strong>la,<br />
ponto. Pensava que<br />
Salazar era unha<br />
e carne com Cerejeira,<br />
não imaginava<br />
que tivessem tido<br />
divergências”<br />
Irene Pimentel<br />
<strong>de</strong> Deus” e que chegara on<strong>de</strong> chegara<br />
“graças ao apoio da Igreja Católica”.<br />
O professor <strong>de</strong> Santa Comba reagiu<br />
<strong>de</strong> forma seca, afirmando que estava<br />
on<strong>de</strong> estava “por nomeação do Presi<strong>de</strong>nte<br />
da República”.<br />
“O que em 1932 Salazar diz a Cerejeira<br />
é que quem manda no Estado é<br />
ele, e quem manda na Igreja é o Car<strong>de</strong>al,<br />
mas que a partir <strong>de</strong>sse momento<br />
os seus caminhos se separavam”,<br />
sublinha Pimentel. “É certo que a<br />
principal fonte pela qual conhecemos<br />
este momento <strong>de</strong> tensão é [a biografia<br />
<strong>de</strong> Salazar escrita por] Franco Nogueira,<br />
mas trata-se <strong>de</strong> <strong>uma</strong> fonte credível.<br />
Para além <strong>de</strong> que este relato é coerente<br />
com o que se passou <strong>de</strong>pois entre<br />
a Igreja e o regime”.<br />
Na verda<strong>de</strong> Salazar – que Irene Pimentel<br />
suspeita ter-se afastado do catolicismo<br />
no final da vida, tal como<br />
terá sucedido com Marcello Caetano<br />
– nunca subordina a sua agenda política<br />
aos <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> Cerejeira. Talvez o<br />
exemplo mais eloquente da falta <strong>de</strong><br />
colaboração do Estado Novo num projecto<br />
que o Car<strong>de</strong>al Patriarca alimentava<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre tenha sido a <strong>de</strong>mora<br />
na criação da Universida<strong>de</strong> Católica.<br />
O bispo <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong> formulou esse <strong>de</strong>sejo<br />
ainda nos anos 20, nunca <strong>de</strong>ixou<br />
<strong>de</strong> se bater pela concretização <strong>de</strong>sse<br />
sonho <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que ascen<strong>de</strong>u a Car<strong>de</strong>al,<br />
mas só o veria concretizado no ocaso<br />
da vida, no final dos anos 60.<br />
Para o prelado a criação da Univer-<br />
sida<strong>de</strong> foi sempre peça central na sua<br />
visão sobre <strong>uma</strong> <strong>de</strong>sejada recristianização<br />
da socieda<strong>de</strong> portuguesa,<br />
que nunca dissociou da existência <strong>de</strong><br />
<strong>uma</strong> elite católica culta e influente.<br />
A construção do Seminário dos Olivais,<br />
em que se empenhou a fundo,<br />
era outra das pedras sobre as quais<br />
queria reerguer <strong>uma</strong> Igreja <strong>de</strong> novo<br />
po<strong>de</strong>rosa.<br />
Ora, Salazar sempre <strong>de</strong>sconfiou do<br />
projecto universitário <strong>de</strong> Cerejeira,<br />
e este sempre teve <strong>de</strong> explicar que<br />
não pretendia entrar em concorrência<br />
com a Universida<strong>de</strong> pública. Mais:<br />
o arranque das faculda<strong>de</strong>s que não<br />
se <strong>de</strong>dicavam à Teologia e à Filosofia<br />
– como a <strong>de</strong> Economia – só acabaria<br />
por ocorrer <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> entregar a D.<br />
António Ribeiro o seu lugar como<br />
Car<strong>de</strong>al Patriarca.<br />
“Para Cerejeira a abertura dos primeiros<br />
núcleos da Universida<strong>de</strong> terá<br />
mesmo constituído <strong>uma</strong> das poucas<br />
coisas boas do seu final <strong>de</strong> mandato”,<br />
concretiza Irene Pimentel. “Abriu em<br />
1968, um dos anos em que mais <strong>de</strong>sgostos<br />
teve ao sentir que tudo corria<br />
mal à sua volta na Igreja portuguesa,<br />
sobretudo ao sentir que já não tinha<br />
mão na sua evolução”.<br />
Face à Pi<strong>de</strong> e aos católicos<br />
progressistas<br />
Manuel Cerejeira, apesar do seu brilho<br />
como Académico e até da mo<strong>de</strong>r-<br />
nida<strong>de</strong> <strong>de</strong> muitas das suas opiniões e<br />
tomadas <strong>de</strong> posição – a ele se <strong>de</strong>ve a<br />
consagração dos artistas mo<strong>de</strong>rnistas<br />
como edificadores <strong>de</strong> Igrejas, patronato<br />
que muitos problemas lhe criou<br />
aquando da construção, ainda na década<br />
<strong>de</strong> 30, da Igreja <strong>de</strong> Nossa Senhora<br />
<strong>de</strong> Fátima, em <strong>Lisboa</strong> –, era um<br />
homem do seu tempo. E isto quer dizer<br />
que era um católico fortemente<br />
marcado pelas experiências traumáticas<br />
da I República e da emergência<br />
do comunismo na Rússia. Por isso era<br />
não só anticomunista como tinha com<br />
a Maçonaria <strong>uma</strong> relação obsessiva.<br />
Curiosamente ao contrário do que<br />
suce<strong>de</strong>u com Salazar, <strong>de</strong> quem quase<br />
não se encontram frases contra a Maçonaria.<br />
Irene Pimentel consi<strong>de</strong>ra que isso<br />
talvez se <strong>de</strong>va ao facto <strong>de</strong>, “enquanto<br />
Cerejeira era <strong>de</strong> <strong>uma</strong> linha anti-maçónica,<br />
católica, integrista, Salazar,<br />
como político, teve <strong>de</strong> lidar com vários<br />
amigos influentes, como Bissaya<br />
Barreto, que eram maçons e que ele<br />
queria que entrassem, como entraram,<br />
para a União Nacional”.<br />
Em contrapartida, tal não significou<br />
que o Car<strong>de</strong>al apoiasse incondicionalmente<br />
a política <strong>de</strong> repressão do regime.<br />
É certo que enquanto a Pi<strong>de</strong><br />
perseguia os comunistas, Cerejeira<br />
quase compreendia, mas foram numerosas<br />
as situações em que pediu<br />
explicações ou interce<strong>de</strong>u pela sorte<br />
<strong>de</strong> presos políticos. Em 1958, <strong>de</strong>-<br />
e o Estado Novo:<br />
difícil<br />
DR
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apresentarem este anúncio na bilheteira do Cinema São Jorge,<br />
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20 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />
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Apesar do seu<br />
brilho como<br />
Académico e<br />
até da<br />
mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> muitas das<br />
suas opiniões,<br />
era um homem<br />
do seu tempo:<br />
um católico<br />
marcado pelas<br />
experiências<br />
traumáticas<br />
da I República<br />
e da<br />
emergência<br />
do comunismo<br />
na Rússia<br />
DANIEL ROCHA<br />
DR<br />
pois <strong>de</strong> ter sido alertado para um<br />
caso <strong>de</strong> “suicídio” na se<strong>de</strong> da polícia<br />
política – a mulher do embaixador do<br />
Brasil viu um preso a cair <strong>de</strong> <strong>uma</strong> janela<br />
– pediu explicações ao director<br />
da Pi<strong>de</strong> e, <strong>de</strong>pois, em carta ao ministro<br />
do Interior Trigo <strong>de</strong> Negreiros,<br />
escreveu que só esperava que não se<br />
fizessem coisas que fossem contra os<br />
“princípios cristãos”.<br />
Isso é, no entanto, muito pouco para<br />
conseguir controlar <strong>uma</strong> Igreja<br />
que, a partir dos anos 50, vê nascer<br />
nas organizações que o próprio Car<strong>de</strong>al<br />
apadrinhara um catolicismo progressista<br />
que esta con<strong>de</strong>nava. Isso<br />
suce<strong>de</strong>rá nas juventu<strong>de</strong>s católicas –<br />
on<strong>de</strong> é notável o progressivo afastamento<br />
<strong>de</strong> João Benard da Costa, alguém<br />
em quem muito apostara –, no<br />
“seu” Seminário dos Olivais, on<strong>de</strong><br />
acaba por substituir o director mas<br />
on<strong>de</strong> não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ter longas discussões<br />
com figuras como Luis Moita, à<br />
altura ainda sacerdote, ou mesmo na<br />
paróquia <strong>de</strong> Belém on<strong>de</strong> entra em<br />
choque com o padre Felicida<strong>de</strong> Alves,<br />
um intelectual que ele próprio promovera<br />
e estimava.<br />
Mas se ainda hoje alguns dos que o<br />
conheceram e, <strong>de</strong>pois, saíram da Igreja<br />
lhe reconhecem algum valor – “é<br />
curioso falar hoje com muitos católicos<br />
<strong>de</strong> esquerda <strong>de</strong> então, mesmo<br />
com alguns que chegaram a ser padres,<br />
e verificar que eles não são muito<br />
críticos <strong>de</strong> Cerejeira, antes têm<br />
<strong>de</strong>le <strong>uma</strong> visão mais matizada”, adianta<br />
Irene Pimentel –, noutros casos as<br />
feridas abertas sangraram abundantemente.<br />
Talvez o caso mais evi<strong>de</strong>nte<br />
tivesse sido o do Bispo do Porto. D.<br />
António Ferreira Gomes, que nunca<br />
perdoou a Cerejeira a sua ambiguida<strong>de</strong><br />
quando entrou em conflito com<br />
“A forma como<br />
[Cerejeira] <strong>de</strong>fine<br />
o totalitarismo é <strong>uma</strong><br />
forma mo<strong>de</strong>rna.<br />
Tão mo<strong>de</strong>rna<br />
que cheguei a pensar<br />
referir no livro<br />
as suas semelhanças<br />
com os escritos<br />
<strong>de</strong> Hanna Arendt dos<br />
anos 50. Só que<br />
aquilo foi feito<br />
em 1938”<br />
Irene Pimentel<br />
Salazar. Mais tar<strong>de</strong> viria mesmo a<br />
acusá-lo <strong>de</strong> cumplicida<strong>de</strong>s com o regime<br />
que, segundo a historiadora, o<br />
Car<strong>de</strong>al <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong> nunca teve.<br />
“O Bispo do Porto refere-se-lhe,<br />
<strong>de</strong>pois da crise, <strong>de</strong> <strong>uma</strong> forma quase<br />
insolente, provocatória, e nem sequer<br />
é rigorosa. Não é verda<strong>de</strong>, por exemplo,<br />
que a Pi<strong>de</strong> fosse todos os dias ao<br />
Paço <strong>de</strong> Santana, on<strong>de</strong> era o Patriarcado,<br />
para recolher informações. Cerejeira<br />
não só ficou muito magoado<br />
com essas acusações como lhe respon<strong>de</strong>u,<br />
sublinhado que nunca fazia<br />
perguntas ao po<strong>de</strong>r político, e muito<br />
menos à Pi<strong>de</strong>, sobre a Igreja e as pessoas<br />
da Igreja. O que é verda<strong>de</strong>”.<br />
A sua relação com o regime era<br />
mais complexa, e por isso<br />
mais difícil. “Ele foi sempre muito<br />
pru<strong>de</strong>nte – excessivamente pru<strong>de</strong>nte<br />
– e nunca atravessou o Rubicão ao<br />
ponto <strong>de</strong> se colocar n<strong>uma</strong> situação <strong>de</strong><br />
confronto com o regime”, explica a<br />
autora. Porquê? Porque, no fundo,<br />
acreditava que, <strong>de</strong>pois da República,<br />
o Estado Novo servia, em última análise,<br />
e apesar das fricções, os interesses<br />
da “sua” Igreja.<br />
E os interesses da “sua” Igreja sempre<br />
se sobrepuseram a tudo o mais<br />
na sua longa e influente vida.<br />
Ver crítica <strong>de</strong> livros págs. 46 e segs.
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“Até que aconteceu o inesperado. E<br />
tudo isto <strong>de</strong>u <strong>uma</strong> volta. Em meio minuto,<br />
a minha vida mudou. Exactamente.<br />
Certo dia, no Hotel Praia-Mar.<br />
Em Carcavelos.” António Santos a escrever<br />
no conforto da sua casa, em<br />
<strong>Lisboa</strong>. A espreitar o rio ao fundo, da<br />
janela. Concentrado, quieto, a luz coada<br />
do can<strong>de</strong>eiro iluminando as folhas<br />
do ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> capa dura.<br />
“(...)Apesar da barulheira, ainda assim<br />
ouvi bem o toque do telefone colocado<br />
lá <strong>de</strong>ntro, daquela espécie <strong>de</strong><br />
mesa <strong>de</strong> apoio à cama. Já não era sem<br />
tempo. Devia ser do room service a<br />
confirmarem as tostas <strong>de</strong> rosbife.<br />
Porta aberta, água escorrendo-me<br />
pela cabeça, gritei-lhe: ‘Ana atenda<br />
aí, por favor (...)’”<br />
É o quarto livro <strong>de</strong>ste ex-jornalista:<br />
“Deixei-te o Sorriso em Casa” (Oficina<br />
do Livro). “Há <strong>uma</strong> espécie <strong>de</strong> resmungo<br />
contra os jornalistas que escrevem<br />
livros. Mas os jornalistas têm<br />
todas as armas e técnicas para o fazer”,<br />
diz.<br />
É “sobre a vida” que escreve. Que<br />
no romance mudou em meio minuto<br />
e que, na realida<strong>de</strong>, também já mudou,<br />
muitas vezes, para ele.<br />
António Santos, 64 anos, natural<br />
<strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>. Apresentou a Informação<br />
2 e o Jornal das Nove, noticiários <strong>de</strong><br />
referência do segundo canal da RTP.<br />
Criou e apresentou o Jornalinho, premiado<br />
telejornal para crianças. E na<br />
Rádio Comercial, o programa “As Noites<br />
Longas do FM Estéreo”, “histórias<br />
com disco ao meio”.<br />
Vinte e um anos <strong>de</strong> jornalismo passados,<br />
aceita o convite do ex-primeiro<br />
ministro António Guterres para dirigir<br />
o seu gabinete <strong>de</strong> imprensa. E ali permanece<br />
durante sete anos, a conhecer<br />
“o po<strong>de</strong>r por <strong>de</strong>ntro”.<br />
Quando Guterres se <strong>de</strong>mite, Santos<br />
não regressa ao jornalismo, por <strong>uma</strong><br />
questão <strong>de</strong> princípio. Resolve <strong>de</strong>dicarse<br />
a fundo ao que sempre o moveu: a<br />
escrita. “Tinha já muita coisa na gaveta”,<br />
conta. Mas só quando cessou<br />
funções no Governo <strong>de</strong> Guterres, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong><br />
publicar. “Os Sapos Vivos estão<br />
pela Hora da Morte” (Gótica/Difel),<br />
em 2003, “O Pescador <strong>de</strong> Girassóis”<br />
(Presença), em 2007.<br />
“Deixei-te o Sorriso em Casa” <strong>de</strong>-<br />
Livros<br />
“Há <strong>uma</strong> espécie <strong>de</strong> resm<br />
os jornalistas que escre<br />
22 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />
“Deixei-te o Sorriso em Casa”, livro sobre o amor e a vida, é o quarto da autoria do antigo j<br />
Jornal das Nove. Paula Torres <strong>de</strong> Carvalho<br />
morou dois anos a escrever. “A i<strong>de</strong>ia<br />
começou a inquietar-me mal acabei<br />
o romance anterior”, conta. Quando<br />
<strong>de</strong>u com um par <strong>de</strong> namorados <strong>de</strong><br />
mão dada, junto ao rio. “Daí cheguei<br />
a outros encantamentos ingénuos,<br />
meio impossíveis, como as colecções<br />
que só os namorados po<strong>de</strong>m fazer:<br />
<strong>de</strong> sorrisos, por exemplo”. Juntoulhes<br />
“<strong>uma</strong> espécie <strong>de</strong> âncora, o factor<br />
tempo”. Porque todos nós “<strong>de</strong>sejaríamos<br />
conseguir parar o tempo para<br />
lhe po<strong>de</strong>rmos escapar por um segundo<br />
que fosse”, explica.<br />
As estantes cheias <strong>de</strong> livros e <strong>de</strong><br />
CDs, o sofá vermelhão, a música ao<br />
fundo. Ele gosta “<strong>de</strong>ste conforto para<br />
escrever”.<br />
“Ela aten<strong>de</strong>u.<br />
Só que não era do room service.<br />
Era a minha mentira chegando sem<br />
aviso.<br />
Percebi isso mal saí do chuveiro e entrei<br />
no quarto <strong>de</strong> toalha enrolada à<br />
cintura (...) Havia nela <strong>uma</strong> enorme<br />
tristeza quando me fixou (...) Não<br />
Nuno, não era do room service. Era<br />
a Isabel. (...)<br />
E eu perdido:<br />
- C’um caraças, ‘tou lixado! – e não<br />
me saíu mais nada cá <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro,<br />
além <strong>de</strong> repetir vezes sem conta, pelo<br />
tempo fora, <strong>de</strong> olhos fechados, mãos<br />
na cabeça , cabeça em baixo, <strong>uma</strong><br />
lágrima triste a correr, c’um caraças,<br />
‘tou lixado!”<br />
Longe fica o tempo em que António<br />
Santos entrou nos serviços <strong>de</strong> noticiário<br />
da Rádio Renascença, e como<br />
locutor, “por ter falhado redondamente<br />
o exame <strong>de</strong> aptidão a arquitectura”.<br />
Foi lá que começou a fazer jornalismo<br />
com “a maior re<strong>de</strong> <strong>de</strong> correspon<strong>de</strong>ntes<br />
do país: os párocos”. Foi<br />
lá que conheceu António Guterres a<br />
fazer “comentários brilhantes sobre<br />
economia recheada <strong>de</strong> política”. Mas<br />
não foi lá, mas na Rádio Comercial,<br />
muitos anos <strong>de</strong>pois, em 1982, que o<br />
seu nome ficou ligado à Rádio com o<br />
programa As Noites Longas do FM<br />
Estéreo que lhe valeu um prémio pela<br />
melhor apresentação <strong>de</strong> rádio e um<br />
“sete <strong>de</strong> Ouro” pela melhor autoria,<br />
realização e apresentação <strong>de</strong> Rádio.<br />
Só <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> regressar da tropa,<br />
feita em Moçambique, concorreu à<br />
RTP, em 1972. Era no tempo <strong>de</strong> Fialho<br />
Gouveia e <strong>de</strong> Manoel Caetano. E, <strong>de</strong>pois,<br />
da Maria Elisa, <strong>de</strong> Fernando<br />
Balsinha. “Fiz um estágio rigorosíssimo,<br />
estavam sempre em cima <strong>de</strong> nós<br />
a corrigir-nos”, coisa rara, hoje, nas<br />
redacções. “E é por isso que assistimos,<br />
<strong>de</strong> manhã, em certas rádios, a<br />
noticiar as intempéries na Ma<strong>de</strong>ira<br />
ou o terramoto no Chile, aos gritos...<br />
Não se po<strong>de</strong> falar aos gritos <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />
coisa que já causou gritos <strong>de</strong> coração<br />
e <strong>de</strong> alma a milhares <strong>de</strong> pessoas...<br />
não”.<br />
Sinal dos Tempos? “Só se for aqui”,<br />
critica. “Vemos a TVE, a CBS News,<br />
a NBC, ninguém relata <strong>uma</strong> catástrofe<br />
aos gritos; por motivos óbvios”.<br />
É a favor <strong>de</strong> um jornalismo livre,<br />
responsável, rigoroso e isento, embora<br />
consi<strong>de</strong>re que a isenção total<br />
não existe. “Existe é o <strong>de</strong>ver profissional<br />
<strong>de</strong> tentar fazer isso, todos os<br />
dias”. Reconhece: “Não somos completamente<br />
isentos e o jornalismo<br />
não po<strong>de</strong> ser <strong>uma</strong> coisa inócua nem<br />
acéptica”.<br />
E embora afirme que a “liberda<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> expressão não está em causa em<br />
Portugal”, admite que a “apetência<br />
<strong>de</strong> dominar a informação sempre<br />
existiu”. Notando que “há vários tipos<br />
<strong>de</strong> interesses” e que estes “não são só<br />
políticos ou governamentais”, mas<br />
também económicos, empresariais<br />
ou sindicais, salienta que “todos os<br />
governos gostam que os órgãos <strong>de</strong><br />
comunicação social noticiem as coisas<br />
boas e não as más. Não po<strong>de</strong>m é, no<br />
dia em que as notícias são <strong>de</strong>sagradáveis,<br />
calar o mensageiro”. A esse propósito<br />
dá a sua opinião sobre a polémica<br />
acerca da suspensão do Jornal<br />
Nacional da TVI. “O mais inteligente<br />
seria <strong>de</strong>ixar o jornal no ar. Mas o controlo<br />
não é mudar pivots. É feito <strong>de</strong><br />
outra maneira...”, nota.<br />
Diz que “nunca” se sentiu controlado.<br />
“Quase <strong>de</strong>sligava o telefone aos<br />
assessores. Quando me diziam: ‘Convém<br />
fazer <strong>uma</strong> reportagem em tal<br />
sítio’ eu perguntava: Convém a<br />
quem?”<br />
Ironia do <strong>de</strong>stino: quando António<br />
Guterres foi eleito primeiro ministro,<br />
convidou-o para dirigir o gabinete <strong>de</strong><br />
imprensa. “Disse-lhe três vezes que<br />
não”. Mas acabou por aceitar. Achava<br />
que Guterres “tinha um projecto bom<br />
ENRIC VIVES-RUBIO
mungo contra<br />
evem livros...”<br />
jornalista que foi <strong>uma</strong> das “caras” da Informação 2 e do<br />
“O po<strong>de</strong>r po<strong>de</strong><br />
tranformar<br />
as pessoas nuns<br />
palhaços emproados,<br />
tipo pavões ou po<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>spojá-los dos seus<br />
hábitos...e eu quanto<br />
mais<br />
<strong>de</strong>slumbramento via<br />
ao meu lado [dirigiu<br />
o gabinete<br />
<strong>de</strong> imprensa do então<br />
primeiro-ministro<br />
António Guterres],<br />
mais ascético me<br />
tornava”<br />
Garcia Márquez, Calvino,<br />
Yourcenar, Ian McEwan, Joyce e<br />
Cardoso Pires, Sophia <strong>de</strong> Mello<br />
Breyner e Rimbaud - os que o<br />
vão influenciando<br />
para o país e <strong>uma</strong> equipa fabulosa”.<br />
E acreditava “na frescura que levou<br />
ao Palácio <strong>de</strong> Belém”. Disse a um colega,<br />
Solano <strong>de</strong> Almeida, “vou aceitar,<br />
que isto é capaz <strong>de</strong> ser giro. Mas com<br />
<strong>uma</strong> promessa: não volto ao jornalismo”.<br />
Não se “sentiria bem” a voltar a<br />
fazer um telejornal “e as pessoas em<br />
casa: ‘olha o gajo, esteve sete anos<br />
com o Guterres e agora está ali armado<br />
em isento? Bastava um espectador<br />
ter essa suspeita”, diz.<br />
Teve então a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ver<br />
“o po<strong>de</strong>r por <strong>de</strong>ntro”. “Fascinante”,<br />
<strong>de</strong>fine. “O po<strong>de</strong>r po<strong>de</strong> tranformar as<br />
pessoas nuns palhaços emproados,<br />
tipo pavões ou po<strong>de</strong> <strong>de</strong>spojá-los dos<br />
seus hábitos...e eu quanto mais <strong>de</strong>slumbramento<br />
via ao meu lado, mais<br />
ascético me tornava”. Elogia o escrúpulo<br />
<strong>de</strong> Guterres, como daquela vez<br />
que, finda <strong>uma</strong> cimeira oficial, <strong>de</strong>cidiu<br />
viajar para participar num congresso<br />
do Partido Trabalhista britânico,<br />
em Brighton. “E então era ver o<br />
António Guterres, o saco do fato, o<br />
trolley, o António Santos, o saco do<br />
fato...Isto revela o caracter <strong>de</strong> Guterres<br />
e o caracter é <strong>de</strong>cisivo.”<br />
Não voltou ao jornalismo. E pôs-se<br />
a escrever livros. “Se não escrevesse<br />
<strong>de</strong>sidratava-se-me a alma. Vou renascendo<br />
quando escrevo, mas também<br />
me vou sentindo morrer alg<strong>uma</strong>s<br />
vezes...” Escreve sobre “sauda<strong>de</strong>s,<br />
apetites, sítios, gentes, sonhos”. É<br />
“sobre a vida” que escreve, diz, lembrando<br />
García Márques. “Po<strong>de</strong>-se<br />
escapar a escrever sobre tudo. Menos<br />
a <strong>uma</strong> coisa: aquilo que viveste.” Márquez,<br />
que inclui entre os escritores<br />
que mais o vão influenciando, junto<br />
a Calvino, Yourcenar e Ian McEwan,<br />
Joyce e Cardoso Pires, Sophia <strong>de</strong><br />
Mello Breyner e Rimbaud. “Na estante,<br />
metendo-me em respeito, tirandome<br />
as peneiras”, frisa.<br />
“Porra <strong>de</strong> vida, pensei. Apenas pensei.<br />
Vinha triste e magra, correcta e seca(...)<br />
Estão aí todos os sorrisos da<br />
nossa vida, incluindo o meu. Estão<br />
todos menos um: o teu. Esse não consegui<br />
encontrar(...) terás <strong>de</strong> o procurar<br />
tu, se o quiseres <strong>de</strong>volta – e, dito<br />
isto, saíu disparada <strong>de</strong> regresso ao<br />
hotel. Passou a ponte e, no alto da<br />
calçada, <strong>de</strong>sapareceu (...)”.<br />
apoio<br />
organização<br />
JORGE SALAVISA DIRECTOR ARTÍSTICO SLTM<br />
SÃO LUIZ /ABR~1O<br />
8ª FESTA<br />
DO JAZZ DO<br />
SAO LUIZ<br />
A FESTA DO JAZZ<br />
PORTUGUÊS<br />
16, 17, 18 ABR<br />
SEXTA, SÁBADO<br />
E DOMINGO<br />
SALA PRINCIPAL<br />
JARDIM DE INVERNO<br />
TEATRO-ESTÚDIO MÁRIO VIEGAS<br />
SPOT SÃO LUIZ<br />
DIRECÇÃO ARTÍSTICA:<br />
CARLOS MARTINS<br />
PRODUÇÃO EXECUTIVA:<br />
LUÍS HILÁRIO<br />
ORGANIZAÇÃO:<br />
SLTM / SONS DA LUSOFONIA<br />
WWW.TEATROSAOLUIZ.PT<br />
M/3<br />
na vida artística e cultural<br />
<strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong> e do país e a<br />
generosida<strong>de</strong> e altruísmo<br />
que emanaram do fundador,<br />
Luiz Villas-Boas, são razões<br />
mais do que suficientes para<br />
esta homenagem ao Hot<br />
[Clube <strong>de</strong> Portugal] na Festa.<br />
Carlos Martins Director Artístico da Festa do Jazz<br />
silva!<strong>de</strong>signers (...) a influência que teve<br />
SÃO LUIZ TEATRO MUNICIPAL<br />
RUA ANTÓNIO MARIA CARDOSO, 38; 1200-027 LISBOA<br />
GERAL@TEATROSAOLUIZ.PT / T: 213 257 640<br />
BILHETEIRA DAS 13H ÀS 20H<br />
T: 213 257 650<br />
BILHETEIRA@TEATROSAOLUIZ.PT<br />
Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 23
Aqui há três anos a vida <strong>de</strong> Dan Snaith<br />
<strong>de</strong>u <strong>uma</strong> volta. O seu disco “Andorra”,<br />
o segundo sob o nome Caribou,<br />
criou um inesperado brado.<br />
Tratava-se <strong>de</strong> electrónica lúdica, um<br />
jogo <strong>de</strong> “flippers” cósmico que, contrariando<br />
a imagem da música electrónica<br />
como coisa futurista e maquinal,<br />
estava banhado na luz solar com<br />
que i<strong>de</strong>ntificamos alguns dos ícones<br />
dos anos 60.<br />
Era um disco <strong>de</strong> pop electrónica<br />
retro-futurista. Era um robô com camisas<br />
havaianas e bronzeado que bebia<br />
óleo por copos <strong>de</strong> daiquiri. E era,<br />
também e apesar do sucesso, um risco<br />
para Snaith: ficar etiquetado para<br />
sempre, nunca mais se libertar do rótulo<br />
<strong>de</strong> músico que faz electrónica<br />
para quem não gosta <strong>de</strong> electrónica.<br />
“Eu sabia que as pessoas iam i<strong>de</strong>ntificar<br />
o som <strong>de</strong> ‘Andorra’ comigo para<br />
sempre”, diz Dan Snaith, quando<br />
lhe perguntamos se, <strong>de</strong>pois do êxito<br />
<strong>de</strong>sse disco, teve receio <strong>de</strong> ficar preso<br />
a <strong>uma</strong> fórmula. “Eu sabia que iam dizer:<br />
‘Ah, Caribou é o tipo que gosta <strong>de</strong><br />
electrónica e dos anos 60.’”<br />
Esse tipo <strong>de</strong> comentários não o <strong>de</strong>ixam<br />
muito satisfeito. Consi<strong>de</strong>ra-os<br />
não só “tremendamente chatos” como<br />
“bastante redutores”. Resume as<br />
coisas nos mesmos termos que os<br />
concorrentes do Big Brother usavam<br />
quando falavam com Teresa Guilherme:<br />
“Eu não sou só isso.”<br />
Como é que um som é líquido?<br />
É verda<strong>de</strong>, como “Swim”, o novo disco,<br />
o prova. Não só Snaith não é só<br />
isso como “os próprios anos 60 não<br />
foram assim tão solares”. Esta história<br />
é velha: “Cria-se <strong>uma</strong> narrativa à<br />
volta <strong>de</strong> <strong>uma</strong> época e essa narrativa<br />
sobrepõe-se à realida<strong>de</strong>.” Em termos<br />
orwellianos: “Associa-se <strong>uma</strong> época<br />
a um ‘slogan’.” Mas quando se olha<br />
para lá do “slogan” a realida<strong>de</strong> preganos<br />
partidas. “O que é a música dos<br />
anos 60?”, atira. “A música que encontro<br />
nos anos 60 era muito variada.<br />
Os Silver Apples não soam ao Coltrane<br />
e os 13th Floor Elevator não soam<br />
aos Beach Boys.”<br />
Quando <strong>de</strong>u pela armadilha, reagiu<br />
como os miúdos que se sentem injustiçados:<br />
“Fiquei cheio <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
fazer um disco que fosse o oposto [<strong>de</strong><br />
‘Andorra’].” Queria que fosse difícil<br />
i<strong>de</strong>ntificá-lo com <strong>uma</strong> estética. Que<br />
não pu<strong>de</strong>ssem dizer “Caribou soa aos<br />
anos 60”. Caribou não soa aos anos<br />
60, soa a um rapaz <strong>de</strong> 6 anos.<br />
“Swim” é <strong>uma</strong> tentativa <strong>de</strong> “fazer<br />
música <strong>de</strong> dança que fosse fluida, que<br />
24 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />
parecesse água”. Um tipo ouve esta<br />
<strong>de</strong>finição do outro lado da linha do<br />
telefone e dá por si a fazer <strong>de</strong> advogado<br />
do diabo: “Como é que um som<br />
é líquido?”<br />
É neste ponto que Dan Snaith começa<br />
a revelar-se <strong>uma</strong> personagem<br />
curiosa e contraditória: ao mesmo<br />
tempo um eremita e um conversador<br />
entusiasmado, um pensador da música<br />
e um emocionado dos sons, um<br />
“geek” da quinquilharia electrónica<br />
e um antimatemático.<br />
Conversa sobre tudo, seja o som da<br />
sua torra<strong>de</strong>ira ou a frequência <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />
nota, com o entusiasmo <strong>de</strong> <strong>uma</strong> criança<br />
<strong>de</strong> cinco anos que acabou <strong>de</strong> passar<br />
<strong>de</strong> nível na sua consola. Tem teorias<br />
sobre isto e aquilo, discorre sobre a<br />
história da música, vai buscar imagens<br />
inusitadas para se explicar.<br />
Conversar com este homem é um<br />
prazer porque não há nele um miligrama<br />
<strong>de</strong> pose. Quando lhe perguntamos<br />
“Como é que um som é líquido?”,<br />
mal passou um segundo e ele<br />
já tem múltiplas explicações na ponta<br />
da língua.<br />
Teoria um: “Se for um som <strong>de</strong> sintetizador,<br />
ou qualquer outro, é preciso<br />
que flua <strong>de</strong> um ouvido para outro,<br />
que o ‘pitch’ suba e <strong>de</strong>sça.”<br />
Teoria dois: “O som tem <strong>de</strong> parecer<br />
<strong>uma</strong> onda. Tem <strong>de</strong> ser o oposto <strong>de</strong><br />
um som fixo, ou <strong>de</strong> um som metálico.<br />
O que eu queria era isso: o oposto <strong>de</strong><br />
um som fixo e metálico.”<br />
Teoria três: “Na maior parte dos<br />
casos, a música <strong>de</strong> dança é feita <strong>de</strong><br />
‘samples’ e ‘loops’, portanto <strong>de</strong> repetição.<br />
Eu quero que os elementos que<br />
se repetem não se repitam. Quero que<br />
esteja sempre tudo a evoluir, como<br />
<strong>uma</strong> corrente a contornar os seixos<br />
no fundo da água.”<br />
Teoria quatro: “Se atirarmos pedras<br />
ao mesmo tempo para a água, vemos<br />
que se forma um padrão complexo a<br />
partir da intersecção <strong>de</strong> simples ondas<br />
concêntricas.”<br />
Podíamos continuar, mas isto é suficiente<br />
para se traçar <strong>uma</strong> imagem<br />
da mente hiperactiva do rapaz. Confessa<br />
que “Swim” “é o primeiro disco<br />
para o qual tinha um conceito” e isso<br />
levou-o a “criar regras”: por exemplo,<br />
“se um som oscila para a frente e para<br />
trás a <strong>uma</strong> velocida<strong>de</strong>, outro som<br />
tinha <strong>de</strong> oscilar a outra velocida<strong>de</strong>”.<br />
Dá outros exemplos, uns mais imagéticos,<br />
outros mais teóricos, e <strong>de</strong>pois,<br />
qual adolescente que nota que<br />
está a falar sozinho há minutos, tem<br />
um acesso <strong>de</strong> autoconsciência: “Isto<br />
não quer dizer que eu tenha <strong>uma</strong><br />
aproximação matemática à música.”<br />
(É difícil não gostar <strong>de</strong>ste rapaz.)<br />
Façamos aqui um interlúdio para<br />
rápidas explicações: Snaith consegue<br />
mesmo fazer <strong>de</strong> “Swim” um disco<br />
aquático, no sentido em que Robert<br />
Wyatt (em “Rock Bottom”) ou Matt<br />
Elliott (“The Mess We Ma<strong>de</strong>”) fizeram<br />
discos aquáticos. E sem dúvida que<br />
a solarida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “Andorra” surge aqui<br />
dirimida. Mas não se pense que<br />
“Swim” é um disco com a carga ontológica<br />
daqueles atrás mencionados,<br />
ou que é apenas <strong>uma</strong> experiência<br />
quase matemática. Snaith é um tipo<br />
lúdico, o que torna a sua música, por<br />
mais experimental que seja, prazenteira,<br />
mas também não é um analista<br />
laboratorial.<br />
“Pensar matematicamente como<br />
funciona a música é <strong>uma</strong> mentira. É<br />
reducionismo”, atira. “É interessante<br />
saber a que frequência está <strong>uma</strong> nota,<br />
mas isso não quer dizer que se saiba<br />
como é que ela resulta emocionalmente<br />
ao ouvido das pessoas.” O que<br />
encanta Snaith na música, tanto enquanto<br />
ouvinte como praticante, “é<br />
o que fica no espaço entre o que sabemos<br />
e o que não sabemos cientificamente<br />
da música”.<br />
Diz ter prazer nas suas incapacida<strong>de</strong>s<br />
e no <strong>de</strong>sconhecido que surge sempre<br />
que quer fazer <strong>uma</strong> faixa. “Adoro<br />
quando não sabemos exactamente<br />
como algo funciona mas temos <strong>uma</strong><br />
iluminação <strong>de</strong> como fazer. Temos um<br />
instinto. Se soubéssemos exactamente<br />
como fazer as coisas”, diz, n<strong>uma</strong><br />
imagem assaz feliz, “se soubéssemos<br />
como reproduzir exactamente a música<br />
que está na nossa cabeça, não<br />
havia interesse nenhum em fazê-la”.<br />
O tipo que gostava <strong>de</strong> falhar<br />
Não saber por completo o que está a<br />
fazer po<strong>de</strong> dar muito prazer ao senhor<br />
Caribou mas também dá muito trabalho.<br />
A título <strong>de</strong> exemplo mencione-se<br />
o número <strong>de</strong> faixas que fez para este<br />
disco: 600. Leram bem: 600.<br />
Um número <strong>de</strong>stes transmite a imagem<br />
<strong>de</strong> um eremita zangado com a<br />
vida, a procurar ultrapassar as suas<br />
limitações técnicas. Mas Snaith, pese<br />
embora aceitando ser eremita e perfeccionista,<br />
rejeita conotações negativas<br />
da solidão que este processo<br />
implica.<br />
“Eu fiz 600 faixas, é verda<strong>de</strong>, mas<br />
quero que fique claro que não as fiz<br />
propositadamente para este disco.<br />
Simplesmente, todos os dias acordo<br />
e apetece-me fazer canções. Acho que<br />
“Adoro quando não<br />
sabemos exactamente<br />
como algo funciona<br />
mas temos <strong>uma</strong><br />
iluminação <strong>de</strong> como<br />
fazer. Temos um<br />
instinto.<br />
Se soubéssemos como<br />
reproduzir<br />
exactamente<br />
a música que está<br />
na nossa cabeça,<br />
não havia interesse<br />
nenhum em fazê-la”<br />
se ninguém me editasse os discos eu<br />
fazia-as na mesma.”<br />
Resumindo: não é <strong>uma</strong> fábrica, é<br />
um miúdo excitado.<br />
“O ponto <strong>de</strong> partida po<strong>de</strong> ser qualquer<br />
coisa. Um instrumento ou um<br />
som <strong>de</strong> outro disco. Tenho instrumentos,<br />
‘samplers’, ‘laptop’, <strong>uma</strong><br />
data <strong>de</strong> coisas diferentes. Posso começar<br />
por qualquer lado, posso começar<br />
com <strong>uma</strong> simples brinca<strong>de</strong>ira<br />
<strong>de</strong> mudar digitalmente um som. Num<br />
dia acordo com um som <strong>de</strong> guitarra<br />
e produzo-o <strong>de</strong> modo a que não soe<br />
a <strong>uma</strong> guitarra. Noutro, canto por<br />
cima <strong>de</strong> <strong>uma</strong>s notas <strong>de</strong> piano e <strong>de</strong>pois<br />
retiro o piano. Posso ficar a experimentar<br />
gravar o som da minha torra<strong>de</strong>ira<br />
e tentar perceber como é que<br />
esse som po<strong>de</strong> encaixar n<strong>uma</strong> faixa.”<br />
(Vá lá que, dado o tema do disco, não<br />
lhe <strong>de</strong>u para enfiar a torra<strong>de</strong>ira na<br />
água da banheira.)<br />
Pelo que entre torra<strong>de</strong>iras, portas,<br />
tachos e panelas, instrumentos electrificados<br />
e acústicos, entre parafernália<br />
computacional e tralha avulsa,<br />
mal acorda Snaith tem muitos brinquedos<br />
ao seu dispor. Pelo que, mais<br />
que um plano bem traçado que tem<br />
<strong>de</strong> levar a cabo, ele tem milhares <strong>de</strong><br />
peças <strong>de</strong> Lego que vai encaixando e<br />
que espera que “por milagre” batam<br />
Mergulhar,<br />
mergulhar<br />
certo com a i<strong>de</strong>ia inicial: fazer o Lego<br />
soar a mergulho.<br />
Snaith tem verda<strong>de</strong>iro gosto em<br />
ficar à conversa sobre as possibilida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> criar sons musicais novos a<br />
partir <strong>de</strong> sons a que estamos habituados,<br />
seja <strong>uma</strong> guitarra ou <strong>uma</strong> torra<strong>de</strong>ira.<br />
Repete que <strong>uma</strong> das coisa<br />
que o fascinam é “como fazer um novo<br />
som”. Também sobre isto tem teorias:<br />
“Um dos talentos que se tem<br />
<strong>de</strong> ter é o <strong>de</strong> reconhecer a potencialida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> um elemento. Pegar n<strong>uma</strong><br />
caixa <strong>de</strong> ritmo e puxá-la para a frente<br />
na mistura e assim criar um novo<br />
género. Uma coisa tão simples quanto<br />
isto.”<br />
Esse lado <strong>de</strong> constante teorização<br />
é outro dos aspectos fascinantes <strong>de</strong>ste<br />
rapaz gran<strong>de</strong> para quem tudo são<br />
peças <strong>de</strong> puzzle que encaixam <strong>uma</strong>s<br />
nas outras por (faz questão <strong>de</strong> dizer)<br />
mera sorte. De “reconhecer a potencialida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> um novo elemento” salta<br />
para <strong>uma</strong> teoria da história da música<br />
que se po<strong>de</strong> resumir assim: “As gran<strong>de</strong>s<br />
mudanças na música têm a ver<br />
com tecnologia.” Não tem a mínima<br />
dúvida disso – no que está absolutamente<br />
correcto – e até dá exemplos:<br />
“Isto começa logo com o Bach a compor<br />
para piano forte.” (No que está<br />
errado: há exemplos anteriores.)<br />
Mas a graça disto é a distância que<br />
vai entre o seu lado <strong>de</strong> miúdo perdido<br />
n<strong>uma</strong> loja <strong>de</strong> brinquedos e o seu lado<br />
teórico. “Para mim e para todos os outros<br />
músicos o importante é encontrar<br />
um equilíbrio entre lidar com a tecnologia<br />
e comunicar <strong>uma</strong> emoção.”<br />
Tem “a impressão <strong>de</strong> que o que [faz]<br />
fica a milhas <strong>de</strong> distância da música”<br />
com que sonha. “Muita da minha música<br />
é o resultado <strong>de</strong> não conseguir<br />
fazer o que estava na minha cabeça”,<br />
diz. Mas se a i<strong>de</strong>ia é, e repete incessantemente,<br />
“transmitir algo emocionalmente<br />
relevante” para o ouvinte,<br />
então está tudo OK: em “Swim” consegue-o<br />
<strong>de</strong> novo. Algo mais sombrio<br />
que “Andorra”, menos harmónico,<br />
mais esguio e hipnótico.<br />
Algo que não lembra <strong>uma</strong> adolescência<br />
hedonista nem os anos 60,<br />
mas também não é perigoso como<br />
um mergulho <strong>de</strong> <strong>uma</strong> escarpa com<br />
rochas à espera um metro abaixo da<br />
linha <strong>de</strong> água. Algo que é antes tão<br />
simples e complexo como o cruzamento<br />
das ondinhas provocadas por<br />
várias pedras atiradas para a água.<br />
Pensando bem, não é um disco retro.<br />
É a infância do futuro.<br />
Ver crítica <strong>de</strong> discos págs. 53 e segs.<br />
“Swim”, <strong>de</strong> Caribou, é música para dançar na água. Não tem piranhas escondidas, mas tem<br />
peixes esquisitos. João Bonifácio
Música<br />
Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 25
A juventu<strong>de</strong> sónica<br />
já tem 50 anos<br />
Trinta anos <strong>de</strong>pois do nascimento dos Sonic Youth, o rock per<strong>de</strong>u a inocência, em Nova Iorque ainda<br />
acontecem coisas inesperadas e os autores <strong>de</strong> “Daydream Nation” são artistas multidisciplinares.<br />
Conversa com Lee Ranaldo antes do regresso da banda a Portugal. Jorge Marmeleira<br />
Música<br />
Do outro lado do telefone, algures<br />
nos EUA, Lee Ranaldo continua um<br />
senhor afável, diplomático nas repostas<br />
e pouco dado a polémicas. Um<br />
homem prático não muito distante<br />
daquele que há 30 anos negociava<br />
“cachets” com os promotores dos<br />
concertos e fazia as contas, enquanto<br />
os restantes Sonic Youth se entretinham<br />
a tagarelar sobre a pop <strong>de</strong><br />
Madonna, o cinema <strong>de</strong> Godard e o<br />
hardcore dos Minor Threat.<br />
Não que esse franco pragmatismo<br />
ofusque o entusiasmo e a energia do<br />
guitarrista. Não. Vai estar com Turston,<br />
Kim, Steve (e Mark Ibold) quinta<br />
e sexta-feira (dias 22 e 23), respectivamente,<br />
nos coliseus <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong> e do<br />
Porto, e na quarta-feira (dia 21) juntase<br />
a Rafael Total para um concerto<br />
<strong>de</strong> música improvisada na Galeria Zé<br />
dos Bois.<br />
Dito <strong>de</strong> outro modo, Lee Ranaldo<br />
continua, como quase todos os seus<br />
companheiros da banda, aberto a<br />
outras formas. “Acho que isso sempre<br />
aconteceu connosco e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início”,<br />
concorda. “Movemo-nos entre<br />
as canções pop e coisas mais experimentais.<br />
Ou entre a música e outras<br />
áreas. É um processo natural e multidisciplinar.<br />
Agora, por exemplo,<br />
fizemos <strong>uma</strong> banda sonora sem canções<br />
ou vozes para um filme francês<br />
[“Simon Werner a disparu”, <strong>de</strong> Fabice<br />
Gobert]”. Serão os Sonic Youth,<br />
afinal, artistas no sentido mais amplo<br />
do termo como sugeriu, em 2009 ao<br />
Ípsilon, o artista e músico português<br />
João Paulo Feliciano?<br />
“Sim, creio que sim. Ele tem razão.<br />
Somos artistas que usamos os instrumentos<br />
musicais para criar e esten<strong>de</strong>r<br />
<strong>uma</strong> plataforma, um espaço <strong>de</strong><br />
criação a que chamaria arte”.<br />
Esta é <strong>uma</strong> condição que <strong>de</strong>ve ser<br />
entendida à luz e às sombras da Nova<br />
Iorque dos finais dos anos 70 e início<br />
dos anos 80. “Foi esse o lugar que<br />
nos formou. On<strong>de</strong> encontrámos o<br />
punk, a new wave e a no-wave, os<br />
artistas e a cena do loft jazz. Somos<br />
o que somos e fazemos o que fazemos<br />
porque viemos <strong>de</strong> lá”.<br />
Se a banda – queremos acreditar<br />
– não mudou, já Nova Iorque é outra<br />
cida<strong>de</strong>, talvez menos afeita às epifanias<br />
que inspiraram o próprio Rana-<br />
26 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />
do. Ou não? “Sim, talvez. Tornou-se<br />
mais segura, mas não per<strong>de</strong>u vibração.<br />
Já ouviu falar do filme ‘Daddy<br />
Longlegs’ [<strong>de</strong> Benny Safdie e Josh Safdie]?<br />
Sei que vai estar aí num festival<br />
<strong>de</strong> cinema [o Indie<strong>Lisboa</strong>]. Faço um<br />
‘cameo’ [participação especial], mas<br />
os meus dois filhos [Sage and Frey]<br />
são actores principiais. Sabe como<br />
foram escolhidos para o ‘casting’?<br />
Um dos realizadores viu-os na rua.<br />
Nova Iorque ainda é sítio on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>m<br />
acontecer coisas assim e o filme<br />
captura isso muito bem”.<br />
Ainda no universo da arte, a pergunta<br />
inevitável: porquê “Sensational<br />
Fix”, a exposição itinerante que<br />
termina a 2 <strong>de</strong> Maio no Centre of Art<br />
Dos <strong>de</strong> Mayo, em Madrid? “Foi um<br />
convite do curador [Groenenboom<br />
Roland] e <strong>uma</strong> oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> contar<br />
a nossa vida multidisciplinar, <strong>de</strong><br />
mostrar e lembrar os nossos elos,<br />
aquilo que fomos incluindo ao longo<br />
do tempo”. Nesse sentido – é justo<br />
reconhecê-lo – ninguém se compara<br />
aos Sonic Youth. Nem os seus eventuais<br />
antecessores. “Os Velvet Un<strong>de</strong>rground<br />
foram sempre um grupo<br />
insular, virado para si mesmo. A única<br />
ligação que tinham ao mundo era<br />
Andy Warhol. Nós não precisamos<br />
<strong>de</strong> um Andy Warhol. Fazemos esse<br />
trabalho”.<br />
O fantasma dos cinquenta<br />
Um dos acontecimentos na biografia<br />
recente da banda foi o contrato com<br />
a veterana editora indie Matador, dirigida<br />
por Gerard Cosloy, velho amigo<br />
e fã dos anos 80 (lançou nos EUA<br />
alguns dos primeiros discos dos Sonic<br />
Youth). A saída da Universal significou,<br />
pois, algo <strong>de</strong> simbólico: um regresso.<br />
“Vinte anos <strong>de</strong>pois, voltamos<br />
a estar junto <strong>de</strong> pessoas que nos aju-<br />
“Quando começamos,<br />
o rock tinha trinta<br />
anos, restava-lhe<br />
vitalida<strong>de</strong> e energia.<br />
Hoje está mais velho,<br />
menos inocente e<br />
surpreen<strong>de</strong>nte.<br />
Continua a ser<br />
relevante como<br />
experiência<br />
individual, mas já<br />
não atinge as massas”<br />
Lee Ranaldo<br />
Lee Ranaldo toca com os outros<br />
Sonic Youth, dias 22 e 23,<br />
nos coliseus <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong> e do<br />
Porto; na quarta-feira (dia 21)<br />
junta-se a Rafael Total para um<br />
concerto <strong>de</strong> música improvisa<br />
da na Galeria Zé dos Bois,<br />
em <strong>Lisboa</strong><br />
daram a começar, que estiveram connosco<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o princípio e que estão,<br />
novamente, dispostas a acompanharnos.<br />
Mais do que <strong>uma</strong> reacção à falência<br />
do mo<strong>de</strong>lo das gran<strong>de</strong>s editoras,<br />
é um regresso real. Voltamos ao<br />
lugar <strong>de</strong> on<strong>de</strong> partimos”.<br />
O indie-rock americano é ainda<br />
esse lugar, mas o que lhe resta hoje<br />
quando nos EUA (até apetece chorar)<br />
é cada vez mais um género barroco,<br />
bufão, excessivamente anglófono<br />
(com os Radiohead a li<strong>de</strong>rar a invasão)<br />
e que esqueceu as raízes do punk<br />
e do hardcore? O guitarrista esquivase.<br />
“Não sei. As pessoas continuam<br />
como no passado a gostar <strong>de</strong> música<br />
pop, <strong>de</strong> canções <strong>de</strong> melodias. Mas o<br />
‘un<strong>de</strong>rground’ continua aí, escondido,<br />
a mexer-se algures. Po<strong>de</strong> é já não<br />
estar interessado no rock”.<br />
Po<strong>de</strong>? “Quando começamos, a música<br />
rock tinha trinta anos, era jovem,<br />
restava-lhe vitalida<strong>de</strong> e energia. Hoje<br />
é provável que as tenha perdido. Está<br />
mais velho, menos inocente e surpreen<strong>de</strong>nte.<br />
Continua a ser relevante<br />
como experiência individual, mas<br />
já não atinge as massas. Os Nirvana<br />
foram os últimos que fizeram isso”.<br />
Vai a caminho do museu, das interpretações<br />
<strong>de</strong> discos “clássicos” e velhos<br />
êxitos como fazem o jazz e blues?<br />
“Sim, temo que sim”.<br />
Um dos projectos que espera confirmação<br />
é a edição <strong>de</strong> um DVD <strong>de</strong>dicado<br />
a “Daydream Nation” (1988)<br />
que documenta os concertos <strong>de</strong> 2007,<br />
em que banda tocou o duplo LP na<br />
íntegra, e traz um muito curioso e<br />
inédito brin<strong>de</strong>: imagens da digressão<br />
<strong>de</strong> apresentação do disco em 1988.<br />
Esperem, se coisa for para a frente,<br />
ver <strong>uma</strong> Kim Gordon a fazer “headbanging”<br />
e a empurrar “stage-divers”<br />
e os corpos <strong>de</strong> Thuston Moore e Ranaldo<br />
a emularem, pés no chão e guitarra<br />
tesa nos braços, as silhuetas <strong>de</strong><br />
Greg Ginn e Johnny Ramone.<br />
Voltamos a 2010. Os Sonic Youth<br />
tem cinquenta anos e o fantasma dos<br />
Rolling Stones do “un<strong>de</strong>rground” já<br />
assobia atrás da porta. “Espero que<br />
não. Ainda tocamos com a mesma<br />
velocida<strong>de</strong>. Não há nada como confirmar<br />
ao vivo”. Nós confiamos e iremos<br />
confirmar. Afinal a banda <strong>de</strong> Lee<br />
Ranaldo chama-se Sonic Youth.
Música<br />
Sensational e<br />
Spectre<br />
conheceramse<br />
há 15 anos:<br />
são dois extraterrestres<br />
com<br />
<strong>uma</strong> ligação,<br />
garantem,<br />
“telepática”<br />
Quando Sensational e Spectre (Skiz<br />
Fernando) se conheceram no estúdio<br />
<strong>de</strong> Bill Laswell, algures no início da<br />
década <strong>de</strong> 1990, falaram pouco. Sensational,<br />
cujo nome <strong>de</strong> “rapper” era<br />
então Torture, terá dito a Skiz: “Tens<br />
chunk [erva]?”. Poucos minutos <strong>de</strong>pois,<br />
sem muito mais palavras, estava<br />
a improvisar sobre <strong>uma</strong> batida <strong>de</strong><br />
Skiz. Encontravam-se dois dos personagens<br />
mais interessantes do hip-hop<br />
mo<strong>de</strong>rno, autores <strong>de</strong> “Acid & Bass”,<br />
um dos melhores discos do género<br />
lançados no ano passado.<br />
“Somos talentos natos. Quando assim<br />
é, não tens nada a planear: fazes<br />
o que tens a fazer, sabes o que o outro<br />
quer”, diz Sensational ao Ípsilon. A<br />
relação dos dois – quase “telepática”,<br />
nota Skiz - continua a dar frutos. O<br />
disco, lançado pela Wordsound, editora<br />
<strong>de</strong> Skiz, foi feito em cerca <strong>de</strong> seis<br />
meses. “Enviava-lhe coisas pela Internet.<br />
Quando nos encontrávamos em<br />
Nova Iorque, fumávamos uns charros<br />
e começávamos a gravar. Não falamos,<br />
não vamos beber uns copos –<br />
partimos logo para a música. A ligação<br />
é profunda a esse nível. É tudo o que<br />
posso dizer”, resume Spectre.<br />
Mal viu Sensational, Spectre soube<br />
que tinha encontrado <strong>uma</strong> pessoa especial.<br />
“Pareceu-me logo <strong>uma</strong> personagem<br />
estranha, um extraterrestre.<br />
Tenho um bom radar para <strong>de</strong>tectar<br />
os extraterrestres que vivem entre nós<br />
– talvez por eu ser um <strong>de</strong>les”, conta.<br />
A relação entre Spectre, a viver em<br />
Baltimore, e Sensational, que se mudou<br />
<strong>de</strong> Nova Iorque para Nova Jérsia,<br />
tem uns 15 anos, mas só agora a dupla,<br />
que actua hoje na Galeria Zé dos<br />
Bois, em <strong>Lisboa</strong>, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ontem ter<br />
passado pelo Plano B, no Porto, lança<br />
um disco. Valeu a pena esperar:<br />
“Acid & Bass” é um portento <strong>de</strong> hiphop,<br />
ao mesmo tempo experimental<br />
(ao ponto <strong>de</strong> ter posto Sensational na<br />
capa da revista “Wire”) e clássico.<br />
Spectre assina as batidas (o “bass”);<br />
Sensational fica-se pela voz (o “acid”,<br />
com um “flow” totalmente livre, alimentado<br />
a erva).<br />
Stockhausen como “beat”<br />
Ainda como Torture, Sensational participou<br />
no terceiro disco dos Jungle<br />
Brothers, cujas sessões iniciais abriram<br />
novos caminhos na arte do hiphop<br />
- havia ruído, tempos para lá do<br />
comum e rimas fora dos lugares ditados<br />
pelas convenções do género. A<br />
Warner, editora da banda, rejeitou o<br />
material.<br />
Já como Sensational, o MC e produtor<br />
fez “Loa<strong>de</strong>d With Power” (1997),<br />
composto com um “sampler” rudimentar<br />
e “headphones” a servir <strong>de</strong><br />
microfone. Gravado num quatro pistas,<br />
o disco soa, ainda hoje, à frente<br />
do seu tempo – ou melhor, sem tempo<br />
<strong>de</strong>finido -, com visões negras, bizarras<br />
e enf<strong>uma</strong>radas dos cantos mais estranhos<br />
do hip-hop e do dub.<br />
Spectre, produtor habituado a outros<br />
meios técnicos, ficou estupefacto<br />
e lançou o disco na sua editora, a Wordsound,<br />
criada em 1994. “É lendário.<br />
“Em Nova Iorque,<br />
todos os tipos que<br />
conheces na rua são<br />
‘rappers’, todos<br />
têm um CD para<br />
ven<strong>de</strong>r. O Sensational<br />
era diferente <strong>de</strong> todos.<br />
Chamei ao primeiro<br />
álbum o punk rock<br />
do hip-hop”<br />
Spectre<br />
Há pessoas que hoje tentam chegar a<br />
esse som”, afirma. “Vi filmes <strong>de</strong> Lee<br />
‘Scratch’ Perry no Black Ark com o seu<br />
quatro pistas. Quando vi o Sensational<br />
pela primeira vez no meu estúdio, foi<br />
como se fosse transportado para a Jamaica,<br />
para o estúdio <strong>de</strong> Lee Perry. Ele<br />
[Sensational] era muito novo – quem o<br />
ensinou a fazer isto? Eram coisas que<br />
só alguém muito criativo e avançado<br />
musicalmente podia compreen<strong>de</strong>r”.<br />
“Loa<strong>de</strong>d With Power” valeu a Sensational<br />
o respeito em círculos mais<br />
experimentais do hip-hop e <strong>de</strong> gente<br />
como o poliglota musical Bill Laswell,<br />
mas também o escárnio <strong>de</strong> parte da<br />
comunida<strong>de</strong> hip-hop. Ele respon<strong>de</strong>lhes<br />
com indiferença: “Estava a fazer<br />
o que sentia, a criar sobre o que se<br />
estava a passar comigo, no meu universo,<br />
não me queria enquadrar noutro”.<br />
“Riem-se <strong>de</strong>le porque é um ‘freak’.<br />
Mas ele não está preocupado”,<br />
confirma Spectre. “Em Nova Iorque,<br />
todos os tipos que conheces na rua<br />
são ‘rappers’, todos têm um CD para<br />
ven<strong>de</strong>r. O Sensational era diferente<br />
<strong>de</strong> todos. Chamei ao primeiro álbum<br />
o punk rock do hip-hop”.<br />
Sensational também ven<strong>de</strong> os seus<br />
discos na rua. Fá-lo por sobrevivência,<br />
para “pagar as contas”. E sabe do<br />
que fala. Houve <strong>uma</strong> altura em que<br />
viveu na rua porque se fartou <strong>de</strong> pagar<br />
contas. Não sabe ao certo quando<br />
foi (há <strong>uma</strong> “névoa” na sua memória),<br />
mas durou “alguns anos”. “No início<br />
achei interessante, mas pouco <strong>de</strong>pois<br />
percebi: ‘isto não é fixe’”, conta. A<br />
situação agravar-se-ia com um problema<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> “crack”.<br />
Não precisou <strong>de</strong> reabilitação: “Diz-se<br />
que não se po<strong>de</strong> mudar ninguém que<br />
não queira mudar. Foi o que aconteceu<br />
comigo”.<br />
Sensational quis mudar e está agora<br />
na mó <strong>de</strong> cima. Em “Acid & Bass”,<br />
surge com <strong>uma</strong> confiança notável e<br />
<strong>uma</strong> produção que realça os méritos<br />
do seu talento como MC – os discos a<br />
solo, que ele próprio produz, são mais<br />
difíceis <strong>de</strong> digerir. “Ainda tenho um<br />
estado mental enevoado, mas já há<br />
mais clarida<strong>de</strong> no que digo. Já é um<br />
nevoeiro mais claro”, diz. Spectre é<br />
o culpado: “Quando trabalho com um<br />
MC, quero que as pessoas percebam<br />
as letras, quero o melhor som. Conheço<br />
o Sensational tão bem que sei exactamente<br />
<strong>de</strong> que batidas ele gosta. Fica<br />
confiante e oferece <strong>uma</strong> boa performance.<br />
Os nossos estilos complementam-se”.<br />
Exemplo máximo <strong>de</strong> um músico<br />
que vive conscientemente à margem,<br />
Sensational opera segundo as regras<br />
que dita para si mesmo. Tem tanto <strong>de</strong><br />
MC confiante, o tipo <strong>de</strong> MC que repete<br />
o seu nome em quase todos os temas<br />
<strong>de</strong> “Acid & Bass”, como <strong>de</strong> Sun<br />
Ra <strong>de</strong> rua. “Conheço a minha magia,<br />
sei o que se passa comigo, no universo,<br />
noutras dimensões”, afirma. A<br />
biografia do “rapper” é tão especial<br />
que inclui <strong>uma</strong> sessão, absolutamente<br />
lendária, no estúdio <strong>de</strong> Bill Laswell,<br />
em que se pôs a rimar em cima <strong>de</strong><br />
<strong>uma</strong> peça <strong>de</strong> Stockhausen.<br />
Spectre também é dono <strong>de</strong> um percurso<br />
único. “Há álbuns que editei<br />
[na Wordsound] em 1997 e que as<br />
pessoas <strong>de</strong>viam ouvir hoje porque<br />
estavam à frente do seu tempo”, diz.<br />
“Tentamos ser diferentes. Hoje, a<br />
música rap é basicamente música<br />
pop, muito comercial, formulaica”.<br />
“Acid & Bass” não é nada disso, muito<br />
pelo contrário.<br />
Ver agenda <strong>de</strong> concertos págs. 57 e segs.<br />
Os extraterrestres<br />
estão no meio <strong>de</strong> nós<br />
Fizeram um dos melhores discos <strong>de</strong> hip-hop do ano passado.<br />
Sensational e Spectre actuam hoje na ZDB, em <strong>Lisboa</strong>. Pedro Rios
Boleros iluminados<br />
Depois do cancro, já vencido, que lhe inspirou “Vida Tóxica” em 2007, Luz Casal atira-se apaixona-<br />
c cido, que lhe inspirou “Vida Vida Tóxica Tóxica” em 2007, Luz Casal atira-se atira se apai apaixo<br />
damente a boleros clássicos, iicos,<br />
com Eumir Deodato ao comando dos arranjos.<br />
“La Pasión” é <strong>uma</strong> viagem m no tempo com invólucro <strong>de</strong> luxo. Nuno Pacheco Pachecoo<br />
Boleros? É verda<strong>de</strong>, Luz Casal nunca<br />
tinha gravado um disco assim, assumidamente<br />
“retro”. Mas a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong><br />
fazê-lo radica no facto <strong>de</strong> em 1991 ter<br />
interpretado um velho bolero <strong>de</strong><br />
Agustín Lara, “Piensa en mí”, para<br />
Almodóvar, no filme “Saltos Altos”.<br />
Em <strong>Lisboa</strong>, a espanhola (nascida na<br />
Galiza, a 11 <strong>de</strong> Novembro <strong>de</strong> 1958) diz<br />
que assim foi. “Este disco é <strong>uma</strong> consequência<br />
<strong>de</strong> ter interpretado ‘Piensa<br />
en mí’. Sem isso, acho que nunca teria<br />
a tentação <strong>de</strong> gravá-lo. Mas o mais<br />
importante para mim, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tê-lo<br />
feito, é ter ficado com <strong>uma</strong> maior<br />
abertura para compreen<strong>de</strong>r as músicas<br />
populares, não só a pop <strong>de</strong> raiz<br />
anglo-saxónica mas as que estão mais<br />
próximas da nossa cultura.” Não só:<br />
“Foi também <strong>uma</strong> <strong>de</strong>scoberta, <strong>uma</strong><br />
surpresa para mim. A partir daí <strong>de</strong>ixei<br />
<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar o bolero <strong>uma</strong> coisa antiga<br />
para pensar nele como actual.<br />
Porque são canções que falam <strong>de</strong> coisas<br />
intemporais, coisas que, <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />
maneira ou <strong>de</strong> outra, não mudam.”<br />
“La Pasión”, o disco, foi gravado<br />
também <strong>de</strong> forma apaixonante: “Imaginei-me<br />
nos anos 40, 50, tentei imaginar<br />
como essas canções foram compostas<br />
e cantadas, por mulheres e<br />
por homens, com essa paixão.” Uma<br />
coisa visceral: Luz exemplifica com<br />
<strong>uma</strong> imagem carniceira, a faca que<br />
abre os presuntos, <strong>de</strong> cima a baixo,<br />
o canto como um rasgar da pele mostrando<br />
o sangue que lá <strong>de</strong>ntro pulsa.<br />
Uma metáfora eloquente. Neste caso,<br />
com um invólucro <strong>de</strong> luxo: gravado<br />
para o selo Blue Note (<strong>uma</strong> estreia,<br />
para Luz, ao 14º disco), tem arranjos<br />
<strong>de</strong> Eumir Deodato, músico brasileiro<br />
radicado nos EUA que trabalhou com<br />
Vinicius, Sinatra e Björk, entre outros,<br />
e produção <strong>de</strong> Renaud Létang,<br />
francês que já firmou créditos em<br />
trabalhos <strong>de</strong> Manu Chao, Peaches,<br />
Jane Birkin ou Seu Jorge. Além disso,<br />
tem um grupo <strong>de</strong> <strong>de</strong>z músicos que<br />
criaram para o disco <strong>uma</strong> ambiência<br />
notável.<br />
“Eumir, para mim, é um músico<br />
extraordinário”, diz Luz. “Não posso<br />
evitar pensar em ‘Assim falava Zaratustra’,<br />
no final dos anos 70 [Eumir<br />
fez <strong>uma</strong> versão que ficaria célebre ao<br />
ser utilizada no filme “Bem Vindo Mr.<br />
Chance”, <strong>de</strong> Hal Ashby, 1979]. E <strong>de</strong>pois<br />
todo o trabalho que ele fez com<br />
múltiplos músicos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os ‘crooners’<br />
clássicos como Sinatra até aos<br />
mais mo<strong>de</strong>rnos, como Björk.” Encontraram-se<br />
pela primeira vez em Paris,<br />
houve empatia imediata e no estúdio,<br />
28 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />
“Imaginei-me nos<br />
anos 40, 50, tentei<br />
imaginar como essas<br />
canções foram<br />
compostas<br />
e cantadas,<br />
por mulheres<br />
e por homens, com<br />
essa paixão”<br />
com o produtor, duutor,<br />
chegaram a um objectivo:<br />
“Reflectir fl flectir o ambiente das canções<br />
tal como mmo<br />
foram feitas, não fazer<br />
<strong>uma</strong> coisa diferente. di diiferente.<br />
if Esse EEsse era para nós<br />
ó<br />
o maior <strong>de</strong>safio. es safio. E para mim era o<br />
mais interessante.” es ssante.” Eumir voltou a<br />
sua casa, aos oos<br />
EUA, e foi mandando<br />
i<strong>de</strong>ias. Luz escolhia os boleros, ele<br />
sugeria os arranjos. aarranjos.<br />
Em dois dias e<br />
meio, fizeram-se am m-se as gravações em Los<br />
Angeles. Mais<br />
tar<strong>de</strong>, em Londres,<br />
introduziram-se aam-se<br />
as cordas. Só em<br />
“três ou quatro attro<br />
canções” a voz foi gravada<br />
em Paris. arris.<br />
O cancro e outras feridas<br />
Das canções es s gravadas, Luz Casal conhecia<br />
“Historia sttoria<br />
<strong>de</strong> un amor”, “Alma<br />
mía” e pouco cco<br />
mais. As restantes procurou-as<br />
na a internet, em interpretações<br />
<strong>de</strong> época, pooca,<br />
<strong>de</strong> Tonia la Negra,<br />
Al<strong>de</strong>mar Dutra uutra<br />
e muitos outros. “Outras<br />
chegaram-me aam-me<br />
através <strong>de</strong> amigos<br />
que sabiam que qque<br />
eu estava a preparar<br />
este projecto.” too.”<br />
Uma surpresa, para<br />
ela. “Total. aal.<br />
Porque todas têm<br />
boas melodias”. iaas”.<br />
Mas também<br />
pelo apelo visceral vvisceral<br />
<strong>de</strong> cada<br />
<strong>uma</strong>. “Porque rq que quando<br />
cantamos ccanções<br />
canções relacionadas<br />
co com om os sentimentos,<br />
sempre mmpre<br />
nos passa<br />
algo por r <strong>de</strong>ntro, não<br />
fica à flor da a pele. Mas tive<br />
cuidado para ar ra não exagerar,<br />
porque ssenão<br />
senão ficaria<br />
<strong>uma</strong> caricatura, tu ura, não se- seria<br />
verda<strong>de</strong>. . Na música<br />
po<strong>de</strong>mos estar st tar à beira<br />
da lágrima a mas se a<br />
lágrima cai i isso não<br />
é bom, é como oomo<br />
um<br />
‘overacting’. ’ . É preciso<br />
calma a edistância para acantar <strong>uma</strong> canção nnção<br />
sentindo-a mas mmas<br />
não fazendo ndo<br />
<strong>de</strong>la <strong>uma</strong> feri- eeri<br />
da. Porque uue<br />
sangra.”<br />
Música<br />
Gravado para a Blue Note, o<br />
disco tem arranjos <strong>de</strong> Eumir<br />
Deodato (Vinicius, Sinatra e<br />
Björk, entre outros) e produção<br />
<strong>de</strong> Renaud Létang, francês que<br />
já firmou créditos com Manu<br />
Chao, Peaches, Jane Birkin<br />
ou Seu Jorge<br />
Antes <strong>de</strong> “La Pasión”, Luz<br />
Casal gravou um disco que<br />
resultou <strong>de</strong> <strong>uma</strong> ferida. Em<br />
Janeiro <strong>de</strong> 2007 foi-lhe diagnosticado<br />
cancro da mama,<br />
foi operada e recuperou<br />
quase num ápice.<br />
Poucos dias <strong>de</strong>pois da<br />
operação chegou até a cantar<br />
escassas canções em<br />
<strong>Lisboa</strong>, num espectáculo<br />
<strong>de</strong> benemerência. Depois<br />
veio a quimioterapia, a radioterapia,<br />
o cabelo curto<br />
e um disco chamado “Vida<br />
Tóxica” (2007), on<strong>de</strong> havia<br />
temas como “Se feliz”,<br />
“Cara y cruz”, “Lo mejor<br />
<strong>de</strong> lo peor” ou “Bajo tu<br />
abrazo”, parceria <strong>de</strong>la<br />
com Rui Veloso.<br />
No percurso imediato<br />
pós-cancro, esse disco foi<br />
<strong>uma</strong> libertação. “Mais do<br />
que isso, foi <strong>uma</strong> forma <strong>de</strong><br />
me agarrar à minha vida<br />
sem a doença. Foi <strong>uma</strong> forma<br />
<strong>de</strong> dizer: mesmo sem cabelo,<br />
continuo como antes.<br />
Não podia fazer concertos mas<br />
continuava na música.” Mas em<br />
2008 voltou aos palcos. “Recomecei<br />
no lugar on<strong>de</strong> tive <strong>de</strong> cancelar<br />
um concerto por causa da<br />
doença, em Elda, Alicante. A operação<br />
foi a 16 <strong>de</strong> Janeiro e o concerto<br />
<strong>de</strong> Elda era a 18, por isso<br />
não me foi possível lá estar.<br />
Cantei em <strong>Lisboa</strong> a 21, já<br />
operada, sem mexer o<br />
braço direito. Todos<br />
me saudavam batendo<br />
no braço.<br />
Diziam ‘olá’ e<br />
eu ‘ai’”...<br />
“La Pasión”<br />
é um outro regresso.<br />
Já circula<br />
pelos palcos há<br />
meses, anda agora<br />
pela Grécia, França,<br />
Alemanha e Bélgica<br />
e, embora sem datas,<br />
talvez venha a Portugal,<br />
on<strong>de</strong> o disco acaba<br />
<strong>de</strong> chegar às lojas.<br />
“É muita gente, somos<br />
catorze músicos<br />
em palco. Por isso<br />
não é muito fácil garantir<br />
concertos. Mas<br />
faremos tudo para<br />
apresentar o disco<br />
em Portugal.”
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Maria Berasarte<br />
TERÇA ÀS 21H00<br />
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SEXTA-FEIRA 16, 21H00<br />
AUDITÓRIO DA REITORIA DA UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA<br />
(CAMPUS DE CAMPOLIDE)<br />
DOMINGO 18, 16H30<br />
AUDITÓRIO MAESTRO MANUEL MARIA BALTAZAR (AMAL)<br />
LOURINHÃ
Fumiyo Ikeda, nascida em Osaka ( Japão),<br />
tem um corpo que conhecemos<br />
<strong>de</strong> cor. Há muitos anos que o vemos<br />
a transformar-se nas mãos <strong>de</strong> Anne<br />
Teresa <strong>de</strong> Keersmaeker, com quem<br />
trabalhou pela primeira vez em “Rosas<br />
danst Rosas” (1983), inaugurando<br />
aí <strong>uma</strong> relação para a vida com a companhia<br />
flamenga, da qual entretanto<br />
saiu e voltou a entrar. Vimo-la no elenco<br />
<strong>de</strong> “D’un soir un jour” (2006),<br />
apresentado em Setembro <strong>de</strong> 2007<br />
no Centro Cultural <strong>de</strong> Belém, mas<br />
também como co-criadora, com Alain<br />
Platel e Benjamin Verdonk, <strong>de</strong> “Nine<br />
Finger”, que passou pelo Maria Matos<br />
em 2008, durante o Alkantara Festival<br />
(foi <strong>uma</strong> das peças <strong>de</strong>sse ano para o<br />
Ípsilon).<br />
Tim Etchells, que nasceu n<strong>uma</strong> ilha<br />
do outro lado do mundo, no Reino<br />
Unido, tem <strong>uma</strong> maneira <strong>de</strong> usar o<br />
texto que nos <strong>de</strong>ixa sem chão. Encenador<br />
e dramaturgo, é o rosto mais<br />
visível da companhia <strong>de</strong> teatro Forced<br />
Entertainment, criada em 1984 (já os<br />
vimos várias vezes em Portugal:<br />
“Spectacular”, <strong>de</strong> 2008, que esteve<br />
no Trama, em Serralves, em Novembro<br />
passado; “The World in Pictures”,<br />
<strong>de</strong> 2006, e “Exquisite Pain”, <strong>de</strong> 2005,<br />
que vieram ao Alkantara Festival em<br />
2006, foram as vindas mais recentes),<br />
mas também autor em nome individual,<br />
como ficou provado em “That<br />
Night Follows Day”, que a Culturgest<br />
mostrou em 2008 e que volta a Serralves<br />
a 15 <strong>de</strong> Maio.<br />
Um e outro, Ikeda e Etchells, en-<br />
30 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />
contraram-se no ano passado em cima<br />
do mesmo palco para fazer <strong>uma</strong><br />
coisa aos pedaços, “In Pieces”, que<br />
esteve ontem em Faro e chega a <strong>Lisboa</strong><br />
(Culturgest) na segunda e a Viseu<br />
(Teatro Viriato) na sexta. É ele a escrever<br />
para ela, ela a respon<strong>de</strong>r-lhe<br />
por gestos, ele a olhar para ela e a<br />
<strong>de</strong>ixá-la ir (e a ir com ela, incapaz <strong>de</strong><br />
acrescentar mais <strong>uma</strong> palavra), ela a<br />
<strong>de</strong>ixar-se levar por palavras que não<br />
lhe pertenciam e a encontrar outras<br />
a partir dos movimentos fragmentados<br />
e das memórias <strong>de</strong> outros gestos,<br />
<strong>de</strong> outras peças, <strong>de</strong> outras i<strong>de</strong>ias que<br />
fazemos <strong>de</strong>la, do seu corpo e dos movimentos<br />
que ele produz.<br />
No início havia <strong>uma</strong> frase <strong>de</strong> Kafka,<br />
“A book should be an axe to chop open<br />
the frozen sea insi<strong>de</strong> us” (“Um livro o<br />
<strong>de</strong>via ser o machado que quebra a o mar<br />
gelado em nós”), <strong>de</strong>ixada n<strong>uma</strong> a ca carta arta<br />
a Oskar Pollak <strong>de</strong> 27 January <strong>de</strong> e 1904. 19904.<br />
Etchells pegou apenas nas imagens maggens<br />
fortes - machado, quebra, gelado, o, mmar,<br />
mar,<br />
nós – e escreveu um e-mail a Ikeda, Ikeeda,<br />
que <strong>de</strong>pois as enfrentou. O resultado, ultaado,<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> meses <strong>de</strong> encontros breves, brevves,<br />
é a porta <strong>de</strong> entrada para um pro procescesso <strong>de</strong> rememoração <strong>de</strong> um corpo o id i<strong>de</strong>n<strong>de</strong>ntificável mas distante. No limite, e, é um<br />
retrato <strong>de</strong> Fumyo Ikeda sem informa- forrma<br />
ção factual. Um exercício sobre como commo<br />
se constrói, a cru, <strong>uma</strong> memória. ria. .<br />
Catálogo <strong>de</strong> memórias<br />
Na peça, um belo solo <strong>de</strong> Ikeda num<br />
m<br />
palco vazio, ela está a olhar para a nós nóós<br />
e a nós a olhar para a cabeça <strong>de</strong>la<br />
a à<br />
A bailarina Fumiyo Ikeda e o<br />
encenador Tim Etchells juntaram-se<br />
para <strong>uma</strong> peça que se constrói aos<br />
poucos, pedaço a pedaço. “In Pieces”<br />
é um jogo <strong>de</strong> espelhos que amplia,<br />
ilu<strong>de</strong> e refl ecte. Depois <strong>de</strong> ontem<br />
ter estado em Faro, chega a <strong>Lisboa</strong><br />
na segunda e a Viseu na sexta. Tiago<br />
Bartolomeu Costa<br />
“Vejo-a [Fumiyo<br />
Ikeda] a dançar há 25<br />
anos. Tenho <strong>uma</strong><br />
história com ela.<br />
Sempre que a vejo<br />
fazer qualquer coisa<br />
ecoam nesses<br />
movimentos outras<br />
coisas vivas,<br />
há fantasmas que<br />
a rondam”<br />
Tim Etchells<br />
velocida<strong>de</strong> dos textos <strong>de</strong> Etchells: <strong>uma</strong><br />
cabeça que às vezes parece perdida,<br />
outras vezes está bem à nossa frente.<br />
Essas palavras que serviram <strong>de</strong> ponto<br />
<strong>de</strong> partida foram substituídas por outras<br />
n<strong>uma</strong> espécie <strong>de</strong> “catálogo <strong>de</strong> memorias”,<br />
diz-nos a intérprete. Sobre<br />
quem é então este solo, se um solo é,<br />
quase sempre, sobre quem o faz? Ikeda<br />
revela que não é completamente<br />
sobre ela. “Não conto muito <strong>de</strong> mim.<br />
Eu estou ali mas não sou eu. Ou melhor,<br />
não é sobre mim”. O texto, composto<br />
por essas palavras iniciais e pelo<br />
que <strong>de</strong>las surgiu, constrói <strong>uma</strong> biografia<br />
ficcional, por vezes até imperceptível<br />
(as histórias que ela conta em japonês<br />
são histórias pessoais que Tim<br />
Etchells também não conhece), mas<br />
nunca u casubsttu substitui o<br />
movimento, nem diz<br />
mais do que ele. É um ponto <strong>de</strong> vista<br />
so sobre um umm<br />
corpo, co da mesma for-<br />
ma m que quee<br />
um movimento é um<br />
ponto <strong>de</strong> d<strong>de</strong><br />
vista sobre <strong>uma</strong> coreografia.<br />
reograafia<br />
“Eu estou ali a fazer<br />
coisas, coisaas,<br />
80 por cento <strong>de</strong>las<br />
im improvisadas, mpro e, muitas<br />
vezes, veezes<br />
sou surpreendida<br />
pelo pe elo que estou a fazer”.<br />
Quando Qu começou a<br />
trabalhar traaba<br />
na peça, Ikeda<br />
estava esttav<br />
muito colada às<br />
palavras pallav<br />
e a <strong>uma</strong> partitu-<br />
ra <strong>de</strong> d<strong>de</strong><br />
Ligeti, que acabou<br />
por p funcionar como um<br />
outro outr o ruído <strong>de</strong> fundo,<br />
com coom<br />
a mesma importância<br />
tâânc<br />
que os sons produzidos<br />
duz d pelo corpo.<br />
Fumiyo Ikeda<br />
reconstrói-se<br />
à nossa frente<br />
“Talvez, mas não conscientemente,<br />
eu chegue ao texto da mesma forma<br />
que chego ao movimento. A minha<br />
consciência vai para os braços, para<br />
as pernas... é como se tivesse <strong>uma</strong><br />
câmara a filmar e a câmara mudasse<br />
<strong>de</strong> posição. Mudo <strong>de</strong> posição e altero<br />
o ponto <strong>de</strong> vista.”<br />
É assim para ela e para os espectadores,<br />
que do corpo que reconhecem<br />
<strong>de</strong>vem partir para um outro espaço,<br />
menos concreto, mais perto <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />
sombra, quase fantasma. É aí que<br />
quer chegar Tim Etchells quando lhe<br />
perguntamos como lidou com o corpo<br />
<strong>de</strong>la. Do outro lado da linha do<br />
telefone há um longo silêncio, tão longo<br />
que se torna incómodo. A resposta<br />
começa nervosa, como se tivesse<br />
sido apanhado em falso. “Vejo-a a<br />
dançar há 25 anos. Tenho <strong>uma</strong> história<br />
com ela. Sempre que a vejo a fazer<br />
qualquer coisa ecoam nesses movimentos<br />
outras coisas vivas, há fantasmas<br />
que a rondam”.<br />
“Uso a linguagem”, continua o encenador<br />
que se assume muito mais<br />
discreto nesta peça a dois, “para fazer<br />
fluir i<strong>de</strong>ias, tonalida<strong>de</strong>s, pensamentos.<br />
O texto, aqui, não é senão um<br />
canal, nunca po<strong>de</strong>ria ser tão forte<br />
[quanto o movimento]”. No fim da<br />
resposta, Tim Etchells regressa à nossa<br />
pergunta: “Gosto <strong>de</strong>la porque é<br />
fluida, po<strong>de</strong>-se ver durante muito<br />
tempo, o significado nunca é certo. É<br />
como <strong>uma</strong> temperatura que muda<br />
muito rapidamente, que nos <strong>de</strong>ixa<br />
num espaço ambíguo”.
“In Pieces” tem essa abertura característica<br />
dos textos <strong>de</strong> Etchells,<br />
<strong>de</strong>ixando as interpretações, e as consequências<br />
<strong>de</strong>ssas interpretações,<br />
para quem está <strong>de</strong> fora. Há momentos<br />
que facilitam a i<strong>de</strong>ntificação, como<br />
quando Fumyo Ikeda lista datas e números<br />
relacionando-os com espectáculos,<br />
coisas que viu e que até nos<br />
po<strong>de</strong>m ter acontecido a nós. Pe<strong>de</strong>-nos<br />
um número ao acaso e <strong>de</strong>le parte para<br />
<strong>uma</strong> memória que <strong>de</strong>pois partilha.<br />
Uma memória que passa a ser nossa,<br />
como é nosso o significado <strong>de</strong> um movimento<br />
público.<br />
Uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> “in progress”<br />
Ikeda, que entra em cena como se a<br />
cena não existisse, olha-nos confiante<br />
<strong>de</strong> que o movimento com que vai<br />
preencher o espaço não é a única<br />
forma <strong>de</strong> comunicação entre quem<br />
faz e quem vê. Está “muito focada<br />
na mudança física, no potencial mutante<br />
da fisicalida<strong>de</strong>”, diz Tim<br />
Etchells. “In Pieces” é um objecto<br />
sobre a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> construído a partir<br />
da flui<strong>de</strong>z coreográfica e do potencial<br />
simbólico dos movimentos,<br />
não <strong>uma</strong> fixação <strong>de</strong>ssa i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>.<br />
“Quis que o texto mantivesse essa<br />
dimensão porosa e angulosa, que<br />
fosse um meio <strong>de</strong> abertura <strong>de</strong>, e para,<br />
diferentes partes da performance.<br />
Que mostrasse quem é que está<br />
à nossa frente mas que apenas i<strong>de</strong>alizasse<br />
possibilida<strong>de</strong>s. O texto abre<br />
essas possibilida<strong>de</strong>s narrativas mas<br />
nunca as conclui e, para mim, o mo-<br />
vimento <strong>de</strong>la também é assim: <strong>de</strong><br />
um momento para o outro preciso<br />
e duro, <strong>de</strong>pois fluido e dissolvente”,<br />
conta-nos.<br />
“Não estou interessada em explicar<br />
nada. Se eu percebi e as pessoas perceberam,<br />
o que percebemos não tem<br />
<strong>de</strong> ser a mesma coisa. Tento não me<br />
fixar em nada e dou espaço para que<br />
a partilha <strong>de</strong> memórias exista”, diznos<br />
<strong>uma</strong> intérprete generosa, que diz<br />
ter imenso prazer em fazer esta peça<br />
porque encontra nela <strong>uma</strong> leveza que<br />
lhe permite contar histórias mesmo<br />
que estas não sejam perceptíveis.<br />
“Partilhamos sempre”, diz.<br />
“A arte não é um processo explicativo”,<br />
acrescenta Etchells. “Não nos<br />
sentamos para ver <strong>uma</strong> peça com o<br />
objectivo <strong>de</strong> sermos instruídos sobre<br />
alg<strong>uma</strong> coisa. Ser-se espectador não<br />
é ser passivo. Ser-se espectador é estar<br />
num local on<strong>de</strong> se estão a passar<br />
coisas às quais atribuímos significados.<br />
E a liberda<strong>de</strong> criativa está na<br />
existência <strong>de</strong> diferentes possibilida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> interpretação”.<br />
Também Ikeda acha que o movimento<br />
que produz, porque o corpo<br />
<strong>de</strong>la não é “um corpo anónimo e limpo”,<br />
precisa <strong>de</strong> caminhar para outras<br />
soluções que não as imediatas. E, por<br />
isso, “In Pieces” é também um trabalho<br />
sobre a exploração do corpo “enquanto<br />
arquivo em permanente construção”.<br />
Ver agenda <strong>de</strong> espectáculos págs. 50 e<br />
segs.<br />
No limite, “In<br />
Pieces” é um<br />
retrato <strong>de</strong><br />
Fumiyo Ikeda<br />
sem<br />
informação<br />
factual: a<br />
reconstrução<br />
da memória<br />
que <strong>de</strong>la têm<br />
um<br />
observador<br />
participante,<br />
Tim Etchells,<br />
que foi o<br />
encenador<br />
<strong>de</strong>ste<br />
espectáculo, e,<br />
mais à<br />
distância, o<br />
próprio<br />
público<br />
Dança<br />
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João Maló guitarra<br />
Filipe Raposo piano<br />
Enzo d’Averza teclados e acor<strong>de</strong>ão<br />
João Ferreira percussões<br />
Vítor Milhanas baixo<br />
João Mário Santos bateria<br />
A estreia na Casa da Música <strong>de</strong> um dos autores<br />
fundamentais da Música Popular Portuguesa<br />
encerra o Festival Música e Revolução.<br />
Um concerto com composições que atravessam<br />
toda a sua carreira, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o período mais<br />
quente da música <strong>de</strong> intervenção, nos anos 70,<br />
até ao último álbum editado, tado, A Ópera Mágica<br />
do Cantor Maldito.<br />
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1ª PARTE<br />
Tiago Pereira Fireworks*<br />
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NBC A força das palavras*<br />
Em estreia absoluta para a Casa<br />
da Música, o novo projecto <strong>de</strong><br />
Tiago Pereira mistura técnicas<br />
<strong>de</strong> documentário com ví<strong>de</strong>o e<br />
áudio manipulados em tempo<br />
real. O realizador e visualista<br />
recolheu aspectos da paisagem<br />
sonora da Revolução <strong>de</strong> Abril,<br />
actualizando as suas repercussões<br />
nas gerações seguintes.<br />
Depois da esplêndida actuação com<br />
a Orquestra Nacional do Porto, em<br />
2009, NBC regressa à Casa da Música<br />
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rap eloquente e a sua voz melódica.<br />
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Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 31<br />
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MARGARIDA DIAS<br />
Para encenar o “Auto da Alma”, <strong>de</strong><br />
Gil Vicente, que estreou ontem no<br />
Teatro Nacional D. Maria II em <strong>Lisboa</strong><br />
(até Junho), Luís Miguel Cintra imaginou<br />
um lugar fechado, <strong>de</strong> alienação<br />
e tortura, sem portas nem janelas.<br />
Podia ser <strong>uma</strong> prisão, um reformatório.<br />
Ou um lugar completamente diferente<br />
– <strong>uma</strong> estação <strong>de</strong> comboios,<br />
<strong>uma</strong> sala <strong>de</strong> espera <strong>de</strong> um consultório,<br />
<strong>de</strong> um escritório <strong>de</strong> advogado –<br />
porque tinha também <strong>de</strong> haver cruzamento<br />
entre pessoas estranhas<br />
entre si. Seria sempre um lugar com<br />
<strong>uma</strong> forte carga e alg<strong>uma</strong> loucura.<br />
Porque a peça, diz Luís Miguel Cintra,<br />
transmite “<strong>uma</strong> visão do cristianismo<br />
muito cruel e muito triste” e “<strong>uma</strong><br />
violência i<strong>de</strong>ológica” que choca.<br />
“Todo o auto é sobre o pecado, a<br />
mortificação do ser h<strong>uma</strong>no, o caminho<br />
para a salvação através da confissão”,<br />
completa.<br />
Com o tempo e os ensaios, encenador<br />
e actores chegaram à i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />
sala com essa carga, sob um foco <strong>de</strong><br />
luzes que, <strong>de</strong> tão brancas, criam um<br />
cenário irreal. Um espaço que podia<br />
ser entre o céu e a terra, a vida e a<br />
morte. E acabou por ser, como imaginaram<br />
os protagonistas, <strong>uma</strong> sala<br />
<strong>de</strong> hospital, que se <strong>de</strong>sdobra n<strong>uma</strong><br />
sala estranha, com <strong>uma</strong> cozinha.<br />
Uma cozinha, porque a acção ao<br />
longo <strong>de</strong> <strong>uma</strong> peça sem história se<br />
limita a fornecer <strong>uma</strong> refeição simbólica<br />
à personagem simbólica da Alma,<br />
no culminar da sua viagem até à Pousada<br />
das Almas. Aí a Igreja fornece-lhe<br />
essa refeição, que é na realida<strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />
tortura.<br />
No primeiro momento, a partir do<br />
qual vai iniciar essa “viagem moral e<br />
espiritual”, a Alma está num estado<br />
<strong>de</strong> pureza e inocência, quase infantil,<br />
sem consciência da culpa da doutrina<br />
cristã. Nesse caminho “atravessa o<br />
percurso h<strong>uma</strong>no até à pureza original,<br />
até ao ponto <strong>de</strong> on<strong>de</strong> partiu, e<br />
para isso é ajudada pelo Anjo e pela<br />
Igreja”, explica o encenador.<br />
Entre o princípio e o fim, troca as<br />
suas vestes <strong>de</strong> Alma por um fato e sapatos<br />
<strong>de</strong> mulher, experimenta a alegria,<br />
a vaida<strong>de</strong>, a tentação, o prazer.<br />
Neste jogo, que é também martírio,<br />
juntam-se à actriz Rita Blanco (Alma)<br />
os outros actores do elenco do Teatro<br />
da Cornucópia – José Airosa, João<br />
Grosso, Vítor <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, Luís Lima<br />
Barreto, Sofia Marques, Ricardo Aibéo,<br />
Dinis Gomes, Duarte Guimarães<br />
e José Manuel Men<strong>de</strong>s.<br />
Nova transcendência<br />
Cada figura se move <strong>de</strong> acordo com<br />
o papel que se imagina para eles pela<br />
roupa que vestem – o padre, a enfermeira-chefe,<br />
o velho, os soldados, o<br />
sedutor, o empregado. Mas nenh<strong>uma</strong><br />
é apresentada por esta categoria na<br />
32 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />
peça, antes como corpos que encerram<br />
um estado <strong>de</strong> espírito ou <strong>uma</strong><br />
personalida<strong>de</strong>. Assim “um homem<br />
muito firme nas suas convicções”<br />
(João Grosso) que, na distribuição dos<br />
textos, ficava com as partes i<strong>de</strong>ntificadas<br />
com um discurso da Igreja, surge<br />
como padre.<br />
Ou “um homem muito humil<strong>de</strong>”<br />
(Luís Lima Barreto) é na realida<strong>de</strong> um<br />
homem <strong>de</strong> sobretudo e chapéu que<br />
tranquiliza a Alma na sua aproximação<br />
a um estado quase h<strong>uma</strong>no. (“Gozai<br />
dos bens da terra”, diz-lhe.)<br />
“Uma mulher, vigilante” (Sofia Marques)<br />
é a figura que mais se aproxima<br />
da personagem da Santa Madre Igreja,<br />
aqui vestida <strong>de</strong> enfermeira, incumbida<br />
por Deus <strong>de</strong> proteger a Alma da<br />
tentação, mas o que faz é controlar a<br />
sua consciência.<br />
No início, em cada movimento da<br />
Alma, todos param para a fitar, como<br />
<strong>uma</strong> presa. “A alma é <strong>uma</strong> figura que<br />
coexiste com as outras mas que é diferente<br />
<strong>de</strong> todas elas.” Sacrificada,<br />
martirizada. “O que se faz àquela figura<br />
<strong>de</strong> alma é <strong>uma</strong> lavagem <strong>de</strong> cérebro,<br />
<strong>uma</strong> sessão <strong>de</strong> tortura. Quer o<br />
Diabo, quer o Anjo, quer a Igreja, são<br />
vozes que ro<strong>de</strong>iam a Alma no sentido<br />
<strong>de</strong> a obrigar a afastar-se <strong>de</strong> tudo o que<br />
é sensorial e da sua personalida<strong>de</strong>,<br />
Em cada movimento da Alma,<br />
todos param para a fi tar, como <strong>uma</strong> presa<br />
<strong>de</strong> se aniquilar, com o objectivo <strong>de</strong>,<br />
através <strong>de</strong> <strong>uma</strong> i<strong>de</strong>ntificação com o<br />
percurso <strong>de</strong> Cristo para a cruz, conseguir<br />
a salvação.”<br />
Não sem angústia e dor. Nesse percurso,<br />
a Alma, até então <strong>de</strong>sprovida<br />
<strong>de</strong> consciência <strong>de</strong> culpa, rapidamente<br />
se confronta com o seu peso. “Estou<br />
mais morta que a morte. Sou pecadora.<br />
Perdi o meu inocente ser e<br />
sou danada. Socorrei-me que a mão<br />
<strong>de</strong> Satanás me tocou”, lança em <strong>de</strong>sespero.<br />
Deus misericordioso<br />
Por momentos <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser aquela<br />
“página em branco” imaginada pelo<br />
encenador como metáfora para o espaço<br />
<strong>de</strong> possível reinvenção do cristianismo.<br />
Cintra refere-se aos textos<br />
<strong>de</strong> Gil Vicente como “material poético<br />
extremamente livre, porque incompleto”<br />
e que “oferece espaço à<br />
invenção”. E por isso quando escolheu<br />
este texto (encomenda da Rainha<br />
D. Leonor para as cerimónias da Semana<br />
Santa <strong>de</strong> 1518), em resposta a<br />
um convite <strong>de</strong> Diogo Infante para encenar<br />
um texto da dramaturgia clássica<br />
portuguesa no TNDMII, Cintra<br />
quis “construir um espectáculo que<br />
pedisse <strong>uma</strong> nova visão <strong>de</strong> transcendência<br />
da vida que não é a da tradição<br />
Teatro<br />
Cintra quis “construir<br />
um espectáculo<br />
que pedisse <strong>uma</strong><br />
nova visão <strong>de</strong><br />
transcendência da<br />
vida que não é a da<br />
tradição cristã que<br />
herdámos”<br />
cristã que herdámos”.<br />
E juntou ao “Auto da Alma” partes<br />
soltas <strong>de</strong> outras peças <strong>de</strong> Gil Vicente,<br />
como o “Auto da Lusitânia” e outros<br />
textos, como a glosa do salmo bíblico<br />
“Miserere mei Deus”, invocador da<br />
misericórdia divina, ou a carta <strong>de</strong> D.<br />
João III on<strong>de</strong> conta como tentou convencer<br />
os fra<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Santarém <strong>de</strong> que<br />
o terramoto <strong>de</strong> 1531 não fora castigo<br />
<strong>de</strong> Deus. O encenador quis mostrar<br />
<strong>uma</strong> religião relacionada com a generosida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Deus e a sua misericórdia<br />
que, no fundo, correspon<strong>de</strong> à “religiosida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Gil Vicente” na maioria<br />
das suas obras.<br />
“Esta peça é o contrário disso”. É<br />
um texto “exclusivamente religioso”<br />
que <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser representado <strong>de</strong>pois<br />
do 25 <strong>de</strong> Abril, foi esquecido,<br />
apesar <strong>de</strong> ter feito parte do reportório<br />
do D. Maria II em 1965 com a actriz<br />
Maria Lalan<strong>de</strong> no papel <strong>de</strong> Alma e<br />
cenários <strong>de</strong> Amada Negreiros, mas<br />
posto em cena no São Carlos.<br />
Esta é “<strong>uma</strong> peça simbólica pura”,<br />
conclui. No culminar do caminho da<br />
Alma, a mesa posta com as personagens<br />
à sua volta lembra a última ceia<br />
<strong>de</strong> Cristo mas é “<strong>uma</strong> mesa <strong>de</strong> ceia<br />
tornada profana”. Sinal <strong>de</strong> que aqui<br />
se procura <strong>uma</strong> nova espiritualida<strong>de</strong>.<br />
Alma<br />
martirizada<br />
Depois do 25 <strong>de</strong> Abril, o “Auto da Alma” <strong>de</strong> Gil Vicente <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser representado e ensinado<br />
nas escolas. Obra religiosa, é reinventada n<strong>uma</strong> encenação <strong>de</strong> Luís Miguel Cintra com os<br />
actores da Cornucópia. À procura <strong>de</strong> <strong>uma</strong> nova transcendência. Ana Dias Cor<strong>de</strong>iro
PEDRO CUNHA<br />
D. Quixote<br />
está velho<br />
e mudou<br />
<strong>de</strong> sexo<br />
Uma ópera com músicas roubadas mostra Dulcineia, a rapariga do cavaleiro da triste fi gura, à<br />
procura do homem i<strong>de</strong>al. “Quixote”, a nova produção <strong>de</strong> O Bando, está em cena no Teatro da<br />
Trinda<strong>de</strong>, em <strong>Lisboa</strong>. Clara Campanilho Barradas<br />
D. Quixote é Dulcineia. E Dulcineia é<br />
D. Quixote. Sancho Pança fica em casa<br />
a cuidar dos filhos. Teresa Pança é<br />
o braço direito <strong>de</strong> Dulcineia. D. Quixote<br />
foi do Cervantes, e <strong>de</strong>pois do Ju<strong>de</strong>u,<br />
António José da Silva. Agora, nas<br />
mãos do Bando, é <strong>uma</strong> ópera bufa.<br />
Confuso? Então explicamos: O<br />
Bando estreou ontem, no Teatro da<br />
Trinda<strong>de</strong>, em <strong>Lisboa</strong>, “Quixote”, a<br />
sua muito particular versão <strong>de</strong> “Vida<br />
do Gran<strong>de</strong> D. Quixote <strong>de</strong> la Mancha e<br />
do Gordo Sancho Pança”, que António<br />
José da Silva, o Ju<strong>de</strong>u, escreveu<br />
para marionetas. Natural do Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro, on<strong>de</strong> nasceu, em 1705, n<strong>uma</strong><br />
família <strong>de</strong> cristãos-novos, António José<br />
da Silva viu-se obrigado a mudarse<br />
para <strong>Lisboa</strong> <strong>de</strong>vido à perseguição<br />
pela Inquisição. Aí estudou Direito e<br />
escreveu várias peças, com as quais<br />
obteve gran<strong>de</strong> sucesso e respeito;<br />
entre elas, esta “Vida do Gran<strong>de</strong> D.<br />
Quixote...”, paródia ao livro escrito<br />
pelo espanhol Miguel <strong>de</strong> Cervantes<br />
em 1605. “O Quixote <strong>de</strong> Cervantes é<br />
<strong>uma</strong> versão erudita, profunda, e este<br />
é aparentemente superfi cial, ligeiro.<br />
A obra <strong>de</strong> Cervantes é mais provocadora,<br />
mesmo a nível político e social.<br />
O Ju<strong>de</strong>u tenta divulgar a obra, para a<br />
tornar mais popular”, diz João Brites,<br />
director da companhia e encenador<br />
da peça, que fi ca no Trinda<strong>de</strong> até 13<br />
<strong>de</strong> Junho.<br />
Foi Cucha Carvalheiro, directora<br />
do Teatro da Trinda<strong>de</strong>, quem propôs<br />
o texto do Ju<strong>de</strong>u ao Bando. O <strong>de</strong>safi o<br />
do grupo foi trabalhar a actualida<strong>de</strong><br />
da mensagem. “Difícil é montar <strong>uma</strong><br />
coisa em que nós estamos implicados.<br />
Não é só montar <strong>uma</strong> obra do<br />
Ju<strong>de</strong>u, ainda que ele seja <strong>uma</strong> fi gura<br />
paradigmática da nossa História. É<br />
mais: o que é que eu quero fazer com<br />
isto, o que é que eu quero dizer com<br />
isto?”, sublinha o encenador.<br />
E qual é, então, a actualida<strong>de</strong> do<br />
texto? “[Tendo em conta] a minha ida<strong>de</strong>,<br />
o meu tempo, a minha refl exão, a<br />
minha passagem, a minha experiência,<br />
acho que foi a<strong>de</strong>quado trabalhar<br />
este texto no sentido <strong>de</strong> problematizar<br />
a velhice. Pensamos que o Quixote<br />
só combate com moinhos <strong>de</strong> vento,<br />
mas não é bem assim. O Quixote, na<br />
“O Quixote (...)<br />
também é um gesto<br />
social e político, a<br />
negação <strong>de</strong> <strong>uma</strong> certa<br />
realida<strong>de</strong> à procura<br />
<strong>de</strong> um mundo<br />
diferente”<br />
João Brites<br />
versão original, foge <strong>de</strong> casa. Está na<br />
cama, está doente. É daqueles velhinhos<br />
como o meu avô, que fugiam <strong>de</strong><br />
casa e <strong>de</strong>pois andava a família toda<br />
atrás <strong>de</strong>le”. O que é que leva um velhinho<br />
a fugir <strong>de</strong> casa? “Uma pulsão<br />
<strong>de</strong> vida”, respon<strong>de</strong> João Brites. “É a<br />
procura da transgressão, <strong>de</strong> fazer coisas<br />
que não se po<strong>de</strong>m fazer. É <strong>uma</strong><br />
conquista da sabedoria mas também<br />
o assumir do <strong>de</strong>sejo, a utopia. Interessava-me<br />
aproveitar a obra do Ju<strong>de</strong>u<br />
para parodiar estas coisas. Por trás<br />
<strong>de</strong>ste lado ligeiro e superfi cial po<strong>de</strong><br />
haver <strong>uma</strong> profundida<strong>de</strong> que chega<br />
a ser comovente”, continua Brites.<br />
Mais: “O Quixote tem essas pulsões<br />
mais primitivas mas também é um<br />
gesto social e político, a negação <strong>de</strong><br />
<strong>uma</strong> certa realida<strong>de</strong> à procura <strong>de</strong> um<br />
mundo diferente”.<br />
Para servir a paródia, a direcção<br />
artística do grupo <strong>de</strong>cidiu apostar<br />
n<strong>uma</strong> mudança <strong>de</strong> género. “Está<br />
tudo ao contrário, portanto”, avisa<br />
João Brites. “O Ju<strong>de</strong>u parodiou o<br />
Cervantes, a gente parodia o Ju<strong>de</strong>u”.<br />
Assim, as características intelectuais<br />
que Cervantes atribuiu a D. Quixote<br />
são transpostas, no texto do Bando,<br />
para Dulcineia, que quer correr o<br />
mundo à procura do seu D. Quixote<br />
i<strong>de</strong>al. O mesmo acontece com Sancho<br />
Pança, que agora é Teresa Pança,<br />
e com todas as outras personagens.<br />
Esta mudança <strong>de</strong> género faz sentido,<br />
porque “a procura da utopia, hoje, é<br />
<strong>uma</strong> coisa absolutamente feminina”.<br />
Somos <strong>uma</strong> nova mulher. É essa mulher<br />
que vai pelo mundo fora à procura<br />
<strong>de</strong> um homem para partilhar a<br />
vida e o sonho”, explica Teresa Lima,<br />
que apoiou na dramaturgia.<br />
Ópera, música pimba<br />
e roubalheira<br />
O cenário <strong>de</strong> “Quixote” é austero, lacónico,<br />
sem cor. Há ca<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> rodas,<br />
muletas e andarilhos. Os actores estão<br />
<strong>de</strong> branco. São marionetas nas mãos<br />
dos cantores, vestidos <strong>de</strong> negro, num<br />
plano elevado em relação ao palco.<br />
Tal como no velho teatro <strong>de</strong> marionetas<br />
do tempo do Ju<strong>de</strong>u, os cantores<br />
coor<strong>de</strong>nam as cenas.<br />
“Queríamos contrariar as expectativas”,<br />
diz Rui Francisco, o cenógrafo,<br />
“com um cenário que à partida<br />
não correspon<strong>de</strong>sse à i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong><br />
paródia. Que fosse provocatório pela<br />
austerida<strong>de</strong>. É <strong>uma</strong> estrutura muito<br />
elementar, baseada num único movimento<br />
<strong>de</strong> rotação, que permite criar<br />
<strong>uma</strong> infi nida<strong>de</strong> <strong>de</strong> espaços. Todo o<br />
cenário partiu <strong>de</strong> <strong>uma</strong> experiência<br />
métrica <strong>de</strong> Le Corbusier [arquitecto,<br />
1887-1965]”.<br />
“Quixote” é <strong>uma</strong> ópera bufa. Com<br />
música propositadamente composta<br />
para esta produção, é inteiramente<br />
cantada por dois cantores, que fazem<br />
as vozes <strong>de</strong> cada <strong>uma</strong> das personagens.<br />
Como não há assim tantas vozes<br />
diferentes, é o carácter da música que<br />
<strong>de</strong>fi ne cada personagem. “Escrevi a<br />
música a partir <strong>de</strong>stas condicionantes”,<br />
diz Jorge Salgueiro, o director<br />
musical. “Também tinha a motivação<br />
<strong>de</strong> pisar o risco. E fi -lo. Utilizei<br />
géneros que são consi<strong>de</strong>rados menores,<br />
como a música pimba, a música<br />
para publicida<strong>de</strong> ou a música para<br />
telemóveis. Nenhum artista é verda<strong>de</strong>iramente<br />
revolucionário. Eu <strong>de</strong>ixei<br />
<strong>de</strong> ter a pretensão <strong>de</strong> querer inovar<br />
e roubei mesmo músicas”. A quem?<br />
“Bom, isso já faz parte do jogo. Eu<br />
roubei; agora <strong>de</strong>scubram <strong>de</strong> on<strong>de</strong> é<br />
que foi. Aliás, pensei que cada espectador<br />
podia preencher <strong>uma</strong> fi cha à<br />
saída e quem acertasse em mais roubos<br />
ganhava um prémio. Ainda não<br />
tive tempo para fazer essa fi cha, mas<br />
talvez faça”.<br />
Saímos da sala acompanhados pela<br />
frase que resume todo o espectáculo:<br />
“Em memória <strong>de</strong> todos aqueles que,<br />
Teatro<br />
impedidos pela força bruta, não atingiram<br />
os prazeres da velhice”.<br />
Como o próprio Ju<strong>de</strong>u, que morreu<br />
na fogueira aos 34 anos.<br />
Ver agenda <strong>de</strong> espectáculos págs. 50 e<br />
segs.<br />
Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 33
Há sete anos, um balão vermelho com<br />
o rosto <strong>de</strong> Yasser Arafat atravessava<br />
um posto <strong>de</strong> controlo israelita, confundindo<br />
e <strong>de</strong>safiando as tropas presentes.<br />
O homem que lançou este<br />
balão <strong>de</strong> um carro estacionado faz<br />
hoje salto à vara sobre a barreira <strong>de</strong><br />
betão que Israel montou para isolar<br />
a Margem Oci<strong>de</strong>ntal.<br />
Elia Suleiman, 49 anos, palestiniano<br />
nascido na Nazaré israelita, realizador,<br />
argumentista e actor, criou sensação<br />
com “Intervenção Divina” (2002), que<br />
revelou às audiências internacionais<br />
um dos mais singulares olhares do cinema<br />
contemporâneo. Um olhar que<br />
leva mais longe em “O Tempo que Resta”<br />
(2009), esta semana nas salas portuguesas,<br />
um ano <strong>de</strong>pois da sua passagem<br />
a concurso pelo festival <strong>de</strong><br />
Cannes; um olhar formalista e ao mesmo<br />
tempo espontâneo, <strong>de</strong> <strong>uma</strong> precisão<br />
<strong>de</strong> relojoaria e <strong>de</strong> um humor<br />
seco e absurdista que parecem ter<br />
mais a ver com Jacques Tati ou Buster<br />
Keaton do que com a maior parte do<br />
cinema que se faz hoje.<br />
Ao telefone <strong>de</strong> Paris, Elia Suleiman<br />
nega terminantemente a influência<br />
<strong>de</strong>sses mestres, apesar <strong>de</strong> até concordar<br />
com a comparação. “Nunca fui<br />
gran<strong>de</strong>mente cinéfilo, e nunca estu<strong>de</strong>i<br />
história do cinema nem tenho um<br />
passado académico. Entrei no cinema<br />
Somos todos pal<br />
Sete anos <strong>de</strong>pois da sensação <strong>de</strong> “Intervenção Divina”, Elia Suleiman regressa com o seu terceiro<br />
como a emoção e a imagem são a chave do seu humor formalista e como o que ele quer é<br />
34 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />
pela porta das traseiras... Assim,<br />
quando comecei a filmar, vinha <strong>de</strong><br />
um ‘background’ perfeitamente puro,<br />
um pouco como um realizador dos<br />
tempos do cinema mudo. Talvez um<br />
<strong>de</strong>stes dias chegue ao sonoro...”, diz<br />
entre risos.<br />
O gran<strong>de</strong> silêncio<br />
A referência aos tempos do mudo não<br />
é casual, como sabe quem viu “Intervenção<br />
Divina” (e o seu pre<strong>de</strong>cessor<br />
“Crónica <strong>de</strong> um Desaparecimento”,<br />
1996, nunca exibido comercialmente<br />
entre nós) e como se po<strong>de</strong>rá confirmar<br />
em “O Tempo que Resta”. O cinema<br />
<strong>de</strong> Suleiman compõe-se <strong>de</strong><br />
episódios que observam e registam<br />
pormenores banais do quotidiano,<br />
on<strong>de</strong> o humor nasce da precisão coreografada<br />
dos movimentos que<br />
acontecem <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um plano fixo<br />
(como o vai-vém <strong>de</strong> <strong>uma</strong> maca que é<br />
disputada por <strong>uma</strong> equipa <strong>de</strong> médicos<br />
e <strong>uma</strong> equipa <strong>de</strong> soldados num<br />
corredor <strong>de</strong> um hospital) e abdica do<br />
diálogo para se concentrar n<strong>uma</strong> informação<br />
puramente audiovisual,<br />
transmitida através da imagem e do<br />
trabalho <strong>de</strong> som.<br />
Suleiman explica que, para ele, “a<br />
palavra <strong>de</strong>ve sempre ficar morta no<br />
guião. O guião não passa <strong>de</strong> um pequeno<br />
manual, um guia, mesmo<br />
quando explica muito <strong>de</strong>talhadamente<br />
o que procuramos fazer – quando<br />
chego ao momento <strong>de</strong> o traduzir em<br />
imagens, parto <strong>de</strong> um ponto diferente,<br />
ou recomeço do zero. Aquilo <strong>de</strong><br />
que sentimos a falta nos meus filmes<br />
– se é que a sentimos... - é do diálogo,<br />
do blá-blá-blá. Mesmo quando estou<br />
a escrever o guião, consigo ver que há<br />
ali palavras a mais, e torna-se um <strong>de</strong>-<br />
safio porque estou a tentar dizer o<br />
máximo <strong>de</strong> coisas possíveis através<br />
do movimento, da expressão cinemática.<br />
Quando <strong>uma</strong> personagem pergunta<br />
‘como estás?’ e outra respon<strong>de</strong><br />
‘bem, obrigado’, não ficámos a saber<br />
nada! É falsa informação. Prefiro eliminar<br />
o diálogo para criar um espaço<br />
livre, para o espectador interpretar e<br />
julgar por si próprio o que as personagens<br />
estão a sentir. Há sempre muita<br />
coisa a acontecer no écrã. Há muito<br />
para ouvir nos meus filmes, e muito<br />
para ver, mas não necessariamente<br />
muito para saber. É <strong>uma</strong> questão <strong>de</strong><br />
emoção, <strong>de</strong> criar <strong>uma</strong> intimida<strong>de</strong>,<br />
<strong>uma</strong> proximida<strong>de</strong> entre o filme e o<br />
espectador.”<br />
A teoria da resistência<br />
“O Tempo que Resta”, terceira longa<br />
<strong>de</strong> Suleiman, completa com “Crónica<br />
Elia Suleiman, 49 anos, palestiniano<br />
nascido na Nazaré israelita, realizador, argumentista e actor<br />
<strong>de</strong> um Desaparecimento” e “Intervenção<br />
Divina” <strong>uma</strong> trilogia ambientada<br />
na Nazaré natal do realizador e que<br />
encena elementos da sua própria vivência.<br />
O novo filme é, no entanto, o<br />
mais “convencionalmente” narrativo<br />
dos três, ao mesmo tempo que mergulha<br />
mais fundo na própria vivência<br />
pessoal da família Suleiman, inspirando-se<br />
n<strong>uma</strong> série <strong>de</strong> diários que o pai<br />
do realizador <strong>de</strong>ixou escritos a pedido<br />
do filho.<br />
A reconstituição histórica po<strong>de</strong> não<br />
ser o forte <strong>de</strong> Suleiman (vários críticos<br />
apontam-na como o ponto fraco <strong>de</strong><br />
“O Tempo que Resta”), mas nunca foi<br />
essa a intenção do cineasta: “Nunca<br />
ergui o historicismo a facto, mesmo<br />
quando filmo um momento histórico.<br />
Nunca alego que foi isto que aconteceu<br />
realmente; apresento-o apenas<br />
como <strong>uma</strong> maneira poética <strong>de</strong> subli-
nhar <strong>uma</strong> possibilida<strong>de</strong>, o que terá<br />
acontecido, o que po<strong>de</strong>ria ter acontecido<br />
naquele momento.”<br />
Se o seu cinema é um cinema naturalmente<br />
pessoal (porque contado na<br />
primeira pessoa), Suleiman opta por<br />
colocar a questão em termos do modo<br />
como cria os seus filmes, a partir<br />
<strong>de</strong> <strong>uma</strong> emoção e <strong>de</strong> <strong>uma</strong> imagem.<br />
“É com <strong>uma</strong> sensação que tudo começa.<br />
Nunca sei <strong>de</strong> on<strong>de</strong> é que <strong>uma</strong><br />
imagem surge, mas sei que aquilo que<br />
sinto mais sinceramente ocorre quando<br />
instalo a câmara num local, quando<br />
reconheço um momento que vivi<br />
e percebo que o estou a tentar metamorfosear<br />
n<strong>uma</strong> dimensão estética.<br />
Sei que preciso absolutamente <strong>de</strong> encontrar<br />
o local on<strong>de</strong> a câmara estaria<br />
a fim <strong>de</strong> capturar aquilo que sinto e<br />
que quero exprimir.”<br />
E que, esclarece veementemente,<br />
não é especificamente palestiniano<br />
ao mesmo tempo que é profundamente<br />
palestiniano. “Não creio que<br />
nos possamos <strong>de</strong>sviar do facto da condição<br />
h<strong>uma</strong>na ser <strong>uma</strong> condição h<strong>uma</strong>na,<br />
e da experiência h<strong>uma</strong>na não<br />
po<strong>de</strong>r necessariamente ser segregada.<br />
Creio que um bom filme é um bom<br />
filme in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> ter sido<br />
feito sob ocupação israelita ou qualquer<br />
outro tipo <strong>de</strong> ocupação noutro<br />
ponto qualquer do mundo. Talvez<br />
essa i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> palestiniana nos tenha<br />
sido forçada por os palestinanos<br />
terem sido ocupados, exilados, expulsos...<br />
Mas não creio que a força ou a<br />
ocupação israelita sejam assim tão<br />
diferentes <strong>de</strong> outra ocupação qualquer.<br />
As pessoas que a vivem também<br />
têm a sua vida quotidiana, a sua intimida<strong>de</strong>,<br />
o seu riso... O riso não é especificamente<br />
palestiniano. O meu<br />
“A ocupação israelita<br />
não é assim tão<br />
diferente <strong>de</strong> outra<br />
ocupação qualquer.<br />
As pessoas que a<br />
vivem também têm<br />
o seu quotidiano, o<br />
seu riso... O riso não<br />
é especificamente<br />
palestiniano.<br />
O meu cinema é tão<br />
palestiniano,<br />
e tão intimamente<br />
palestiniano, que<br />
é universal”<br />
lestinianos<br />
fi lme. Ao telefone <strong>de</strong> Paris, o “Buster Keaton palestiniano” explica<br />
que sejamos todos palestinianos. Jorge Mourinha<br />
cinema é tão palestiniano, e tão intimamente<br />
palestiniano, que é universal.<br />
E a inversa po<strong>de</strong> também ser verda<strong>de</strong>:<br />
é um cinema universal, logo é<br />
palestiniano. Quem faz cinema, ao<br />
confinar o seu cinema a ser sobre alg<strong>uma</strong><br />
coisa, por <strong>de</strong>feito vai estar a<br />
falhar-se a si próprio, a falhar o espectador<br />
que vem ver o filme. Evi<strong>de</strong>ntemente,<br />
a responsabilida<strong>de</strong> e o <strong>de</strong>sejo<br />
<strong>de</strong> um cineasta é fazer qualquer espectador<br />
ter <strong>uma</strong> intimida<strong>de</strong> e <strong>uma</strong><br />
partilha com a imagem que está a<br />
ver...”<br />
A questão é, então, <strong>uma</strong> questão<br />
<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação, como o cineasta explica<br />
nos termos abstractos e teóricos<br />
que são <strong>uma</strong> constante do seu discurso.<br />
“Creio que existe aqui <strong>uma</strong> espécie<br />
<strong>de</strong> experiência metafísica – penetramos<br />
naquilo que há <strong>de</strong> mais íntimo e,<br />
ao fazê-lo, estamos a entrar num processo<br />
<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação. Po<strong>de</strong>mos dizer<br />
que metaforicamente, ‘O Tempo que<br />
Resta’ é palestiniano no modo como<br />
olha para a minha mãe, mas não são<br />
só os palestinianos que têm mães. Se<br />
você reconhece muito da sua própria<br />
mãe no filme, isso quer dizer que você<br />
também é palestiniano, que tudo<br />
isto é um processo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação...<br />
E se não existir essa i<strong>de</strong>ntificação por<br />
parte do espectador, o filme torna-se<br />
num falhanço, não consegue atravessar<br />
o ‘posto <strong>de</strong> controle’”.<br />
É essa necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> comunicar,<br />
esse <strong>de</strong>ver moral para com o espectador,<br />
que leva Suleiman a insistir e,<br />
nas suas palavras, resistir. “Por esta<br />
altura já sei que as pessoas que gostam<br />
dos meus filmes estão à espera<br />
<strong>de</strong> verem algo <strong>de</strong> novo. Sinto <strong>uma</strong> responsabilida<strong>de</strong><br />
moral para com o espectador<br />
<strong>de</strong> lhe dar a possibilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> revisitar o filme, não apenas <strong>de</strong> o<br />
ver <strong>uma</strong> ou duas ou três vezes mas <strong>de</strong><br />
o levar a pensar: ‘o que mais ali havia<br />
que eu não vi?’ ou ‘o que haverá ali<br />
mais que me leve a querer voltar a<br />
vê-lo?’. Sinto que é necessário para<br />
mim fazer um filme que esteja tão<br />
carregado que pareça termos realizado<br />
muitos filmes num só... E sinto um<br />
<strong>de</strong>ver <strong>de</strong> continuar a lutar para fazer<br />
os meus filmes. ”<br />
A palavra é, mesmo, luta: “O Tempo<br />
que Resta” dista sete anos <strong>de</strong> “Intervenção<br />
Divina” em parte <strong>de</strong>vido a<br />
problemas <strong>de</strong> financiamento (agravados<br />
pela morte do produtor francês<br />
Humbert Balsan, a quem o filme é<br />
<strong>de</strong>dicado). “Foi um filme difícil <strong>de</strong> financiar,<br />
mais difícil <strong>de</strong> montar que a<br />
minha primeira curta, e caiu por terra<br />
um bom par <strong>de</strong> vezes antes <strong>de</strong> conseguir<br />
levá-lo a bom porto. Dos sete<br />
anos, quatro foram ocupados com o<br />
guião e o próprio filme; os outros três<br />
foram preenchidos com momentos<br />
<strong>de</strong>sesperados e <strong>de</strong>primentes, a visitar<br />
pessoas que não conhecia mas que<br />
tinham a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> me ajudar<br />
a salvar o filme. Nem sei como é que<br />
se consegue continuar a trabalhar assim...<br />
Mesmo apesar do cinema ter<br />
sido sempre difícil <strong>de</strong> montar, penso<br />
que as coisas têm vindo a tornar-se<br />
progressivamente mais difíceis. E<br />
quanto mais teimosos somos e quanto<br />
mais duro se torna, maior é o <strong>de</strong>safio.”<br />
Não que Suleiman pretenda <strong>de</strong>sistir:<br />
“Só faço um filme quando sinto a<br />
necessida<strong>de</strong> absoluta <strong>de</strong> o fazer. E não<br />
estou n<strong>uma</strong> posição em que consiga<br />
dizer que não quero fazer mais filmes<br />
e me quero <strong>de</strong>dicar à escrita: tenho o<br />
impulso <strong>de</strong> alguém que quer criar<br />
imagens, e esse impulso é tão forte,<br />
tão presente, que tenho <strong>de</strong> o seguir...”<br />
Ver crítica <strong>de</strong> filmes págs. 60 e segs<br />
Cinema<br />
Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 35
REUTERS/PRUDENCE CUMING ASSOCIATES/HANDOUT/FILE<br />
Exposições<br />
Damien Hirst fez das suas caveiras o ícone<br />
<strong>de</strong>fi nitivo (e também a mercadoria <strong>de</strong>fi nitiva)<br />
da arte contemporânea: “Diamond Skull”<br />
é a obra mais cara <strong>de</strong> um artista vivo, tendo<br />
sido vendido por 100 milhões <strong>de</strong> dólares<br />
36 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />
A morte é a g<br />
à Damien Hirst”, a e<br />
Das tatuagens às t-shirts estampadas<br />
com caveiras, passando pelos filmes<br />
animados com esqueletos e respectivas<br />
noivas, nunca a morte foi tão popular<br />
como no início do século XXI.<br />
O mundo das artes visuais não é indiferente<br />
a este autêntico “boom” da<br />
iconografia macabra, sobretudo quando<br />
o renascimento das “Vaida<strong>de</strong>s”<br />
(Vanitas) se <strong>de</strong>staca como <strong>uma</strong> das<br />
tendências mais marcantes da produção<br />
contemporânea. O que já é inédito<br />
- mesmo se constitui outra vertente<br />
do mesmo fenómeno -, é a morte<br />
ser promovida a estrela <strong>de</strong> museu,<br />
naquela que é <strong>uma</strong> das mais concorridas<br />
exposições da presente temporada<br />
parisiense. Chama-se “C’est La<br />
Vie! Vanités <strong>de</strong> Caravage à Damien<br />
Hirst” e reúne, até 28<br />
<strong>de</strong> Junho no Museu<br />
Maillol, 160 obras
O triunfo da morte<br />
a gran<strong>de</strong> estrela da arte contemporânea e o pretexto para “C’est La Vie! Vanités <strong>de</strong> Caravage<br />
a extraordinária exposição que agora lhe <strong>de</strong>dica o Museu Maillol, em Paris. O fi m, parecem dizer-<br />
-nos todas estas caveiras, é já agora. Luís Maio, em Paris<br />
<strong>de</strong> pintura, escultura, fotografia, ví<strong>de</strong>o<br />
e ourivesaria.<br />
Apostando justamente no vai-e-vem<br />
constante entre obras emblemáticas<br />
do Barroco, período em que as Vanitas<br />
(representações da morte <strong>de</strong>stinadas<br />
a lembrar a efemerida<strong>de</strong> da<br />
condição h<strong>uma</strong>na) atingiram o seu<br />
primeiro apogeu, e o furor mais subversivo<br />
da contemporaneida<strong>de</strong>, a exposição<br />
do Museu Maillol constrói um<br />
jogo <strong>de</strong> referências que oferece um<br />
con<strong>de</strong>nsado das metamorfoses da<br />
i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> morte através da história da<br />
arte oci<strong>de</strong>ntal.<br />
De Pompeia a Andy Warhol<br />
A peça mais antiga em exibição vai<br />
mais atrás: um pequeno mosaico policromado<br />
originário da Pompeia,<br />
datado do primeiro século da nossa<br />
era, representa <strong>uma</strong> caveira emoldurada<br />
por hábitos <strong>de</strong> rico e <strong>de</strong> pobre,<br />
a roda da fortuna e um esquadro que<br />
simboliza a justa medida. Uma alegoria<br />
moral que reconduz ao lema<br />
dos estóicos, “Memento mori” (“lembra-te<br />
que vais morrer”), ou ao “Carpe<br />
diem” (“colhe o dia”, “aproveita<br />
o momento”) dos epicuristas. O mosaico<br />
<strong>de</strong> Pompeia prova o relevo que<br />
o tema das Vaida<strong>de</strong>s ganhou na cultura<br />
greco-latina, mas é também<br />
exemplar único na exposição. Talvez<br />
porque as gran<strong>de</strong>s culturas da Antiguida<strong>de</strong><br />
só ocasional e sempre mo<strong>de</strong>radamente<br />
flirtaram com o imaginário<br />
da morte.<br />
Foi preciso esperar pela conquista<br />
cristã do Oci<strong>de</strong>nte para assistir ao<br />
triunfo da iconografia macabra. Compreensível,<br />
<strong>de</strong> resto, n<strong>uma</strong> religião<br />
centrada no resgate dos pecados da<br />
H<strong>uma</strong>nida<strong>de</strong> pela encarnação, morte<br />
e <strong>ressurreição</strong> do filho <strong>de</strong> Deus. Na<br />
iconografia cristã, a caveira é assim<br />
tanto um lembrete da finitu<strong>de</strong> da vida<br />
terrena como <strong>uma</strong> promessa <strong>de</strong> vida<br />
eterna. A peste negra, as guerras e<br />
todo o sortido <strong>de</strong> calamida<strong>de</strong>s que<br />
mergulharam a Ida<strong>de</strong> Média no obscurantismo<br />
explicam, por sua vez, a<br />
popularida<strong>de</strong> que então ganharam<br />
temas como as Danças Macabras e o<br />
Triunfo da Morte.<br />
Os esqueletos começaram a aparecer<br />
pintados nas costas dos retratos<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>funtos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> finais do século XV.<br />
Mas as Vaida<strong>de</strong>s propriamente ditas<br />
são produtos da Reforma protestante<br />
e da Contra-Reforma católica, ou seja,<br />
resultaram <strong>de</strong> <strong>uma</strong> época em que as<br />
imagens foram o centro <strong>de</strong> um aceso<br />
<strong>de</strong>bate que moveu e dividiu todo o<br />
universo cristão. A esfera católica privilegiou<br />
a imagem da caveira como<br />
pretexto <strong>de</strong> reflexão, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que colocada<br />
nas mãos <strong>de</strong> santos penitentes.<br />
Como Maria Madalena, a pecadora<br />
arrependida representada na presente<br />
exposição pela soberba “Melancolia”<br />
<strong>de</strong> Domenico Fetti, ou São Francisco,<br />
o santo que cortejou o êxtase,<br />
ilustrado por <strong>uma</strong> notável sequência<br />
<strong>de</strong> pinturas <strong>de</strong> Caravaggio, Zurbarán<br />
e La Tour.<br />
Adversos à figuração <strong>de</strong> personagens<br />
sagradas, os artistas protestantes<br />
do Norte da Europa marcaram a diferença<br />
<strong>de</strong>senvolvendo as Vaida<strong>de</strong>s como<br />
Naturezas Mortas, então um género<br />
pictórico florescente nos Países<br />
Baixos. Estas imagens <strong>de</strong> morte, a que<br />
os holan<strong>de</strong>ses chamaram “stilleven”,<br />
começaram por ser produzidas em<br />
Leida, no início do século XVII. Depressa<br />
se popularizaram, abrindo um<br />
novo ciclo <strong>de</strong> invocação da morte<br />
através <strong>de</strong> composições simbólicas<br />
centradas em caveiras pintadas até<br />
Marina Abramovic passeia vestida <strong>de</strong> preto com um<br />
esqueleto branco às costas em “Carrying The Skeleton I”,<br />
<strong>de</strong> 2008<br />
aos mais ínfimos <strong>de</strong>talhes anatómicos<br />
e ro<strong>de</strong>adas <strong>de</strong> objectos invocando a<br />
passagem do tempo e a efemerida<strong>de</strong><br />
da vida h<strong>uma</strong>na (ampulhetas, flores<br />
murchas, velas apagadas).<br />
Esta <strong>de</strong>coração, <strong>de</strong> início bastante<br />
austera, foi ganhando maior opulência<br />
à medida que crescia a fortuna<br />
colonial holan<strong>de</strong>sa. Veio a integrar<br />
objectos simbolizando o po<strong>de</strong>r (coroas,<br />
ceptros), os prazeres (jogos, cachimbos),<br />
mas também o saber (os<br />
livros) e a própria arte (pincéis, tintas,<br />
cavaletes). As “stilleven” rapidamente<br />
se difundiram em toda a Europa,<br />
vindo a mesclar-se com a iconografia<br />
católica e inclusive imaginários mais<br />
herméticos. Uma tendência bem ilustrada<br />
na exposição do Museu Maillol<br />
pela enigmática “Vanitas” <strong>de</strong> Simon<br />
Renard <strong>de</strong> Saint-André (1650) com o<br />
seu crânio estilizado, tombado sobre<br />
instrumentos e pautas <strong>de</strong> música.<br />
Caveiras e esqueletos foram certamente<br />
reemergindo na iconografia<br />
das sucessivas correntes artísticas<br />
mo<strong>de</strong>rnas, do Romantismo à Nova<br />
Objectivida<strong>de</strong>, passando pelo Dadaísmo<br />
e pelo Expressionismo. A verda<strong>de</strong>,<br />
porém, é que, <strong>de</strong>pois do Barroco,<br />
as Vaida<strong>de</strong>s per<strong>de</strong>ram esplendor e<br />
foram sendo esvaziadas <strong>de</strong> sentido,<br />
acompanhando o movimento <strong>de</strong> secularização<br />
da arte. Isto até Andy Warhol<br />
<strong>de</strong>clarar, em 1976, que “A morte<br />
po<strong>de</strong> realmente fazer <strong>de</strong> si <strong>uma</strong> estrela”<br />
e dar início a <strong>uma</strong> série <strong>de</strong> “Skulls”<br />
<strong>de</strong> poses fotogénicas e cores flashantes,<br />
mas também <strong>de</strong> <strong>uma</strong> frieza ácida<br />
irredutível.<br />
O fi m é agora<br />
“C’est La Vie” ocupa o parisiense Museu<br />
Maillol ao mesmo tempo que a<br />
primeira parte da exposição “A Pers-<br />
“A morte po<strong>de</strong> realmente fazer <strong>de</strong> si <strong>uma</strong> estrela”,<br />
<strong>de</strong>clarou Warhol em 1976, dando início às cores<br />
flashantes da série “Skulls”<br />
A exposição do Museu<br />
Maillol constrói<br />
um jogo <strong>de</strong><br />
referências que<br />
oferece um<br />
con<strong>de</strong>nsado das<br />
metamorfoses da<br />
i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> morte através<br />
da história da arte<br />
oci<strong>de</strong>ntal<br />
pectiva Das Coisas. A Natureza-Morta<br />
na Europa”, relativa aos séculos XVII<br />
e XVIII, <strong>de</strong>corre na Fundação Gulbenkian,<br />
em <strong>Lisboa</strong>. Embora fruto do<br />
acaso, a sincronia das duas exposições<br />
sugere <strong>uma</strong> complementarida<strong>de</strong>,<br />
acentuada pela inclusão <strong>de</strong> um pequeno<br />
núcleo <strong>de</strong> Vanitas no evento lisboeta.<br />
Isto dito, não é menos evi<strong>de</strong>nte o<br />
que as separa, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo porque nem<br />
todas as Vanitas são Naturezas Mortas.<br />
Mas on<strong>de</strong> as duas exposições contrastam<br />
realmente é em termos <strong>de</strong> itinerário:<br />
se “A Perspectiva das Coisas”<br />
segue um guião cronológico, que se<br />
inicia no século XVII, já “C’est La Vie”<br />
coloca um claro enfoque na actualida<strong>de</strong>,<br />
para <strong>de</strong>pois percorrer a história<br />
em sentido inverso.<br />
Em Paris começa-se, portanto, pelo<br />
fim – o que aten<strong>de</strong>ndo ao tema, não<br />
po<strong>de</strong>ria revelar-se mais a<strong>de</strong>quado.<br />
Também se percebe <strong>de</strong> imediato a<br />
ambição <strong>de</strong> bilheteira: cintilam (literalmente),<br />
nesta selecção <strong>de</strong> Vanitas<br />
contemporâneas, alguns dos artistas<br />
mais cotados da actualida<strong>de</strong>. A estrela<br />
oficial da exposição é, aliás, “Diamond<br />
Skull” (2007) serigrafia <strong>de</strong> um<br />
crânio em platina engastado <strong>de</strong> 8601<br />
diamantes, assinada por Damien<br />
Hirst. Consi<strong>de</strong>rada um dos primeiros<br />
ícones do século XXI, bateu todos os<br />
recor<strong>de</strong>s: é a obra mais cara <strong>de</strong> um<br />
artista vivo (foi vendida por 100 milhões<br />
<strong>de</strong> dólares).<br />
Em termos <strong>de</strong> popularida<strong>de</strong>, pelo<br />
menos, “Diamond Skull” tem um sério<br />
concorrente na exposição: “C.B.<br />
1” (2009), um gigantesco crânio<br />
emoldurado por um trem <strong>de</strong> cozinha<br />
em inox, da autoria Subodh Gupta,<br />
indiano em ascensão meteórica no<br />
actual mercado da arte. São esculturas<br />
muito diferentes, sem dúvida,<br />
Basquiat invoca as tradições vudu para as incorporar<br />
na sua linguagem urbana, em “Do Not Revenge”<br />
(1982): morreria <strong>de</strong> overdose, seis anos <strong>de</strong>pois<br />
Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 37
as <strong>de</strong> Hirst e Gupta, mas partilham<br />
a estratégia <strong>de</strong> causar sensação. Entre<br />
o choque e o paradoxo, ambas<br />
po<strong>de</strong>m ser lidas ao mesmo tempo<br />
como con<strong>de</strong>nação e celebração <strong>de</strong><br />
um tempo que é o nosso, o tempo<br />
em que a morte se <strong>de</strong>ssacralizou e<br />
virou espectáculo.<br />
Convivem, <strong>de</strong> resto, com <strong>uma</strong> mão<br />
cheia <strong>de</strong> obras provocadoras e insólitas,<br />
que questionam a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> morte<br />
nas socieda<strong>de</strong>s contemporâneas,<br />
enquanto recriam n<strong>uma</strong> miría<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
sentidos a tradição das Vaida<strong>de</strong>s. Basquiat<br />
cruza imaginário vudu e os graffti<br />
urbanos em “Do Not Revenge”<br />
(1982), Annette Messager usa luvas<br />
pretas e lápis <strong>de</strong> cor para cortejar os<br />
pesa<strong>de</strong>los da infância <strong>de</strong> “Gants-tête”<br />
(1999), enquanto Yan Pei-Mag se autoretrata<br />
a partir <strong>de</strong> um “scanning” do<br />
seu próprio “Crâne” (2004), Dimitri<br />
Tsykalov esculpe caveiras em frutas<br />
e mais materiais perecíveis e Marina<br />
Abramovic passeia vestida <strong>de</strong> preto<br />
com um esqueleto branco às costas<br />
em “Carrying The Skeleton I”<br />
(2008).<br />
Estratégias <strong>de</strong> colisão<br />
Contemplada a prodigiosa multiplicida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> matérias plásticas e <strong>de</strong><br />
mensagens que hoje se conjugam em<br />
imagens <strong>de</strong> morte, o visitante é convidado<br />
a subir aos pisos superiores<br />
do antigo hotel parisiense, para as<br />
confrontar com Vaida<strong>de</strong>s típicas do<br />
O catolicismo colocou a caveira nas mãos <strong>de</strong> santos<br />
penitentes, como esta Maria Madalena da<br />
“Melancolia” (circa 1620) <strong>de</strong> Domenico Fetti<br />
38 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />
Barroco e da Mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. O percurso<br />
está longe, porém <strong>de</strong> ser linear: o<br />
exercício <strong>de</strong> confronto é literalmente<br />
forçado pela inserção <strong>de</strong> obras actuais<br />
entre sequências do passado. É o<br />
caso por excelência do “Gabinete <strong>de</strong><br />
Arrepios”, on<strong>de</strong> o imaginário <strong>de</strong> <strong>de</strong>senho<br />
animado mórbido dos irmãos<br />
Chapman se vem intrometer entre<br />
Vaida<strong>de</strong>s barrocas com assinaturas<br />
<strong>de</strong> Ligozzi, Martinelli e um anónimo<br />
francês do século XVII, que reflecte<br />
sobre a futilida<strong>de</strong> do saber. Ou ainda<br />
da pequena sala que faz dialogar ludicamente<br />
o teatro <strong>de</strong> sombras <strong>de</strong><br />
Christian Boltanski e um <strong>de</strong>senho <strong>de</strong><br />
Basquiat, em plena secção dos clássicos.<br />
“C’est La Vie” é, portanto, <strong>uma</strong> exposição<br />
sobre um tema original, apresentado<br />
<strong>de</strong> forma pouco ou nada<br />
ortodoxa. Daí também a exibição <strong>de</strong><br />
um conjunto <strong>de</strong> artigos que raramente<br />
figuram em exposições convencionais.<br />
Ainda no piso térreo, logo à saída<br />
da arte contemporânea, está<br />
montado um Gabinete <strong>de</strong> Curiosida<strong>de</strong>s<br />
que mistura objectos <strong>de</strong> várias<br />
épocas, subordinados ao tema da<br />
morte. Entre ossadas barrocas em<br />
cera e projecções ví<strong>de</strong>o <strong>de</strong> interrogações<br />
existenciais, exibem-se <strong>uma</strong> colecção<br />
<strong>de</strong> bengalas com cabeças <strong>de</strong><br />
caveira e um conjunto <strong>de</strong> anamorfoses,<br />
imagens que distorcidas produzem<br />
esqueletos.<br />
A secção dos clássicos é rematada<br />
por <strong>uma</strong> selecção <strong>de</strong> jóias, entre as<br />
quais se <strong>de</strong>stacam as criações da casa<br />
veneziana Codognato, fundada em<br />
1866. São brincos, colares e outros<br />
pen<strong>de</strong>ntes, feericamente <strong>de</strong>corados<br />
com cabeças <strong>de</strong> morte, sumptuosas<br />
Joías-Vanitas reminiscentes do gosto<br />
barroco. Mais acima ainda, na secção<br />
<strong>de</strong> fotografias e esculturas contemporâneas,<br />
todas as atenções se concentram<br />
na excepcional colecção <strong>de</strong> anéis<br />
reunidos ao longo <strong>de</strong> toda <strong>uma</strong> vida<br />
pelo galerista Yves Gastou. Vai dos<br />
anéis eclesiásticos Memento Mori às<br />
estilizadas criações dos mais prestigiados<br />
ourives da actualida<strong>de</strong>, passando<br />
pelos anéis dos Hell’s Angels,<br />
que transformaram as caveiras em<br />
signo <strong>de</strong> violência e <strong>de</strong> contestação<br />
social.<br />
Arte da vida<br />
e arte da morte<br />
É <strong>uma</strong> exposição fantástica, certamente<br />
um dos maiores êxitos <strong>de</strong> bilheteira<br />
do Museu Maillol, que está<br />
longe <strong>de</strong> ser dos mais visitados em<br />
Paris. Claro que os visitantes sabem<br />
ao que vão, mas não é menos evi<strong>de</strong>nte<br />
o choque estampado em muitos<br />
rostos, sobretudo frente ao <strong>de</strong>spudor<br />
das danças macabras da arte contemporânea.<br />
Há, <strong>de</strong> resto, um factor adicional<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>stabilização que é a própria<br />
colecção permanente.<br />
O Museu Maillol resulta da teimo-<br />
Este pequeno mosaico <strong>de</strong> Pompeia (século I d.C.) é a<br />
peça mais antiga da exposição, provando o relevo<br />
que as Vaida<strong>de</strong>s ganharam na cultura greco-latina<br />
Obras como<br />
o “Diamond Skull”<br />
<strong>de</strong> Damien Hirst<br />
ou “C. B. 1”, <strong>de</strong> Subodh<br />
Gupta, po<strong>de</strong>m<br />
ser lidas ao mesmo<br />
tempo como<br />
con<strong>de</strong>nação<br />
e celebração <strong>de</strong> um<br />
tempo que é o nosso,<br />
o tempo em que<br />
a morte se<br />
<strong>de</strong>ssacralizou e virou<br />
espectáculo<br />
sia <strong>de</strong> Dina Vierny, musa do pintor<br />
e escultor Aristi<strong>de</strong> Maillol (1861-1941),<br />
que durante 30 anos lutou para que<br />
o legado <strong>de</strong>ste ganhasse um espaço<br />
<strong>de</strong> exposição permanente. Na verda<strong>de</strong>,<br />
mesmo com “C’est La Vie” a<br />
correr, o artista francês continua exposto<br />
no “seu” museu. É <strong>uma</strong> vizinhança<br />
algo insólita, que produz um<br />
seguro abalo nos visitantes, <strong>uma</strong> vez<br />
que o tema favorito <strong>de</strong> Maillol eram<br />
raparigas roliças e sensuais, a sua<br />
arte constituindo o género <strong>de</strong> louvor<br />
aos prazeres da vida que as Vaida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong>veriam contrariar. Ao consultar o<br />
folheto da exposição <strong>de</strong>scobrimos,<br />
porém, que este confronto é igualmente<br />
intencional, recomendandose<br />
até ao visitante que transite entre<br />
Maillol e as Vanitas, que é como<br />
quem diz, entre a arte da vida e arte<br />
da morte.<br />
Um faits-divers, só para rematar:<br />
no passado dia 7 <strong>de</strong> Março, o francês<br />
Pascal Guérinau <strong>de</strong>cidiu pendurar<br />
com pioneses <strong>uma</strong> das suas telas no<br />
Museu Maillol. O artista ficou por ali<br />
para ver o efeito e jura que muita gente<br />
se mostrou <strong>de</strong>leitada. Não foi, porém,<br />
o que aconteceu com Olivier<br />
Lorquin, director do museu, que além<br />
<strong>de</strong> ficar furioso com a falha do sistema<br />
<strong>de</strong> segurança, classificou a obra <strong>de</strong><br />
Guérinau <strong>de</strong> “verda<strong>de</strong>ira merda”. O<br />
género <strong>de</strong> inci<strong>de</strong>nte, claro, que só<br />
contribuiu para chamar mais gente<br />
ao Maillol.<br />
São Franciso, o santo que cortejou o êxtase, é ilustrado<br />
por <strong>uma</strong> notável sequência <strong>de</strong> pinturas que incluem este<br />
Zurbarán <strong>de</strong> 1639
Direcção Artística Daniel Cardoso<br />
apresenta<br />
CAOS<br />
// DE 20 A 23 DE ABRIL<br />
ESPECTÁCULO DIA 23 DE ABRIL | 21h00<br />
ACTUAÇÕES DIÁRIAS DE 20 A 22 DE ABRIL | 13h00<br />
/// ENTRADA LIVRE LIMITADA À LOTAÇÃO DA SALA<br />
Programação e produção<br />
// MORADA<br />
Praça Marquês <strong>de</strong> Pombal<br />
nº3, 1250-161 <strong>Lisboa</strong><br />
// TELEFONE<br />
21 359 73 58<br />
// HORÁRIO<br />
Segunda a Sexta<br />
das 9h às 21h<br />
// EMAIL<br />
besarte.financa@bes.pt<br />
<br />
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SÃO<br />
LUIZ<br />
ABR/MAI ~1O<br />
Shopping & Fucking<br />
Prémio da Crítica<br />
2007 da Associação<br />
Portuguesa <strong>de</strong><br />
Críticos <strong>de</strong> Teatro<br />
Fo<strong>de</strong>r e Ir<br />
às Compras<br />
está <strong>de</strong> volta,<br />
<strong>de</strong>pois do sucesso<br />
em 2007.<br />
No São Luiz.<br />
29 Abril a 15 Maio na Sala Principal.<br />
Quarta a sábado às 21h e domingo às 17h30.<br />
A reposição do espectáculo é <strong>uma</strong> co-produção SLTM – Primeiros Sintomas<br />
SÃO LUIZ TEATRO MUNICIPAL<br />
BILHETEIRA DAS 13H ÀS 20H<br />
RUA ANTÓNIO MARIA CARDOSO, 38; 1200-027 LISBOA T: 213 257 650; BILHETEIRA@TEATROSAOLUIZ.PT<br />
GERAL@TEATROSAOLUIZ.PT / T: 213 257 640<br />
BILHETES À VENDA NA TICKETLINE E NOS LOCAIS HABITUAIS<br />
WWW.TEATROSAOLUIZ.PT
“Viagem ao Meio”, a exposição <strong>de</strong><br />
Alexandre Estrela na Galeria Zé dos<br />
Bois (ZDB), em <strong>Lisboa</strong>, é – o título<br />
insinua-o – o resultado <strong>de</strong> <strong>uma</strong> série<br />
<strong>de</strong> pesquisas e trabalhos <strong>de</strong> campo.<br />
Nada <strong>de</strong> documentos ou abordagens<br />
documentais. Produzido pela ZDB e<br />
iniciado há dois anos em diversas residências,<br />
o projecto assinala a continuação<br />
<strong>de</strong> <strong>uma</strong> obra e <strong>de</strong> “temas” que<br />
nela que se repetem: a percepção como<br />
criadora <strong>de</strong> equívocos e encantamentos;<br />
a natureza concreta das imagens<br />
ou as proprieda<strong>de</strong>s escultóricas<br />
da imagem em movimento. Acontece<br />
que, <strong>de</strong>sta vez, Estrela saiu do atelier.<br />
Partiu em viagem.<br />
O primeiro <strong>de</strong>stino foi a Ilha <strong>de</strong> S.<br />
Miguel nos Açores. Aqui <strong>de</strong>finiram-se<br />
os eixos da investigação e <strong>uma</strong> primeira<br />
abordagem à peça que <strong>de</strong>u o<br />
nome a esta individual. Seguiu-se <strong>uma</strong><br />
residência na República Checa, no<br />
âmbito da qual se apresentaram novos<br />
trabalhos na Meet Factory em<br />
Praga, e <strong>uma</strong> viagem a Timor. O trabalho<br />
<strong>de</strong> campo concluiu-se com novo<br />
regresso a São Miguel e <strong>uma</strong> estadia<br />
<strong>de</strong> 15 dias n<strong>uma</strong> cabana nas imediações<br />
do vulcão da Lagoa das Setes<br />
Cida<strong>de</strong>s, na ilha açoriana.<br />
Alg<strong>uma</strong>s referências teóricas/literárias<br />
balizaram o princípio da expedição.<br />
A primeira esteve no livro “Keep<br />
the River on Your Right”, <strong>de</strong> Tobias<br />
Schneebaum, pintor americano que<br />
nos anos 60 abandonou Nova Iorque<br />
para viver com tribos peruanas, partilhando<br />
dos seus costumes.<br />
A intenção <strong>de</strong> Estrela era encontrar<br />
na natureza um novo sistema, <strong>uma</strong><br />
nova maneira <strong>de</strong> pensar; n<strong>uma</strong> comparação<br />
imaginativa, reunir o gesto<br />
dos pintores da Escola <strong>de</strong> Barbizon<br />
(sair do atelier) ao olhar <strong>de</strong> Terrence<br />
Malick em “A Barreira Invisível”. Entretanto,<br />
apareceu “Songlines” <strong>de</strong><br />
Bruce Chatwin (“O Canto Nómada”,<br />
na edição da Quetzal), livro on<strong>de</strong> o<br />
A percepção e<br />
os sentidos:<br />
em “Hydra” os<br />
níveis do<br />
espectro<br />
sonoro<br />
ganham<br />
movimento<br />
por meio <strong>de</strong><br />
<strong>uma</strong> animação<br />
40 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />
viajante e autor inglês revela que na<br />
cultura aborígene a linguagem começou<br />
n<strong>uma</strong> canção e que são as canções<br />
que dão existência ao mundo –<br />
cada paisagem, cada rocha é <strong>uma</strong><br />
canção. Na socieda<strong>de</strong> timorense, baseada<br />
na transmissão <strong>de</strong> conhecimento<br />
por via oral, Estrela encontrou tradições<br />
próximas: as indicações dos<br />
percursos pe<strong>de</strong>stres são transmitidas<br />
pelos seus pares através <strong>de</strong> paisagens<br />
cantadas e as palavras ritmadas promovem<br />
visualmente a existência física<br />
das coisas. Entretanto, o que seria<br />
um exercício na paisagem transformou-se<br />
n<strong>uma</strong> imersão da paisagem.<br />
Conta: “Depois <strong>de</strong> um périplo pela<br />
montanha e as casas sagradas timorenses,<br />
<strong>de</strong>scobri que os populações<br />
consi<strong>de</strong>ram as suas al<strong>de</strong>ias o centro<br />
do mundo, que para elas Timor é o<br />
centro da h<strong>uma</strong>nida<strong>de</strong>. E essa i<strong>de</strong>ia<br />
geocêntrica interessou-me muito”.<br />
De regresso aos Açores, influenciado<br />
por esta cosmogonia, no seguimento<br />
da “repérage” realizada antes,<br />
Estrela (com o curador Natxo Checa)<br />
voltou à Lagoa para concluir “Viagem<br />
ao Meio”. O lugar escolhido foi o Túnel<br />
das Sete Cida<strong>de</strong>s, um canal construído<br />
nos anos 30 para drenar as<br />
águas da lagoa e que perfura as pare<strong>de</strong>s<br />
do vulcão (que tem a maior cratera<br />
do Atlântico). As diferenças térmicas,<br />
a luz, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> meio/centro,<br />
bem como <strong>de</strong> viagem <strong>de</strong>terminaram<br />
o processo. O artista, o curador e assistentes<br />
pegaram num quilómetro e<br />
setecentos metros <strong>de</strong> filme, <strong>de</strong>senrolaram<br />
a bobina do centro para <strong>uma</strong><br />
das pontas e <strong>de</strong>pois voltaram a enrolar.<br />
Em simultâneo com a exposição<br />
da fita, toda a travessia foi registada<br />
em ví<strong>de</strong>o, pelo que os dois suportes<br />
acabam por se cruzar e sobrepor. Vemos<br />
a fita escura, queimada, antes <strong>de</strong><br />
ganhar alvura (protegida pelo escuro<br />
do túnel), enquanto a imagem do ví<strong>de</strong>o<br />
vai caindo num negro cerrado.<br />
“Interessou-me a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> profanação.<br />
Do vulcão e do meio fílmico. Temos<br />
ali um ecrã que recebe a imagem <strong>de</strong><br />
dois meios. A do ví<strong>de</strong>o vai n<strong>uma</strong> direcção<br />
e continua. A do filme, porque<br />
a fita só foi esticada até ao meio, volta<br />
para trás. O que une tudo é o som”.<br />
“Viagem ao meio” tem um lado cerimonial.<br />
Obriga o espectador a fazer<br />
a travessia, a seguir o filme e a película.<br />
Solicita disponibilida<strong>de</strong>, como as<br />
apresentações <strong>de</strong> cinema e ví<strong>de</strong>o experimental<br />
<strong>de</strong> Oporto, projecto que<br />
Estrela dirige há três anos (perto do<br />
Miradouro <strong>de</strong> Santa Catarina, em <strong>Lisboa</strong>).<br />
Esqueçam os “screenings” e<br />
outras massificações do ví<strong>de</strong>o. “As<br />
coisas para serem vistas precisam <strong>de</strong><br />
espaço, <strong>de</strong> contexto e a bancada [que<br />
faz parte da peça “Viagem ao Meio”]<br />
é aí fundamental. Põe-te ao lado, perspectiva-te<br />
o espaço, coloca-te <strong>de</strong> frente<br />
para os dispositivos. Vês a criação<br />
<strong>de</strong> <strong>uma</strong> imagem única, em tempo real,<br />
dada por dois sistemas”.<br />
O encontro com as imagens<br />
Se em “Viagem ao Meio” o espectador<br />
é colocado diante da contaminação<br />
do filme pelo ví<strong>de</strong>o (os dois cruzamse,<br />
sobrepõem-se) e o centro (do túnel<br />
do vulcão) é um centro performativo<br />
(afinal seguimos o filme, a película até<br />
ao interior), em “Le Moiret”, obra<br />
produzida durante <strong>uma</strong> residência na<br />
Bretanha, a imagem <strong>de</strong>sdobra-se para<br />
criar um centro espacial. Um pequeno<br />
ví<strong>de</strong>o projecta, sobre um vidro,<br />
sombras <strong>de</strong> folhas agitadas pelo vento<br />
e a imagem materializa-se (ganha<br />
estrutura física) num canto da pare<strong>de</strong>.<br />
O efeito óptico é “precioso”, táctil e<br />
abriga, segundo Estrela, um novelo<br />
<strong>de</strong> interrogações: “O que é o centro<br />
da imagem? É o centro convencional<br />
da imagem da representação? É o centro<br />
da imagem do ecrã? O centro da<br />
matéria que compõe esse ecrã? Essa<br />
era reflexão que me interessava”. E o<br />
“Interessa-me<br />
trabalhar<br />
a fisicalida<strong>de</strong><br />
da imagem,<br />
a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>uma</strong> imagem ser<br />
concreta, existir, <strong>de</strong><br />
ter atributos físicos”<br />
som, que lugar tem na estrutura <strong>de</strong>ssa<br />
imagem? “Anima as folhas. Oferece<br />
<strong>uma</strong> percepção do vento. Com este<br />
trabalho procurava filmar o que não<br />
é filmável”<br />
A reflexão sobre as proprieda<strong>de</strong>s<br />
físicas das imagens (em movimento)<br />
renova-se na prática <strong>de</strong>ste artista.<br />
“Sim, interessa-me trabalhar a fisicalida<strong>de</strong><br />
da imagem, a possibilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> <strong>uma</strong> imagem ser concreta, existir,<br />
<strong>de</strong> ter atributos físicos”. “Flauta”,<br />
através <strong>de</strong> um processo estereoscópico,<br />
cria essa percepção. Duas imagens<br />
alternadas parecem produzir o som<br />
grave do vento que se escuta através<br />
<strong>de</strong> um buraco feito no ecrã. Mas o<br />
efeito é ilusório, assim como o lado<br />
físico da imagem.<br />
Tal como as possibilida<strong>de</strong>s da escultura,<br />
as potencialida<strong>de</strong>s da percepção<br />
continuam a fascinar Estrela. Vejam<br />
“A teia”, plano fixo <strong>de</strong> <strong>uma</strong> teia<br />
pendurada num bambu. Ou será um<br />
falso plano fixo? Ou <strong>uma</strong> imagem em<br />
movimento encontrada em Timor?<br />
“Entendo percepção como o mediador<br />
entre o sujeito e a realida<strong>de</strong> e<br />
interessa-me trabalhá-la não com conceitos,<br />
mas com intuição perceptivas”,<br />
esclarece. “A imagem não <strong>de</strong>ixa<br />
<strong>de</strong> ser <strong>uma</strong> ressonância, vibra a <strong>uma</strong><br />
<strong>de</strong>terminada frequência. Se entrares<br />
<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ssa frequência, se a quebrares<br />
e mo<strong>de</strong>lares, po<strong>de</strong> acontecer um<br />
efeito encantatório. Mas não me interessa<br />
a mecânica da visão, e sim a<br />
natureza concreta da memória e da<br />
imagem”.<br />
Alexandre Estrela partiu em<br />
Um fi lme on<strong>de</strong> a fi ta se cruza com o ví<strong>de</strong>o. Um plano fi xo movido pela luz e a sombra. Sons que a<br />
produzir sons. Em “Viagem Ao Meio”, Alexandre Estrela continua a abalar a experiência
Como nomear, então, a imagem da<br />
teia? Uma imagem “encontrada”? E<br />
nesse caso, não estaremos já distantes<br />
da estratégia <strong>de</strong> apropriação que marcou<br />
obras seminais como “Cross sharing<br />
(2000) e “Banned in the Uk”<br />
(2000) ou, já na última década, “Intermission”<br />
(2006)?<br />
“A apropriação <strong>de</strong> imagens foi<br />
transferida para a apropriação do<br />
acaso, mas continuo a encontrar-me<br />
com imagens que já existem. Como<br />
acontece no ‘Songlines’ do Chatwin.<br />
E continuo num processo laboratorial.<br />
Procuro nelas <strong>uma</strong> espécie <strong>de</strong><br />
revelação interna. Isolo-as e ponhoas<br />
em cultura. Tanto num sistema<br />
celular como num sistema cultural”.<br />
Este tem sido o método e o fazer <strong>de</strong><br />
Estrela. Tempo para recordar “Cross<br />
sharing”: “O que fiz foi buscar dois<br />
filmes [“Soylent Green”, <strong>de</strong> Richard<br />
Fleischer, e “Far from the Madding<br />
Crowd”, <strong>de</strong> John Schlesinger] que partilham<br />
o mesmo plano [um plano <strong>de</strong><br />
ovelhas num prado, adquirido num<br />
banco <strong>de</strong> imagens], e uni-os. Juntei-os<br />
nesse plano que é <strong>uma</strong> imagem <strong>de</strong><br />
produção e, ao mesmo tempo, um<br />
plano central nas narrativas. O que<br />
acontece no “Cross sharing” é a união<br />
por meio <strong>de</strong> metanarrativas. Aproprio-me<br />
da apropriação, pois essa<br />
imagem não pertencia originalmente<br />
aos dois filmes”.<br />
Ver crítica <strong>de</strong> exposições págs. 44 e segs<br />
Exposições<br />
“Le Moiret”:<br />
um ví<strong>de</strong>o<br />
projecta,<br />
sobre um<br />
vidro,<br />
sombras <strong>de</strong><br />
folhas<br />
agitadas pelo<br />
vento e a<br />
imagem<br />
materializa-se<br />
viagem<br />
animam imagens. Imagens que parecem<br />
a das imagens. José Marmeleira<br />
25 ABRIL<br />
DOMINGO 18:00 SALA SUGGIA | € 10<br />
70º ANIVERSÁRIO DO NASCIMENTO DE JORGE PEIXINHO<br />
Baldur Brönnimann dir. musical<br />
Angel Gimeno violino<br />
Vítor Pereira clarinete baixo<br />
Luís Rodrigues barítono<br />
Alexandra Moura soprano<br />
Luciano Berio Sequenza VIII<br />
para violino<br />
Luigi Nono Canti per 13<br />
Jorge Peixinho Meta-Formoses,<br />
concerto para clarinete baixo<br />
Jorge Peixinho Viagem da Natural l<br />
Invenção<br />
Jorge Peixinho procurou no mestre<br />
italiano Luigi Nono ensinamentos<br />
que lhe abrissem novas perspectivas<br />
da composição. Cinquenta anos<br />
<strong>de</strong>pois, as suas obras encontram-se<br />
num mesmo programa vanguardista,<br />
ao lado <strong>de</strong> Berio, dando a conhecer<br />
a última década criativa do “pai da<br />
vanguarda portuguesa”.<br />
MECENAS CASA DA MÚSICA<br />
APOIO INSTITUCIONAL MECENAS PRINCIPAL CASA DA MÚSICA<br />
SEJA UM DOS PRIMEIROS A APRESENTAR HOJE ESTE JORNAL COMPLETO NA CASA DA MÚSICA E GANHE UM CONVITE<br />
DUPLO PARA ESTE CONCERTO. OFERTA LIMITADA AOS PRIMEIROS 10 LEITORES.<br />
www.casadamusica.com | www.casadamusica.tv | T 220 120 220<br />
Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 41
Como nomear, então, a imagem da<br />
teia? Uma imagem “encontrada”? E<br />
nesse caso, não estaremos já distantes<br />
da estratégia <strong>de</strong> apropriação que marcou<br />
obras seminais como “Cross sharing<br />
(2000) e “Banned in the Uk”<br />
(2000) ou, já na última década, “Intermission”<br />
(2006)?<br />
“A apropriação <strong>de</strong> imagens foi<br />
transferida para a apropriação do<br />
acaso, mas continuo a encontrar-me<br />
com imagens que já existem. Como<br />
acontece no ‘Songlines’ do Chatwin.<br />
E continuo num processo laboratorial.<br />
Procuro nelas <strong>uma</strong> espécie <strong>de</strong><br />
revelação interna. Isolo-as e ponhoas<br />
em cultura. Tanto num sistema<br />
celular como num sistema cultural”.<br />
Este tem sido o método e o fazer <strong>de</strong><br />
Estrela. Tempo para recordar “Cross<br />
sharing”: “O que fiz foi buscar dois<br />
filmes [“Soylent Green”, <strong>de</strong> Richard<br />
Fleischer, e “Far from the Madding<br />
Crowd”, <strong>de</strong> John Schlesinger] que partilham<br />
o mesmo plano [um plano <strong>de</strong><br />
ovelhas num prado, adquirido num<br />
banco <strong>de</strong> imagens], e uni-os. Juntei-os<br />
nesse plano que é <strong>uma</strong> imagem <strong>de</strong><br />
produção e, ao mesmo tempo, um<br />
plano central nas narrativas. O que<br />
acontece no “Cross sharing” é a união<br />
por meio <strong>de</strong> metanarrativas. Aproprio-me<br />
da apropriação, pois essa<br />
imagem não pertencia originalmente<br />
aos dois filmes”.<br />
Ver crítica <strong>de</strong> exposições págs. 44 e segs<br />
Exposições<br />
“Le Moiret”:<br />
um ví<strong>de</strong>o<br />
projecta,<br />
sobre um<br />
vidro,<br />
sombras <strong>de</strong><br />
folhas<br />
agitadas pelo<br />
vento e a<br />
imagem<br />
materializa-se<br />
viagem<br />
animam imagens. Imagens que parecem<br />
a das imagens. José Marmeleira<br />
25 ABRIL<br />
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70º ANIVERSÁRIO DO NASCIMENTO DE JORGE PEIXINHO<br />
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Alexandra Moura soprano<br />
Luciano Berio Sequenza VIII<br />
para violino<br />
Luigi Nono Canti per 13<br />
Jorge Peixinho Meta-Formoses,<br />
concerto para clarinete baixo<br />
Jorge Peixinho Viagem da Natural l<br />
Invenção<br />
Jorge Peixinho procurou no mestre<br />
italiano Luigi Nono ensinamentos<br />
que lhe abrissem novas perspectivas<br />
da composição. Cinquenta anos<br />
<strong>de</strong>pois, as suas obras encontram-se<br />
num mesmo programa vanguardista,<br />
ao lado <strong>de</strong> Berio, dando a conhecer<br />
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Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 41
Elia Suleiman resiste (em<br />
silêncio) ) Pág. g 60<br />
m/18<br />
Campanha<br />
4º Aniversário<br />
Clube In com<br />
prémios fantásticos.<br />
Ian<br />
McEwan<br />
“Solar” é um retrato<br />
genialmente corrosivo<br />
– e realista – do<br />
nosso tempo: reduz<br />
alegremente os agentes<br />
da ciência e do po<strong>de</strong>r<br />
político ao grau zero<br />
da competência e da<br />
importância Pág. 53<br />
Bako Dagnon a melhor<br />
cantora africana da actualida<strong>de</strong><br />
Pág. 53<br />
Alexis Kossenko<br />
a versatilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um flautista<br />
Pág. 56<br />
Concerto<br />
<strong>de</strong> Amália Hoje<br />
19 <strong>de</strong> Abril 22h30<br />
segunda-feira<br />
Dee Dee Bridgewater<br />
homenagem exuberante a Billie<br />
Holiday Pág. 56<br />
ENRIC VIVES-RUBIO
Exposições<br />
44 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />
São Miguel, nos Açores, e Timor foram lugares fundamentais<br />
no processo <strong>de</strong> construção <strong>de</strong>sta “Viagem ao Meio”<br />
As novas<br />
imagens i d<strong>de</strong><br />
Alexandre<br />
Estrela<br />
Consequência <strong>de</strong> residências<br />
e digressões, “Viagem ao<br />
Meio reitera a obra <strong>de</strong>ste<br />
artista como <strong>uma</strong> das<br />
mais provocantes da arte<br />
contemporânea. José<br />
Marmeleira<br />
Viagem ao Meio<br />
De Alexandre Estrela.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Galeria Zé dos Bois. Rua da Barroca, 59.<br />
Tel.: 213430205. Até 29/05. 4ª a Sáb. das 15h às<br />
23h.<br />
Ví<strong>de</strong>o, Outros.<br />
mmmmm<br />
Alexandre Estrela (1971, <strong>Lisboa</strong>) é<br />
um daqueles (raros) artistas que<br />
empurram, que põem a arte<br />
(enquanto conceito e enquanto<br />
experiência) em movimento. Há 14<br />
anos que <strong>de</strong>safia a percepção do<br />
espectador com efeitos visuais,<br />
frequências sonoras,<br />
metanarrativas, tensões no espaço,<br />
sincronias e sinestesias. Sempre a<br />
partir <strong>de</strong> um processo laboratorial,<br />
minucioso (po<strong>de</strong>ríamos dizer paracientífico)<br />
que exige um contexto e<br />
um tempo para acontecer como<br />
obra.<br />
Originada por câmaras e<br />
projectores, pequenas animações ou<br />
ensaios, a imagem em movimento<br />
representa a matéria <strong>de</strong>ssa obra.<br />
Com as suas vibrações, as suas<br />
ressonâncias; quase física, por vezes<br />
encantatória. Pronta a ganhar corpo,<br />
por vezes a ser escultura. Esse lado<br />
encantatório (“mágico”?) não <strong>de</strong>ve<br />
ser confundido com um simples<br />
truque dirigido ao espectador. Para<br />
o artista, a ilusão é <strong>uma</strong> forma <strong>de</strong><br />
pensar a memória e a natureza física<br />
das imagens.<br />
Patente na Galeria Zé dois Bois,<br />
“Viagem ao Meio”, a nova exposição<br />
<strong>de</strong> Alexandre Estrela, continua no<br />
trilho <strong>de</strong>stas questões. O projecto<br />
aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />
Alexandre Ale Estrela continua a<br />
proporcionar-nos pro<br />
novos encontros<br />
com as imagens. O que é mesmo que<br />
dizer: diz encontros com novas<br />
imagens. im<br />
Ajustes A <strong>de</strong><br />
contas c<br />
Modos Mo <strong>de</strong> lidar com a<br />
história his na pintura <strong>de</strong> Tiago<br />
Baptista. Ba Luísa Soares <strong>de</strong><br />
Oliveira Ol<br />
nasceu no seguimento <strong>de</strong><br />
um trabalho <strong>de</strong> campo que se esten<strong>de</strong>u a várias residências<br />
internacionais e nacionais, com a<br />
há objecto físico,<br />
apenas um buraco sincronizado com<br />
um som preexistente que abala a<br />
Um U dia <strong>de</strong>stes<br />
De Tiago Baptista.<br />
produção da ZDB e a curadoria <strong>de</strong><br />
Natxo Checa. A ilha <strong>de</strong> São Miguel,<br />
nos Açores, e Timor foram os<br />
principais pólos do processo. No<br />
materialida<strong>de</strong> da imagem. Este<br />
tremor que se faz aos sentidos po<strong>de</strong><br />
nascer <strong>de</strong> um simples plano<br />
“encontrado”, como em “A teia”. É<br />
<strong>Lisboa</strong>. Galeria 3+1 Arte Contemporânea. R.<br />
António Maria Cardoso, 31. Tel.: 210170765. Até<br />
17/04. 3ª a Sáb. das 14h às 20h.<br />
Pintura.<br />
contacto com as paisagens e as<br />
culturas locais, o artista <strong>de</strong>scobriu<br />
isso mesmo: <strong>uma</strong> pequena teia <strong>de</strong><br />
aranha num bambu, sobre um fundo<br />
mmmmn<br />
espaços e conceitos que serviram <strong>de</strong> <strong>de</strong> cimento riscado. Parece <strong>uma</strong> Tiago Baptista (n. 1986) ganhou<br />
princípios às suas obras. Referimo- montagem, <strong>uma</strong> manipulação, mas é recentemente o prémio <strong>de</strong> pintura<br />
nos, por exemplo, às i<strong>de</strong>ias do tão-somente <strong>uma</strong> imagem tornada Fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> e, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> alg<strong>uma</strong>s<br />
“meio” ou <strong>de</strong> centro: o meio ou o concreta pelo efeito do sol e das apresentações colectivas, tem agora<br />
processo artístico, o centro como nuvens. E um dos mais belos (nada a sua primeira individual em <strong>Lisboa</strong>,<br />
centro da imagem ou <strong>de</strong> <strong>uma</strong> nos impe<strong>de</strong> <strong>de</strong> usar este adjectivo) na galeria 3+1. Trata-se <strong>de</strong> pintura,<br />
cosmogonia.<br />
trabalhos <strong>de</strong> Alexandre Estrela. Um como sempre tem sucedido <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />
O trabalho central <strong>de</strong> “Viagem ao espanto semelhante dá-se com “Le início do seu trabalho. Pela primeira<br />
Meio” é exactamente a peça<br />
Moiret”. O meio e os materiais são vez, no entanto, é possível<br />
homónima, realizada no túnel do frugais (projecção e um vidro confrontar lado a lado, ou frente a<br />
vulcão das Sete Cida<strong>de</strong>s: um filme preparado disposto num canto da frente, um conjunto coerente <strong>de</strong><br />
que é também um percurso.<br />
sala), mas criam <strong>uma</strong> ilusão óptica e obras. E isto é importante quando a<br />
Explicamos: <strong>uma</strong> bobine <strong>de</strong> 16mm um conflito <strong>de</strong> tramas que o som – opção, marcada <strong>de</strong> um modo quase<br />
foi <strong>de</strong>senrolada do centro do túnel “feito” escultura – vem animar. A <strong>de</strong>safiador, é pela figuração e pelo<br />
até ao exterior, tendo ficado<br />
imagem ganha volume e centro. impulso narrativo. Não é possível<br />
queimada pela luz antes <strong>de</strong> voltar a A intervenção no espaço<br />
encarar esta pintura<br />
ser enrolada. Eis, digamos assim, a expositivo, como “Putting Fear in its indiferentemente, quer se consi<strong>de</strong>re<br />
primeira “narrativa”, <strong>uma</strong><br />
Place”, no Espaço Chiado 8, também a temática, quer as características<br />
“narrativa” revelada sem câmara: se manifesta na criação <strong>de</strong> um estilísticas: pintura colorida, por<br />
assim que a projecção começa, corredor. Não apenas <strong>uma</strong><br />
vezes a roçar o “mau gosto”, e temas<br />
vemos o preto da fita passar a orientação do espectador, mas provocatórios que nos remetem<br />
branco, imaculado, porque<br />
também dos sons que chegam <strong>de</strong> para um passado não muito distante,<br />
protegido pelo escuro. A<br />
“Hidra”, peça na qual o artista, a ou para a apropriação e a <strong>de</strong>struição<br />
acompanhar este movimento, e na partir <strong>de</strong> teste <strong>de</strong> hidrodinâmica e dos ícones maiores do classicismo.<br />
mesma direcção, vislumbramos por meio <strong>de</strong> animação, converte os Uma das pinturas principais da<br />
outra viagem, esta do princípio ao diferentes níveis do espectro sonoro exposição mostra um grupo <strong>de</strong><br />
fim do túnel e registada pelo ví<strong>de</strong>o. em linhas em movimento. Em s<strong>uma</strong>: quatro jovens dos quais um (o pintor<br />
No ecrã sobrepõem-se e distanciamse<br />
as duas: com o ví<strong>de</strong>o vemos a luz Tiago Baptista está longe da pintura da limpeza<br />
gravada na entrada a sumir-se num<br />
ponto (a saída), enquanto no filme<br />
acontece o oposto. Este chega<br />
mesmo a diluir o negro do túnel, tal<br />
é a alvura da fita virgem. Peça que<br />
sobrepõe, junta e cruza diferentes<br />
processos <strong>de</strong> criação da imagem<br />
(reparem na posição da bancada<br />
confrontando-nos com esse “fazer”),<br />
“Viagem ao Meio” é também <strong>uma</strong><br />
experiência performativa. O ví<strong>de</strong>o<br />
“documenta” a passagem no túnel e,<br />
afinal, estamos <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />
câmara escura.<br />
Em “Flauta”, o aparato é menor,<br />
mas o efeito não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser bizarro<br />
e complexo. Pressentem-se as<br />
semelhanças formais com “The<br />
overt statuette” (2008), muito por<br />
causa do processo usado: a<br />
estereoscopia a partir <strong>de</strong> duas<br />
imagens. Neste trabalho, porém, não<br />
asséptica que se apresenta em tanta exposição
Bienal<br />
em auto-retrato) grava na pedra a<br />
inscrição “re<strong>de</strong>nção era morrermos<br />
todos queimados”, enquanto os<br />
<strong>de</strong>mais olham com ar mais ou<br />
menos pensativo o trabalho <strong>de</strong><br />
escultura. Pelo chão, cavaleiros,<br />
aviões e outros objectos <strong>de</strong> pedra,<br />
indicativos <strong>de</strong> <strong>uma</strong> possível<br />
catástrofe anunciada. A pose <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />
das personagens, a paisagem e a<br />
acção realizada recordam um dos<br />
célebres quadros <strong>de</strong> Poussin <strong>de</strong><br />
iconografia ainda hoje misteriosa,<br />
‘Et in Arcadia ego’: um grupo <strong>de</strong><br />
quatro pastores que lê a inscrição do<br />
título num túmulo antiquizante. O<br />
quadro tem sido intepretado <strong>de</strong><br />
várias maneiras, inclusive como <strong>uma</strong><br />
espécie <strong>de</strong> memória da condição<br />
mortal a que <strong>de</strong>uses, heróis e<br />
homens estão sujeitos. Ao comentar<br />
com a maior radicalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que é<br />
capaz o quadro, ao substituir-se até<br />
ao próprio Poussin, Tiago Baptista,<br />
por um lado, coloca-se na linhagem<br />
oci<strong>de</strong>ntal da pintura; mas, por<br />
outro, consi<strong>de</strong>ra com <strong>de</strong>sencanto e<br />
ironia o seu próprio lugar na<br />
contemporaneida<strong>de</strong>.<br />
Outras pinturas <strong>de</strong>senvolvem esta<br />
temática: um jovem vestindo a farda<br />
da Mocida<strong>de</strong> Portuguesa insere-se<br />
n<strong>uma</strong> paisagem em fogo, e um<br />
homem (o retrato do pai do artista)<br />
cabisbaixo junto a um porco<br />
remetem para <strong>uma</strong> queda que se<br />
materializa, noutros quadros, em<br />
fornalhas <strong>de</strong> livros ou incêndios <strong>de</strong><br />
edifícios industriais. Noutras obras,<br />
<strong>de</strong> tamanho menor, é a violência do<br />
texto religioso que é tratada: cabeças<br />
<strong>de</strong> cor<strong>de</strong>iro, um pão com <strong>uma</strong> faca<br />
enterrada. E sempre, em toda a<br />
exposição, a mesma técnica<br />
violentamente colorida, o mesmo<br />
<strong>de</strong>senho minucioso a lembrar, por<br />
exemplo, a ilustração ou a banda<br />
<strong>de</strong>senhada.<br />
Ao lidar com o passado da<br />
pintura, o passado pessoal ou a<br />
história recente do seu país, que<br />
Tiago Baptista não conheceu por<br />
força das circunstâncias, esta<br />
pintura aproxima-se <strong>de</strong> um tom<br />
apocalíptico, melancólico e mesmo<br />
um pouco romântico que possui<br />
tradições fortes em Portugal.<br />
Pensamos sobretudo em poesia, em<br />
algum Cesariny – porque aqui<br />
também existe ironia socrática, no<br />
sentido do estabelecimento da<br />
distância necessária ao pensamento<br />
-, no primeiro Almada, e sobretudo<br />
no <strong>de</strong>vaneio pelas ruas <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong> do<br />
Bernardo Soares do “Livro do<br />
Desassossego”. Muito longe está esta<br />
pintura da limpeza asséptica e<br />
irrepreensível que se apresenta em<br />
tanta exposição. Muito longe está ela<br />
da norma mo<strong>de</strong>rnista que afastava<br />
irremediavelmente pintura e<br />
literatura. É <strong>uma</strong> pintura que<br />
incomoda, que voluntariamente se<br />
afasta dos padrões estabelecidos<br />
para o gosto e para a arte<br />
contemporânea para tentar criar<br />
algo <strong>de</strong> novo. Merece, por isso, ser<br />
seguida com atenção e cuidado.<br />
A VII Bienal<br />
Ibero-Americana<br />
<strong>de</strong> Arquitectura<br />
e Urbanismo, que<br />
este ano se realiza<br />
em Me<strong>de</strong>llín, na<br />
Colômbia, entre<br />
11 e 17 <strong>de</strong> Outubro,<br />
seleccionou <strong>de</strong>z obras<br />
portuguesas para a<br />
categoria “Panorama Ibero-<br />
Agenda<br />
Inauguram<br />
On The Grid<br />
De Frank Breuer.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Espaço Round The Corner - Porta 9F/9G. R.<br />
Nova da Trinda<strong>de</strong> - Teatro da Trinda<strong>de</strong>. Tel.:<br />
213420000. Até 20/04. 2ª, 3ª, Sáb. e Dom. das 16h<br />
às 20h. Inaugura 16/4 ás 21h.<br />
Fotografia.<br />
Caminhos para Além do<br />
Regresso<br />
De Graça Pereira Coutinho.<br />
Guimarães. Galeria Gomes Alves 1. R. Gravador<br />
Molarinho, 11. Tel.: 253515408. Até 12/05. 3ª a Sáb.<br />
das 10h30 às 19h. Inaugura 16/4 às 22h.<br />
Outros.<br />
Em Nenhum Lugar<br />
De André Silva.<br />
Porto. Galeria Arthobler. R. Miguel Bombarda, 624.<br />
Tel.: 226084448. De 17/04 a 17/05. 3ª a Sáb. das 15h<br />
às 19h30.<br />
Pintura, Desenho, Instalação,<br />
Escultura.<br />
Linguagem e<br />
Experiência -<br />
Obras da Colecção<br />
da Caixa Geral <strong>de</strong><br />
Depósitos<br />
De Alberto Carneiro,<br />
Joaquim Rodrigo,<br />
Nikias Skapinakis,<br />
Lour<strong>de</strong>s Castro, entre<br />
outros.<br />
Oeiras. CC Palácio do Egipto.<br />
R. Álvaro António dos Santos.<br />
Tel.: 915439065. De 17/04 a<br />
20/06. 3ª a Dom. e Feriados<br />
das 11h30 às 18h (última 6ª do<br />
mês encerra às 0h).<br />
Fotografia, Outros.<br />
João Penalva<br />
na Chiado 8<br />
G.D Parada/Sussex By The Sea -<br />
Duncan Whitley<br />
De Duncan Whitley.<br />
Porto. Museu <strong>de</strong> Serralves. R. Dom João <strong>de</strong> Castro,<br />
210. Tel.: 226156500. De 17/04 a 16/05. 3ª a 6ª das<br />
10h às 17h. Sáb., Dom. e Feriados das 10h às 20h.<br />
Instalação, Som. Ciclo “Documentese!<br />
Sentidos do Reconhecimento”.<br />
World Press Cartoon<br />
Sintra. Museu <strong>de</strong> Arte Mo<strong>de</strong>rna Colecção Berardo.<br />
Av. Heliodoro Salgado. Tel.: 219248170. De 17/04 a<br />
04/07. 3ª a Dom. das 10h às 18h.<br />
Cartoon.<br />
Retrospectiva - Leal da Câmara<br />
Sintra. Museu <strong>de</strong> Arte Mo<strong>de</strong>rna Colecção Berardo.<br />
Av. Heliodoro Salgado. Tel.: 219248170. De 17/04 a<br />
31/10. 3ª a Dom. das 10h às 18h.<br />
Pintura, Desenho, Outros.<br />
The Passage To The Mind’s<br />
Antipo<strong>de</strong>s<br />
De João Ó.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Paulo Amaro Contemporary Art. R. Capitão<br />
Leitão, 14. Tel.: 214544450. Até 29/05. 3ª a Sáb. das<br />
11h às 19h30. Inaugura 17/4 às 17h.<br />
Fotografia, Instalação.<br />
Memória do Campo <strong>de</strong><br />
Concentração do Tarrafal<br />
Vila Franca <strong>de</strong> Xira. Museu do Neo-Realismo. R.<br />
Alves Redol, 45. Tel.: 263285626. Até 29/08. 3ª a 6ª<br />
das 10h às 19h. Sáb. das 12h às 19h. Dom. das 11h às<br />
18h. Inaugura 17/4 às 18h.<br />
Americano:<br />
MUDE (Ricardo<br />
Carvalho + Joana Vilhena<br />
Arquitectos); Centro<br />
Sócio-Cultural Laranjeiro<br />
Documental, Outros.<br />
Paula Rego - Obra Gráfica<br />
Castelo Branco. 102-100 Galeria <strong>de</strong> Arte. R. <strong>de</strong> Sta<br />
Maria, 100. Tel.: 933180211. Até 19/06. 3ª a 6ª das 15h<br />
às 19h. Sáb. das 10h30 às 19h. Inaugura 17/4 às 18h.<br />
Obra gráfica.<br />
The Absent Space<br />
De José María Yturral<strong>de</strong>.<br />
Braga. Galeria Mário Sequeira - Parada <strong>de</strong> Tibães.<br />
Qta da Igreja (Parada <strong>de</strong> Tibães). Tel.: 253602550.<br />
Até 29/05. 2ª a 6ª das 13h às 19h. Sáb. das 15h às 19h.<br />
Inaugura 17/4 às 18h.<br />
Pintura.<br />
Soft Theraphy<br />
De Santiago Villanueva.<br />
Braga. Galeria Mário Sequeira - Parada <strong>de</strong> Tibães.<br />
Qta da Igreja (Parada <strong>de</strong> Tibães). Tel.: 253602550.<br />
Até 29/05. 2ª a 6ª das 13h às 19h. Sáb. das 15h às 19h.<br />
Inaugura 17/4 às 18h.<br />
Escultura, Outros.<br />
Artelogia (Ap-Artes/Ciência)<br />
De Nuno Maya, Carole Purnelle.<br />
Algés. Centro <strong>de</strong> Arte Manuel <strong>de</strong> Brito - Palácio dos<br />
Anjos. Al. Hermano Patrone. Tel.: 214111400. De<br />
20/04 a 16/05. 3ª a Dom. das 11h30 às 18h.<br />
Instalação, Ví<strong>de</strong>o, Outros.<br />
Continuam<br />
A Matéria Negra da Luz dos<br />
Media<br />
De Dara Birnbaum.<br />
Porto. Museu <strong>de</strong> Serralves. R. Dom João <strong>de</strong> Castro,<br />
210. Tel.: 226156500. Até 04/07. 3ª a 6ª das 10h às<br />
17h. Sáb., Dom. e Feriados das 10h às<br />
20h.<br />
Ví<strong>de</strong>o, Outros.<br />
Pavlina e o Dr.<br />
Erlenmayer<br />
De João Penalva.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Chiado 8 Arte<br />
Contemporânea. Lg. do Chiado, 8.<br />
Tel.: 213237346. 2ª a 6ª das 12h às<br />
20h. Inaugura hoje às 22h.<br />
Um Percurso, Dois<br />
Sentidos - A Colecção<br />
do MNAC-MC, da<br />
actualida<strong>de</strong> a 1850.<br />
De Columbano Bordalo Pinheiro, José<br />
Malhoa, Ama<strong>de</strong>o <strong>de</strong> Souza-Cardoso,<br />
entre outros.<br />
<strong>Lisboa</strong>. MNAC - Museu do Chiado. R. Serpa Pinto, 4.<br />
T. 213432148. Até 6/6. 3ª a dom. das 10h às 18h.<br />
Pintura, Outros.<br />
Outros Olhares<br />
De Columbano Bordalo Pinheiro,<br />
Julião Sarmento.<br />
<strong>Lisboa</strong>. MNAC - Museu do Chiado. R. Serpa Pinto, 4.<br />
T. 213432148. Até 18/5. 3ª a dom. das 10h às 18h.<br />
Pintura, Outros.<br />
Khora<br />
De Alberto Carneiro, Rui Chafes.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Fundação Carmona e Costa. Ed <strong>de</strong> Espanha-<br />
R. Soeiro Pereira Gomes L1 - 6º A/C/D. Tel.:<br />
217803003. Até 21/05. 4ª a Sáb. das 15h às 20h.<br />
Desenho, Escultura, Outros.<br />
Lour<strong>de</strong>s Castro e Manuel Zimbro:<br />
A Luz da Sombra<br />
Porto. Museu <strong>de</strong> Serralves. R. Dom João <strong>de</strong> Castro,<br />
210. Tel.: 226156500. Até 13/06. 3ª a 6ª das 10h às<br />
17h. Sáb., Dom. e Feriados das 10h às 22h.<br />
Escultura, Outros.<br />
Sem Re<strong>de</strong><br />
De Joana Vasconcelos.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Museu Colecção Berardo. Pç. do Império -<br />
CCB. Tel.: 213612878. Até 18/05. Sáb. das 10h às 22h.<br />
2ª a 6ª, Dom. e Feriados das 10h às 19h.<br />
Instalação, Outros.<br />
Auto-Retratos do Mundo:<br />
Annemarie Schwarzenbach<br />
(Pedro Men<strong>de</strong>s<br />
Arquitectos); La<br />
Casa <strong>de</strong> Libro<br />
(Olga Sanina<br />
e Marcelo<br />
Dantas Arquitectos);<br />
Casa no Alto da Ajuda<br />
(Extrastudio); Superfície<br />
Comercial MiniPreço (José<br />
Fernan<strong>de</strong>s Gonçalves);<br />
Espaço Público do Cacém<br />
(1908-1942)<br />
<strong>Lisboa</strong>. Museu Colecção Berardo. Pç. do Império -<br />
CCB. Tel.: 213612878. Até 25/04. Sáb. das 10h às 22h.<br />
2ª a 6ª e Dom. das 10h às 19h.<br />
Fotografia.<br />
Judith Barry<br />
<strong>Lisboa</strong>. Museu Colecção Berardo. Pç. do Império -<br />
CCB. Tel.: 213612878. Até 25/04. Sáb. das 10h às 22h.<br />
2ª a 6ª e Dom. das 10h às 19h.<br />
Ví<strong>de</strong>o, Instalação, Outros.<br />
Robert Longo<br />
<strong>Lisboa</strong>. Museu Colecção Berardo. Pç. do Império -<br />
CCB. Tel.: 213612878. Até 25/04. Sáb. das 10h às 22h.<br />
2ª a 6ª e Dom. das 10h às 19h.<br />
Desenho, Outros.<br />
A Perspectiva Das Coisas. A<br />
Natureza-Morta Na Europa,<br />
Séculos XVII-XVII<br />
De Juan Zurbarán, Rembrandt van<br />
Rijn, Francisco <strong>de</strong> Goya, entre outros.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Fundação e Museu Calouste Gulbenkian. Av.<br />
<strong>de</strong> Berna, 45A. Tel.: 217823700. Até 02/05. 3ª a Dom.<br />
das 10h às 18h.<br />
Pintura.<br />
Sachenhausen: Um Domingo<br />
De Jorge Leal.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Museu da Electricida<strong>de</strong>. Av. Brasília - Ed.<br />
Central Tejo. Tel.: 210028120. Até 23/05. 3ª a Dom.<br />
(Risco); Arquivo <strong>Municipal</strong><br />
<strong>de</strong> Loures (Fernando<br />
Martins e João Manuel<br />
Santa Rita); Casa Cork<br />
(Arquitectos Anónimos);<br />
Estação Biológica do<br />
Gardunho (Ventura<br />
Trinda<strong>de</strong> Arquitectos)<br />
e Café + Estrutura <strong>de</strong><br />
Sombreamento, Sacavém<br />
(ateliemob).<br />
das 10h às 18h.<br />
Pintura.<br />
Térmico<br />
De Gabriela Albergaria.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Museu da Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>. Campo Gran<strong>de</strong>, 245.<br />
Tel.: 217513200. Até 13/06. 3ª a Dom. das 10h às 18h.<br />
Desenho, Escultura.<br />
Mystic Diver<br />
De Catarina Dias.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Museu da Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong> - Pavilhão Preto.<br />
Campo Gran<strong>de</strong>, 245. Tel.: 217513200. Até 13/06. 3ª a<br />
Dom. das 10h às 18h.<br />
Desenho, Performance, Objectos,<br />
Outros.<br />
O Ofício <strong>de</strong> Viver<br />
De Daniel Blaufuks.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Carlos Carvalho - Arte Contemporânea. R. Joly<br />
Braga Santos, Lote F - r/c. Tel.: 217261831. Até 15/05. 2ª<br />
a 6ª das 10h30 às 19h30. Sáb. das 12h às 19h30.<br />
Fotografia, Ví<strong>de</strong>o.<br />
Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 45
Livros<br />
Ian McEwan sabe que, por trás<br />
<strong>de</strong> cada história <strong>de</strong> sucesso,<br />
existe um tecido <strong>de</strong> mentiras,<br />
<strong>de</strong> fraquezas e <strong>de</strong> corrupção<br />
moral e material<br />
Ficção<br />
Perturbações<br />
climáticas<br />
McEwan reduz alegremente<br />
os agentes da ciência e<br />
do po<strong>de</strong>r político ao grau<br />
zero da competência e da<br />
importância. Um retrato<br />
do nosso tempo. Helena<br />
Vasconcelos<br />
Solar<br />
Ian McEwan<br />
(Trad. Ana Falcão Bastos)<br />
Ed. Gradiva<br />
mmmmm<br />
O que aconteceria se nos<br />
libertássemos da tirania do petróleo<br />
– tal como os nossos pais, no século século<br />
XX, XX X , dispensaram o carvão que<br />
alimentara al a imentara a Revolução<br />
Industrial In I dustrial – e, num gigantesco<br />
passo pa p sso civilizacional,<br />
puséssemos pu p séssemos <strong>de</strong> lado lado os<br />
co ccombustíveis mbustíveis fósseis?<br />
Vi VViveríamos veríamos num<br />
mu mmundo ndo melhor,<br />
me mmenos nos <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<br />
do ddos s interesses<br />
ec eeconómicos, onómicos, das<br />
po ppolíticas líticas e das<br />
id ii<strong>de</strong>ologias eologias se a<br />
ga ggasolina, solina, o gás<br />
na nnatural tural e o<br />
pl pplutónio utónio<br />
passassem à<br />
categoria <strong>de</strong><br />
especímenes<br />
<strong>de</strong> museu e<br />
fossem<br />
substituídas<br />
pela energia<br />
solar, bem<br />
mais barata,<br />
“<strong>de</strong>mocrática”<br />
e acessível a<br />
todos?<br />
É a partir<br />
<strong>de</strong>ste<br />
pressuposto que<br />
Ian McEwan constrói<br />
o seu último romance,<br />
centrando a acção na<br />
fi ffigura gura <strong>de</strong> Michael Beard, um<br />
notável físico, gran<strong>de</strong><br />
conhecedor das energias<br />
alternativas, <strong>de</strong>tentor <strong>de</strong> um<br />
Prémio Nobel mas que, no<br />
primeiro capítulo do livro,<br />
passado em 2000, já<br />
com com 53 anos, se<br />
encontra em<br />
<strong>de</strong>cadência,<br />
“diminuído,<br />
anedónico,<br />
monotemático,<br />
<strong>de</strong>vastado”, a<br />
braços com um<br />
casamento em<br />
colapso e um total<br />
<strong>de</strong>sinteresse pelo<br />
trabalho. Nos<br />
tempos recuados<br />
em que fora feliz... “Beard passara<br />
<strong>uma</strong> tar<strong>de</strong> a ler a história das<br />
turbinas eólicas. Nessa fase da sua<br />
vida achava que a física era<br />
relativamente simples...” (pág. 44),<br />
<strong>uma</strong> disciplina cheia <strong>de</strong> “beleza<br />
pura”, com as suas equações<br />
atractivas e compreensíveis. No<br />
entanto, essa recordação contrasta<br />
violentamente com a sua situação<br />
actual, a <strong>de</strong> um homem corrompido<br />
pelo sistema, acomodado, com<br />
vários quilos a mais e <strong>uma</strong> calvície<br />
galopante (<strong>uma</strong> espécie <strong>de</strong><br />
Tweedle<strong>de</strong>e/Tweedledum), cuja<br />
existência se resume a usufruir dos<br />
di divi<strong>de</strong>ndos da glória passada.<br />
Em plena época Blair, que<br />
en entusiasticamente tentou fazer da<br />
Gr Grã-Bretanha um país competitivo<br />
no<br />
campo científico, Beard é<br />
co convidado a dirigir um<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>partamento generosamente<br />
fin financiado, on<strong>de</strong> a criativida<strong>de</strong> é<br />
pa palavra <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m, mas que<br />
ra rapidamente se agiganta n<strong>uma</strong><br />
co complexida<strong>de</strong> esmagadora, só dá<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>spesa e se torna, para ele, um<br />
lu lugar penoso, cheio <strong>de</strong> jovens<br />
en enérgicos e cheios <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias, como é<br />
o<br />
caso do cansativo e genial Tom<br />
Al Aldous. Na realida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o Nobel<br />
qu que Beard não faz nada para além <strong>de</strong><br />
se<br />
arrastar por seminários, palestras,<br />
co conferências e entregas <strong>de</strong> prémios.<br />
Pa Para fugir à humilhação da sua<br />
sit situação matrimonial aceita um<br />
co convite para <strong>uma</strong> expedição ao<br />
Ár Árctico com um grupo <strong>de</strong> artistas,<br />
“p “para ver <strong>de</strong> perto as alterações<br />
cli climáticas”. A viagem, com todas as<br />
su suas peripécias – a mais sarcástica<br />
da das contradições é a contribuição<br />
do dos presentes para o aquecimento<br />
gl global com as suas motas <strong>de</strong> gelo e<br />
os<br />
seus abrigos hiper-aquecidos –<br />
tra transforma-se num emaranhado <strong>de</strong><br />
sit situações embaraçosas e serve para<br />
ilu ilustrar a incapacida<strong>de</strong> do ser<br />
hu h<strong>uma</strong>no para mudar <strong>de</strong> hábitos e<br />
ar arriscar, para além da referência<br />
iró irónica à tendência, muito em voga e<br />
ut utilizada pelo próprio autor, para<br />
fu fundir arte com ciência.<br />
Assim, quando Beard se <strong>de</strong>para<br />
co com <strong>uma</strong> oportunida<strong>de</strong> – que surge<br />
sin sinistra e aci<strong>de</strong>ntalmente como é<br />
pr próprio das tramas <strong>de</strong> McEwan –<br />
pa para <strong>de</strong>senvolver um projecto no<br />
ár árido e soalheiro Novo México,<br />
ag agarra-a sem entusiasmo mas com a<br />
ce certeza <strong>de</strong> que se trata da sua única<br />
hi hipótese <strong>de</strong> sobrevivência. De<br />
ci cientista a burocrata, <strong>de</strong> amante<br />
fo fogoso a marido traído, <strong>de</strong> cidadão<br />
ex exemplar a criminoso, cheio da sua<br />
pr própria importância e incapaz <strong>de</strong><br />
al alterar vícios e rotinas, representa a<br />
pe personagem típica da farsa, com a<br />
aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />
sua pose hedonista e pusilânime.<br />
“Solar” tem mais dois capítulos,<br />
um passado em 2005 e outro em<br />
2009, n<strong>uma</strong> progressão no tempo<br />
que acompanha, a nível global, a<br />
alteração <strong>de</strong> políticas e os avanços e<br />
recuos em relação ao uso e<br />
comercialização <strong>de</strong> energias<br />
alternativas e, a nível pessoal, o<br />
envelhecimento <strong>de</strong> Beard. O<br />
académico que não resiste ao plágio,<br />
o “gran<strong>de</strong>” homem que continua a<br />
perseguir mulheres, que vomita a<br />
seguir a <strong>uma</strong> conferência sobre as<br />
energias limpas, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> <strong>de</strong>vorar<br />
nove sanduíches <strong>de</strong> salmão, é o<br />
símbolo da cultura, da ciência, da<br />
abundância – <strong>de</strong> conhecimento, <strong>de</strong><br />
bens materiais, <strong>de</strong> sexo, <strong>de</strong> conforto<br />
– e da entropia inerente a <strong>uma</strong><br />
socieda<strong>de</strong> que se distancia cada vez<br />
mais da realida<strong>de</strong>.<br />
McEwan fez <strong>uma</strong> viagem ao<br />
Árctico em 2005 com um grupo <strong>de</strong><br />
artistas e cientistas e, segundo o seu<br />
testemunho, divertiu-se muito.<br />
Quando, em 2007, foi convidado a<br />
participar num seminário em<br />
Potsdam <strong>de</strong>dicado às alterações<br />
climáticas, on<strong>de</strong> se encontravam<br />
vários Prémios Nobel, a i<strong>de</strong>ia para<br />
este livro ganhou consistência. “Fui<br />
cativado pela gran<strong>de</strong>za dos<br />
“nobelizados”. Ver tantos ao mesmo<br />
tempo, todos terrivelmente<br />
inteligentes e grandiosos, lendas<br />
vivas aos seus próprios olhos, foi<br />
qualquer coisa, <strong>de</strong>clarou o autor<br />
com a sua peculiar ironia que <strong>de</strong>ve<br />
muito a Juvenal, a Montaigne e<br />
principalmente a Flaubert que<br />
<strong>de</strong>finiu bem esses homens – porque<br />
são normalmente homens –<br />
pomposos que “querem sempre<br />
chegar a conclusões <strong>de</strong>finitivas” e se<br />
esforçam por mostrar <strong>uma</strong> fachada<br />
<strong>de</strong> segurança, saber e elevação.<br />
McEwan, em “Solar”, cria um<br />
universo sem personagens<br />
simpáticas – mesmo a melíflua<br />
Melissa tem algo <strong>de</strong> repugnante – e<br />
não se coíbe <strong>de</strong> exibir os seus<br />
conhecimentos científicos, enquanto<br />
reduz alegremente os agentes da<br />
ciência e do po<strong>de</strong>r político e<br />
administrativo ao grau zero da<br />
competência e da importância.<br />
(Umberto Eco estabeleceu a<br />
diferença entre o imbecil, o cretino e<br />
o estúpido e, em “Solar” há bons<br />
exemplos das três categorias.) No<br />
entanto, Beard tem direito a um<br />
certo tipo <strong>de</strong> “re<strong>de</strong>nção”, embora<br />
esta se revele por caminhos muito<br />
ínvios e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> vários tropeços,<br />
erros e humilhações. O autor sabe<br />
que, por trás <strong>de</strong> cada história <strong>de</strong><br />
sucesso, existe um tecido <strong>de</strong><br />
mentiras, <strong>de</strong> fraquezas e <strong>de</strong><br />
corrupção moral e material, o peso<br />
das ansieda<strong>de</strong>s domésticas, o tédio,<br />
as maleitas gastrointestinais e a<br />
pressão inerente à manutenção <strong>de</strong><br />
<strong>uma</strong> <strong>de</strong>terminada imagem e <strong>de</strong> um<br />
certo estatuto. Selvagem, ultrajante,<br />
pessimista e sarcástico, McEwan<br />
dá-nos um retrato genialmente<br />
corrosivo – e realista – do nosso<br />
tempo, num romance subversivo em<br />
que a tragédia e a sátira – citando<br />
Dostoievski – “estão sempre <strong>de</strong><br />
acordo e recebem o nome <strong>de</strong><br />
verda<strong>de</strong>, quando consi<strong>de</strong>radas ao<br />
mesmo tempo.”<br />
Em busca<br />
do tempo<br />
amoroso<br />
Trabalhada ao longo <strong>de</strong> <strong>de</strong>z<br />
anos, “Cossacos” é a obraprima<br />
da juventu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lev<br />
Tolstói. Rui Catalão<br />
Cossacos – Novela do Cáucaso<br />
Lev Tolstói<br />
Relógio d’Água<br />
mmmmm<br />
O Cáucaso está para<br />
a literatura russa do<br />
séc. XIX como o<br />
western para o<br />
imaginário<br />
cinematográfico<br />
norte-americano.<br />
Com os seus<br />
tártaros,<br />
tchetchenos e kirguizes-kaissakes no<br />
lugar <strong>de</strong> apaches e sioux, ali se trava<br />
o eterno conflito h<strong>uma</strong>no entre os<br />
imperativos da natureza e os da<br />
civilização; entre a intuição e a<br />
razão; entre a verda<strong>de</strong> (digamos<br />
assim) das emoções e a consciência<br />
das suas implicações; entre encarnar<br />
a vida como ela é e lutar por outra<br />
dimensão que permita sobreviver ao<br />
sem-sentido da morte.<br />
Trabalhada ao longo <strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos<br />
(1852-62), “Cossacos” é a obra-prima<br />
da juventu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lev Tolstói. Tinha<br />
34 anos quando a terminou. O título o<br />
<strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong>sta “novela do<br />
Cáucaso” foi durante vários anos “O O<br />
fugitivo”. Da mesma maneira que o<br />
discurso contemporâneo vive<br />
obcecado com a relação entre o realalficcionado e a ficção-baseada-emfactos-reais,<br />
Tolstói (tal como Eça <strong>de</strong><br />
Queiroz) operava no dilema<br />
romantismo-realismo. A<br />
transferência do protagonismo <strong>de</strong><br />
Olénin, a sua “romântica”<br />
personagem, para o povo que haverá rá<br />
<strong>de</strong> conhecer durante a sua aventura a<br />
caucasiana, opera <strong>uma</strong> espantosa<br />
transição entre géneros literários.<br />
Olénin é um jovem militar <strong>de</strong><br />
origem fidalga “que já <strong>de</strong>sbaratara<br />
meta<strong>de</strong> da sua fortuna e que, aos<br />
vinte e quatro anos, ainda não tinha a<br />
escolhido qualquer carreira”. O seu u<br />
objectivo maior é <strong>de</strong>scobrir o amor, ,<br />
que <strong>de</strong>sconhece, à excepção do<br />
“amor por si próprio, um amor<br />
ardoroso, cheio <strong>de</strong> esperanças, um<br />
amor jovem por tudo o que era<br />
bom na sua alma (nesse momento,<br />
parecia-lhe que tudo nele era
om), que o fazia chorar e<br />
murmurar palavras <strong>de</strong>sconexas.”<br />
Olénin troca a boémia moscovita<br />
por <strong>uma</strong> comissão no Cáucaso, para<br />
on<strong>de</strong> vai em busca do mito <strong>de</strong> si<br />
mesmo. A pergunta “que importa<br />
que apenas cresçam as ervas?”<br />
ensombra-o. Apenas reconhece<br />
dignida<strong>de</strong> e beleza em coisas<br />
con<strong>de</strong>nadas à extinção. Ele intui que<br />
a vida é um escorredouro em<br />
direcção ao <strong>de</strong>saparecimento e<br />
esquecimento.<br />
Tolstói transforma a sensibilida<strong>de</strong><br />
introspectiva da sua personagem<br />
num instrumento <strong>de</strong> observação<br />
daquilo que preten<strong>de</strong> possuir.<br />
Olénin mo<strong>de</strong>la o seu carácter<br />
comparando os moscovitas e o seu<br />
modo <strong>de</strong> vida, que <strong>de</strong>spreza, com a<br />
ru<strong>de</strong>za dos cossacos. À medida que<br />
cresce a sua admiração pela<br />
paisagem e seus habitantes, a<br />
personagem <strong>de</strong> Olénin transita para<br />
<strong>uma</strong> consciência observadora que se<br />
torna a narração do livro e<br />
finalmente a sua voz.<br />
Através <strong>de</strong> Olénin, Tolstói esculpese<br />
a si mesmo enquanto dimensão<br />
estética. O jovem militar em<br />
campanha no Cáucaso transformase,<br />
durante o processo <strong>de</strong> trabalho<br />
em “Cossacos”, num gran<strong>de</strong> artista.<br />
A ficção <strong>de</strong>screve as mesmas<br />
impressões e intuições que<br />
confusamente o levaram a escrever:<br />
“Olénin, porém, tinha <strong>uma</strong><br />
consciência <strong>de</strong>masiado forte <strong>de</strong> que<br />
trazia em si esse todo po<strong>de</strong>roso <strong>de</strong>us<br />
da juventu<strong>de</strong>, essa capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se<br />
impregnar <strong>de</strong> um só <strong>de</strong>sejo, <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />
só i<strong>de</strong>ia, essa faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejar e<br />
cumprir, <strong>de</strong> se atirar <strong>de</strong> cabeça para<br />
um abismo sem fundo, sem saber<br />
para quê, em prol <strong>de</strong> quê.”<br />
Tolstói pega nos temas caros ao<br />
“bildungsroman”, ao romance <strong>de</strong><br />
formação, e <strong>de</strong>senvolve com eles<br />
<strong>uma</strong> estética, com técnicas e<br />
processos narrativos próprios: a<br />
passagem da juventu<strong>de</strong><br />
para a ida<strong>de</strong> adulta, o<br />
choque entre o mundo<br />
(interior) dos<br />
conceitos e o<br />
estado (exterior)<br />
das coisas, é<br />
traduzido num<br />
fluxo <strong>de</strong> transições<br />
que imprimem <strong>uma</strong><br />
sensação<br />
constante<br />
“Cossacos” é a obra-prima<br />
da juventu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lev Tolstói<br />
<strong>de</strong> movimento.<br />
“Cossacos” não se fixa em<br />
personagens, lugares,<br />
acontecimentos ou i<strong>de</strong>ias, roda à sua<br />
volta num bailado. Cada cena<br />
suspen<strong>de</strong>-se para dar lugar à<br />
próxima, sem <strong>de</strong>ixar <strong>uma</strong> impressão<br />
<strong>de</strong> corte ou salto. O autor insiste em<br />
<strong>de</strong>screver cenas ao crepúsculo ou<br />
antes da aurora: quando os<br />
camponeses regressam do campo ou<br />
os soldados abandonam a al<strong>de</strong>ia;<br />
quando o trabalho é trocado pelo<br />
convívio; quando o <strong>de</strong>spertar dá<br />
lugar à partida; quando um tiro no<br />
escuro antece<strong>de</strong> a revelação do<br />
cadáver. Poética e estrutura<br />
correspon<strong>de</strong>m-se: as transições em<br />
Tolstói são <strong>uma</strong> arte <strong>de</strong> apagar<br />
contrastes e contornos. As fronteiras<br />
são ilusórias, o eu e o outro fun<strong>de</strong>mse,<br />
está-se entre algo e alg<strong>uma</strong> coisa.<br />
O próprio enfoque amoroso<br />
transita <strong>de</strong> acordo com a disposição<br />
espacial das personagens<br />
envolvidas: a união <strong>de</strong> Mariana com<br />
Lukachka começa por ser <strong>uma</strong><br />
conversa entre as suas mães (n<strong>uma</strong><br />
<strong>de</strong>sopilante cena nocturna em que<br />
as mulheres correm <strong>de</strong> porta em<br />
porta com mechas em chamas – ou,<br />
para usar a tradução proposta, com<br />
“trapos ar<strong>de</strong>ntes”); torna-se n<strong>uma</strong><br />
indiscrição <strong>de</strong> um companheiro <strong>de</strong><br />
Lukachka, a quem revela que a sua<br />
amante dorme com outro,<br />
aconselhando-o a pedir namoro a<br />
Mariana (Lukachka, assobiando,<br />
“tirou a faca e cortou <strong>uma</strong> jovem<br />
árvore lisa. – Vai ser <strong>uma</strong> rica vareta<br />
– disse fustigando o ar com a vara”);<br />
e vira triângulo amoroso n<strong>uma</strong> cena<br />
nocturna em que Lukachka e<br />
Mariana (“batendo com a vergasta”)<br />
se beijam pela primeira vez, com<br />
Olénin, que arrendou a casa aos pais<br />
<strong>de</strong> Mariana, a escutá-los no quintal.<br />
A vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> amar leva Olénin à<br />
caça! Primeiro na companhia do<br />
velho asselvajado Erochka (a<br />
composição <strong>de</strong>sta personagem é<br />
<strong>uma</strong> obra-prima <strong>de</strong>ntro da obraprima<br />
que é o livro: quanto mais ele<br />
se diverte e embebeda, mais nos<br />
apercebemos do efeito <strong>de</strong>vastador<br />
que a perda da juventu<strong>de</strong> exerceu<br />
nele), com quem <strong>de</strong>scobre a cama<br />
<strong>de</strong> um veado a que escuta a fuga,<br />
sem po<strong>de</strong>r vê-lo! Depois na cena<br />
solitária <strong>de</strong> caça em que se apercebe<br />
que os mosquitos não o<br />
importunam! Dedica-se então ao<br />
jovem cossaco Lukachka e oferecelhe<br />
um cavalo! E quando fala do seu<br />
<strong>de</strong>sinteresse por mulheres a um<br />
amigo vindo <strong>de</strong> Moscovo, não se<br />
apercebe que pela primeira vez ama,<br />
castamente! A atracção por Mariana,<br />
por sua vez, verte num platónico<br />
amor paisagístico: “Todos os dias<br />
estão à minha frente os longínquos<br />
montes nevados e esta mulher<br />
majestosa e feliz.”<br />
Quando a história se fixa na<br />
disputa <strong>de</strong> Olénin e Lukachka por<br />
Mariana, passado e futuro são<br />
varridos do livro. Até final paira um<br />
tempo presente absoluto, em que<br />
Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 47
Livros<br />
Tolstói tacteia a textura da<br />
felicida<strong>de</strong> amorosa: as palavras ditas<br />
entre amantes <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> dizer o que<br />
querem, as confissões soam cómicas<br />
(“Porque não havia <strong>de</strong> gostar, não és<br />
zarolho!”), prazer e dor copulam:<br />
“Sentia dor porque ela continuava<br />
calma como sempre a falar com ele.<br />
Parecia que a nova situação não a<br />
emocionava minimamente. Dava a<br />
sensação <strong>de</strong> que não acreditava nele<br />
e não pensava no futuro. Parecia-lhe<br />
que ela o amava apenas no momento<br />
corrente, que para ela não havia um<br />
futuro com ele.”<br />
Quando Olénin se apercebe da<br />
felicida<strong>de</strong>, já aconteceu;<br />
opostamente, no início do livro<br />
estava ainda por acontecer. Entre<br />
esses dois tempos, acontece o<br />
movimento da solidão: “Fomos<br />
companheiros, estivemos um ano<br />
inteiro juntos, e agora levanta-se e<br />
vai-se embora. Gosto <strong>de</strong> ti, tenho<br />
pena <strong>de</strong> ti! És um <strong>de</strong>sgraçado,<br />
sempre sozinho. Mal-amado, é isso<br />
que tu és! Às vezes não durmo a<br />
pensar em ti”, diz-lhe o velho<br />
Erochka na hora da <strong>de</strong>spedida: “É<br />
difícil meu irmão, Viver n<strong>uma</strong> terra<br />
alheia! Assim és tu.” O amor é a<br />
construção da felicida<strong>de</strong> e a<br />
felicida<strong>de</strong> está no presente. O tempo<br />
amoroso, ou a permanência no<br />
presente, está-lhe vedado: “Olénin<br />
olhou para trás. O tio Erochka estava<br />
a falar com Marianka, pelos vistos<br />
sobre os seus próprios assuntos, e<br />
nem o velho nem a rapariga olhavam<br />
para ele.”<br />
Nota final para o casal <strong>de</strong><br />
tradutores Nina e Filipe Guerra: a<br />
sua fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> à literatura russa fálos<br />
às vezes serem licenciosos com a<br />
língua portuguesa, como o verbo<br />
“pan<strong>de</strong>gar” ou os adjectivos a<br />
saltitarem do seu lugar<br />
(“esfarrapadas mulheres nogai”;<br />
“todo po<strong>de</strong>roso <strong>de</strong>us”). Traduzir 150<br />
páginas <strong>de</strong> beleza imaculada <strong>de</strong>ve<br />
tentá-los a semelhantes pecados.<br />
A vida <strong>de</strong><br />
Elvira<br />
A <strong>Lisboa</strong> da Regeneração,<br />
ficcionada em narrativa<br />
clássica, com discurso<br />
a<strong>de</strong>quado ao tempo e às<br />
personagens. Eduardo Pitta<br />
Os Dias da Febre<br />
João Pedro Marques<br />
Porto Editora<br />
mmmmn<br />
Num país com elevados índices <strong>de</strong><br />
iliteracia, como é o nosso, não<br />
admira que a literatura seja<br />
sacralizada. Não viria daí gran<strong>de</strong> mal<br />
não fosse a persistência <strong>de</strong><br />
equívocos e preconceitos nocivos.<br />
Um <strong>de</strong>les respeita ao romance<br />
48 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />
Com “Os Dias da Febre”, João Pedro Marques, um especialista<br />
em História <strong>de</strong> África, arrisca a literatura <strong>de</strong> fi cção<br />
histórico. As pessoas<br />
do “Meio” falam do<br />
romance histórico<br />
como quem fala <strong>de</strong><br />
peúgas sujas. Se o<br />
autor acumular com<br />
a activida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
historiador, a<br />
heresia é completa.<br />
Veja-se como continua a ser referido<br />
“Glória” (2001), <strong>de</strong> Vasco Pulido<br />
Valente. Isso traduz <strong>uma</strong> sólida<br />
ignorância do que se passa no vasto<br />
mundo. Contudo, a levianda<strong>de</strong> não<br />
inibirá ninguém <strong>de</strong> tecer loas a “Wolf<br />
Hall”, o romance <strong>de</strong> Hilary Mantel<br />
sobre a vida <strong>de</strong> Thomas Cromwell,<br />
que recebeu o Man Booker Prize <strong>de</strong><br />
2009. E quem diz este diz outros.<br />
Vem isto a propósito do romance<br />
<strong>de</strong> estreia <strong>de</strong> João Pedro Marques (n.<br />
1949), investigador do Instituto <strong>de</strong><br />
Investigação Científica Tropical,<br />
docente e especialista em História<br />
<strong>de</strong> África, com obra publicada nessa<br />
área. A título <strong>de</strong> exemplo, “Os Sons<br />
do Silêncio” (1999), sobre a abolição<br />
do tráfico <strong>de</strong> escravos, livro que<br />
entrou em 2006 para o catálogo da<br />
Berghahn Books <strong>de</strong> Nova Iorque e<br />
Oxford: “The Sounds of Silence.<br />
Nineteenth-century Portugal and the<br />
Abolition of the Slave Tra<strong>de</strong>”.<br />
Com “Os Dias da Febre”, João<br />
Pedro Marques arrisca a literatura<br />
<strong>de</strong> ficção. Trata-se <strong>de</strong> um romance<br />
com acção localizada na <strong>Lisboa</strong> dos<br />
anos da Regeneração (1851-68),<br />
época em que estavam por extinguir<br />
os miasmas da epi<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> febre<br />
amarela que tivera o seu apogeu<br />
durante a Guerra Peninsular. O<br />
Fontismo trouxera progresso, mas<br />
<strong>Lisboa</strong> era ainda <strong>uma</strong> enxovia.<br />
Descendo a Calçada <strong>de</strong> Santana,<br />
no trajecto <strong>de</strong> casa para o teatro,<br />
Elvira e Carlos atravessam um<br />
território <strong>de</strong> <strong>de</strong>sapossados: “O<br />
contacto com o mundo sórdido dos<br />
<strong>de</strong>sfavorecidos era, ali, inevitável e<br />
<strong>de</strong>sconfortavelmente próximo,<br />
apesar <strong>de</strong> as cortinas da carruagem<br />
irem corridas. Os zarolhos, os<br />
amputados, as bocas sem <strong>de</strong>ntes, os<br />
cabelos sem pentes, as caras<br />
engelhadas <strong>de</strong> rugas ou sulcadas por<br />
cicatrizes, <strong>de</strong>sfilavam a dois <strong>de</strong>dos<br />
da sua janela...” O casal cumpre as<br />
obrigações sociais à revelia <strong>de</strong> vida<br />
conjugal. Nascido quando Massena<br />
acampava nas Linhas <strong>de</strong> Torres,<br />
estudante <strong>de</strong> leis em Coimbra,<br />
Cavaleiro da Casa Real, antigo<br />
Governador Civil <strong>de</strong> Santarém e<br />
Leiria, membro da Câmara dos<br />
Deputados <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1848, Carlos Cabral<br />
fez <strong>de</strong> Elvira Sabrosa, filha <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />
antiga amante, mais do que sua<br />
mulher, um símbolo <strong>de</strong> afirmação.<br />
É impressivo o modo como o<br />
autor ilumina os costumes da<br />
socieda<strong>de</strong> lisboeta <strong>de</strong> então: o<br />
mo<strong>de</strong>rado arrivismo <strong>de</strong> Carlos<br />
Cabral, que foi capaz <strong>de</strong> equilibrarse<br />
nos avanços e recuos da causa<br />
liberal; a cultura <strong>de</strong> usura que fazia<br />
as gran<strong>de</strong>s fortunas; os africanistas;<br />
os “brasileiros”; o tráfico <strong>de</strong><br />
escravos; a importância <strong>de</strong> Jane<br />
Austen na educação das “meninas”;<br />
o sobressalto da febre amarela, que<br />
levou à criação <strong>de</strong> hospitais<br />
especiais; os crimes <strong>de</strong> honra; os<br />
salões da boa socieda<strong>de</strong>; a vida<br />
política no tempo <strong>de</strong> Rodrigo da<br />
Fonseca; as “cocottes” com casa<br />
posta, etc. Sobre tudo isto, João<br />
Pedro Marques discorre com<br />
apreciável <strong>de</strong>senvoltura, isentandose<br />
<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rações i<strong>de</strong>ológicas ou<br />
juízos <strong>de</strong> valor.<br />
Mais que o discreto “ménage à<br />
trois” que Elvira e Robert Huntley<br />
autorizam, “Os Dias da Febre” (e<br />
febre, aqui, releva menos da<br />
infecção viral que da pulsão dos<br />
humores) ilustram outro jogo a três:<br />
o <strong>de</strong> Carlos dormindo com Branca<br />
Lobo <strong>de</strong> Sabrosa, <strong>de</strong> olho posto na<br />
filha (Elvira) pré-adolescente.<br />
O discurso nunca é “forçado”,<br />
surgindo a<strong>de</strong>quado ao tempo e às<br />
personagens, sem malabarismo<br />
sintático. Com epicentro no Campo<br />
<strong>de</strong> Santana, a história reparte-se por<br />
capítulos com enfoque nos<br />
principais protagonistas (Carlos,<br />
Elvira, Pedro, Robert Huntley) e em<br />
acontecimentos concretos (a citada<br />
epi<strong>de</strong>mia, o roubo das jóias, o duelo<br />
fatal, o assassinato <strong>de</strong> Carlos). O<br />
recurso ao “flashback” estabelece o<br />
fio condutor da ca<strong>de</strong>ia mnemónica.<br />
A narrativa segue o padrão clássico,<br />
expondo com clareza as várias fases<br />
da intriga. A <strong>de</strong>scrição das<br />
“inibições” sexuais <strong>de</strong> Carlos,<br />
homem que tira prazer da violência<br />
exercida contra mulheres <strong>de</strong><br />
condição social inferior, é feita sem<br />
qualquer espécie <strong>de</strong> psicologismo.<br />
João Pedro Marques atém-se aos<br />
factos, que narra com a naturalida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> um coevo. Breves notas <strong>de</strong><br />
rodapé situam o tempo histórico da<br />
vida <strong>de</strong> Carlos e Elvira.<br />
Em s<strong>uma</strong>, <strong>uma</strong> estreia auspiciosa.<br />
Ensaio<br />
A pedalar<br />
com David<br />
Byrne<br />
Visões impressionistas <strong>de</strong><br />
Byrne, <strong>de</strong>ambulando pelas<br />
cida<strong>de</strong>s. Vítor Belanciano<br />
David Byrne<br />
Diários <strong>de</strong> Bicicleta<br />
Ed. Quetzal<br />
mmmmn<br />
Espaço<br />
Público<br />
Não ponham <strong>de</strong> lado as bicicletas,<br />
mas este não é um livro sobre<br />
ciclismo. As bicicletas são apenas o<br />
ponto <strong>de</strong> partida. O pretexto. A<br />
tentativa <strong>de</strong> atribuir unida<strong>de</strong> às<br />
visões impressionistas <strong>de</strong> Byrne,<br />
<strong>de</strong>ambulando pelas cida<strong>de</strong>s (Berlim,<br />
aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />
Este espaço vai ser<br />
seu. Que fi lme, peça <strong>de</strong><br />
teatro, livro, exposição,<br />
disco, álbum, canção,<br />
concerto, DVD viu e<br />
gostou tanto que lhe<br />
apeteceu escrever<br />
Istambul, Buenos<br />
Aires, Manila,<br />
Sidney ou Londres),<br />
observando o que<br />
faz <strong>de</strong>las locais<br />
on<strong>de</strong> apetece estar<br />
ou <strong>de</strong> on<strong>de</strong> apetece<br />
fugir e não voltar.<br />
A bicicleta aqui é<br />
instrumento <strong>de</strong> comodida<strong>de</strong>, janela<br />
que o conecta com a vida das ruas<br />
– mais rápida do que andar a pé,<br />
mais lenta do que o comboio, maior<br />
do que <strong>uma</strong> pessoa –, mas também<br />
agente <strong>de</strong> motivação política,<br />
assumindo-se como um dos<br />
elementos alternativos a um mo<strong>de</strong>lo<br />
<strong>de</strong> metrópole, à beira da ruptura,<br />
que continua a pensar o<br />
planeamento urbano para a<br />
circulação automóvel, como se as<br />
cida<strong>de</strong>s não estivessem asfixiadas<br />
<strong>de</strong>les e os combustíveis fósseis à<br />
beira do esgotamento, pelo menos à<br />
escala, ritmo e maneira como são<br />
consumidos hoje.<br />
Urbanismo, arquitectura, arte,<br />
música, viagens, política, moda,<br />
alimentação ou religião são temas<br />
recorrentes, abordados como notas<br />
<strong>de</strong> um diário on<strong>de</strong> não tenta impor<br />
juízos <strong>de</strong>terministas, apenas reflectir<br />
e interrogar, <strong>de</strong> forma h<strong>uma</strong>nista,<br />
curiosa e com humor, alg<strong>uma</strong>s das<br />
questões que cruzam a existência<br />
das socieda<strong>de</strong>s contemporâneas.<br />
Em Istambul, São Francisco,<br />
Londres ou Buenos Aires foca-se<br />
mais nos encontros com músicos ou<br />
artistas que vai <strong>de</strong>scobrindo. Em<br />
cida<strong>de</strong>s como Detroit ou Pittsburgh<br />
reflecte sobre a sua história e a<br />
paisagem urbana, normalmente<br />
<strong>de</strong>soladoras. As cida<strong>de</strong>s que<br />
parecem fascinar Byrne são <strong>de</strong>nsas e<br />
compactas nos centros históricos,<br />
possuem <strong>uma</strong> escala h<strong>uma</strong>na <strong>de</strong><br />
construção, são vibrantes<br />
culturalmente e excelentes para<br />
andar <strong>de</strong> bicicleta. Nem sempre é<br />
fácil acompanhar a pedalada <strong>de</strong><br />
Byrne, <strong>de</strong>ambulando <strong>de</strong> tema em<br />
tema, mas é quase sempre<br />
estimulante.<br />
sobre ele, concordando<br />
ou não concordando<br />
com o que escrevemos?<br />
Envie-nos <strong>uma</strong> nota até<br />
500 caracteres para<br />
ipsilon@publico.pt. E<br />
nós <strong>de</strong>pois publicamos.<br />
Biografia<br />
Vitórias e<br />
<strong>de</strong>rrotas <strong>de</strong><br />
um Príncipe<br />
da Igreja<br />
Um Car<strong>de</strong>al Cerejeira<br />
mais complexo do que a<br />
caricatura que fazem <strong>de</strong>le.<br />
José Manuel Fernan<strong>de</strong>s<br />
Car<strong>de</strong>al Cerejeira – O Príncipe da<br />
Igreja<br />
Irene Flunser Pimentel<br />
A Esfera dos Livros<br />
mmmnn<br />
A historiadora<br />
começa por avisar<br />
que esta é <strong>uma</strong><br />
biografia política, e<br />
faz bem. Quer pela<br />
rarida<strong>de</strong> das fontes<br />
documentais, quer<br />
pela discrição dos<br />
que, ainda vivos, o<br />
conheceram melhor, seria sempre<br />
arriscada outra opção. Até porque<br />
esta já é suficientemente rica ao<br />
revelar-nos um Car<strong>de</strong>al Cerejeira<br />
muito mais complexo do que o<br />
retrato caricatural que muitos ainda<br />
fazem <strong>de</strong>le. A própria Irene Flunser<br />
Pimentel escreve que, quando<br />
começou a estudar a vida da mais<br />
importante figura da Igreja<br />
Portuguesa no século XX – para<br />
escrever o texto da fotobiografia,<br />
organizada por Joaquim Vieira, <strong>de</strong><br />
Manuel Gonçalves Cerejeira e que foi<br />
editada pelo Círculo <strong>de</strong> Leitores em<br />
2002 –, a sua visão estava “marcada<br />
pelo enviesamento, através <strong>de</strong><br />
lugares-comuns e mitos”.<br />
Agora, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> o estudar, e <strong>de</strong><br />
naturalmente “ganhar empatia” com<br />
a personagem cuja via foi<br />
percorrendo, a autora<br />
revela-nos<br />
alguém com maior <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> <strong>de</strong>n<br />
h<strong>uma</strong>na e, sobretudo,<br />
com<br />
“contradições, complexida<strong>de</strong> comple e<br />
riqueza”.<br />
Esta biografia, que ssegue<br />
um<br />
plano plano quase estritamente<br />
estritamen<br />
cronológico, acompanha acompan a vida do<br />
menino que nasceu a 229<br />
<strong>de</strong><br />
Novembro <strong>de</strong> 1988 em Santa<br />
Martinha do Lousado,<br />
Famalicão, e<br />
morreu morreu com 88 anos, a 1 <strong>de</strong> Agosto<br />
<strong>de</strong> 1977, na Casa <strong>de</strong> Ret Retiros Bom<br />
Pastor, na Buraca, em L<strong>Lisboa</strong>.<br />
Entre<br />
1929, 1929, , quando qu q ando se tornou<br />
Car<strong>de</strong>al<br />
Pa Patr Patriarca tr tria ia i rca <strong>de</strong> Lisbo <strong>Lisboa</strong> com 41<br />
anos anos, os o , e 1971, ano an em que<br />
resi resignou, si sign gn g ou, foi a figura<br />
domi dominante mi m nante da Igreja<br />
estimulante. naturalmente ganhar<br />
Port Portuguesa rt r ug u ues e o<br />
Nem sempre é fácil acompanhar prin principal in i ci c pa responsável<br />
a pedalada <strong>de</strong> Byrne, <strong>de</strong>ambulando quer quer e pela pe sua<br />
<strong>de</strong> tema em tema, mas é estimulante prof profunda o un
Isabel<br />
Coutinho<br />
Ciberescritas<br />
APipi das Meias Altas tinha nove anos e vivia<br />
sozinha n<strong>uma</strong> casa com jardim que se<br />
chamava Villa Villekulla. Não tinha mãe nem<br />
pai e por isso podia fi car <strong>de</strong> pé até tar<strong>de</strong><br />
porque ninguém a obrigava a ir para a cama.<br />
E ninguém a obrigava a tomar óleo <strong>de</strong> fígado <strong>de</strong> bacalhau<br />
quando o que ela queria era comer caramelos. Claro que,<br />
no passado, a Pipi das Meias Altas tivera um pai e <strong>uma</strong><br />
mãe. A mãe morreu e o pai, um capitão do mar,<br />
<strong>de</strong>sapareceu num dia <strong>de</strong> tempesta<strong>de</strong>. Mas a fi lha<br />
acreditava que o pai pirata iria voltar. Até lá tinha a<br />
companhia <strong>de</strong> um macaquinho, que andava sempre no<br />
seu ombro, o senhor Nilsson, e <strong>de</strong> um cavalo. Além dos<br />
dois amigos, Tommy e Annika.<br />
Esta menina <strong>de</strong> cabelos ruivos, duas tranças espetadas<br />
e <strong>uma</strong> meia <strong>de</strong> cada cor, era <strong>uma</strong> rapariga in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<br />
que sabia usar pistolas, fazer panquecas, tinha o seu<br />
fundo <strong>de</strong> maneio e era forte. Nasceu na cabeça da<br />
escritora sueca mais popular <strong>de</strong> literatura infantil,<br />
Astrid Lindgren, e encorajou gerações <strong>de</strong> raparigas a<br />
divertirem-se e a acreditarem em si próprias.<br />
Astrid Lindgren já tinha mais <strong>de</strong> trinta anos quando<br />
escreveu o primeiro manuscrito sobre esta rapariga<br />
fora do vulgar. Tinha 38 anos quando viu o primeiro<br />
livro ser publicado, em 1945. Ao que se sabe foi a fi lha<br />
Karin que lhe serviu <strong>de</strong> inspiração para Pipi das Meias<br />
Altas. Karin fi cou doente com pneumonia e a mãe<br />
contava-lhe histórias. Uma noite, em 1941, Karin pediu<br />
<strong>uma</strong> história sobre a Pipi. Como a personagem tinha um<br />
nome estranho, a história também <strong>de</strong>via ser amalucada<br />
e Lindgren inventou <strong>uma</strong> rapariga que <strong>de</strong>safi ava as<br />
convenções. É isto que conta a sua biógrafa Eva-Maria<br />
Metcalf.<br />
Naquela época a escritora estava interessada nas<br />
discussões sobre a psicologia e a educação das crianças.<br />
Isso levou-a a criar <strong>uma</strong><br />
A Pipi das Meias Altas<br />
mudou a vida <strong>de</strong><br />
muitas raparigas.<br />
Também a minha.<br />
Decidi que quando<br />
fosse gran<strong>de</strong> queria ser<br />
pirata<br />
Astrid Lindgren<br />
http:<br />
/www.astridlindgren.se/en<br />
http:<br />
/www.swe<strong>de</strong>n.<br />
se/eng/Home/<br />
Lifestyle/Culture/<br />
Literature/Astridlindgren/<br />
Sauda<strong>de</strong>s da Pipi<br />
forma <strong>de</strong> contar as histórias<br />
diferente: tinha em conta o<br />
ponto <strong>de</strong> vista da criança.<br />
Metcalf conta que Karin,<br />
a fi lha <strong>de</strong> Astrid, gostou<br />
tanto que pedia à mãe que<br />
lhe contasse cada vez mais<br />
histórias da Pipi e ela passou<br />
a ser a heroína do que se<br />
contavam à noite lá em<br />
casa. Até que um dia, Astrid<br />
escorregou no gelo, magoouse<br />
na anca e teve que fi car<br />
na cama. A fi lha fazia <strong>de</strong>z<br />
anos e ela teve a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> passar ao papel as histórias da<br />
Pipi. Fez um livro, caseiro, para oferecer à fi lha. Conta<br />
Eva-Maria Metcalf na biografi a sobre a escritora ritora que <strong>uma</strong><br />
análise <strong>de</strong>ste manuscrito mostrou que a primeira imeira versão<br />
da Pipi, com <strong>de</strong>senhos feitos pela autora, respeitava espeitava<br />
ainda menos os adultos e as fi guras <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> orida<strong>de</strong> do que<br />
a versão publicada quatro anos <strong>de</strong>pois. A publicação não<br />
foi fácil, <strong>uma</strong> editora recusou mesmo publicá-lo. icá-lo. A crítica<br />
dividiu-se: para uns era <strong>uma</strong> coisa revolucionária, ionária, para<br />
outros medíocre. O “site” ofi cial da escritora ra tem <strong>uma</strong><br />
cronologia, muitas fotografi as, capas dos livros vros e <strong>uma</strong><br />
biografi a.<br />
Para alguns a Pipi das Meias Altas teve tanta anta infl uência<br />
como “O Segundo Sexo”, <strong>de</strong> Simone <strong>de</strong> Beauvoir. auvoir. Mudou<br />
a vida <strong>de</strong> muitas raparigas. Também mudou u a minha.<br />
Decidi que quando fosse gran<strong>de</strong> queria ser r pirata.<br />
isabel.coutinho@publico.pt<br />
(Ciberescritas já é um blogue http://blogs.<br />
publico.pt/ciberescritas)<br />
transformação, quer pela sua<br />
relação íntima, mas nem sempre<br />
pacífica, com o regime saído do<br />
golpe <strong>de</strong> Estado <strong>de</strong> 28 <strong>de</strong> Maio <strong>de</strong><br />
1926.<br />
O mais interessante nesta obra é<br />
ela precisamente permitir-nos<br />
perceber como existem muitos e<br />
diferentes graus <strong>de</strong> cinzento nessa<br />
relação entre o Estado e a Igreja e,<br />
<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>la, na relação entre dois<br />
homens que se conheceram em<br />
Coimbra, aí se tornaram amigos e,<br />
vindos para <strong>Lisboa</strong>, tomaram em<br />
mãos os <strong>de</strong>stinos do <strong>de</strong>sse Estado e<br />
<strong>de</strong>ssa Igreja: Salazar e Cerejeira [ver<br />
texto nesta edição]. Para o fazer<br />
Irene Pimentel não se limita a<br />
<strong>de</strong>screver os passos da vida pública<br />
e religiosa do Car<strong>de</strong>al, antes os<br />
enquadra quer na evolução da<br />
política portuguesa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os anos<br />
conturbados da I República,<br />
<strong>de</strong>cisivos para a formação i<strong>de</strong>ológica<br />
<strong>de</strong> Cerejeira, até quase ao final do<br />
Estado Novo, quando o bispo <strong>de</strong><br />
<strong>Lisboa</strong> passa a ter <strong>de</strong> lidar com o<br />
sucessor <strong>de</strong> Salazar, quer na<br />
evolução da própria Igreja. O que<br />
também ajuda a perceber a<br />
complexida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>uma</strong> personagem<br />
que, como lí<strong>de</strong>r da Igreja, teve <strong>de</strong><br />
lidar com um Salazar cuja ascensão<br />
ao po<strong>de</strong>r também não foi tão linear e<br />
fácil como a mitologia a retrata, e<br />
com <strong>uma</strong> Igreja portuguesa que lhe<br />
foi, progressivamente, escapando ao<br />
controlo.<br />
Depois <strong>de</strong> ler esta biografia não é<br />
possível continuar a reduzir a figura<br />
do Car<strong>de</strong>al Cerejeira à caricatura do<br />
religioso antiquado que se limitou a<br />
colocar a Igreja Portuguesa ao<br />
serviço do seu amigo Salazar. Mas<br />
também ainda não é nela que se<br />
esclarecem alguns <strong>de</strong>talhes da<br />
relação entre Estado português, a<br />
Igreja em Portugal e o Vaticano, até<br />
porque parte dos arquivos ainda<br />
estão fechados. Para que a figura do<br />
menino do Minho que chega a<br />
doutor <strong>de</strong> Coimbra e, <strong>de</strong>pois, a<br />
Príncipe da Igreja, ficasse mais<br />
<strong>de</strong>nso e rico faltam também<br />
episódios que, sem entrar na vida<br />
privada, ajudassem a colorir um<br />
pouco mais a sua imagem e nos<br />
ajudassem a perceber melhor como<br />
era, h<strong>uma</strong>namente,<br />
Cerejeira.<br />
Uma nota<br />
final para<br />
o registo registo<br />
o que Gastão Cruz também interroga<br />
é a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> a poesia ser forma<br />
<strong>de</strong> vida, <strong>uma</strong> vida com <strong>uma</strong> forma<br />
e a fluência<br />
da escrita,<br />
que não<br />
prejudicando<br />
a leitura<br />
também não<br />
alcançam o registo<br />
envolvente que<br />
encontramos, por exemplo, nos<br />
historiadores ingleses que escrevem<br />
para o gran<strong>de</strong> público. E este “Car<strong>de</strong>al<br />
Cerejeira – O Príncipe da Igreja” e <strong>uma</strong><br />
obra que, sem falhas académicas,<br />
procura sem complexos chegar ao<br />
gran<strong>de</strong> público. O que se saúda.<br />
Poesia<br />
Forma <strong>de</strong><br />
vida<br />
A poesia como vida ou<br />
recuperação da vida que nos<br />
foge. Pedro Mexia<br />
Escarpas<br />
Gastão Cruz<br />
Assírio & Alvim<br />
mmmmn<br />
Hematoma,<br />
escassez, crateras,<br />
agora escarpas, os<br />
títulos <strong>de</strong> Gastão<br />
Cruz são muitas<br />
vezes violentos ou<br />
inóspitos, tal como<br />
a sua poética, que<br />
nunca se quis<br />
agradável. “Escarpas” é a<br />
continuação natural <strong>de</strong> “A Moeda do<br />
Tempo” (2006), que tratava das<br />
repercussões da passagem dos anos.<br />
Enquanto a colectânea anterior<br />
tinha um acentuado cunho familiar,<br />
aqui a chave é amorosa, ou então<br />
abstractizante.<br />
No que ao corpo diz respeito,<br />
temos apenas datas soltas (“1973”),<br />
lugares nomeados (“junto ao<br />
Harrods”) e um perpétuo e fugaz<br />
Agosto. O poeta retoma as<br />
esplêndidas elegias vitais do italiano<br />
Sandro Penna, recordando recordan uns<br />
rapazes em velozes bicicletas b que<br />
eram “o <strong>de</strong>senho ddo<br />
<strong>de</strong>sejo”.<br />
Os poemas <strong>de</strong> “Escarpas” “E são<br />
sobre pessoas reais r ou<br />
imaginárias, ou já<br />
imaginadas imaginad <strong>de</strong> tanto<br />
tempo que passou.<br />
A cada momento o<br />
sujeito sujeito poético<br />
regressa, regress o livro é<br />
feito <strong>de</strong><br />
regressos,<br />
mas o que q é que<br />
encontra encontra, se é que<br />
encontra al alg<strong>uma</strong> coisa?<br />
A i<strong>de</strong>ia das ppessoas<br />
entretanto<br />
perdidas.<br />
Pessoas que<br />
talvez já fossem<br />
só <strong>uma</strong> i<strong>de</strong>ia.<br />
Lampejos <strong>de</strong><br />
encontros irrepetíveis<br />
mas que foram <strong>uma</strong><br />
“finita eternida<strong>de</strong>”. A essência <strong>de</strong><br />
<strong>uma</strong> ausência.<br />
Dizer que “Escarpas” é sobre o<br />
motivo do “tempus fugit” não chega.<br />
Pois o que Gastão Cruz também<br />
interroga é a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> a<br />
poesia ser forma <strong>de</strong> vida, <strong>uma</strong> vida<br />
com <strong>uma</strong> forma. A palavra “vida” é<br />
constante, quase sempre associada à<br />
i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> sentido. O tempo é a<br />
matéria <strong>de</strong> que somos feitos, e nós a<br />
substância do tempo, diz o poeta,<br />
mas o que fazer com essa certeza?<br />
Procurar um sentido, ou fragmentos<br />
<strong>de</strong> sentido. Fazer perguntas sobre o<br />
sentido, eis a poesia.<br />
As imagens do mar algarvio<br />
funcionam como essa gran<strong>de</strong><br />
pergunta incessante, essa máquina<br />
do mundo vasta, escura, enigmática.<br />
A mágoa do visível e do invisível<br />
(material) é matéria emocional,<br />
claro, mas segundo Gastão é<br />
também assunto da razão. É a razão,<br />
transformada em emoção gramatical<br />
e sintáctica, que faz com que seja<br />
possível representar o mundo.<br />
Inclusive o mundo perdido.<br />
Os vivos já não estão vivos, os<br />
antigamente próximos vivem<br />
distantes, a ida<strong>de</strong> que nunca<br />
imaginámos é agora a nossa, a<br />
memória revive mas também<br />
<strong>de</strong>forma, e os mais novos têm <strong>uma</strong><br />
nova relação com o tempo, embora<br />
o tempo não tenha <strong>uma</strong> nova relação<br />
com eles. O que resta ao poeta? A<br />
vida e o sentido. Não a vida dos<br />
factos, mas a vida da imaginação.<br />
Não o sentido das frases, mas o<br />
sentido dos factos.<br />
É por isso que são convocados<br />
tantos cantores e pianistas, gente<br />
que transforma a música em cenas<br />
vivas, que faz do som um sentido, e<br />
<strong>de</strong>sse sentido faz um som. É esse<br />
cuidado que permite um poema<br />
como o inicial: “Tantos vieram para<br />
quem estar vivo<br />
foi ouro em que seu ferro<br />
converteram; / pelo dia chamados<br />
tantos eram / que como lençol negro<br />
a luz cobriam, // obscura multidão<br />
tal o vazio / lugar universal que<br />
biliões / <strong>de</strong> anos-luz levaria a<br />
percorrer, / nuvens <strong>de</strong> aves<br />
morrendo em sucessivo // quebrar<br />
do tempo nas escarpas gastas / da<br />
passagem; mas como atravessar / o<br />
vazio sem tempo, aquele que há-<strong>de</strong><br />
// ser o tempo <strong>de</strong> todos? Tantos<br />
vieram / mudar seu ferro em erro, é<br />
<strong>de</strong> viver / e morrer que se trata,<br />
ferro em ferro” (pág. 9). Ferro ou<br />
erro? Se houvesse resposta, não<br />
havia poesia.<br />
Irene Pimentel revela-nos um Car<strong>de</strong>al Cerejeira<br />
mais complexo do que o retrato caricatural que muitos<br />
ainda fazem <strong>de</strong>le<br />
Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 49
Teatro/Dança<br />
50 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />
Dois irmãos e um funeral: é assim que a história<br />
<strong>de</strong> “7:AM” começa, também po<strong>de</strong> ser assim que<br />
a história da Palmilha Dentada acaba<br />
Teatro<br />
A morte<br />
do artista<br />
Po<strong>de</strong> ser o último<br />
espectáculo da Palmilha<br />
Dentada, mas os últimos<br />
são os primeiros. “7: AM”<br />
é o <strong>de</strong>spertador a tocar, e<br />
<strong>uma</strong> companhia <strong>de</strong> teatro<br />
a acordar para a morte.<br />
É a vida. Inês Nadais<br />
7: AM<br />
De Ricardo Alves e Salgueirinho<br />
Maia. Pela Palmilha Dentada.<br />
Encenação <strong>de</strong> Ricardo Alves. Com<br />
Ivo Bastos e Rodrigo Santos.<br />
Porto. Teatro Sá da Ban<strong>de</strong>ira - Sala-Estúdio Latino.<br />
Rua Sá da Ban<strong>de</strong>ira, 108. Até 9/05. 4ª a Dom. às<br />
21h46. Tel.: 915000464. 4,99€ a 9,99€.<br />
O <strong>de</strong>spertador toca às 7h da manhã e<br />
po<strong>de</strong> ser o fim <strong>de</strong> <strong>uma</strong> bela amiza<strong>de</strong>:<br />
mais do que <strong>uma</strong> companhia <strong>de</strong><br />
teatro não subsidiada a acordar para<br />
a vida, e para o facto <strong>de</strong> um dia, mais<br />
cedo ou mais tar<strong>de</strong>, alguém ter <strong>de</strong><br />
pagar as contas, “7: AM” é <strong>uma</strong><br />
companhia <strong>de</strong> teatro não subsidiada<br />
a acordar para a morte. Se isto for<br />
mesmo o funeral da Palmilha<br />
Dentada, vamos bater em latas: eles<br />
viveram <strong>de</strong>pressa, mas <strong>de</strong>ixam um<br />
cadáver bem bonito.<br />
Mesmo que não seja<br />
efectivamente a morte da Palmilha<br />
Dentada, o novo espectáculo que a<br />
companhia estreou há <strong>uma</strong> semana<br />
na Sala-Estúdio Latino do Teatro Sá<br />
da Ban<strong>de</strong>ira, no Porto, é pelo menos<br />
a morte <strong>de</strong> <strong>uma</strong> certa i<strong>de</strong>ia que<br />
fazíamos da Palmilha: não saímos<br />
daqui agarrados à barriga <strong>de</strong> tanto<br />
rir, saímos daqui agarrados à barriga<br />
<strong>de</strong> tanto chorar. “Temos tido as<br />
reacções mais diversas. Há pessoas<br />
que vêem aqui <strong>uma</strong> metáfora do<br />
controlo do Estado, que realmente é<br />
<strong>uma</strong> coisa que estava na minha<br />
cabeça quando escrevi o texto, e há<br />
pessoas que nos perguntam, quase<br />
agressivamente, porque é que não<br />
fizemos um espectáculo como os<br />
outros. Mas se virmos bem nenhum<br />
dos espectáculos da Palmilha é<br />
‘como os outros’. Para mim é fácil<br />
reconhecer aqui a Palmilha, embora<br />
este seja <strong>de</strong> facto um objecto um<br />
bocado estranho. A verda<strong>de</strong> é que<br />
nós sempre fizemos espectáculos<br />
amargurados: o ‘Norma’, ‘A Cida<strong>de</strong><br />
dos que Partem’, mesmo a<br />
‘Armadilha para Condóminos’”,<br />
sublinha Ricardo Alves, autor e<br />
encenador do texto. A diferença aqui<br />
é que a Palmilha foi por “um humor<br />
menos óbvio, mais visual, mais<br />
<strong>de</strong>sacelerado, mais poético”, e que a<br />
quarta pare<strong>de</strong> é por <strong>uma</strong> vez<br />
completamente rígida, quebrando a<br />
comunicação directa com o público<br />
que sempre foi marca registada da<br />
companhia. “Era um risco, mas o<br />
aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />
teatro também serve para isso.<br />
Sempre nos perguntámos como é<br />
que o nosso público reagiria se<br />
fizéssemos um espectáculo não<br />
cómico”, continua. Era agora ou<br />
nunca.<br />
Em “7: AM” há <strong>uma</strong> morte, dois<br />
irmãos sem futuro e pior do que isso<br />
sem passado, e um poema em voz<br />
off, fantasmagórico, sobre a morte<br />
do artista. “É um espectáculo sobre<br />
lugares sombrios, sobre coisas<br />
sérias, a partir da história <strong>de</strong> dois<br />
irmãos que esperam a chegada do<br />
médico-legista que há-<strong>de</strong> passar a<br />
certidão <strong>de</strong> óbito da mãe para<br />
po<strong>de</strong>rem fazer o funeral”. O funeral<br />
da mãe, ou o funeral da Palmilha?<br />
“Estamos indiscutivelmente a<br />
pensar se vale a pena continuar a<br />
fazer teatro neste país e nesta<br />
cida<strong>de</strong>, e isso passa no espectáculo.<br />
Depois <strong>de</strong> tantos anos a trabalhar<br />
sem as condições mínimas, e a<br />
começar do zero espectáculo após<br />
espectáculo, temos <strong>de</strong> estar<br />
cansados”, respon<strong>de</strong> Ricardo Alves.<br />
A experiência <strong>de</strong> “7: AM”,<br />
simbolicamente coproduzido com<br />
1008 espectadores do país todo que<br />
assinaram um contrato e se<br />
comprometeram a comprar dois<br />
bilhetes, foi “óptima” mas não é o<br />
tipo <strong>de</strong> coisa que se possa fazer toda<br />
a vida adulta.<br />
Se isto que 1008 pessoas (e não o<br />
Estado) pagaram para ver tiver sido<br />
o último espectáculo da Palmilha<br />
Dentada, mas que pena. O artista era<br />
mesmo um bom artista.<br />
A epifania<br />
<strong>de</strong> Dinis<br />
O que é que retemos quando<br />
o que ouvimos são só<br />
palavras? “Parole, Parole,<br />
Parole...”, o novo espectáculo<br />
<strong>de</strong> Dinis Machado no<br />
Negócio, é um trabalho<br />
sobre imagens mentais.<br />
Cláudia Silva<br />
Parole, Parole, Parole...<br />
De Dinis Machado. Com Ana Rocha,<br />
Dinis Machado, Inês Vaz e Jorge<br />
Gonçalves.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Negócio/ZDB. R. <strong>de</strong> O Século, 9, porta 5. Até<br />
18/04. 4ª a Dom. às 21h30. Tel.: 213430205. 5€ a<br />
7,5€.<br />
Há dois anos, o encenador e actor<br />
Dinis Machado andava na rua, e<br />
quando <strong>de</strong>u por si, estava a observar<br />
um grupo <strong>de</strong> surdos-mudos a falarem<br />
uns com outros. Por não ter<br />
instrumentos para <strong>de</strong>cifrar aquela<br />
linguagem gestual, criou na sua<br />
cabeça <strong>uma</strong> “imagem metafórica”<br />
daquela comunicação. Foi quase um<br />
“distanciamento brechtiano”, no<br />
sentido em que o gesto mais comum<br />
do quotidiano pô<strong>de</strong> ali ser visto como<br />
absurdo. Na altura, Dinis estava a ler<br />
alguns textos sobre a função fáctica<br />
da comunicação, elemento que
Agenda<br />
Teatro<br />
Estreiam<br />
A Rainha da Beleza <strong>de</strong> Leenane<br />
De Martin McDonagh. Pelo Teatro<br />
Meridional. Encenação <strong>de</strong> Nuria<br />
Mencía. Com Almeno Gonçalves,<br />
Elisa <strong>Lisboa</strong>, José Mata, Natália<br />
Luíza.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Teatro Meridional. Rua do Açúcar 64 - Beco<br />
da Mitra. De 22/04 a 30/05. 4ª a Sáb. às 21h45.<br />
Dom. às 17h. Tel.: 218689245. 5€ a 10€.<br />
Troilo e Créssida<br />
De Shakespeare. Por Companhia <strong>de</strong><br />
Teatro <strong>de</strong> Almada, ACTA, CTB -<br />
Companhia <strong>de</strong> Teatro <strong>de</strong> Braga.<br />
Encenação <strong>de</strong> Michel Kullemann.<br />
Com André Silva, Luís Vicente,<br />
Mário Spencer, Rogério Boane,<br />
Solange Sá, Tânia Silva.<br />
Almada. Teatro <strong>Municipal</strong> <strong>de</strong> Almada - Sala<br />
Principal. Av. Professor Egas Moniz. De 22/04 a<br />
16/05. 4ª a Sáb. às 21h30. Dom. às 16h. Tel.:<br />
212739360. 6€ a 13€.<br />
A Fábrica<br />
De Pär Lagerkvist. Encenação <strong>de</strong><br />
Miguel Fonseca. Com Ana Gil, João<br />
Duarte Costa, Jorge Completo,<br />
Marisa Russo, Nuno Fernan<strong>de</strong>s.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Teatro da Trinda<strong>de</strong> - Sala-Estúdio. Largo<br />
da Trinda<strong>de</strong>, 7 A. De 22/04 a 09/05. 4ª a Sáb. às<br />
21h45. Dom. às 17h30. Tel.: 213420000. 10€.<br />
Continuam<br />
Miserere<br />
A partir <strong>de</strong> Gil Vicente. Pelo Teatro<br />
da Cornucópia. Encenação <strong>de</strong> Luis<br />
Miguel Cintra. Com Dinis Gomes,<br />
Duarte Guimarães, João Grosso, José<br />
Airosa, José Manuel Men<strong>de</strong>s, Luís<br />
Lima Barreto, Luis Miguel Cintra,<br />
Ricardo Aibéo, Rita Blanco, Sofia<br />
Marques, Vítor <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Teatro Nacional D. Maria II - Sala Garrett. Pç.<br />
D. Pedro IV. Até 23/05. 4ª a Sáb. às 21h30. Dom. às<br />
16h. Tel.: 213250835. 7,5€ a 16€.<br />
Ver texto na pág. 32.<br />
Quixote - Ópera Bufa<br />
A partir <strong>de</strong> António José da Silva. Pelo<br />
Bando. Encenação <strong>de</strong> João Brites.<br />
Com Bruno Huca, Catarina Félix,<br />
Félix Lozano, Joana Bergano, Joana<br />
Manaças, Pedro Ramos, Sara Belo,<br />
Sandra Rosado, Susana Blaser.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Teatro da Trinda<strong>de</strong> - Sala Principal. Largo da<br />
Trinda<strong>de</strong>, 7 A. De 15/04 a 13/06. 4ª a Sáb. às 20h30.<br />
Dom. às 16h30. Tel.: 213420000. 10€.<br />
Ver texto na pág. 33.<br />
José. Rubem. Fonseca<br />
A partir <strong>de</strong> Rubem Fonseca. Por CTB<br />
– Companhia <strong>de</strong> Teatro <strong>de</strong> Braga e<br />
Escola da Noite. Encenação <strong>de</strong><br />
António Augusto Barros. Com Allex<br />
Miranda, António Jorge, Carlos Feio,<br />
Igor Lebreaud, Lina Nóbrega, Maria<br />
João Robalo, Mário Montenegro,<br />
Miguel Magalhães, Rogério Boane,<br />
Sílvia Brito, Solange Sá.<br />
Coimbra. Teatro da Cerca <strong>de</strong> S. Bernardo. Pátio da<br />
Inquisição. Até 30/04. 3ª a Sáb. às 21h30. Tel.:<br />
239702630.<br />
Alguém Olhará Por Mim<br />
De Frank McGuinness. Pelo Ensemble<br />
- Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Actores. Encenação <strong>de</strong><br />
Carlos Pimenta. Com Jorge Pinto,<br />
Alberto Magassela, Pedro Galiza.<br />
Porto. Mosteiro <strong>de</strong> São Bento da Vitória. R. S. Bento<br />
da Vitória. Até 24/04. 3ª a Dom. às 21h30. Tel.:<br />
222007283. 7,5€ a 15€.<br />
Antígona<br />
De Sófocles. Encenação <strong>de</strong> Nuno<br />
Carinhas. Com Alexandra Gabriel,<br />
António Durães, Emília Silvestre, João<br />
Castro, Jorge Mota, José Eduardo<br />
Silva, Lígia Roque, Maria do Céu<br />
Ribeiro, Paulo Freixinho, Pedro<br />
Almendra.<br />
Porto. Teatro Nacional São João. Pç. Batalha. Até<br />
23/04. 4ª a Sáb. às 21h30. Dom. às 16h. Tel.:<br />
223401910. 3,75€ a 16€.<br />
Vila Cacimba<br />
De Mia Couto. Pelo Trigo Limpo<br />
Teatro ACERT. Encenação <strong>de</strong> Pompeu<br />
José. Com Ilda Teixeira, José Rosa,<br />
Pompeu José, Raquel Costa, Sandra<br />
Twitter<br />
A companhia <strong>de</strong><br />
teatro londrina Royal<br />
Shakespeare Company<br />
vai representar a peça<br />
“Romeu e Julieta”, <strong>de</strong><br />
William Shakespeare,<br />
no Twitter. Segundo o<br />
“Times”, um elenco <strong>de</strong> seis<br />
Santos, Zito Marques.<br />
<strong>Lisboa</strong>. A Barraca - Teatro Cinearte. Lg Santos, 2.<br />
De 16/04 a 18/04. 6ª e Sáb. às 22h. Dom. às 17h.<br />
Tel.: 213965360.<br />
Mulher Mundo<br />
De Patrícia Portela. Encenação <strong>de</strong><br />
Rafaela Santos, Leonor Keil. Com<br />
Rafaela Santos.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Teatro Taborda. Costa do Castelo, 75. De<br />
16/04 a 18/04. 6ª a Dom. às 21h30. Tel.: 218854190.<br />
Tuning<br />
De Rodrigo Francisco. Pela<br />
Companhia <strong>de</strong> Teatro <strong>de</strong> Almada.<br />
Encenação <strong>de</strong> Joaquim Benite. Com<br />
Pedro Walter, João Farraia, Rui<br />
Dionísio, Teresa Mónica e Paulo<br />
Guerreiro.<br />
Almada. Teatro <strong>Municipal</strong> <strong>de</strong> Almada - Sala<br />
Experimental. Av. Professor Egas Moniz. Até 02/05.<br />
4ª a Sáb. às 21h30. Dom. às 16h. Tel.: 212739360.<br />
5€ a 11€.<br />
Die Maiers - Episódio I<br />
De Sabine Maier, Yogi Mohr.<br />
Encenação <strong>de</strong> Yogi Mohr. Com<br />
Sabine Maier, Yogi Mohr, Luca<br />
Maier, Branca Maier, August Maier.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Chapitô - Tenda. R. Costa do Castelo, 1/7.<br />
Até 18/04. 5ª a Dom. às 22h. Tel.: 218855550. 8€ a<br />
12€.<br />
Uma Família Portuguesa<br />
De Filomena Oliveira, Miguel Real.<br />
Pelo Teatro Aberto. Encenação <strong>de</strong><br />
Cristina Carvalhal. Com Bruno<br />
Simões, Carlos Malvarez, João Maria<br />
Pinto, Luísa Salgueiro, Teresa Faria.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Teatro Aberto - Sala Vermelha. Pç.<br />
jovens actores vai, nas<br />
próximas cinco semanas,<br />
utilizar os seus telemóveis<br />
para escrever as <strong>de</strong>ixas<br />
das personagens em<br />
apenas 140 caracteres.<br />
“Such Tweet Sorrow” é<br />
o nome da iniciativa. O<br />
público po<strong>de</strong> comentar,<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que não revele<br />
partes essenciais da<br />
história. A peça po<strong>de</strong> ser<br />
seguida em @Such_Tweet.<br />
www.ipsilon.pt<br />
Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 51
52 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />
Teatro<br />
Agenda<br />
Espanha. Até 31/12. 4ª a Sáb. às 21h30. Dom. às<br />
16h. Tel.: 213880089. 7,50€ a 15€.<br />
Num Dia Igual aos Outros<br />
De John Kolvenbach. Encenação <strong>de</strong><br />
Marco Martins. Com Nuno Lopes,<br />
Gonçalo Waddington.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Teatro Nacional D. Maria II - Sala-Estúdio.<br />
Pç. D. Pedro IV. Até 18/04. 4ª a Sáb. às 21h45. Dom.<br />
às 16h15. Tel.: 213250835. 6€ a 12€.<br />
Dança<br />
Continuam<br />
Performance<br />
In Pieces<br />
De Tim Etchells. Com Fumiyo Ikeda.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Teatro <strong>Municipal</strong> Maria<br />
Matos - Sala Principal. Av. Frei<br />
Miguel Contreiras, 52. De 19/04 a<br />
21/04. 2ª a 4ª às 21h30. Tel.:<br />
218438801. 5€ a 15€.<br />
Torres Novas. Teatro Virgínia - Sala Principal.<br />
A epifania que Dinis Machado teve na rua, ao olhar para um grupo<br />
<strong>de</strong> surdos-mudos, é transposta agora para “Parole, Parole, Parole...”<br />
também impulsionou a sua<br />
atenção pela linguagem gestual.<br />
A epifania <strong>de</strong>sse dia foi agora<br />
transposta para “Parole, Parole,<br />
Parole…”, peça que estrou<br />
anteontem e fica em cena até<br />
domingo, no Negócio, espaço da<br />
ZDB, em <strong>Lisboa</strong>. O espectáculo viaja<br />
<strong>de</strong>pois até ao Núcleo <strong>de</strong><br />
Experimentação Coreográfica, no<br />
Porto, nos dias 1 e 2 <strong>de</strong> Maio.<br />
Dinis, que passou quase um mês<br />
em residência no Negócio, quis<br />
trazer para o palco esta experiência<br />
<strong>de</strong> receber a linguagem como<br />
imagem. A pergunta que ele fez a si<br />
próprio, e que agora faz ao público<br />
é: Com que é que as pessoas ficam<br />
<strong>de</strong> <strong>uma</strong> cena, num espectáculo,<br />
quando a mensagem não é<br />
comunicada directamente? Com<br />
<strong>uma</strong> imagem? Uma memória?<br />
É exactamente por isso que nesta<br />
peça se ouvem muitas línguas<br />
diferentes, a começar pelo título, em<br />
aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />
Até ao fi m do mês, as terçasfeiras<br />
são dias <strong>de</strong> performance<br />
na Sala-Estúdio Latino do<br />
Teatro Sá da Ban<strong>de</strong>ira, no Porto.<br />
O colectivo <strong>de</strong> programação<br />
Variação da Cultura reservou o<br />
horário das 21h30, <strong>uma</strong> vez por<br />
semana, para um ciclo <strong>de</strong>cidado<br />
à experimentação, com a<br />
coor<strong>de</strong>nação dos criadores e<br />
intérpretes António Júlio e Vera<br />
Santos. A próxima terça, dia 20,<br />
Largo São José Lopes dos Santos. Dia 17/04. Sáb. às<br />
21h30. Tel.: 249839309. 5€.<br />
Ver texto na pág. 30 e segs.<br />
Pororoca<br />
De Lia Rodrigues. Com Amália Lima,<br />
Allyson Amaral, Ana Paula Kamozaki,<br />
Leonardo Nunes, Clarissa Rego,<br />
Carolina Campos, Thais Galliac,<br />
Volmir Cor<strong>de</strong>iro, Priscilla Maia,<br />
Calixto Neto, Lídia Laranjeira.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Culturgest - Gran<strong>de</strong> Auditório.<br />
Rua Arco do Cego - Edifício da CGD.<br />
De 16/04 a 17/04. 6ª e Sáb. às 21h30.<br />
Tel.: 217905155. 5€ a 18€.<br />
Orfeu e Eurídice<br />
De Marie Chouinard.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Centro Cultural <strong>de</strong> Belém - Gran<strong>de</strong> Auditório.<br />
Praça do Império. Até 16/04. 5ª e 6ª às 21h. Tel.:<br />
213612400. 5€ a 25€.<br />
At Once<br />
De Deborah Hay. Com Ana Mira,<br />
italiano, que significa “palavras,<br />
palavras, palavras”. “Inicialmente,<br />
quando pensei no espectáculo, a<br />
i<strong>de</strong>ia era que ninguém percebesse<br />
todos os textos [da peça]”, conta<br />
Dinis. À medida que a peça vai<br />
avançando, percebe-se que não é tão<br />
importante enten<strong>de</strong>r, porque que “o<br />
discurso não está naquilo que está a<br />
ser dito, mas na própria máquina [da<br />
peça]”, explica.<br />
Assim, em “Parole…”, po<strong>de</strong>mos<br />
ver a princípio quatro actores a<br />
dançar em palco, vestidos <strong>de</strong> branco<br />
da cabeça aos pés e com os rostos<br />
tapados por <strong>uma</strong> máscara <strong>de</strong><br />
esgrima. Parece o futuro, até que, na<br />
cena seguinte, há um casal à mesa,<br />
tomando um farto e <strong>de</strong>morado<br />
pequeno-almoço, com o mesmo<br />
figurino. Comem cereais, bebem chá<br />
e lêem jornais e revistas. Uma<br />
banalida<strong>de</strong>. De vez em quando<br />
trocam alg<strong>uma</strong>s palavras. Po<strong>de</strong>mos<br />
ver as personagens e suas sombras<br />
será preenchida por João Costa,<br />
com “Simon 06 07 08 09”. e<br />
Rita Osório, com “(sem título)”.<br />
No dia 27, Loreto Martinez<br />
Troncoso apresenta “La ferme<br />
(solilóquio <strong>de</strong> um insone)”<br />
e Filipe Antunes Moreira<br />
“Recomeçar do princípio”. Os<br />
bilhetes custam cinco euros e<br />
as sessões não terminam antes<br />
<strong>de</strong> <strong>uma</strong> conversa aberta com o<br />
público.<br />
Margarida Bettencourt.<br />
Aveiro. Teatro Aveirense - Sala Principal. Pç.<br />
República. Dia 22/04. 5ª às 21h45. Tel.: 234400922.<br />
8€.<br />
Mapacorpo<br />
De Amélia Bentes, Lia Rodrigues.<br />
Com Amélia Bentes, Leonor Keil.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Centro Cultural <strong>de</strong> Belém - Pequeno<br />
Auditório. Praça do Império. Dia 17/04. Sáb. às 21h.<br />
Dom. às 17h. Tel.: 213612400. 10€ a 15€.<br />
enormes na pare<strong>de</strong>, num jogo<br />
possível graças ao ví<strong>de</strong>o em directo e<br />
à projecção. Temos a sensação <strong>de</strong><br />
que esta cena se vai prolongar. O<br />
tempo não passa. Outras duas<br />
personagens entrarão em cena, <strong>uma</strong><br />
rapariga vestida <strong>de</strong> branco com <strong>uma</strong><br />
máscara e um rapaz vestido com um<br />
smoking branco e um arco com dois<br />
cornos. Não sabemos muito bem<br />
quem são eles, <strong>de</strong>scobrimos mais<br />
tar<strong>de</strong> que também é um casal. O<br />
espaço cénico é construído,<br />
<strong>de</strong>struído e reconstruído em palco,<br />
com fita-cola.<br />
Esta re<strong>de</strong>, diz Dinis, é o quotidiano:<br />
a repetição, a acumulação do tempo<br />
e as <strong>de</strong>cisões que tomamos no dia-adia,<br />
como o trabalho e a pessoa com<br />
a qual partilhamos a vida. Mas isto é o<br />
que o encenador nos explica, porque<br />
nem tudo se percebe. Saímos do<br />
espectáculo, afinal, sem muitas<br />
“parole” na cabeça, apenas com<br />
alg<strong>uma</strong>s imagens.<br />
VERA MARMELO
Discos<br />
Pop<br />
Autorida<strong>de</strong><br />
incendiária<br />
Segundo álbum incendiário<br />
da voz revelação do Mali. É a<br />
melhor cantora africana da<br />
actualida<strong>de</strong>. Luís Maio<br />
Bako Dagnon<br />
Sidiba<br />
Discograph, distri. Massala<br />
mmmmm<br />
Começa quase<br />
sempre com uns<br />
acor<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
guitarra, brandos<br />
e <strong>de</strong>licados, que<br />
embalam o<br />
ouvinte num<br />
meigo torpor. A voz vem <strong>de</strong>pois<br />
conjugar a mesma doçura, mas<br />
<strong>de</strong>pressa ganha asas, levando os<br />
instrumentos atrás em crescendos<br />
sucessivos. São como avalanches em<br />
catadupa, cada <strong>uma</strong> mais veemente<br />
e luminosa que a prece<strong>de</strong>nte. É<br />
assim “Sidiba”, o majestoso segundo<br />
álbum internacional daquela que é a<br />
melhor cantora africana do nosso<br />
tempo, mas ainda <strong>uma</strong> ilustre<br />
<strong>de</strong>sconhecida fora dos circuitos <strong>de</strong><br />
especialistas. Bako Dagnon (1953-)<br />
vem da região <strong>de</strong> Biriko, Mali, e<br />
orgulha-se <strong>de</strong> ser <strong>uma</strong> das últimas<br />
jeliya, a linhagem <strong>de</strong> cantoras griot<br />
da lendária tradição Mandiga. Na<br />
verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>scen<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>uma</strong> família<br />
<strong>de</strong> nobres griot, que remonta à<br />
fundação do império Mali, em<br />
meados do século XIII.<br />
Começou a cantar em miúda,<br />
vindo <strong>de</strong>pois - como manda o<br />
costume agora em vias <strong>de</strong> extinção –<br />
a estudar com os velhos guardiões<br />
<strong>de</strong>ssa cultura<br />
predominantemente oral. A sua<br />
carreira conheceu, entretanto,<br />
<strong>uma</strong> série <strong>de</strong> falsas partidas,<br />
que tornaram Bako menos<br />
conhecida pelos seus dotes<br />
artísticos do que pela sua<br />
extraordinária erudição.<br />
Tornou-se <strong>uma</strong> figura<br />
tutelar – aquela que nomes<br />
bem mais célebres, como<br />
Ali Farka Touré, Kandia<br />
Kouyate ou Ibrahima Sylla, se<br />
habituaram a consultar em<br />
matéria <strong>de</strong> erudição Mandiga.<br />
Acabou por ser Sylla, um dos<br />
mais <strong>de</strong>stacados produtores<br />
africanos da actualida<strong>de</strong>, que a<br />
convenceu a gravar “Titali”, o<br />
seu primeiro álbum<br />
internacional, lançado em<br />
finais 2006.<br />
Bako Dagnon: a melhor<br />
cantora africana<br />
do nosso tempo<br />
“Sidiba” não<br />
muda gran<strong>de</strong><br />
coisa,<br />
antes<br />
cuida <strong>de</strong> esclarecer as premissas que<br />
nortearam a estreia. Ou seja, é<br />
também um disco gravado entre<br />
Bamako e Paris, que cruza um<br />
ensemble <strong>de</strong> músicos acústicos do<br />
Mali, sobretudo nas cordas e nas<br />
percussões, com guitarristas e<br />
produtores francesas. Evitando<br />
truques <strong>de</strong> produção e<br />
exibicionismos fátuos, tem o mérito<br />
<strong>de</strong> actualizar o reportório <strong>de</strong><br />
colheita secular e funcionar como<br />
veículo perfeito para o espectáculo<br />
que é cada <strong>de</strong>sempenho vocal <strong>de</strong><br />
Bako.<br />
É <strong>uma</strong> voz rugosa e granulada,<br />
que não faz nada para soar mais<br />
domesticada. Denota, em<br />
contrapartida, um fôlego interior e<br />
um virtuosismo prodigiosos, que<br />
com a ida<strong>de</strong> parecem ganhar ainda<br />
mais intensida<strong>de</strong> e poesia. Claro que<br />
ela canta tudo em mandiga e quem<br />
editou o disco nem se <strong>de</strong>u ao<br />
trabalho <strong>de</strong> traduzir as palavras para<br />
<strong>uma</strong> língua oci<strong>de</strong>ntal. Não faz mal<br />
quando se está em presença <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />
<strong>de</strong>ssas vozes raras com real<br />
capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> comunicação<br />
universal.<br />
A essência<br />
dos<br />
Pavement<br />
Uma viagem <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>slumbramento.<br />
Mário Lopes<br />
Pavement<br />
Quarantine The Past<br />
Domino; distri. E<strong>de</strong>l<br />
mmmmn<br />
Uma compilação<br />
dos Pavement,<br />
tivesse as canções<br />
que tivesse,<br />
provocaria<br />
sempre<br />
<strong>de</strong>scontentamento<br />
em alguém. Tendo em conta o grau<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>voção gerado pela banda <strong>de</strong><br />
Stephen Malkmus, haveria sempre<br />
canções em falta (as nossas) para<br />
(nossa) muito justificável indignação.<br />
Isso, <strong>de</strong> resto, é prova do quanto<br />
estamos perante algo especial:<br />
foram “geeks” <strong>de</strong>salinhados do<br />
rock’n’roll que transformaram os<br />
“maluquinhos” que os ouviam em<br />
seres incomparavelmente cool – e<br />
estes, como sabemos, preocupam-se<br />
com pormenores como alinhamento<br />
<strong>de</strong> compilações.<br />
Mas da mesma forma que, nos<br />
anos 1990, o canto balbuciado <strong>de</strong><br />
Malkmus e as suas letras <strong>de</strong> refinado<br />
“nonsense”, aquela música que<br />
jogava com Lou Reed e os Sonic<br />
Youth, com os Byrds, o psica<strong>de</strong>lismo<br />
e o punk, reunidos num corpo que<br />
aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito aMaumMe<br />
BommmmmmExcelente<br />
Novo No<br />
dis disco<br />
A dupla Chemical<br />
Brothers vai lançar<br />
novo disco com oito<br />
novos temas e o mesmo<br />
número <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>os.<br />
Como se <strong>de</strong> um DJ set se<br />
tratasse, “Further” não<br />
se distinguia da multidão pelos olhos<br />
esbugalhados caminhando em<br />
sentido contrário à turba <strong>de</strong> Pixies e<br />
“grungers”; da mesma forma,<br />
dizíamos então, que os Pavement se<br />
conta com interrupções<br />
entre faixas. A data<br />
<strong>de</strong> lançamento do<br />
sucessor <strong>de</strong> “We<br />
Are The Night” está<br />
prevista para 7 <strong>de</strong><br />
Junho.<br />
Pavement: foram “geeks” <strong>de</strong>salinhados<br />
do rock’n’roll que transformaram os “maluquinhos”<br />
que os ouviam em seres incomparavelmente cool<br />
tornaram o culto mais cultivado dos<br />
anos 1990 pelo som on<strong>de</strong> se<br />
simulava <strong>de</strong>sleixo (as canções<br />
pareciam brotar sem esforço e sem<br />
ensaio) para se atingir algo maior<br />
Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 53
54 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />
Discos<br />
PAULO PIMENTA/ PÚBLICO<br />
(as canções senhores, que<br />
canções), também agora<br />
“Quarantine The Past”, compilação<br />
que coinci<strong>de</strong> com o regresso aos<br />
palcos, serve para <strong>uma</strong> viagem <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>slumbramento. Não é necessário<br />
nada <strong>de</strong> perfeito, não é necessário<br />
um comité <strong>de</strong> sábios que <strong>de</strong>fina a<br />
nata do cancioneiro.<br />
“Quarantine The Past” não tem<br />
alinhamento cronológico. Salta <strong>de</strong><br />
“Crooked Rain, Crooked Rain” para<br />
os primeiros EPs, só inclui <strong>uma</strong><br />
canção <strong>de</strong> “Terror Twikight” (“Spit<br />
on a stranger”) e atira para o<br />
alinhamento “Unseen power of the<br />
picket fence”, da compilação “No<br />
Alternative”, só porque é divertido<br />
ouvir a <strong>de</strong>lirante versão alternativa<br />
da história dos REM nela inventada.<br />
Temos a frase imortal <strong>de</strong> “Cut your<br />
hair” (“I’m just a boy with a new<br />
haircut”), temos a perfeita “Shady<br />
lane”, temos os jogos <strong>de</strong> guitarra<br />
surpreen<strong>de</strong>ntes, empolgantes, as<br />
estruturas gargalhando perante a<br />
convenção e o equilíbrio no fio da<br />
navalha entre melodia escorreita e<br />
caos sónico.<br />
“Quarantine The Past” são 23<br />
canções organizadas <strong>de</strong> acordo com<br />
o espírito da banda – nada <strong>de</strong> óbvio,<br />
nada daquilo que “<strong>de</strong>veria ser”. A<br />
essência dos Pavement, aquilo nos<br />
atraiu para eles, está aqui. Tudo o<br />
resto são pormenores pouco<br />
relevantes.<br />
Ribeiro manso<br />
Caribou<br />
Swim<br />
Merge; distri. Popstock<br />
mmmmn<br />
Novo<br />
disco<br />
De que é que<br />
falamos quando<br />
falamos <strong>de</strong> água<br />
na música pop?<br />
De Robert Wyatt,<br />
ou, mais<br />
propriamente, <strong>de</strong><br />
“Rock Bottom”, prodigiosa obraprima<br />
do músico inglês em que<br />
Os Mind da Gap<br />
estão <strong>de</strong> volta para,<br />
quatro anos <strong>de</strong>pois,<br />
apresentarem novo<br />
álbum <strong>de</strong> originais.<br />
“A Essência”<br />
instrumentos e voz parecem um<br />
todo, um fluído composto <strong>de</strong> vagas<br />
que nos afogam, sufocam e<br />
finalmente atiram <strong>de</strong> volto à areia.<br />
Lembramos “Rock Bottom” porque<br />
“Swim”, o novo álbum <strong>de</strong> Caribou,<br />
é, supostamente, um disco para ser<br />
ouvido como se <strong>de</strong> água se tratasse –<br />
ou seja, Caribou queria o oposto da<br />
solarida<strong>de</strong> que o tornou conhecido,<br />
queria um disco que se afastasse da<br />
“canção”. Por isso fez nove faixas<br />
longas e cheias <strong>de</strong> partes diferentes,<br />
em que sons concretos se unem a<br />
instrumentos com frequências<br />
alteradas, criando <strong>uma</strong> espécie <strong>de</strong><br />
house progressiva, cheia <strong>de</strong> curvas e<br />
contra-curvas. No entanto, a<br />
primeira canção, “O<strong>de</strong>ssa”, está<br />
muito longe <strong>de</strong> ser “água”: com um<br />
beat bem <strong>de</strong>marcado, refrão em<br />
ascensão e um mínimo <strong>de</strong> blips em<br />
fundo, é, a todos os títulos, um<br />
tremendo single pop. A partir daí a<br />
coisa vai <strong>de</strong> facto aguando: “Sun”<br />
assenta n<strong>uma</strong> toalha <strong>de</strong><br />
sintetizadores repetitivos antes <strong>de</strong><br />
ser apopalhada por um beat<br />
langoroso, “Kaili” traz <strong>de</strong> novo<br />
sintetizadores e linhas <strong>de</strong> baixo<br />
sintetizadas que evocam danças<br />
submarinas, e na tremenda “Bowls”,<br />
entre <strong>uma</strong> linha <strong>de</strong> baixo<br />
sorumbática e flautas sombrias,<br />
atinge-se finalmente aquela sensação<br />
<strong>de</strong> afundamento que só Wyatt<br />
alcançou.<br />
Mas Caribou não tem a<br />
visceralida<strong>de</strong> do músico inglês, pelo<br />
que, mesmo <strong>de</strong>scartando as<br />
referências à década <strong>de</strong> 60 que<br />
fizeram <strong>de</strong> “Andorra” um sucesso,<br />
lhe é difícil fugir a certa <strong>uma</strong><br />
vertigem pop. O que quer dizer que<br />
mesmo estando cheio <strong>de</strong><br />
experiências com as heranças da<br />
electrónica, do breakbeat ao velho<br />
4/4 da house, da samplagem ao<br />
ruído, “Swim” não é um disco <strong>de</strong><br />
água no sentido <strong>de</strong> afundamento<br />
mas sim no <strong>de</strong> ribeiro manso em dia<br />
<strong>de</strong> sol: aprazível, com seixos<br />
redondos e as ocasionais sombras<br />
on<strong>de</strong> se escon<strong>de</strong>m peixes estranhos<br />
<strong>de</strong>rivado da poluição. Mas é sempre<br />
o belo a dominar este regueirão.<br />
“Swim” é para ser ouvido como se <strong>de</strong> água<br />
se tratasse – Caribou queria o oposto da<br />
solarida<strong>de</strong> que o tornou conhecido,<br />
queria um disco que se afastasse da “canção”<br />
conta com 11 temas<br />
conduzidos pelas<br />
palavras dos MC Ace e<br />
Presto e pelas batidas<br />
propostas por Serial.<br />
Chega às lojas a 26.<br />
Difi cilmente os Black Rebel Motorcycle Club<br />
serão melhores que o que aqui ouvimos<br />
Uma questão<br />
<strong>de</strong> crença<br />
Black Rebel Motorcycle Club<br />
Beat The Devil’s Tattoo<br />
Abstract Dragon; distri. Nuevos<br />
Medios<br />
mmmnn<br />
Temos as<br />
guitarras<br />
acústicas, com<br />
pan<strong>de</strong>ireta a<br />
chocalhar e bota<br />
batendo no chão<br />
como percussão.<br />
Temos os blues, portanto. Temos o<br />
baixo a ressoar pelo corpo e os ecos<br />
<strong>de</strong> fuzzs e wah wahs das guitarras,<br />
temos as vozes que surgem do fim<br />
do túnel enquanto a massa sonora<br />
nos suga para qualquer que seja o<br />
lugar diabólico <strong>de</strong> on<strong>de</strong> veio. Temos,<br />
assim sendo, o rock’n’roll como<br />
matéria inflamável e o shoegaze<br />
como peyote cultivado em<br />
electricida<strong>de</strong>.<br />
Os Black Rebel Motorcycle Club<br />
estão <strong>de</strong> volta, meses <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um<br />
óptimo CD/DVD ao vivo, e este<br />
quinto álbum, “Beat the <strong>de</strong>vil’s<br />
tattoo”, não provocará sobressaltos.<br />
É o pior que <strong>de</strong>le po<strong>de</strong>mos dizer.<br />
Porque os Black Rebel Motorcycle<br />
Club, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que lançaram aquele<br />
famoso berro <strong>de</strong> “whatever<br />
happened to my rock’n’roll?”, só<br />
fazem fazem sentido s se a sua música<br />
espolet espoletar algo: a proverbial explosão<br />
hormo hormonal, o inevitável <strong>de</strong>lírio<br />
psicotr psicotrópico, a sensação que não<br />
aconte aconteceu nada ao rock’n’roll e aqui<br />
está esta est canção para o provar.<br />
“Bea “Beat tthe <strong>de</strong>vil’s tattoo” até é um<br />
dos me melhores álbuns do trio. Tem os<br />
inferno infernos blues em que mergulharam<br />
em “Ho “Howl” (a canção título, a<br />
primei primeira, dirige-nos na rota certa) e<br />
as <strong>de</strong>scargas <strong>de</strong>sc eléctricas<br />
encant encantatórias, ponto <strong>de</strong> encontro<br />
entre perdição p Velvetiana e retórica<br />
gótica ( (a sulista americana, não a<br />
dos Sisters Sis of Mercy). É um<br />
concen concentrado daquilo que fizeram<br />
nos seus seu dois álbuns que realmente<br />
interes interessam: o primeiro, homónimo,<br />
e o sup supracitado “Howl”.<br />
Entr Entre “witches tongues” e “I don’t<br />
wanna<br />
feel love again”, com os
flashes e néons tremeluzentes que a<br />
música suscita, sentimos que tudo<br />
está bem no melhor dos mundos<br />
que os Black Rebel Motorcycle Club<br />
inventaram para nós. Mas ao<br />
contrário do berro primordial, ao<br />
contrário do recente “Live”, o<br />
zumbido provocado por esta música<br />
<strong>de</strong> excessos não se prolonga como<br />
anteriormente. Essa a tragédia <strong>de</strong><br />
“Beat the <strong>de</strong>vil’s tattoo”.<br />
Dificilmente os Black Rebel<br />
Motorcycle Club serão melhores que<br />
o que aqui ouvimos, mas já não<br />
acreditamos como gostaríamos nas<br />
oh tão libertadoras feitiçarias que<br />
lançam sobre nós. M.L.<br />
Música <strong>de</strong> fundo<br />
Ruby Suns<br />
Fight Softly<br />
Memphis Industries; distri. Popstock<br />
mmmnn<br />
Lembram-se dos<br />
Ruby Suns <strong>de</strong> “Oh<br />
Mojave” e “Kenya<br />
dig it?”, pessoal <strong>de</strong><br />
bronzeado<br />
neozelandês,<br />
caribenho e norte<br />
americano? Pois então esqueçam. Ou<br />
melhor, seguindo os procedimentos<br />
<strong>de</strong> Ryan McPhun, o homem que se<br />
escon<strong>de</strong> por trás do nome Ruby Suns,<br />
reformulem. A sua música continua<br />
incrivelmente solar, continua eivada<br />
da inocência infantil possível num<br />
corpo adulto. Mas isso, chegados a<br />
Como música<br />
<strong>de</strong> fundo é perfeito...<br />
“Fight Softly”, é a única coisa que<br />
continua a ser. O orgânico <strong>de</strong>u lugar<br />
ao digital e a pop globalizada<br />
transformou-se em mais um nome a<br />
juntar à vaga chillwave ou hypnagogic<br />
pop ou lá como se classificam as<br />
nostalgias new-age dos óptimos<br />
Ducktails, do recente Toro Y Moi e do<br />
assim p’ró aborrecido Neon Indian.<br />
A doce melancolia dos Ruby Suns<br />
é agora servida por sugestões <strong>de</strong><br />
vibrafones caribenhos e<br />
sintetizadores extraídos do electro<br />
pop dos anos 80, por um par <strong>de</strong><br />
linhas <strong>de</strong> voz atirados aos céus para<br />
recordar Brian Wilson e, <strong>de</strong> forma<br />
omnipresente, pela visão <strong>de</strong> um Paul<br />
Simon entregue às <strong>de</strong>lícias <strong>de</strong> um<br />
chill out em final <strong>de</strong> tar<strong>de</strong> regado a<br />
Martini dry. Essa po<strong>de</strong> ser <strong>uma</strong> visão<br />
bonita. É o que acontece, por<br />
exemplo, em “How kids fail”,<br />
porque aí McPhun consegue pegar<br />
n<strong>uma</strong> i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> som e transformá-la<br />
em canção. Mas tal po<strong>de</strong> também<br />
conduzir a cenários com o seu quê<br />
<strong>de</strong> assustador: percebemo-lo<br />
quando damos por nós a trautear<br />
“Never give you up”, atentado ao<br />
bom gosto perpetrado por Rick<br />
Astley nos idos <strong>de</strong> 80, sobre a<br />
melodia <strong>de</strong> “Mingus and Pike”.<br />
Porém, o coração <strong>de</strong> “Fight softly”<br />
não está em nenhum dos dois<br />
extremos. Fica a caminho <strong>de</strong><br />
qualquer coisa, como se se tratasse<br />
<strong>de</strong> um conceito <strong>de</strong> som que Ryan<br />
McPhun não domina complemente<br />
– o álbum está recheado <strong>de</strong> bons<br />
esboços <strong>de</strong> canções que nunca se<br />
chegam a concretizar.<br />
Claro que a intenção <strong>de</strong> McPhun<br />
po<strong>de</strong> ter sido transformar a<br />
exuberância do passado em algo<br />
mais discreto. Se assim foi, missão<br />
cumprida. Como música <strong>de</strong> fundo,<br />
i<strong>de</strong>al para criar um ambiente<br />
agradável e não incomodar muito<br />
quem a ouve, “Fight softly” é<br />
perfeito. M.L.<br />
O novo “new age”<br />
Magina<br />
Nazca Lines<br />
Edição <strong>de</strong> autor<br />
mmmnn<br />
Pedro Magina faz música corajosa<br />
Pedro Magina<br />
mostra em “Nazca<br />
Lines” a música<br />
que cose em casa<br />
quando não está<br />
com André Abel,<br />
o seu camarada no duo<br />
Aquaparque, um dos mais<br />
excitantes projectos portugueses<br />
dos últimos anos. Neste disco <strong>de</strong><br />
estreia a solo, Magina mostra o<br />
seu interesse pelas melodias <strong>de</strong><br />
teclados, que nos Aquaparque<br />
se diluíam em “samples”,<br />
batidas e vozes. O resultado é <strong>uma</strong><br />
música mais <strong>de</strong>spida, que lembra<br />
compositores “new age” como Jean<br />
Michael Jarre e Vangelis e até o “easy<br />
listening” <strong>de</strong> Richard Clay<strong>de</strong>rman.<br />
Não se assustem: esses campos, que,<br />
noutros casos, resvalam para o gosto<br />
duvidoso, são reabilitados por<br />
Magina, que <strong>de</strong>les retira a beleza<br />
melódica e emocional e a imersão<br />
psicadélica, dispensando as<br />
megalomanias orquestrais ou a<br />
estética papel <strong>de</strong> pare<strong>de</strong>.<br />
Conceptualmente, os três temas<br />
<strong>de</strong> “Nazca Lines” alinham-se com o<br />
que gente como Oneohtrix Point<br />
Never e James Ferraro têm vindo a<br />
fazer: trazer a “new age” e outros<br />
territórios banidos para a<br />
contemporaneida<strong>de</strong>, cruzando-os<br />
com a música <strong>de</strong> sintetizadores<br />
alemã dos anos 1970, sob <strong>uma</strong><br />
perspectiva <strong>de</strong>vedora do “noise” do<br />
início <strong>de</strong>ste década.<br />
“The Love There That’s Sleeping”<br />
lembra a qualida<strong>de</strong> épica <strong>de</strong><br />
“Chariots of Fire”, <strong>de</strong> Vangelis, sem<br />
medo <strong>de</strong> soar piroso – não soa.<br />
“Heads Across the Sky” tem aquela<br />
beleza pura, não filtrada, das peças<br />
<strong>de</strong> órgão interpretadas n<strong>uma</strong><br />
audição escolar, poluída (para nosso<br />
bem) pelo ruído da gravação e<br />
alguns efeitos dissonantes. Em<br />
“She’s Behind Me”, as linhas <strong>de</strong><br />
teclado, a lembrar os floreados <strong>de</strong><br />
Edgar Froese (Tangerine Dream),<br />
perduram graças ao eco.<br />
É um disco que reflecte o seu<br />
processo <strong>de</strong> fabrico, assumidamente<br />
caseiro, e que é beneficiado pela<br />
gravação mo<strong>de</strong>sta (o ruído, sempre<br />
presente, é <strong>uma</strong> textura extra). Tal<br />
como com os Aquaparque, a solo,<br />
Pedro Magina faz música corajosa,<br />
100 por cento genuína e, não raras<br />
vezes, bela. Pedro Rios<br />
David Byrne & Fatboy Slim<br />
Here Lies Love<br />
Nonesuch, distri. Warner<br />
mmmnn<br />
É um disco<br />
estranho. Em<br />
primeiro lugar,<br />
pelos<br />
protagonistas.<br />
David Byrne<br />
Esperava-se que extravagante Imelda pu<strong>de</strong>sse<br />
inspirar um pouco mais <strong>de</strong> fantasia a Byrne e Fatboy Slim<br />
JOÃO HENRIQUES<br />
aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />
e Fatboy Slim po<strong>de</strong>m gostar <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sconstruções e bricolagens<br />
sonoras, mas dir-se-ia que os pontos<br />
<strong>de</strong> contacto se esgotam aí. Em<br />
segundo, por ser <strong>uma</strong> obra<br />
conceptual, narrativa sónica sobre a<br />
vida, amores e obsessões <strong>de</strong> Imelda<br />
Marcos, primeira-dama das Filipinas<br />
durante o regime <strong>de</strong> Ferdinando<br />
Marcos. Ao que parece, Imelda tem o<br />
<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ver gravado na sua lápi<strong>de</strong> a<br />
frase “Here lies love”, daí o nome do<br />
álbum. Por último, é <strong>uma</strong> obra<br />
faraónica, dividida em quatro actos e<br />
dois CDs, na qual participam cerca<br />
<strong>de</strong> 22 vocalistas convidados (Roisin<br />
Murphy, Santigold, Sharon Jones,<br />
Camille, Cindy Lauper, Alice Russell<br />
ou Tori Amos). E o que resulta? Um<br />
disco mediano, que se divi<strong>de</strong> entre<br />
canções pop electrónicas e outras<br />
on<strong>de</strong> o espírito latino e o balanço<br />
tropical se fazem sentir. Há, claro,<br />
gran<strong>de</strong>s intérpretes, mas dir-se-ia<br />
que a produção, na tentativa <strong>de</strong> unir<br />
as pontas soltas, acabou por anular a<br />
singularida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada <strong>uma</strong>. Não<br />
existe nenh<strong>uma</strong> canção que<br />
sobressaia. Nenh<strong>uma</strong> é medíocre, é<br />
© CLEMENTINA CABRAL<br />
verda<strong>de</strong>. Mas também nenh<strong>uma</strong> tem<br />
o efeito <strong>de</strong> surpreen<strong>de</strong>r, a<br />
sonorida<strong>de</strong> revela-se apenas<br />
cómoda. Esperava-se que<br />
extravagante Imelda pu<strong>de</strong>sse<br />
inspirar um pouco mais <strong>de</strong> fantasia.<br />
V.B.<br />
Two Door Cinema<br />
Tourist History<br />
Kitsuné, distri. PopStock<br />
mmmnn<br />
Não irão mudar o<br />
mundo, com <strong>uma</strong><br />
sonorida<strong>de</strong> já<br />
ensaiada por<br />
muitas outras<br />
bandas ao longo<br />
dos últimos anos<br />
(súmula <strong>de</strong> guitarras à Franz<br />
Ferdinand com balanço rítmico<br />
próximo dos franceses Phoenix), mas<br />
os irlan<strong>de</strong>ses Two Door Cinema<br />
transmitem <strong>uma</strong> frescura que poucas<br />
das bandas <strong>de</strong> hoje que se agarraram<br />
ao legado do pós-punk dos anos 80 já<br />
conseguem transmitir. São putos,<br />
JORGE SALGUEIRO<br />
4ª a sáb às 20h30<br />
dom às 16h30 | M/6<br />
A FÁBRICA<br />
baseado em O Segredo do Céu <strong>de</strong> PÄR LAGERKVIST<br />
encenação Miguel Fonseca co-produção TEATRO AGITA<br />
ESTREIA 22 ABR sala estúdio | 4ª a sáb 21h45 | dom 17h30 | M/12<br />
HAVIA UM MENINO QUE ERA PESSOA<br />
Poemas para a Infância <strong>de</strong> FERNANDO PESSOA<br />
encenação Lucinda Loureiro | com José Figueiredo Martins<br />
sáb e dom 15h para toda a família | M/6<br />
para escolas durante a semana | sob marcação<br />
Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 55
Discos<br />
Two Door Cinema:<br />
<strong>uma</strong> vivacida<strong>de</strong> contagiante<br />
<strong>de</strong>scarados, e não o tentam<br />
escon<strong>de</strong>r, o que é óptimo. Não têm<br />
gran<strong>de</strong>s conceitos para oferecer,<br />
apenas <strong>uma</strong> vivacida<strong>de</strong> que em<br />
alg<strong>uma</strong>s canções (“Do you want it<br />
all?”, “This is the life” ou “I can talk”)<br />
se revela contagiante. Ouvido do<br />
princípio ao fim, é um daqueles<br />
discos que acusa a repetição <strong>de</strong><br />
fórmulas <strong>de</strong> canção para canção, mas<br />
nos momentos mais inspirados a<br />
mistura <strong>de</strong> guitarras angulares e<br />
movimentos rítmicos dançáveis<br />
consegue operar pequenos milagres<br />
em canções pop <strong>de</strong>scomprometidas<br />
e hedonistas. V.B.<br />
Mão Morta<br />
Pesa<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> Peluche<br />
Universal<br />
mmnnn<br />
Depois da<br />
megalomania<br />
“Maldoror”, os<br />
Mão Morta<br />
anunciaram um<br />
“back to basics”.<br />
Fizeram um objecto estranho, que os<br />
mostra <strong>de</strong>spersonalizados e em que<br />
<strong>de</strong>masiados temas sofrem <strong>de</strong> falta <strong>de</strong><br />
i<strong>de</strong>ias, recorrendo à cartilha <strong>de</strong><br />
clichés do rock. “Teoria da<br />
Conspiração” lembra o punkindustrial<br />
vitaminado dos Lard e tem<br />
um refrão que podia ser dos Cramps<br />
– é um bom momento rock, mas tem<br />
pouco <strong>de</strong> Mão Morta. Em “Como um<br />
Vampiro”, Fernando Ribeiro, dos<br />
Moonspell, tenta emprestar negrume<br />
ao refrão teatral, mas o resultado é<br />
dispensável. É nos temas menos<br />
acelerados que “Pesa<strong>de</strong>lo <strong>de</strong><br />
Peluche” oferece algum brilho.<br />
Exemplo: a muito “ballardiana”<br />
“Metalcarne”, com <strong>uma</strong> linha <strong>de</strong><br />
baixo quase “electro” e invasões <strong>de</strong><br />
electrónica. A pérola é <strong>de</strong>ixada para<br />
o fim. “Tiago Capitão” é guiada<br />
por um piano solene em<br />
primeiro plano. Há <strong>uma</strong><br />
guitarra distorcida a<br />
crepitar ao fundo e<br />
Adolfo Luxúria Canibal a<br />
inventar <strong>uma</strong> ladainha.<br />
Pena que seja um dos<br />
poucos momentos em<br />
que este é mais do que<br />
Pouco para <strong>uma</strong> banda com<br />
muitos momentos brilhantes<br />
em 25 anos <strong>de</strong> carreira<br />
56 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />
HUGO DELGADO/ PUBLICO<br />
um disco razoável. O que é pouco<br />
para <strong>uma</strong> banda com muitos<br />
momentos brilhantes em 25 anos <strong>de</strong><br />
carreira. Pedro Rios<br />
Clássica<br />
As múltiplas<br />
faces <strong>de</strong><br />
Alexis<br />
Kossenko<br />
Com o seu grupo Arte <strong>de</strong>i<br />
Suonatori e como convidado<br />
da Holland Baroque Society,<br />
o flautista reafirma a sua<br />
versatilida<strong>de</strong> artística.<br />
Cristina Fernan<strong>de</strong>s<br />
Carl Philipp<br />
Emanuel Bach<br />
Concerti a flauto<br />
traverso obligato<br />
– II<br />
Arte <strong>de</strong>i Suonatori<br />
Alexis Kossenko<br />
(flauta traverso e<br />
direcção)<br />
Alpha 146<br />
mmmmn<br />
Holland<br />
Baroque Society<br />
meets Alexis<br />
Kossenko<br />
Telemann<br />
– Ouverture e<br />
Concerti<br />
Channel Classics<br />
CCS SA 28409<br />
mmmmn<br />
Aos 33 anos, Alexis Kossenko é um<br />
dos mais importantes flautistas do<br />
panorama internacional.<br />
Instrumentista versátil, domina a<br />
flauta em todas as suas formas<br />
históricas — da mo<strong>de</strong>rna flauta<br />
transversal aos mo<strong>de</strong>los barrocos e<br />
renascentistas, passando pela flauta<br />
<strong>de</strong> bisel — e tem-se distinguido como<br />
maestro e musicólogo. O primeiro CD<br />
com Concertos para Flauta <strong>de</strong> Carl<br />
Philipp Emanuel Bach (1714-1788) que<br />
gravou para a Alpha com o seu<br />
grupo Arte <strong>de</strong>i Suonatori obteve<br />
um merecido sucesso,<br />
repetindo-se neste segundo<br />
volume a qualida<strong>de</strong> técnica<br />
e a inspiração artística.<br />
Desta vez foram<br />
registados os Concertos<br />
em Lá menor (Wq. 166), Ré<br />
Maior (Wq. 13) e Lá Maior<br />
(Wq. 168). Este último é mais<br />
conhecido na sua versão para<br />
violoncelo,<br />
principalmente <strong>de</strong>vido<br />
ao genial “Largo con<br />
sordini”. Se esta página resulta muito<br />
bem com a sonorida<strong>de</strong> melancólica<br />
do violoncelo, Kossenko consegue<br />
recriar na flauta essa ambiência <strong>de</strong><br />
profunda tristeza, na qual o<br />
instrumento parece suspirar <strong>de</strong><br />
forma pungente. A música <strong>de</strong> C.P.E.<br />
Bach é <strong>de</strong> <strong>uma</strong> gran<strong>de</strong> originalida<strong>de</strong>,<br />
oscilando entre a elegância do estilo<br />
galante e as emoções carregadas e<br />
audácias da Empfindsamkeit (estilo<br />
da sensibilida<strong>de</strong>). O grupo Arte <strong>de</strong>i<br />
Suonatori realça com niti<strong>de</strong>z as suas<br />
cores, planos sonoros, harmonias e<br />
texturas inesperadas e Alexis<br />
Kossenko dá-nos <strong>uma</strong> lição <strong>de</strong><br />
subtileza, mas também <strong>de</strong><br />
virtuosismo, bem patente logo <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
o início no empolgante “Allegro<br />
assai” do Concerto em Lá menor.<br />
Igualmente bem sucedida é a<br />
colaboração <strong>de</strong> Kossenko com a<br />
Holland Baroque Society num<br />
recente CD da Channel Classics<br />
<strong>de</strong>dicado George Philipp Telemann<br />
(1681-1767), que por acaso era<br />
padrinho <strong>de</strong> C.P.E. Bach. Nele<br />
brilham também outros solistas<br />
como é o caso <strong>de</strong> Alfredo Bernardini<br />
(oboé), Jane Gower (fagote) ou Judith<br />
Olofsson (violoncelo) num<br />
interessante programa composto<br />
pela Ouverture em Mi menor<br />
(abertura seguida <strong>de</strong> danças em estilo<br />
francês) e por quatro Concertos: Ré<br />
Maior para duas flautas traverso,<br />
violino e violoncelo; Fá Maior, para<br />
flauta <strong>de</strong> bisel e fagote; Si bemol<br />
Maior para duas flautas traverso,<br />
oboé e violino; e Sol maior, para duas<br />
flautas traverso e fagote. A varieda<strong>de</strong><br />
tímbrica dos concertinos permite<br />
soluções musicais sempre diversas,<br />
que testemunham a fecunda<br />
imaginação <strong>de</strong> Telemann, e é objecto<br />
<strong>de</strong> um equilibrado diálogo entre<br />
todos os instrumentistas, pautado<br />
pelo rigor técnico e estilístico.<br />
Jazz<br />
Happy Billie<br />
Homenagem exuberante<br />
a Billie Holiday por Dee<br />
Dee Bridgewater, num<br />
registo que se afasta da<br />
espiritualida<strong>de</strong> sofrida da<br />
cantora. Rodrigo Amado<br />
Dee Dee Bridgewater<br />
Eleanora Fagan<br />
Emarcy, dist. Universal<br />
mmmmn<br />
Aviso inicial:<br />
quem procurar a<br />
espiritualida<strong>de</strong>,<br />
profundida<strong>de</strong> e<br />
sofrimento da<br />
música <strong>de</strong> Billie<br />
Holiday po<strong>de</strong><br />
aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />
Alexis Kossenko é um dos mais importantes<br />
fl autistas da actualida<strong>de</strong><br />
Dee Dee Bridgewater<br />
passar ao lado <strong>de</strong>ste registo. Em<br />
“Eleanora Fagan”, tributo da diva<br />
Dee Dee Bridgewater à genialida<strong>de</strong>,<br />
intensida<strong>de</strong> e coragem <strong>de</strong> Holiday,<br />
entra-se num universo <strong>de</strong> alegria,<br />
on<strong>de</strong> os versos são cantados com<br />
<strong>uma</strong> exuberância vocal que constitui<br />
o oposto à postura da homenageada.<br />
Nem mesmo na versão lenta <strong>de</strong><br />
“Strange Fruit”, <strong>uma</strong> das mais<br />
dramáticas canções <strong>de</strong> Holiday,<br />
Bridgewater consegue disfarçar <strong>uma</strong><br />
irreprimível alegria <strong>de</strong> viver que<br />
marca toda a sua música. Esta<br />
enorme contradição não evita, no<br />
entanto, que “Eleanora Fagan” seja<br />
um excelente álbum <strong>de</strong> jazz vocal.<br />
N<strong>uma</strong> gravação surpreen<strong>de</strong>ntemente<br />
menos produzida (no bom sentido)<br />
do que anteriores registos seus,<br />
Bridgewater ro<strong>de</strong>ia-se <strong>de</strong> um grupo<br />
notável – Edsel Gomez no piano<br />
(também responsável pelos arranjos),<br />
James Carter no saxofone e clarinete,<br />
Christian McBri<strong>de</strong> no contrabaixo e<br />
Lewis Nash na bateria – que,<br />
influenciados pelo fogo da cantora,<br />
fazem a festa, tocando também eles<br />
com <strong>uma</strong> exuberância rítmica e<br />
harmónica pouco habitual. O mote é<br />
dado na abertura do álbum, com<br />
“Lady sings the blues”, interpretada<br />
em andamento rápido, saltitante e<br />
impregnado <strong>de</strong> cores rhythm & blues.<br />
James Carter mostra <strong>de</strong> imediato que<br />
é a escolha certa para acompanhar<br />
Bridgewater nesta incursão porque<br />
ele é também pouco dado a tristezas<br />
ou gran<strong>de</strong>s subtilezas. Ao longo <strong>de</strong><br />
todo o disco, o swing é hard e os<br />
improvisos marcados pelo excesso e<br />
por <strong>uma</strong> enorme alegria musical,<br />
com <strong>de</strong>staque para a excelência<br />
instrumental <strong>de</strong> McBri<strong>de</strong>. Nos temas,<br />
todos eles clássicos do songbook <strong>de</strong><br />
Holiday, <strong>de</strong>staque para “Good<br />
morning heartache”, com um<br />
belíssimo solo <strong>de</strong> clarinete baixo,<br />
“Miss Brown to you”, drive rítmico<br />
imparável comandado pela bateria<br />
<strong>de</strong> Nash, e “Mother’s son-in-law”,<br />
dueto vibrante <strong>de</strong> voz e contrabaixo.<br />
Um registo on<strong>de</strong> Bridgewater faz<br />
recordar a gran<strong>de</strong> Ella<br />
Fitzgerald, mais do que<br />
Eleanora Fagan...também<br />
conhecida por Billie<br />
Holiday.<br />
Sem pressas<br />
A apresentação <strong>de</strong> um novo<br />
valor do saxofone.<br />
Nuno Catarino<br />
Gonçalo Prazeres<br />
Depois <strong>de</strong> Alg<strong>uma</strong> Coisa”<br />
Ed. Autor<br />
mmmnn<br />
Um disco <strong>de</strong>stes é<br />
sempre <strong>uma</strong> boa<br />
notícia para o<br />
panorama jazz<br />
nacional. Para<br />
muitos - a quem o<br />
nome <strong>de</strong> Gonçalo Prazeres seja ainda<br />
<strong>de</strong>sconhecido - <strong>de</strong>svenda um<br />
saxofonista <strong>de</strong> alto nível, músico <strong>de</strong><br />
boas i<strong>de</strong>ias, que sabe impor a sua<br />
personalida<strong>de</strong>, que dá importância à<br />
composição (todos os temas são<br />
originais). Prazeres conta aqui com o<br />
importante apoio <strong>de</strong> um grupo bem<br />
seleccionado: na guitarra está Nuno<br />
Costa, sóbrio mas preciso (que<br />
também lançou um óptimo disco <strong>de</strong><br />
estreia); no contrabaixo está o<br />
polivalente argentino-quaseportuguês<br />
Demian Cabaud; e na<br />
bateria fica Luís Can<strong>de</strong>ias, seguro<br />
ritmicamente. A presença do lusocanadiano<br />
Jeffery Davis acrescenta,<br />
com o seu vibrafone, alg<strong>uma</strong> cor ao<br />
som base do quarteto - confirme-se o<br />
tema “Exactissimamente”. As<br />
composições originais, vinculadas à<br />
tradição, nem sempre estão ao<br />
mesmo nível, mas funcionam como<br />
veículo para a expansivida<strong>de</strong> dos<br />
músicos, nomeadamente do sax alto<br />
<strong>de</strong> Prazeres, que exibe o seu fraseado<br />
sólido e vai procurando soluções,<br />
com resultados variáveis. A faixa que<br />
encerra o disco, a melancólica<br />
“Pouca Coisa”, <strong>de</strong>safia o ouvinte<br />
através do seu tempo lento: esta<br />
música é para ser<br />
consumida sem<br />
pressas.<br />
Gonçalo Prazeres: <strong>uma</strong><br />
boa notícia para o jazz<br />
PAULO PIMENTA/ PÚBLICO
Concertos<br />
Júlio Resen<strong>de</strong> International Quartet<br />
Jazz<br />
Festa!<br />
Na sua oitava edição, a Festa<br />
do Jazz homenageia o Hot<br />
Clube e afi rma-se, <strong>de</strong> novo,<br />
como o gran<strong>de</strong> balanço<br />
anual do jazz nacional.<br />
Rodrigo Amado<br />
Festa do Jazz<br />
<strong>Lisboa</strong>. Teatro <strong>Municipal</strong> <strong>de</strong> São Luiz. R. Antº Maria<br />
Cardoso, 38-58. Hoje, das 19h às 2h; amanhã e<br />
Dom., das 16h às 2h. Tel.: 213257650. 15€ a 30€.<br />
Com direcção artística <strong>de</strong> Carlos<br />
Martins, produção executiva <strong>de</strong> Luís<br />
Hilário e a energia criadora <strong>de</strong> Jorge<br />
Salavisa, a Festa do Jazz do São Luiz<br />
reafirma a ambiciosa vocação <strong>de</strong><br />
constituir o gran<strong>de</strong> balanço anual do<br />
jazz nacional, algo que tem<br />
conquistado por mérito próprio ao<br />
longo <strong>de</strong> sete festivas edições. O<br />
cenário é sempre o mesmo: casa<br />
cheia no São Luiz com um público<br />
formado por espectadores habituais,<br />
curiosos, alunos e a quase totalida<strong>de</strong><br />
dos jazzmen (e jazzgirls) nacionais;<br />
ambiente informal <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> alegria<br />
que parece contagiar tudo e todos;<br />
<strong>uma</strong> sucessão estonteante <strong>de</strong><br />
concertos a acontecer em diversos<br />
espaços, muitos <strong>de</strong>les memoráveis.<br />
Este ano, a festa começa com um<br />
espectáculo <strong>de</strong> homenagem ao Hot<br />
Clube - recordando o seu<br />
encerramento no final do ano<br />
passado, <strong>de</strong>vido a um incêndio – em<br />
que participam nomes tão diversos<br />
como Bernardo Sassetti, Camané,<br />
João Paulo, José Duarte, São José<br />
Lapa, Inês Laginha, Paulo Curado,<br />
João Lucas, Tiago Bettencourt e Vera<br />
Mantero, entre muitos outros. N<strong>uma</strong><br />
programação em que o gran<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>staque vai para a cerimónia <strong>de</strong><br />
apresentação dos combos das<br />
escolas jazz j <strong>de</strong> todo o país, p evento<br />
que constitui a alma da<br />
festa, têm ainda<br />
lugar concertos do<br />
Septeto do Hot<br />
Clube Clube <strong>de</strong><br />
Portugal, Portugal, da<br />
Saxofínia<br />
(ensemble <strong>de</strong><br />
saxofones) saxofones)<br />
com a Banda<br />
da Armada, do<br />
Bernardo<br />
Sassetti Trio, do<br />
Júlio Resen<strong>de</strong><br />
International<br />
Quartet, dos<br />
Tetterapa<strong>de</strong>qu, <strong>de</strong><br />
Carlos Bica &<br />
Matéria Prima, da<br />
Orquestra Jazz<br />
<strong>de</strong> Lagos<br />
e <strong>de</strong> um quarteto formado por<br />
André Fernan<strong>de</strong>s, Peter Ren<strong>de</strong>, Matt<br />
Pavolka e Jorge Rossy, entre muitos<br />
outros projectos, incluindo os<br />
“internacionais” Demian Cabaud e<br />
Bill McHenry. Uma programação<br />
alargada e variada cuja única<br />
limitação é <strong>uma</strong> fraca integração <strong>de</strong><br />
projectos ligados às áreas mais<br />
experimentais do jazz, componente<br />
essencial a <strong>uma</strong> completa e<br />
equilibrada visão do panorama jazz<br />
nacional.<br />
Pop<br />
Guitarra sem<br />
mapa<br />
O ex-guitarrista dos Harry<br />
Pussy entregou-se à guitarra<br />
acústica e fez um disco<br />
único. Apresenta-o hoje<br />
e amanhã, no Porto e em<br />
<strong>Lisboa</strong>. Pedro Rios<br />
Bill Orcutt<br />
Porto. Culturgest. Avenida dos Aliados, 104 - Edifício<br />
da CGD. Hoje, às 22h. Tel.: 222098116. 5€.<br />
<strong>Lisboa</strong>. MNAC - Museu do Chiado. Rua Serpa Pinto,<br />
4. Amanhã, às 22h. Tel.: 213432148. 7€.<br />
Aterrou em 2009 como um cometa:<br />
“A New Way To Pay Old Debts”,<br />
disco do norte-americano Bill<br />
Orcutt, não furou além dos círculos<br />
mais marginais, mas merecia outra<br />
sorte. Talvez não seja, porém, esse o<br />
seu <strong>de</strong>stino - é difícil, rugoso, feroz,<br />
características que não associamos<br />
imediatamente à guitarra acústica.<br />
Não andaremos longe da verda<strong>de</strong> se<br />
dissermos que há muito tempo que<br />
o instrumento não conhecia um<br />
disco assim. E não estamos sozinhos<br />
nesse elogio.<br />
Orcutt, que actua hoje e amanhã<br />
no Porto e em <strong>Lisboa</strong>,<br />
respectivamente, não é um novato.<br />
Andou nos Harry Pussy, banda<br />
fundamental do noise rock dos anos<br />
90, inspiração <strong>de</strong> meio<br />
“un<strong>de</strong>rground” norte-americano<br />
actual, dos Magik Markers a Chris<br />
Corsano. Depois <strong>de</strong> <strong>uma</strong> década écada <strong>de</strong><br />
silêncio, eis o seu primeiro o disco a<br />
solo. É um álbum sem gaveta eta na<br />
história da guitarra: po<strong>de</strong>m-se m-se<br />
referir a abordagem abstracta acta<br />
e intuitiva <strong>de</strong> Derek Bailey, , as<br />
“ragas” <strong>de</strong> John Fahey e,<br />
claro, os Harry Pussy<br />
<strong>de</strong>scarnados <strong>de</strong><br />
electricida<strong>de</strong>, mas são<br />
meras referências n<strong>uma</strong><br />
música sem mapa, nem<br />
escola.<br />
Gravado num quarto<br />
<strong>de</strong> um apartamento com<br />
meios primitivos (há<br />
autocarros e barulhos da<br />
rua a irromperem pelas<br />
peças), o álbum revela<br />
Bill Orcutt: é difícil, rugoso,<br />
feroz, características que não<br />
associamos à guitarra acústica<br />
um guitarrista totalmente<br />
expressivo, mesmo violento na sua<br />
relação com o instrumento, <strong>uma</strong><br />
velha guitarra que comprou em<br />
miúdo ligada a um amplificador<br />
encontrado na rua na década <strong>de</strong> 80.<br />
À guitarra, Orcutt retirou duas das<br />
seis cordas – técnica que já aplica<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1985 -, obtendo um som cru,<br />
sem adornos. “Se a música que estou<br />
a tocar soa <strong>de</strong> forma intensa, não é<br />
porque esteja a tentar tocar<br />
‘hardcore’”, disse ao “site” Foxy<br />
Digitalis. “É porque é isso que está<br />
<strong>de</strong>ntro da minha cabeça”.<br />
Nas margens com<br />
os Times New Viking<br />
Crystal Antlers + Times New<br />
Viking<br />
Porto. Plano B. R. Cândido dos Reis, 30. 3ª, 20, às<br />
22h. Tel.: 222012500. 10€ a 12€.<br />
Times New Viking + Lee Ranaldo<br />
& Rafael Toral<br />
<strong>Lisboa</strong>. Galeria Zé dos Bois. Rua da Barroca, 59 -<br />
Bairro Alto. 4ª, 21, às 22h. Tel.: 213430205. 10€.<br />
Os americanos Times New Viking<br />
são românticos no sentido em que<br />
acreditam que percorrer o mundo a<br />
tocar rock’n’roll em pequenas salas<br />
po<strong>de</strong> transformar o que quer que<br />
seja. A sua música reflecte esse<br />
romantismo: por baixo da carapaça<br />
<strong>de</strong> ruído agreste<br />
existem das<br />
melhores<br />
canções que<br />
ouvimos nos<br />
últimos<br />
anos.<br />
Times New Viking: são românticos, acreditam que<br />
percorrer o mundo a tocar rock’n’roll em pequenas<br />
salas po<strong>de</strong> transformar o que quer que seja<br />
“Born Again Revisited”, o álbum<br />
que apresentam no Porto (Plano B,<br />
terça) e em <strong>Lisboa</strong> (Galeria Zé dos<br />
Bois, quarta), foi o momento em que<br />
equilibraram <strong>de</strong>finitivamente a<br />
inteligibilida<strong>de</strong> com o apreço pela<br />
estética “lo-fi”. Definem-se como<br />
“artistas posando como músicos” e a<br />
sua linguagem está agora<br />
plenamente <strong>de</strong>finida. As teclas como<br />
zumbido contínuo (óptima<br />
assombração), as guitarras, coladas<br />
à bateria na mistura, funcionando<br />
como arma rítmica, e as vozes <strong>de</strong><br />
Jared Phillips, Beth Murphy e Adam<br />
Elliott reunidas para oferecer algo <strong>de</strong><br />
harmonioso à ferocida<strong>de</strong> da música.<br />
Habitualmente alinhados na vaga<br />
“lo fi” que, via No Age ou Wavves,<br />
vem alastrando nos EUA, os Times<br />
New Viking não <strong>de</strong>vem ficar “reféns”<br />
<strong>de</strong>sse cenário. A sua música<br />
transborda. São únicos e têm<br />
canções como “No time no hope” ou<br />
“Move to California” para o provar.<br />
Caminham pelas margens que<br />
interessam e os concertos serão <strong>uma</strong><br />
oportunida<strong>de</strong> única para<br />
experimentar o que <strong>de</strong> mais fértil e<br />
vibrante existe actualmente no<br />
rock’n’roll.<br />
A acompanhá-los estarão, no<br />
Porto, os também americanos<br />
Crystal Antlers, visão século XXI <strong>de</strong><br />
um “prog-rock” que correu bem, e,<br />
em <strong>Lisboa</strong>, Lee Ranaldo, guitarrista<br />
dos Sonic Youth que aproveita a<br />
passagem da sua banda por Portugal<br />
para actuar na Zé dos Bois em duo<br />
com o velho conhecido Rafael Toral.<br />
Mário Lopes<br />
The Horrors à flor<br />
da pele<br />
Crystal Castles + The Horrors<br />
<strong>Lisboa</strong>. Coliseu dos Recreios. R. Portas St. Antão, 96.<br />
Amanhã, às 21h. Tel.: 213240580. 25€.<br />
Ao princípio, os The Horrors eram<br />
<strong>uma</strong> daquelas bandas rock<br />
caracteristicamente britânicas,<br />
juvenis, empertigadas, algo<br />
irritantes. Depois, a pouco e pouco,<br />
foi-se percebendo que nem tudo era<br />
afectação, também existia<br />
substância. O segundo álbum,<br />
“Primary Colours“, Colours editado no ano<br />
passado, cons constituiu a prova<br />
<strong>de</strong>finitiva. HHoje,<br />
ao lado dos<br />
These New<br />
Puritans, Wild<br />
Beasts ou TThe<br />
xx, constituem<br />
a certeza <strong>de</strong><br />
que o rock não<br />
ortodoxo ortodo feito em<br />
Inglaterra Ingl possui<br />
grupos gr que vale a<br />
pena p seguir com<br />
atenção. Quem os<br />
viu ao vivo, no ano<br />
passado, em<br />
Pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Coura,<br />
pô<strong>de</strong> p verificá-lo<br />
n<strong>uma</strong> nu prestação<br />
excelente, excelen apesar <strong>de</strong> a<br />
maior parte p do público<br />
não os conhecer. Como<br />
as outras outr bandas
Concertos<br />
britânicas citadas, não ilu<strong>de</strong>m as<br />
suas referências – pós-punk, rock<br />
alemão dos anos 70 ou electrónicas<br />
– mas transcen<strong>de</strong>m-nas n<strong>uma</strong><br />
música simultaneamente nebulosa e<br />
celebradora, radora, quase sempre à flor da<br />
pele, impulsionada pela<br />
voz grave rave do<br />
gigante te<br />
Faris<br />
Badwan. wan. Já<br />
os<br />
The Horrors: quase sempre à fl or da pele<br />
Tradução<br />
PAULO EDUARDO CARVALHO<br />
Encenação<br />
NURIA MENCÍA<br />
Interpretação<br />
ALMENO GONÇALVES,<br />
ELISA LISBOA,<br />
JOSÉ MATA,<br />
NATÁLIA LUÍZA<br />
58 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />
Digressão<br />
canadianos Crystal Castles, que<br />
dividirão o protagonismo da noite<br />
com os ingleses, alimentam-se <strong>de</strong><br />
ritmos electrónicos, ruídos, vozes<br />
que parecem isentas <strong>de</strong> vida e<br />
alg<strong>uma</strong>s a gu as noções oções <strong>de</strong> canção ca ção clássica cássca que não recusam linhas<br />
experimentais. Promete.<br />
Vítor Belanciano<br />
Os Blasted<br />
Mechanism vão<br />
actuar no Festival val<br />
Glastonbury.<br />
A subida a um<br />
dos palcos mais<br />
conceituados do o<br />
mundo está marcada para<br />
27 <strong>de</strong> Junho, a noite que<br />
Clássica<br />
Ton<br />
Koopman, o<br />
“bachiano”<br />
compulsivo<br />
O maestro e cravista<br />
holandês e a Orquestra<br />
Barroca <strong>de</strong> Amesterdão<br />
interpretam na Gulbenkian<br />
alg<strong>uma</strong>s das mais<br />
fascinantes obras <strong>de</strong> Bach.<br />
Cristina Fernan<strong>de</strong>s<br />
The Amsterdam Baroque<br />
Orchestra<br />
Direcção Musical <strong>de</strong> Ton Koopman.<br />
Com Tini Mathot (cravo).<br />
<strong>Lisboa</strong>. Fundação e Museu Calouste Gulbenkian -<br />
Gran<strong>de</strong> Auditório. Avenida <strong>de</strong> Berna, 45A. Dom., 18,<br />
às 19h. Tel.: 217823700. 20€ a 40€.<br />
Ciclo <strong>de</strong> Música Antiga. Obras <strong>de</strong><br />
Bach.<br />
A “Oferenda Musical”, genial<br />
colectânea <strong>de</strong> peças criada por J. S.<br />
Bach a partir <strong>de</strong> um tema musical<br />
fornecido por Fre<strong>de</strong>rico II da Prússia,<br />
e o exuberante Concerto para Dois<br />
Cravos, em Dó Maior, BWV 1061,<br />
preenchem o aliciante programa que<br />
Ton Koopman e a Orquestra Barroca<br />
<strong>de</strong> Amesterdão apresentam domingo,<br />
às 19h, na Gulbenkian.<br />
Consi<strong>de</strong>rado um<br />
dos maiores<br />
Ton Koopman: um dos<br />
maiores expecialistas no<br />
reportório barroco<br />
en encerra<br />
o evento<br />
britânico. Ainda por<br />
terras <strong>de</strong> Sua Majesta<strong>de</strong>, a<br />
banda <strong>de</strong> Valdjiu também<br />
especialistas no âmbito do repertório<br />
barroco, Ton Koopman tem-se<br />
<strong>de</strong>dicado a explorar a obra <strong>de</strong> Bach<br />
<strong>de</strong> <strong>uma</strong> forma quase complulsiva,<br />
quer na sua activida<strong>de</strong> como cravista<br />
e organista, quer como maestro e<br />
musicólogo. Para além <strong>de</strong> ter gravado<br />
<strong>uma</strong> parte significativa das peças<br />
para cravo e da obra <strong>de</strong> câmara do<br />
gran<strong>de</strong> compositor alemão, registou,<br />
por exemplo, as principais peças<br />
orquestrais com a Orquestra Barroca<br />
<strong>de</strong> Amesterdão, a integral da<br />
produção organística e as gran<strong>de</strong>s<br />
obras corais. Entre 1994 e 2004<br />
realizou também o colossal projecto<br />
da gravação integral das cantatas<br />
sacras e profanas, constituindo assim<br />
<strong>uma</strong> excelente alternativa às integrais<br />
<strong>de</strong> Harnoncourt/Leonhardt, Helmut<br />
Rilling, John Eliot Gardiner e Masaaki<br />
Suzuki.<br />
A hipotética reconstrução da<br />
“Paixão segundo São Marcos”, que os<br />
Concertos Em Órbita/Portugal<br />
Telecom <strong>de</strong>ram a conhecer em<br />
Portugal no ano 2000, conta-se entre<br />
outras das suas gran<strong>de</strong>s aventuras<br />
“bachianas”. Mas se esta gerou<br />
gran<strong>de</strong> controvérsia, pelo menos no<br />
que diz respeito à pertinência da<br />
proposta e ao resultado final, no<br />
domínio do d mínio estritamente interpretativo<br />
a acção <strong>de</strong> Koopman é bem mais<br />
consensual. À parte ligeiras<br />
oscilações <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> que<br />
po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> um<br />
processo tão ambicioso<br />
tem t presença<br />
assegurada<br />
no festival <strong>de</strong><br />
Beather<strong>de</strong>r Be<br />
(a 2 <strong>de</strong><br />
Julho), Julho) <strong>de</strong> on<strong>de</strong> segue<br />
para a República Checa,<br />
on<strong>de</strong> aactuará<br />
no Rock for<br />
People, em Praga (4 <strong>de</strong><br />
Julho).<br />
O Quarteto Keller no Ciclo <strong>de</strong> Música <strong>de</strong> Câmara da Gulbenkian<br />
quanto intensivo <strong>de</strong> gravações,<br />
Koopman é indiscutivelmente um<br />
dos gran<strong>de</strong>s intérpretes do nosso<br />
tempo num repertório que se<br />
esten<strong>de</strong> dos alvores do barroco até<br />
Mozart, (apoiado num sólido estudo<br />
científico das fontes históricas) e <strong>uma</strong><br />
das mais eloquentes “vozes” da<br />
música <strong>de</strong> Bach.<br />
Húngaros e<br />
companhia pelo<br />
Quarteto Keller<br />
Quarteto Keller<br />
Com Dénés Várjon (piano), Szabolcs<br />
Zempleni (trompa).<br />
<strong>Lisboa</strong>. Fundação e Museu Calouste Gulbenkian -<br />
Auditório 2. Avenida <strong>de</strong> Berna, 45A. 3ª, 20, às 19h.<br />
Tel.: 217823700. 10€ a 20€.<br />
Ciclo <strong>de</strong> Música <strong>de</strong> Câmara. Obras<br />
<strong>de</strong> Ligeti, Bartók, Beethoven.<br />
O Quarteto Keller, o pianista Dénés<br />
Várjon e o trompista Szabolcs<br />
Zempleni protagonizam na próxima<br />
terça-feira, às 19h, um dos programas<br />
mais interessantes e coerentes do<br />
Ciclo <strong>de</strong> Música <strong>de</strong> Câmara da<br />
Gulbenkian, quer pela selecção <strong>de</strong><br />
compositores e obras interpretadas,<br />
quer pelo facto <strong>de</strong> não se cingir a<br />
composições <strong>de</strong>stinadas a <strong>uma</strong><br />
formação instrumental única. A<br />
música <strong>de</strong> György Ligeti domina o<br />
alinhamento proposto através <strong>de</strong><br />
diversas combinações tímbricas,<br />
incluindo os Quartetos <strong>de</strong> Cordas nº 1<br />
e nº2, a “Música Ricercata”, o Estudo<br />
para Piano nº4 (“Fanfares”) e o Trio<br />
para Violino, Trompa e Piano, que o<br />
compositor húngaro compôs como<br />
um tributo a Brahms, autor <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />
peça com a mesma instrumentação.<br />
Com a excepção da Gran<strong>de</strong> Fuga para<br />
Quarteto <strong>de</strong> Cordas op. 133, <strong>de</strong><br />
Beethoven, o programa centra-se nos<br />
compositores húngaros e romenos,<br />
contemplando também os 44 Duos<br />
para dois violinos Sz. 98, <strong>de</strong> Bela<br />
Bartók, e a Sonata para Violino e<br />
Piano op. 25 (“Dans le caractère<br />
populaire ro<strong>uma</strong>in”), <strong>de</strong> Georges<br />
Enesco. Efectivamente, este tem sido<br />
um repertório <strong>de</strong> eleição no percurso<br />
artístico do Quarteto Keller, fundado<br />
em 1987 no Conservatório <strong>de</strong> Música<br />
Franz Liszt, em Budapeste, e<br />
actualmente <strong>de</strong>tentor <strong>de</strong> um elevado<br />
estatuto no panorama musical<br />
internacional. C.F.
agenda<br />
sexta 16<br />
Mika + Virgem Suta<br />
<strong>Lisboa</strong>. Praça <strong>de</strong> Touros do Campo Pequeno.<br />
Campo Pequeno, às 22h. Tel.: 217820575. 30€ a 35€.<br />
David Fonseca<br />
Porto. Coliseu do Porto. R. Passos Manuel, 137, às<br />
21h30. Tel.: 223394947. 23€ a 27€.<br />
Sensational + Spectre + Black<br />
Chameleon<br />
<strong>Lisboa</strong>. Galeria Zé dos Bois. Rua da Barroca, 59 -<br />
Bairro Alto, às 23h. Tel.: 213430205. 8€.<br />
B Fachada + Carminho + Pedro<br />
Abrunhosa + Tiago Santos<br />
<strong>Lisboa</strong>. MusicBox. R. Nova do Carvalho, 24 - Cais do<br />
Sodré, às 23h. Tel.: 213430107. 10€.<br />
Mário Laginha e Orquestra<br />
Gulbenkian<br />
Direcção Musical <strong>de</strong> Cesário Costa.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Fundação e Museu Calouste Gulbenkian<br />
- Gran<strong>de</strong> Auditório. Avenida <strong>de</strong> Berna, 45A, às 11h e<br />
19h. Tel.: 217823700. 6€.<br />
James Hillard & Luke Howard +<br />
Mark Seven + Leonaldo <strong>de</strong><br />
Almeida + Mário Valente<br />
<strong>Lisboa</strong>. Lux Frágil. Av. Infante D. Henrique,<br />
Armazém A, às 23h00. Tel.: 218820890. Consumo<br />
mínimo.<br />
Foge Foge Bandido<br />
Torres Vedras. Teatro-Cine. Av. Tenente Valadim,<br />
19, às 21h30. Tel.: 261338131. 5€.<br />
Manel Cruz, o ex-Ornatos Violeta<br />
dotado <strong>de</strong> <strong>uma</strong> veia lírica ímpar,<br />
lançou-se a solo. Foge Foge Bandido<br />
é o nome do projecto com que se<br />
apresenta.<br />
Alasdair Roberts<br />
Guimarães. Centro Cultural Vila Flor. Avenida D.<br />
Afonso Henriques, 701, às 00h00.<br />
Tel.: 253424700. 4€.<br />
Terre Thaemlitz<br />
Porto. Museu <strong>de</strong> Serralves. Rua Dom João <strong>de</strong> Castro,<br />
210, às 22h00. Tel.: 226156500. 7,5€ (sujeito a<br />
<strong>de</strong>sconto). No auditório.<br />
Concerto-conferência “Rosary<br />
Novena for Gen<strong>de</strong>r Transitioning”.<br />
Ciclo Documente-se! 2010.<br />
Espectáculo em inglês.<br />
Terre Thaemlitz, ex-DJ <strong>de</strong> clubes<br />
transexuais nova-iorquinos, regressa<br />
a Portugal para <strong>uma</strong> série <strong>de</strong><br />
actuações: <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> passar pelo<br />
Festival <strong>Lisboa</strong>, Capital, República,<br />
Popular, dia 15 <strong>de</strong> Abril, vai a<br />
Serralves, dias 16 e 18, participar no<br />
ciclo “Documente-se!”.<br />
Carlos Zíngaro + Axel Dörner +<br />
Norbert Möslang<br />
<strong>Lisboa</strong>. Culturgest. Rua Arco do Cego - Edifício da<br />
CGD, às 21h30. Tel.: 217905155. 5€. No Pequeno<br />
Auditório.<br />
Ciclo<br />
Metasonic Metasonic III<br />
- Música<br />
Sonic Youth:<br />
palavras<br />
para quê?<br />
Manuel Paulo & Nancy Vieira<br />
Carnaxi<strong>de</strong>. Auditório <strong>Municipal</strong> Ruy <strong>de</strong> Carvalho.<br />
Centro Cívico <strong>de</strong> Carnaxi<strong>de</strong> - R. 25 <strong>de</strong> Abril, lote 5, às<br />
21h30. Tel.: 214170109. 5€.<br />
Sonorida<strong>de</strong>s 2010. Apresentação <strong>de</strong><br />
“Pássaro Cego”.<br />
Rodrigo Leão & Cinema<br />
Ensemble<br />
Castro Ver<strong>de</strong>. Cine-Teatro <strong>Municipal</strong> <strong>de</strong> Castro<br />
Ver<strong>de</strong>. R. Alexandre Herculano, às 21h30. Tel.:<br />
286328193. 5€.<br />
sábado 17<br />
Joana Amendoeira<br />
Porto. Coliseu do Porto. R. Passos Manuel, 137, às<br />
21h30. Tel.: 223394947. 10€ a 25€ (sujeito a<br />
<strong>de</strong>sconto).<br />
Os Quais + Brigada Victor Jara +<br />
Vitorino + Miguel Quintão<br />
<strong>Lisboa</strong>. MusicBox. R. Nova do Carvalho, 24 - Cais do<br />
Sodré, às 23h00. Tel.: 213430107. 10€.<br />
Martin Grubinger e Orquestra<br />
Nacional do Porto<br />
Porto. Casa da Música. Pç. Mouzinho <strong>de</strong><br />
Albuquerque, às 18h00. Tel.: 220120220. 16€.<br />
Jantar-concerto: 30€. Na Sala Suggia.<br />
Christian Muthspiel Trio<br />
Porto. Casa da Música. Pç. Mouzinho <strong>de</strong><br />
Albuquerque, às 22h00. Tel.: 220120220. 10€.<br />
Jantar-concerto: 22€. Na Sala 2.<br />
Áustria 2010.<br />
The Legendary<br />
Tigerman<br />
Vila Nova <strong>de</strong> Famalicão. Casa das Artes <strong>de</strong> Vila Nova<br />
<strong>de</strong> Famalicão. Pq. <strong>de</strong> Sinçães, às 21h30. Tel.:<br />
252371297. 10€. No Gran<strong>de</strong> Auditório.<br />
Apresentação <strong>de</strong> “Femina”. M/3.<br />
The Weatherman<br />
Vila Nova <strong>de</strong> Famalicão. Casa das Artes <strong>de</strong> Vila Nova<br />
<strong>de</strong> Famalicão. Pq. <strong>de</strong> Sinçães, às 23h00. Tel.:<br />
252371297. 5€.<br />
Foge Foge Bandido<br />
Guarda. Teatro <strong>Municipal</strong> da Guarda. Rua Batalha<br />
Reis, 12, às 21h30. Tel.: 271205241. 7,5€. No Gran<strong>de</strong><br />
Auditório.<br />
David Maranha<br />
Leiria. Teatro Miguel Franco (Centro Cultural <strong>de</strong><br />
Leiria). Largo Santana, às 22h00. Tel.: 244860480.<br />
4,5€ (sujeito a <strong>de</strong>sconto).<br />
Rodrigo Leão & Cinema<br />
Ensemble<br />
Guimarães. Centro Cultural Vila Flor. Avenida D.<br />
Afonso Henriques, 701, às 22h00. Tel.: 253424700.<br />
20€ (sujeito a <strong>de</strong>sconto).<br />
José Mário Branco<br />
Santarém. Teatro <strong>Municipal</strong> Sá da Ban<strong>de</strong>ira. R. João<br />
Afonso, 7/9, às 21h30. Tel.: 243309460. 5€.<br />
Sérgio Godinho<br />
Póvoa <strong>de</strong> Varzim. Casino da Póvoa. Ed. do Casino,<br />
às 20h30. Tel.: 252690888. 50€ (jantar-buffet +<br />
espectáculo).<br />
Divino So Sospiro<br />
Olhão. Auditório Auditór <strong>Municipal</strong> <strong>de</strong> Olhão. Av. Dr.<br />
Francisco Sá CCarneiro,<br />
lote B3 r/c, às 21h30. Tel.:<br />
289710170. 10€ a 12€.<br />
Luigi Arc Archetti<br />
+ Bo Wiget Wige<br />
<strong>Lisboa</strong>. Culturg Culturgest. Rua Arco do Cego - Edifício da<br />
CGD, às 21h30. 21h30 Tel.: 217905155. 5€.<br />
domingo d 18<br />
Mika no Campo Pequeno<br />
Jonathan J Ayerst<br />
Porto. P Casa da Música. Pç. Mouzinho<br />
<strong>de</strong> Albuquerque, às 12h00. Tel.:<br />
220120220. Entrada livre.<br />
Alasdair Roberts<br />
<strong>Lisboa</strong>. L Espaço Nimas. Av. 5 Outubro,<br />
42B, 42 às 21h30. Tel.: 213574362. 8€.<br />
António Zambujo<br />
Porto. Casa da Música. Pç. Mouzinho <strong>de</strong><br />
Albuquerque, às 21h30. Tel.: 220120220. 15€. Na<br />
Sala 2. Apresentação <strong>de</strong> “Guia”. Com os convidados<br />
Os Azeitonas.<br />
Terre Thaemlitz<br />
Porto. Museu <strong>de</strong> Serralves. Rua Dom João <strong>de</strong> Castro,<br />
210, às 21h30. Tel.: 226156500. 7,5€ (sujeito a<br />
<strong>de</strong>sconto).<br />
No auditório. Concerto-conferência<br />
“Traffic With The Devil”. Ciclo<br />
Documente-se! 2010. Espectáculo em<br />
inglês.<br />
Terre Thaemlitz, ex-DJ <strong>de</strong> clubes<br />
transexuais nova-iorquinos, regressa<br />
a Portugal para <strong>uma</strong> série <strong>de</strong><br />
actuações: <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> passar pelo<br />
Festival <strong>Lisboa</strong>, Capital, República,<br />
Popular, dia 15 <strong>de</strong> Abril, vai a<br />
Serralves, dias 16 e 18, participar no<br />
ciclo “Documente-se!”.<br />
terça 20<br />
Carmen Souza<br />
<strong>Lisboa</strong>. Museu do Oriente. Av. Brasília - Edifício<br />
Pedro Álvares Cabral - Doca <strong>de</strong> Alcântara Norte, às<br />
21h30. Tel.: 213585200. 15€. No auditório.<br />
Apresentação <strong>de</strong> “Protegid”.<br />
Mouth Of The Architect<br />
<strong>Lisboa</strong>. MusicBox. R. Nova do Carvalho, 24 - Cais do<br />
Sodré, às 22h00 (portas abrem às 21h30). Tel.:<br />
213430107. 12€.<br />
Motion Trio<br />
Com Rodrigo Amado (saxofone),<br />
Miguel Mira (violoncelo), Gabriel<br />
Ferrandini (bateria).<br />
Viseu. Teatro Viriato. Lg. Mouzinho Albuquerque, às<br />
22h00. Tel.: 232480110. 3,5€ (consumo mínimo).<br />
Café-concerto. M/12.<br />
Sonic Youth<br />
<strong>Lisboa</strong>. Coliseu dos Recreios. R. Portas St. Antão, 96,<br />
às 21h00 (portas abrem às 20h). Tel.: 213240580.<br />
26€ a 30€. Camarotes: 130€ a 180€.<br />
Apresentação <strong>de</strong> “The Eternal”. M/6.<br />
Coro e Orquestra Gulbenkian<br />
Com Miriam Gordon-Stuart<br />
(soprano), Ana Maria Pinto<br />
(soprano), Toby Spence (tenor),<br />
Hugo Oliveira (barítono). Maestro:<br />
Fernando Eldoro.<br />
<strong>Lisboa</strong>. Fundação e Museu Calouste Gulbenkian.<br />
Avenida <strong>de</strong> Berna, 45A. 5ª às 21h00, 6ª às 19h00.<br />
Tel.: 217823700. 15€ a 30€. No Gran<strong>de</strong> Auditório.<br />
Obras <strong>de</strong> Britten e Men<strong>de</strong>lssohn-<br />
Bartholdy.<br />
Trio<br />
Com Stefania Donzelli (soprano),<br />
Edoardo De Angelis (violino), Anna<br />
Barbero Beerwald (piano).<br />
Porto. Ateneu Comercial do Porto. R. Passos<br />
Manuel, 44, às 19h00. Tel.: 222005007. Entrada<br />
livre.<br />
Homenagem<br />
a Giovanni<br />
Battista<br />
Pergolesi.<br />
Legendary<br />
Tigerman em<br />
Famalicão<br />
Fumiyo Ikeda &<br />
Tim Etchells<br />
in pieces<br />
19 a 21 Abril 21h30 M/12<br />
apresentações no âmbito da re<strong>de</strong> co-financiado por<br />
www.teatromariamatos.pt<br />
dança<br />
música<br />
Felix Kubin +<br />
Pia Burnette<br />
& Felix Kubin<br />
24 Abril 22h00 M/6<br />
menores<br />
30 anos<br />
5€<br />
Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 59
Cinema<br />
série ípsilon II<br />
Sexta-feira,<br />
dia 23 <strong>de</strong> Abril,<br />
o DVD “Europa”,<br />
<strong>de</strong> Lars Von Trier<br />
Todas as sextas,<br />
por €1,95.<br />
20<br />
anos<br />
60 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />
“Thirst”: exuberante sangria esta para personagens assombradas<br />
por <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> vingança e encontrando a re<strong>de</strong>nção em lagos<br />
<strong>de</strong> sacrifício<br />
Estreiam<br />
Cenas da<br />
vida conjugal<br />
dos vampiros<br />
Um “épico intimista” (e<br />
erótico) que seguimos <strong>de</strong><br />
forma aci<strong>de</strong>ntada - como<br />
sempre com Park Chanwook.<br />
Vasco Câmara<br />
Thirst - Este é o meu sangue...<br />
Thirst/Bakjwi<br />
De Park Chan-wook,<br />
com Song Kang-ho, Kim Ok-vin. M/16<br />
MMMnn<br />
<strong>Lisboa</strong>: CinemaCity Campo Pequeno Praça <strong>de</strong><br />
Touros: Sala 7: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª<br />
13h55, 16h30, 19h, 21h50, 00h20; Me<strong>de</strong>ia<br />
Monumental: Sala 2: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª<br />
3ª 4ª 13h30, 16h05, 18h40, 21h30, 24h; UCI<br />
Cinemas - El Corte Inglés: Sala 1: 5ª 6ª Sábado 2ª<br />
3ª 4ª 15h, 18h, 21h30, 00h15 Domingo 11h30, 15h,<br />
18h, 21h30, 00h15;<br />
Porto: Arrábida 20: Sala 7: 5ª 6ª Sábado Domingo<br />
2ª 3ª 4ª 15h05, 18h10, 21h25, 00h30;<br />
Exuberante sangria, esta, para as<br />
personagens, assombradas por<br />
<strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> vingança e encontrando a<br />
re<strong>de</strong>nção em lagos <strong>de</strong> sacrifício, do<br />
coreano Park Chan-wook. Chama-se,<br />
aliás, o filme “Thirst: este é o meu<br />
sangue”. Junta a vibração mais<br />
iconoclasta e masculina <strong>de</strong> “Old<br />
Boy” (2003) e a se<strong>de</strong> <strong>de</strong> romanesco<br />
que encontramos num filme, mais<br />
feminino, se quisermos: o<br />
melodrama “Lady Vengeance”<br />
(2005).<br />
Mostra um padre em missão<br />
científica e h<strong>uma</strong>nitária em África,<br />
para testar <strong>uma</strong> nova vacina contra<br />
um vírus mortal. É infectado e...<br />
mutação... vampiro.<br />
Aquele que queria salvar os<br />
homens vê-se então obrigado a<br />
atirar-se ao pescoço <strong>de</strong>les - e <strong>de</strong>la, a<br />
frustrada dona <strong>de</strong> casa que vai<br />
excitar em si um “amour fou”.<br />
O que se passa aqui? Cenas da vida<br />
conjugal <strong>de</strong> um casal <strong>de</strong> vampiros:<br />
ele torturado pelas dúvidas (entre<br />
dois pecados, o <strong>de</strong> matar os homens<br />
e o <strong>de</strong> atentar contra a sua própria<br />
vida - o suicídio é pecado -, o que<br />
fazer?), ela <strong>de</strong>spertando para a<br />
sexualida<strong>de</strong>. Dissemos “Cenas da<br />
Vida Conjugal”? De Ingmar Bergman<br />
<strong>de</strong>vemos passar, então, a Oshima e<br />
ao “Império dos Sentidos” (do filme<br />
<strong>de</strong> vampiros).<br />
O que se passa aqui? Um filme<br />
aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />
intimista e erótico filmado como um<br />
épico. Que seguimos <strong>de</strong> forma<br />
aci<strong>de</strong>ntada, como sempre nos filmes<br />
<strong>de</strong> Park Chan-wook, que são feitos<br />
<strong>de</strong> vários filmes e géneros. Nunca é<br />
seguro que consigamos habitar com<br />
a mesma euforia todos esses<br />
“aci<strong>de</strong>ntes” - balançamos, somos<br />
atirados contra a pare<strong>de</strong>, cansamonos...<br />
Mas a viagem total agarra-nos.<br />
“Thirst: este é o meu sangue” é um<br />
filme que se recompõe, aliás,<br />
quando se olha retrospectivamente<br />
e se sossega: personagens, décores,<br />
guarda-roupa estiveram ali, afinal, a<br />
fazer parte do próprio “corpo” <strong>de</strong>sta<br />
experiência mutante. On<strong>de</strong> tudo se<br />
extinguiu e logo <strong>de</strong> seguida<br />
<strong>de</strong>sabrochou <strong>de</strong> acordo com as<br />
várias vidas e mortes das<br />
personagens...<br />
Retrato do artista<br />
árabe enquanto<br />
zombie<br />
O Tempo que Resta<br />
The Time That Remains<br />
De Elia Suleiman,<br />
com Ali Suliman, Elia Suleiman, Saleh<br />
Bakri.<br />
MMnnn<br />
<strong>Lisboa</strong>: Me<strong>de</strong>ia Monumental: Sala 1: 5ª 6ª Sábado<br />
Domingo 2ª 3ª 4ª 14h15, 16h45, 19h15, 21h45,<br />
00h15<br />
“O Tempo que Resta” tem um<br />
subtítulo, eventualmente mais<br />
luminoso (e menos enigmático): “a<br />
crónica <strong>de</strong> um presente ausente”.<br />
Esse presente (no entanto) ausente,<br />
ou esse ausente (ainda assim)<br />
presente, não é outro que não o<br />
próprio Elia Suleiman. Suleiman<br />
habita esta revisão memorialista e<br />
tragicómica da história <strong>de</strong> Israel (ou<br />
dos árabes <strong>de</strong> Israel, ou dos árabes<br />
em Israel) entre 1948 e a época<br />
contemporânea (o muro <strong>de</strong><br />
protecção, <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira alusão) em<br />
estado <strong>de</strong> “auto-zombificação”,<br />
testemunha atónita e silenciosa –<br />
quando aparece em carne e osso,<br />
para interpretar (no período que<br />
correspon<strong>de</strong> ao seu regresso do<br />
exílio) o papel do Suleiman adulto, a<br />
sua cara <strong>de</strong> palhaço triste (Buster<br />
Keaton, obviamente, é um mo<strong>de</strong>lo)<br />
torna fácil reparar que ele não diz<br />
<strong>uma</strong> única palavra. E <strong>de</strong>pois, tornase<br />
ainda mais fácil lembrar que<br />
mesmo os seus duplos da infância e<br />
da adolescência também não tinham<br />
aberto a boca para falar. Não <strong>de</strong>ixa<br />
<strong>de</strong> ser <strong>uma</strong> questão do filme: falar,<br />
para dizer o quê?<br />
Suleiman – como já tínhamos visto<br />
em “Intervenção Divina”, e talvez<br />
mais claramente no seu segmento<br />
do filme <strong>de</strong> conjunto “A Cada um o<br />
Seu Cinema” – tem <strong>uma</strong> dúvida para<br />
com os clássicos do burlesco,<br />
Keaton, Chaplin, também um pouco<br />
<strong>de</strong> Tati no apreço pelo “gag”<br />
minimalista (e diríamos: também o<br />
Sr Hulot era, antes do mais, <strong>uma</strong><br />
testemunha silenciosa). Mas na<br />
aliança entre o memorialismo <strong>de</strong> “O<br />
Tempo que Resta”, construído sobre<br />
passagens do diário do pai <strong>de</strong><br />
Suleiman e recordações do próprio<br />
cineasta, e a sua re-encenação da<br />
História como sucessão <strong>de</strong> rábulas, o<br />
ramo “familiar” <strong>de</strong> Suleiman liga-se<br />
mais directamente ao <strong>de</strong> cineastas<br />
como Fe<strong>de</strong>rico Fellini ou Otar<br />
Iosseliani: “O Tempo que Resta” tem<br />
um bocadinho <strong>de</strong> “Amarcord” (as<br />
memórias <strong>de</strong> infância n<strong>uma</strong><br />
articulação “incompleta” com o<br />
contexto histórico) e um bocadinho<br />
<strong>de</strong> um filme como “Brigands” (o<br />
filme em que Iosseliani con<strong>de</strong>nsou<br />
séculos <strong>de</strong> tragédias georgianas num<br />
enca<strong>de</strong>ado <strong>de</strong> peripécias burlescas).<br />
Há cenas que podiam vir <strong>de</strong> um<br />
filme (o coro <strong>de</strong> miúdos, árabes e<br />
ju<strong>de</strong>us pressupõe-se, a entoarem<br />
hinos a Israel, mais a projecção <strong>de</strong><br />
“Spartacus” com <strong>uma</strong> professora<br />
perfeitamente “castradora”) e <strong>de</strong><br />
outro (logo a abrir, o soldado que em<br />
1948 não sabe se há <strong>de</strong> ir para leste<br />
ou oeste, norte ou sul, e mais tar<strong>de</strong> o<br />
gag do rapaz árabe e do tanque <strong>de</strong><br />
guerra, cenas tão iosselianianas<br />
como as outras são fellinianas). Mais<br />
problemático é o fio alegórico que<br />
vem unir a diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sta<br />
narração fragmentada, a sensação<br />
<strong>de</strong> que em <strong>de</strong>masiados momentos<br />
Suleiman troca a espontaneida<strong>de</strong> do<br />
que está a acontecer pela carga<br />
(pesada) do que é suposto ver-se no<br />
lugar do que está a acontecer – pela<br />
“metáfora”, em s<strong>uma</strong>. Esta espécie<br />
<strong>de</strong> apelo à “interpretação” torna-se<br />
cansativa, simples ocultação do<br />
“sentido” mais do que sua<br />
problematização. Quando o
Sexta, 16<br />
12 Homens em Fúria<br />
Twelve Angry Men<br />
De Sidney Lumet 15h30 - Sala Félix Ribeiro<br />
At Long Last Love<br />
De Peter Bogdanovich 19h - Sala Félix<br />
Ribeiro<br />
O Adversário<br />
L’ Adversaire<br />
De Nicole Garcia 19h30 - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />
Gerry<br />
De Gus Van Sant 21h30 - Sala Félix Ribeiro<br />
Daisy Miller - Uma Mulher às<br />
Direitas<br />
Daisy Miller<br />
De Peter Bogdanovich 22h - Sala Luís <strong>de</strong><br />
Pina<br />
Sábado, 17<br />
O Solteirão e a Pequena<br />
The Bachelor and the Bobby-<br />
Soxer<br />
De Irving Reis 15h30 - Sala Félix Ribeiro<br />
Suleiman adulto aparece para<br />
transformar o filme n<strong>uma</strong> história <strong>de</strong><br />
fantasmas, a coisa compõe-se: a<br />
in<strong>de</strong>cifrabilida<strong>de</strong> do seu olhar<br />
transmite-se às cenas, que <strong>de</strong><br />
“metafóricas” passam a<br />
“exemplares” (como a dos<br />
miúdos árabes na discoteca, surdos<br />
às intimações dos soldados).<br />
Preferimos esta tristeza<br />
contemplativa, mas talvez<br />
chegue <strong>de</strong>masiado tar<strong>de</strong>,<br />
n<strong>uma</strong> altura em que, ao filme,<br />
pouco tempo resta.<br />
Luís Miguel Oliveira<br />
As estrelas do público<br />
Jorge<br />
Mourinha<br />
Luís M.<br />
Oliveira<br />
Mário<br />
J. Torres<br />
Vasco<br />
Câmara<br />
Alice no País das Maravilhas mmnnn mmmmn mmmmn mmnnn<br />
Ervas Daninhas nnnnn mmmnn mmmmm mmmmn<br />
GreenZone: Combate pela Verda<strong>de</strong> nnnnn nnnnn mmnnn nnnnn<br />
Pare, Escute e Olhe nnnnn mnnnn mmnnn mnnnn<br />
Parnassus - O Homem que Queria Enganar o Diabo mmmnn nnnnn nnnnn mnnnn<br />
Ruínas mmmmn mmmmn mmmmn mmmnn<br />
O Tempo que Resta mmmnn mmnnn nnnnn mmnnn<br />
Um Lugar para Viver nnnnn nnnnn mmmnn nnnnn<br />
Um Sonho Possível nnnnn nnnnn mmnnn nnnnn<br />
Thirst nnnnn nnnnn nnnnn mmmnn<br />
Cinemateca Portuguesa R. Barata Salgueiro, 39 <strong>Lisboa</strong>. Tel. 213596200<br />
Heróis Esquecidos<br />
The Roaring Twenties<br />
De Raoul Walsh 19h - Sala Félix Ribeiro<br />
La Lutte Pour La Vie<br />
De Ferdinand Zecca 19h30 - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />
Madame <strong>de</strong>...<br />
De Max Ophüls 21h30 - Sala Félix Ribeiro<br />
O Animal <strong>de</strong> Aço<br />
Der Stahltier<br />
De Willy Zielke 22h - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />
Segunda, 19<br />
Os Alegres Namorados<br />
Continuam<br />
“O Tempo que Resta”: a re-encenação da História<br />
como sucessão <strong>de</strong> rábulas<br />
Green Zone: Combate pela<br />
Verda<strong>de</strong><br />
Green Zone<br />
De Paul Greengrass,<br />
com Matt Damon, Jason Isaacs, Greg<br />
Kinnear. M/16<br />
MMnnn<br />
<strong>Lisboa</strong>: Castello Lopes - Cascais Villa: Sala 4: 5ª 2ª<br />
3ª 4ª 15h40, 18h30, 21h30 6ª 15h40, 18h30, 21h30,<br />
24h Sábado 12h50, 15h40, 18h30, 21h30, 24h<br />
Domingo 12h50, 15h40, 18h30, 21h30; CinemaCity<br />
Alegro Alfragi<strong>de</strong>: Sala 7: 5ª 6ª Sábado Domingo<br />
Summer Holiday<br />
De Rouben Mamoulian 15h30 - Sala Félix<br />
Ribeiro<br />
Ser Ou Não Ser<br />
To Be Or Not To Be<br />
De Ernst Lubitsch 19h - Sala Félix Ribeiro<br />
At Long Last Love<br />
De Peter Bogdanovich 19h30 - Sala Luís <strong>de</strong><br />
Pina<br />
Os Inadaptados<br />
The Misfi ts<br />
De John Huston 21h30 - Sala Félix Ribeiro<br />
Eika Katappa<br />
De Werner Schroeter 22h - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />
Terça, 20<br />
O Expresso Bagdad-Istambul<br />
Background to Danger<br />
De Raoul Walsh 15h30 - Sala Félix Ribeiro<br />
Matar ou não Matar<br />
In a Lonely Place<br />
De Nicholas Ray 19h - Sala Félix Ribeiro<br />
O Tesouro <strong>de</strong> Arne<br />
Herr Arnes Pengar<br />
2ª 3ª 4ª 13h50, 16h15, 18h40, 21h50,<br />
00h10; CinemaCity Campo Pequeno Praça <strong>de</strong><br />
Touros: Sala 6: 5ª 6ª 2ª 3ª 4ª 14h10, 16h25,<br />
18h50, 22h05, 00h30 Sábado Domingo 11h55,<br />
14h10, 16h25, 18h50, 22h05, 00h30; Me<strong>de</strong>ia<br />
Saldanha Resi<strong>de</strong>nce: Sala 8: 5ª 6ª Sábado<br />
Domingo 2ª 3ª 4ª 14h, 16h30, 19h, 21h30, 24h; UCI<br />
Cinemas - El Corte Inglés: Sala 13: 5ª 6ª Sábado 2ª<br />
3ª 4ª 14h, 16h35, 19h05, 22h, 00h25 Domingo<br />
11h30, 14h, 16h35, 19h05, 22h, 00h25; ZON<br />
Lusomundo Alvaláxia: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª<br />
3ª 4ª 13h40, 16h15, 18h50, 21h30, 00h15; ZON<br />
Lusomundo Amoreiras: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª<br />
3ª 4ª 13h, 15h50, 18h30, 21h20, 24h; ZON<br />
Lusomundo CascaiShopping: 5ª 6ª Sábado<br />
Domingo 2ª 3ª 4ª 12h50, 18h15, 23h50; ZON<br />
Lusomundo Colombo: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª<br />
3ª 4ª 12h50, 15h35, 18h15, 21h05, 23h45; ZON<br />
Lusomundo Dolce Vita Miraflores: 5ª Domingo 2ª<br />
3ª 4ª 15h10, 18h10, 21h10 6ª Sábado 15h10, 18h10,<br />
21h10, 00h10; ZON Lusomundo Oeiras Parque: 5ª<br />
6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h, 15h45, 18h25,<br />
21h20, 24h; ZON Lusomundo Almada Fórum: 5ª 6ª<br />
Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h20, 16h10, 18h50,<br />
21h35, 00h15; ZON Lusomundo Fórum Montijo: 5ª<br />
6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 15h50, 21h25;<br />
Porto: Arrábida 20: Sala 11: 5ª 6ª Sábado<br />
Domingo 2ª 14h05, 16h45, 19h20, 22h, 00h35 3ª 4ª<br />
16h45, 19h20, 22h, 00h35; ZON Lusomundo Dolce<br />
Vita Porto: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª<br />
13h30, 16h20, 19h10, 21h50, 00h35; ZON<br />
Lusomundo Marshopping: 5ª 6ª Sábado Domingo<br />
2ª 3ª 4ª 13h40, 16h10, 18h50, 21h30, 00h10; ZON<br />
Lusomundo Parque Nascente: 5ª 6ª 2ª 3ª 4ª<br />
12h50, 15h30, 18h20, 21h20, 00h10 Sábado<br />
Domingo 21h20, 00h10;<br />
Sem que se saiba muito bem explicar<br />
porquê, Matt Damon permanece<br />
<strong>uma</strong> das gran<strong>de</strong>s estrelas do cinema<br />
americano e “Green Zone”, mais<br />
<strong>uma</strong> variação sobre a Guerra no<br />
Iraque, agora cruzada com <strong>uma</strong><br />
espécie <strong>de</strong> infindável “thriller”<br />
político, a trazer sauda<strong>de</strong>s dos filmes<br />
<strong>de</strong> espionagem (investigação parece<br />
ser neste momento o termo na<br />
moda) e a causar alg<strong>uma</strong>s pequenas<br />
<strong>de</strong>silusões, funciona como um<br />
veículo (ainda há veículos para as<br />
estrelas?) por medida. Novida<strong>de</strong>s<br />
não há muitas, a acção não abunda:<br />
tudo está no sítio certo, as<br />
conclusões são as esperadas, o herói<br />
limita-se a <strong>de</strong>scobrir o que já<br />
De Mauritz Stiller 19h30 - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />
Alvos<br />
Targets<br />
De Peter Bogdanovich 21h30 (em<br />
complemento, a curta “Esercizio di Lingua, <strong>de</strong> David<br />
Barros) - Sala Félix Ribeiro<br />
O Vento<br />
The Wind<br />
De Victor Sjöström 22h - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />
Quarta, 21<br />
Rua Sem Lei<br />
A Lawless Street<br />
De Joseph H. Lewis 15h30 - Sala Félix Ribeiro<br />
Uma História <strong>de</strong> Violência<br />
A History of Violence<br />
De David Cronenberg 19h - Sala Félix<br />
Ribeiro<br />
Alguns Dias na Vida <strong>de</strong> Oblomov<br />
Neskolko dnej iz zhizni I.I.<br />
Oblomova<br />
De Nikita Mikhalkov 19h30 - Sala Luís <strong>de</strong><br />
Pina<br />
La Cicatrice Intérieure<br />
Gerry, <strong>de</strong> Gus Van Sant<br />
De Philippe Garrel 21h30 (em complemento, a<br />
curta “Simon <strong>de</strong>l Disierto”, <strong>de</strong> Luis Buñuel) - Sala<br />
Félix Ribeiro<br />
O Padre e a Moça<br />
De Joaquim Pedro <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> 22h (em<br />
complemento, a curta “Brasília: Contradições <strong>de</strong><br />
<strong>uma</strong> Cida<strong>de</strong> Nova”, <strong>de</strong> Joaquim Andra<strong>de</strong>) - Sala Luís<br />
<strong>de</strong> Pina<br />
Quinta, 22<br />
O Preço do Silêncio<br />
The Liberation of L. B. Jones<br />
De William Wyler 15h30 - Sala Félix Ribeiro<br />
Cruel Vitória<br />
Bitter Victory<br />
De Nicholas Ray 19h - Sala Félix Ribeiro<br />
Parada<br />
Para<strong>de</strong><br />
De Jacques Tati 19h30 - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />
Song of Love<br />
De Clarence Brown 21h30 - Sala Félix Ribeiro<br />
Alvos<br />
Targets<br />
De Peter Bogdanovich 22h - Sala Luís <strong>de</strong> Pina<br />
Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 61
Cinema<br />
“Greenzone”: novida<strong>de</strong>s não há muitas<br />
todos sabíamos. Resta um filme<br />
cumpridor, arr<strong>uma</strong>dinho, bem<br />
estruturado. As armas secretas <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>struição <strong>de</strong> Saddam Hussein não<br />
existiam, a imaginação criativa<br />
também não e a energia <strong>de</strong> Damon<br />
fica à espera <strong>de</strong> melhores dias, sem<br />
que possamos realmente afirmar<br />
que se per<strong>de</strong>u tudo. Nem sim, nem<br />
não, nem antes pelo contrário.<br />
Mário Jorge Torres<br />
As Ervas Daninhas<br />
Les herbes folles<br />
62 • Sexta-feira 16 Abril 2010 • Ípsilon<br />
De Alain Resnais,<br />
com André Dussollier, Sabine Azéma,<br />
Emmanuelle Devos, Anne Consigny.<br />
M/12<br />
MMMnn<br />
<strong>Lisboa</strong>: Me<strong>de</strong>ia Fonte Nova: Sala 2: 5ª 6ª 2ª 3ª 4ª<br />
14h10, 16h30, 19h, 21h30 Sábado Domingo 16h30,<br />
19h, 21h30; Me<strong>de</strong>ia King: Sala 1: 5ª Domingo 3ª 4ª<br />
13h40, 15h45, 17h50, 19h55, 22h 6ª Sábado 2ª<br />
13h40, 15h45, 17h50, 19h55, 22h, 00h30;<br />
Porto: Me<strong>de</strong>ia Cida<strong>de</strong> do Porto: Sala 1: 5ª 6ª<br />
Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 14h30, 17h, 19h30, 22h;<br />
Jogo perigoso, o <strong>de</strong> Alain Resnais:<br />
“As Ervas Daninhas”: gran<strong>de</strong> “cocktail”, engenhoso e brilhante,<br />
mas também um nadinha auto-<strong>de</strong>strutivo<br />
como se, a<strong>de</strong>pto da narração<br />
labiríntica e/ou folhetinesca (<strong>de</strong><br />
“Hiroxima” aos “Corações”, isto<br />
sempre esteve nele), enfrentasse<br />
frontalmente (para os “<strong>de</strong>sviar”,<br />
para os “subverter”, para os<br />
“homenagear” – as expressões, no<br />
caso, equivalem-se) os gran<strong>de</strong>s<br />
mo<strong>de</strong>los contemporâneos <strong>de</strong>sse tipo<br />
<strong>de</strong> construção narrativa – as séries<br />
americanas, <strong>de</strong> que Resnais tantas<br />
vezes se tem dito a<strong>de</strong>pto. A novida<strong>de</strong><br />
das “Ervas Daninhas” é que <strong>de</strong>sta<br />
vez se acrescenta ou parece<br />
acrescentar (<strong>de</strong>senfreadamente) um<br />
confronto com estereótipos visuais<br />
– aquela fotografia cheia <strong>de</strong> filtros,<br />
aquela imagem mais do que “limpa”,<br />
“asséptica”, aqueles ralentis (por<br />
exemplo, a mala <strong>de</strong> Sabine Azéma a<br />
voar) que parecem respon<strong>de</strong>r a <strong>uma</strong><br />
imagem publicitária. Gran<strong>de</strong><br />
“cocktail”, portanto: engenhoso e<br />
brilhante, mas também um nadinha<br />
auto-<strong>de</strong>strutivo (à força <strong>de</strong> irrisão<br />
em nome próprio), sem a “gravitas”<br />
<strong>de</strong> “Corações”. L.M.O.<br />
Pare, Escute e Olhe<br />
De Jorge Pelicano,<br />
com . M/12<br />
Mnnnn<br />
<strong>Lisboa</strong>: CinemaCity Classic Alvala<strong>de</strong>: Sala 4: 5ª<br />
Domingo 2ª 3ª 4ª 13h30, 15h40, 17h40, 19h40,<br />
21h40 6ª Sábado 13h30, 15h40, 17h40, 19h40,<br />
21h40, 00h10; ZON Lusomundo Amoreiras: 5ª 6ª<br />
Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 12h50, 17h50, 23h20;<br />
Porto: ZON Lusomundo Parque Nascente: 5ª 6ª<br />
Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h15, 15h50, 19h,<br />
21h50;<br />
Reportagem gentil e bem<br />
intencionada, inofensiva até no seu<br />
<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> <strong>uma</strong> “irreverência” muito<br />
submetida aos códigos do humor<br />
televisivo mais em voga. Se tem os<br />
seus fãs – como se tem visto – arrisca<br />
tornar-se em “cause célèbre” (enfim,<br />
“semi-célèbre”) da discussão sobre<br />
as fronteiras entre a reportagem<br />
televisiva e o documentário<br />
cinematográfico (discussão espúria,<br />
dizem alguns: o tanas, é justamente<br />
a discussão que importa ter). Em<br />
todo o caso, essa é aqui <strong>uma</strong> questão<br />
central: ou não é a “atenção” do<br />
filme (<strong>uma</strong> atenção cuja sincerida<strong>de</strong><br />
aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />
“Pare, Escute e Olhe”: convencional (e algo<br />
folclórico) ponto <strong>de</strong> vista televisivo?<br />
não se questiona) ao Tua, às pessoas<br />
do Tua, <strong>uma</strong> atenção que nunca se<br />
sobrepõe a <strong>uma</strong> “distância” (nós/<br />
Cineclubes para mais informações consultar www.fpcc.pt<br />
Cine-Teatro S. Pedro<br />
Largo S. Pedro- Abrantes<br />
Afterschool<br />
De António Campos 21/4, 21h30<br />
Cinema Teixeira<br />
<strong>de</strong> Pascoaes<br />
Centro Comercial Santa Luzia - Amarante<br />
Taking Woodstock + Arena<br />
De Ang Lee + João Salaviza 16/4, 21h30<br />
Cinema Ver<strong>de</strong> Viana<br />
Praça 1º <strong>de</strong> Maio, Centro Comercial - Viana do<br />
Castelo<br />
Bright Star - Estrela Cintilante<br />
De Jane Campion 22/4, 21h45<br />
Auditório Soror<br />
Mariana<br />
Pátio do Salema, 3ª – Évora<br />
A Estrada<br />
De John Hillcoat 21/4, 21h30<br />
Teatro Cinema Fafe<br />
Rua Monsenhor Vieira <strong>de</strong> Castro - Fafe<br />
Ágora<br />
De James Cameron 9 e 10/4, 22h e 11/4,<br />
15h30 21h30 - Sala Manoel <strong>de</strong> Oliveira<br />
Auditório do IPJ (Faro)<br />
Rua da PSP - Faro<br />
Moon - O outro lado da lua<br />
De Duncan Jones 19/4, 21h30<br />
Centro Cultural Vila<br />
Flor<br />
Av. D. Afonso Henriques, 701 - Guimarães<br />
Nas Nuvens<br />
De Jason Reitman 18/4, 21h45 - Pequeno<br />
Auditório<br />
Morrer Como um Homem<br />
De João Pedro Rodrigues 22/4, 21h45h -<br />
Pequeno Auditório<br />
eles) herdada dum convencional (e<br />
algo folclórico) ponto <strong>de</strong> vista<br />
televisivo? L.M.O.<br />
Teatro Faialense<br />
Alameda Barão <strong>de</strong> Roches, 31 – Faial (Açores)<br />
Bright Star - Estrela Cintilante<br />
De Jane Campion 20/4, 21h30<br />
Casa das Artes <strong>de</strong> Vila<br />
Nova <strong>de</strong> Famalicão<br />
Parque <strong>de</strong> Sinçães – Famalicão<br />
O Laço Branco<br />
De Michael Haneke 22/4, 21h30h - Pequeno<br />
Auditório<br />
Cinemas Ria Shoping<br />
Estrada Nacional 125, 100 - Olhão<br />
Bombón: El Perro<br />
De Carlos Sorin 20/4, 21h30<br />
Capela Românica<br />
<strong>de</strong> Cedofeita<br />
Rua Passos Manuel, 137 - Porto<br />
Auto <strong>de</strong> Florípes<br />
De Lopes Fernan<strong>de</strong>s 17/4, 21h30<br />
Teatro Sá da Ban<strong>de</strong>ira<br />
Rua João Afonso - Santarém<br />
Cartas a Uma Ditadura<br />
De Inês <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros, 2006, M/12<br />
21/4, 21h30<br />
Cine-Teatro António<br />
Pinheiro<br />
R. Guilherme Gomes Fernan<strong>de</strong>s, 5 - Tavira<br />
Tudo Po<strong>de</strong> Dar Certo<br />
De Woody Allen 18/4, 21h30<br />
Uma Outra Educação<br />
De Lone Scherfig 22/4, 21h30<br />
Teatro <strong>Municipal</strong><br />
<strong>de</strong> Vila do Con<strong>de</strong><br />
Av. João Canavarro - Vila do Con<strong>de</strong><br />
O Laço Branco<br />
De Michael Haneke, 2009,M/16 18/4-<br />
16h00 e 21h45<br />
Auditório do IPJ<br />
(Viseu)<br />
R. Dr. Aresti<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sousa Men<strong>de</strong>s, 33 - Viseu<br />
Sobre a Água - Compilação <strong>de</strong> 3<br />
curtas<br />
De Rodrigo Areias; André Gil Mata; F.<br />
J. Ossang 20/4, 21h45
DVD<br />
Cinema<br />
França<br />
confi <strong>de</strong>ncial<br />
Uma fábula menor <strong>de</strong> Ozon<br />
sobre um bebé proletário<br />
voador e <strong>uma</strong> engenhosa<br />
adaptação por Honoré <strong>de</strong><br />
um romance clássico aos<br />
liceus contemporâneos<br />
– ou dois fi lmes que<br />
mereciam mais do que<br />
sair directamente em DVD.<br />
Jorge Mourinha<br />
A Bela Junie<br />
La Belle<br />
Personne<br />
<strong>de</strong> Christophe<br />
Honoré, com Léa<br />
Seydoux, Louis<br />
Garrel, Grégoire<br />
Leprince-Ringuet<br />
Clap Filmes<br />
mmmmn<br />
Sem Extras<br />
Ricky<br />
<strong>de</strong> François Ozon,<br />
com Alexandra<br />
Lamy, Sergi Lopez,<br />
Mélusine Mayance<br />
Clap Filmes<br />
mmnnn<br />
Sem Extras<br />
Há qualquer coisa <strong>de</strong> triste – e, <strong>de</strong><br />
caminho, <strong>de</strong> profundamente<br />
preocupante – quando a exibição<br />
portuguesa não consegue abrir<br />
espaço para estrear em sala<br />
cineastas que a distribuição apoiou<br />
durante anos ou filmes que<br />
mereceriam ser mostrados em vez<br />
<strong>de</strong> muitos dos objectos que entopem<br />
os écrãs. No caso: dois cineastas<br />
franceses cuja j obra tem sido<br />
sistematicamente dis distribuída<br />
em Portugal – até eestes<br />
dois<br />
filmes que não viram vir<br />
exibição comercial comercia (para<br />
lá <strong>de</strong> passagens pelo pe<br />
Indie<strong>Lisboa</strong> 2009) 200<br />
terem posto<br />
“Ricky”: um fi lme que confundiu todos<br />
aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente Excelente<br />
um “travão” nesse<br />
acompanhamento.<br />
Christophe Honoré tornou-se<br />
n<strong>uma</strong> pequena coqueluche com o<br />
duplo KO <strong>de</strong> “Em Paris” (2006) e “As<br />
Canções <strong>de</strong> Amor” (2007), François rançois<br />
Ozon teve um sucesso assinalável lável<br />
com “8 Mulheres” (2001) e é dos<br />
raros franceses contemporâneos neos<br />
cuja obra chegou quase toda às<br />
nossas salas (e “Le Refuge”, o filme<br />
que rodou a seguir a “Ricky”, , já está<br />
agendado para estreia). No<br />
entanto, nem “A Bela Junie” nem<br />
“Ricky” encontraram o caminho nho<br />
das nossas salas, por razões que<br />
ficarão inexplicadas.<br />
Admissivelmente, “Ricky” é<br />
um Ozon menor, que aliás<br />
confundiu a crítica e os<br />
observadores <strong>de</strong>vido à sua<br />
aparente esquizofrenia<br />
estilística. A história do bebé<br />
nascido a um casal operário<br />
<strong>de</strong> Amiens que literalmente<br />
começa a ganhar asas, e do<br />
modo como essa bizarria<br />
afecta a dinâmica familiar, é<br />
<strong>uma</strong> estranha confluência <strong>de</strong> drama<br />
familiar, “problem picture”, sátira<br />
social, fábula negra e conto <strong>de</strong> fadas<br />
surreal rodada com a frieza<br />
observacional que parece ser típica<br />
do realizador. É um exercício<br />
intrigante que explora um dos temas<br />
centrais da obra do realizador (as<br />
fraquezas e forças dos laços<br />
familiares) e remete para os seus<br />
primeiros e mais provocadores<br />
filmes (“Sitcom”, 1997, em<br />
particular), concentrando em hora e<br />
meia a sua atracção camaleónica por<br />
explorar e experimentar géneros e<br />
estilos. Mas, se Ozon consegue<br />
reconstituir na perfeição o ambiente<br />
<strong>de</strong> mal-estar que esta adaptação<br />
livre <strong>de</strong> um conto da escritora Rose<br />
Tremain exige, nunca consegue fixar<br />
um tom único que o salve da<br />
estranheza irredutível. Não é<br />
improvável que fosse essa a vonta<strong>de</strong><br />
do cineasta, mas “Ricky” é um<br />
“passo atrás” para longe do<br />
território emocional dos anteriores<br />
“O Tempo que Resta” (2005) e<br />
“Angel – Encanto e Sedução” (2007),<br />
como quem regressa a <strong>uma</strong> zona <strong>de</strong><br />
conforto para lamber feridas antes<br />
<strong>de</strong> partir em novas direcções.<br />
Já “A Bela Junie” é um outro<br />
animal – rodado para televisão, nele<br />
Christophe Honoré prossegue a<br />
exploração sôfrega e urgente <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />
irreverência e <strong>de</strong> <strong>uma</strong> liberda<strong>de</strong><br />
formais herdadas da Nouvelle<br />
Vague, mas aqui lastrada pela<br />
gravida<strong>de</strong> física da narrativa <strong>de</strong><br />
amores <strong>de</strong>sencontrados que lhe está<br />
na base. Essa base é “A Princesa <strong>de</strong><br />
Clèves”, o clássico da literatura<br />
francesa que Madame <strong>de</strong> Lafayette<br />
escreveu no século XVII (e que<br />
inspirou “A Carta” a Manoel <strong>de</strong><br />
Oliveira), cuja história <strong>de</strong> <strong>uma</strong> jovem<br />
her<strong>de</strong>ira que sobe à corte real é aqui<br />
engenhosamente adaptada a um<br />
filme <strong>de</strong> liceu contemporâneo: a<br />
princesa <strong>de</strong> Clèves é aqui <strong>uma</strong> nova<br />
Duas “coqueluches” do cinema francês,<br />
Christophe Honoré e François Ozon<br />
aluna num liceu parisiense, o seu<br />
marido <strong>de</strong> conveniência um colega<br />
tímido que se per<strong>de</strong> <strong>de</strong> amores por<br />
ela, o sedutor que a tenta conquistar<br />
o professor <strong>de</strong> italiano. Rodando<br />
com a sua habitual<br />
companhia<br />
<strong>de</strong> actores (Louis<br />
Garrel, Grégoire<br />
Leprince-<br />
Ringuet, Clotil<strong>de</strong><br />
Hesme) e indo<br />
buscar bu b scar<br />
Com “A Bela Junie”<br />
Honoré prossegue<br />
a exploração sôfrega<br />
<strong>de</strong> <strong>uma</strong> irreverência<br />
herdada da<br />
Nouvelle Vague<br />
para o papel principal a presença<br />
magnética <strong>de</strong> Léa Seydoux, Honoré<br />
acerta na mouche ao igualar a<br />
serieda<strong>de</strong> dos jogos corteses <strong>de</strong><br />
sedução ao romantismo hiperemocional<br />
emocional das pai paixões <strong>de</strong> liceu<br />
(sublinhado pela oomnipresença<br />
na<br />
banda-sonora da mmelancolia<br />
<strong>de</strong>licada <strong>de</strong> Nick Ni Drake). E a<br />
trama do rom romance empresta ao<br />
filme a soli<strong>de</strong>z solid estrutural que<br />
os anterior anteriores punham<br />
propositadamente propositad <strong>de</strong> parte,<br />
confirmando confirm Christophe<br />
Honoré Hono como um dos<br />
mais interessantes<br />
cineastas cinea franceses do<br />
momento mom e fazendo <strong>de</strong><br />
“A Bela Be Junie” um<br />
belíssimo belís filme que<br />
teria merecido outra<br />
atenção. aten<br />
Em E ambos os casos,<br />
as cópias c e as<br />
traduções trad são <strong>de</strong> boa<br />
qualida<strong>de</strong>, qua sem extras<br />
<strong>de</strong> espécie e nenh<strong>uma</strong>.<br />
Ípsilon • Sexta-feira 16 Abril 2010 • 63