Setembro - Outubro - Novembro 1999 - ABRACOR
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Artigo Técnico<br />
MEMÓRIA E PATRIMÔNIO NAGÔ<br />
Hugo Bomfim da Silva Filho *<br />
Trabalho apresentado<br />
por ocasião do IX Congresso<br />
da <strong>ABRACOR</strong> –<br />
Salvador - BA<br />
Ficou registrado em minha<br />
memória, o dia em<br />
que um grupo de adeptos<br />
de um desses cultos assembleístas<br />
ao caminhar<br />
pelas ruas de um bairro da<br />
periferia do Rio de Janeiro,<br />
entoando cantos de<br />
salvação, se deparou com<br />
pessoas de uma comunidade-terreiro.<br />
Começaram<br />
a proferir palavras de repúdio<br />
ao comportamento<br />
daqueles que, no seu entender,<br />
estariam agindo<br />
em desacordo com a palavra<br />
de Deus.<br />
Era uma da tarde ensolarada<br />
de Domingo, a temperatura<br />
beirava os 40<br />
graus, as pessoas transitavam<br />
pelas ruas e as crianças<br />
brincavam despreocupadas,<br />
quando esse<br />
grupo parou em frente à<br />
porteira da comunidade.<br />
Entre punhados de sal jogados<br />
a porta e louvações<br />
para expulsar os demônios<br />
que ali se encontravam,<br />
aglutinavam mais<br />
pessoas com o intuito de<br />
fazer uma espécie de exorcismo.<br />
Se tratava de um<br />
lugar de respeito. Esta atitude<br />
acabou por não convencer<br />
aos adeptos, que<br />
insistiam em manter suas<br />
pregações às portas da<br />
comunidade.<br />
O clima se tornou insuportável,<br />
e o que me<br />
parecia é que a comunidade<br />
se via ameaçada e<br />
desafiada ao mesmo tempo.<br />
De repente, se apresenta,<br />
no meio daquele<br />
grupo, uma senhora de<br />
aproximadamente 80<br />
anos, de cabelos brancos,<br />
pedindo para que seus filhos<br />
entrassem, dizendo a<br />
seguinte frase:<br />
“Nós temos muito<br />
mais coisas a resolver da<br />
nossa porta para dentro.”<br />
Imediatamente, os filhos<br />
de santo e amigos da<br />
casa retomaram seus afazeres<br />
e voltaram as suas<br />
rotinas.<br />
Quanto aos pregadores<br />
da suposta fé, acredito<br />
que tenham se cansado.<br />
Esse episódio na verdade<br />
serve como ponto de<br />
partida, para se pensar o<br />
que representa o candomblé<br />
enquanto comunidade<br />
religiosa, e a importância<br />
dessas comunidades na<br />
formação do patrimônio<br />
cultural brasileiro.<br />
Em primeiro lugar, é<br />
evidente que muitos problemas<br />
emergentes dessas<br />
comunidades referemse<br />
a sistemáticas campanhas<br />
que tentam depreciá-las,<br />
justamente naquilo<br />
que elas tem de mais<br />
original e inovador, que é<br />
a possibilidade de relacionamento<br />
com o sagrado,<br />
sem manter pretensões de<br />
caráter universalista, na<br />
medida em que, para o<br />
chamado povo-de-santo,<br />
o que vem a ser, necessariamente,<br />
importante é<br />
a articulação entre o corpo<br />
e o território.<br />
Como se trata de uma<br />
cultura da artkhe. Esse<br />
corpo não se aprende em<br />
termos exclusivamente individual,<br />
mas grupal e ritualístico.<br />
Aponta o professor<br />
Muniz Sodré, para<br />
a importância da corporalidade<br />
litúrgica, integrada<br />
ao coletivo, na forma de:<br />
gestos, posturas, direções<br />
de olhar, bem como, através<br />
de sinais e inflexões<br />
microcorporais, que sugerem<br />
outras formas e perspectivas<br />
de relacionamento<br />
do corpo com o sagrado.<br />
Neste sentido, o candomblé<br />
pode ser considerado<br />
como um microcosmo<br />
aglutinador de experiências<br />
religiosas, de manifestações<br />
do sagrado<br />
através de suas representações<br />
simbólicas, de<br />
seus orixás, voduns, inquices<br />
e caboclos.<br />
Essa rica experiência<br />
religiosa engendra uma<br />
experiência de vida, que<br />
por sua vez, reanima a<br />
experiência religiosa, tornando-a<br />
indissociável, no<br />
plano de ação comum.<br />
Contempla nesta totalidade<br />
as profundas inter-relações<br />
da casa de santo,<br />
dos terreiros, das árvores<br />
sagradas, das pedras carregadas<br />
de energias, das<br />
folhas sagradas, dos cânticos,<br />
enfim, dos sagrados<br />
e bem guardados, fundamentos<br />
religiosos. (1)<br />
A MEMÓRIA DO PA-<br />
TRIMÔNIO NAGÔ<br />
Como é notório saber,<br />
a formação da sociedade<br />
brasileira iniciada no século<br />
XVI, se deu a partir de<br />
um processo de agrupamento<br />
em um vasto território<br />
a ser conquistado,<br />
onde os elementos indígenas,<br />
europeus (colonizadores)<br />
e africanos (escravos<br />
negros trazidos principalmente<br />
da costa ocidental<br />
da África), iriam,<br />
interagir no campo ideológico<br />
do cristão do colonizador.<br />
11<br />
Os nagô, nome genérico<br />
dado a todos os grupos<br />
originários do sul do<br />
Daomé e do sudoeste da<br />
Nigéria, foram os últimos<br />
grupos de africanos a se<br />
estabelecerem no Brasil,<br />
entre o fim do século XVIII<br />
e início do século XIX, e<br />
o vasto conhecimento<br />
dessas antigas civilizações<br />
africanas nas Américas,<br />
manteve-se por força<br />
do contingente de escravos.<br />
No entanto, o que cabe<br />
perguntar é:<br />
De que maneira esses<br />
grupos mantiveram suas<br />
organizações e estruturas<br />
complexas diante do processo<br />
colonizador que<br />
perpetuava seus mecanismos<br />
de conquista, cada<br />
vez mais sofisticados,<br />
com a avidez de produzir<br />
maior lucratividade?<br />
Dentre as possibilidades<br />
explicativas, o conceito<br />
de memória coletiva,<br />
elaborado por Maurice<br />
Halbwachs, que toma o<br />
grupo como unidade de<br />
referência sociológica,<br />
apresenta um bom caminho<br />
para pensar a questão.<br />
Para Halbwachs, os<br />
grupos podem ser ocasionais<br />
e instáveis com um<br />
número pequeno de pessoas<br />
que se reúnem para<br />
relembrar momentos de<br />
uma viagem, por exemplo.<br />
Ou, podem ser permanentes,<br />
como no caso das<br />
comunidades religiosas.<br />
Esses grupos vão apresentar<br />
características em<br />
comum. Trata-se de comunidades<br />
de lembranças.<br />
O ato mnemônico<br />
atualiza uma série de fatos,<br />
situações e aconteci-