Setembro - Outubro - Novembro 1999 - ABRACOR
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como uma linguagem de realização.<br />
Vale sublinhar que a consideração<br />
do sentido é pertinente<br />
não só no caso da comunidade<br />
litúrgica, mas também na<br />
maioria das questões levantadas<br />
pela preservação de um<br />
bem cultural. Por exemplo, a<br />
preservação de um edifício,<br />
onde o olhar tecnicista se deteria<br />
apenas nos aspectos<br />
materiais e externos (estéticos)<br />
da recomposição historiográfica.<br />
A isto poderia responder o<br />
antropólogo Clifford Geertz:<br />
“Dois elementos como traço<br />
e cor que, à primeira vista,<br />
parecem ser tão resplandescentes<br />
por si mesmos, extraem<br />
sua vitalidade de algo mais<br />
que o apelo estético neles<br />
contido, por mais real que seja.<br />
Sejam quais forem as capacidades<br />
inatas de reagir à delicadeza<br />
da escultura ou ao drama<br />
cromático, essas reações<br />
estão ligadas a interesses mais<br />
amplos, menos genéricos e<br />
com conteúdos mais profundos,<br />
e é essa conexão com o<br />
que é a realidade local que revela<br />
seu poder construtivo” (O<br />
Poder Local, p. 154).<br />
Tais “conteúdos profundos”<br />
têm a ver com o sentido. Este<br />
não passa de uma geração a<br />
outra como se fosse um valor<br />
ou um bem acumulável, porque<br />
é transcendente e autoengendrado.<br />
A Arkhé é sentido,<br />
que implica tradição sem<br />
tradicionalismo. Não há propriamente<br />
“transmissão” (a não<br />
ser de cargos, funções, modos<br />
litúrgicos de administração do<br />
segredo) de uma mensagem<br />
absoluta, a exemplo do kerygma<br />
cristão, mas reinterpretações<br />
na dinâmica de transformação<br />
das formas de existência<br />
do grupo.<br />
E isso ocorre devido às identificações<br />
individuais e coletivas<br />
com uma forma de vida associativa<br />
entre mito e História,<br />
entre o visível e o invisível – a<br />
Arkhé . A liturgia – cânticos,<br />
invocações, atos, distribuição<br />
hierárquica de papéis – é uma<br />
significação (convencional,<br />
particular) com poder coesivo,<br />
porque estimula representações<br />
identitárias concretas<br />
frente às abstrações com valor<br />
universal. Nela se acha a<br />
“raiz das formas” a ser preservada<br />
num terreiro.<br />
Mas é também vital a questão<br />
da propriedade do terreno, da<br />
garantia do espaço físico, e<br />
não por motivos meramente<br />
jurídicos. É que numa cultura<br />
de Arkhé, como a nagô-ketu<br />
brasileira, ganha primado a<br />
relação integrativa do corpo<br />
com a território, isto é, com<br />
os outros homens, mas também<br />
com a terra, os minerais,<br />
os vegetais, as águas. Tratase<br />
de fato de uma relação integrativa<br />
com a própria realidade<br />
do corpo humano, feito<br />
de minerais, líquidos, vegetais<br />
e proteínas. A exemplo da tradição<br />
africana, o corpo aparece<br />
como um microcosmo do<br />
espaço amplo (o cosmo, a região,<br />
a aldeia, a casa), tanto<br />
físico como mítico, o que faz<br />
da conquista simbólica do<br />
espaço uma espécie de “tomada<br />
de posse da pessoa”.<br />
Na visão do antropólogo Marc<br />
Augé, o corpo humano pode<br />
mesmo Ser concebido como<br />
uma porção de espaço, com<br />
suas fronteiras e defesas: “Se<br />
temos exemplos de territórios<br />
pensados à imagem do corpo<br />
humano, o corpo humano é<br />
muito geralmente, ao contrário,<br />
pensado como um território”.<br />
Cita o exemplo das civilizações<br />
akan (atuais Gana e<br />
Costa do Marfim), onde o corpo<br />
é visto como um conjunto<br />
de lugares de culto, um centro<br />
para onde convergem elementos<br />
cósmicos e ancestrais.<br />
Por outro lado, no próprio<br />
modo de entender o que seja<br />
uma civilização (ilaju, isto é,<br />
“rosto com marcas de linhas”),<br />
os iorubás inscrevem o espaço<br />
e a terra. Diz o crítico R.F.<br />
Thompson: “O mesmo verbo<br />
que civiliza o rosto com marcas<br />
que identificam os membros<br />
de várias linhagens urbanas<br />
e citadinas, civiliza a terra:<br />
ô xá keké; ô sakô (ele talhou<br />
as marcas {da cicatriz };<br />
ele limpa o mato). O mesmo<br />
verbo que abre marcas em<br />
uma face iorubá, abre estradas<br />
ou fronteiras na floresta<br />
(...) Na verdade, o verbo básico<br />
para cicatrizar (la) tem associações<br />
múltiplas relacionadas<br />
com a imposição de um<br />
padrão humano sobre a desordem<br />
da natureza: pedaços de<br />
madeira, o rosto humano e a<br />
floresta, todos são ‘abertos’...”<br />
Investimentos coletivos e individuais<br />
entrecruzam-se na<br />
territorialidade corporal, e seja<br />
na África ou no Brasil, o corpo<br />
humano pode ser considerado<br />
um santuário. Na verdade,<br />
a importância primordial do<br />
corpo na Arkhé está na possibilidade<br />
que enseja de uma<br />
coesão comunitária. Por meio<br />
da corporalidade, resolve-se o<br />
problema da dicotomia ( insolúvel<br />
até agora para o Ocidente)<br />
entre o sungular e o coletivo,<br />
equilibrando-se o desenvolvimento<br />
da singularidade com<br />
a pressão do grupo.<br />
O que é bem frisado pelo sociólogo<br />
português José Gil:<br />
“Isso deve-se ao fato de a comunidade<br />
primitiva deixar<br />
aberto esse espaço em que o<br />
significante flutuante podia<br />
circular; dizendo de outro<br />
modo: no domínio da comunicação<br />
dos sígnos, como no da<br />
sua apreensão e tradução, o<br />
que permitia que os códigos<br />
fossem transmitidos e compreendidos<br />
era uma determinada<br />
função do corpo” (Cf. Metamorfoses<br />
do Corpo).<br />
“Significante flutuante” é a<br />
expressão lévi-straussiana<br />
para designar o corpo e suas<br />
energias, seus poderes de realização,<br />
chamados de axé<br />
pelos nagôs. O significante<br />
flutuante – que, para o antropólogo,<br />
tem múltipla significação<br />
( força e ação, qualidade<br />
e estado, etc.) – é aquilo que<br />
faz funcionarem os códigos<br />
comunitários, presidindo às<br />
transformações ou passagens<br />
de uma situação a outra. Para<br />
o grupo nagô-ketu, é o bem<br />
valioso guardado pela comunidade-terreiro:<br />
é experienciado<br />
como um conteúdo real,<br />
acumulável e transmissível<br />
pela mediação corporal, propiciador<br />
das ações de crescimento<br />
e expansão do grupo.<br />
O axé, esse precioso conteúdo<br />
“plantado” no espaço visível<br />
e invisível do terreiro, torna<br />
possível a guarda do axexé.<br />
Este termo implica o morto<br />
recente, mas também os<br />
ancestrais fundadores, as origens<br />
do grupo, garantias míticas<br />
de continuidade das gerações<br />
futuras. Por meio do axexé,<br />
o corpo comunitário, que<br />
contém o legado dos fundadores<br />
e socializa os ritos, funde-se<br />
aos corpos individuais.<br />
Equivale também ao que vimos<br />
chamando de sentido ou<br />
Arkhé (origem e fim): de um<br />
lado, princípios éticos (ances-<br />
9<br />
trais) com que o escravo e<br />
seus descendentes se identificaram<br />
na história de sua vicissitude<br />
existencial e de suas<br />
estratégias de ressocialização<br />
no espaço nacional brasileiro;<br />
de outro, experiência de uma<br />
abstração trans-humana ( não<br />
uma identidade abstrata, mas<br />
um “mesmo” latente e reinterpretável<br />
na História), sentido<br />
profundo da coesão grupal. O<br />
cósmico e trans-humano da<br />
Arkhé é necessariamente sustentado<br />
tanto por uma ética de<br />
ancestralidade como por uma<br />
movimentação política destinada<br />
a garantir uma margem<br />
de identificações originárias<br />
para assegurar o caminho futuro.<br />
Por isso é que a Casa Branca,<br />
o Gantois e o Axé Opô Afonjá<br />
são lugares fundamentais para<br />
que se possa compreender o<br />
que há de profundo na preservação<br />
de um patrimônio simbólico<br />
de natureza litúrgica.<br />
Dizia Mãe Senhora, uma das<br />
mais famosas ialorixás de todos<br />
os tempos na Bahia, que<br />
“a Casa Branca são as pernas,<br />
o Gantois é o tronco, o Axé<br />
Opô Afonjá é a cabeça”. Ou<br />
seja, as casas fundadoras<br />
constituem, no fundo, um<br />
“corpo” comunitário, com estratégia<br />
própria – como reza o<br />
cântico: “Todos unidos no<br />
mesmo corpo/ nada há no<br />
mundo que possa contra<br />
mim”.<br />
Todas essas comunidadesmatrizes<br />
do culto nagô-ketu no<br />
Brasil podem contar histórias<br />
particulares sobre suas resistências<br />
e investidas de especulações<br />
imobiliárias, a tentativas<br />
de invasão de seus espaços<br />
ou sobre a luta pelo reconhecimento<br />
de Utilidade<br />
Pública e imunidade fiscal. Aos<br />
argumentos de que a expansão<br />
urbana torna inviável a<br />
continuidade dos cultos no<br />
perímetro da cidade, a comunidade<br />
invoca a sua soberania<br />
litúrgica e arma a resistência<br />
junto com homens e orixás.<br />
Mas ninguém no terreiro desconhece<br />
a importância de que<br />
a sociedade global tome plena<br />
consciência de que o patrimônio<br />
sagrado dos afrodescententes<br />
– o escrínio da tradição<br />
ou da Arkhhé – é também<br />
patrimônio nacional.<br />
*Miniz Sodré, (Professor Titular<br />
da ECO/UFRJ, escritor.