Setembro - Outubro - Novembro 1999 - ABRACOR
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Artigo Técnico<br />
RELAÇÃO ENTRE PRESERVAÇÃO<br />
DE BENS E PATRIMÔNIO COMUNITÁRIO<br />
Raquel Paiva *<br />
Eu gostaria de começar<br />
minha exposição trazendo<br />
um fato que tive a oportunidade<br />
de presenciar em fevereiro<br />
de 97 e que sempre<br />
tem me proporcionado uma<br />
intensa reflexão.<br />
Trata-se de uma escola<br />
secular localizada em Zagora,<br />
na porta do deserto marroquino.<br />
A escola, por onde<br />
passam juristas e seminaristas<br />
de várias partes do país,<br />
possui uma biblioteca, cujos<br />
livros datam de 1.400<br />
DC, escritos a mão e em letra<br />
de ouro. Trata-se de um<br />
tesouro inestimável, que os<br />
guias apresentam aos turistas,<br />
transportando-os através<br />
de três amplas salas,<br />
onde se vêem mesas no<br />
centro rodeadas por cadeiras<br />
e diversas estantes nas<br />
paredes destinadas aos livros.<br />
Não existe ali nenhum<br />
computador ou equipamento<br />
que lembre a era atual. O<br />
chão em cimento compõe,<br />
com as paredes pintadas de<br />
branco, a singela decoração<br />
do lugar.<br />
Através das janelas laterais<br />
do pátio, onde também<br />
está a biblioteca, pode-se<br />
ver o que são os quartos dos<br />
alunos e hóspedes – dormitórios<br />
apenas com esteiras.<br />
Os banheiros reservam também<br />
uma surpresa, já que<br />
não possuem água encanada<br />
e papel higiênico, tornando<br />
a permanência dos visitantes<br />
mais rápida do que o<br />
normal pelo forte odor que<br />
exalam.<br />
Nos dias que se seguiram<br />
a esta visita eu me sentia a<br />
princípio inconformada com<br />
a existência daquele tesouro<br />
em um lugar tão inóspito.<br />
Pensei mesmo que o<br />
Museu do Louvre, em Paris,<br />
seria o lugar ideal, principalmente<br />
pela alta difusão que<br />
aquelas obras alcançariam.<br />
É preciso que se diga ainda<br />
que a compreensão tornava-se<br />
mais difícil em função<br />
da paisagem local. Isso<br />
porque, praticamente ao<br />
lado, existe um hospício em<br />
que os doentes mentais –<br />
independente da situação<br />
econômica – ficam soltos<br />
em um pátio. O tratamento<br />
consiste tão somente em<br />
que, vez por outra, durante<br />
o dia, toque-se na porta de<br />
um pequeno quarto, pleno<br />
de “baraka”, ou energia superior<br />
e divina. Ali não existem<br />
psiquiatra, enfermeiro<br />
ou médico de qualquer espécie.<br />
A cura se dá em vários<br />
casos, apesar do tratamento<br />
ter abdicado desses<br />
profissionais e consistir apenas<br />
na relação com o sagrado.<br />
A partir desse caso podese<br />
pensar no significado de<br />
um bem cultural para uma<br />
comunidade. Minha proposta<br />
é discutir a pertinência de<br />
se falar de patrimônio – ou<br />
herança - cultural no mundo<br />
globalizado, principalmente<br />
no momento em que<br />
se contasta a revisão de conceitos<br />
até então considerados<br />
verdadeiros, como os relacionados<br />
à estética e à<br />
obra de arte.<br />
Neste sentido, é importante<br />
recorrer ao pensamento<br />
do filósofo italiano Gianni<br />
Vattimo, que traça uma<br />
visão positiva da atualidade,<br />
do ponto de vista da construção<br />
da história. Ele, ao<br />
contrário da grande maioria<br />
dos intelectuais e filósofos<br />
do mundo contemporâneo,<br />
vê na pós-modernidade,<br />
com seu aparato tecnológi-<br />
co, a possibilidade de uma<br />
nova proposta de memória<br />
social. Isto porque, para ele,<br />
os monumentos nos quais<br />
está condensada a experiência<br />
pessoal de uma pessoa<br />
ou de uma época não são<br />
mais do que mausoléus, testemunhas<br />
de uma vida que<br />
foi historicamente realizada.<br />
A proposta de Vattimo<br />
encaminha-se em direção à<br />
concepção do que o filósofo<br />
alemão Otto Apel conceituou<br />
como “jogo linguístico<br />
transcendental”, ou seja, o<br />
que passa a Ter importância<br />
mesmo é a possibilidade do<br />
diálogo intergeracional,<br />
onde assumem lugar de destaque<br />
os eventos fundamentais<br />
do quotidiano do gênero<br />
humano. Ora, desenha-se<br />
aí uma visão bem mais dinâmica<br />
de tudo o que comporta<br />
a tradicionalidade, inclusive<br />
a própria herança<br />
cultural, que pode ser representada<br />
até mesmo por um<br />
conjunto arquitetônico.<br />
Abre-se uma outra visão,<br />
onde necessariamente estão<br />
presentes elementos que<br />
dão uma nova coloração à<br />
proposta meramente preservacionista<br />
e museificante.<br />
O jogo linguístico transcendental<br />
assume lugar definidor<br />
na medida em que<br />
favorece a compreensão do<br />
porquê da permanência ou<br />
não de formas através dos<br />
tempos. Também descortina-se<br />
como pergunta a ser<br />
respondida o porquê de se<br />
preservar um bem, que passa<br />
a receber o estatuto de<br />
“bem cultural”. A questão<br />
central está no entendimento<br />
de que uma forma é permanentemente<br />
transmitida<br />
mesmo quando está oculta,<br />
e quando não consegue ul-<br />
trapassar as barreiras do não<br />
– dito, portanto, não é interpretado.<br />
Trata-se de uma<br />
transmissão cuja compreensão<br />
é um pouco difícil para<br />
nós, já que não se faz apenas<br />
pela visibilidade que alcança.<br />
A idéia tem por base a<br />
concepção, já discutida por<br />
Walter Benjamin, de que o<br />
relato histórico é uma versão<br />
elaborada pelos vencedores.<br />
Desta maneira, o enfraquecimento<br />
dessas formas<br />
fortes e predominantes<br />
que são a história e seus<br />
monumentos e que compõem<br />
o ambiente da pósmodernidade<br />
pode possibilitar<br />
a emergência de outras<br />
potencialidades e discursos.<br />
A construção de uma nova<br />
memória social só pode ser<br />
concebida a partir do reconhecimento<br />
de que os paradigmas<br />
até então vigentes<br />
não possuem mais o mesmo<br />
vigor que os justificava<br />
quando vigiam o horizonte<br />
metafísico e a crença de que<br />
existia um sujeito definidor<br />
da verdade.<br />
O ambiente atual, com a<br />
regência de vários fluxos informacionais,<br />
propicia a visão<br />
de um mundo integrado<br />
globalmente em torno da<br />
concepção central de mercado.<br />
Tudo passa a ser atravessado<br />
por esta ótica que<br />
define também o uso dos<br />
bens sociais e culturais.<br />
Dentre as áreas apontadas<br />
como filões mercadológicos<br />
dessa nova era, está tudo o<br />
que possa estabelecer uma<br />
conexão com a idéia de<br />
mundialização, aparecendo<br />
com força o perfil relacionado<br />
ao turismo. Isso porque<br />
o turismo engendra uma força<br />
complementar à planeta-